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Universidade Federal da Grande Dourados

A LEITURA LITERÁRIA NA ESCOLA: DESAFIO PARA A


FORMAÇÃO DE PROFESSORES
Ana Maria Esteves Bortolanza*

RESUMO: O artigo analisa concep- Apontando o processo de escolarização


ções de leitura e de literatura que cir- da leitura, o estudo evidencia a neces-
culam na escola, na academia e nos Pa- sidade de a escola brasileira enfrentar o
râmetros Curriculares Nacionais com desafio de formar professores que sejam
o objetivo de situar a leitura literária bons leitores para aproximar os alunos
como objeto histórico e prática social da leitura literária.
que deve ser ensinado desde a escola de
educação infantil ao ensino superior. Palavras-chave: Leitura Literária. Forma-
ção de Leitores. Formação de professores.

THE LITERARY READING IN SCHOOL: DEFIANCE TO THE


TRAINING OF TEACHERS
ABSTRACT: This article examines process of reading, the study shows the
conceptions of reading and literature need for Brazilian schools confront the
circulating in the school, in academia challenge of training teachers who are
and of official documents with the aim good readers to approach the students
to situate the literary reading as a his- of literary reading.
torical object and social practice that
must be taught from child education to Keywords: Literary Reading. Teacher
higher education. Pointing schooling training. Formation of readers.

INTRODUÇÃO

Neste artigo analisamos as concep- Segundo Soares (1988), olhar a


ções de leitura e de literatura que circu- leitura de fora implica em vê-la quanto
lam no espaço escolar, nos documentos às suas condições sociais de acesso e de
oficiais e nas pesquisas acadêmicas com produção. Isso implica considerar a in-
a finalidade de delinear o lugar da leitu- teração concreta e a situação extra leitu-
ra literária na escola. Primeiramente, a ra, isto é, as relações que se estabelecem
leitura literária pressupõe sua contextu- entre autor e leitor e o contexto social.
alização como objeto histórico e social, De um lado, as relações entre autor e
ou seja, como prática social que se rea- texto, de outro a estrutura social com
liza na escola e fora dela. suas formas de organização, a divisão
*
Docente da Universidade de Uberaba. Programa de Pós-Graduação em Educação; Pós-doutorado pela Universidade de
Évora (Portugal); Doutora em Educação pela Universidade Estadual Paulista (UNESP); Docente da Universidade de
Uberaba – Programa de Pós-Graduação em Educação. E-mail: amebortolanza@uol.com.br

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do trabalho, modo de produção, distri- idealizada. Ainda hoje, faltam nas es-
buição, consumo, ideologia, etc. colas brasileiras bibliotecas, programas
de leitura literária e profissionais habi-
Em sociedades como a brasileira,
litados. Os livros didáticos acabam por
cuja cultura é grafocêntrica, a leitura
constituir-se no principal referencial
é vista como algo bom para o homem,
de apoio para o professor e a clientela
pois é através dela que se adquire co-
escolar de baixo poder aquisitivo não
nhecimento, cultura, além de resultar
pode adquirir livros sejam eles impres-
em prazer e constituir-se como lazer.
sos ou e-books. À voz oficial do ideá-
Mas, esta é uma visão unilateral da
rio liberal-democrático junta-se à do
classe dominante, pois nas culturas pre-
mercado editorial, proliferam projetos
dominantemente orais ela é vista com
e programas, livros didáticos e paradi-
desconfiança e seu valor é relativizado.
dáticos, recortes de textos extraídos do
A visão que a classe dominante tem da
cotidiano como receitas culinárias, ró-
leitura é diferente da visão da classe do-
tulos, gibis, jornais, etc.
minada, ou seja, enquanto para as clas-
ses dominantes a leitura é forma de am- Em 1995, os Parâmetros Curricula-
pliar seus conhecimentos, sua visão de res Nacionais – PCNs (BRASIL, 1997)
mundo, enriquecer suas experiências, foram divulgados em uma versão preli-
obter fruição, ter lazer; para as classes minar, para uma discussão ampla, mas
dominadas ela é meio de sobrevivência, atropelada, em que os professores não ti-
é ingresso para o mundo do trabalho, veram o tempo necessário para conhecer
instrumento de luta. a proposta do MEC. A segunda versão
foi lançada em 1996, após um rápido
Não reconhecendo a leitura como
debate e algumas contribuições de textos
fenômeno social de construção de sen-
que foram produzidos para alimentar o
tidos, a escola faz da leitura uma ativi-
debate. Os PCNs foram implantados
dade mecânica, mera decodificação da
em um momento de fortalecimento do
língua escrita, esvaziada de significado.
neoliberalismo, alicerçado na globaliza-
Assim, se de um lado, a leitura repro-
ção da economia, o que implica discutir
duz ao nível simbólico as condições so-
a qualidade de ensino da educação bra-
ciais da sociedade capitalista, de outro,
sileira para adequá-la ao sistema inter-
pode criar um espaço de contradição
nacional de avaliação da qualidade do
nas relações de produção e de acesso
ensino fundamental.
aos bens culturais. Cabe aos professores
fazer a opção política de trabalhar a lei- Para Suassuna (1998), algumas
tura como instrumento de reprodução concepções que permeiam a área espe-
ou como espaço de contradição. cífica de língua portuguesa denotam
certas incongruências na proposta cur-
A partir da década de 1980, as
ricular. A língua é vista como um có-
propostas de democratização da leitu-
digo estático, acabado e, consequente-
ra, de cunho neoliberal, vêm pregando
mente, o texto é uma “entidade escrita
nas escolas brasileiras a formação de um
e verbal”; o discurso não contempla o
leitor ideal e de uma leitura também
conceito de historicidade. Quanto à

