Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
(1810-1910)
Resumo
Palavras-chave
Correspondência:
Circe Maria F. Bittencourt
R. Maria Tereza F. Rodrigues, 219
05327-000 – São Paulo – SP
e-mail: circe@usp.br
Educação e Pesquisa, São Paulo, v.30, n.3, p. 475-491, set./dez. 2004 475
Editors and authors of compendia and reading books
(1810-1910)
Abstract
Keywords
Contact:
Circe Maria F. Bittencourt
R. Maria Tereza F. Rodrigues, 219
05327-000 – São Paulo – SP
e-mail: circe@usp.br
476 Educação e Pesquisa, São Paulo, v.30, n.3, p. 475-491, set./dez. 2004
Autores de compêndios e livros vários escritores, textos que se integram em um
de leitura processo de adaptações nas mãos de técnicos
especializados. Desse modo, não se pode mais
A história do livro didático inclui em identificar quem efetivamente escreveu o texto.
suas abordagens a figura do autor, e este é o A nova situação demonstra que o livro didático
tema deste artigo, o qual, por sua vez, poderia é uma mercadoria que gera lucros consideráveis
ter como título “Quem foram os primeiros au- para as editoras, mas que coloca a pergunta
tores de livros didáticos no Brasil?”. inevitável sobre a função do autor, entendido
Diferentemente de outras obras impres- como escritor do texto, e seus direitos de pro-
sas, o livro didático possui peculiaridades em priedade em relação à obra produzida.
sua produção, circulação e uso, entre elas a da A constatação de alguns dos problemas
autoria, por meio da qual é possível ver a dis- que envolvem os autores quanto ao seu papel na
tinção entre o trabalho de escrever um texto e elaboração do livro nos faz indagar se tensões
o de fabricar um livro. e conflitos dessa natureza são inerentes à pro-
A identificação da autoria dos livros di- dução do livro didático e, portanto, visíveis em
dáticos tornou-se mais complexa na medida em outros momentos de sua história. Dessa forma,
que o ato de escrever o texto e o de transformá- a preocupação em traçar o perfil dos primeiros
lo em livro passaram por intensas transformações, autores de livros didáticos, no decorrer do sécu-
as quais geraram polêmicas que se intensificaram lo XIX e início do século XX, centrou-se na
nos últimos anos. Uma rápida leitura da ficha téc- apreensão das articulações entre os diferentes
nica, por exemplo, apresentada na contracapa das sujeitos sempre presentes na produção didática,
obras didáticas produzidas a partir da década de destacando a atuação do Estado e das editoras.
1990, comprova que o papel do autor de uma
obra didática tem se modificado em decorrência Os autores na história do livro
das inovações tecnológicas impostas pela fabrica- didático
ção do livro. Copidesque, revisor de texto, pesqui-
sador iconográfico, entre outros, constituem uma Pesquisadores voltados para a história
equipe cada vez mais numerosa de pessoas res- da alfabetização ou das disciplinas escolares
ponsáveis pelo livro, e o autor do texto, embora sempre demonstraram interesse por determina-
permaneça encabeçando esse conjunto de profis- dos autores cujos livros foram amplamente uti-
sionais, nem sempre é a figura principal. lizados em sua época. Um dos trabalhos pionei-
A autoria do livro didático tem passado ros sobre o tema foi o de Marisa Lajolo (1982),
por transformações ligadas às especificidades no qual se resgatam questões educacionais de
desse produto cultural, notadamente o retorno um período que havia sido estudado mais pelos
financeiro considerável que ele traz, sobretudo textos legislativos, pelos discursos oficiais, do
no caso de países como o Brasil, com um ex- que pela produção realizada para a escola e suas
pressivo público escolar e um mercado assegu- práticas efetivas de ensino, estudo que pratica-
rado pelo Estado na compra e distribuição de mente não havia sido feito até então.
