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Linguística, literatura e educação: teorias, práticas e ensino | - 149 -

PRÁTICAS LEITORAS NA ESCOLA: LETRAMENTO LITERÁRIO


ATRAVÉS DA CONTÍSTICA MACHADIANA

Sheyla Maria Lima Oliveira


Universidade Federal da Paraíba – UFPB
João Pessoa – Paraíba
oliversheyla@hotmail.com

1 INTRODUÇÃO

Ao estudar um pouco a historiografia da literatura, vemos que, há alguns


séculos ela era a matéria essencial para a formação humana, visto que unia língua
e sociedade para formar o conhecimento. A literatura permaneceu com esse
caráter formador imprescindível até que o mundo do trabalho descartou a
formação humanística e deu importância a formação técnica e científica. Com
efeito, a ascensão do capitalismo, dos meios de comunicação e das novas
tecnologias transformou o cenário sociocultural, deixando a literatura e suas
práticas com um espaço social reduzido, até mesmo dentro das salas de aula.
Tratando-se especificamente do ensino de língua materna, este passou a
ter caráter predominantemente linguístico, com foco em atender demandas de
ordem gramatical, ao mesmo tempo em que se começou a discutir os valores
estéticos da formação do Cânone, criando fronteiras literárias e sociais. Os
estudos culturais trouxeram novas discussões acerca dos conceitos, da
metodologia e dos objetivos da literatura, contribuindo e/ou discordando das
teorias que já conhecíamos.
Para Cosson e Paulino (2009, p. 57), “o ensino de literatura cristalizou-se
no uso supostamente didático do texto literário para ensinar uma gramática
esterilizada da língua e o que mais interessasse ao currículo escolar”. De fato,
com o advento dos livros didáticos, os alunos passaram a conhecer obras
literárias somente por meio de fragmentos e, muitas vezes de forma aleatória.
Isso transformou o ensino e a aprendizagem de literatura, que passou a ser
apenas decorar datas das obras, características de autores e estilos de época. Ao
invés da efetiva leitura literária, fomos obrigados a aprender sobre as escolas
literárias, decorando e distinguindo cada época, de modo que, até hoje, na
maioria das salas de aula do ensino básico, a historiografia literária permanece
como única prática de ensino de literatura.
Desta sorte, nas últimas décadas, o cenário literário foi marcado por
pesquisas e estudos desenvolvidos, dentro dos cursos de pós-graduação de
Letras, onde pesquisadores e professores começaram a defender a importância
do letramento literário para a formação dos discentes, da educação infantil até o
ensino superior. Os estudiosos da área de Letras enfatizam a necessidade de

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promover a leitura e de incluir as práticas com o texto literário dentro do


planejamento e da avaliação, principalmente no nível básico de ensino.
Com efeito, neste capítulo, objetivamos contribuir com as estratégias para
a formação do leitor nos anos finais do ensino fundamental, propondo uma
sequência didática que busca proporcionar uma experiência textual com os
contos machadianos, a fim de ampliar o universo literário do leitor, de forma que
este possa conferir ao texto novos significados e interpretações, fazendo da
literatura uma prática social que vai além dos muros escolares. Dessa forma,
mostramos também que Machado de Assis é consagrado por sua escrita
universal, uma vez que seus escritos estão sempre se atualizando,
independentemente do tempo em que são inseridos no contexto de ensino e
aprendizagem de literatura.

