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Peter Handke
Título original: Nachmittag eines Schriftstellers
© 1987 by Peter Handke
Tradução: Reinaldo Guarany
Editora Rocco
Rio de Janeiro
1ª edição: 1993
ISBN: 9788532503909
Contracapa
Orelhas
Terminada uma manhã de luta em busca da palavra certa, aquela
que teria o dom de ser a chave para a criação, passado o sofrimento de
tentar preencher a página em branco, o escritor levanta-se de sua
escrivaninha, deixa sua casa e segue, através de pátios, praças e vielas,
a caminho do centro da cidade. Não é um passeio banal. Nesse
percurso, olhos abertos para ver tudo, objetos e pessoas, como se fosse
a primeira vez, o escritor faz duas viagens paralelas: uma, exterior,
que lhe permite estar face a face, em plena rua, com possíveis leitores
ou críticos, a corporificação do mundo que é o exato oposto do seu;
outra, interior, em que ele disseca o que é, para ele, o ofício que
escolheu para si. O que significa viver da e para a arte.
Numa narrativa em que a enganosa simplicidade das situações
mascara o sofrimento e a dúvida embutidos no ato de criar, Peter
Handke faz de A tarde de um escritor uma obra de inquietante beleza.
Perseguindo as palavras, desmontando-as para formar novos
vocábulos, provando a cada passo que é possível extrair imagens
sublimes do cotidiano mais prosaico, Handke produz um livro
fundamental para quem quer que se sinta irremediavelmente atraído
pela escrita e disposto a servi-la por toda uma existência.
O Autor
Desde aquela vez em que ele conviveu durante quase um ano com
a sensação de haver perdido a intimidade com a palavra, cada frase
que escrevia, e lhe despertava o impulso de uma possível continuação,
tornou-se para o escritor notável. Cada vocábulo que conduzia a
outro, não verbalmente, mas por escrito, fazia-o respirar fundo e
trazia-o de volta ao mundo; para ele o dia só começava
verdadeiramente se houvesse uma anotação feliz, uma inspiração que
lhe permitisse chegar à manhã seguinte; ou, pelo menos, era isto o que
se dizia.
Mas será que esse medo da paralisia, do não poder seguir em
frente e até mesmo da ruptura definitiva, não estivera presente toda a
vida, não apenas no que dizia respeito ao ato de escrever, mas
também em todas as outras ações: o amor, o aprendizado, a
participação — tudo, em absoluto, que exigisse o ater-se à coisa ela
mesma? Será que o problema de sua profissão não lhe oferecia a
metáfora do problema de sua existência e lhe mostrava, com exemplos
evidentes, como tudo estava disposto? Quer dizer, não ”o eu
enquanto escritor”, mas sim ”o escritor enquanto eu”? E será que ele
não se levava a sério como escritor desde aquela época em que
pensara ter cruzado, sem possibilidade de retorno, a fronteira da
língua, com o risco do consequente recomeço dia após dia — logo ele
que usava a expressão ”escritor” no máximo de maneira irônica ou
constrangida, apesar de haver passado mais de metade da vida com o
pensamento posto no ato de escrever?
E agora, com a ajuda de algumas linhas através das quais ele
esclarecera um fato e se animara, parecia que de novo havia
transcorrido um desses tais dias, e o escritor ergueu-se de sua
escrivaninha com a sensação de que a noite estava chegando. Não
sabia que horas eram. Em sua mente, no entanto, os sinos da capela do
asilo de velhos, no sopé da pequena colina, tinham acabado de soar o
meio-dia, com dobres súbitos e soltos como se alguém tivesse
morrido; deviam ter-se passado algumas horas, pois a luz no quarto se
havia transfigurado em luz da tarde. Do tapete do chão erguia-se um
brilho, que ele interpretou como um sinal de que havia encontrado
seu ritmo no trabalho. Levantou os braços e reclinou-se sobre a folha
enfiada na máquina. Ao mesmo tempo, como costumava ocorrer com
frequência, ele concentrou-se na ideia de, no dia seguinte, não tornar a
mergulhar nessa atividade, mas, ao contrário, utilizá-la como abertura
dos sentidos: a sombra de um pássaro que tremulava na parede, ao
invés de desviar sua atenção, deveria acompanhar o texto, tornando-o
transparente, assim como o latir dos cachorros, o zunzunar das serras
a motor, os ruídos da troca de marcha nos caminhões, o martelar
constante, os incessantes gritos de comando e o trinar de apitos nos
pátios da escola e da caserna lá embaixo, na planície. Como em todos
os dias anteriores, ocorreu-lhe, então, que nas últimas horas havia
chegado até ele, na escrivaninha, o som das sirenes dos carros de
polícia e das ambulâncias da cidade inteira, e que ele nem uma única
vez desviara a cabeça do papel para a janela, como fizera pela manhã,
ao concentrar-se na contemplação de um tronco de árvore no jardim,
no gato que o olhava desconfiado lá fora, no painel da janela, nos
aviões comerciais no céu, que aterrissavam, no seu campo visual, da
esquerda para a direita, e decolavam da direita para a esquerda.