livros para as escolas públicas. Nos últimos anos, Outros autores de obras didáticas que
o interesse de editoras estrangeiras, que tem se foram referências para várias gerações de estu-
concretizado na compra ou associações com dantes tornaram-se objeto de estudos a partir
empresas nacionais, conduz a transformações dos anos 1990, sendo abordados com enfoques
que afetam o papel do autor do livro escolar. diversos. Conceição Cabrini (1994) percorreu o
Para agilizar a produção e criar padrões unifor- itinerário da produção de Felisberto de Carva-
mes para o livro didático dilui-se a figura do lho (1886), autor do final do século XIX cuja
autor por intermédio da compra de textos de obra era ainda utilizada em meados do século
Educação e Pesquisa, São Paulo, v.30, n.3, p. 475-491, set./dez. 2004 477
XX, com forte presença na memória de várias análise. Uma contribuição importante têm sido
gerações nas mais variadas regiões do país. as reflexões de Roger Chartier (1997), em seus
Selma Rinaldi de Mattos analisou os manuais de estudos sobre a história do livro e sobre a
História do Brasil de Joaquim Manuel de cultura letrada. Diferentemente dos pesquisado-
Macedo, e várias pesquisas mostram o papel res de livros didáticos, estudar os autores não
dos professores do Colégio Pedro II na produ- foi muito usual na história do livro. A nítida
ção de obras didáticas das variadas disciplinas. distinção entre o trabalho de escrever um tex-
Entre os franceses, a preferência da to e o de fabricar um livro foi alvo de estudos
pesquisa de autores didáticos tem sido igual- que se voltaram sobre a materialidade dos li-
mente sobre os que ficaram na memória de vros, especialmente entre os historiadores do
gerações de estudantes. Os autores de livros de mundo de língua inglesa. Entre os franceses as
história encabeçaram as preferências. Ernest pesquisas se voltaram mais sobre a circulação
Lavisse1 e os textos que escreveu para a esco- do livro, a posse desigual pelos diferentes gru-
la primária francesa, após o advento da Terceira pos sociais e a diversidade das práticas de lei-
República, foi um deles. tura. O foco era o conteúdo do texto e seus
Um livro e não exatamente seu autor, signos, mas excluía-se o autor.
Le tour de la France par deux enfants, tem sido Para os recentes trabalhos sobre o au-
alvo de atenção, pela enorme repercussão que tor do livro, Chartier (1997) recupera a contri-
teve no período que antecedeu à Guerra de buição de Foucault no ensaio “ Qu´est-ce un
1914-1918, tornando-se importante fonte para auteur?”. Foucault coloca o autor como perso-
se determinar o alcance de um livro escolar na nagem importante ao fornecer um nome pró-
formação ideológica dos jovens. O livro repre- prio às obras e acentua o caráter de responsabi-
senta o inconformismo dos grupos republica- lidade que presume um estado de direito e,
nos franceses, perdedores da guerra contra os portanto, sujeito a sanções penais como pro-
alemães e que prepararam uma revanche, ex- prietário de uma obra literária. Destaca, nessa
pressa na Primeira Grande Guerra.2 Uma obra perspectiva, a função-autor que necessariamen-
que tem chamado a atenção de pesquisadores te estabelece vínculos diversos com a obra e
pela sua longa vida nas salas de aula na Itália cria identidades. A produção de textos realiza-
e pelas traduções e adaptações em diversos se sob tais condições e cria status diversos
outros países é Cuore (Coração), do italiano De entre autores, dependendo da variação dos
Amicis, publicado pela primeira vez em 1886.3 textos: os discursos “científicos” e os discursos
Nesses casos, os autores são na maio- “literários”. Chartier adverte, baseando-se na
ria dos casos vistos pelo seu papel de escritor preocupação de Foucault sobre direitos e dis-
de obras marcantes, personalizadas e represen- criminações em relação ao autor do texto,
tativas na formação de determinadas gerações quanto ao cuidado em identificar a produção
de alunos. O objetivo central é analisar o con- de diferentes discursos em momentos históricos
teúdo da obra, sua importância como veículo de específicos. O valor comercial da obra, a cons-
ideologia, valores, métodos de ensino e, majo- tituição de direitos autorais, conflitos entre
ritariamente, no caso dos autores de obras di-
dáticas do ensino secundário, é destacar seu 1. Sobre Ernest Lavisse ver Nora (1984).