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leitura, adquire uma visão utilitaris- 4 livros por ano. Mais alarmante ainda
ta: ler para escrever, situação em que são os dados do MEC, mostrando que
a figura do leitor e do livro desenha-se dos 2,4 livros produzidos per capita, 1,7
como algo intocável. Também alguns são livros didáticos. O INAF acrescen-
conceitos pedagógicos são equivoca- ta, ainda, que 34% da população nun-
dos: a figura do professor é de um mero ca entraram em uma biblioteca, sendo
executor de propostas, ao passo que a que, entre as classes D e E, o número de
imagem do aluno é idealizada e o cur- pessoas que nunca frequentaram uma
rículo apresenta-se como ferramenta biblioteca sobe para 49%.
para a padronização cultural na medida
Vera Masagão, coordenadora da
dos interesses do mercado globalizado
Ação Educativa, organização não-go-
e, por isso, sem um projeto político e
vernamental, em entrevista para a Folha
social próprio que lhe dê sustentação.
de São Paulo (2004), diz que o lugar
Há uma década atrás, alguns da- onde as pessoas estabelecem o contato
dos divulgados sobre a situação atual de efetivo com o mundo da leitura ainda é
leitura pela Câmara Brasileira do Livro a escola e a família, apesar da precarie-
(CBL), o Instituto Brasileiro do Livro dade do sistema educacional e da falta
(IBL), o Ministério da Educação e Cul- de condições de grande parte das fa-
tura (MEC), o Indicador Nacional de mílias brasileiras. Portanto, o papel da
Analfabetismo Funcional (INAF) e o escola na formação de leitores é impres-
Banco Nacional de Desenvolvimento cindível, visto que a falta de acesso aos
(BNDES), em reportagem da Folha de bens culturais têm sido um dos obstá-
São Paulo, no caderno Sinapse de 28 de culos insuperáveis para o cumprimento
setembro de 2004, “na população brasi- deste papel. A situação cria um círculo
leira, de 15 a 64 anos: 8% são analfabe- vicioso, pois nos lares brasileiros faltam
tos; 30% localizam informações simples livros e práticas de leitura, e, na escola,
em uma frase; 37% localizam informa- o baixo letramento e as práticas de lei-
ção em texto curto; 25% estabelecem tura não têm contribuído para a forma-
relações entre textos longos” (FOLHA ção de leitores. Dez anos passaram-se e
DE SÃO PAULO, 2004, p. 2). pouco se avançou.
O brasileiro lê, em média, 1,8 li- Em Retratos de Leitura do Brasil
vros por ano; apenas 16% da população (2008), os principais indicadores re-
têm a posse de 73% dos livros postos velam que 77 milhões de não-leitores
em circulação; 61% têm pouquíssimo e 95 milhões de leitores, sendo que o
ou nenhum contato com livros; 47% número de livros comprados é de 1,2
possuem em casa no máximo 10 livros; por habitante ano, somando 36,2 mi-
cerca de 30% gostam de ler. Soma-se lhões de compradores de livros. A pes-
a esses dados, a informação de que a quisa mostrou que 77% dos brasileiros
venda de livros, no período de 1995 a assistem televisão em seu tempo livre,
2003, caiu 50%. De acordo com a CBL, menos da metade, 35% leem. A Bíblia
há apenas 26 milhões de leitores ativos, é o livro mais citado na pesquisa pelos
ou seja, aqueles que leem em torno de leitores de diferentes níveis de escolari-

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dade. Nesse contexto, a leitura literária Segundo Magnani (1995, p. 30):


