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A questão da soberania: a leitura arendtiana de Montesquieu

O dialógo de Hannah Arendt com O espírito das leis permeia quase toda a obra da
filósofa alemã. No entanto, tal diálogo se situa em uma questão principal: a questão da
soberania. Arendt define Montesquieu como um herdeiro da tradição política clássica e
como tal, um escritor político que não faz apologia à existência de um poder central no
corpo político. Pretendemos abordar a crítica à soberania, a partir da leitura arendtiana
de Montesquieu , em três eixos principais: a definição de lei em Montesquieu – e como
se articula com o conceito de autoridade proposto por Arendt -, o princípio das formas
de governo – e como Arendt se utiliza da diferenciação entre princípio e natureza de
modo a apoiar sua definição de ação política – e a teoria da separação de poderes, que é
uma influencia de Arendt na construção de sua teoria do poder.

A autoridade platônica-cristã, autoridade romana e a lei como ligação.

Hannah Arendt, em ensaio intitulado O que é a autoridade? Apresenta duas formas sob
as quais a autoridade se apresenta: uma forma derivada da teoria política platônica e a
forma romana de autoridade.
A questão que motiva Arendt, ao apresentar estas duas formas de autoridade é o que faz
com que a autoridade seja obedecida, pois, segundo Arendt, ao mesmo tempo em que a
autoridade exige obediência, a autoridade é incompatível com a violência e com a
persuasão que move os assuntos políticos (ARENDT, 2011, 129). Em um ensaio
adicionado ao livro As Origens do Totalitarismo, intitulado Ideologia e terror: uma
nova forma de governo, Arendt identifica a autoridade como o elemento que provê as
leis positivas de legitimidade (ARENDT,1989, 513).
As duas formas de autoridade descritas por Arendt oferecem duas respostas distintas à
legitimidade das leis positivas. Arendt invoca a figura de uma pirâmide para caracterizar
a forma de autoridade que nasce das páginas de A República de Platão e que,
posteriormente renasce no contexto medieval:

Como imagem do governo autoritário, proponho a forma de pirâmide, bem


conhecida no pensamento político tradicional. A pirâmide, com efeito, é uma
imagem particularmente ajustada a uma estrutura governamental cuja fonte
de autoridade jaz externa a si mesma ,porém, cuja sede de poder se localiza
em seu topo (...) (ARENDT, 2011, 135).
Esta imagem, válida para este tipo de autoridade, pressupõe uma fonte de autoridade
que se localiza acima e distante da esfera de discussão políticas. A obediência advém da
transcendência da autoridade, além da mundanidade humana, que determinaria uma
série de recompensas e castigos além da vida terrena. De fato, de acordo com Arendt, a
teoria política platônica, apresenta uma série de recompensas e castigos condicionados à
obediência, enquanto que o inferno cristão oferecia uma razão política para a
legitimidade e a obediência da autoridade. (AREDNT, 2011, 176). A autoridade seria
divorciada da realidade terrena e mundana da política, e desta transcendência nasceria
sua legitimidade e seu poder de comando. A transcendência deste tipo de autoridade
seria advinda da revelação, ou da descoberta de uma serie de verdades auto-evidentes,
acessíveis a alguns e, para aqueles cujas estas verdades não seriam aparentes, seriam
necessário um sistema de ameaças e prêmios de modo a se conseguir a obediência e
legitimidade.
Arendt apresenta um segundo tipo de autoridade, que teria surgido na república romana,
a qual ilustra com uma imagem diferente:

Se se quiser relacionar [a autoridade romana] com a ordem hierárquica


estabelecida pela autoridade, visualizando essa hierarquia na familiar
imagem da pirâmide, é como se o cimo da pirâmide não se estendesse ate as
alturas de um céu acima (ou como no Cristianismo, além) da terra, mas nas
profundezas de um passado profundo (ARENDT, 2011, 166).