Assim, sempre o seu primeiro foco era o nada ao longe, de modo
que até mesmo o desenho do tapete lhe surgia como que apagado,
enquanto nos ouvidos havia um zumbido como se a máquina de
escrever fosse elétrica — o que não era o caso.
O local de trabalho do escritor, sua ”casa dentro de casa”, situava-
se no primeiro andar. Atordoado, foi até a cozinha com a xícara de chá
vazia na mão, e no relógio em cima do fogão viu que o dia não duraria
muito mais. Era início de dezembro e as arestas dos objetos brilhavam
como no momento que antecede o crepúsculo. Ao mesmo tempo, a
atmosfera lá fora e o interior da casa, sem cortinas, pareciam formar
um tecido único de claridade Ainda não havia nevado esse ano. Mas,
aquela manhã, um certo canto dos pássaros — tênue, um gritado som
monocórdio, anunciara a neve. O escritor estava bem na luz que aos
poucos lhe devolvia os sentidos e que o atraía para fora, para o ar
livre. Até então, todos os dias em que havia saído da casa com a
chegada da escuridão, ele tinha sentido falta de alguma coisa. Era
estranho que justo alguém com sua profissão sempre se sentisse mais
à vontade ao ar livre.
Primeiro, ele recolheu no chão as cartas, que o carteiro atirava no
hall através da fenda na porta. Então, da pilha grossa e colorida,
separou para ler apenas um cartão-postal. As outras cartas eram
prospectos de propaganda, jornais de partidos políticos, malas-diretas
e convites para exposições ou as chamadas ”reuniões de cidadãos”. A
maior parte consistia, quase sempre, nos já familiares envelopes
pardos, uma espécie de baralho completo, todo assinado pela mesma
mão desconhecida, que lhe enviava, havia mais de uma década, quase
todos os dias, pelo menos uma dúzia de cartas como essas, postadas
em um país distante. O escritor enviara uma breve resposta para a
carta inicial, pela única razão de, à primeira vista, ter confundido a
caligrafia do outro; e, desde então, o remetente o tratava como se fosse
um amigo de infância ou um velho vizinho do outro lado da cerca do
jardim. Os envelopes continham bilhetes com pequenas notícias —
poucas vezes uma frase completa — sobre a vida familiar no país
estrangeiro, sobre a mulher e os filhos, simples alusões como ”Agora
uma carta escrita pela mulher” e ”Ela me proibiu de ver os dois”,
sentenças misteriosas como ”Melhor morrer do que comprar uma
passagem aérea contra minha vontade”, ou ”Ela poderia testemunhar
que ontem eu cortei as ervas daninhas”, ou meros desabafos como
”Eu gostaria de poder, enfim, ser feliz” e ”Uma nova era devia
começar também para mim” — como se o destinatário conhecesse
toda a história desde o início. Nos primeiros anos ele havia lido, com
todo o cuidado, cada uma das frases soltas e até mesmo as palavras
desconexas. Com o decorrer do tempo, contudo, esses recados postais
passaram a deixá-lo cada vez mais angustiado, sobretudo nos dias
nada raros em que esse dilúvio de cartas era a única correspondência
recebida. Desejava que o outro visse a cólera com a qual ele fechava,
cada vez com maior frequência, a tampa da lixeira sobre a pilha de
envelopes não-abertos. No entanto, sempre que ele, apesar de tudo,
abria um desses envelopes, em um ocasional impulso de consciência
do dever, ficava francamente tranquilizado ao perceber que as
novidades pareciam ser sempre as mesmas. É bem verdade que havia
igualmente notáveis pedidos de socorro, inclusive insistentes, mas
estes persistiriam a vida inteira, mesmo que ninguém os ouvisse. E
esta era a razão, além de sua indolência, claro, pela qual ele não
mandava as cartas de volta — embora se sentisse inclinado a fazê-lo,
em virtude do volume de envelopes pardos diários de cantos
pontudos, sem nenhum sinal de vida, a não ser o fato de serem
mesclados com uma alma humana. Desse modo, hoje, como ontem,
ele confiou a coleção inteira ao cesto de papel, sem ler, deixando cair
peça após peça como se isto fosse, em si, uma espécie de
reconhecimento. Enfiou no sobretudo, para a viagem, o cartão-postal
de um antigo amigo que, nesse momento, vagava desnorteado pelo
continente americano.