parece ocupar ainda um espaço pouco [...] ainda que se almeje estrategica-
significativo na vida dos estudantes. mente a construção de conhecimento
que redunde em habilidades suposta-
A escolarização da leitura e da lite- mente úteis não apenas para a escola,
ratura, aliada à concepção salvacionista mas também para a vida do indiví-
sobre leitura construída apresentam-se duo, os efeitos dessas práticas pare-
aos olhos da comunidade escolar com cem se restringir aos viciados limites
um arcabouço inquestionável: o gosto escolares, particularmente as matérias
língua/literatura.
e o hábito de ler, o perfil do leitor, as
necessidades e objetivos da leitura, os
Nesta perspectiva o que se impõe
espaços e tempo a ela destinados, os
é o caráter técnico-instrumental da lei-
suportes e materiais utilizados, tudo
tura/ literatura, seu ensino é questão
parece estar adequado, dosado, legi-
de metodologia e sua aprendizagem é
timado, consensualizado pelos que
processo de autoeducação. O professor
planejam. Aos que executam, não há
é apenas um gerador de estímulos, atra-
o quê questionar; desvinculados do
vés de repetitivos exercícios de leitura de
processo de planejar, é preciso tão so-
textos selecionados para atender ao gos-
mente operacionalizar, cumprir tarefas
to do aluno e adequar ao seu desenvolvi-
para atender à produtividade do siste-
mento cognitivo, deve preocupar-se tão
ma político-educacional.
somente em otimizar procedimentos.
Assim, o processo de ensino e
Enfim, para a autora, essa lógica
aprendizagem da leitura, e, consequen-
perversa configura uma situação em que:
temente da leitura literária, na escola
vive hoje um paradoxo. De um lado, [...] as práticas leitoras contribuem
os modelos propostos a têm conceitu- para o engendramento de um tríplice
(e mesmo) processo de identificação:
ado como um processo de produção
a) entre menoridade cognitiva e me-
de sentidos do leitor, a partir de seu noridade social e cultural do ‘aluno
conhecimento prévio. Dessa forma, as das classes populares’; b) entre menori-
interferências lexicais, nas quais o lei- dade cognitiva, social e cultural e me-
tor se apoia para ler, devem incidir mais noridade quantitativa e qualitativa do
sobre seu universo cultural do que pro- material de leitura a ele destinado: e c)
entre literatura infantil e juvenil e lite-
priamente representar a decifração do ratura escolar, correspondendo a adje-
código linguístico. De outro, os signifi- tivação do termo ‘literatura’ a atribu-
cados atribuídos pelo leitor devem estar tos pejorativos decorrentes do estatuto
circunscritos a um universo de verdades de menoridade apontado em a) e b).
legitimadas pela escola, ou seja, trata-se De inter-relação desses processos de
identificação e como efeito principal
de aprender a ler de certa maneira para
e síntese do projeto de escolarização
assujeitar-se às maneiras de ler autenti- da leitura, produz-se um certo modelo
cadas nas relações de poder estabeleci- de ‘gosto’, que explicita a circularidade
das pela sociedade de classes e reprodu- de uma lógica de privação da leitura.
zidas na escola. (MAGNANI, 1995, p. 32)

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Ou seja, para os já excluídos da informar a respeito de um tema que


cultura escrita, também a privação da você quer saber na política, na educa-
ção, em qualquer outro ramo, econô-
leitura/literatura que resulta das pró-
mico ou social, ler é a gente estar por
prias práticas se ampararem no supos- dentro, poder se comunicar, porque
to respeito ao leitor, reproduzindo as quem não lê como vai se comunicar,
mesmas fórmulas e, consequentemen- se a gente não se informa, se a gente
te, institucionalizando um modelo de não está lendo não está se informan-
leitura, e particularmente de leitura li- do.” (professora entrevistada)
terária que infantiliza o leitor, banaliza
o material de leitura e impede o acesso O emprego de palavras de sentido
à cultura. O projeto de escolarização generalizado como “contexto”, “concei-
da leitura/literatura acaba por favore- to”, “coisa”, “algo”, “tema”, evidencia
cer apenas entretenimento. que a professora não tem uma concep-
ção de leitura clara. Os três verbos utili-
A existência desses dois mundos zados, fazer, informar, comunicar, resu-
separados, o mundo lá fora e o mundo mem o caráter instrumental e utilitário
da escola, é um obstáculo que vem im- a ela atribuído. A professora entrevista-
pedindo o exercício pleno da leitura li- da provavelmente desconhece a leitu-
terária, ou seja, a escola não contempla ra como atividade discursiva e prática
o mundo da comunidade em que está social, como um processo de atribuição
localizada, ela é o pensar do poder pú- de sentidos, o qual se realiza por meio
blico descolado da sociedade e de suas de uma atividade sócio-histórica, cultu-
práticas sociais. ral e ideológica entre leitor e texto.
É no contexto de uma educação des- Na escola, frequentemente, os tex-
colada da sociedade e da cultura do país, tos têm sido pretextos para o treino de
que partimos para pontuar algumas ques- ortografia e o ensino da gramática. As-
tões fundamentais para ensino de leitura sim, a compreensão se reduz a localizar
e da literatura na escola, desde a escola de informações, o que fragmenta o texto,
educação infantil à universidade. impedindo o aluno de percebê-lo como
uma unidade de sentido Nessa perspec-
tiva, a linguagem é vista apenas como
CONCEPÇÕES DE LEITURA instrumento de comunicação.
QUE CIRCULAM NO ESPAÇO
ESCOLAR E NA ACADEMIA Outra concepção de leitura, tam-
bém presente no espaço escolar, assen-
Partimos da fala de uma professora ta-se em modelos interacionais, em
entrevistada para a dissertação de mes- que autor e leitor constroem o sentido
trado “O professor: um leitor escolariza- do texto; entre eles, estão os estudos
do, de Bortolanza (2005). Indagada so- cognitivistas que tratam a compreen-
bre o conceito de leitura, ela responde: são de um texto como resultante da
Ler? Eu acho que é você fazer um con- utilização de estratégias durante a lei-
texto de alguma coisa. É você fazer um tura. Nesta perspectiva o sentido está
conceito de alguma coisa, é você se dado a priori, cabe ao leitor apenas re-