2 LETRAMENTO LITERÁRIO: O DESAFIO DE FORMAR LEITORES NO


ENSINO FUNDAMENTAL

Nossa reflexão acerca da formação do leitor literário parte do princípio de


que é necessário um convívio pedagógico e culturalmente mais interessante entre
a escola e a literatura em todos os níveis do ensino básico, essencialmente nos
anos finais do ensino fundamental, no qual o jovem leitor tende a desenvolver
melhor suas habilidades de leitura e escrita. Dessa forma, cabe ao profissional de
Língua Portuguesa apresentar subsídios práticos e teóricos relativos à escolha
qualificada e ao uso crítico do texto literário em sala de aula.
Vivenciar a literatura e preservar momentos de leitura em sala de aula,
que oportunizam a aprendizagem literária de nossos alunos, tem se tornado
tarefa difícil em nossas instituições de educação básica. E se esse processo não é
comum dentro das salas de aula, imagina encontrar espaço para leitores e
literatura fora dos muros escolares?
O teórico Antoine Compagnon em seu texto Literatura para quê? (2009)
afirma que o espaço da literatura tornou-se mais escasso em nossa sociedade há
décadas, seja na escola, onde os textos didáticos a corroem, ou já a devoraram, na
imprensa onde páginas literárias se estiolam e nos lazeres, onde “a aceleração
digital fragmenta o tempo disponível para os livros” (COMPAGNON, 2009, p.
21).
Sabemos que a promoção da leitura é papel da escola, esta, atua,
essencialmente, na produção de conhecimento dos nossos alunos e na formação
do leitor. Apesar de haver avanços teóricos consideráveis, desde o último século,
no que se refere à metodologia e aos objetivos do ensino da literatura enquanto
disciplina e a importância de promover a leitura literária, na prática, encontramos
diversos entraves que provocam a falência do ensino de Literatura. Nesse
sentido, a professora e crítica literária Leyla Perrone-Moisés em sua obra
Mutações da literatura no século XXI (2016) aponta o declínio do prestígio cultural
e social da literatura no final do século XX e como isso afetou o ensino/estudo
literário:

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Em meados do século XX, os estudos literários no curso básico


adequaram-se ao espírito pragmático da sociedade moderna;
transformaram-se em estudos de “comunicação e expressão”, visando
à melhor performance futura dos alunos quando estes ingressassem na
“vida real” do mercado de trabalho. Considerou-se que o uso dos textos
literários para melhorar o desempenho comunicacional e expressivo na
vida diária não era útil, e que outros tipos de texto, como os da mídia,
são mais adequados a esse objetivo prático (PERRONE-MOISES, 2016,
p. 71).

Com efeito, o ensino da literatura na escola está no centro dos debates


educacionais das últimas décadas, críticos e especialistas chamam a atenção para
o fato de que a literatura precisa ressignificar-se para não corrermos o risco de a
disciplina sofrer menos importância ainda nessa atual conjuntura e vir a
desaparecer dos currículos escolares básicos. Assim, acreditamos que os
professores precisam enxergar a literatura como uma instituição 1, sabendo que a
mesma tem valor na nossa vida, tanto interno quanto externamente e, portanto,
deve ser mantida no currículo, contudo, não deve ser de maneira artificial ou
obsoleta.
Uma grande parte dos profissionais que atua no ensino fundamental
segue o currículo sem contemplar o que o texto literário tem de próprio. Com
efeito, aumentam-se o esquecimento da literatura e a sensação, cada vez mais
disseminada entre os alunos de que é “difícil” ou mesmo “impossível” para os
discentes deste nível de ensino ler e interpretar o referido texto.
Desse modo, torna-se muito importante que o profissional possa
desenvolver estratégias para impedir que o aluno seja confinado apenas ao pouco
contato com o texto literário, visto que é necessário um tratamento didático mais
adequado em relação aos aspectos do texto literário. Em relação ao ensino de
Literatura no ensino fundamental, os Parâmetros Curriculares Nacionais de
Língua Portuguesa (PCN’s) orientam que:

A questão do ensino da literatura ou da leitura literária envolve,


portanto, esse exercício de reconhecimento das singularidades e das
propriedades compositivas que matizam um tipo particular de escrita.
Com isso, é possível afastar uma série de equívocos que costumam
estar presentes na escola em relação aos textos literários, ou seja, tratá-
los como expedientes para servir ao ensino das boas maneiras, dos
hábitos de higiene, dos deveres do cidadão, dos tópicos gramaticais,
das receitas desgastadas do “prazer do texto”, etc. Postos de forma
descontextualizada, tais procedimentos pouco ou nada contribuem
para a formação de leitores capazes de reconhecer as sutilezas, as

1Para Jacques Derrida, a literatura é uma instituição que tende a extrapolar a instituição. O espaço
da literatura não é somente o de uma ficção instituída, mas também o de uma instituição fictícia,
a qual, em princípio, permite dizer tudo. Assim, a obra se torna uma instituição formadora de
seus próprios leitores.

