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A tarde de um escritor

Peter Handke
Título original: Nachmittag eines Schriftstellers
© 1987 by Peter Handke
Tradução: Reinaldo Guarany

Editora Rocco
Rio de Janeiro
1ª edição: 1993
ISBN: 9788532503909
Contracapa

“Iniciei-me no ofício da palavra.


Seguir em frente.
Deixar estar. Deixar valer
Representar. Transmitir.
Continuar a trabalhar
A mais volátil das matérias,
Sua respiração;
Ser dela o artífice.”

Orelhas
Terminada uma manhã de luta em busca da palavra certa, aquela
que teria o dom de ser a chave para a criação, passado o sofrimento de
tentar preencher a página em branco, o escritor levanta-se de sua
escrivaninha, deixa sua casa e segue, através de pátios, praças e vielas,
a caminho do centro da cidade. Não é um passeio banal. Nesse
percurso, olhos abertos para ver tudo, objetos e pessoas, como se fosse
a primeira vez, o escritor faz duas viagens paralelas: uma, exterior,
que lhe permite estar face a face, em plena rua, com possíveis leitores
ou críticos, a corporificação do mundo que é o exato oposto do seu;
outra, interior, em que ele disseca o que é, para ele, o ofício que
escolheu para si. O que significa viver da e para a arte.
Numa narrativa em que a enganosa simplicidade das situações
mascara o sofrimento e a dúvida embutidos no ato de criar, Peter
Handke faz de A tarde de um escritor uma obra de inquietante beleza.
Perseguindo as palavras, desmontando-as para formar novos
vocábulos, provando a cada passo que é possível extrair imagens
sublimes do cotidiano mais prosaico, Handke produz um livro
fundamental para quem quer que se sinta irremediavelmente atraído
pela escrita e disposto a servi-la por toda uma existência.
O Autor

Peter Handke nasceu em Griffen, Áustria, em 1942, e


é considerado um dos autores mais importantes da
língua alemã. Ligado ao cinema e a cineastas como Wim
Wenders, ele teve textos seus transportados para filmes
como O medo do goleiro na hora do pênalti, Movimento em
falso e Asas do desejo. Dono de uma obra marcada pela
preocupação com decifrar o mundo através da
linguagem, Handke publicou pela Rocco no Brasil A
ausência e A repetição.
Prêmio Nobel de Literatura 2019.
Para Francis Scott Fitzgerald
Capítulo 1

Desde aquela vez em que ele conviveu durante quase um ano com
a sensação de haver perdido a intimidade com a palavra, cada frase
que escrevia, e lhe despertava o impulso de uma possível continuação,
tornou-se para o escritor notável. Cada vocábulo que conduzia a
outro, não verbalmente, mas por escrito, fazia-o respirar fundo e
trazia-o de volta ao mundo; para ele o dia só começava
verdadeiramente se houvesse uma anotação feliz, uma inspiração que
lhe permitisse chegar à manhã seguinte; ou, pelo menos, era isto o que
se dizia.
Mas será que esse medo da paralisia, do não poder seguir em
frente e até mesmo da ruptura definitiva, não estivera presente toda a
vida, não apenas no que dizia respeito ao ato de escrever, mas
também em todas as outras ações: o amor, o aprendizado, a
participação — tudo, em absoluto, que exigisse o ater-se à coisa ela
mesma? Será que o problema de sua profissão não lhe oferecia a
metáfora do problema de sua existência e lhe mostrava, com exemplos
evidentes, como tudo estava disposto? Quer dizer, não ”o eu
enquanto escritor”, mas sim ”o escritor enquanto eu”? E será que ele
não se levava a sério como escritor desde aquela época em que
pensara ter cruzado, sem possibilidade de retorno, a fronteira da
língua, com o risco do consequente recomeço dia após dia — logo ele
que usava a expressão ”escritor” no máximo de maneira irônica ou
constrangida, apesar de haver passado mais de metade da vida com o
pensamento posto no ato de escrever?
E agora, com a ajuda de algumas linhas através das quais ele
esclarecera um fato e se animara, parecia que de novo havia
transcorrido um desses tais dias, e o escritor ergueu-se de sua
escrivaninha com a sensação de que a noite estava chegando. Não
sabia que horas eram. Em sua mente, no entanto, os sinos da capela do
asilo de velhos, no sopé da pequena colina, tinham acabado de soar o
meio-dia, com dobres súbitos e soltos como se alguém tivesse
morrido; deviam ter-se passado algumas horas, pois a luz no quarto se
havia transfigurado em luz da tarde. Do tapete do chão erguia-se um
brilho, que ele interpretou como um sinal de que havia encontrado
seu ritmo no trabalho. Levantou os braços e reclinou-se sobre a folha
enfiada na máquina. Ao mesmo tempo, como costumava ocorrer com
frequência, ele concentrou-se na ideia de, no dia seguinte, não tornar a
mergulhar nessa atividade, mas, ao contrário, utilizá-la como abertura
dos sentidos: a sombra de um pássaro que tremulava na parede, ao
invés de desviar sua atenção, deveria acompanhar o texto, tornando-o
transparente, assim como o latir dos cachorros, o zunzunar das serras
a motor, os ruídos da troca de marcha nos caminhões, o martelar
constante, os incessantes gritos de comando e o trinar de apitos nos
pátios da escola e da caserna lá embaixo, na planície. Como em todos
os dias anteriores, ocorreu-lhe, então, que nas últimas horas havia
chegado até ele, na escrivaninha, o som das sirenes dos carros de
polícia e das ambulâncias da cidade inteira, e que ele nem uma única
vez desviara a cabeça do papel para a janela, como fizera pela manhã,
ao concentrar-se na contemplação de um tronco de árvore no jardim,
no gato que o olhava desconfiado lá fora, no painel da janela, nos
aviões comerciais no céu, que aterrissavam, no seu campo visual, da
esquerda para a direita, e decolavam da direita para a esquerda.
Assim, sempre o seu primeiro foco era o nada ao longe, de modo
que até mesmo o desenho do tapete lhe surgia como que apagado,
enquanto nos ouvidos havia um zumbido como se a máquina de
escrever fosse elétrica — o que não era o caso.
O local de trabalho do escritor, sua ”casa dentro de casa”, situava-
se no primeiro andar. Atordoado, foi até a cozinha com a xícara de chá
vazia na mão, e no relógio em cima do fogão viu que o dia não duraria
muito mais. Era início de dezembro e as arestas dos objetos brilhavam
como no momento que antecede o crepúsculo. Ao mesmo tempo, a
atmosfera lá fora e o interior da casa, sem cortinas, pareciam formar
um tecido único de claridade Ainda não havia nevado esse ano. Mas,
aquela manhã, um certo canto dos pássaros — tênue, um gritado som
monocórdio, anunciara a neve. O escritor estava bem na luz que aos
poucos lhe devolvia os sentidos e que o atraía para fora, para o ar
livre. Até então, todos os dias em que havia saído da casa com a
chegada da escuridão, ele tinha sentido falta de alguma coisa. Era
estranho que justo alguém com sua profissão sempre se sentisse mais
à vontade ao ar livre.
Primeiro, ele recolheu no chão as cartas, que o carteiro atirava no
hall através da fenda na porta. Então, da pilha grossa e colorida,
separou para ler apenas um cartão-postal. As outras cartas eram
prospectos de propaganda, jornais de partidos políticos, malas-diretas
e convites para exposições ou as chamadas ”reuniões de cidadãos”. A
maior parte consistia, quase sempre, nos já familiares envelopes
pardos, uma espécie de baralho completo, todo assinado pela mesma
mão desconhecida, que lhe enviava, havia mais de uma década, quase
todos os dias, pelo menos uma dúzia de cartas como essas, postadas
em um país distante. O escritor enviara uma breve resposta para a
carta inicial, pela única razão de, à primeira vista, ter confundido a
caligrafia do outro; e, desde então, o remetente o tratava como se fosse
um amigo de infância ou um velho vizinho do outro lado da cerca do
jardim. Os envelopes continham bilhetes com pequenas notícias —
poucas vezes uma frase completa — sobre a vida familiar no país
estrangeiro, sobre a mulher e os filhos, simples alusões como ”Agora
uma carta escrita pela mulher” e ”Ela me proibiu de ver os dois”,
sentenças misteriosas como ”Melhor morrer do que comprar uma
passagem aérea contra minha vontade”, ou ”Ela poderia testemunhar
que ontem eu cortei as ervas daninhas”, ou meros desabafos como
”Eu gostaria de poder, enfim, ser feliz” e ”Uma nova era devia
começar também para mim” — como se o destinatário conhecesse
toda a história desde o início. Nos primeiros anos ele havia lido, com
todo o cuidado, cada uma das frases soltas e até mesmo as palavras
desconexas. Com o decorrer do tempo, contudo, esses recados postais
passaram a deixá-lo cada vez mais angustiado, sobretudo nos dias
nada raros em que esse dilúvio de cartas era a única correspondência
recebida. Desejava que o outro visse a cólera com a qual ele fechava,
cada vez com maior frequência, a tampa da lixeira sobre a pilha de
envelopes não-abertos. No entanto, sempre que ele, apesar de tudo,
abria um desses envelopes, em um ocasional impulso de consciência
do dever, ficava francamente tranquilizado ao perceber que as
novidades pareciam ser sempre as mesmas. É bem verdade que havia
igualmente notáveis pedidos de socorro, inclusive insistentes, mas
estes persistiriam a vida inteira, mesmo que ninguém os ouvisse. E
esta era a razão, além de sua indolência, claro, pela qual ele não
mandava as cartas de volta — embora se sentisse inclinado a fazê-lo,
em virtude do volume de envelopes pardos diários de cantos
pontudos, sem nenhum sinal de vida, a não ser o fato de serem
mesclados com uma alma humana. Desse modo, hoje, como ontem,
ele confiou a coleção inteira ao cesto de papel, sem ler, deixando cair
peça após peça como se isto fosse, em si, uma espécie de
reconhecimento. Enfiou no sobretudo, para a viagem, o cartão-postal
de um antigo amigo que, nesse momento, vagava desnorteado pelo
continente americano.
Tomou banho de chuveiro e trocou de roupa; deu o laço nos
sapatos, bons tanto para as calçadas e escadas rolantes como para os
caminhos intransitáveis. Deixou o gato entrar em casa e depositou na
frente dele as tigelas com carne e leite. Ó frio já se havia acumulado,
por assim dizer, no pelo do animal; e ele pensou ter localizado uma
pitada de cristais de neve nas pontas dos fios. Mas o corpo do animal
aquecia-lhe as mãos, que tinham ficado frias com as horas de escrita.
Por mais que fosse atraído para fora, ele hesitou, como sempre, em
partir. Abriu as portas de todos os cômodos do primeiro andar, de
modo que as luzes vindas dos diferentes pontos cardeais brilhassem
umas dentro das outras. A casa parecia desabitada. Era como se ela
exigisse que nela não só se trabalhasse e dormisse, mas também se
morasse. Para isso, no entanto, sem dúvida alguma o escritor tinha se
provado incapaz, tal qual o era para a vida em família. Cantinhos para
sentar, mesas de jantar ou pianos logo causavam nele profunda
aversão; aparelhos de som, tabuleiros de xadrez, vasos de flores e até
mesmo as bibliotecas arrumadas só provocavam nele repulsa; em sua
casa, ele preferia empilhar os livros no assoalho ou nos peitoris das
janelas. Só à noite, sentado em um lugar qualquer, no escuro, tendo à
sua frente a fileira de aposentos, que, assim percebia, era iluminada o
bastante pelas luzes da cidade e seus reflexos no céu, ele sentia algo
parecido com um sentimento de lar. Essas horas nas quais não mais
precisava meditar ou antecipar, nas quais apenas ficava sentado,
tranquilo e, no máximo, recordando-se em silêncio, era das que mais
gostava em casa e, todas as vezes, ele as prolongava até que a reflexão
se fundisse, de modo imperceptível, em sonhos igualmente tranquilos.
Na verdade, durante o dia, em especial logo depois do trabalho, em
pouco tempo o silêncio tornava-se pesado demais para ele. O
turbilhonar da máquina de lavar louça e o zumbido da máquina de
lavar roupa no banheiro — é possível que ambos ao mesmo tempo —
se constituíam num verdadeiro alívio. Assim como precisava da
máquina de escrever, ele carecia, em dado momento, dos ruídos do
mundo exterior: uma vez, após meses de escrita em um arranha-céu
quase à prova de som, bem próximo às nuvens, portanto, ele havia se
mudado para um quarto de rés-do-chão em uma rua principal de
tráfego muito barulhento, a fim de poder continuar trabalhando; e
mais tarde, já nesta casa, no começo do barulho da obra no terreno
vizinho, ele utilizara, todas as manhãs após o primeiro sentir-se
perturbado, os martelos de ar comprimido e tratores como referência,
assim como antes, no começo, tinha utilizado obras musicais para se
afinar para sua atividade. Várias e várias vezes, ele desviara, então, os
olhos do papel para os trabalhadores lá fora e procurara a harmonia
existente entre aquilo que executava e a vagarosa sequência coisa-
após-coisa das tarefas deles. Tal companhia, sempre necessária, não
era a que lhe oferecia a pura natureza, com as árvores, o gramado, as
videiras selvagens que se enroscavam na janela. Uma mosca dentro do
quarto o incomodava mais do que uma grua a vapor ao ar livre.
Já a caminho do portão do jardim, o escritor virou-se de repente.
Correu para dentro de casa, irrompeu escritório adentro e substituiu
uma palavra por outra. Só então sentiu o cheiro de suor no cômodo e
viu o vapor nos vidros.
Capítulo 2

