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Choram, fazem birras, mordem, dão pontapés.

As expressões de agressividade nos mais


novos assumem várias formas e surpreendem os pais, muitas vezes impotentes para
lidar com o problema. Será que os castigos são a melhor forma de resolver o assunto?

Um rapaz de quatro anos, aborrecido porque a sua festa de anos estava a chegar ao fim,
irrompeu pela sala depois do último convidado ter saído e, com toda a força, deitou duas
pesadas cadeiras ao chão. Os pais ficaram atónitos, mas a criança não conseguia aceitar
o facto de que aquele dia tão especial tinha de terminar. O relato está incluído no livro
Compreender a Agressividade na Criança, de T. Berry Brazelton e Joshua D. Sparrow,
escrito com o objectivo de ajudar os pais a compreender e a lidar com os
comportamentos agressivos nos mais novos.

Segundo os autores, a maioria dos adultos considera a agressividade uma emoção de


carga negativa e algo que deve ser escondido. «Os pais ficam horrorizados com os
sinais de hostilidade e perda de controlo dos filhos». No entanto, para Brazelton e
Sparrow, esta irritação não é apenas inevitável como necessária. As causas para as
crises das crianças são várias e as fúrias tornam-se menos preocupantes caso os pais as
consigam antecipar e compreender, de forma a ajudar os filhos a contorná-las. «Em
algumas fases do desenvolvimento, a agressividade é até uma forma de a criança
estabelecer a sua independência. Os pais têm de compreender este objectivo e tê-lo em
consideração, estabelecendo, ao mesmo tempo, limites firmes para que a criança cresça
forte e independente, mas também segura».

Fernando Santos, responsável pela área de pedopsiquiatria da Unidade de


Neurodesenvolvimento e Comportamento da Criança e do Adolescente no Hospital da
Luz, partilha o mesmo ponto de vista. «A agressividade está presente em todos os seres
humanos e vai evoluir, principalmente de acordo com a relação que mantivermos com o
mundo à nossa volta. Nas crianças mais pequenas, a agressividade aparece de forma
natural, para obterem o que precisam. É portanto, um instinto próprio a todo o ser
humano», sublinha.

Ao contrário do que se possa pensar, a adolescência não é a fase em que as crianças são
mais agressivas. Segundo um estudo canadiano, realizado por Richard Tremblay, é entre
o primeiro e o quarto ano de vida que se verifica o maior índice de agressividade. O
investigador procurou desvendar se a violência é ou não uma característica intrínseca do
ser humano e incidiu a pesquisa na forma como a interacção da genética com os factores
ambientais contribuem para desencadear comportamentos agressivos ou anti-sociais.
Entre as conclusões, Tremblay descobriu que, aos 17 meses, metade das variações nas
respostas agressivas estavam relacionadas com factores genéticos e que a violência
diminui à medida que a criança cresce e aprende a controlar o seu comportamento. «Os
nossos estudos demonstram que é essencial que se ensine às crianças, durante os
primeiros anos de vida, a controlar os comportamentos violentos», defende o
investigador, que realça a idade pré-escolar como a etapa chave para entender o
aparecimento e posterior desenvolvimento de comportamentos violentos no ser humano.

Na opinião de Fernando Santos, as crianças têm manifestações de agressividade desde


muito cedo. «Os bebés pequenos não são capazes de comportamentos agressivos, como
bater ou dar um soco, mas têm recurso ao choro e gritos – por vezes com grande
persistência – e expressões faciais para exprimir o seu descontentamento ou frustração.
Podemos considerar as manifestações vocais e faciais de zanga como os primeiros sinais
de agressividade nos bebés», diz o pedopsiquiatra. «Antes do primeiro ano são capazes
de morder, beliscar, dar pontapés ou bater, tendo coordenação motora suficiente para
isso. Por volta dos três anos são já capazes de desenvolver um comportamento agressivo
mais elaborado, tendo em conta o desenvolvimento motor e a consolidação da marcha.
Esta situação vai diminuindo progressivamente, à medida que a criança aprende a gerir
as emoções, utilizando a linguagem para comunicar e exprimir as suas frustrações de
forma mais positiva», acrescenta.