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construir esse sentido através de pistas. sentidos em condições determinadas,


Ambas as concepções parecem não le- especificamente condições sócio-his-
var em consideração a relação do texto tóricas, culturais e ideológicas.
e do leitor com o contexto sócio-his-
Se a leitura é processo que se reali-
tórico, cultural e ideológico em que as
za através da interação verbal entre su-
leituras são produzidas.
jeitos historicamente determinados, ou
A concepção de leitura, em sua seja, autor e leitor trazem para a leitura
historicidade, desenvolvimento e trans- suas relações sociais, então esse processo
formação, como fenômeno em movi- é de natureza social, é enunciação, é di-
mento que nasce da atividade humana álogo e participa de uma comunicação
e, se desenvolve através dela, parece não verbal ininterrupta. Para Soares (1988,
fazer parte das representações que os p. 19), “Leitura – enunciação é também
professores têm sobre a leitura. apenas uma fração de uma corrente de
comunicação verbal ininterrupta... ape-
É imprescindível entender a leitura
nas um momento, na evolução contí-
como prática social, vista como proces-
nua, em todas as direções, de um grupo
so e produto do trabalho do homem,
social determinado”.
em movimento Assim, apreender a lin-
guagem e suas formas de manifestação A leitura de livros e outros suportes
significa resgatar o momento histórico como jornais, revistas está intimamente
em que essa linguagem se produziu, associada à escrita e à figura do leitor
procurando explicitar sua função social. como um decodificador de letras e si-
nais ortográficos, embora hoje a palavra
Segundo Orlandi (1988, p. 35),
leitura tem se ampliado para a leitura de
“a relação mediada pelo texto é uma
mundo, de filmes, de pinturas, de mú-
relação sócio-histórica”, portanto, o
sicas, de gestos, de pessoas, de moda,
lugar social dos interlocutores se faz
das coisas, ou seja, ler como sinôni-
presente no processo de significação. A
mo de compreender, interpretar toda
linguagem, enquanto ação que trans-
e qualquer coisa. Na escola, as práticas
forma, não pode ser pensada separa-
leitoras permanecem ainda atreladas ao
damente da sociedade que a produz,
texto escrito que circula através do livro
ou, em outras palavras, o processo de
didático e de outros suportes tais como
significação é histórico. A apropriação
jornais, revistas, panfletos, fotocópias
que o sujeito faz da linguagem é social
de fragmentos de livros, frequentemen-
e não individual. As práticas discursi-
te utilizados em sala de aula.
vas da leitura como fenômeno social,
implicam em construir o significado
e atribuir sentido para além dos sig- CONCEPÇÕES DE
nos linguísticos, uma vez que a leitura LITERATURA E LEITURA DO
é uma atividade cultural-ideológica. TEXTO LITERÁRIO
Nessa perspectiva, a leitura é sempre
produzida em condições determina- Segundo Lajolo (1982, p.16) “a
das, portanto, aquele que lê produz obra literária é um objeto social”, que

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pressupõe um escritor e um leitor. Esse século XIX acreditaram, sobretudo, na


encontro entre escritor e leitor é me- poder da palavra em sua transparência,
diado por instâncias como a editora, a porém o realismo pôs fim a essa prática
livraria etc., ou seja, por todos aqueles de literatura capaz de traduzir com neu-
que fazem um texto literário chegar às tralidade e linearmente os sentimentos
mãos do leitor. O “corredor comercial” e as verdades científicas do mundo. A
de que fala Lajolo, para que a obra li- arma de sua permanência passa a ser a
terária chegue ao leitor é parecido com sua provisoriedade, a plurissignificação,
os caminhos que seguem quaisquer ou- o experimentalismo, assim a literatu-
tros produtos para chegarem aos seus ra, sem abandonar sua tradição escrita
consumidores. Mas a obra literária atravessa o século XX.
precisa algo mais: ela precisa ter lite-
Hoje, século XXI, o que é a litera-
rariedade, para ser “considerada parte
tura? Para Lajolo:
integrante do conjunto de obras literá-
rias de uma dada tradição cultural, [ela Somos um povo sem tradição escrita.
necessita] o endosso de certos setores E estamos chegando à era do descartá-
mais especializados, aos quais compete vel, quando a literatura, como prática,
o batismo de um texto como literário corre o risco de tornar-se igualmente
descartável. Como resistência a isso,
ou não literário”. (Lajolo, 1982, p. 18) adota a linguagem do bit, é registra-
Esses setores especializados são a críti- da a spray, parece ter a durabilidade de
ca, a academia, os intelectuais, a uni- uma folha volante mimeografada, a
versidade. Os conceitos de literatura perenidade do eco do grito. Por outro
derivam, portanto, da leitura de certas lado, o momento é também de plane-
jamento, eficiência, rapidez. Stop. A
obras por essas instâncias, em determi-
vida parou. E a literatura desse mo-
nado momento, consequentemente, mento renuncia às vezes ao significado
ela é concebida diferentemente por di- verbal. No predomínio do visual sobre
ferentes grupos sociais, em tempos di- o verbal, no uso das cores e de todo o
ferentes. Podemos então afirmar que a requinte da indústria gráfica, a litera-
literatura “continuará a ser o que é para tura objetaliza-se às vezes, talvez como
única forma possível de consciência
cada um, independente do que os ou- crítica da objetalização. É nessa geléia
tros digam que ela é” (id., ibid, p.25) geral, que o poeta desfolha a bandeira
pois, “tudo é, não é e pode ser que seja e a poesia ressurge e explode ao com-
literatura. Depende o ponto de vista, passo dos discos e das fitas, no emba-
do sentido que a palavra tem para cada lo do corpo e da voz que, na canção,
recupera a força mágica da linguagem
um, da situação na qual se discute o
literária, de palavra que instaura seu
que é literatura.” (id., ibid, p.15). sentido. (1988. p. 95)
O mundo burguês, a partir da
Revolução Francesa, em 1789, inau- Nesse contexto histórico, a presen-
gura uma nova linguagem e uma nova ça do texto literário em sala de aula não
cultura com uma visão de homem e de pode se limitar a pretexto de ensino de
mundo muito diferente dos clássicos, qualquer outra coisa, pois a leitura de
medievais e renascentistas. As concep- um texto literário é um fim em si mes-
ções de literatura que atravessaram o mo. Como afirma Lajolo (1984, p.52),