De repente, passou a não ter tanta pressa. De repente, com essa


única palavra nova, a casa inteira vazia lhe pareceu cálida e
confortável Na soleira da porta, ele virou-se para a escrivaninha, que,
por um momento, lhe pareceu um lugar de justiça ou de se fazer
justiça:
— Sem dúvida, é assim que deve ser’ No primeiro andar, ele
sentou-se no vestíbulo, que, todo envidraçado, dava para o jardim,
pregou alguns botões e escovou uma fileira de sapatos de verão.
Enquanto fazia isso, pensou na observação feita a respeito de um
poeta clássico, que ”mesmo ao cortar as unhas agia de maneira
aristocrática”, e duvidou que ocorresse algo parecido com ele. Lá fora,
no jardim, um pássaro enfiou-se, como se fosse num dedal, no
sombrio cone dos teixos do tamanho de um homem, e não mais foi
visto saindo da mata O zumbir do avião monomotor sobre a paisagem
lembrou-lhe o Alasca, e também o sonoro apito dos trens, que
circundavam a cidade fazendo uma curva, parecia brotar de um país
vasto e rico em água. Durante alguns momentos, pôde-se ouvir, com
toda a nitidez, longe, no horizonte, o solavanco das rodas sobre uma
ponte da via férrea enquanto, perto, o animal doméstico coçava-se ao
pé da escada e a geladeira estremecia na despensa. O escritor regou,
pela segunda vez no dia, as plantas do vestíbulo, as quais, junto com a
parede de vidro, lhe davam a impressão de estufa, tornou a alimentar
o gato e, por último, limpou todas as maçanetas das portas. Sentiu o
impulso de escrever uma carta, não importava a quem, mas não em
casa; mais tarde, em algum lugar da cidade.
Uma vez, justamente quando percebeu a iminente perda da
palavra, ele havia elogiado a si próprio o nunca mais trancar uma
porta às suas costas: isto ocorreu-lhe de novo agora, quando, do lado
de fora, girou duas vezes a chave, como costumava fazer todos os dias
no momento de sair. Em contrapartida, ele se propôs a deixar a porta
destrancada quando retornasse de madrugada; por acaso eleja não a
havia encontrado não apenas desaferrolhada, mas aberta de par em
par, em muitas manhãs, sem que tivesse sido essa sua intenção?
No caminho de barro do jardim, ele andou sobre as próprias
pegadas, resultado de seu hábito de andar de um lado para o outro
antes do trabalho, que, com frequência, durava horas e horas. Agora
as pegadas estavam congeladas e formavam em toda a extensão do
jardim um desenho intrincado e engraçado, como que triturado, na
terra, como se um exército inteiro tivesse marchado por ali a caminho
de um ataque corpo a corpo, ou como se uma unidade especial da
polícia tivesse entrado para prender um inimigo público altamente
perigoso. No mesmo instante, veio à sua mente um filme curioso, no
qual o herói andava durante todo o tempo de um lado para o outro,
na frente de um prédio, esperando, e no final caminhava em uma
cova, da qual apenas seu chapéu sobressaía. Apesar do inverno, ainda
havia flores aqui e ali. Exatamente por sua pequenez e propagação, as
licnides, as margaridas, os ranúnculos e as labiadas vivificavam no
terreno de rígidas estrias. Os cálices brilhantesmaltados dos
ranúnculos chegavam a dar, por alguns momentos, a ilusão de raios
de sol. Na copa de uma macieira carcomida pelos pássaros ainda
pendiam alguns frutos, a polpa congelada e vitrificada. As últimas
folhas pesadas de geada desabavam uma após a outra no chão, quase
em linha vertical, com estalidos. Os amentos das aveleiras estavam
descoloridos, como que fustigados pelo frio. Junto à estacada e ao lado
da porta da casa havia uma campanulácea azul-geada.
Lá fora, havia um parque-bosque ligado ao jardim, mas que ao
escritor parecia, com frequência, após o trabalho, enorme e primitivo,
todo mata de corte e cipós. Ele voltou-se mais uma vez para a casa.
Sentiu como se tivesse saído de uma sombra. O céu estava cinza-claro,
perpassado por listras mais escuras e muito compridas, que davam a
impressão de amplitude e altura. Não ventava; o ar, contudo, estava
tão frio, que o açoitava na testa e pescoço. Ele parou em uma
bifurcação do caminho e refletiu sobre onde ir: no centro da cidade
estariam as muitas pessoas das vésperas de Natal. Na periferia, ele
estaria sozinho. Nos períodos de ociosidade, a regra era que ele
passeasse no centro. Em contrapartida, quando o trabalho o ocupava,
era costume ele partir para a periferia — passear pelo despovoado;
esta regra havia dado bons resultados, até agora. Mas por acaso ele
tinha regras? Por acaso as poucas que ele se esforçara até então para se
impor não haviam sempre retrocedido diante de outros estados de
espírito, acasos, inspirações, que lhe apareciam, então, como os mais
corretos? Abem da verdade, ele passava a vida, já havia algumas
décadas, ao sabor dos desígnios impostos pela escrita; e até hoje ele
não conhecia nenhum; tudo nele permanecia de modo tão provisório
como outrora em criança; como mais tarde, acontecera ao estudante;
como mais tarde ainda, ao escritor iniciante: ele tinha moradia
provisória, ele, o mesmo novato de antes, nesta cidade europeia que
pertencia a todo o mundo, apesar de, achava, ter começado a
envelhecer; seu retorno de países estrangeiros para a terra natal era
apenas provisório, sempre prestes como estava a se safar de novo e ir
embora; e até mesmo o ser escritor, por mais que correspondesse ao
seu sonho, ele encarava como algo provisório — para ele era terrível
tudo o que fosse definitivo. ”Tudo flui?” Ou ”Ninguém entra no
mesmo rio duas vezes?” Ou, como aquela citação de que gostava
muito: ”Quem entra nos mesmos rios se banha sempre em novas
águas?” Sim, no decorrer dos anos, ele se havia repetido e recitado
esta frase de Heráclito, do mesmo modo como, talvez, os devotos
façam com o ”Pai Nosso”.
O escritor permaneceu, por um tempo estranhamente longo, no
cruzamento dos caminhos.

Era como se ele, a quem, por sua atividade, não estava prescrita
nenhuma norma de vida, também precisasse de uma ideia que lhe
inspirasse movimentos diários sem importância — e esta ideia veio,
então, com o pensamento de fundir periferia e centro; andar para a
periferia, atravessando o centro. Não tinha sido atraído, justo na
escrivaninha, para a necessidade da proximidade das pessoas? E não
havia, ainda, aquela outra promessa sempre menosprezada de, pelo
menos uma vez por dia, ir até o rio, em cuja margem oposta estavam
os bairros mais novos da cidade? Com o planejamento de um
itinerário, sentiu a alegria de estar a caminho.
Durante um longo tempo, ninguém cruzou com ele, parque-
bosque abaixo. Sozinho com a natureza, após as horas no quarto, o
escritor foi como que envolvido por uma redentora sensação de
infantilidade. Por fim, ele deixou de ruminar as frases da manhã e não
reparou no diagrama de esquadrilha dos pássaros de colorido
deslumbrante, assim como nas educativas placas ”faia” e ”acerácea”
penduradas nas respectivas árvores; só tinha olhos para o efeito
lustroso e iluminado de uma árvore e para o escuro e fendilhado de
uma outra Olhando para dezenas de pardais que, em completa
imobilidade e abalofados por causa do frio, se aboletavam em um
carvalho enrugado, ainda coberto de folhas, ele pôde acreditar na
lenda do santo que um dia pregou para esses seres; e, de fato, nesse
momento, os animais se acomodaram sem sair do lugar, apenas
mexendo as cabeças, como se de novo esperassem pela Palavra. Disse
uma coisa qualquer e o punhado de pássaros nos galhos lhe prestou
atenção.
O caminho estava amarelado pelas hastes de lariços. A camada,
embora em muitas curvas atingisse a altura do sapato, estava tão fofa,
que, sob os passos, se dispersava para os lados. De tal maneira que, no
asfalto, se havia formado um caminho de marga, que tinha um quê de
rio sinuoso oriental Durante as últimas horas dentro de casa, à medida
que tudo se tornava silencioso à sua volta, mais o escritor se imbuía da
alucinação de que lá fora, nesse intervalo de tempo, não havia mundo
algum e que ele, ali no quarto, era o último sobrevivente; ficou
aliviado por contemplar um ser humano verdadeiro e saudável, um
varredor de rua, que, já de roupa trocada e preparado para encerrar a
jornada de trabalho, afastou-se inclinado do carrinho de ferramentas e
então limpou os óculos muito grossos, com gestos cerimoniosos e um
gigantesco lenço de assoar o nariz. No cumprimento mútuo, o escritor
notou que essa tinha sido sua primeira troca de palavras naquele dia,
até aquele momento, ele tinha escutado calado a voz do locutor do
noticiário matinal, conversara com o gato, e repetira em voz alta uma
sequência de palavras, sentado à escrivaninha; por isso, agora fora
obrigado como que a pigarrear o primeiro som normal serhumano-a-
serhumano. E por mais que o outro também não o distinguisse direito
em sua miopia, como era tranquilizador encontrar aqueles dois olhos
vivos e dinâmicos, após o imaginado fim do mundo. Para ele, era
como se só ele compreendesse a cor deles, assim como pôde
compreender, mais tarde, os rostos dos passantes que, com a
aproximação da cidade, se tornavam cada vez mais impenetráveis,
como se seu próprio rosto neles se refletisse.
Apesar de sua casa situar-se no alto da colina, com as janelas
abertas para todos os pontos cardeais, durante o dia ele não havia
olhado direito a distância. Só com a descida e a proximidade de seres
humanos é que percebeu voltar-lhe o presbitismo. (Em casa, ele não
costumava evitar a varanda do telhado — da qual, por assim dizer, as
visitas sentiam tanta inveja — por se sentir exasperado com o
panorama, utilizando o local apenas para pendurar roupas?).
Da montanha de onde vinha o rio, descortinava-se um vítreo
campo nevado, e, pelo outro lado, nos limites da planície com as
últimas ramificações da cidade, via-se uma curva rochosa como que
traçada a carvão Aqui, ele percebeu próximos à mão o líquen e o
musgo debaixo da neve e o rio-prado incrustado na morena, e as
saliências de gelo ao lado das margens, onde a água tilintava. Do
outro lado dos quarteirões residenciais da periferia destacava-se,
nítida, mais uma fileira de casas menores de loteamento, mas que
observadas com mais atenção pareciam se espalhar pelo terreno ali se
distinguia a estrada com os caminhões que rodavam sem fazer
barulho, por um momento, seus braços vibraram como se ele fosse um
motorista em uma boleia. Ao lado das chaminés da região industrial,
em uma terra de ninguém, estepe coberta de arbustos, luzia uma luz
vermelha, e o contêiner escuro lá atrás revelou-se, então, como um
trem parado que, com a mudança do sinal, se impulsionou e
agigantou, a princípio de modo quase imperceptível. A maioria dos
passageiros já havia vestido o sobretudo e se preparava para saltar na
estação central. Uma mão de criança procurou a mão de um adulto.
Os que seguiriam viagem esticaram as pernas. O garçom do vagão-
restaurante quase vazio, trabalhando desde cedo na manhã, saiu para
o corredor, baixou a janela com a manivela e deixou que o vento da
viagem soprasse em seu rosto, enquanto o lavador de pratos, um tipo
meridional mais velho, olhava para a frente sem piscar e fumava um
cigarro, parado em seu nicho. Concomitante a estas imagens, ao longe
(”A distância é minha matéria”), o escritor notou por sobre os
telhados do centro da cidade uma estátua de pedra, que, segurando
um galho de palmeira de ferro, se destacava contra o céu, bem em
cima do zimbório de uma igreja, cercada por estátuas coadjuvantes,
dispostas como se estivessem brincando de roda.
O último trecho do caminho da colina desembocava numa escada
margeada por centenárias repartições públicas. No setor superior,
jardins-terraços projetavam-se aqui e ali nas laterais, qual sequência
de pontes de via-férrea. Nos andares mais baixos, próximo à encosta
do rochedo, estavam acesas as luzes de todos os aposentos, decerto
desde a manhã. Cada patamar dava vista para um pavimento abaixo.
Um abajur lançava um círculo luminoso sobre alguns livros abertos,
os quais, o homem sentado à sua frente, inerte, parecia mais
contemplar que estudar. Uma mulher, como que recém-entrada porta
adentro, ainda estava de casaco e chapéu, pesada bolsa de compras na
mão. Um homem grisalho de suspensórios e mangas arregaçadas
atravessou devagar o quarto, seguido alguns degraus escada acima
por um enorme rosto lacrimoso enquadrado no retângulo da
televisão, atrás de uma cortina entreaberta. Por fim, no último lance, o
andar-térreo, havia peças de repartição ou escritório, à luz de néon:
plantas artificiais, arquivos, quadros de cortiça com cartões-postais; os
muitos que pertenciam àquele lugar e o único estranho constrangido,
sempre se afastando para deixar passar os funcionários; a aparência
de bem-estar dada pelo colarinho aberto de um e os cabelos soltos dos
outros, os floridos galhos de dezembro enfiados na garrafa sobre o
peitoril. Era também como se ali, nas proximidades das moradias,
ficasse mais quente, setor a setor; no alto, no rochedo desmaiado,
estalactites da grossura de colunas; embaixo, nos jardins, ao lado dos
habituais arbustos e da sebe de pinheiros, já havia alguns troncos de
palmeiras e, apesar de protegidos por coberturas de plástico, loureiros
globuliformes e verdebrilhosos. E assim, sentindo-se despercebido
pelo mundo exterior, o escritor realizou sua, por assim dizer, entrada
na cidade. Sua meta era um restaurante, menos por fome e sede, mais
pela necessidade de sentar-se em um local público e ser servido; após
as longas horas solitárias no quarto, ele sentia como se merecesse isso.
Capítulo 3