Tomou banho de chuveiro e trocou de roupa; deu o laço nos
sapatos, bons tanto para as calçadas e escadas rolantes como para os
caminhos intransitáveis. Deixou o gato entrar em casa e depositou na
frente dele as tigelas com carne e leite. Ó frio já se havia acumulado,
por assim dizer, no pelo do animal; e ele pensou ter localizado uma
pitada de cristais de neve nas pontas dos fios. Mas o corpo do animal
aquecia-lhe as mãos, que tinham ficado frias com as horas de escrita.
Por mais que fosse atraído para fora, ele hesitou, como sempre, em
partir. Abriu as portas de todos os cômodos do primeiro andar, de
modo que as luzes vindas dos diferentes pontos cardeais brilhassem
umas dentro das outras. A casa parecia desabitada. Era como se ela
exigisse que nela não só se trabalhasse e dormisse, mas também se
morasse. Para isso, no entanto, sem dúvida alguma o escritor tinha se
provado incapaz, tal qual o era para a vida em família. Cantinhos para
sentar, mesas de jantar ou pianos logo causavam nele profunda
aversão; aparelhos de som, tabuleiros de xadrez, vasos de flores e até
mesmo as bibliotecas arrumadas só provocavam nele repulsa; em sua
casa, ele preferia empilhar os livros no assoalho ou nos peitoris das
janelas. Só à noite, sentado em um lugar qualquer, no escuro, tendo à
sua frente a fileira de aposentos, que, assim percebia, era iluminada o
bastante pelas luzes da cidade e seus reflexos no céu, ele sentia algo
parecido com um sentimento de lar. Essas horas nas quais não mais
precisava meditar ou antecipar, nas quais apenas ficava sentado,
tranquilo e, no máximo, recordando-se em silêncio, era das que mais
gostava em casa e, todas as vezes, ele as prolongava até que a reflexão
se fundisse, de modo imperceptível, em sonhos igualmente tranquilos.
Na verdade, durante o dia, em especial logo depois do trabalho, em
pouco tempo o silêncio tornava-se pesado demais para ele. O
turbilhonar da máquina de lavar louça e o zumbido da máquina de
lavar roupa no banheiro — é possível que ambos ao mesmo tempo —
se constituíam num verdadeiro alívio. Assim como precisava da
máquina de escrever, ele carecia, em dado momento, dos ruídos do
mundo exterior: uma vez, após meses de escrita em um arranha-céu
quase à prova de som, bem próximo às nuvens, portanto, ele havia se
mudado para um quarto de rés-do-chão em uma rua principal de
tráfego muito barulhento, a fim de poder continuar trabalhando; e
mais tarde, já nesta casa, no começo do barulho da obra no terreno
vizinho, ele utilizara, todas as manhãs após o primeiro sentir-se
perturbado, os martelos de ar comprimido e tratores como referência,
assim como antes, no começo, tinha utilizado obras musicais para se
afinar para sua atividade. Várias e várias vezes, ele desviara, então, os
olhos do papel para os trabalhadores lá fora e procurara a harmonia
existente entre aquilo que executava e a vagarosa sequência coisa-
após-coisa das tarefas deles. Tal companhia, sempre necessária, não
era a que lhe oferecia a pura natureza, com as árvores, o gramado, as
videiras selvagens que se enroscavam na janela. Uma mosca dentro do
quarto o incomodava mais do que uma grua a vapor ao ar livre.