Nesta forma de autoridade, que surge com a república romana, a autoridade deriva sua
legitimidade da ligação direta com o passado. Na imagem proposta por Arendt, o centro
da autoridade se conecta a fundação de Roma. A autoridade era exercida pelo Senado
romano, que seriam a institucionalização da imagem dos fundadores da república.
(ARENDT, 2011, 164).
A autoridade romana fornecia outras peculiaridades: se tratava de uma instituição que
permitia o “aumento’, nas palavras de Arendt (ARENDT, 2011, 165). Ou seja, a
autoridade, ligada diretamente à fundação do corpo político, era reproduzida em cada
nova conquista romana. Os territórios conquistados eram submetidos à encarnação da
fundação de Roma – o Senado- e a fundação romana era politicamente repetida em cada
novo território anexado. Assim, os tratados estabelecidos, ao repetir a fundação e tendo
como fonte a Senado romano, possuíam sua legitimidade garantida.
No entanto, mesmo com a decadência do cristianismo como uma instituição política, a
questão de uma fonte de autoridade permanece. Trata-se de buscar, não mais no passado
e no estabelecimento de relações seja com o passado ou através de tratados com outros
povos, a garantia de legitimidade das leis. A busca desta legitimidade, na modernidade
se faz, nas palavras de Arendt ao analisar a Revolução Francesa, na busca de um
“absoluto” (ARENDT, 2011b, 212): um elemento central e soberano de onde derivaria
todas as leis. Arendt afirma que Montesquieu foi o único teórico político anterior às
revoluções americana e francesa a evitar a busca desse absoluto (ARENDT, 2011b, 240)

A justificativa para esta afirmação de Arendt se encontra na definição de lei oferecida


por Montesquieu em O Espírito das Leis:

As leis, em seu significado mais extenso, são as relações necessárias que


derivam da natureza das coisas; e, neste sentido, todos os seres têm suas leis;
a Divindade possui suas leis, o mundo material possuir suas leis, as
inteligências superiores ao homem possuem suas leis, os animais possuem
suas leis, o homem possui suas leis. (... ) Deus possui uma relação com o
universo, como criador e como conservador; as leis segundo as aquis criou
são aquelas segundo as quais conserva. Ele age segundo estas regras porque
as conhece; conhece-as porque as fez, e as fez porque elas possuem uma
relação com sua sabedoria e potencia. (Livro 1, capitulo I)

A concepção de leis de Montesquieu se aproxima daquela que os romanos


consideravam sua fonte: as relações entre entidades diferentes. Assim, a lei não deriva
de um “absoluto universal”, mas de interação entre entidades diferentes.
A ruptura que a definição de lei de Montesquieu representa tanto no pensamento
medieval como moderno é descrita por Louis Althusser:
.
A lei divina domina todas as outras leis. Deus comandou a toda a natureza e
os homens e, ao fazê-lo, determinou seus fins. As outras leis não são mais
que o eco do comando divino original, repetido e subjulgando todo o
universo, a comunhão dos anjos, as sociedades humanas e a natureza.
(ALTHUSSER, 1992, 29. Trad.nossa)1

1
La loi divine dominait toutes les lois. Dieu avait donné ses ordres à la nature tout entière et aux hommes,
et, ce faisant, leur avait fixé leurs fins. Les autres lois n'étaient que l'écho de ce commandement s n'étaient
que l'écho de ce commandement oriautres loiginaire, répété et atténué dans l'univers entier, la communion
des anges, les sociétés humaines, la nature.
A lei, em consonância com o paradigma platônico-cristão era emanada de uma entidade
transcendente e Montesquieu, ao definir a lei como um conjunto de relações, não
oferece uma fonte definitiva e absoluta para a lei. A lei nasce da interação ou, na
terminologia arendtiana, a lei nasce da política. Neste conjunto de relações da qual
nasce a lei, nem mesmo a divindade é uma fonte absoluta de leis: a divindade se
submete às leis, na medida que estabelece relações com aquilo que criou. Segundo
Althusser, a divindade, na definição de lei proposta por Montesquieu se submete as leis
na medida em que cria relações (ALTHUSSER, 1992, 31)
A busca de um absoluto que legitimasse as leis , segundo Arendt no livro intitulado
Sobre a Revolução, não advém apenas de um conjunto de ensinamentos religiosos, mas
de qualquer elemento, que se apresentasse como soberano e absoluto, para além de
ações políticas (ARENDT, 2011b, 210). O paradigma religioso e a busca de outra fonte
de autoridade além do próprio homem enquanto, é continuada, segundo Althusser, na
busca da natureza como fonte última do direito (ALTHUSSER, 1992, 30-31) e a lei
como ligação ,como Montesquieu define, é uma ruptura em relação a esse paradigma;
A definição de lei de Montesquieu apresenta conseqüências políticas, Arendt situa estas
conseqüências na construção de um corpo político após a independência dos Estados
Unidos