papel na constituição das disciplinas escolares. 2. Sobre o livro Le tour de la France par deux enfants de G. Bruno, publicado
Mas se deslocamos o foco da pesqui- em 1877, destacam-se o de Ouzouf, J. et M. Le tour de la France par deux
enfants: le petit livre rouge de la Republique; o de Nora (1984), o de Dupuy
sa do conteúdo de determinadas obras e seu (1953) e de Siepe (1988). No Brasil, Olavo Bilac e Manuel Bomfim escreve-
autor para um conjunto de autores e seu papel ram o famoso livro de leitura Através do Brasil inspirados nessa obra francesa.
3. Entre outras publicações sobre esta obra destaca-se a de Catarsi (1896).
na produção da obra didática, surgem novas A tradução em português publicada em 1891, pela editora de Francisco
exigências sobre conceitos e categorias de Alves, foi feita por João Ribeiro.
Educação e Pesquisa, São Paulo, v.30, n.3, p. 475-491, set./dez. 2004 479
Pinheiro, escrito por um seu descendente, ao Liceus, e da Arcádia de Roma; membro cor-
procurar marcar apenas sua obra de historiador respondente do Instituto Nacional de Wa-
e mais especificamente seu pioneirismo na his- shington; etc.
tória da literatura no Brasil. A extensa produção (Folha de rosto de Elementos de geometria, do
didática do cônego é lembrada em poucas li- marquês de Paranaguá)
nhas, em um único parágrafo (Pinheiro, 1978).
Quem foram, então, os pioneiros da Esta apresentação do autor, do marquês
produção didática brasileira? de Paranaguá, inscrita na página de rosto de sua
Considerando o período entre 1810 e obra escolar de 1846, nos sugeriu uma possível
1910, pode-se verificar uma mudança do perfil classificação dos autores, dentre os inúmeros
dos autores. Um primeiro grupo iniciou sua pro- nomes elencados nos catálogos das editoras. As
dução a partir da chegada da família real portu- referências sobre a participação do marquês nos
guesa no Brasil, e suas obras foram produzidas meios culturais eruditos da época estabelecem
pela Impressão Régia, mas podemos identificar prontamente a vinculação entre o grupo de in-
uma primeira “geração” a partir de 1827, auto- telectuais próximos ao poder do Estado e os
res preocupados com a organização dos cursos primeiros autores das obras destinadas à divul-
secundários e superiores, apenas esboçando al- gação do saber para instituições escolares. O
gumas contribuições para o ensino de “primei- perfil dos autores dessa “primeira geração” é o
ras letras”. Uma segunda “geração” começou a de homens pertencentes à elite intelectual e
se delinear em torno dos anos 1880, quando as política da recente nação, conforme está visível
transformações da política liberal e o tema do na “biografia” do autor citado.
nacionalismo se impuseram, gerando discussões As referências do marquês de Paranaguá
sobre a necessidade da disseminação do saber apresentadas indicam, além da sua formação aca-
escolar para outros setores da sociedade, am- dêmica e de seus contatos com os grandes centros
pliando e reformulando o conceito de “cidadão internacionais do mundo científico, que ele era
brasileiro”, criando-se uma literatura que, sem uma figura de destaque nos meios políticos: sena-
abandonar o secundário, dedicaram-se à cons- dor do Império e conselheiro do Estado.
tituição do saber da escola elementar. E ele não foi um exemplo isolado.
Outros personagens do cenário político também
“Sábios”, políticos e se aventuraram na tarefa de redigir obras a
professores em ação serem divulgadas nas escolas de formação das
futuras elites. José Justiniano da Rocha (1866),
Senador do Império do Brasil; Conselheiro também senador do Império, e o visconde de
de Estado; Grão-Cruz da Imperial Ordem Cairu (Lisboa, 1827), figura importante do
do Cruzeiro; Cavaleiro da de Cristo; Briga- governo de d. Pedro I, deram suas contribui-
deiro do Imperial Corpo de Engenheiros; ções nesse sentido.