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“o texto não é pretexto para nada”. Ao serviço de um projeto de dominação do


discutir esta questão, a autora enumera homem. O autor criticou Benjamin por
algumas dessas situações em que o texto desconsiderar a fetichização da merca-
é apenas pretexto: o trabalho mecânico doria, pois a arte apartada do trabalho
do estudo da língua, o ensino de histó- social deixa de ter admiradores para
ria da literatura, a produção de texto, a transformar-se em simples mercadoria
leitura única que impede a leitura po- de consumidores passivos e distraídos.
lissêmica etc. Esse olhar distraído para a arte, de con-
sumidores passivos diante de revistas,
Vivemos atualmente em uma so-
telejornais, televisão, jornal, etc., pode
ciedade pulverizada por informações
ser observado no cotidiano escolar fren-
que vem da televisão, da internet, do
te à leitura de textos literários.
cinema, da mídia em geral, ou seja,
por meio das novas tecnologias que
avançam rapidamente e chegam cada O PROFESSOR E SUA
vez mais a um maior número de pes- FORMAÇÃO LEITORA
soas em tempo real. Se por um lado,
esse avanço criou um imediatismo que No Brasil e em outros países, na dé-
impede o processamento de tantos da- cada de 60, a escola destinada à forma-
dos, de outro, vem possibilitando, em ção de professores passou por significa-
escala crescente, o acesso às obras artís- tivas mudanças, reduzindo conteúdos e
ticas e culturais principalmente através “tecnicizando” a formação de professo-
da internet. A leitura literária tem seus res, o que contribuiu para diminuir sen-
suportes ampliados e novas linguagens sivelmente a atuação do professor, visto
alimentadas pelas novas tecnologias como um técnico que se distanciava do
que se desenvolvem velozmente e com- seu próprio fazer pedagógico. A década
petem com o livro impresso que vem seguinte passou a entender como for-
perdendo sua hegemonia e disputando mação de professor as capacitações que
espaço com a música, a televisão, o ci- se organizavam em torno de referências
nema, a rede mundial de computado- teóricas, metodológicas e curriculares e
res etc., criando novas formas de ler o o professor como um “um mero apli-
texto literário. cador de métodos, como destinatário/
consumidor de pesquisas realizadas por
A reprodução da arte por meio de profissionais que, muitas vezes, não ti-
cópias cresceu com o desenvolvimento nham um comprometimento com a
da imprensa, mas foi com a fotografia prática de ensino propriamente dita”
e o cinema que, segundo Benjamin (ECKERT-HOFF, 2002, p. 49).
(1985, p.165- 196), a reprodução des-
lanchou e a obra de arte perdeu seu ca- Os anos 80 caracterizaram-se pela
ráter contemplativo para um olhar dis- ênfase aos conteúdos fragmentados e es-
traído, a função da arte deixou de ser vaziados de sua historicidade, agravada
ritualística para ser política. Já Adorno pela formação de um contingente cada
(1985) considera que a arte, como mer- vez maior de professores sem os conhe-
cadoria na sociedade capitalista, está a cimentos e as habilidades necessários

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para o exercício da profissão. Finalmen- tenimento e reflexão em suas leituras.