Já a caminho do portão do jardim, o escritor virou-se de repente.
Correu para dentro de casa, irrompeu escritório adentro e substituiu
uma palavra por outra. Só então sentiu o cheiro de suor no cômodo e
viu o vapor nos vidros.
Capítulo 2
Era como se ele, a quem, por sua atividade, não estava prescrita
nenhuma norma de vida, também precisasse de uma ideia que lhe
inspirasse movimentos diários sem importância — e esta ideia veio,
então, com o pensamento de fundir periferia e centro; andar para a
periferia, atravessando o centro. Não tinha sido atraído, justo na
escrivaninha, para a necessidade da proximidade das pessoas? E não
havia, ainda, aquela outra promessa sempre menosprezada de, pelo
menos uma vez por dia, ir até o rio, em cuja margem oposta estavam
os bairros mais novos da cidade? Com o planejamento de um
itinerário, sentiu a alegria de estar a caminho.
Durante um longo tempo, ninguém cruzou com ele, parque-
bosque abaixo. Sozinho com a natureza, após as horas no quarto, o
escritor foi como que envolvido por uma redentora sensação de
infantilidade. Por fim, ele deixou de ruminar as frases da manhã e não
reparou no diagrama de esquadrilha dos pássaros de colorido
deslumbrante, assim como nas educativas placas ”faia” e ”acerácea”
penduradas nas respectivas árvores; só tinha olhos para o efeito
lustroso e iluminado de uma árvore e para o escuro e fendilhado de
uma outra Olhando para dezenas de pardais que, em completa
imobilidade e abalofados por causa do frio, se aboletavam em um
carvalho enrugado, ainda coberto de folhas, ele pôde acreditar na
lenda do santo que um dia pregou para esses seres; e, de fato, nesse
momento, os animais se acomodaram sem sair do lugar, apenas
mexendo as cabeças, como se de novo esperassem pela Palavra. Disse
uma coisa qualquer e o punhado de pássaros nos galhos lhe prestou
atenção.
O caminho estava amarelado pelas hastes de lariços. A camada,
embora em muitas curvas atingisse a altura do sapato, estava tão fofa,
que, sob os passos, se dispersava para os lados. De tal maneira que, no
asfalto, se havia formado um caminho de marga, que tinha um quê de
rio sinuoso oriental Durante as últimas horas dentro de casa, à medida
que tudo se tornava silencioso à sua volta, mais o escritor se imbuía da
alucinação de que lá fora, nesse intervalo de tempo, não havia mundo
algum e que ele, ali no quarto, era o último sobrevivente; ficou
aliviado por contemplar um ser humano verdadeiro e saudável, um
varredor de rua, que, já de roupa trocada e preparado para encerrar a
jornada de trabalho, afastou-se inclinado do carrinho de ferramentas e
então limpou os óculos muito grossos, com gestos cerimoniosos e um
gigantesco lenço de assoar o nariz. No cumprimento mútuo, o escritor
notou que essa tinha sido sua primeira troca de palavras naquele dia,
até aquele momento, ele tinha escutado calado a voz do locutor do
noticiário matinal, conversara com o gato, e repetira em voz alta uma
sequência de palavras, sentado à escrivaninha; por isso, agora fora
obrigado como que a pigarrear o primeiro som normal serhumano-a-
serhumano. E por mais que o outro também não o distinguisse direito
em sua miopia, como era tranquilizador encontrar aqueles dois olhos
vivos e dinâmicos, após o imaginado fim do mundo. Para ele, era
como se só ele compreendesse a cor deles, assim como pôde
compreender, mais tarde, os rostos dos passantes que, com a
aproximação da cidade, se tornavam cada vez mais impenetráveis,
como se seu próprio rosto neles se refletisse.
Apesar de sua casa situar-se no alto da colina, com as janelas
abertas para todos os pontos cardeais, durante o dia ele não havia
olhado direito a distância. Só com a descida e a proximidade de seres
humanos é que percebeu voltar-lhe o presbitismo. (Em casa, ele não
costumava evitar a varanda do telhado — da qual, por assim dizer, as
visitas sentiam tanta inveja — por se sentir exasperado com o
panorama, utilizando o local apenas para pendurar roupas?).