A princípio evitou a aglomeração, pegando um atalho através dos


pátios dos fundos. Ou seja, andando pelo rés-do-chão da cidade,
descobria-se que cada um desses pátios dava diretamente em outro, o
primeiro, de uma escola, dava para o de um museu e este, por sua
vez, dava para o de um mosteiro de onde, enfim, uma passagem
levava a um cemitério abandonado que atualmente servia de parque
Posto que todos os prédios eram de estilo arquitetônico semelhante e
os pátios que se sucediam tinham o mesmo traçado e medida, era
como se a pessoa estivesse movendo-se em um único complexo
isolado do resto do mundo, em uma cidade dentro da cidade, e
avançasse de pátio em pátio sempre dentro dela, sem saber se haveria
um portão de saída ao final. Por alguns momentos, ao olhar um poço
com telhado de madeira bulbiforme, o escritor acreditou encontrar-se
de volta a Moscou, onde um dia passara uma tarde inteira numa área
escondida como aquela, avançando de casa-passagem para casa-
passagem, cada qual mais distante da outra, o silêncio cada vez mais
disperso, depois, em algum lugar muito distante, sozinho, sentado
num banco muito comprido, assistira às brincadeiras das crianças em
uma superfície cimentada e coberta, por fim, no pátio mais interno,
lavara rosto e mãos numa bica, localizada em uma superfície gramada
coberta de bétulas. Não era estranho que praticamente só as horas
dedicadas à escrita pudessem afastá-lo de sua casa? O pequeno
tornava-se, então, grande, os nomes eram anulados, a areia clara nas
fendas das pedras da calçada era ali ramificações de uma duna, a
única vergôntea desfolhada acolá, parte de uma savana. Em uma das
salas da escola ainda havia aula e lá dentro sobressaía a figura do
professor, de pé em um pódio, os braços agitando-se diante de um
quadro-negro que ofuscava. A parte de baixo da parede do museu era
formada por relevos em mármore com golfinhos que nadavam aos
pares uns em direção aos outros, ou que mergulhavam afastando-se
uns dos outros. No pátio do mosteiro, um monge, de sandálias apesar
do frio, podava uma cerejeira e no cemitério viam-se, além de
inscrições em latim, inscrições em grego.
A sucessão de pátios interligados se alargava com o surgimento
das praças abertas Também estas, no entanto, passavam simplesmente
umas por dentro das outras, de maneira que uma era praticamente o
vestíbulo da próxima, maior e não previsível, e podia surgir ao se
dobrar uma esquina de uma igreja, da sede de uma repartição ou de
uma banca de jornal A última e maior das praças podia ser alcançada
a partir de autênticas colunatas e nada tinha de praça principal não
era calçada, tinha um tom ocre e era levemente inclinada em direção
ao centro, coisa que se tornava ainda mais visível ao se observar toda
uma grinalda de regos escavados no solo pelas chuvas De praça em
praça, o escritor arrastava-se cada vez mais lentamente, e agora ele
decidiu parar Para ele era como se não tivesse se afastado do trabalho,
como se sua atividade o acompanhasse, como se ele, nesse tempo todo
bem distante da escrivaninha, ainda estivesse trabalhando em sua
obra Mas o que significava ”obra”? Uma obra, pensou ele, era alguma
coisa para a qual a matéria nada representava, a estrutura era quase
tudo, alguma coisa que, normalmente parada, se punha em
movimento sem precisar de uma mecânica especial, na qual todos os
elementos se mantêm em suspensão, que com frequência não se
deteriorava pelo uso, mesmo sendo acessível a qualquer pessoa.
Ao seguir em frente, o escritor quase começou a correr Embora o
sítio próximo ao rio fosse o lugar mais baixo da cidade, o escritor
traçou uma longa diagonal sobre ele como se estivesse em um
planalto O gelo estalava sob as solas dos sapatos, um ruído muito sutil
que, simultaneamente, reboava por toda a superfície Ó chão estava
todo coberto pelas hastes das árvores de Natal vendidas ali em todos
os anos anteriores, pisadas no barro e já havia muito tingidas de
amarelo-barro talvez, a partir de amanhã, ali estivessem de novo os
bosques simulados e quase indestrinçáveis de pinheiros e abetos, que
enchiam todo o local
Quando pediu um jornal na banca perto do rio, ele notou que
estava trêmulo Quase não concluiu sua frase e, na hora do troco, a
mão agarrou em falso. Como fazia com tanta frequência, ele disse para
si mesmo que, com a compra do jornal, cometia seu primeiro erro e se
propôs a apenas folheá-lo todo, se possível ainda enquanto andava,
para depois enfiá-lo em um cesto de lixo. A visão das manchetes
deixou-o mudo durante um breve momento; ao cumprimento do
vendedor, ele mal conseguiu esboçar um aceno de cabeça. Tomado de
súbita timidez, ele estremeceu com o roçar casual de um transeunte e
desviou os olhos a fim de evitar o encontro com um outro que, pouco
tempo antes, lhe havia confiado a história de sua vida; como desculpa,
o escritor usava, claro, sua distração, embora quase sempre ele apenas
a teatralizasse.
Na ponte do rio, sentiu o vento com o qual, então, seguiu adiante.
Ali, no imenso abaulamento aberto, estava mais frio do que nos pátios
e praças. Sobre as águas quase negras moviam-se tufos de névoa que,
em sua imaginação, repetiam os pedaços de gelo que se despedaçaram
uns contra os outros, no frio ártico de um inverno passado; naquela
época fazia tanto frio em cima da ponte, que, na verdade, se era
obrigado a fugir dela. Ele vivenciava agora, novamente, aquela
situação do verão, quando, lá embaixo, no barranco, aos pés do muro
da margem, na cheia, a criança corria de um lado para outro; a
princípio ele pensou que ela devia estar brincando por ali, pois dava
constantes saltos para cima enquanto corria, até que percebeu, apenas
pelos movimentos da boca, por causa do som do rugir do rio, que ela
gritava por socorro: tinha caído do muro. Voltou a sentir nos ombros o
peso vivo que ele, naquele momento, puxou para cima; viu mais uma
vez, do outro lado do rio, a figura de calças curtas sair correndo, com
cabelos esvoaçantes, pela hoje nua calçada invernal; mas, então, sob a
folhagem de verão.
No vértice da ponte, o escritor encostou-se no corrimão. Os
orifícios onde se colocavam as bandeiras estavam vazios. O horizonte
rio acima irradiava uma luz forte; a torre da igreja acolá já pertencia a
uma aldeia. As inúmeras pontes da cidade escalonavam-se umas após
as outras, como se fossem da mesma altura, de modo que os pedestres
de uma apinhada ponte em primeiro plano, os carros da ponte
seguinte e o trem da posterior pareciam rodar ao mesmo tempo. Nas
sinuosidades-meandros da ponte marcava-se a fronteira entre água e
terra por meio de um brilho. Quando, nesse momento, os sinos da
tarde retumbaram acima dos barulhos do tráfego, anunciando com
seus repiques o fim da semana, seu eco ainda pairou no ar durante
longo tempo e foi como se, nesse intervalo, os veículos da cidade
inteira tivessem parado e como se, depois, os motores fossem ligados
em toda parte e também as gaivotas em cima da ponte prosseguissem
seus grasnidos interrompidos.
Enquanto andava rio acima na outra margem, o escritor desejou
continuar andando ainda durante algum tempo. Por acaso o querer
entrar em um restaurante não advinha de mero hábito? Ali na água, as
ondas que se sucediam, transmitiam-lhe sua força.

O escritor foi dominado pela nostalgia — após tantas décadas,


aquela palavra continuava eficaz — de viver outra vez em cidades
cosmopolitas estrangeiras, onde ele, mesmo quando viajara sozinho,
tinha conhecido pessoas aqui e ali, nos bairros centrais e nos
subúrbios, as quais, cada qual à sua maneira, se ocupavam com as
mesmas questões e tinham as mesmas aspirações que ele; não queria
conhecer o seu duplo, mas queria compartilhar do solo sob os pés, do
vento, do tempo, do nascer do dia e do cair da noite. Por que era tão
difícil imaginar que também houvesse gente assim nas cidades de sua
terra natal? Por que preferia acreditar na anedota dos dois escritores,
na qual um deles se mudava de casa porque o outro passava todos os
dias debaixo de sua janela?
E, agora, no mesmo ponto do rio de outrora, atravessou seu
caminho aquele velho que se apresentara como ”colega”. Ele só sabia
do outro que tinha sido primeiro professor, depois soldado da Grande
Guerra, depois professor de novo e que agora, aposentado, escrevia
poemas. O velho lhe recitou um deles, logo depois do cumprimento,
como se estivesse esperando essa oportunidade havia muito tempo: a
voz era alta, quase retumbante; em seguida, emendou em sua
conversa cotidiana, articulada e escandida como seu poema. Na
verdade, justo por isto, era impossível ao interlocutor entender
alguma coisa, como, de resto, acontecia sempre. Ele só percebia as
palavras, não o sentido delas. Em contrapartida, via com nitidez os
olhos desnudos do ancião, bem arregalados, como que cegos; a íris
descolorida, um círculo de cor apenas na margem; sob um dos olhos,
o pulsar do saco lacrimal. Mais tarde, quando o seguiu com a vista, a
conversa articulada do outro pareceu se prolongar num tom de
sussurro quase infinito, puro entusiasmo ou queixa.
O restaurante situava-se junto ao rio e ainda estava quase vazio, de
modo que o escritor encontrou um lugar, de onde via a água: parecia
muito agitada, como que recém-caída da montanha. Para ele era como
se ainda estivesse se movendo sobre as pontes por entre as silhuetas
dos passantes. Então, antes de dedicar-se ao jornal, tomou fôlego e
gravou na memória, como ponto de referência, a linha mais distante
do horizonte, lá fora. Uma vez mais, porém, a intenção provou-se vã:
à primeira frase que leu, cessou nele, de imediato, todo e qualquer
tipo de pensamento. Tratou de convencer-se que estava obrigado à
leitura do jornal para ficar informado. (Pois, naquele período em que
se proibira lê-lo, não havia perdido a notícia da morte de alguns de
seus heróis e salvadores, só tomando conhecimento dela quando já era
tarde demais para o memorial?) Folhear jornais era, para ele, na
verdade, um vício. Ele quase não lia uma coluna até o fim; no máximo
passava os olhos por ela; e, ainda assim, artigo por artigo, era raro
qualquer deles despertar-lhe fúria ou enlevamento. Na verdade, ele
sempre ordenava a si mesmo começar do início e, no mínimo,
assimilar uma das reportagens palavra por palavra; logo, porém,
notava que havia captado todo o sentido com o mero vistagrossar; só
que este sentido não ”se quedava quieto na alma, ao contrário de
tantos poemas”, senão que, em vez disso, fazia com que o leitor do
jornal se tornasse totalmente impassível Nesse ponto o viciado — por
sofrer de um vício, que, além de tudo, nem ao menos era um desejo —
se lembrava dos meses que passara em Nova York quando, durante
uma greve, não saiu jornal na cidade por muito tempo. Havia apenas
um mini-em-formato com o nome de City News, no qual apareciam,
em não mais que um par de linhas, todos os acontecimentos da terra
dignos de nota. Naquela época ele estudara, com alegria, essas
notícias da cidade, todos os dias; e quando então — para a maioria,
sem dúvida, ”enfim” — a folha cosmopolita se empilhou de novo,
formando colunas, em todas as entradas do metrô, parecia a ele que
tal título honorífico teria servido bem mais ao pequeno jornal anterior,
tão leve e com tão poucas páginas. Pois, como parecem desnecessários
todas as opiniões e informes especiais, as colunas e editoriais, passado
o primeiro momento, nada mais provocam na cabeça do leitor que um
zunzunir de vespas! E este sempre ressoava mais alto vindo do lado
da ”cultura”, na qual nada podia ser abordado sem que o fosse de
forma opinativa. É bem verdade que, às vezes, ele entendia que a
crítica também podia ser uma arte em si — encontrar a razão de ser do
tema abordado, aquilo a que se chama de ”ótica”, e desdobrar
escrupulosamente esta ”ótica”, tal como se faz em outro tipo de obras
—; o que ele percebia mais intensamente, no entanto, era que a grande
regra costumava ser, na melhor das hipóteses, concentrar-se num
esquema crítico previamente concebido, e, na pior, na trapaça, na qual
o prazer pela coisa há muito deu lugar às apressadas segundas
intenções, perfeitamente discerníveis, a crítica cedendo lugar à política
por debaixo do pano. Em um sonho utópico, a literatura aparecia ante
o escritor como a mais livre de todas as terras; pensar nela era a única
forma de escapar das vilanias e humilhações cotidianas advindas de
uma orgulhosa escalada social; muitos tinham apenas uma vaga ideia
do que isso significava; e todos, assim lhe parecia, se lançavam na
mais despótica das rivalidades, reunidos de modo apático e
camaradesco, ou sorteados com ódio mortal em um jogo de azar;
deixavam-se — até mesmo os mais revoltosos dentre eles
degeneravam, em pouco tempo, em diplomatas — dominar por
verdugos estultos, os quais, com sede de poder em vez de
discernimento, ao mesmo tempo que maltratavam sua presa com
arbitrariedade, ostentavam para consumo externo a imagem de gente
digna e complacente.
Uma vez ele acompanhou de perto a agonia de outro escritor. Em
seus momentos finais, este preocupou-se, mais do que com qualquer
outra coisa, com o que saía na seção de cultura dos jornais. Talvez as
escaramuças de opiniões desviassem a atenção de sua mente no bom
sentido, talvez até o irritassem e divertissem? Preludiariam para ele
uma repetição diária, que, ainda assim, era preferível, de longe, àquilo
que o ameaçava? Não era só isso: ele também era, a distância, em sua
desesperança, prisioneiro dos redatores; estes eram, mais do que seus
parentes, os cortejados de seus sonhos; e, nos intervalos de dor, ele,
incapacitado para a leitura, perguntava como era resenhado neste ou
naquele jornal, nesta ou naquela publicação de novidades literárias
Desse modo, durante certo tempo, veio junto com as intrigas e a raiva
contida, quase satisfeita, na qual o enfermo se descobria, uma espécie
de mundo ou prolongamento na câmara mortuária; o relator das
notícias à beira da cama compreendia o amigo xingante ou aprovador,
como se visse a si próprio ali estendido. No entanto, quando o outro
entrou em agonia mortal, a cabeça já trascaída, e ainda queria ouvir
recitar as opiniões dos jornais recém-saídos, a testemunha se
prometeu não deixar que com ele a coisa chegasse ao ponto em que
chegara naquele ser, seu reflexo, ali! Nunca mais ele participaria
daquele círculo vicioso composto de rótulos e sentenças, que, na
realidade, eram quase pura polêmica estéril. Então, no decorrer dos
anos, ficar de fora e seguir em frente, por força própria e não à custa
de seus semelhantes, tornou-se seu prazer. Pensar em repenetrar no
círculo ou nos minicírculos cada vez mais divididos entre si
provocava nele uma repulsa primitiva. Ele jamais conseguiria escapar
completamente, sem dúvida, posto que ainda hoje, tanto tempo
depois daquela promessa, saltava-lhe aos olhos, como dantes, a
palavra que ele identificava como seu nome. Ao contrário de outrora,
porém, ele ficava, então, aliviado quando constatava ter se enganado.
Sentindo-se protegido, ele continuava a folhear até às notícias locais,
nas quais conseguia acompanhar os fatos por si mesmos.
Quando, enfim, o escritor despregou os olhos do jornal, sentiu
uma forte sensação de perda. O tempo inteiro, o filho da garçonete
ficara sentado ao fundo, à mesa junto à entrada da cozinha, fazendo
suas lições; em vez de olhar mais demoradamente, ele registrara-o
apenas por um breve momento. Entrementes, o local se esvaziara;
sobre a cadeira na qual a criança havia desenhado suas letras no
caderno, sempre mostrando à mãe que passava, encontrava-se agora a
cintilante pasta colegial colorida. Era como se ele, com a leitura do
jornal, tivesse perdido seu raio de visão; o canto da mesa vizinha já
não lhe inspirava nenhuma linha. E, de supetão, ele empurrou o jornal
para o lado; cobriu-o com o cardápio, tão logo notou que, contra a
própria vontade, estava olhando de soslaio para ele; em seguida, já no
meio da leitura mecânica do menu, afastou ambos de seu campo de
visão, colocando-os em cima da outra cadeira, debaixo da mesa.
Empertigou-se, mas continuou sentado, sozinho diante do copo de
vinho, do qual, de tempos em tempos, sorvia um gole. Com os
sentidos obliterados, incapacitado para empreender qualquer coisa ou
pensar, ele não queria sair do lugar. Das pessoas que cada vez eram
mais e mais, via apenas as pernas e torsos; nem um único rosto. Por
sorte, ele não foi notado. A garçonete também soubera um dia seu
nome, mas esquecera de novo havia muito tempo. Lá fora o rio
resplandeceu por um momento, pouco mais do que um pequeno
ponto na água; e agora um bando de pardais voou para uma
desfolhada árvore da margem, as inúmeras asas abertas juntando-se
em uma nuvem que logo desapareceu do céu. Os minúsculos pássaros
empoleiraram-se na ramagem, imóveis, assim como as gralhas no alto
da copa da árvore vizinha e até mesmo as gaivotas, em geral tão
irrequietas, nas balaustradas das pontes. Era como se a neve já
estivesse caindo em cima de todos eles, embora nenhum floco fosse
visível. E justamente ali, naquele quadro vívido com o quase
imperceptível mexer de asas, com o fendente abrir de bicos e o
pingoteado pestanejar, descortinou-se para o observador a paisagem
de verão, onde se passava a história sobre a qual escrevia nesse
momento Dos arbustos de sabugueiros choviam flores brancas,
pequenas como botões de camisa, e nas nogueiras arredondavam-se
as cascas dos frutos Os repuxos dos chafarizes encontravam-se com os
cúmulos-nimbos. De um trigal campestre, junto ao qual pastavam
ovelhas, as espigas estalavam no calor, e em todos os bueiros de
esgoto da cidade acumulava-se a lã dos álamos à altura do tornozelo,
tão fofa que o olhar podia trespassá-la até o fundo de asfalto,
enquanto um zumbido percorria os jardins relvados, transformando-
se em um zunzunar, ao mesmo tempo que o zangão que o produzia
desaparecia dentro de uma flor O nadador mergulhou no rio pela
primeira vez nesse ano, com a cabeça debaixo da água e, depois, ao ar
e ao sol, sentindo nas narinas a sensação de saúde e de primeiro
impulso. O escritor curvou-se sem querer na grama funda — um dia,
no verão, ele fantasiara uma história de inverno como essa — a fim de
pegar uma bola de neve para, de brincadeira, jogá-la em cima do gato.
Capítulo 4