(...) para Montesquieu, quanto para os romanos, [uma lei] é apenas aquilo
que relaciona duas coisas, sendo, portanto relativa por definição, ele não
precisava de nenhuma fonte absoluta de autoridade e podia descrever “o
espírito das leis”, sem jamais colocar a incômoda questão da validade
absoluta delas (ARENDT, 2011b, 244).

Assim, a lei é uma conseqüência dos homens se relacionamento com outros homens, não uma
derivada de algo maior, inatingível ao individuo, sendo, se não passível de argumentação,
igualmente, e mais importante, isenta de coerção.
Arendt afirma que a autoridade é a instituição responsável por dotar a esfera política de
estabilidade e permanência frente à instabilidade da ação (ARENDT, 2011, 131). Assim,
impermeável à mutabilidade da persuasão característica da política, a autoridade garantiria um
fundo permanente à ação.
As leis positivas , segundo Montesquieu oferecem esta estabilidade frente às ações humanas:

Mas falta muito para que o mundo inteligente seja tão bem governado
quanto o mundo físico. Pois, embora aquele também possua leis que, por sua
natureza, são invariavéis, ele não obedece a elas com a mesma constância
com a qual o mundo físico obedece ás suas. A razão disto é que os seres
particalares inteligentes são limitados por sua natureza e, portanto, sujeitos
ao erro; e, por outro lado, é de sua natureza que eles atuem por si mesmo.
Eles não obedecem, poratnto, constantemente às suas leis primitivas; e
aquelas mesmas leis que dão a si mesmo, não obedecem a elas sempre.
(MONTESQUIEU, Capítulo I, livro 1)

A necessidade das leis advém da mutabilidade e da inconstância humana. Montesquieu


compara as leis que regeriam o mundo físico- sempre invariáveis – com as leis que
regeriam as relações humanas. O que Montesquieu denomina erros é parte da própria
capacidade humana de conhecer (ALTHUSSER,1992,33) . A capacidade humana de
conhecer tem um papel determinante na passagem das leis naturais para as leis
positivas, segundo Montesquieu. O homem, no estado de natureza descrito por
Montesquieu, possui faculdade cognitiva, mas não possui conhecimentos. Desta forma,
sua existência e focalizada na esfera das necessidades e o homem, antes de adquirir
capacidade cognitiva, vive de modo próximo à lógica dos processos naturais –
alimentação e segurança. Com a habilidade e adquirindo capacidades reflexivas, o
homem estabelece relações entre si, criando as leis positivas (MONTESQUIEU, 14,15).
O conhecimento adquirido pelo homem no estagio posterior ao estado de natureza, diz
respeito à consciência de estabelecer relações entre si (LOWENTAL,1987, 515). Essas
relações inicialmente eram bélicas e as leis surgem um de modo a formar pactos.
A necessidade das leis, derivada da própria capacidade humana de mutabilidade e
inconstância , tem como conseqüência mais uma ruptura teórica com a busca de um
absoluto como fonte das leis. Lowental deixa clara esta distinção:

Os decretos ou leis positivas humanas eram entendidas em relação às suas


conexões com a lei eterna ou natural. A lei, nesta perspectiva, era
considerada uma derivada da razão, feita, promulgada e inoculada pelo líder
da comunidade visando o bem comum. A fonte originária desta lei era a
mente divina. (...). A definição inicial de lei por Montesquieu entra em
conflito com a tradição tomística. Em primeiro lugar, não leva em
consideração qualquer elemento milagres e, em segundo lugar, expõe a
completa e absoluta necessidade de leis ao invés de um governo racional
visando o bem (LOWENTAL,1987 514. Trad. Nossa. Grifo nosso) 2