te, na década de 90, a formação começa Essa é a figura de um leitor solitário que
a ser vista, de acordo com Eckert-Hoff procura, no ato individual de ler, con-
(2002, p. 50), “como um saber-fazer forto, recolhimento e conhecimento.
em movimento, o qual autoriza a cria-
O professor seria um não leitor
ção, a arte e a produção de possibilida-
porque ele não lê gratuitamente, por-
des diversas”, ou seja, o professor deixa
que lhe faltam condições sociais para
de ser o transmissor de conhecimentos
ser leitor, ou seja, sua condição de leitor
e passa a exercer o papel de mediador
depende mais de sua inserção na socie-
do conhecimento e a formação começa
dade que de sua condição profissional.
a ser questionada.
Contudo, esta é uma imagem estereo-
Para Britto (1998), é preciso re- tipada da figura do leitor que comete
lativizar as afirmações a respeito de o o equívoco de tomar a leitura como
professor ser leitor ou não ser leitor. É um comportamento subjetivo e de res-
preciso, antes de tudo, refletir o que é ponsabilidade individual, quando ela é
ser leitor e o que é ser professor-leitor. uma prática social inserida no processo
Quando se afirma que o professor é um histórico-cultural. Contrapõe-se a essa
não-leitor, essa afirmação parece-nos concepção idealizada de leitor, uma de-
algo absurdo, visto que o professor é um finição que concebe o leitor de acordo
profissional que freqüentou a escola du- com “seu acesso aos bens culturais da
rante anos, adquirindo conhecimentos cultura letrada e aos códigos e valores
através de documentos escritos, e que inscritos neste universo” (BRITTO,
tem como uma de suas funções apresen- 1998, p. 69).
tar aos seus alunos os saberes da cultura
O acesso aos bens culturais da cul-
letrada. Essa postura revela uma con-
tura letrada como condição para ser-
cepção presente nas representações de
-leitor implica que, sendo alfabetizado
leitor que se construiu historicamente e
e tendo indiretamente acesso a certos
que abaliza os significados de ser-leitor
bens culturais, nem todos são leitores
ou não ser-leitor em nossa sociedade.
igualmente, uma vez que os bens cul-
A quantidade e a diversidade de turais não são distribuídos com igual-
materiais impressos circulando e o cres- dade de direitos para todos, ou seja,
cimento da comunicação eletrônica, o ser-leitor em maior ou menor grau
de alguma forma, exigem do cidadão a depende de diferentes condições de
sua inserção no mundo da escrita que, acesso aos textos escritos, aos níveis de
hoje, atravessa as relações culturais, competência para a leitura e à comple-
comerciais, industriais e políticas. Em xidade dos textos.
uma sociedade letrada, para ser leitor,
A concepção de educação como
não basta conhecer o código escrito, até
transmissão de conteúdos e a adoção
mesmo possuir um grau de letramento,
de livro didático condicionam a cul-
supõe uma atitude habitual, de alguém
tura escolar e se refletem nas práticas
que leia gratuitamente, que tenha mo-
leitoras do professor que não precisa
tivações intelectuais, que busque entre-

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elaborar/reelaborar os conhecimentos são mediadores nas relações que se es-


para repassá-los aos alunos. Esse papel tabelecem entre os segmentos que com-
é desempenhado pelo livro didático, põem a comunidade escolar e a escrita.
que banaliza os conteúdos, padroniza A questão central que se coloca então é
as aulas e coloca o professor no papel entender que leitores são os professores.
de simples decodificador de lições, im-
A pesquisa mostrou, ainda, que os
pedindo a discussão dos processos de
professores são a primeira geração de
leitura e escrita.
grupos familiares que têm acesso a uma
Segundo Batista (1998), as repre- escolaridade mais longa. Como suas fa-
sentações sociais que a imprensa, as edi- mílias têm pouco capital cultural, não
toras e as pesquisas fazem do professor poderiam transmitir as “competências,
é de um “não leitor”. A imprensa, ao disposições e crenças relacionadas aos
mostrar o baixo letramento do profes- usos escolares da escrita” (BATISTA,
sor; as editoras, ao justificarem a publi- 1998, p. 31), os pais mobilizaram-
cação cada vez maior de livros didáti- -se para que os filhos tivessem bons
cos para substituir a precariedade dos resultados na escola, e a leitura é uma
professores; as pesquisas, ao apontarem das condições para o êxito escolar. Na
a falta de leitura dos professores. Até verdade, o que está em questão não
mesmo os professores que trabalham é a formação do bom leitor, mas é a
com a formação docente alardeiam a aquisição da escrita, tão valorizada em
pouca leitura dos professores, inclusive nossa sociedade. Os professores seriam,
de textos acadêmicos voltados para sua nessa perspectiva, “leitores escolares” e
formação profissional. O autor questio- por isso direcionariam suas leituras e a
na essas representações a partir de uma prática docente para as “competências
pesquisa que desenvolveu com profes- e disposições ‘escolares’, adquiridas ‘es-
sores do primeiro e segundo graus em colarmente’” (BATISTA, 1998, p. 31).
escolas de Minas Gerais.
Assim, ser leitor, para os profes-
Os resultados da pesquisa mostra- sores, seria adquirir os conhecimentos
ram que os professores são “leitores que, e as práticas transmitidos pela esco-
submetidos a condições bem determi- la e tornar-se ele próprio, enquanto
nadas de formação para a leitura, ten- professor-leitor, um transmissor desses
dem a desenvolver modos específicos conhecimentos e práticas. As práticas
de ler e de se relacionar com o impresso escolares de leitura estariam, dessa for-
e a cultura que os envolvem” (BATIS- ma, submetidas à lógica do universo es-
TA, 1998, p. 27). Os professores fazem colar: concebidas como instrumento de
parte de uma sociedade letrada, na qual aprendizagem, o ensino de leitura cen-
a cultura do impresso circula ainda que trado nos conteúdos e/ou na linguagem
desigualmente, vivem no espaço escolar e não na leitura propriamente dita e a
que faz usos da escrita através do livro leitura direcionada pelo professor atra-
didático, do dicionário, dos cadernos vés de exercícios e avaliações. Enfim, a
dos alunos, enfim de uma diversidade leitura como pretexto para a instrução,
de textos que circulam nesse espaço; e para o ensinamento.

