Você está na página 1de 66

Copyright © Editora Patuá, 2016.

Não © Bruna Mitrano, 2016.

Editor
Eduardo Lacerda

Ilustração, Projeto gráfico e Diagramação


Leonardo Mathias | flickr.com/leonardomathias

Assistente Editorial
Ricardo Escudeiro

M679n Mitrano, Bruna.

Não. / Bruna Mitrano.

São Paulo: Patuá, 2016.

ISBN 978-85-8297-326-4

1. Poesia Brasileira. I. Título.


CDD – 869.91

Índice para catálogo sistemático:

1. Poesia Brasileira. I. Título. 869.91

Todos os direitos desta edição reservados à:

Editora Patuá
Rua Manuel Luiz de Araujo Costa, 287 – Casa 1
CEP 03280-020 São Paulo – SP Brasil
Tel.: (11) 2216-0407 / (11) 974928378
www.editorapatua.com.br
Os poemas, as ilustrações-poemas de Bruna Mitrano nos
dão um acesso à poesia que perpassa o mundo e a realida-
de; esse acesso nos remete a momentos do próprio mundo
interior das vozes poéticas que retratam um ser que é também
um coletivo com suas perdas, desejos, glórias. Com seu NÃO.

A linguagem é um campo de paina, mas também trin-


cheira da poeta que com seus tubos da mais pura poesia-
-molotov, opera novas maneiras de estar no mundo e fazer
dele um lugar melhor para si, o mundo em que habita e as
gerações que ainda virão. Mas não nos deixemos enganar:
a linguagem é uma autônoma, sem pretensão de carregar
quaisquer funções preestabelecidas. Aliás, nada aqui é pre-
estabelecido. A poesia é que é essencialmente positiva na
nossa relação com o mundo. Não são - oxalá! - palavras bem-
-arranjadas na estante, mas palavras-potências que nascem,
vivem, morrem e estão prontas a ressuscitar a cada leitura.

Temos na micropolítica desse livro um conjunto de for-


ças sociais que atuam numa vida singular e traz, portanto
uma dimensão política: gestação infinita/ o filho podre a filha
cerca viva/ meu útero arregaçado expelindo medo em sangue/
porque é meu horror que gero –/ sei me ferir.

Essa micropolítica do poema, a opção de resistência in-


terna, tática de guerrilha linguística da poeta que faz, mais
que a poeta que diz. Sem entregar-se a outro discurso em
meio a discursos, mas empreendendo um curto-circuito no
discurso por uma ação; o poema-filho que despedaça com
uma dança a mesa da autoridade, quando o espelho do dis-
curso da linguagem-pai pelo filho mal arranhou-lhe a su-
perfície da tábua.

Qualquer palavra a favor do livro seria um embuste: ele


existe e vive por si. Podemos, contudo lançar algumas cha-
ves de leitura para, além de sentir, pensar a poesia que se
desdobra para além do livro:
• Os poemas e as ilustrações-poemas gritam a coesão ori-
ginária entre poesia & política.

• O gesto poético já é, e desde sempre, político. A poesia


é uma insólita. Seu sentido se faz outro, reclama um outro
e é arma contra a barbárie.

• Bruna Mitrano não nos deixa esquecer a máxima


barthesiana que nos diz que a poesia é a prática da sutileza
num mundo bárbaro; não nos deixa esquecer a máxima
nietzschiniana: se o tempo é sombrio, a poeta pensa contra
o seu tempo em nome do tempo por vir.

• A política está à altura de sua coesão originária com a


poesia? Nossa política está à altura de um poema como: o
garoto corre de chinelo,/ depósito de ânsias apreendidas ou/
ainda a convulsão de quem nada tem./ olhos graves lama-
-mangue/ na cara preta salpicada de farelo de biscoito./ o ga-
roto tão pequeno já sabe andar de ônibus –/ livrai-nos do mal,
mãe, dá conta santificada de seus filhos/ e o bebê carrega sobre
a barriga redonda como se nunca tivesse saído –/ sozinho:/ um
homem construiu sua casa com as próprias mãos./ demoliram
a casa e ergueram um muro.

Temos aqui uma poesia que cinde a realidade mais ter-


rível, reconfigura o próprio modo de pensar e entender
a realidade, admitindo a heterogeneidade do pensamento e
sua constante maleabilidade a partir dos códigos e valores
que se constroem e se partilham socialmente; temos então
o poema, as ilustrações-poemas como armas, jogos de saber
que confere uma lógica causal a uma ordenação de aconte-
cimentos próprios de tempos sombrios – e todos os tempos
são sombrios –, e muito próprios da casa da linguagem.