2
Human enactment or positive law was understood in terms of its connection with eternal law or natural
law. Law, as such, was an ordinance of reason, made, promulgated and enforced for the common good by
the community´s ruler.Its ultimate source was the mind of God (…) Montesquieu´s opening definition of
law takes issue with the Thomistic tradition, first by appearing leaving no room for miracle for the
miraculous, and, second, by depicting the universality of sheer, blind necessity rather than governance
racionally aimed at good
A ruptura representada pelo conceito de lei em Montesquieu, neste caso se faz pelo
conflito entre bem comum e necessidade. A noção de lei medieval, tal como descrita por
Lowental, pressupõe a lei como um instrumento para se atingir o bem da comunidade:
um fim tendo em vista a harmonização do corpo político. Althusser afirma que esta
concepção pressupõe a lei anexada a um fim e para que tal fim se realize é necessária a
obediência daqueles sujeitos à lei (ALTHUSSER, 1992, 29). Ora, a lei, segundo
Montesquieu, advém da própria condição humana, de imprevisibilidade derivada da
capacidade de conhecer se contrastada com as leis imutáveis que regem os processos
naturais, além da própria necessidade de se estabelecer relações entre entidades
diferentes e independentes.
A concepção de lei em Montesquieu, focada em uma necessidade advinda da condição
humana, está em convergência com própria definição arendtiana de política: a política
como um relacionamento entre indivíduos imprevisíveis e os pactos e relações entre
estes indivíduos como um limite à condição humana de imprevisibilidade e da
pluralidade.

Os princípios das formas de governo

Nos livros terceiro e quarto de O Espírito das Leis, Montesquieu descreve a natureza e
os princípios das formas de governo. Montesquieu distingue entre a natureza e o
principio de uma determinada forma de governo:

Existe a diferença seguinte entre a natureza do seu governo e seu principio:


sua natureza é o que o faz ser como é, e seu principio o que o faz agir. Um é
a sua estrutura particular; o outro, as paixões humanas que o fazem mover-se
(Livro III, capítulo 1. Grifo nosso)

Althusser define a natureza de uma forma de governo como a descrição do exercício do


poder – quem exerce o poder: se apenas um individuo, o governo será uma monarquia,
se exercido por poucos uma aristocracia, se exercido por muitos uma democracia -.
Assim, prossegue Althusser, a natureza de uma forma de governo é uma descrição da
organização do poder e sua institucionalização: as estruturas jurídicas que são
originadas de uma determinada forma de exercício de poder (ALTHUSSER, 1992, 46).
O principio das formas de governo diz essencialmente, segundo prossegue Althusser, de
um conjunto de características presentes nos homens, unidos enquanto uma sociedade,
que permite que determinada natureza de governo tenha sua forma institucionalizada:

Pela razão porque os homens se submetem a um tipo particular de governo, e


para que esta submissão deva seja justa e duradoura, uma forma de governo
não se fundamenta na simples imposição de uma forma política ( a natureza
das formas de governo). É necessário que os homens possuam uma certa
disposição a uma determinada forma de governo, uma certa forma de agir e
reagir que suporte essa forma de governo. (Althusser, 1992, 46. Trad.
nossa).3

Assim, segundo Althusser, a natureza de uma forma de governo – isto é, quem exerce o
poder e que forma institucional terá um determinado corpo político – deve ser
acompanhado de uma disposição natural dos homens que compõe aquele corpo político.
Esta disposição natural seriam as formas que ações e reações se materializam em uma
determina sociedade, e seriam essenciais para que uma determinada natureza de uma
forma de governo se cristalize. Montesquieu afirma que a natureza da república é a
virtude, a natureza da monarquia é a honra e a natureza do despotismo é o medo. Assim,
virtude, honra e medo seriam as disposições de uma determinada sociedade –modos de
agir e reagir – que permitiria que uma determinada estrutura de poder se realizasse.
A tipologia das formas de governo como descrita por Montesquieu e, especialmente, a
divisão entre natureza e principio de uma determinada forma de governo exerce uma
notável influencia no pensamento de Arendt. Em um ensaio dedicado á compreensão do
totalitarismo, Arendt afirma sobre os princípios das formas de governo como proposto
por Montesquieu:

A descoberta de Montesquieu de que cada forma de governo tem um


princípio inato que coloca em movimento e guia suas ações é de grande
monta. Esse princípio motivador guarda intima relação com a experiência
histórica (...) , e como principio de movimento de movimento introduziu a
historia e o processo histórico em estruturas de governo tidas como imóveis ,
desde que haviam sido originalmente descobertas pelos gregos (ARENDT,
2008,350).