Já a psicóloga clínica Cristina Camões chama a atenção para um pormenor importante


no estudo canadiano. «A pesquisa alerta para algo muito importante: as crianças devem
ser educadas e ensinadas desde os primeiros anos a reprimir e controlar os impulsos
agressivos. A agressividade vai diminuindo de intensidade à medida que o cérebro da
criança vai amadurecendo, levando esta a conseguir controlar os impulsos agressivos e a
lidar com a frustração».

Olhem para mim, estou aqui

A situação tende a fugir ao controlo dos pais quando a agressividade começa a ser uma
constante. Filomena Lopes, educadora de infância há 26 anos, já lidou com vários casos,
mas, ainda assim, não acredita que se possa falar de crianças agressivas. «Trata-se da
expressão de emoções não organizadas, não acolhidas e que, de algum modo, encontram
como veículo uma atitude mais impulsiva, um comportamento menos correcto.
Manifestações que frequentemente por não terem quem possa ‘ver’ ou acolher – no
sentido de compreender – se repetem até que alguém perceba que aquela criança está a
solicitar que olhem para ela, que a ajudem a crescer bem», diz.

Tal como no estudo de Richard Tremblay, também os casos de violência presenciados


por Filomena Lopes ocorreram em crianças entre os quatro anos e meio e os cinco anos.
«As causas são as mais diversas: desde falta de atenção parental ou excesso sem limites,
separação dos pais, nascimento de um irmão, ambientes familiares disfuncionais, sonos
perturbados, ritmos de vida desgastantes. É um vasto campo de possibilidades». Para a
psicóloga Cristina Camões, quando a agressividade se manifesta de uma forma
exagerada e persistente pode ser «um indicador que algo não está bem com a criança,
poderá inclusive ser sinónimo da existência de problemas mais graves como violência
intra-parental, negligência, falta de afecto, ausência de limites de educação parental e
violência emocional».

A origem com causas diversas é igualmente defendida por Fernando Santos. «Talvez a
conclusão mais correcta seja que a agressividade é o resultado de factores genéticos em
interacção com o meio, num contexto temporal específico», explica. «Quando as
condutas agressivas persistem no tempo, isso está ligado às interacções familiares e ao
ambiente social. Podemos falar de várias ‘condutas de risco’ da parte dos pais, que
podem estimular o desenvolvimento de padrões comportamentais agressivos nos filhos,
como a inconstância no estabelecimento de limites. Quando um comportamento é
punido num determinado momento e ignorado no momento seguinte, é difícil para a
criança distinguir o certo do errado». Segundo o pedopsiquiatra, é fundamental os pais
«definirem claramente o que a criança pode ou não fazer e serem coerentes em termos
das medidas educativas e comportamentais».

Castigar ou ignorar?

Rosa Gouveia, membro da secção de pediatria do desenvolvimento da Sociedade


Portuguesa de Pediatria, reconhece que não é fácil lidar com a agressividade. «O
comportamento agressivo é uma manifestação de perturbação de conduta e caracteriza-
se por uma situação de conflito crónico com os pais, os professores e os pares, podendo
resultar em danos físicos na própria criança ou nos outros. A agressividade na criança
pode gerar agressividade no adulto, tanto verbal como com recurso a castigos físicos, o
que leva a um círculo vicioso difícil de quebrar». Para a pediatra, sempre que a criança
tenha um comportamento adequado, não agressivo, «deve ser recompensada e elogiada,
de modo a melhorar a sua auto-estima. Também deve ser demonstrado que existem
outras formas não agressivas de se relacionar com os outros e com o meio ambiente».