Da montanha de onde vinha o rio, descortinava-se um vítreo
campo nevado, e, pelo outro lado, nos limites da planície com as
últimas ramificações da cidade, via-se uma curva rochosa como que
traçada a carvão Aqui, ele percebeu próximos à mão o líquen e o
musgo debaixo da neve e o rio-prado incrustado na morena, e as
saliências de gelo ao lado das margens, onde a água tilintava. Do
outro lado dos quarteirões residenciais da periferia destacava-se,
nítida, mais uma fileira de casas menores de loteamento, mas que
observadas com mais atenção pareciam se espalhar pelo terreno ali se
distinguia a estrada com os caminhões que rodavam sem fazer
barulho, por um momento, seus braços vibraram como se ele fosse um
motorista em uma boleia. Ao lado das chaminés da região industrial,
em uma terra de ninguém, estepe coberta de arbustos, luzia uma luz
vermelha, e o contêiner escuro lá atrás revelou-se, então, como um
trem parado que, com a mudança do sinal, se impulsionou e
agigantou, a princípio de modo quase imperceptível. A maioria dos
passageiros já havia vestido o sobretudo e se preparava para saltar na
estação central. Uma mão de criança procurou a mão de um adulto.
Os que seguiriam viagem esticaram as pernas. O garçom do vagão-
restaurante quase vazio, trabalhando desde cedo na manhã, saiu para
o corredor, baixou a janela com a manivela e deixou que o vento da
viagem soprasse em seu rosto, enquanto o lavador de pratos, um tipo
meridional mais velho, olhava para a frente sem piscar e fumava um
cigarro, parado em seu nicho. Concomitante a estas imagens, ao longe
(”A distância é minha matéria”), o escritor notou por sobre os
telhados do centro da cidade uma estátua de pedra, que, segurando
um galho de palmeira de ferro, se destacava contra o céu, bem em
cima do zimbório de uma igreja, cercada por estátuas coadjuvantes,
dispostas como se estivessem brincando de roda.
O último trecho do caminho da colina desembocava numa escada
margeada por centenárias repartições públicas. No setor superior,
jardins-terraços projetavam-se aqui e ali nas laterais, qual sequência
de pontes de via-férrea. Nos andares mais baixos, próximo à encosta
do rochedo, estavam acesas as luzes de todos os aposentos, decerto
desde a manhã. Cada patamar dava vista para um pavimento abaixo.
Um abajur lançava um círculo luminoso sobre alguns livros abertos,
os quais, o homem sentado à sua frente, inerte, parecia mais
contemplar que estudar. Uma mulher, como que recém-entrada porta
adentro, ainda estava de casaco e chapéu, pesada bolsa de compras na
mão. Um homem grisalho de suspensórios e mangas arregaçadas
atravessou devagar o quarto, seguido alguns degraus escada acima
por um enorme rosto lacrimoso enquadrado no retângulo da
televisão, atrás de uma cortina entreaberta. Por fim, no último lance, o
andar-térreo, havia peças de repartição ou escritório, à luz de néon:
plantas artificiais, arquivos, quadros de cortiça com cartões-postais; os
muitos que pertenciam àquele lugar e o único estranho constrangido,
sempre se afastando para deixar passar os funcionários; a aparência
de bem-estar dada pelo colarinho aberto de um e os cabelos soltos dos
outros, os floridos galhos de dezembro enfiados na garrafa sobre o
peitoril. Era também como se ali, nas proximidades das moradias,
ficasse mais quente, setor a setor; no alto, no rochedo desmaiado,
estalactites da grossura de colunas; embaixo, nos jardins, ao lado dos
habituais arbustos e da sebe de pinheiros, já havia alguns troncos de
palmeiras e, apesar de protegidos por coberturas de plástico, loureiros
globuliformes e verdebrilhosos. E assim, sentindo-se despercebido
pelo mundo exterior, o escritor realizou sua, por assim dizer, entrada
na cidade. Sua meta era um restaurante, menos por fome e sede, mais
pela necessidade de sentar-se em um local público e ser servido; após
as longas horas solitárias no quarto, ele sentia como se merecesse isso.
Capítulo 3