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resenha

TREECE, David. Exilados, aliados, rebeldes – O movimento indianista, a política


indigenista e o Estado-nação imperial. São Paulo, Nankin/Edusp, 2008.

História e ficção –
Convergências entre política indigenista e movimento
indianista
Regina Maria Abu-Jamra Machado*

convergência de interesses. Ora, lembra


Treece, o relatório de Darcy Ribeiro
encomendado pela UNESCO, Os índios
e a civilização, “virou de ponta-cabeça
as suas expectativas e as de seus
patrocinadores”, expondo como a
mitologia da integração mascarava a
desintegração social e cultural, “o
esfacelamento da identidade coletiva
das comunidades tribais e a dissolução
de indivíduos alienados no anonimato
da sociedade dominante.”
Inventando Protagonista onipresente em toda a
uma tradição? Este título da primeira gama de expressões artísticas dos
parte da introdução, seguida séculos XVIII e XIX, o índio vem a
imediatamente por dados censitários corporificar ironicamente o mesmo
brutais, vem lembrar que a população nacionalismo que o aniquila. Esta ironia
indígena, de 5 milhões no século XV, ocupa um lugar central na reflexão
caiu para 100.000 na virada do século produzida pelos escritores indianistas,
XX, e fornece o primeiro elemento como demonstra a tese de David
definidor de um processo destrutivo de Treece, que traz para o centro do debate
proporções genocidas a contrastar acadêmico o fato, jamais bastante
permanentemente com o perfil do índio acentuado, de ter sido o indianismo,
na mitologia integracionista nacional. além de um movimento artístico, uma
Segue-se a análise de conceitos chave arena de debate sociopolítico. Visto
na evolução da política indigenista como o “movimento de nacionalismo
desde o império até a “democracia cultural mais coerente antes do
racial” e o “luso-tropicalismo”, as Modernismo”, obra de escritores
ideologias neocolonialistas da “Marcha notáveis, patrocinados pelo Imperador
para o Oeste” de Getúlio Vargas e seu D Pedro II, “o indianismo foi uma viga
contemporâneo integralismo, mestra do projeto imperial de
geralmente banhando numa noção geral construção do Estado, o mais
de “conciliação”, segundo a qual a importante objeto de reflexão artística e
assimilação do índio pressupõe

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política a exercitar a mente de sua elite iluminista e liberal, foram, em grande
intelectual por mais de meio século.” medida, herdados dessa tradição
jesuítica primeva.”
As sucessivas investigações dos
fenômenos característicos do O capítulo 2 acrescenta uma
movimento indianista continuam pelo interrogação capital já no título:
século XX afora, com as abordagens “Extermínio ou integração?
estruturalistas dos anos 1970 seguidas Independência, conflito civil e política
por análises cada vez mais abrangentes, indigenista depois de Pombal”, para
tanto por parte de pesquisadores chegar até a consolidação da
brasileiros quanto americanos ou independência durante a primeira
europeus. metade do século XIX, examinando a
onda liberal da Regência, com todas as
Quanto ao objetivo declarado do estudo,
suas contradições, bem como a primeira
é tratar o fenômeno indianista “como
geração de escritores indianistas que,
um movimento cultural e intelectual em
como já mencionado, tendo-se apoiado
diálogo consigo mesmo e com as
sobretudo nos relatos quinhentistas e
correntes políticas e ideológicas mais
seiscentistas, deixa para escritores como
amplas de seu tempo, e rehistoricizá-lo,
Bernardo Guimarães a tarefa de retratar
reconhecer nele as múltiplas e
as consequências trágicas da
frequentemente contraditórias vozes de
destribalização tal como se verifica
um discurso coletivo como também de
então. A notável oposição à política de
autores individuais a intervirem
extermínio determinada por D. João VI
conscientemente no processo social.”
em 1798, levantada por José Bonifácio
A segunda e última parte da Introdução, logo após a Independência, bem como
“Imagens do Império”, apresenta o sua ação como deputado, é
indianismo como uma sequência de detalhadamente exposta e analisada,
imagens que “serviram para arrematada por conclusões inhabituais:
conceitualizar as formas reais e primeiro, uma associação entre “a
possíveis do Estado-nação brasileiro.” condição do indígena e a do escravo
Isso leva à confrontação obrigatória negro e suas respectivas relações com o
com o não reconhecimento de que a Estado e a sociedade.” Estabelece-se
condição do índio “era uma questão uma filiação direta de José Bonifácio a
política em todo o período, envolvendo “seus sucessores mais proeminentes,
historiadores, estadistas e escritores, em como Gonçalves Dias, Joaquim Manuel
debate prolongado e, com frequência, de Macedo e José de Alencar”, levando
apaixonado”, política e movimento ao questionamento do “problema” da
literário mostrados em permanente escravidão, que viria assim a constituir
interação. “uma questão de ordem implícita do
O capítulo I examina sobretudo os indianismo oitocentista” Os dois ciclos
textos produzidos pelos jesuítas sobre o de agitações e revoltas populares que
índio durante os dois primeiros séculos respondem à total ausência de reformas
de colonização, enquanto fonte das estruturas coloniais, são
principal da literatura indianista introduzidos pela pergunta de um
subsequente: “Os mitos e estereótipos deputado em 1831: “Como há de
dos épicos indianistas do século dezoito marchar o regime novo com as mesmas
e da literatura romântica indianista, molas do regime velho?” E a
embora revestidos da ideologia constatação: “O caráter dos primeiros
vinte anos de literatura romântica