A importância de que Arendt dota a distinção entre natureza e principio de governo, se


dá pelo equacionamento entre ação e política no pensamento arendtiano. Em um ensaio
intitulado o que é a liberdade? Arendt identifica nos princípios - virtude, honra e medo
– como princípios motivadores da ação (ARENDT,2011,198). Arendt identifica a

3
Pour que lês hommes soumis à um type particulier de governement lui soient justement et durablement
soumis, Il ne suffit pas de la simple imposition d´une forme politique (nature), il fault encore une
disposition des homes à cette forme, une certain façon d´agir et de reagir qui soutienne cette forme.
política como a possibilidade de ação, e a manifestação dos princípios inerentes a cada
forma de governo seriam a própria manifestação da atividade política.
Os princípios de cada forma de governo estão intrinsecamente ligados, na leitura
arendtiana de Montesquieu, com a definição de lei como ligação entre entidades
diferentes. As leis representariam limites para a ação, como um elemento da condição
humana que é, segundo Arendt, imprevisível ilimitado e plural, portanto, as leis seriam
um limite que dotaria o corpo político de estabilidade, frente a instabilidade da ação Os
princípios das formas de governo, como motivadores da ação, se inscreveriam na lei
como limites á ação (AMIEL,1998,127)

(…) [Montesquieu] enxerga nesta estrutura de leis apenas uma moldura


dentro da qual os homens agem e se movem, como o fator estabilizante de
algo que é vivo e em constante movimento sem necessariamente se mover
rumo ao progresso ou ao desastre.4(ARENDT, 2007, 724)

A unidade entre a forma institucional de um governo – sua natureza – e seus princípios


mostra uma convergência entre as leituras de Arendt e Althusser. A relação entre o
principio e a natureza de governo é assim descrita por Althusser:

É preciso ressaltar que um corpo político dotado de uma natureza, mas sem
um principio é inconcebível e inexistente. Somente é concebível, de maneira
concreta, a totalidade entre natureza e principio das formas de governo. Esta
totalidade não é formal, pois não designa uma forma jurídica pura, mas uma
forma política entrelaçada com a própria vida, com as próprias condições de
existência e de duração do corpo político. 5(ALTHUSSER, 1992, 47. Trad.
Nossa)

4
(...) [Montesquieu] sees this structure of laws only as the framework within which people move and act,
as the stabilizing factor of something which itself is alive and moving without necessarily developing
into a prescribe direction of doom or progress .

5
Il faut dire : dans un gouvernement une nature sans principe est inconcevable et n'existe pas. Seule est
concevable, car réelle, la totalité natureprincipe. Et cette totalité n'est plus formelle, car elle ne désigne
pas une forme juridique pure, mais une forme politique engagée dans sa propre vie, dans ses propres
conditions d'exitence et de durée
Althusser, como Arendt, define os princípios das formas de governo não sob uma ótica
institucional, mas antes nascidos dos próprios homens unidos enquanto corpo político.
Althusser afirma ainda, que os princípios seriam condições sob as quais as formas de
exercício de poder tenderiam a se concretizar (ALTHUSSER, 1992, 46). De maneira
análoga, a teoria política de Arendt se orienta no sentido de que a ação – manifestada
nos princípios – origina a política enquanto forma institucionalizada.
Montesquieu traça a relação entre a lei e os princípios das formas de governo em termos
de atualização destes princípios: Esta relação das leis com este principio estica todas as
molas do governo, e o principio recebe disto, por sua vez, uma nova força. É assim que,
nos movimentos físicos, a ação será sempre seguida de uma reação (livro V, capitulo
1).
A atualização dos princípios através da lei manteria o que Althusser considera a
totalidade entre o principio e a natureza de uma forma de governo: as formas
institucionais de exercício de poder só seriam possíveis se as leis constantemente
estimulassem a manifestação destes princípios. Assim, a política enquanto
institucionalização do exercício de poder depende de leis que garantam que os valores
vigentes se mantenham.
A lei forneceria um fundo estável no qual os princípios da forma de governo – enquanto
princípios de ação - poderiam se manifestar. E enquanto princípios de ação, os
princípios de cada forma de governo dariam origem a resultados também imprevisíveis:
a manifestação de princípios faz com que o corpo político permaneça sempre em
mudança, a mudança, porém, não é em direção a um objetivo determinado – seja ele o
progresso ou o desastre. O ponto de vista de Montesquieu de uma história que não
caminha em direção a um fim definido é, segundo Althusser, diretamente ligado á
existência de princípios de formas de governo: os princípios das formas de governo,
como elementos dinâmicos não ditam um fim da historia, mas antes, movem o corpo
político (ALTHUSSER, 1992, 52)
Os princípios seriam, adicionalmente na leitura de Arendt, um critério de julgamento da
ação política ou guias para a ação política. Arendt afirma que:

Os princípios motores e norteadores de Montesquieu – a virtude, a honra, o


medo – são princípios na medida em que regem tanto as ações do governo
quando as do governado (...). O medo, a honra e a virtude não são meros
motivos psicológicos: são os critérios de condução e avaliação da vida
pública (ARENDT,2008, 350).
Arendt, ao descrever os princípios das formas de governo como motores e norteadores, afirma
os princípios como uma medida política. Os princípios, portanto, são diretamente responsáveis
pela consolidação da natureza das formas de governo. É possível observar uma convergência
com Althusser, ao afirmar a totalidade entre natureza e principio das formas de governo. (ref)
A lei, ao fornecer uma estrutura estável aonde é possível aos princípios de ação se
manifestarem, gera outra questão pertinente ao pensamento de Arendt: a distinção entre
a esfera pública, aonde ocorre o exercício da política, e a esfera privada. Os princípios
das formas de governo enquanto motivadores da ação e guias da ação política, exercem
uma influencia política, no entanto, têm sua origem no âmbito privado.Sobre esta
relação entre esferas pública e privada, Amiel afirma que:

Segundo Arendt, Montesquieu compreende que a lei não faz mais do que
traçar os limites que delimitam uma esfera diferente, não pública, de onde
provêem as fontes da ação e do movimento, distintas das forças estruturais
que são as leis com suas funções estabilizantes. A oposição entre esferas
pública e privada levaria a pensar que existe, ou deveria existir, um terreno
comum, mais profundo, de onde se origina a esfera pública e a esfera
privada. Um terreno comum de onde deriva a essência do governo e o
principio da ação, que ancora ambas as esferas e de onde brota o principio da
ação, a experiência subjacente que fundamenta ambas as esferas. 6(AMIEL,
1998, 128. Trad. Nossa)

Assim, os princípios como critérios de cada forma de governo como critérios à ação,
como os define Arendt, brotam do homem como individuo (ARENDT, 2008, 354) e
influenciam diretamente a esfera da política. Os princípios das formas de governo, como
descritos por Montesquieu, ao invés de exporem a oposição entre público e privado,
deixam visível a interposição das duas esferas por ser um terreno comum entre o homem
individuo e o homem cidadão (ARENDT, 2008, 354).

6
Selon Arendt, Montesquieu comprend donc que la loi ne fait que tracer des frontières qui délimitent une
sphère diVérente, non publique, d’où proviennent les sources d’action et de mouvement distinguées des
forces structurelles que sont les lois avec leur fonction stabilisante. L’opposition entre sphères publique et
privée l’amènerait à penser qu’il y a, ou devrait y avoir, un terreau commun plus profond d’où ces deux
éléments tirent leur origine. Un terreau commun à l’essence du gouvernement et au principe qui
commande l’action, celui dans lequel la structure se trouve ancrée et d’où jaillit la source de l’action,
l’expérience sous-jacente, fondement des deux
Sob a perspectiva de Arendt, de que os princípios de governo são guias para a ação, a
corrupção dos governos despóticos é conectada ao medo como guia de ação. No livro
oitavo de O espírito das leis, Montesquieu descreve a degeneração dos princípios de
cada forma de governo e esta descrição apresenta as características especiais do governo
despótico.
Se a degeneração nas democracias ocorre, segundo Montesquieu, ocorre pela
exacerbação do sentimento de igualdade que norteia esta forma de governo – a
igualdade não se é a igualdade entre governantes e governados, mas a firmação de que
os governados devem possuir mais poder – e a degeneração na monarquia ocorre
quando a busca da distinção que caracteriza o princípio desta forma de governo não é
mais limitada pelas leis, Montesquieu afirma que a degeneração no despotismo é
singular:
O principio do governo despótico corrompe-se incessantemente, porque ele é
corrupto por natureza. Os outros governos perecem porque acidentes
particulares violam seu princípio; este perece por causa do seu vício interior,
a não ser que causas acidentais impeçam seu princípio de corromper-se.
(MONTESUQIEU, Livro VIII, capítulo 10)