Bacharel Formado em Matemática pela Uni- A leitura das obras desses autores mos-
versidade de Coimbra; Lente jubilado da tra que o interesse maior deles residia na ques-
academia Real da Marinha de Lisboa; Mem- tão da formação moral e que eles estavam aten-
bro honorário da Sociedade Literária do Rio tos aos textos que eram oferecidos aos jovens
de Janeiro, e do Instituto Histórico e Geo- leitores. Na Introdução do livro escolar do vis-
gráfico Brasileiro; Sócio da Academia Real conde de Cairu, o autor expressou seu temor
das Ciências de Lisboa, da Sociedade Geo- pela disseminação da palavra escrita para “jo-
gráfica de Paris; da Academia da Industria vens incautos”. Temia também que as classes
Francesa; Membro Honorário da Sociedade trabalhadoras pudessem se instruir e aspirassem
Etnológica de Paris; Sócio da Academia dos a mudanças de sua condição e seriam “seduzi-
Educação e Pesquisa, São Paulo, v.30, n.3, p. 475-491, set./dez. 2004 481
tros aspectos, de esboçar os contornos As estratégias das primeiras editoras
territoriais da nação independente. A Escola centraram-se na aproximação ao poder institu-
Militar foi, então, o lugar institucional respon- cional, podendo-se entender por essa via o cri-
sável pelo aparecimento dos primeiros com- tério de escolha dos autores. Estes corres-
pêndios dedicados ao ensino das disciplinas pondiam a um perfil que expressava essa depen-
formadoras da “nacionalidade”, especialmente dência política. Compêndios, cartilhas eram tex-
história e geografia. tos que precisavam da aprovação institucional
As relações entre os autores e editores para que pudessem circular nas escolas, o que
correspondem ao percurso histórico da consti- acabava por direcionar as opções dos editores
tuição das editoras no Brasil. Após o término na seleção dos autores. Entende-se, portanto, a
do monopólio da Impressão Régia em 1822, preferência por autores oriundos do Colégio
teve início a transferência dos encargos edito- Pedro II ou da Academia Militar. Além de asse-
riais para o setor privado. A Tipografia Nacio- gurarem uma vendagem, dificilmente seus no-
nal continuou publicando obras didáticas em mes seriam vetados pelos conselhos educacionais
número restrito e editores de origem estrangei- que avaliavam as obras, inclusive porque vários
ra passaram a se ocupar da produção nacional, membros do IHGB compunham as comissões de
mas sempre vinculados aos países europeus avaliação das obras didáticas. A figura do autor
principalmente. As marcas editoriais francesas, era assim realçada, sua biografia geralmente
em especial, foram se consolidando em razão exposta na página de rosto, e os editores esme-
de nossa dependência das técnicas de produ- ravam-se em valorizar sua posição social.
ção e das políticas de importação.4 A concepção de livro didático e a sua
Até 1885 três editoras se destacaram na destinação eram determinações quase exclusi-
produção de obras didáticas. A editora dos ir- vas do poder político educacional, que procu-
mãos Laemmert rava, no grupo da elite intelectual, apoio para
a produção desse tipo de literatura. Tivemos
surgiu da iniciativa de Eduard Laemmert, nas- assim, na geração dos iniciadores da produção
cido em Baden e chegou ao Brasil como só- didática, figuras próximas ao governo, escrito-
cio da firma do livreiro francês Bossange. Em res de obras literárias, sobretudo os principais
1838 resolveu criar sua própria firma e asso- encarregados do “fazer científico” da época. Os
ciou-se ao seu irmão Heinrich. (...) A. E. & H. compêndios que escreveram para o público
Laemmert foi praticamente a substituta da estudantil eram de literatura, gramática, histó-
Tipografia Nacional, nova denominação da ria e geografia, dedicados ao ensino secundá-
Impressão Régia. (Bittencourt, 1993, p. 82) rio, majoritariamente, e em menor escala para
as “escolas de primeiras letras”. Os autores, com
A editora de B. L. Garnier que, segun- raras exceções e pela condição da disciplina,
do Hallewell, foi o “primeiro editor a fazer um inspiravam-se ou mesmo adaptavam obras es-
esforço real para atender às necessidades de trangeiras. Os livros de matemática, então des-
livros escolares brasileiros, correndo um risco dobrada em aritmética, geometria, álgebra
comercial por sua própria iniciativa” (1985, p. exemplificam essa produção modelada em
144). E a terceira editora que se destacou nesse obras européias, lembrando ainda que os pro-
período foi a firma de Nicolau Alves, livreiro gramas curriculares eram originários e “tradu-
português que a partir dos anos 1880 teve zidos”, em sua maioria, da França.