Fortalecido pelas imagens, ele saiu ao ar livre e, então, julgou-se


capaz de tomar o caminho que levava até fora da cidade, direto,
através daquela travessa habitada, a qual ele secretamente apelidara
de ”travessa do séquito”, ironicamente, pois nela nunca lhe havia
aparecido um único ser humano, e, na qual, quase sempre, ele se
perdia a partir de, no máximo, a metade do percurso Em todos esses
anos, ele sempre havia tentado vivenciar esse trecho como um lugar
igual aos outros, e, com a ajuda de seus ângulos, bossas e vistas, torná-
lo descritível — como se tal ”situar” fosse o papel do escritor, e, no
final, ele sempre saía furtivamente dali, pasmo, por uma passagem
bem antes do fim da travessa Mas, desta feita, já não teria sido um
bom sinal o fato de ele ter passado, de cabeça erguida, por assim
dizer, pela livraria que havia no caminho, sem lançar o olhar
instintivo para a vitrine a fim de verificar se algum de seus livros lá
estaria? (Diversas vezes ele acreditara ter enfim se habituado para
logo depois, enlevado com tal pensamento, orgulhoso de si mesmo,
virar a cabeça para o lado em um gesto automático).
Já estava escuro na travessa comprida e cheia de curvas, sem vista
para a saída, as casas altas com telhados salientes enquanto a faixa de
céu lá no alto ainda estava clara, espelho da travessa abaixo. De loja
em loja, ouvia-se sempre a mesma música de Natal, interrompida
pelas vozes dos alto-falantes que apregoavam as mercadorias em uma
ladainha composta quase apenas de números Assim também agiam,
entre si, os grupos dos aprochegantes, o escritor não deixaria de ser
notado. Logo entre as primeiras casas, pouco depois do afunilamento,
ele foi detectado pelo olhar coletivo de uma multidão de adolescentes,
não um olhar de reconhecimento, mas de incompreensão e até mesmo
de hostilidade. Ele imaginou que eles teriam acabado de sair da
escola, onde teriam sido obrigados a interpretar o sentido ou a
intenção ou a motivação de um texto literário e agora, enfim em
liberdade, tomavam a decisão de nunca mais abrir um livro e
desprezar, sem nenhuma exceção, os responsáveis por tamanha
coação. E ele não poderia levá-los a mal por isto, visto que ele não era,
muitas vezes para seu desgosto, alguém — como talvez o fosse um
tribuno ou cantor — que usasse a palavra com a segurança de seu
oficio e com ela entrasse em cena — no máximo, com muita sorte, ele
era usado pelas palavras, a cada momento mais próximo, como
estava, do emudecimento e, quando o evento era público, sentia
normalmente uma certa timidez, sim, uma verdadeira vergonha,
sentia-se, inclusive, culpado como quem viola um tabu. Será que isto
era mesmo pessoal ou tinha relação com o povo deste determinado
país e o singular idioma alemão, onde desde há muito já não existia
nenhuma tradição, ou talvez, quem sabe, ela jamais pudesse ter se
formado? Em todo caso, sob o olhar zangado do grupo ele percorreu
toda a extensão da travessa como se rodasse uma sequência
cinematográfica dele mesmo andando — os olhos como se fossem a
câmera, os ouvidos qual gravador — filmada e projetada ao mesmo
tempo. Não poucos estancaram e visivelmente se puseram a pensar
sobre onde já teriam visto seu rosto teria sido no cartaz de ”procura-
se” da agência de correios, o único cujo retrato ainda não tinha sido
assinalado com uma cruz? Alguns, de longe, já matutavam, depois
lançavam-lhe um sorriso ao se aproximar, não certamente de
amabilidade, mas porque enfim descobriam de onde o conheciam,
contudo, seus rostos petrificavam-se logo em seguida, posto que não
conseguiam relacioná-lo a coisa alguma, ao contrário do que
provavelmente ocorreria com um ator que tivessem visto em um
papel, ou um político que aparecesse na televisão. No meio da
travessa, um dos transeuntes pareceu saber algo sobre ele Ao passar
por ele, num momento mais breve que um soluço de choro, ele
percebeu, ou pelo menos assim imaginou, o reconhecimento de um
leitor nos olhos de um passante. Mais tarde, ele nem saberia dizer se
havia sido homem ou mulher. Parecera-lhe um ser assexuado, fosse
ele ou ela. E acreditou reconhecer isto no olhar que, a distância,
mostrava-se agradecido, queria seu bem, testemunhava-lhe confiança
e dele esperava, inquebrantável, a perseverança no ofício. Todavia,
justo através dessa experiência, tão fugaz quanto bela, o filme, que até
então vinha fluindo tão bem, desenrolou-se à sua frente aos
solavancos Movido pela intensidade do olhar do leitor, o escritor,
agora mais ousado, procurou com os olhos outros, seus iguais, no
meio da multidão (ali onde aparecera, uma vez, um raro entre os
raros, deveria haver um segundo e um terceiro’) e, a partir daí,
pareceu-lhe que um exército inimigo marchava em sua direção até o
final da travessa Olhar-ferrão após olhar-ferrão, ele viu leitores de
segunda mão, êmulos dos livros criticados, que, ao mesmo tempo, se
achavam competentes para sê-lo, assim como se julgavam aptos a ser
todas as coisas existentes entre o Céu e a Terra, já que eram tão bem
informados. A malevolência deles, no entanto, não seria apenas
fantasia sua”? Não, eles estavam realmente prontos para o ataque —
ele já havia vivenciado isto muitas vezes, ansiosos para se lançar sobre
ele, a corporificação daquilo que tanto odiavam, dos devaneios, do
manuscrito, da voz que se opõe, sim, da arte Espere só até eu te pegar
um dia, em campo aberto, com meu para-lama, até eu te pegar diante
de meu postigo, até tu te levantares, por ordem minha, do banco dos
réus, até te amarrarem na cama de grades e eu te aplicar tua injeção
diária E aqueles que pensavam isto não estavam em conluio com os
outros que pensavam o mesmo. Nenhum dos que lançavam o olhar
sobre ele sabia que seu antecessor havia acabado de fazer outro tanto.
Esses seres tão heterogêneos, jovens e velhos, urbanos e camponeses,
conservadores e progressistas, pareciam estar ligados apenas por seu
ódio evidente. Um ódio que ele, ao se lembrar de um conto de
Tchekhov em que havia um personagem íntegro e circunspecto,
sozinho na participação palpável e na intervenção sem saída, chamava
de Ódio aos pintores de paisagem. (”Ela não gostava de mim porque eu
era um pintor de paisagens”) Ainda tentou resistir à superioridade do
adversário, chegando talvez até a diminuí-la, ao simular, com
frequência, um solilóquio silencioso Mas depois foram tantos os que
avançaram, que ele perdeu as forças, inclusive a da contemplação
muda e conciliadora, a qual ele via como seu maior trunfo em vez de
conseguir captar o contexto, coisas avulsas enfiaram-se em seu filme e
começaram a escarnecer dele — chegou a confundir uma armação de
óculos pendulando entre dois dedos com um par de algemas E para
ele era como se visse sua imagem refletida naquelas testas de
enrugamento uniforme e dentes à mostra, imagem bem diferente da
anterior, a que percebera nas praças abertas Diante da visão de um
molho de chaves que o espreitava pendendo de um punho, ele olhou
com desprezo para si, achando que aquela pessoa armada com chaves
era ele mesmo Tentou olhar para o céu, mas lá em cima repetiu-se o
bulício, e quando baixou os olhos, depois, apareceram no calçamento,
ao contrário do que acontecia com frequência no asfalto, em vez de
pegadas de pés humanos, apenas as tampas de esgoto que se
repetiam, a cada par de passos, com a inscrição ”Companhia de
Manutenção de Limpeza”. Do mesmo modo, não se chegava à parte
alguma pelos lados, nem ao fundo de alguma oficina ou residência
aglomeravam-se lojas grudadas em lojas, nas quais as mercadorias
coloridas surgiam através das fileiras como iscas, e os manequins,
quando ainda por cima mostravam os dentes, pareciam seres vivos
Nos espaços entre elas, os olhos dos aleijados e mendigos procuravam
os culpados por sua infelicidade, e nas janelas dos andares mais altos,
vazias como estavam (ao contrário do tumulto abaixo), não se via nem
planta, nem animal doméstico sentado quieto nem globo de luz
(apenas, atrás de uma única janela estavam sentadas duas crianças
pequenas, quase bebês, visíveis até o pescoço, cada qual agarrando os
cabelos da outra, perfil contra perfil, ambas em imobilidade total). O
filme, tão simétrico no inicio, agora não só saltava, como também se
rasgava. Em contrapartida, se ouviam com mais nitidez na desordem
vozes e barulhos, que tinham como alvo o escritor para seu espanto,
muitos daqueles na travessa pareciam estar a caminho de algum
lugar, até aqueles que antes se haviam ocupado dele em silêncio e que
desejavam tê-lo à sua frente, justo ali Soltariam eles frases preparadas,
mas em geral ditas de forma abrupta e, amiúde, a plenos pulmões? Na
verdade, não se dirigiram a ele nem uma só vez, ao invés disso, se
exprimiram para o ar ou para seus acompanhantes, muitos
sussurrando, de tal modo que ele só distinguiu os pedidos de mais
informações do tipo ”quem”?, ”o que foi que você disse?”, ”o que há
com esse sujeito aí?”, ”o que você quer dele?” Até mesmo os que se
apresentavam como casais, de mãos dadas e até abraçados, saíam do
lugar tão logo o avistavam e, perceptivelmente libertos do ter de
desempenhar-o-papel-de-casal, conversavam sobre a sua pessoa. Não
eram apenas as palavras que se referiam a ele, mas também os sons
isolados e o mero inalar de ar. Enquanto um deles cantava errado uma
sequência de tons, um segundo bocejava com todas as forças do
corpo, um terceiro dava uma tossidela artificial, o seguinte batia com a
bengala de passeio guarnecida de ferro, o que o sucedia fungava e este
obtinha como resposta um coro de sapatos de salto altos raspantes.
Perto das últimas casas da travessa — pelo menos hoje ele conseguira
chegar até ali — ficou selada, uma vez mais, a derrota do escritor
primeiro foi chamado quando estava de costas e, ao olhar em volta
sem querer, foi também fotografado, em seguida, alguém vestido de
preto atravessou-lhe o caminho, ergueu o dedo indicador e
proclamou, alegre ”eu acompanho sua literatura’”, e, no final, um
outro exigiu, sem olhar para ele ”um autógrafo para meu filho”
Enquanto satisfazia o desejo deste (e, sem dúvida, pensando na
utilidade de um terceiro e mecânico braço), ele teve a sensação de que,
ao contrário do que pensara na hora seguinte à interrupção de seu
trabalho, não era mais um escritor, mas apenas alguém que
interpretava este papel de modo forçado e ridículo, não seria prova
disto o fato de ele, para autografar, ser obrigado a refletir, para que
seu próprio nome lhe ocorresse? Por outro lado, ele pensou, era bem
feito que isto lhe acontecesse, havia permitido que seu rosto fosse
dado a conhecer Mas se tivesse a oportunidade de recomeçar em sua
profissão, não mais permitiria que se fizesse nenhum retrato dele!
Capítulo 5