Assim, o despotismo é fadado à corrupção, e, prossegue Montesquieu, somente fatores


externos previnem a corrupção dos governos despóticos. A forma republicana e
monárquica, ao contrario, se corrompe em face a circunstância externas.
Arendt analisa essa corrupção inerente ao medo como principio de governo como sendo
o medo o que impossibilita a ação:

O medo, princípio inspirador da ação na tirania, está fundamentalmente


ligado àquela ansiedade que sentimos em situações de completo isolamento.
(...) O medo como principio da ação é, em certo sentido, uma contradição em
termos, porque o medo é o desespero pela impossibilidade de ação
(ARENDT, 2008, 355-356).

A impossibilidade de ação frente ao medo se liga à teoria política de Arendt: a ação


exige um compartilhamento do mundo, exige a presença de outros. O medo nasce do
isolamento presente na tirania, e assim impossibilita a ação.

A Separação de Poderes

A separação de poderes proposta por Montesquieu, em executivo, legislativo e


judiciário, é lida sob uma perspectiva original em Arendt: Arendt dialoga com
Montesquieu não em busca de uma explicação para o mecanismo de instituições
políticas, mas na busca pelo entendimento do conceito de poder e na articulação de
poder e liberdade (AMIEL, 1998, 137 )
Para se compreender esta leitura arendtiana é preciso se deter brevemente no que Arendt
compreende por poder. Em A condição humana, Arendt afirma sobre a natureza do
poder:

O poder é sempre, como diríamos hoje, um potencial de poder , não uma


entidade imutável e mensurável como a força [force] e o vigor [strenght].
Enquanto o vigor é a qualidade natural de um individuo isolado, o poder
passa a existir entre os homens quando eles agem juntos, e desaparece no
momento em que eles se dispersam (ARENDT, 2010, 250).

O poder pode ser entendido, segundo Arendt, como a ação em conjunto: a ação
concretizada por um conjunto de indivíduos no espaço público. O poder, portanto, não
se identifica com a coerção- não política, isto é, não conectada à capacidade de discurso
presente na política= capaz de ser exercida por um individuo isolado e não é
identificado com a violência. O poder está presente exclusivamente nas atividades
políticas exercidas em conjunto: na ação e no discurso concretizados coletivamente.
Cabe enfatizar, na definição arendtiana de poder, que o poder é incompatível com a
violência, sendo esta ultima uma atividade que nega o viver em conjunto – através do
discurso e da ação na esfera pública. A violência, na concepção de Arendt, é apolítica.
Tendo em vista que o poder se manifesta na ação em conjunto e que o poder é
indissociável da violência, Arendt enxerga a teoria da separação de poderes como um
instrumento de manutenção do poder. A partir da firmação de Montesquieu de que para
que não se possa abusar do poder, é preciso, pela disposição das coisas, que o poder
limite o poder (MONTESQUIEU, Livro XI, capitulo 4), Arendt afirma que a descoberta
de Montesquieu foi a respeito da natureza do poder:

O poder só pode ser refreado e ainda continuar intacto pelo poder., de forma
que o principio da separação de poderes oferece efetivamente uma espécie
de mecanismo, embutido no próprio núcleo do governo, que, pirem, não é
capaz de crescer e se expandir em prejuízo de outros centros e fontes de
poder (ARENDT,.2011b, 200).