como sócio o sobrinho Francisco Alves, figura
significativa na mudança da editora, transfor-
4. Um dos problemas das editoras e gráficas era o da impressão, porque
mando-a na mais importante empresa de obras o preço do papel e das tintas variava muito, daí a opção de muitos editores
didáticas entre 1880 e 1920. pela impressão de obras na Europa.
Educação e Pesquisa, São Paulo, v.30, n.3, p. 475-491, set./dez. 2004 483
de leitura e os livros de lições de coisas, não se comerciantes. Tratava-se de um público bastan-
limitando mais a compêndios e cartilhas. te diferenciado, compreendido por alunos de
Escrever um livro didático apresentava escolas de ensino elementar, com idades va-
desafios, e os editores possuíam consciência da riáveis, por adolescentes desejosos de seguir
complexidade da tarefa. Entre outros desafios carreiras no setor terciário, muitas vezes oriun-
havia o de elaborar textos que pudessem mes- dos de classes menos favorecidas da socieda-
clar narrativas e “atividades” de aprendizagem, de e por jovens da elite econômica, agora
compondo as relações de ensino e aprendiza- acrescida por elementos do sexo feminino.
gem. O “discurso” do livro didático é sempre
complexo e de difícil denominação, variando Autores autônomos
entre um “discurso científico” e um “discurso
literário”. Um ponto de divergência entre os au-
A valorização das experiências pedagógi- tores relacionava-se ao tema da alfabetização.
cas do escritor passou a ser fortemente conside- A opção do método de alfabetização não se
rada por parte dos editores como critério de es- explicava apenas por razões didáticas. Ela ex-
colha dos autores. Da mesma forma, a seleção pressou conflitos políticos que começaram nos
destes voltava-se para os que acompanhavam os últimos anos da década de 1870 e se estende-
avanços pedagógicos dos países onde a alfabe- ram até o início do século XX.
tização se estendia para uma população cada vez A escolha do método analítico para a
maior. A qualidade principal, entretanto, exigida alfabetização, em oposição ao usual método
do autor de livro didático para a escola elemen- sintético, representava a posição dos grupos de
tar, era sua capacidade de “bom escritor”, ou seja, educadores defensores de uma escola laica. Os
possuir qualidades literárias para atingir a seguidores do método analítico eram, em sua
especificidade de um público infantil e juvenil. maioria, republicanos com o discurso voltado
A idealização governamental dos auto- para uma democratização do saber escolar e,
res das obras didáticas, nos primórdios do sé- contrários ao espírito tradicional de educação,
culo XIX, centrada na figura do “sábio” para cujo ensino era calcado em métodos da Igreja.