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A questão que se coloca, então, contextualizadas e direcionadas para a


não é investigar se o professor é lei- formação do leitor crítico.
tor ou não é leitor. Fazendo parte de
Quanto à literatura, manteve seu
uma sociedade letrada, o professor lê
caráter humanista embora tenha pas-
diferentes tipos de textos, em nível
sado por mudanças para se adequar às
pragmático, dentro dos cânones esta-
demandas de camadas da população
belecidos pela escola, àquelas leituras
que aspiram à ascensão econômica e
que sua prática escolar exige para o de-
social ou ao caráter profissionalizante
sempenho de suas tarefas profissionais.
que ganhou com as últimas reformas
Quanto ao cidadão-professor, este
educacionais. Contraditoriamente, a
pouco acesso tem aos bens culturais,
literatura não traz ao aluno nenhum
dada a sua situação socioeconômica e
saber prático, portanto não se justifica
suas relações culturais.
enquanto “terminalidade” e também
De acordo com Batista (1991, p. não se justifica enquanto “continuida-
21), é preciso desenvolver “uma con- de”, pois os estudos da literatura não
cepção de leitura de interesse pedagó- são fundamentais na vida acadêmica,
gico”. Para isso, dois pressupostos de- com exceção para o curso de Letras. As-
vem estar claros: primeiro, o professor sim, só resta o vestibular para justificar
precisa conhecer o objeto leitura em a presença da literatura no currículo,
suas dimensões psicológica, linguística, este, segundo Lajolo “determina a pers-
discursiva, social, histórica e política; pectiva com que a literatura é estudada”
segundo, o professor deve buscar nes- (1988, p.134).
sa reflexão do objeto leitura em várias
Diante desta situação, vê-se o pro-
dimensões as articulações possíveis que
fessor dividido entre preparar o aluno
permitam apreendê-lo em perspectivas
para o vestibular ou resgatar a concep-
até mesmo contraditórias para formar
ção humanista no ensino da leitura
um ponto de vista sobre a leitura, para
literária. A verdade é que ambas as al-
se eleger um olhar sobre o objeto leitura
ternativas não respondem às razões da
em suas várias facetas.
presença da literatura enquanto disci-
Para Soares (1988), a questão plina no currículo de segundo grau. A
que se coloca não é o processo de es- preparação para o vestibular desvalo-
colarização da leitura em si, ele é um riza o ensino de literatura como algo
processo necessário, que não pode ser transitório e acaba por enquadrar o
negado, pois seria negar a própria es- ensino médio nos moldes dos cursi-
cola. O significado pejorativo que essa nhos pré-vestibulares.
escolarização vem adquirindo é conse-
O ensino de literatura na pers-
quência das maneiras como o ensino
pectiva humanista, para Lajolo (1988,
da leitura vem sendo experienciado
p.136), “implicava uma visão de litera-
na escola. Portanto, a questão não é a
tura como posse de um conhecimen-
descolarização da leitura, mas a sua es-
to erudito e de um patrimônio a ser
colarização adequada, ou seja, as prá-
transmitido de geração para geração,
ticas de leituras devem ser socialmente

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patrimônio criado e consumido dentro de outro, a disposição “pedagógica” de