Foi um verdadeiro alívio mover-se, logo em seguida, por entre os


trovões e estalidos do trânsito. Era muito estranho como, após todas
estas décadas, ele ainda perdia a calma, e como ele ainda continuava a
viver na incerteza, após empreitadas tão longas, e muitas vezes
fascinantes, no decorrer das quais ele se apaixonava pelas obras E,
mais uma vez, se fazia uma promessa modificar o decorrer das tardes
até o término do trabalho atual’. Até lá, ele não iria mais abrir jornal
algum e iria evitar a travessa, aliás, todo o centro da cidade Direto
para fora, para a periferia, onde era o seu lugar! Ou, então, por que
não permanecer em casa, no quarto, que era seu habitat e onde não
sentia fome, nem sede, bem como nenhuma necessidade de
companhia humana — como se ele fosse alimentado, tivesse a sede
saciada e fosse colocado na fila dos transeuntes, através do simples
concentrar-se, contemplar e anotar? Por acaso o papel já não estava
reluzindo na máquina, captando o último brilho do dia, os lápis a toda
volta não apontavam para os pontos cardeais e da colina vizinha não
piscavam, para dentro do quarto, com regularidade os sinais para os
aviões noturnos’? A casa inteira, junto com os degraus e o corrimão da
escada, parecia abandonada, as plantas do corredor e as poucas flores
de inverno pareciam clamar por contemplação.
Dali a momentos a rua transfigurou-se em rua asfaltada. Na
passagem havia dois crucifixos, costas contra costas, um voltado na
direção da cidade, outro voltado para a periferia. No banco, mais
abaixo estava sentado um homem de cabelos grisalhos entre várias
sacolas de plásticos, bradando, por cima do barulho do trânsito, um
discurso de vitupérios contra a humanidade, do qual se discerniam,
ao se passar por ele, coisas como ”vocês, seus porcos, continuam
buscando a velha cidade por entre essas ruínas, e foram vocês mesmos
que a destruíram!” Reanimado por esta voz estridente, ele acelerou o
passo e afastou-se, percebendo a voz às suas costas e prestando
atenção nela o máximo de tempo possível, a ponto de acreditar ter
descoberto, de verdade, no toco de uma bananeira derrubada pouco
tempo antes, as ameias e pináculos da ”cidade em ruínas” exorcizada
pelo louco.
Quando, para seu alívio, alguém, dentro de um carro que parou de
súbito diante dele, lhe perguntou pelo caminho, o caminhante desejou
que lhe aparecessem mais desses ignorantes de caminhos, tinha
certeza de que poderia, sozinho, cuidar de que todos seguissem em
frente. Um grupo de pessoas à margem da pista parecia amotinado,
acabou descobrindo que apenas esperavam no ponto de ônibus.
Depois vieram os postos de gasolina, os empórios, no espaço entre
eles, cada vez mais superfícies vazias. Ao voltar os olhos na direção
do centro, ele percebia o rio ali, mesmo sem vê-lo, apenas ao reparar
nas gaivotas que circulavam bem acima dos telhados. As árvores das
margens desbotavam-se em sebes e brenhas, junto com as brancas
frutinhas de inverno. Como haviam sido variegadas as folhas de verão
em seu verde e como eram variados os tons de cinza dos galhos de
inverno — o primeiro, perceptível a distância, o segundo, só
apreciado de perto.

Em um desses arbustos matizados de cinza, ele avistou uma massa


colorida, a primeira coisa visível após um out-door-armadilha
tombado, pôde perceber que era um ser humano vivo, reconhecível
pelos dedos crispados. Lá estava caída uma velha, de olhos fechados,
cabelos ralos, estendida de bruços, mas não no chão, e sim sobre uma
ramagem que cedeu sob seu peso. Apenas a ponta dos seus sapatos
tocava o chão, todo o corpo pendia em uma linha oblíqua que fazia
lembrar, inclusive devido aos braços abertos, um avião que fez um
pouso de emergência na copa de uma árvore. As meias da mulher
estavam dobradas nas panturrilhas, de sua testa corria um filete de
sangue, na certa devido a algum espinho. Devia estar ali havia muito
tempo e poderia ter ficado mais tempo ainda, uma vez que
dificilmente passava alguém por ali O solitário não conseguiu erguer
o corpo — espantosamente quente — do mato. Mas logo em seguida
vários carros pararam frente ao espetáculo inusitado, e os salvadores
correram para lá, sem nada perguntar. Detiveram-se, então, em torno
da mulher, ajeitaram um casaco debaixo da nuca dela e ficaram na
calçada à espera da ambulância. Embora ninguém conhecesse
ninguém, eles conversaram entre si, inclusive os estrangeiros, como se
fossem velhos vizinhos reunidos, enfim, devido a um belo acaso.
Reinava entre eles um anonimato muito animado. Ninguém descobriu
o nome da acidentada, que estava consciente e que dirigia, sem cessar,
olhos vivos e arregalados para seu descobridor. Ela com certeza não
sabia seu próprio nome, assim como não sabia seu endereço, nem
como havia se enredado naqueles espinhos no acostamento da
autopista. Estava de camisola e chinelos, uma bata por cima, e
supunha-se que fosse alguém extraviado de algum asilo de velhos.
Falava o idioma nacional, sem dialeto, porém com um sotaque que
fazia com que se imaginasse não alguma região estranha, mas a
infância da mulher que falava: como se de novo dela saíssem os sons
da infância, emitidos pela primeira vez depois de muito tempo. Eram,
na verdade, meras sílabas ou sons isolados; seu olhar voltava-se
exclusivamente para seu descobridor, a quem ela queria comunicar
algo urgente, de modo desconexo, misterioso e ao mesmo tempo com
voz cada vez mais clara. Só ele compreenderia — ele mesmo, sem
erros, completamente. Através de alguns fragmentos
incompreensíveis para os outros, ela contou-lhe toda a história de sua
vida, desde os tempos de menina até agora, e, já aos cuidados da
ambulância, de dentro do carro de salvamento, delegou-lhe o relato
com insistência, como missão para ele. E ele não sentira, sozinho,
outra vez, após a despedida dos companheiros de instante, como se já
soubesse previamente de tudo a respeito da velha perdida? Por acaso
eleja não vinha há algum tempo captando coisas através da intuição,
mais do que pelo conhecimento convencional? Olhou para a sebe
vazia e anteviu novamente o corpo pesado caído ali em cima, os dedos
crispados. ”Oh, santas intuições, continuem!”
Quando andava através do mato, começou a nevar. ”Nevar” e
”começar” eram para ele duas coisas intimamente ligadas, como
dificilmente ocorria; a ”primeira neve” era algo parecido com a
primeira borboleta de limoeiro no princípio da primavera, o primeiro
canto do cuco em maio, o primeiro mergulhar-debaixo-d’água no
verão, a primeira mordida na primeira maçã de outono. Aliás, a
expectativa tornara-se, no decorrer dos anos, mais importante do que
o acontecimento em si: também desta vez foi como se ele tivesse
sentido na testa, antecipadamente, os flocos que só agora o roçavam.
No campo aberto no qual ele traçava a diagonal de praxe, subsistia
o recém-conquistado anonimato fomentado pela nevada e o andar
sozinho. Tratava-se de uma experiência que talvez um dia, no
passado, ele chamasse de ”desconfinamento” ou
desensimesmamento”. Enfim, só a sensação de estar lá fora, com as
coisas, era uma espécie de exaltação; era como se com isto se lhe
arqueassem as sobrancelhas. Sim, dava-lhe uma sensação de
entusiasmo livrar-se do nome, com isto sentia-se como o lendário
pintor chinês, desaparecido dentro de um quadro. Via, por exemplo, o
cabo da carretilha de um trólebus, ao longe, passar vagando qual
antena junto a um solitário pinheiro alto. Estranho que tantas pessoas
ao sair da solidão, com seu murmurar, pigarrear e assoar de nariz,
fizessem lembrar uma máquina crepitante que, finalmente, estivesse
prestes a ser posta em movimento e que com ele, normalmente,
ocorresse justo o contrário era sozinho com as coisas, anônimo, que ele
começava a funcionar direito Se nesse momento alguém lhe
perguntasse como ele se chamava, a resposta seria ”eu não tenho
nome algum” e isto dito com tamanha seriedade, que o indagador
compreenderia de imediato.
A neve ficou pousada a princípio sobre as faixas centrais do
relvado, como se fosse troncos de vidoeiro no caminho, uns após os
outros, enfileirados assim até o horizonte. Em um arbusto espinhoso,
os cristais de neve aqui e ali trespassavam os espinhos e depois
envolviam-nos como gargantilhas. Apesar de não haver outro ser
humano no caminho, além dele, o escritor tinha a impressão de estar
pisando, a cada passo, nas pegadas de alguém que passara antes. Ali,
nos limites da cidade, estava o lugar que correspondia àquilo que ele
havia criado na escrivaninha durante o dia Quis correr, mas, em vez
disto, parou em uma ponte de madeira sobre o regato. O lugar foi
sacudido pelo estrondo da decolagem de um avião e a grama
enroscou-se no fundo da água. A neve, a essa altura, já não era mais
formada por flocos que desciam ondulantes, mas sim por pequenas
esferas duras, e mergulhava fundo no ribeiro como costumavam fazer
as bagas de zimbro no outono, ao mesmo tempo, vinha de longe,
através do crepúsculo, o som do resvalar e estalar dos bastões de gelo
na aldeia, com os quais pareciam ecoar, vividos, por alguns
momentos, os antecessores daquele ali, à espreita. Fez um elogio aos
seus calçados, que, quentes, envolviam-lhe os tornozelos e tinham
peso agradável, enalteceu-os como se enaltecesse os primeiros sapatos
de sua vida, os primeiros com os quais era bom andar:
— Com os que vieram antes de vocês sempre corri o perigo de
escorregar. Mas vocês são os sapatos certos, porque dentro de vocês
piso a terra sentindo-a, e, sobretudo, porque vocês me servem de
sapatos-freios. Vocês sabem muito bem que a única inspiração que
tive até aqui foi a de vagarosidade.
Na periferia da cidade ele sentou-se em um banco de um abrigo,
um ponto de ônibus coberto. Quanto mais ereto se sentava, quanto
mais lentamente respirava, mais aquecido ele se sentia. Ao cair, a neve
tocava a cabine. Esta, assim como o banco, era de madeira cinza-
putrefata, na parede dos fundos, havia uma grossa camada de restos
de cartazes rasgados, escrita em farrapos e sem sentido. Logo atrás do
acostamento para ônibus situava-se o desvio para a autopista, junto à
bifurcação havia um quiosque de sanduíches, todo iluminado, onde,
sem freguesia, um homem de bigodes e chapéu alto de cozinheiro,
parecendo de puro linho, mas que de perto se via que era de papel,
trabalhava sem cessar, no vapor, fumo e labaredas, às suas costas,
lado a lado com as latas e copos de papel, via-se um antiquado relógio
de parede, com ponteiros curvos e algarismos romanos Do outro lado
da tangente havia um morro artificial, um simulador para aulas de
direção, fechado o inverno inteiro, assim como o camping vizinho. Os
poucos choupos mais atrás, todos com contorno de pássaro, eram
restos de uma antiga aleia à qual se ligava o restolhal de uma savana,
por onde avançava a pista de cimento de uma velha estrada militar,
que ainda ostentava os rastros dos tanques de guerra. Toda essa
paisagem da periferia da cidade, junto com o estrondo dos
automóveis que parecia desembocar aí, vindo de todas as direções do
mundo, era-lhe confortável, como qualquer zona fronteiriça dos
sonhos, onde se pudesse permanecer, ao contrário de não importonde
no interior do país. Sentiu vontade de morar em uma das barracas
espalhadas, com um jardim nos fundos, sem passagem para a estepe,
ou, então, na parte de cima daquele campo, onde um abajur de brilho
amarelado acabara de ser aceso. Lápis, uma mesa, uma cadeira. As
periferias exalavam frescor e força, como se nelas perdurasse, eterna,
uma época de pioneiros.
Foi acometido pela súbita necessidade de ler alguma coisa, justo
naquele local. A única coisa que levava consigo era o cartão-postal da
América. Contudo, apesar da clara iluminação da rua, mais uma vez
ele não conseguiu decifrar a escrita do velho amigo, ela parecia querer
imitar cada vez mais o ziguezague de seu perambular inexplicável
através do continente em cada carta, um carimbo postal diferente.
Enquanto apresentavam na parte da frente as imagens sempre iguais
de uma natureza árida e sem homens, ora um deserto, ora um canyon
ou uma sierra, com o tempo, as letras reconhecíveis foram
desaparecendo da parte de trás Até bem pouco os pontos paralelos,
semicírculos e linhas sinuosas ainda faziam pensar no alfabeto
arábico, de lá para cá, contudo, os traços perderam toda e qualquer
forma, e a distância entre um traço e outro se tornara tão grande e
irregular, que não dava mais para se supor nenhuma concatenação
entre eles (apenas o endereço e as ever com a assinatura no final
continuavam escritos com a mesma nitidez de sempre). O que os
obscuros rabiscos transmitiam ao observador era reconhecido de
modo evidente no pressionar do utensílio da escrita, no duplo
estriamento da pluma, no esguichar da tinta — um esforço furioso
como se o papel fosse abordado a cada vez de uma forma nova e
sempre inútil. Mas havia também uma outra mensagem, captada nos
estropiados caracteres cuneiformes, apagados de todo e qualquer
vestígio de mão humana uma ameaça, um augúrio de morte e de
extinção dirigido ao destinatário.
Do lado da cidade onde ficava o abrigo, havia a última e pequena
rua de loteamento. Com os olhos aguçados pelo esforço da decifração,
o leitor levantou a cabeça O céu do dia ainda era visível no espelho de
trânsito junto à desembocadura da rua, um pequeno quadrado claro
na penumbra circundante As casas de loteamento, todas de cumeeira
pontuda, apareciam abaixo muito reduzidas e, ao mesmo tempo,
aumentadas, os tetos levantados nas pontas como os de um pagode.
Também a própria rua, na realidade bem reta, se curvava e arqueava
na extremidade, perspectiva palpável no pátio entre as casas como se
ali ela ainda seguisse em frente. A imagem do espelho não refletia
nenhuma estação do ano, os flocos de neve no ar poderiam bem ser
pólens voadores e os do chão poderiam passar por flores caídas. Com
a arqueabilidade da imagem, o vazio no espelho tornou-se mais
iluminado e as coisas nesse vazio, o contêiner de fibra de vidro, as
latas de lixo, os cavaletes, ostentaram algo de solene, como se alguém
estivesse saindo de uma clareira, e contemplando tudo misturado. Os
seres vivos também afiguravam-se transmutados diante de um
supermercado havia adultos e crianças sem pressa, que se
diferenciavam com toda a nitidez em seus tamanhos e que o espelho
aproximara Na rua assomou, em vez de um carro, um único e
gigantesco pássaro que, saindo da claridade, fez uma curva na direção
do observador, com asas largas (e passou voando por ele, com um pio,
minúsculo na escuridão). A praça com brinquedos infantis, à margem
do loteamento e naquele momento sem nenhum usuário, foi abaulada
pelo espelho, transformando-se em uma oval, naquele vazio, contudo,
ainda oscilava um balanço, que pôde ser observado até que os
movimentos deixados pela criança se transformassem em um mero
tremor da corda ao sabor do vento-neve. ”O vazio, minha divisa O
vazio, minha paixão.”
Capítulo 6