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particularidades, os sentidos, a extensão e a profundidade das


construções literárias (BRASIL, 1997).

Com base nas orientações presentes nos PCN’s de Língua Portuguesa,


entendemos que a literatura ocupa uma posição privilegiada porque conduz ao
domínio da palavra a partir dela mesma. Nesse sentido, o Letramento Literário
presente em várias discussões no âmbito dos Congressos, Seminários, entre
outros eventos desenvolvidos pelas Instituições de Ensino Superior, requer do
ensino básico um tratamento especial que enfatize a experiência literária dos
discentes.
Dessa sorte, uma forma de proporcionar tal experiência pode ser efetivada
por meio de sequências didáticas, as quais buscam desenvolver a competência
leitora dos alunos e despertar o gosto pelo texto literário por meio de estratégias
específicas.
Assim, apresentamos o conceito de Rildo Cosson em sua obra Letramento
Literário (2012), que segue a linha humanizadora de Antonio Candido 2,
entendendo letramento literário como um conjunto de práticas e eventos sociais
que envolvem a interação leitor e escritor, produzindo o exercício socializado na
escola por meio da leitura de textos literários, sejam estes canônicos ou não, para
Cosson:

[...] devemos compreender que o letramento literário é uma prática


social e, como tal, responsabilidade da escola. A questão a ser
enfrentada não é se a escola deve ou não escolarizar a literatura, como
bem nos alerta Magda Soares, mas sim como fazer essa escolarização
sem descaracterizá-la, sem transformá-la em um simulacro de si mesma
que mais nega do que confirma seu poder de humanização (COSSON,
2012, p. 23).

É fato que a escassez de práticas de leitura desde a educação infantil


compromete o ensino e a aprendizagem de literatura além de contribuir para a
não formação de leitores nos anos posteriores do ensino básico, pois se os nossos
alunos não conseguem desenvolver as habilidades de leituras necessárias, não
seremos capazes de formar leitores que estabeleçam os elementos mínimos de
compreensão e interpretação. Nesse sentido, é preciso que os profissionais se
atentem ao fato de que atividades repetitivas e previsíveis que escolarizam a
prática da literatura, tais como o uso do texto literário como pretexto gramatical,
apenas consolidam o estereótipo de que literatura é muito difícil de aprender.
Quando falamos em letramento literário no ensino fundamental, significa
que nossos alunos precisam acessar e ler os diversos gêneros escritos, para isso,
é necessário que os mesmos possam vivenciar práticas de leitura onde o objetivo

2 De acordo com Antonio Candido (2011, p. 188), a literatura corresponde a uma necessidade
universal que deve ser satisfeita sob pena de mutilar a personalidade, porque pelo fato de dar
forma aos sentimentos e à visão do mundo ela nos organiza, nos liberta do caos e, portanto, nos
humaniza.

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estético possa ultrapassar o objetivo instrucional. A literatura que deve ser


ensinada, na perspectiva do letramento literário, precisa ser composta de obras
integrais, não apenas as formas mais sofisticadas pertencentes ao cânone, mas
também aquelas que correm a margem deste.
Não precisa de uma análise mais profunda para percebemos que a
aprendizagem engessada das “escolas literárias”, o pouco tempo dedicado a
leitura, a fragmentação das aulas, a má formação dos professores, entre outros
fatores, contribui para a não valorização do texto literário em sala de aula,
dificultando o letramento literário.
Para realizar um bom letramento literário, é necessário que o professor
seja, de fato, um leitor, que domine o conhecimento teórico e conheça a crítica
sobre tal obra ou autor, de modo que as teorias aprendidas na formação inicial
estejam associadas à sua metodologia na sala de aula, pensando no conteúdo
sempre como uma transposição didática. Isso não significa que se deve
abandonar a história da literatura, esta é uma parte importante do conhecimento,
o que deve ser deixada de lado é a ideia cronológica, porém, o professor só
tornará isso possível a partir de um bom planejamento.
No ensino fundamental, a literatura tem a função de sustentar o leitor,
porém, ela assume um sentido extenso que engloba qualquer texto escrito que
apresente parentesco com ficção ou poesia. Cosson (2012, p. 30) enfatiza que é
preciso “reconhecer a força educativa da literatura e sua importância na formação
de leitores”. Assim, nesse capítulo, queremos valorizar a leitura da literatura
brasileira, e do maior escritor do século XIX nas salas de aula do ensino
fundamental, através do gênero conto.
Neste nível de ensino, o professor tende a recusar os textos canônicos por
considerá-los pouco atraentes, seja pelo hermetismo do vocabulário e da sintaxe
ou pela temática, muitas vezes distante da realidade dos alunos e, por isso, não
chamam sua atenção. No caso dos contos machadianos escolhidos para nossa
sequência didática, ambos tratam da mesma temática – a condição do negro no
mundo burguês - temática essa considerada interdisciplinar e infelizmente, atual.