A ausência de regras e limites também é apontada por Cristina Camões como uma das
causas da agressividade. «Quando os progenitores adoptam uma postura passiva na
educação dos filhos, isto é, com ausência de regras e limites, resulta numa excessiva
tolerância que em nada contribui para a estruturação da personalidade dos mais novos,
que crescem com dificuldades em controlar os impulsos e de lidar com a frustração».
De acordo com a sua experiência clínica, «este factor é o que mais se encontra nas
crianças que são sinalizadas com comportamentos violentos. Os pais, quando sentem
que já não conseguem controlar a situação, procuram ajuda de um especialista na área
da psicologia ou pedopsiquiatria», revela Rosa Gouveia.

 
E os castigos, será que ajudam a controlar a agressividade ou apenas deitam mais lenha
para a fogueira? Fernando Santos defende-os, caso aplicados de forma adequada, ou
seja, «se forem coerentes, perto da acção que os motivou e de curta duração. Podem
contribuir para que a criança perceba a dimensão negativa do comportamento». No
entanto, o pedopsiquiatra sublinha a necessidade de perceber que disciplinar não se
limita às punições e castigos. «Devem igualmente ser ensinadas formas de resistir ao
impulso, de aprender a esperar e estratégias alternativas para a resolução dos problemas.
A relação de confiança entre a criança e o adulto deve ser também estimulada».

Filomena Lopes sempre tentou perceber o que se estava a passar com a criança para
justificar comportamentos agressivos. «As estratégias dependiam muito do contexto, ou
seja, se as agressões ocorriam em grandes ou pequenos grupos, já que existem variáveis
a ter em conta como a gestão do poder, a auto-estima da criança e a resolução daquela
emergência», adianta a educadora. A estratégia de «dar a volta» foi uma das
experimentadas. «‘Queres ver, aqui há espaço, os amigos ajudam ou há outras peças,
esta pode ser?’ Quando implicava magoar amigos, fazia uma pausa para conversar
individualmente, perceber o que estava a acontecer e depois conversávamos em grupo.
Se fosse preciso e se não existisse regra escrita, criava-se uma e era partilhada por
todos». Em qualquer dos episódios, a educadora de infância falou com os pais das
crianças em causa «uma vez que podem dar ou não pistas sobre o que está a acontecer.
Por outro lado, também poderão ficar alerta sobre algumas manifestações que ainda não
tinham tido disponibilidade para observar sobre outro ângulo», explica.

Agressividade vs violência

Fernando Santos recorda que a agressividade ocasional não é por si só um


comportamento desadequado e não deve ser motivo de preocupação. «Pode reflectir
alguma alteração específica». No entanto é necessário procurar ajuda «quando a criança
recorre sistematicamente a este comportamento, não consegue controlar o impulso
agressivo, não cede às medidas aplicadas para o modificar nem é capaz de estabelecer
uma relação positiva com os adultos do seu meio ambiente», aconselha o
pedopsiquiatra. Da agressão à violência física pode ser um passo. «A violência, na
verdade, é o péssimo emprego da nossa agressividade. É a total perda do controle que
precisamos ter sobre ela», diz. «As crianças que não adquirem capacidades relacionais
correctas, numa fase precoce da vida, têm mais probabilidades de evoluir para
alterações de comportamento, hábitos de consumo e conduta de risco». Agredir os pais
pode ser o próximo passo, uma atitude que segundo o especialista deve ser
imediatamente contrariada.

«Entender os mecanismos que justificam o comportamento agressivo não é sinónimo de


permitir que a criança agrida de forma repetida e sistemática, sem nenhuma intervenção.
Da mesma forma que compreender que a criança está zangada como reacção à
frustração é uma coisa, permitir que ela nos agrida ou agrida os outros é algo muito
diferente», defende. «O deixar passar sem tomar nenhuma atitude reforça na criança a
falsa sensação de que pode repetir esse comportamento sempre que quer obter alguma
coisa ou simplesmente é contrariada. Esta atitude faz com que as crianças permaneçam
imaturas, impulsivas e com passagem frequente ao acto como estratégia para a
resolução dos conflitos. Podem ter as emoções ainda não totalmente controladas, mas
são muito capazes de entender os limite que lhes são colocados», adverte.