Embora nada de especial tivesse acontecido, ele se sentiu como se


já tivesse vivenciado o bastante por um dia — como se tivesse
assegurado o amanhã Não carecia de mais nada por hoje, nem visão,
nem conversa, muito menos novidade. Apenas descansar, fechar os
olhos, deixar de ouvir, nada mais fazer a não ser inspirar e expirar.
Desejou que já fosse hora de dormir. Não mais ficar à luz e ao ar livre,
mas sim na penumbra, em casa, no quarto. Estava, no entanto,
igualmente farto da solidão, para ele, com o decorrer do tempo, era
como se tivesse passado por todas as possíveis variações da loucura e,
no final, sua cabeça rachasse. E, anos antes, quando caminhava
sozinho por atalhos secundários, todas as tardes, sem ser avistado por
alma humana, ele não acreditara, com rara angústia, que se dissolvia
no ar e já não mais existia? Assim — por um lado, para nada mais
experimentar, e por outro, para se certificar de que não estava louco, e
que, pelo contrário, era um dos poucos mais ou menos lúcidos, como
sempre descobria no trato social — ele retornou àquele restaurante na
periferia da cidade, que ele alcunhara de ”a taberna” Situava-se em
um cruzamento triangular da rua e era para lá que se dirigia, em
intervalos regulares, durante os meses de trabalho. Ele tinha até
mesmo seu lugar cativo ali, um nicho na parede, perto da vitrola
automática, com vista para o cruzamento e, mais atrás, a paisagem-de-
carros-usados. Dessa vez, contudo, quando ele forçou a passagem por
entre as pessoas, acabou verificando que seu nicho tinha sido fechado
com cimento Durante alguns momentos foi para ele como se tivesse
trocado de restaurante e se encontrasse no lugar errado — até que
reconheceu os rostos, uns após os outros, gente que só podia fazer
parte daquele espaço ali, daquela luz artificial e da fumaça. (Se os
tivesse encontrado durante o dia, no centro, um por um, ele não
saberia onde encaixá-los.) Ao sentar-se em um lugar qualquer e olhar
para o grupo, voltaram-lhe à mente particularidades de cada uma
daquelas pessoas Muitos haviam lhe contado toda a vida, e no dia
seguinte mesmo esquecera quase tudo Em contrapartida, fixou certas
locuções, gritos, gestos e inflexões. O primeiro cunhara a sentença
”quando estou com razão, eu me exalto quando estou sem razão,
minto”, o segundo ia à missa domingo após domingo, porque
experimentava um calafrio nas costas todas as vezes, a terceira
designava cada um de seus diversos amantes como ”meu noivo”, o
quarto soltou um grito, certo dia, respingando os ouvintes com gotas
de saliva ”estou perdido!”, do quinto, que repetia com frequência que
havia conseguido tudo na vida, lhe ficara na memória um contato de
pulso, um empurroçar de uma delicadeza que só um homem com
medo consegue esboçar. Aquele círculo de pessoas era tão
heterogêneo quanto o próprio local em um dos dois salões havia a
cornadura de um veado ao lado da foto colorida de um junco, no
outro, a cobertura de estuque de uma vivenda sobre uma pista de
dança rústica levemente elevada Até mesmo a mesa reservada em um
dos cantos, maciça como todas as outras, estava, na verdade, ocupada
pelos mesmos de sempre, sem que estes, porém, tivessem qualquer
coisa em comum o representante de firma em terno de seda estava
sentado ao lado do antigo dono do restaurante, que usava sapatos de
feltro e que agora ocupava um dos quartos do andar superior, seu
vizinho era um egresso da Legião Estrangeira, que nesse meio tempo
se transferira para o papel de ”protetor de objetos”, em frente a ele
estava um camareiro de navio desempregado, sempre vestido de
macacão de automobilista, com sua noiva, uma enfermeira (debaixo
da cadeira, um capacete de motociclista). Todos os outros nos dois
salões se adequariam indiferentemente àquela mesa. A única coisa
que todos tinham em comum era o fato de que pensavam com
frequência em escrever um livro sobre a própria vida, ”desde o
começo!”, com pelo menos mil páginas Contudo, sempre que se
indagava mais a respeito, surgia apenas a lembrança de um pequeno
incidente, ou um mero olhar pela janela, talvez para uma cabana em
chamas na noite, ou para os rios de barro formados após uma
tempestade, mencionados em um tom de voz fervoroso como se essas
trivialidades pontuassem toda a imensa vida.
A noite começou bem para ele na taberna As pessoas fingiam que
não o notavam e, ao mesmo tempo, deixavam o lugar exageradamente
desocupado para ele, onde quer que ele estivesse, parado ou andando
Sabiam também que ele não tinha ido ali para observá-los ou ”fazer
pesquisa de campo”, mas sim porque, provavelmente, levava uma
existência tão marginal quanto a deles. Ao apertar as teclas da vitrola
automática, ele sentiu, após o dia de buscapalavra, o alívio dos
números puros. Antes de a canção começar — agora era uma voz de
mulher -, o aparelho transmitiu-lhe seu zunzunar e só depois lançou o
som. Embora quase nada da canção penetrasse o tumulto, ele
reconhecia, vez por outra, um daqueles intervalos musicais que o
satisfaziam. Na mesa dos jogadores, um deles estava sempre olhando
para um céu invisível, ao passo que os outros, o jogo firme nas mãos,
fixavam-no pelo canto do olho. Na mesa próxima à entrada, os que
estavam de passagem esperavam pelo último ônibus de volta às suas
aldeias. O cartazete de ”reservado” estava colocado sobre a mesa
desocupada, à espera de uma freguesia que, era evidente, tinha algo a
comemorar, a filha do dono do restaurante, que passara por um longo
aprendizado em outro estabelecimento, fez surgir, num passe de
mágica, enormes guardanapos brancos, deixando que cada um deles,
ao ser colocado sobre a mesa, se desdobrasse em ramos. O gato que
dormia no peitoril entre vasos de plantas se assemelhava tanto ao seu
próprio gato, que, a princípio, ele acreditou que aquele houvesse
corrido até ali. Via-se através da fenda da cortina o movimento
contínuo dos ônibus noturnos, abarrotados de passageiros, sentados e
em pé, e, através dos vidros enevoados, conseguia-se distinguir, numa
fração de minuto, um rosto, único em sua diversidade. Veio à mente
do observador aquela árvore de verão que ficava diante da janela de
seu quarto, um dia, após longa concentração, ao levantar os olhos do
papel para ela, distinguira ao mesmo tempo cada folha, forma por
forma, e todas as folhas juntas. Verão do trabalho feliz, ele lhe
despertou imediatamente na imaginação uma lenta dança de imagens
da escada de pedra com molhos de heras, todos abertos exceto um,
espiralado, em forma de báculo, subia-se ao planalto à sombra das
nuvens, onde a árvore com zumbido de abelhas simulava um
monocórdio coro humano, dali seguia-se para uma estrada de terra,
onde um ciclista acabava de dar súbita freada em sua bicicleta, com o
olho lacrimejando por causa de uma mosca, em frente, na trifurcação
do caminho, descia-se na direção do lago, negro e vazio antes da
tempestade, em cuja margem, ao abrigo de um quiosque, estava
sentado um velho de chapéu de palha, tendo ao seu lado o neto
descalço, uma rajada de vento logo arrojou uma cauda de gelo aos pés
de ambos, até que no final da dança de imagens, no jardim noturno,
um pirilampo fez uma curva, voou para dentro da casa escura e aberta
e ali iluminou o canto em que se aboletava um gafanhoto. Tal
fantasiar em sequência de imagens liberava-o do presente? Ou será
que isto não o desvendava mais, será que não o aclarava, unindo as
pontas soltas e dando seu nome a tudo, à gotejante torneira de cerveja
ao lado da bica de água que corria sem cessar atrás do balcão, aos
desconhecidos lá dentro e às silhuetas do lado de fora? Sim, ao
fantasiar dessa maneira, surgiam para ele, ao mesmo tempo, as coisas
e os homens, sem que ele precisasse contá-los, como as folhas daquela
árvore de verão, entrelaçadas em um todo Justamente em virtude do
tempo presente, contudo, ficou nítido o que ainda lhe faltava a beleza
engrandecida sob forma de mulher, não em especial para ele (pois
desde aquela época na fronteira da língua ele se sentia como se
houvesse perdido também o próprio corpo), mas sim para todos no
local’. Certa vez, uma aparição assim havia se materializado,
repentina e corpórea, no umbral da porta, à procura de um telefone?
para comprar cigarro? para pedir indicação do caminho para a
cidade? e, em sua contemplação, toda a sombria malta da taberna se
transmutara e despertara Sem tornar-se mais silencioso ou olhar para
dentro de si, cada qual havia tentado, na duração da bela aparição,
mostrar sua face mais nobre, nem que fosse apenas para o seu vizinho
imediato, e mesmo depois que ela partira — nada se falou sobre ela —
os abandonados continuaram unidos no acanhamento que vivificava
os olhos, em singular unissonância. Isto já havia acontecido há muito
tempo, mas ainda hoje ele erguia, de vez em quando, a cabeça em
direção à porta, só ele? na esperança de que a estranha se revelasse
uma segunda vez, Ela nunca voltou, não viera hoje tampouco, e a dor
por sua ausência aumentou, chegando às raias da indignação. A porta
permaneceu fechada. Em vez dela, aproximou-se um bêbado vindo do
balcão, o olhar esgrimindo por entre nuvens de fumaça. Ao chegar à
mesa, ele cravou os olhos, primeiro, no caderno de anotações, meio
zarolho, de cima para baixo, depois no homem sentado à sua frente,
impôs sua presença e começou a falar Seu rosto aproximou-se tanto
enquanto falava, que perdeu todo o contorno; nítidas continuaram só
as pálpebras com seu forte tremor e o laço da gravata-borboleta sob o
queixo; na testa, um arranhão que devia ter sangrado até havia pouco.
Ele exalava um cheiro fortíssimo e não apenas de suor, como se nele
se tivessem armazenado todos os fedores do mundo, desde o de
cadáver em putrefação até o de enxofre. Nenhuma palavra do que
estava falando penetrava o outro, nem mesmo quando este levava o
ouvido para bem perto de sua boca. Ele não estava falando, porém,
nenhum idioma estrangeiro, pelos movimentos dos lábios e estalar de
língua devia tratar-se do idioma nacional. Sem dúvida alguma, ele
não proferiu uma única vez o som sibilante do sussurrar a única coisa
inteligível continuou sendo o repetido acariciar do palrador na
própria face, ou o recuperar fôlego no meio do discurso, num som
esticado como o de um instrumento que se afina. Diante da sugestão
para falar mais alto, seguiu-se, na verdade, uma elevação — os
ombros se levantaram, a garganta se estirou -, mas a taramelagem
prosseguiu tão afônica quanto antes. Apesar de ao falar não olhar para
o homem à sua frente, nem fazer gestos em sua direção, estava claro
que aquilo que tentava dizer referia-se apenas a este. Queria
comunicar-lhe algo importante. E, durante algum tempo, o ouvinte
teve, de fato, a impressão de que compreendia o que lhe era
comunicado, e também assentia no que pareciam ser os momentos
corretos (posto que o outro ria, como que ratificando). Mas eis que de
repente — essa frase feita, usada muitas vezes gratuitamente,
correspondeu, desta vez, exatamente ao acontecido -, ele perdeu o
contexto secreto conhecido apenas pelos dois ali, ao mesmo tempo
que perdia, do mesmo modo repentino e inexplicável, o
concatenamento necessário ao que deveria escrever na manhã
seguinte, o qual ele acreditara assegurado no decorrer da tarde e sem
o qual não poderia prosseguir o trabalho. Já tinha uma vaga ideia de
cada frase até a frase final — tratava-se apenas de encontrar a
sequência ideal — e, de repente, todas as palavras nada mais valiam,
sim, em retrospecto, também era declarado sumariamente nulo tudo o
que fora criado até então, desde o verão, e que lhe dera alento nas
últimas horas. Ele imputou isto, a princípio, à fumaça na taberna, que
tanto obstruía o respirar quanto a imaginação, e foi ao banheiro a fim
de se recompor no frescor, diante dos azulejos e de água corrente. Mas
lá sentiu prosseguir o mutismo que o invadira, a obra, sentida por
enquanto apenas como recipiente vazio, a ser preenchido, parecia
nunca ter existido, no espelho, ele via o inimigo. Com relutância, ele
retornou à mesa, prisioneiro do homem ininteligível, que, em sua
espera magistral, altoempertigado, o peito inchado, retomou sem
demora o discurso obscuro e interrompido no meio da frase. Seu
(apenas na aparência) ouvinte tinha um constante pesadelo noturno.
Sonhava-o tão somente em seus períodos de criação literária e nele
não havia ação alguma, mas um repetido veredito de juiz, sempre
igual a noite inteira o escrito durante o dia não era apenas
considerado nulo e nada-dizente, simplesmente não podia existir,
escrever era um crime, a ousadia de uma obra de arte, de um livro, era
o mais pérfido dos sacrilégios, sobre o qual recaía condenação pior do
que a prescrita a qualquer outro pecado. E, nesse momento, ele teve,
com os sentidos aguçados na hora do final do trabalho do dia, a
mesma sensação de culpa imperdoável e, com ela, a de banimento do
mundo pelo resto dos tempos. Ao contrário do que lhe acontecia em
sonhos, ele podia perguntar-se, de modo sistemático, acerca de seu
problema — o escrever, o descrever, o narrar. Qual seria, do escritor, o
objeto? Por acaso haveria ainda tal coisa em seu século? Como
denominar o tipo de homem cujos feitos e sofrimentos clamam, não
apenas por ser relatados, arquivados ou tornar-se matéria de livros de
história, senão que, além disso, almejam ser transmitidos na forma de
um poema épico ou pequena canção? E a que deus se deveria entoar
um canto de louvor? (E quem ainda teria forças para elevar sua
lamentação a um deus ausente?) E onde estaria o soberano longevo,
cujo reinado não deveria ser comemorado apenas com salvas de
canhão? E onde seu sucessor que tomou posse não apenas à luz de
flashes? E onde estariam os vencedores olímpicos, cujo retorno à
pátria merecera algo mais além dos gritos de bravo, do tremular de
bandeiras e toque de clarins? E quais os genocidas deste século, que
em vez de se erguerem de suas covas com uma desculpa qualquer,
ainda poderiam ser mandados para a eternidade do inferno por meio
de um único terceto? E, em contrapartida, em vista do fim do mundo
não mais apenas imaginado, mas agora possível da noite para o dia,
como dominar de maneira simples as coisas caras ao planeta, na
forma de uma estrofe ou de um parágrafo sobre uma árvore, uma
região, uma estação do ano? Aquele ângulo visual da eternidade —
onde existiria ainda? E, apesar disso tudo, quem poderia afirmar que
ele era um artista e guardava em seu espaço interior o mundo? A essa
ofensiva de perguntas apresentava-se, então, a seguinte resposta já
reconhecera minha derrota enquanto homem da sociedade, ao me
segregar e me pôr à parte — há quantos anos? — para escrever, eu me
excluí da companhia dos outros pelo resto da vida Por mais que eu
me sente aqui entre as pessoas, seja cumprimentado, abraçado,
partilhe seus segredos até o final, mesmo assim, jamais farei parte
disso.
Concordando estranhamente com o resultado do solilóquio, ele se
acalmou, ao mesmo tempo que deparou com os olhos de seu
companheiro de mesa, que movia os lábios como antes. Seus olhos já
não piscavam mais, seu repouso, contudo, era justo o contrário do
”descansar-de-algo”. Eles o tinham surpreendido, a ele, o suposto
correligionário, em sua distração, e isto significava traição. A esse
olhar de menoscabo, bem rápido, sucedeu-se um afastamento bem
lento. E, enfim, o inaudível tornou-se, em seu distanciamento,
inteligível. Ele disse ”você é fraco” E ”você mente’” e, em seguida,
falou para o círculo de pessoas à sua volta, em tom de queixa sentida.
— Nenhum de vocês sabe quem eu sou.
Ele pegou, por fim, o caderno de anotações do estranho e cobriu-o
de rabiscos, virando com a mão as páginas em branco, impondo uma
confusão de pontos e espirais, após o que se levantou e começou
imediatamente a dançar, com passos que pareciam obedecer ao prévio
tracejamento, como se aquela fosse uma partitura.
O dançarino, transformando em garbo o seu cambalear e dobrar de
joelhos, desapareceu, um-dois-três, no tumulto. À procura dele, o
abandonado olhou para um dos fregueses do grupo da mesa vizinha,
a quem ele apelidara de ”legislador”, sem jamais lhe ter falado Era
mais novo que ele, sempre com a mesma jaqueta de pelica, ombros
largos, orelhas de abano, sobrancelhas de curva alta e olhos tão
encovados nas orbitas, que pareciam pequenos Com sua atenção
sempre alerta, ele tinha um quê de guerreiro. Em compensação, era o
único em sua mesa que se mantinha de fora de toda e qualquer
evidência. Sim, ele reprimia a todos, não pelo fato de não se imiscuir,
mas pelo seu silêncio expressivo. À sua volta, as coxas eram
balançadas com força e sem cessar, só ele permanecia tranquilo O
olhar de tristeza serena, com o qual contemplava dois esbofeteadores
mútuos, impediu que estes se batessem com os punhos ou mesmo
sacassem de suas facas. Em silêncio, ele apreendia pormenor a
pormenor, e, calado, dava a resposta a cada um. Quando abria, vez
por outra, a boca, para emitir uma frase curta, era como se o constante
observar desse o tom de sua voz, ela nunca oscilava e, lacônica,
colocava em seu devido lugar o perguntador. Esta era a instância
silente do local, a força exalada por ele, a força do juízo. Contudo, seu
modo de fazer justiça não era um estado, nem tampouco um
regulamento estabelecido, pois se renovava a cada fato, era uma
atividade, um fazer justiça, em ritmo silencioso e simpatizante, que
pregava o justo e impingia às partes a sentença em silêncio. Esse
espreitador silente de pupilas fulminantes que formavam o retrato de
cada pessoa presente, com seus ombros largos que giravam sem cessar
e pareciam escandir os acontecimentos do local: não seria ele o
narrador ideal?
Teria ele observado o legislador durante horas ou apenas por um
momento? Em todo caso, para ele agora era como se já estivesse ficado
muito além da hora na taberna; e pensou, não pela primeira vez, que
nunca mais encontraria o caminho de casa. Assim, parado no lugar e
incapaz de se mexer, ele presumiu que até o simples ato de se levantar
e conseguir chegar à porta e sair ao ar livre seria inimaginável. Para
fazê-lo, primeiro ele teria de lembrar cada entroncamento de seu
caminho de volta, como num roteiro de expedição, onde são
planejados as trilhas da caravana e os atalhos da selva, os vaus e
desfiladeiros, assim como os pontos de abastecimento. Ao levantar-se
subitamente foi roçado por um taco de bilhar, um cachorro
arreganhou-lhe os dentes e, não bastasse, o cinto do sobretudo
enganchou-se na maçaneta da porta.
Capítulo 7