cumprir esta tarefa “patriótica” modificou-se, A divulgação de autores e suas obras
mas sem desaparecer totalmente. O discurso pelo jornal a Província de São Paulo é uma
sobre a elaboração de textos escolares como amostra da luta pela implantação de uma esco-
“missão patriótica” permaneceu. As modifica- la laica. O jornal paulista propugnava um libe-
ções ocorreram sob a concepção de “sábio” ou ralismo no qual a escola particular era o sím-
do “sábio mais adequado” para escrever com- bolo de “liberdade de ensino”, entendida como
pêndios e livros de leitura. O incentivo gover- escola livre das imposições da Igreja Católica e
namental marcante da época foi o de oferecer do Estado. O jornal Província de São Paulo foi
concursos para “melhores obras” que teriam a um veículo importante para fazer propaganda de
publicação garantida e prêmios monetários aos autores oriundos de escolas particulares leigas,
autores. O “lugar” da produção deslocou-se, esforçando-se em criar uma imagem para a escola
situando-se na esfera mais específica do poder privada como sendo a de melhor qualidade. Os
educacional, e provocou novas articulações dos proprietários do periódico paulista entendiam que
setores editoriais na escolha dos autores. a divulgação das obras escolares, notadamente de
A nova “geração” de autores caracteri- diretores de escolas particulares, significava
zou-se por sua heterogeneidade, por divergên- prestigiar e moldar a opinião pública para as
cias inevitáveis, uma vez que produziam para vantagens da iniciativa particular, embora não
um público ampliado, não se limitando mais abdicassem da defesa das subvenções de verbas
aos filhos dos grandes proprietários rurais e do Estado para tais iniciativas.
Educação e Pesquisa, São Paulo, v.30, n.3, p. 475-491, set./dez. 2004 485
Eram boletins de propaganda pelas provín- escola particular mas sob a proteção do gover-
cias, conferências em diversos pontos da no, monárquico ou republicano, que garantia o
cidade, a pedidos, à sustância, atochando a sucesso de suas escolas e de suas obras. Obras
imprensa dos lugarejos, caixões, sobretudo, prestigiadas pela imprensa tiveram ainda uma
de livros elementares, fabricados às pressas peculiaridade: marcaram o movimento de
com o ofegante e esbaforido concurso de laicização escolar. Em geral as obras desses au-
professores prudentemente anônimos, cai- tores sofreram várias reedições, mas não foram
xões e mais caixões de volumes cartonados de “longa duração”, limitando-se à primeira
em Leipzig, inundando as escolas públicas década do século XX.
de toda a parte com a sua invasão de ca- Esses autores caracterizaram-se ainda
pas azuis, róseas, amarelas em que o nome por uma produção independente da escolha
de Aristarco, inteiro e sonoro, oferecia-se ao das editoras. Eram seus supostos autores de
pasmo venerador dos esfaimados de alfabe- textos, encarregavam-se dos custos de edição
to dos confins da pátria. Os lugares que os e impressão e escolhiam as editoras para suas
não procuravam eram um belo dia surpre- obras. Abílio César Borges teve um número
endido pela enchente gratuita, espontânea, considerável de livros publicados pela editora
irresistível! E não havia senão aceitar a fari- Aillaud, Guillard sediada em Paris. Aparentemen-
nha daquela marca para o pão do espírito. te não tinha interesse lucrativo com a venda
(Pompéia, 1905, p. 8) dos livros pelas informações que temos sobre a
distribuição gratuita que fazia de suas obras
É difícil provar se o diretor Abílio con- por várias regiões do país. Entretanto, a proxi-
tou com o concurso de “anônimos professores” midade com o poder imperial garantiu a aqui-
como afirmou o autor do Ateneu, mas a quan- sição de obras pelo governo para que o autor
tidade e a variedade de obras que deixou podem pudesse distribuir “gratuitamente” nas escolas.
lançar algumas dúvidas sobre a possibilidade de Juntamente com esses autores ligados
serem realmente trabalhos de um único indiví- às escolas particulares, a produção didática de
duo. Foram produzidas e postas em circulação, setores religiosos também desempenhou um
sob sua autoria, cerca de 400 mil volumes e 22 papel significativo nesse período.
títulos, com variadas edições revisadas. Compondo a lista de professores que se
A existência de professores anônimos tornaram famosos como escritores de compên-
na composição de obras didáticas é difícil de dios, temos os oriundos de escolas protestantes
ser detectada, mas desde meados do século XIX de São Paulo: Antonio Trajano e Júlio Ribeiro.
passou a existir a prática de autores renomados Esses autores foram bem aceitos por parte dos
assinarem obras feitas por auxiliares desconhe- liberais paulistas, por representarem uma forma
cidos, tornando-se uma espécie de marca regis- de oposição aos textos de autores católicos.