dos setores sociais elevados” circunscre- professores para uma leitura literária
vendo assim “sua abrangência e alcance escolarizada impedem a experiência de
a este mesmo círculo, cujos valores a estranhamento e de outros exercícios
leitura reproduzia e acabava por legiti- intelectuais que aproximariam alunos
mar”. Ao atender novos grupos sociais, e professores da interlocução com a li-
a escola presenciou o rompimento en- teratura canônica.
tre o patrimônio literário e os alunos
Vivemos em um momento de
que optou por outros meios de expres-
predomínio das imagens, de excesso
são, deixando de lado a leitura literária.
de imagens na vida cotidiana denun-
Para atender a essa demanda emer- ciada como um perigo iminente num
gente, a escola viu-se na contingência mundo dominado pelas tecnologias. A
de alargar sua concepção de literatura, televisão, o cinema, o computador, ou-
incorporando novas modalidades de tdoors, celulares etc. simultaneamente
texto literário, através do cinema, da despejam imagens descoladas do dis-
televisão, da música etc., consequente- curso verbal que as significa e dos senti-
mente agregou ao estudo de textos lite- mentos humanos que atribuem sentido
rários canônicos também os textos não- a essas imagens, enfim, o mundo con-
-canônicos que transitam na literatura temporâneo assiste a uma ruptura entre
marginal, na literatura de massas, en- imagem e palavra, imagem e afetivida-
fim no cotidiano, nas ruas, etc. Com o de. No entanto, essa fragmentação que
alargamento da noção de literatura e o caracteriza a vida moderna está posta,
acolhimento de outras modalidades de e nos cabe trabalhar essa realidade, as-
expressão, não consagradas e sacramen- sim umas das intervenções pedagógicas
tadas, segundo Lajolo (1988, p.137), “o possíveis é ressignificar essas experiên-
ensino no segundo grau parece desco- cias ancorando-as à literatura, particu-
brir perspectivas renovadoras, capazes larmente à leitura literária.
também de oferecer-lhe alternativas di-
Um dos gêneros literários que mais
ferentes da mera adequação ao vestibu-
se aproxima da imagética é a poesia,
lar ou da regressão a um tipo de educa-
isto é, ela constrói o universo imagé-
ção que foi funcional enquanto serviu
tico dos textos por meio de símbolos,
aos grupos sociais que o criaram”.
metáforas e alegorias. A imagem repro-
Entretanto, segundo Graça Pau- duz uma sensação física, ou seja, é a
lino (2004, p. 47-62), atualmente há memória do visual, do olfativo, do tátil
um distanciamento entre os cânones etc., que proporcionam novos sentidos,
literários e os cânones escolares de li- provocando novos conhecimentos de
teratura. De acordo com a autora, a mundo. O “eu lírico” do poeta capta a
fragilidade do letramento escolar e a realidade que o circunda de uma ma-
elitização da literatura têm dificultado neira original e transmite ao leitor essa
a formação de alunos-leitores do texto experiência em imagens que adquirem
literário. De um lado, a recepção “emo- novos significados quando estruturadas
tiva” de jovens leitores inexperientes, no texto poético.

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Uma alternativa é a literatura mar- onde circulam textos diversos abertos


ginal que se situa, em relação à litera- a quaisquer pessoas. A indústria cul-
tura canônica, como a literatura que tural tem levado o cinema e a televisão
rompe com os modelos de tradição à maioria da população, é, portanto
literária. A internet tem sido o espaço inegável seu poder de difusão e massi-
para atividades literárias de grupos ex- ficação. O cinema constitui hoje uma
cluídos que fazem “arte periférica” ou ferramenta indispensável para novas
“arte marginal” Não submissa à cen- práticas pedagógicas de leitura literá-
sura prévia, a rede mundial de com- ria. Cinema e livro são, portanto, dois
putadores vem se apresentado como suportes do texto literário que se com-
o lugar de expressão das mais variadas plementam, ou seja, o cinema pode ser
manifestações artísticas, como a litera- um excelente recurso audiovisual para a
tura, a música, teatro etc., através de leitura literária em sala de aula.
sites bastante acessados, portanto com
visibilidade frente ao público jovem. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os recursos da linguagem hiper- A questão central que se colo-
textual, capazes de agregar à palavra ca para a prática da leitura literária é
escrita, som e movimento produzem encontrar caminhos para a formação
efeitos estéticos, criando uma nova do leitor do texto literário na escola.
linguagem. As múltiplas tendências Mas, como trabalhar a leitura literária?
estéticas no mundo pós-moderno Quem, se não os próprios leitores, pro-
apontam para a dispersão e fragmen- fessores e alunos para estabelecerem ca-
tação das manifestações literárias que minhos para a leitura literária. A leitura
exibem as contradições sobre o concei- está colocada no espaço escolar pelo seu
to de arte e seu caráter provisório. Es- próprio campo de conhecimento e o
pelhando novas formas de organização letramento se realiza quase sempre no
da sociedade voltadas para o indiví- espaço escolar. Entretanto, a leitura li-
duo e para os pequenos grupos, a arte terária tem se distanciado cada vez mais
contemporânea se configura como da escola, há um ruptura entre escola e
expressão da manifestação de culturas leitura literária, um distanciamento en-
periféricas ou minoritárias de grupos tre livros de literatura e leitura escolar,
étnicos, religiosos, sexuais, faixa etária um processo de escolarização da leitura
etc. A literatura marginal vem ganhan- e da literatura, que, embora inevitável
do espaço com a crescente divulgação vem distanciando professores e alunos
através de sites blogs etc. das leituras literárias.
A arte cinematográfica também O desafio começa na formação
vem ocupando posição de destaque inicial dos futuros professores e precisa
frente aos programas de televisão e aos estender-se por toda a formação con-
jogos virtuais, pois é um meio de co- tinuada, priorizando uma boa e sólida
municação que permite uma imersão formação leitora dos professores que
total dos expectadores em um curto pe- atuam na educação básica, desde a esco-
ríodo de tempo e em espaços públicos la de educação infantil à universidade.

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