Essas sutilezas mitranianas nos permitem penetrar um es-


tar poético sem aquele blábláblá hipócrita cristão-burguês-
-bem-comportado, um estarpoesia: um estar poesiar-se em
um mundo de seres livres, seres poesia.

Nina Rizzi, nos nãos-da-linguagem,

julho, 2016
11

abro minha guerra.


estou na sua frente.
me olha.

NÃO
13

na estrada de terra
da cidade vazia
a criança preta empunha um pedaço de pau.
ela está nua e vê-se um corpo tão prematuro
quanto ruínas.
a boca intumescida da criança preta gutura
morte ao rei!
e na aridez inalcançável dos pés descalços
resiste
a criança tão criança e velha,
sozinha e livre –
o sino da igreja abandonada toca todo dia na hora errada.

NÃO
Bruna Mitrano

cabeças moles, ferrugem nos cantos dos dentes, mães cansa-


das de trabalho e crianças pirracentas, gritos, eu lembrava
da sua mão na coxa da mulher de azul, um azul limpíssimo,
tanta vida inútil nesses dias, e a noite longa demais pra lem-
brar da sua mão naquelas coxas, limpíssimas, disseram que
preciso dormir, eu rindo sem beira porque falavam de uma
mulher que fingia ser só, que coisa triste, os seus olhos nas
suas mãos naquelas coxas, e eu, a mulher que lembrava, no
banheiro, tirando a roupa, com a velha assustada, num ba-
nheiro limpíssimo, me lavei na pia, porque eu fedia, por to-
dos os buracos, eu fedia de sujeira e raiva e então, de cara
limpa, a despedida explicando que estava tarde, você sor-
rindo sem tirar as mãos daquela coxa, enquanto eu, eu pin-
gava, por todos os buracos, antes da volta, o show de horro-
res. lembrar.

14
15

quando ela fechou as pernas


a cigarra estourou de gritar
vinha de dentro
um silêncio que não se quisesse ver
um cabelo bruto
uma coisa boa macassá
quero me enfiar nele
naquele silêncio –
um bicho se olha pro outro enquanto come, é sobrevivência
não é competição.

NÃO
Bruna Mitrano

puta que pari um bicho morto


risco indócil na coxa
barulho oco dos coágulos esbofeteando a água da privada
estilhaços imagens
o enquadramento impreciso
aparar as arestas até triturar os ossos do rosto
as unhas perfuram lentas a boca grande calada
é preciso fugir pelas beiradas
sem alarde

16
Bruna Mitrano

gestação infinita
o filho podre a filha cerca viva
meu útero arregaçado expelindo medo em sangue
porque é meu horror que gero –
sei me ferir.

18
Bruna Mitrano

arranca¹

1
Publicado originalmente sob o pseudônimo Ana Criolina.

a carranca me rindo
eu
em queda livre desde às cinco da tarde
língua solta que soca o asfalto
vendo
a tragédia pronta pra despacho
um bicho baixo se esgueirando
um colchão largado na calçada
vão queimar a vida!
vão queimar a vida!
deceparam os pés aninhados
atearam fogo –
os amantes de rua
mutilados
dançam sobre a brasa.

20
Bruna Mitrano

rasgava a camisa com os dentes


a raiva desnudada de pavor
e se deixava à beira –
como adestrar a mão convulsa?
o mijo morno entre as cobertas era como peitos grandes pietá
aninhava-se no turbilhão do que era
reconhecia
seu corpo
erguendo à boca a própria armadilha
e lembrava das frutas que nasceram podres
as que nasceriam pra sempre.

22
Bruna Mitrano

o garoto corre de chinelo,


depósito de ânsias apreendidas ou
ainda a convulsão de quem nada tem.
olhos graves lama-mangue
na cara preta salpicada de farelo de biscoito.
o garoto tão pequeno já sabe andar de ônibus –
livrai-nos do mal, mãe, dá conta santificada de seus filhos
e o bebê carrega sobre a barriga redonda como se nunca
[tivesse saído –
sozinho:
um homem construiu sua casa com as próprias mãos.
demoliram a casa e ergueram um muro.