3 SEQUÊNCIA DIDÁTICA: CONTOS MACHADIANOS NA SALA DE


AULA

Lembramos que uma boa sequência didática possibilita trabalhar desde


textos de registro linguísticos mais próximos do contexto dos alunos até textos
canônicos como os do consagrado Machado de Assis.
Ao realizarmos o letramento literário na escola, é importante apresentar
aos alunos a diversidade do literário, essa diversidade se dá, em relação aos
gêneros, ao período histórico e ao contexto geográfico. Nesse processo, também
estamos formando a identidade desse sujeito leitor e desenvolvendo o gosto de
ler, dessa forma, é interessante propor obras que apresentem grandes questões e
fatos que marcam nossa história. Esse é o motivo pelo qual escolhemos trabalhar
com os contos de Machado de Assis em nossa sequência didática. A crítica
literária machadiana é vasta e diversificada na análise de suas obras, e a maioria

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aponta para o seu discurso literário, político e social repleto de ironia e sarcasmo,
em uma época que marcou a história e a cultura brasileira.
Vale salientar que durante muito tempo, Machado de Assis – escritor
negro – recebeu duras críticas por ser acusado de não demonstrar a angústia
vivida pelos negros durante o período mais obscuro da história de nosso país que
foi a escravidão. Porém, a crítica atual já analisa de maneira diferente,
principalmente Roberto Schwarz que se tornou um dos maiores críticos
machadianos.
Nessa perspectiva, sugerimos, para o letramento literário, o trabalho à luz
das reflexões e metodologias contidas na obra Letramento Literário: teoria e prática
(2012), do professor Rildo Cosson, que apresenta uma metodologia de trabalho
com a Sequência Básica para o ensino fundamental e a Sequência Expandida para
os consequentes níveis de ensino.
A intertextualidade é apontada por Cosson (2012), como um espaço da
literatura em sala de aula. Os dois contos machadianos podem ser lidos em uma
relação de contraste para verificar o que os assemelha e os individualiza.
Também podem ser analisados em relação a apropriação que Machado de Assis
faz da condição do negro na sociedade burguesa, escrevendo contos, romances,
poesias, peças de teatro, crônicas, entre outros textos que, devidamente
contextualizados ajudaram a moldar a noção que temos hoje do que é ser
brasileiro. É exatamente a análise dessas relações que constitui o espaço da
literatura como intertexto.
Pela nossa experiência enquanto discente, professora e assessora
pedagógica vemos que não é comum os professores trabalharem os textos de
Machado de Assis no Ensino Fundamental. Quando questionados sobre o
trabalho com os clássicos machadianos, a maioria acredita ser inviável, pois
considera a linguagem do autor difícil e muito refinada, distante da sintaxe atual,
além de achar os enredos complexos demais para a compreensão dos seus alunos.
A obra machadiana realmente apresenta enredos extensos e com conflitos que
nem sempre são fáceis perceber por conta da ironia particular do autor. No
entanto, isso não impede que as obras sejam lidas neste nível de ensino, pois os
conteúdos de suas narrativas podem ser compreensíveis para esta faixa etária.
Nesse sentido, acreditamos que o trabalho com os contos machadianos nas
aulas de literatura dos anos finais do ensino fundamental fará diferença na
formação dos jovens leitores, mesmo que se apresente uma certa dificuldade
inicial por parte dos alunos na questão da interpretação dos textos. Sobre essas
dificuldades por parte dos discentes, temos consciência que fazem parte da sua
formação enquanto leitor literário, e deve-se encarar como uma etapa natural
desse processo, pois como afirma Compagnon:

A literatura desconcerta, incomoda, desorienta, desnorteia mais que os


discursos filosófico, sociológico ou psicológico porque ela faz apelo às
emoções e à empatia. Assim, ela percorre regiões da experiência que os
outros discursos negligenciam, mas que a ficção reconhece em seus
detalhes (COMPAGNON, 2009, p. 50).

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Autores como Machado de Assis têm um papel essencial na formação de


leitores literários e, portanto, devem ser apresentados desde o ensino
fundamental. Quando o professor propõe a leitura de textos escritos em outra
época permite que os discentes passem a estabelecer vínculos com as gerações
que ajudaram a definir o Brasil que eles conhecem hoje, através dos referenciais
linguísticos, estéticos e culturais. Em uma atividade de leitura mais abrangente,
que faça parte do projeto de leitura da escola, por exemplo, os professores podem
trabalhar a leitura dos textos literários de forma interdisciplinar, visto que a
literatura perpassa o conhecimento de diversas áreas, podendo ser exploradas
outras disciplinas como história, geografia, artes, etc., pois, conforme Perrone-
Moisés:

Oferecer ao aluno apenas aquilo que já consta em seu repertório é


subestimar sua capacidade de ampliar seus conhecimentos e privá-lo
de um bem a que ele tem direito. (...) Cabe então, ao professor de
literatura, escolher as obras que constarão em seus programas não em
função de uma atualidade que pode ser apenas um modismo, mas em
função das qualidades literárias da obra, passada ou recente
(PERRONE-MOISÉS, 2016, p. 81).

Para a professora Teresa Colomer (2017), a escola permaneceu por muito


tempo ancorada em uma leitura “formativa” de cartilhas, antologias e livros
didáticos, sem, contudo, obter êxito na formação de leitores. Em seu livro
Introdução à Literatura Infantil e Juvenil atual (2017), Colomer apresenta a literatura
infantil e juvenil, considerada a base para a formação leitora, desde suas origens,
ressaltando a repercussão dos valores sociais nas obras, e defendendo que
crianças e jovens devem, desde cedo, conviver com a leitura e os livros clássicos
no espaço escolar, para que, quando adultos, eles possam ir ao encontro da
literatura com naturalidade, porque conhecem sua importância social.

3.1 Contística machadiana

Ao revisar a crítica que analisa os processos narrativos de Machado de


Assis, vemos que o conto machadiano não nasce de uma tradição brasileira, já
que essa espécie narrativa ainda não se firmara na nossa história literária quando,
nos anos sessenta, do século XIX, o escritor começa a publicar os primeiros contos
em jornais e revistas. Sobre os processos narrativos nos contos de Machado de
Assis, quem nos conta é a professora Ana Maria Lisboa Mello em sua análise
publicada na Revista Organon (2001), com base na crítica machadiana já
conhecida.
No que se refere à produção contística, em especial, Machado de Assis
rompe com qualquer expectativa de enquadramento formal e estilístico, as
últimas coleções lançadas pelas editoras já somam duzentos do nosso escritor
realista. Em seu processo narrativo, Machado lança mão de narradores com

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diferentes perfis, ajustados às suas necessidades criativas. De acordo com a


professora:

A modernidade de Machado de Assis como contista revela-se na recusa


a modelos preestabelecidos, a variedade de histórias que narra vem
acompanhada de uma diversidade de procedimentos discursivos que
impossibilita responder as questões sobre como são construídos os
contos machadianos (MELLO, 2001, p. 114).