Lá fora, na rua, ele abotoou e amarrou de novo suas roupas, do


casaco aos sapatos. Nesse momento, se ele tivesse atirado seu caderno
de anotações como um disco, tal como imaginara pouco tempo antes,
este teria caído a seus pés. Não nevava mais; o céu estava encoberto
pelas nuvens. A neve estava alta e firme; as gotas derretidas dos
lampiões da rua caíam, em intervalos regulares, formando desenhos
parecidos com os da varíola, nos quais retornava a imagem da ”cidade
em ruínas” do louco. Como uma criança que se agacha nos rastros de
chuva no pó de uma estrada de terra, assim acocorou-se ele diante do
enxame de crateras, e, ao enfiar a mão nelas, a neve queimou-lhe a
pele de modo tão salutar quanto a urtiga, outrora. Sem rodeios, com
olhar baixo, ele caminhou cidade adentro, apesar de sentir o impulso,
que com ele se movia, de tomar a direção contrária ou, pelo menos, de
ser mais rápido ou mais lento. Essa foi a hora da mesquinhez, quando,
em vez de seu trabalho, ocupou-se apenas de seus descuidos
cotidianos: mais uma vez não havia escrito a tão prometida carta; os
originais do desconhecido continuavam por ler; mais uma vez não
arrumara a documentação do imposto de renda; ainda não pagara a
conta; não havia levado o terno para a tinturaria; a árvore do jardim
não fora podada. E, então, ocorreu-lhe que tinha um encontro no
centro da cidade e que a pé j á não chegaria a tempo; e até mesmo com
o táxi que parou de imediato ao sinal, chegaria atrasado…
Quem esperava por ele era um tradutor que, vindo do exterior,
havia dias que percorria os caminhos da região onde se passava o
livro e que, para terminar, queria ainda fazer perguntas ao autor
acerca de algumas coisas e palavras. O ponto de encontro, um bar, era
o último resquício de um complexo de cinemas, onde os vestígios de
raspaduras de tinta na fachada ainda apresentavam, quando se olhava
com atenção, a inscrição ”cinemas”. Ele estava sentado sozinho no
canto mais recuado do local — a princípio, quase não se distinguindo,
ser humano vivo que era, das fotos de artistas da tela que enchiam as
paredes -, como seja lá estivesse havia algumas eternidades! Um
homem velho, a quem, pelo visto, o esperar havia reanimado, e que
lançou um olhar tão ladino para o retardatário, que era como se
soubesse cada etapa da tarde passada por ele. Como em todas as
outras vezes, ele cumprimentou-o com uma parábola:
— Não é verdade que as muitas frutas à margem do bosque
atraem para o centro do arvoredo onde, em geral, não há fruta
alguma?
As dúvidas do tradutor foram resolvidas rapidamente (pois o
autor pôde dizer o que havia pensado a cada palavra). Logo em
seguida o velho, virando-se para a escura antessala do antigo cinema,
começou um discurso, tão lógico e calmo como se ele o tivesse
preparado durante o tempo de espera; e embora ele fosse estranho ali,
não apenas na cidade, mas também na Europa, sua voz soou através
do bar como se ele fosse o dono do lugar; por um momento, pareceu
ser sua a mulher elegante e grisalha, proprietária do local, que ouvia
rádio atrás do balcão de latão muito abaulado. Muitas de suas frases
eram precedidas de um som sibilante e esticado como a fanfarra de
um arauto.
Sabe, eu também fui escritor durante muitos anos. E se você me vê
tão contente assim, hoje, é porque eu não mais o sou. E lhe contarei
agora as razões de minha renúncia. Ouça, meu caro! Quando comecei
a escrever, eu via o mundo em mim como uma sequência confiável de
imagens, que eu só precisava contemplar e descrever uma após outra.
Com o tempo, porém, foi-se perdendo a clareza dos contornos, e do
olhar para dentro de mim surgiu uma escuta adicional. Naquela
época, minha concepção era que — e eu sempre percebia pela
experiência quando isso acontecia — me havia sido concedido, ao
mais recôndito do meu íntimo, uma espécie de texto original e
próprio, o qual se encontrava ali, em constante e concomitante existir
e acontecer, de modo ainda mais confiável que as imagens, posto que
indeteriorável pelo tempo; tal texto seria por mim transposto para o
papel, sem nenhuma cerimônia, bastando para isso que eu me cingisse
ao habitual e nele imergisse. Naquela época eu imaginava o escrever
como a simbiose entre a escuta e a coescrita, como uma tradução, na
qual a questão era usar uma secreta fala original em lugar de um
modelo visível Mas sucedeu com meu sonho o mesmo que a todos os
meus sonhos ele tornou-se cada vez mais tênue e também passou a
significar cada vez menos, à medida que eu o acionava, não apenas de
vez em quando, de maneira espontânea, enquanto fragmento, mas
sim de modo sistemático, dia após dia, querendo concluí-lo como se
fora uma espécie de Grande Chave dos Sonhos, aquilo que, antes,
tudo dizia, fragmentariamente, passou a não mais dizer coisa alguma,
enquanto todo planejado. Minha tentativa de decifrar um pretenso
texto original dentro de mim e, a partir desse deciframento, obter um
todo encadeado, logo se me afigurou como um pecado original Com
isto começou o medo Passei a recear cada vez mais o tomar assento e
esperar. De todos aqueles que tinham como profissão a minha, eu era,
ao que sabia, o único que tinha medo de escrever e, a bem da verdade,
o temia a cada dia que entrava e saía E, noite após noite, o mesmo
pesadelo era iminente uma apresentação coletiva diante de um grande
público e todos os outros tinham seus textos, só eu não O fim chegou
no meio de uma frase totalmente não sentida, sem concepção, sem
ritmo, que me atingiu como uma interdição da escrita, para sempre.
Nunca mais faria algo de meu. Eu me recordo que, naquele dia, eu saí
sob o sol mais quente e fiquei horas e horas debaixo de macieiras em
flor, frio como só um cadáver consegue ser, e depois ri em
pensamento da frase de um dos grandes. ”E só preciso soprar nas
mãos, para a coisa acontecer” Após um período de transição em que
fiquei mudo, eu me tornei este que você conhece tudo, menos escrever
algo de próprio! Não transpor o limiar! Permanecer no átrio! Posso,
enfim, ser o coadjuvante em vez de, tal como outrora, ser o solista e só
assim, na condição de um coautor, posso, afinal, triunfar’ Só no
traduzir — um texto confiável — eu desfruto de minha presença de
espírito e me sinto inteligente Ao contrário de antes, sei que cada
problema existente é um problema solúvel. É bem verdade que eu
continuo me atormentando, mas já não sofro mais nenhum martírio, e
tampouco sigo à espera dele, de que ele aconteça para que eu mereça
o direito de escrever. O tradutor tem a certeza de que seu trabalho
será aproveitado. E, desse modo, também me livrei do medo quanto
tempo já se passou desde que eu, ao apontar o lápis antes do trabalho,
trêmulo como costumava ficar, então, quebrava uma ponta após
outra.
E ao despertar pela manhã, em vez de me assustar diante da
clausura, do exílio, como em tempos passados, sinto ânsia de ficar em
casa para traduzir. Tradutor que sou, e nada mais além disto, sem
segundas intenções, sou plenamente o que sou, devo permanecer fiel
aos acontecimento atuais, ao passo que, antes, com frequência, me
sentia um traidor O traduzir me conduz a uma paz mais profunda.
Mas, olha, amigo as maravilhas que vivencio continuam as mesmas —
só que não mais no papel principal. Continuo buscando a satisfação
da palavra correta, única, e meu andar arrastado torna-se, apesar da
minha idade, um correr.’ E continua a mesma a minha urgência — só
que ela já não me pressiona mais quando medito, e sim me permite ser
superficial de um modo repousante. Desse modo, ao exibir as suas
feridas da maneira mais bela possível, eu oculto as minhas. Morrer à
máquina de escrever: só passei a desejar isto depois de me tornar
tradutor.
O velho ainda queria conhecer sozinho a cidade vazia, da qual fora
obrigado a fugir por mar há meio século, e não deixou que o
acompanhasse até o hotel. Seu autor, no entanto, seguiu-o escondido,
após a despedida (como era seu hábito com conhecidos, e também
estranhos). Andou pouca distância atrás do outro, sem ser notado, por
praças e pontes e, em seguida, ao longo da outra margem. Embora o
homem à frente agisse com rapidez, com sua cabeça cambaleante e
movimentos saltitantes de lebre, o seguidor foi obrigado a repetidas
paradas bruscas, mesmo já estando bastante recuado; o velho não só
andava em ziguezague como se estivesse bêbado, ele também se
detinha a cada par de passos, ora para trocar de mão a bolsa com o
manuscrito traduzido, ora apenas para descansar. Na verdade, não se
tratava de uma bolsa, era mais um cesto trançado, largo e quadrado,
com uma alça e uma tampa de couro negro, que a cada poste de luz
reluzia mais preta. O que poderia haver de tão pesado em seu
interior? Ao observador o cesto afigurou-se como o receptáculo no
qual se havia deitado ao Nilo, no passado, o recém-nascido Moisés,
com a esperança de que, dessa maneira, ele pudesse se pôr a salvo dos
esbirros. Até a porta do hotel, ele só teve olhos para o meneante cesto,
no qual estava escondido, flutuante, o bebê, a caminho da filha do
faraó.
Capítulo 8