24
Bruna Mitrano

em toda alteridade, resta um pouco de fim. o outro que não


reconheceu o instante seguro espreme agora o corpo dor-
mente entre os escapes. fomos o velho que espera e ainda es-
pera quando percebe que nada houve. e no entanto, sob so-
pros de incensos dramaticamente doces, as caras amarelas
do depois dispensam qualquer desaforo. sísifos num desgas-
te eterno – existe algo que te impede de acabar, todas as
quintas. por um milagre de distâncias, por um grito de não,
em resposta a, restará alguém, absorto em paredes brancas,
mas ainda assim alguém que não se encontra ao acaso. ama-
nhã fará dia, pois o recomeço prescinde de guerras e tufões
e pisando em ovos esperamos uma resposta aguda, a minha
mão fria nas suas costas brandas ou nossos discursos pobres
em algum café.

26
27

choque
uns passos
segundo plano
acho que vi um milagre!
acho que vi!
as mãos estavam vazias
quando o homem louco
aos berros no meio da rua
esclareceu
o último gole
a raiva ainda alinhada –
é difícil, ele disse,
morrer.

NÃO
29

ainda falava em reparação


o nariz bicando a asa de frango frita
boca e mãos luzindo engorduradas –
meu bem, seu amor é patético ao meio dia.
e a cara amarela desde a manhã
se havia
um grito vinha da cozinha
geladeira velha
bebo água e a voz grave do vizinho me treme
outro copo quebrado
varro mal
esqueço e
ah esse calor terrível
deito no chão –
você acha que vai chover?

NÃO
Bruna Mitrano

bomba-relógio 6h levanta lava a cara duas vezes envelheceu


muito esse ano banho rápido roupa pronta engole o café e sai
o sol a gente sustos dorme chega gritos é assim a molecada
espera na fila sala de aula arrastam cadeiras o giz no qua-
dro formiga a gengiva cinco tempos morre com farofa ao
meio dia almoça naquela pensãozinha xexelenta mas tem pa-
pel no banheiro volta a mesa grande cadê os óculos médias
faltas tá na hora anda torto a pasta pesa e cai no meio do
corredor revoada os papéis escapando das mãos gritos é as-
sim bomba-relógio falta pouco pro fim do dia pouco pro fim
do mês $ pouco pro fim do ano quanto pro fim da linha con-
ta nos dedos.

30
31

ela pediu pra eu não enlouquecer


parei de tomar os remédios pra tentar ser gente
mas uma chuva forte caiu
era janeiro
e me escorreguei
perdi o senso
disseram
é temporário
os tremores noturnos
a matriz de uma ânsia descabida
os rostos na janela
todas as noites
os rostos que catequizam as janelas
nas casas sem muro
não há o que se ver que não sobrecarregue a carne
o corpo ainda sente
curva-se ao inevitável
tomba no meio da rua e conclui

NÃO
Bruna Mitrano

não se dá as costas pra morte


há sempre um diagnóstico
preto no branco
vou morrer de tempo ou
vou fazer o quê?
re:___________________.

32
Bruna Mitrano

verão

na calçada, ela e as crianças. calor de cozinhar lá dentro, o


ventilador parou. o menor todo torto no colo, mosquito pe-
ga. final do ano, ah, ventilador de teto. teto daquele jeito,
vazamento na casa de cima. os homens consertando. corta a
unha da menina, tesoura de costura. copinho descartável en-
tre as coxas, água oxigenada e amônia. o vizinho chega, pão
e a margarina, foi rápido, de bicicleta. caneca descascada no
chão, café, garrafa térmica amarelenta, café forte. o marido
parece até que sente o cheiro de longe, tá molhado de man-
gueira, bebe sem açúcar, de pé, copo americano. sempre ma-
gro, o marido, ela não entende. o maior solta pipa. céu co-
lorido, vento bom. os moleques da rua de trás cortam todo
mundo, o maior xinga sozinho, ela grita ele, ele tem que
comer, essa merda custa dinheiro. o maior acena e ela ri, um
dente faltando, vai ao dentista qualquer dia, desdentada não
consegue emprego, ela é boa de serviço. a espuma branca
dentro do copo, ela esfrega na perna. a menina descoloriu
o cabelo, faz sucesso, já namora. a gente cria filho pro mun-
do, a vizinha diz. ela tem medo, deus proteja, tanta desgraça.

34
35

o menor dorme, mamadeira na mão, suco de groselha, pin-


ga no peito. é grande pra mamadeira, não larga, vai ficar
bicudo. baixa o sol, a cigarra grita, hora dos cupins, corre pra
fechar a janela. suor. escorre na frente da orelha, salpica o
buço, mela o sovaco, molha até o cóccix. cheiro de café, chei-
ro de suor. final do ano, ah, ventilador de teto.