As obras machadianas contribuíram, em diversos momentos de nossa


história, Machado, apresentou em seus romances e contos vários personagens
negros que, dentro da estrutura das narrativas, foi construído um discurso que
reflete as desigualdades e a luta de classes na sociedade escravocrata. Dessa
forma, ao fazermos a leitura dos contos “O caso da vara” e “Pai contra mãe”
através da sequência didática, conseguimos despertar os alunos para a discussão
sobre como o negro escravizado é representado na contística machadiana, sendo
que tal representação da escravidão nos referidos contos, nos faz refletir sobre a
violência e o racismo a que estão sujeitos os negros dois séculos depois, numa
sociedade na qual a desigualdade, a violência e o racismo, herança do século XIX,
chicoteiam e maltratam o povo negro todos os dias.

3.2 Sequência Didática

A sequência didática básica é constituída por quatro passos: motivação,


introdução, leitura e interpretação. Assim, de acordo com Cosson (2012):
A primeira etapa é a motivação, que consiste em preparar o aluno para a
leitura do texto, é necessário estar atento neste momento para escolher um bom
elemento motivador que pode ser sobre os contos em si, o autor, um personagem,
um tema, etc. o importante é entender que o sucesso inicial do encontro do leitor
com a obra depende de uma boa motivação.
A segunda etapa é a introdução, trata-se nada mais que a apresentação do
autor e da obra a ser lida, aqui pode-se também fornecer informações básicas a
respeito do enredo. É uma atividade simples, porém, demanda alguns cuidados,
como, por exemplo, não transformar a apresentação do autor em biografismo que
só interessa a pesquisadores e não a leitores. Deve-se fornecer informações
básicas sobre o autor que sejam ligadas aos textos que serão lidos. Em relação a
apresentação da obra, o professor precisa apenas falar da sua importância
naquele momento, justificando assim, sua escolha, procurando fazer com que o
aluno receba a obra de maneira positiva. Essa etapa da sequência também não
deve se alongar muito.
Na terceira etapa da sequência básica de Cosson (2012), ocorre a leitura da
obra em si, que pode ocorrer em texto curto (em sala de aula) ou leitura de texto
extenso (extraclasse), o elemento mais importante dessa fase é o
acompanhamento da leitura, que trata-se de auxiliar o educando nas suas
dificuldades em assimilar o conteúdo da obra. Aqui, também são apresentados

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os intervalos (caso seja uma obra extensa), resultados da leitura realizada. A


leitura escolar precisa de um acompanhamento porque tem uma direção, um
objetivo a cumprir, e esse objetivo não deve ser perdido de vista. Textos curtos,
como os nossos contos machadianos, podem ser lidos em sala de aula, basta que
o professor utilize o tempo pedagógico de duas, no máximo três aulas, a
depender do nível de fluência de leitura dos alunos.
Por fim, temos a fase da interpretação, que é composta de dois momentos,
o interno e o externo. O interno é quando a interpretação é feita com o que somos
no momento da leitura. É o encontro do leitor com a obra e tem um caráter
individual. Já o momento externo é a materialização do próprio letramento
literário, ou seja, a construção de sentido do texto, processo que envolve quem
escreve, quem lê e a comunidade. Neste momento, o aluno irá socializar,
compartilhar, externalizar a sua reflexão sobre a obra.
O momento da interpretação requer do professor uma condução
organizada, e sem imposições. Cosson (2012) assegura que o princípio das
atividades de interpretação é a externalização da leitura, o seu registro, e deve
ser feito sem restrições.

Sequência Básica

Turmas alvo da ação: 8º e 9ª ano do Ensino Fundamental


Obras: Contos “Pai contra mãe” e “O caso da vara” in 50 contos de Machado de
Assis, John Gledson

Motivação:

 Preparar a sala de aula para o acolhimento dos alunos, espalhando nas


paredes e em cada carteira, várias imagens da África;
 Questionar sobre o que os alunos conhecem do período da escravidão do
Brasil;
 Apresentar por meio de recurso tecnológico a transformação da aparência
de Machado de Assis, utilizando as imagens divulgadas pelas
editoras/jornais e mídia em geral, do século XIX até as mais recentes
publicações de sua obra.

Introdução:

 Discutir a desigualdade racial, desde os estereótipos usados para sustentar


a sociedade escravocrata do século XIX até hoje;
 Roda de conversa sobre o processo de formação do cânone brasileiro;
 Apresentar o autor e as várias publicações dos contos em coletâneas
diversas;
 Destacar os principais personagens.