Arendt afirma que a teoria da separação de poderes apresenta uma características do


poder: o poder só pode ser limitado por mais poder, isto é, a possibilidade de agir em
conjunto – e a ação carrega imprevisibilidade e é ilimitada – só pode ser contida, na
medida em que em que se abre outras possibilidades de ação. Se trata da limitação da
ação pela ação. De fato, Arendt reconhece nos três ramos descritos por Montesquieu –
o executivo, o legislativo e o judiciário – as três faces da ação política: a deliberação, a
execução e aplicação de leis e assim, cada um destes ramos é limitado pelos outros dois
(ARENDT, 2007 722 ).
A teoria da separação de poderes também oferece elementos para a definição de poder.
Arendt afirma que [O] poder pode ser dividido – seja entre os ramos do governo seja
entre os estados federados seja entre estados federados e o governo federal- porque
não é um instrumento para ser aplicado a um fim (ARENDT, 2007, 722. Trad Nossa) 7 .
O poder não é uma ferramenta que se utiliza quando se deseja atingir a um fim – o que
pode ser entendido através da conexão entre poder e ação – e, portanto, pode ser
dividido sem oferecer risco para um suposto objetivo.
Finalmente, a partir de Montesquieu, Arendt traça a ligação entre poder e liberdade. A
liberdade segundo, Montesquieu só pode consistir em poder fazer o que se deve querer e
em não ser forçado a fazer o que não se tem o direito de querer (MONTESQUIEU,
Livro XI, capítulo 3)
A liberdade política é assim identificada com o conjunto de leis da sociedade, ou,
segundo as palavras de Arendt, a liberdade política é identificada com o eu-posso e não
com o eu-quero (ARENDT, 2011, 202.) isto é, a liberdade política não é um atributo da
vontade, mas a possibilidade de ação dentro da moldura legal que mantém o corpo
político.
Desta forma, a teoria da divisão de poderes possibilita a ação, enquanto a lei representa
um limite á imprevisibilidade e a ilimitabilidade da ação. Desta forma, a liberdade
política se concretiza em um espaço público aonde o poder pode se manifestar e ao
mesmo tempo apresenta uma estrutura legal que mantém o corpo político frente à ação.

Considerações finais

A leitura de Montesquieu sob a perspectiva de Arendt apresenta uma diferença


fundamental em relação á outras leituras: Arendt nega que a definição de lei de acordo

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Power can be divided – between the branches of government as well as between federated states and
between states and federal governments – because it is not one instrument to be applied to one goal.
Montesquieu tenha relação com uma visão newtoniana da política. Considera-se que
Montesquieu buscava o equilíbrio na esfera político primordialmente influenciado pela
ciência. No entanto, Arendt sustenta que Montesquieu é um representante da tradição do
pensamento político que remonta á antiguidade clássica, assim Montesquieu resgata a
política tal como se apresenta na polis grega e, mais importante, na república romana.
Situando Montesquieu nesta tradição, Arendt encontra em O Espírito das leis uma
grande influencia na refutação da soberania e na definição da política como a atividade
centrada essencialmente no discurso e na ação. No livro Sobre a revolução. Arendt, ao
descrever a influencia de Montesquieu na construção de um novo corpo político após a
independência dos Estados Unidos , afirma que:

(...) a grande – e a longo prazo talvez a maior – inovação americana na


política como tal foi a abolição sistemática da soberania dentro do corpo
político da republica, a percepção de que, na esfera dos assuntos humanos, a
soberania e a tirania se equivalem (ARENDT, 2011b, 202).

Ao contrastar a revolução francesa com a independência americana, Arendt afirma que


a primeira buscou, no nascimento de um novo corpo político, um novo absoluto para
legitimar as novas leis: um elemento de autoridade e poder que substituísse a antiga
monarquia. A busca deste absoluto resultou na aceitação da vontade geral como um
substituto para o regime monárquico.
Arendt afirma que a influencia de Montesquieu na fundação americana. Ao contrário,
permitiu que não se buscasse um absoluto, mas se construísse o corpo político sob as
leis como relações e se levasse em conta a relação do poder com a ação e do poder com
a liberdade. Assim Arendt opõe Rousseau a Montesquieu, justamente no papel que a
soberania desempenharia em um corpo político.

Bibliografia

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