trada e, em situação oposta, existiram (ou exis- Antonio Trajano produziu livros de arit-
tem) autores com pseudônimos, escondendo mética e álgebra para as escolas primárias e
sua identidade.6
Mas independentemente das formas en-
6. O caso exemplar de autor “de marca registrada” foi Victor Duruy,
contradas para a produção de textos didáticos, historiador francês, ministro da Instrução Pública da França (1863 a 1869)
temos que o barão de Macaúbas assim como e professor de história do Liceu Napoleão (antigo Liceu Saint Louis), um dos
Joaquim José Menezes Vieira foram represen- primeiros grandes nomes de autores didáticos da editora Hachette de Pa-
ris. Para a segunda situação temos o cônego Fernandes Pinheiro, que as-
tantes de um grupo de autores específicos e sig- sinava obras como Sá e Menezes ou então escrevia textos sem que cons-
nificativos do processo de escolarização brasilei- tasse a autoria: “O cônego dr. Joaquim Caetano Fernandes Pinheiro cede
a B.L. Garnier a sua História Contemporânea desde 1815 até 1865 ,
ra. Esmeraram-se em criar uma imagem de ino- publicada sem o nome do autor mediante as seguintes condições (…)”.
vadores pedagógicos, com projetos centrados na Manuscrito Arquivo da Editora Itatiaia, Belo Horizonte.
Educação e Pesquisa, São Paulo, v.30, n.3, p. 475-491, set./dez. 2004 487
ca, história natural e higiene sendo, entretanto, Rodrigues Pereira de Carvalho, editados
seus livros mais famosos e de “longa duração”, pela Alves. (1985, p. 211)
os cinco livros de leitura publicados inicialmente
na década de 1880 com reedições até 1959. Francisco Alves, além das estratégias de
Obras e autores que se tornaram famo- venda e formas de atração de autores com
sos e alcançaram altos índices de vendagem obras já conhecidas, oferecia contratos que
representavam o espírito de renovação educa- garantiam retorno financeiro significativo, mes-
cional iniciado no final do século XIX. As po- mo para professores renomados de escolas fa-
sições que muitos desses autores ocupavam em mosas. O caso de João Ribeiro, professor do
setores educacionais proporcionavam a elabo- Colégio Pedro II e autor de vários livros de
ração de textos com maior probabilidade de história e literatura para o ensino primário e
aprovação por atenderem aos critérios dos Con- secundário, expressa a opção do autor para seu
selhos de Instrução Pública. ofício de “escritor de obras didáticas”:
As relações entre editor e autor eram
muito próximas quanto aos procedimentos para João Ribeiro (...) de família numerosa, sem
a obtenção de certidão de aprovação dos livros grandes recursos. Necessitava dedicar-se ao
pelos Conselhos Diretores de Instrução Pública. ensino e à elaboração de livros didáticos,
Mas, além da aprovação oficial, as editoras esco- como forma de trabalho para o sustento dos
lhiam autores “que tivessem uma margem de seus. (...) Mas o argumento decisivo — fi-
venda garantida”, com aceitação pelo público. O nanceiro — justificava a opção por compên-
autor, por outro lado, esperava da editora “a dios, de retorno mais garantido, porque es-
infra-estrutura para a composição, propaganda e critos por um Catedrático do Colégio, nessa
distribuição de seus livros” (Cabrini, 1994, p. 66). época ainda rótulo reconhecido socialmente,
Um editor em particular percebeu o novo por isto mesmo apresentado na capa das
cenário educacional e as perspectivas mercado- obras didáticas. (Gasparello, 2004, p. 163)
lógicas que se abriam. Francisco Alves, depois de
assumir a firma criada pelo tio Nicolau Alves a Os ganhos financeiros dos autores in-
partir de 1897, passou a investir com maior centivaram de maneira considerável essa gera-
empenho na produção didática e acabou quase ção de escritores de obras didáticas, conforme
que monopolizando a produção nessa área a atestam as biografias de muitos deles. Havia o
partir do século XX. Além de estender uma efi- interesse em difundir métodos de ensino reno-
ciente rede para a venda dos livros por todo o vados, havia interesses de interferência na for-
país, Francisco Alves comprou várias editoras mação das novas gerações, mas o retorno fi-
médias e pequenas. De acordo com Hallewell, nanceiro também era considerado pelos auto-
res. A postura de interferência do editor justi-
muitas dessas aquisições — houve pelo fica-se porque, sobretudo, cabia a ele garantir
menos dez delas — foram feitas para con- a venda do livro.