NÃO
37

tem espinhos na língua.


o encontro é quando lambe o racho da minha sola.
até que o primeiro lapso nos levante às pressas –
ensacamos entulhos com sutilezas de rancor.
nada que despossuímos sobrevive ao que gestamos.
é nesse escuro lúcido que soldamos as carnes?
sim, estaremos sempre sozinhos –
guardo nossos segredos com muitas mãos,
seu sangue seco nas minhas coxas.

NÃO
39

ele dormia de bruços e sempre antes de mim. eu o olhava


inteiro, esparramado, e friccionava as unhas curtas em suas
costelas. lembro, tanta coisa mal-acabada meus músculos re-
traídos resguardavam quando o suor deixava escapar a febre
fraca daqueles primeiros dias. (na ponta da língua, a resposta
do corpo me fazia acreditar que o que nos prendia um ao
outro não era apenas necessidade, mas algo que trazíamos
debaixo da pele). em que eu fechava os olhos, mesmo sabendo
que aconteceria outra vez, o pesadelo, e que ela apertaria meu
braço e repetiria, a voz débil, ‘vai passar’ – aquilo que me in-
quietava a incomodava, ela sentia raiva e perdia o sono. ele
dormia, como se não tivesse a certeza de que aconteceria
outra vez, o pesadelo, e que eu apertaria seu braço e repe-
tiria uma frase qualquer – a voz maternal carregada de preo-
cupação e raiva. por isso, ao levantar, eu evitava abrir a boca,
da qual certamente escorreria meu medo, e cuspia na pia do
banheiro umas placas marrons e rugosas, lodo acumulado du-
rante a noite, palavras turvas escoando pelo ralo. de manhã,

NÃO
Bruna Mitrano

acordava sem aflição na cara, o suor seco, me dava um bom


dia desatento e, evitando conversa, preparava o café, seu jei-
to de me pedir pra ficar. de olhos meio abertos, eu dava um
bom dia distante e, segurando o grito, o pedido que não pude,
preparava nosso café, antes de tudo desabar.

40
Bruna Mitrano

deito, abro as pernas em pássaro e curvo a cervical pra, da-


qui, te ver. no centro, os lábios úmidos do animal todo boca
devoram a sua imagem diminuída pela máxima distância su-
portada – sobre o corpo inerte, não obstante o grito esmur-
rar a película que encobre o peito, no golpe extático da pe-
quena morte, dançam o líquido branco espesso e meus muitos
coágulos – emaranham-se, escorrem. as mãos, não soltamos.

42
43

firmava os pés no chão enquanto varria, mecanicamente, os


cacos de vidro. era a primeira vez que não se arrependia dos
gritos, do murro na porta, de mais um copo atirado contra
a parede. estava sozinha, reconhecendo suas frustrações, a
parcela de si não compartilhada, e já não lhe importava o
lado de fora – algo haveria de se perder, sempre, no vácuo
entre duas mãos sobrepostas. em minutos, um vizinho so-
lidário invadiria sua sala e, com tiques de pardal, exploraria
cada canto, procurando marcas da Louca, até finalmente per-
guntar tudo bem? e ela responder, sorrindo, que sim.

NÃO
45

eu deitada em desmanche e você de pé, distante, cabeça cur-


vada triplicando o queixo, um embaço e eu não reconhe-
ceria, não fossem as pernas abertas, os pés roçando meu
quadril, seu pau ao centro tomando proporções desmesura-
das, um pau maior que o corpo, maior que eu, que sangro e
sangro muito, e meu sangue é vivo porque é sangue de quem
se aborta, é sangue de quem implodiu e é arrancada a fór-
ceps, eu que por precaução não desvio os olhos do seu pau,
um deus que impele a ser tocado com terror mas, se não me
restam mãos, olho, você se masturba com ódio de si, eu que-
ro fechar os olhos pra não amar o seu ódio de si, consegue
enxergar meu asco agora? sua cara de domingo cozinhando
arroz integral, se eu dissesse que existir tem sido insuportá-
vel, me mataria? você diz que foram minhas somente mi-
nhas alucinações, mas já não acredito na verdade do seu cor-
po e por isso não deixo de te olhar com olhos enormes, apa-
vorados, olhos que não posso fechar, olhões você disse tão
grandes, menores que esse medo que arrebenta a carne em
gritos, gritos que não chegarão até você, de pé, distante, co-
mo um deus ou tormenta.