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indianista, de 1835 em diante, encontra- implacável uso da força e da retomada
se inequivocamente moldado por esse das “bandeiras” coloniais com seus
clima de conflito, instabilidade e propósitos de escravização dos índios e
desintegração federal.” liberação das terras para colonização
por brasileiros e imigrantes.
Uma contribuição que nos parece
importante assinalar é a abrangência da No capítulo 4 tratar-se-á do período de
pesquisa, que traz textos raramente 1870 a 1888, com a intervenção de
abordados nas histórias literárias, com abolicionistas como Joaquim Nabuco,
algumas contribuições inéditas de cuja polêmica com José de Alencar é
pesquisadores brasileiros. Mesmo a examinada de modo a mostrar as
análise de escritores relativamente contradições presentes em ambas as
conhecidos, como Teixeira e Sousa, posições em confronto. Os escritores
nessa perspectiva interdisciplinar, traz analisados nesta última fase do império
novas e instigantes abordagens, como “a representam correntes que já se afastam
possibilidade de formular uma série de do idealismo romântico, trazendo à cena
comentários que ficariam entre as mais literária o caboclo e uma nova rebeldia
acerbas denúncias da marginalização contra uma ordem social ainda uma vez
social e racial sob o Império, que a em crise. Particularmente interessante é
literatura desse período produziu.” Vida o exame da evolução das posições de
e obra de Gonçalves Dias, em seguida, José de Alencar, desiludido das
são também revisitadas à luz das “conciliações” da década de 1850, como
contribuições mais significativas da da nobreza cavalheiresca dos
bibliografia sobre o autor, em torno da donatários, que cedem a vez ao
qual gira a parte mais importante das “autoritarismo cru dos barões
reflexões desenvolvidas nesse capítulo. latifundiários do nordeste” no “O
sertanejo”, ou de outros barões ou
A política da conciliação é discutida no
fazendeiros nos outros romances da
capítulo 3, paralelamente à política
última fase do escritor.
indigenista, bem como a ausência da
questão fundamental da escravidão na Na conclusão, é globalmente examinado
literatura desse período, enquanto o “O legado indianista”, bem como o
índio é idealizado sob os traços do desejo expresso de se acabar com o
“guerreiro tribal como o escravo indianismo romântico culminando com
voluntário da representante feminina da a rejeição desse movimento pelos
ordem colonial”, encarnado no índio Modernistas de 1922, paralelamente à
Peri. Essa década, iniciada com a evolução das políticas indianistas
publicação dos “Últimos cantos” por durante o século XX. No último
Gonçalves Dias, seguida pelo “O parágrafo são abordadas as constatações
Guarani” de José de Alencar, é vista que se impõem ao final deste século,
também sob o ângulo da aprovação da com as terríveis consequência dos
Lei de Terras e da lei Eusébio de sucessivos projetos de integração ainda
Queiroz e suas consequências sobre a e sempre assolando as populações
política indigenista. No ano de 1851, indígenas do país. O texto se fecha por
um marco nem sempre lembrado é a uma recapitulação da radical alteridade
publicação insólita pela liberal revista das culturas indígenas, com seu
Guanabara do “Memorial orgânico” de canibalismo visto e revisto pelo
Varnhagen, e a polêmica então aberta romântico Gonçalves Dias, o único que,
pela defesa que faz este de um “em seu poema “I-Juca-Pirama”,

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compreendeu algo de seu poder como DAVID TREECE é Professor do
expressão de uma visão alternativa e Departamento de Estudos portugueses e
utópica de integração social e auto- brasileiros no King’s College de Londres.
realização.” Autor de documentários sobre a Amazonia
(anos 80); na Inglaterra. Em 1996, criou o
*** Centre for the Study of Brazilian Culture
and Society, que se tornou o maior produtor
de trabalhos acadêmicos em Estudos
culturais brasileiros, literatura e história.
Sua atividade acadêmica continua
dinamizando o interesse por assuntos
ligados ao Brasil.

*
Regina Maria Abu-Jamra Machado é Doutora pela universidade Paris 3/La Sorbonne Nouvelle -
2007 - literatura brasileira - titulo: Ficção e café no vale do Pariba - Três romances da fazenda
escravagista. Tradutora e pesquisadora em literatura e historia - romantismo, 2° reinado, José de Alencar,
fazendas de café, vale do Paraiba.

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