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Leitura:

 Na sala de aula, período de duas ou três aulas;


 Levantamento das primeiras impressões causadas nos alunos;
 Discussão sobre a interação das temáticas presentes nos contos
machadianos com outros textos contemporâneos, como os de Conceição
Evaristo, por exemplo;
 Estudo do vocabulário, visto que a Língua Portuguesa passou por
modificações desde a escrita dos contos.

Interpretação:

 Fazer uma mesa redonda de diálogos na sala, com efeito, serão feitas
perguntas com objetivo estético para averiguar a compreensão dos textos.
 Formar grupos e pedir que os alunos apresentem o perfil dos personagens
através das características descritas nos textos;
 No segundo momento da interpretação, os alunos farão uma atividade
escrita, na qual devem escolher um outro gênero textual para apresentar
os contos; pode ser feito através de desenhos, poesias, paródias,
construção de mural literário, etc.

É importante que ao final de cada etapa da sequência didática, o professor


sistematize esse trabalho, pois, assim, teremos o registro de uma forma de
letramento literário importante para a escola, que pode expandir-se para outras
práticas pedagógicas como o projeto de leitura, por exemplo, no qual será
possível interdisciplinar com outras disciplinas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao propor essa experiência pedagógica, esperamos atingir nossos


objetivos no sentido de transformar as aulas de literatura em mais uma
ferramenta para formação de leitores críticos no ensino fundamental, bem como,
motivar os alunos envolvidos a lerem não apenas as obras de Machado de Assis,
que foram nossa inspiração, mas também a de outros autores e autoras da nossa
literatura brasileira, independentemente de serem canônicos ou não. É
importante também que os professores compreendam como a obra de Machado
de Assis ainda pode nos dizer respeito hoje, ao trabalharmos com a leitura
atualizadora.
Fundamentados nas teorias e críticas referenciadas aqui, salientamos que
a literatura é, assim, uma maneira insubstituível para a prática de formar leitores,
porque ler nos torna sensíveis ao fato de que os outros são muito diversos e, que
cada um tem seu valor, daí Antonio Candido, Antoine Compagnon, Rildo
Cosson, entre outros autores, enfatizarem esse poder humanizador da literatura.
Nessa perspectiva, tomando como principais referentes os estudos e as
contribuições de teóricos e críticos como Rildo Cosson, Leyla Perrone-Moisés e

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Antoine Compagnon, que buscam tornar o ensino de literatura nas escolas uma
prática essencial na formação de leitores, enfatizamos aqui a importância de
trabalhar com o letramento literário no ensino fundamental.
Portanto, a partir de nossas discussões, é possível estimular a competência
leitora dos alunos do ensino fundamental, fazendo com que possam perceber a
plurissignificação do texto literário e o seu efeito humano, social, pedagógico,
político e crítico, colaborar com as práticas pedagógicas das escolas públicas no
que se refere à letramento literário, além de dar visibilidade aos contos
machadianos nos anos finais do ensino fundamental.

REFERÊNCIAS

BRASIL, Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais: Língua


Portuguesa. Brasília, 1997.

CANDIDO, Antonio. O direito à literatura. In: _______. Vários Escritos. Rio de Janeiro: Ouro
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COLOMER, Teresa. Introdução à Literatura infantil e juvenil atual. São Paulo: Global, 2017

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COSSON, Rildo. Letramento literário: teoria e prática. São Paulo: Editora Contexto, 2012.

DERRIDA, Jacques. Essa estranha instituição chamada literatura: uma entrevista com Jacques
Derrida. Trad. Marileide Dias Esqueda. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014.

GLEDSON, John. 50 contos de Machado de Assis. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

MELLO, Ana Maria Lisboa de. Processos narrativos nos contos de Machado de Assis. In
Revisando o cânone: questões de historiografia e crítica literária. Organon/UFRGS, Instituto
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PAULINO, Graça. COSSON, Rildo. Letramento Literário: para viver a literatura dentro e fora da
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PERRONE-MOISÉS, Leyla. Mutações da literatura no século XXI. São Paulo: Companhia das
Letras, 2016.

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