NÃO
47

você não sabe se enxugar,


eu disse rindo.
das suas pernas encharcadas brotavam poças escuras
que no corredor escuro
pareciam buracos –
eu não desviava,
espalhava seus abismos.
até que ficava insuportável te ver escorrer
e eu me agachava e lambia dos seus extremos até o pé,
a língua desmoronando em cada dobra,
enquanto você ardia por toda a dor do mundo.

e foi por ela,


foi por toda a dor do mundo
que chorei em seus pés
e supus as linhas do seu rosto quando minhas águas,
lágrimas, coriza, bichos,
tanto amor,
amornaram seus dedos.

NÃO
49

odeio refrigerante mas


bebi coca cola
só pra fazer sentido.

nada de bom ou terrível aconteceu hoje.

NÃO
51

os bodes amam as telhas que os protegem dos temporais. os


cornos, não usamos quando estamos sós. as casas que nos
aniquilam, nos dias inevitáveis, engendram resistência aos
ossos. ferramentas com que cavoucamos as várias camadas
de tinta das paredes, em cômodos, vejo, vazios – deserdamos
uma última cor e os suores que imprimimos nela.
as armas que nos feriram, não usaremos mais.

NÃO
Bruna Mitrano

a mão aberta, vulnerável, atirada, como se de fora do corpo,


à parede, repetidas vezes, tal o recém prisioneiro implorando
pela liberdade.
não é abrir mão, você disse,
são escolhas.
escolho ficar,
eles que sigam sem mim.

52
Bruna Mitrano

as pontas dos dedos estalam na superfície sólida da água e


a carne lateja alegre diabólica enquanto a fatia gorda dança
severamente aos aplausos do cego que com olhos de não ver
tateia os gemidos riscados no chão

quem cai na gira não levanta


diz aos gargalhos
a santa de vidro quebrou cedo
olho daqui os pedaços como quem não olha
tem um sorrisinho antagônico
hipocrisia mordaz nas palavras rasas
comiseração e deboche
olho de boi morto.

54
55

roçar a língua na ferida não cicatrizada dum desconhecido


que não se presta a gemidos mas sustenta os olhos de pavor
diante do inevitável de ser bicho insano galopa arrefece no
subsolo da cidade de cal
penetrar a ponta da língua nas substâncias quentes fluidas vivas
- exercício de libertação -

NÃO
57

houvesse a negativa
a rouquidão da mãe
seu dorso
os pelos revolvidos
aqueles dedos talvez
mas duas ou três historinhas mixurucas
e o oitavo branco esquimó.

gelo na língua: a cara lisa, lagrimando brasa, em riso esquizo


cacarejento estala, essa dor do cão!

NÃO
Bruna Mitrano

amarra pendura deixa pingar


que a terra seca apaga a última gota –
a galinha me olha de um olho só
ciclope de ladinho frango assado papai e mamãe
e o açougueiro gargalha
se sacode todo mole
tem larva na carne fresca e
não tem graça nesse lugar.

58
Bruna Mitrano

a impertinência da cura.
arrancaram meus caninos,
tenho as gengivas suturadas à mostra.
de medo: tormenta

[mãos de pólvora afagando o fogo]

60
61

habitat¹

1 Publicado originalmente sob o pseudônimo Ana Criolina.

um equívoco,
sangro.
o visco vermelho é larva na carcaça apodrecente do homem,
diz vontade,
entre minhas pernas –
sol no corpo flácido de sono.
estica o pescoço e a boca cansadafaminta,
bicho, lambe –
da língua à pele,
estala uma baba espessa.
entreabertos, os lábios imensos:
a gota incólume
na dobra esgarçada
parece amor.

NÃO
63

dois pra lá

gargalhou outra vez sem motivo.


tivesse língua,
lamberia o bico da 38 spl carregada,
pra deixá-la ainda mais aguda,
a noite.
ela,
morreria já a essa hora?
danço.

NÃO
Esta obra foi composta em Minion Pro
em setembro de 2016 para a Editora Patuá.

Bruna se pariu num estrondo vermelho. Estilhaços placentários

tomaram a disforma de almas pretas, loucas e descalças que dançam

eternas nas beiras da escuridão. O útero da_Brupta bulindo

por dentro do som primordial é o Não que se afirma.

Tiragem de 100 exemplares

Você também pode gostar