seguir determinados direitos de edição. A análise dos contratos entre Francisco
Francisco Alves comprou a pequenina li- Alves e seus autores feita por Aníbal Bragança
vraria da Viúva Azevedo, apenas para ob- mostra diferentes formas de pagamento dos
ter os direitos da Antologia nacional de textos e expressa a existência de variadas ma-
Fausto Barreto e Carlos Laet, amplamente neiras de apropriações das edições subseqüen-
adotadas nas escolas. A Livraria Melilo, de tes pelos editores:
São Paulo, foi comprada porque os livros
de João Köpke por ela editados eram os Os editores, por escritura de 05.01.1900, ad-
principais competidores dos de Felisberto quiriram ao autor, a “propriedade plena” des-
Educação e Pesquisa, São Paulo, v.30, n.3, p. 475-491, set./dez. 2004 489
grande maioria leigos e autodidatas. ximos ao poder. Perceberam, entretanto, que nem
Os editores sempre estiveram atentos a sempre a figura dos “sábios”, conforme preconi-
essas especificidades. O interesse comercial, en- zava a elite governamental, garantia um texto
tretanto, nunca saiu do horizonte de seu ideal didático de “qualidade”. Experiência didática é um
de promotor da cultura letrada. B. L. Garnier, fator importante e daí a preferência dos editores
editor responsável pela publicação de várias por professores e certa desconfiança em relação
obras da literatura nacional, como as José de aos intelectuais renomados.
Alencar e Machado de Assis, afirmava que o A história dos autores de obras
livro didático era “a carne” da produção edito- didáticas possibilita uma maior reflexão sobre a
rial em contraposição às obras de literatura ou função do autor nessa produção específica e
“científicas” que corresponderiam aos “ossos”. bastante diversa dos demais livros. O problema
A comercialização do livro didático, no da autoria da obra didática não é recente, con-
entanto, sempre esteve dependente do Estado, fluindo em sua confecção muitos sujeitos. A
quer pelo seu poder de aprovação quer como história do livro didático mostra as mudanças
comprador, condição que conduziu os editores a quanto ao grau de interferência entre os diver-
estratégias diversas de aproximação com o poder sos sujeitos assim como as mudanças das polí-
educacional. Uma delas era assegurar a presença ticas educacionais em relação a esse significati-
de autores que estivessem de alguma forma pró- vo objeto cultural, símbolo da escola moderna.
Referências bibliográficas
BRAGANÇA, A. A política editorial de Francisco Alves e a profissionalização do escritor no Brasil. In: ABREU, M. (Org.). Leitura,
história e história da leitura
leitura. São Paulo: Fapesp, 1999. p. 451-476.
NORA, P. Lavisse, instituteur national. In: NORA, P. (Dir.) Les lieux de mémoire
mémoire. Paris: Gallimard, p. 291-322, 1984. (Tome I: La
République)
PINHEIRO, M. P. F. Apresentação à 3ª edição do curso de litera tura nacional do cônego Fernandes Pinheiro
literatura Pinheiro. Rio de Janeiro:
Livraria Editora Cátedra, 1978.
POMPÉIA, R. O Ateneu (crônica de saudades). Rio de Janeiro: Francisco Alves & Cia., 1905.
Recebido em 07.10.04
Aprovado em 03.11.04
Circe Maria F. Bitencourt é professora doutora do Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Educação da USP e
doutora em História Social pela Faculdade de Filosofia Ciências e Letras da USP.
Educação e Pesquisa, São Paulo, v.30, n.3, p. 475-491, set./dez. 2004 491