E o que podem fazer os pais para contrariar este comportamento? «A acção segura e
firme, porém carinhosa, dos pais ajuda a criança a estruturar o seu comportamento de
forma mais rápida», diz Fernando Santos. Já Rosa Gouveia defende que pode ser
necessário aos pais recorrerem a apoio psicológico «de modo a desenvolver estratégias,
geralmente baseadas no reforço positivo, para lidar com a criança no dia-a-dia». O
pedopsiquiatra prefere centrar a atenção nas causas do problema. «Muitas crianças que
são agressivas ou têm comportamentos de oposição constante, podem utilizar este meio
para mascarar outros sentimentos e emoções tais como tristeza ou incapacidade em lidar
com dificuldades a nível do ambiente familiar.

Tal como em outras situações, o importante é agir o mais cedo possível para contrariar
atitudes agressivas desajustadas, prevenindo a consolidação de problemas de
comportamento e permitindo à criança um desenvolvimento harmonioso. Ajudá-la a
utilizar palavras para exprimir as dificuldades e ensiná-la a falar do que a preocupa é um
início para a resolução da situação», explica. «É igualmente importante estar disponível
e atento de forma a poder ter uma supervisão e intervenção eficazes, não nos
esquecendo que temos de lidar com um mau comportamento e não com uma criança
má», conclui Fernando Santos.

As idades da fúria

Até 1 ano

Como se manifesta a agressividade

Através do choro, birras, mordeduras ou pontapés

Como agir com a criança

Dizendo ‘não’ aos comportamentos errados, reforçar pequenas recompensas (beijos e


carinhos) quando tem comportamentos correctos. Apesar das crises de choro poderem
acontecer todas as noites entre as 3 e as 12 semanas, ao fim de 4 meses desaparecem (se
não deve falar com o pediatra)

Até aos 4 anos

Como se manifesta a agressividade

Através do choro, birras, destruir brinquedos ou empurrar e tirar objectos das mãos das
outras crianças

Como agir com a criança

Dizendo ‘não’ aos comportamentos errados, reforçar pequenas recompensas (beijos e


carinhos) quando tem comportamentos correctos, estabelecer limites e seleccionar
programas de televisão

Até aos 6 anos

Como se manifesta a agressividade

Através do choro, birras, socos, pontapés, destruir brinquedos e outros objectos ´

Como agir com a criança

Dizendo ‘não’ aos comportamentos errados, reforçar pequenas recompensas (beijos e


carinhos) quando tem comportamentos correctos. Usar os castigos, em caso necessário e
como último recurso.

Os jogos de computador promovem a agressividade?

É frequente atribuir a culpa dos comportamentos agressivos nos mais novos aos jogos
de computador cada vez mais violentos. No entanto, o pedopsiquiatra Fernando Santos
tem várias reticências em fazer esta ligação de forma directa. «Os jogos de computador
têm seguramente um lado positivo ao estimular o raciocínio, a criatividade, a atenção, a
memória e a coordenação motora». Quando existe um equilíbrio emocional, o jogo é
utilizado pela criança durante algum tempo, mas rapidamente deixa de influenciar a sua
vida real, a relação com a família, com a escola e os amigos. «Não são os jogos que
incitam à violência, mas sim o meio em que está inserido», diz Fernando Santos. «O
comportamento violento depende da forma como a criança é educada e da conduta que
os pais - como modelos que são - têm e da influência do meio em que estão inseridas.
Quando aparece, essa violência traduz questões mais complexas e ligadas à forma como
a criança se sente. Deverá haver algum cuidado de forma a evitar que o jogo se
transforme na única actividade de lazer, interferindo nas obrigações da criança,
nomeadamente familiares, escolares e sociais» Já a psicóloga Cristina Camões não é da
mesma opinião por considerar que os jogos violentos afectam não só o comportamento
das crianças, como as suas crenças e valores acerca do mundo e da realidade,
promovendo a agressividade. «Perante os jogos ou filmes violentos, os mais novos
chegam a confundir a ficção com a realidade. Algumas crianças em atendimento
psicológico afirmam ‘se tiver uma pistola, dou tiros e não morro, tal como acontece no
meu jogo».

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