Ao se encontrar no jardim de sua casa, ele não conseguia lembrar


como tinha ido parar lá. Não se recordava de nenhum detalhe do
caminho, o qual trilhava constantemente morro acima por atalhos
serpentiformes e degraus de pedra. O homem lá embaixo tocando
saxofone para o marulhar das águas, junto à escarpa do rio noturno,
tinha de ser imaginação. E acaso não seria imaginação o fato de
encontrar-se ali, no jardim? Na realidade, não estaria ele ainda na
taberna, ou caído morto em algum lugar, apunhalado, alvejado ou
atropelado por algum automóvel? Ele se inclinou e tentou fazer uma
primeira bola de neve, mas os flocos não aderiram uns aos outros.
Olhando em retrospecto, ele se sentia como se tivesse passado as
horas distantes da escrivaninha em um duelo contínuo, e, aqui, não
havia luta corpo a corpo ou ringue. Percorreu o jardim passo a passo e
contornou cada arbusto e árvore, até que a vagarosidade com que o
fazia se tornou circunspecção. Na casa havia luz, que ele deixara acesa
aguardando seu retorno Deixou-se cair, ao lado da porta da casa, em
cima do banco de madeira muito comprido, que tinha um quê dos
bancos de final de dia de trabalho nas propriedades rurais Sentia-se
tão aquecido, que chegou a desabotoar seu sobretudo Esticou as
pernas e sentiu nos calcanhares o solo desigual do jardim em seu
repouso de inverno Um brilho perpassou a neve fresca, que cheirava
mais ainda à folhagem caída e a húmus A última campanulácea fora
queimada pelos flocos de neve, que tinham se aglomerado como
cristais de gelo sobre o cálice, as pontes da corola de coloração azul-
clara se enrugaram em algumas horas tomando uma cor acastanhada
A obra de alvenaria no terreno vizinho, quase falida porque o dono
acabara com todo o dinheiro, estava lá qual templo em escombros de
uma outra parte da terra Por um momento, um operário abriu seu
metro articulado, ressoaram os gritos estrangeiros, e a roda do
cordame, há tanto tempo parada por causa da ferrugem, tornou a
solavancar e girar. Ele recordou-se do dia em que, no intervalo do
almoço, o jovem aprendiz ficara deitado na laje, com os braços
cruzados sob a nuca, enquanto ele martelava a máquina de escrever
no quarto e, por seu turno, deixava escapar até o outro o barulho de
seu mundo através da janela aberta Será que ele queria algum
vizinho? Notou que adormecia com esta pergunta vozes se
distanciavam e eram substituídas por aquela única voz, atônica e ao
mesmo tempo enchendo a caixa craniana, a voz que lhe narrava os
sonhos Ouviu falar de um livro escrito por um seu precursor, no qual
já estava, palavra por palavra, aquilo que ele havia escrito naquele dia
A princípio, o sonho aterrorizou-o e, depois, apaziguou-o Sentiu um
impulso e entrou na casa.
Como sempre, ele esperava, sem querer, encontrar algum recado
ou notícia atrás da porta, atirado através da fenda do correio, e mais
uma vez isso deixou de acontecer Como sempre, também, ele
atrapalhou-se ao desamarrar os nós com toda amorosidade E, como
sempre, o sem nome animal doméstico ficou olhando fixo e imóvel em
direção à porta à espera de mais alguém, mesmo depois de ele já ter
entrado no corredor havia muito tempo Posto que ele não sabia
conversar nada com o animal, alimentou-o e cortou a carne nos
menores pedaços possíveis, como compensação pela carência de
palavras.
Apagou todas as luzes Os aposentos estavam claros devido à neve
e ao reflexo da cidade nas nuvens, uma claridade noturna, na qual os
objetos ficavam mais escuros ainda Na cozinha, ele escutou as últimas
notícias com o olhar pousado no mostrador luminoso do rádio Apesar
de ser meia noite, o locutor parecia desperto como se fosse dia claro
No meio das notícias, entretanto, ele foi dominado por uma forte
emoção — que aquilo que lia não justificava — em relação a alguma
coisa, que o vinha ocupando, subterraneamente, o tempo inteiro, e
que agora queria saltar para fora dele, quase sem voz, audivelmente
próximo às lágrimas, chegando a interromper-se uma vez e ficando
mudo durante longo tempo, como alguém que tenta agarrar-se para
logo depois cair com um grito, ele salvou-se com o informe de
meteorologia e ainda conseguiu pronunciar o ”boa noite”, quando,
sem dúvida, foi afastado imediatamente do microfone. Teria sido
demitido naquele exato momento? Teria sua amada se separado dele?
Será que lhe tinham comunicado que alguém conhecido havia
morrido, no exato momento que antecedera o soar do gongo?
Sentou-se em uma das salas de estar com vista para a sala
contígua, em seu lugar noturno, uma espécie de cadeira de diretor de
cinema onde as coisas lhe ficavam à altura dos olhos. O paletó claro
que se encontrava sobre um espaldar desde o último verão fez com
que ele sentisse de novo, durante alguns momentos, as pestanas
molhadas do nadador ao vento do rio Por que ele só participava com
tamanha pureza das coisas quando se encontrava sozinho? Por que ele
só conseguia acolher dentro de si aqueles que com ele estavam, depois
que tinham partido, e de maneira tão mais profunda quanto mais
longe estivessem? E por que lhe era mais nítida a imagem daqueles
ausentes que em pensamento via como pares? E por que só vivia com
os que já estavam mortos? Por que apenas os falecidos conseguiam
transformar-se em heróis para ele? Colocou uma das mãos na testa, a
outra no coração, e ficou sentado como se estivesse num trem
noturno, que, em seguida, ele ouviu, de fato, passar lá embaixo, sobre
a ponte de aço do rio, fazendo na neve o mesmo barulho que faz um
trenó ao deslizar no gelo Logo em seguida, quando o telefone tocou
no corredor, ele não se levantou não estava à espera de ninguém e
também já não queria mais abrir a boca.
Não por cansaço, mas para o impedir de continuar a pensar, ele se
cobrou ânimo para caminhar em direção ao quarto de dormir.
Enquanto se lavava no escuro — desvontade só de pensar em ver seu
rosto -, ele sentiu como se outra pessoa estivesse fazendo o mesmo ao
lado. Deteve-se e, em seguida, ouviu de novo uma página de livro ser
virada no recanto mais recôndito da casa. Uma cadeira foi arrastada,
um armário foi aberto de novo e os cabides tornaram a soar batendo
uns nos outros. Estranho como na memória todos os barulhos, até
mesmo o ranger de portas e o rumorejar, se organizam em acordes. O
que nesse momento andava às apalpadelas no vão da escada tinha os
pés ligeiros demais para ser um homem.
Pegou um copo com o maior cuidado possível e abriu a torneira de
água, com cautela, a fim de evitar o assobio habitual. Segurando o
copo à sua frente com ambas as mãos, ele andou escada acima e
retardou-se para contar as pisadas As invés de meditar, queria apenas
continuar contando de modo bem vagaroso. Sentiu-se tão leve com
isto, que em nenhum momento suas pisadas seguras provocaram
rangidos Por que nunca tinham inventado um deus da vagarosidade?
Entusiasmado com o próprio pensamento, saltou um degrau e a casa
inteira rangeu sob seus pés.
Evitou entrar no escritório, lançou, de passagem, um olhar para a
mesa para ver se ainda estava lá a pilha branca, desde o verão
acrescida de uma folha a cada dia O anônimo animal, que correra à
sua frente, estava aboletado no tapete qual guardião do cômodo, uma
corcova na forma de casacolinadorso. Próximo à cama, ele abriu a
janela Nesse lado da casa, afastado do jardim, o rochedo era íngreme.
Ele começou a imaginar que caía lá embaixo, e como o choque de sua
queda seria atenuado pela massa das espirais de seus lápis, que ali se
haviam acumulado no decorrer do tempo e dos anos. (Com mais
frequência ainda, ele havia sentido, semiadormecido, uma sucção
vinda do abismo e, para se defender, fora obrigado a se agarrar na
cabeceira da cama.) As copas das árvores pareciam arredondadas pela
neve e o céu estava iluminado pelas estrelas, como se tivesse sido
aceso de um momento para o outro. Lá estava, encinturado, o Orion, o
Caçador, tendo aos pés o fraco contorno da Lebre; e a alguns passos
ao lado bruxuleavam Nashira e as Plêiades. Respirando fiando, ele se
sentiu sozinho agora com esse céu. Em um canto do aposento estavam
encostadas as bengalas de suas diferentes peregrinações; a casca de
aveleira bronzeada brilhava à altura dos olhos. O que sou? Por que
não sou um cantor — e tampouco um Blind Lemon Jefferson? Quem é
que me diz que não sou coisa alguma?
Iniciei-me no ofício da palavra! Seguir em frente. Deixar estar.
Deixar valer. Representar. Transmitir. Continuar a trabalhar a mais
volátil das matérias, sua respiração; ser dela o artífice.
Enfim, apenas o estar deitado. A paz, ela existia. O escritor pensou
no dia seguinte e se propôs a, pela manhã, antes do trabalho, andar de
um lado para o outro no jardim, durante tempo suficiente para que
suas pegadas ficassem tão densas na neve como se uma caravana
inteira tivesse passado por lá, e até testemunhar o voo de um pássaro.
Fez mais uma de suas promessas: caso não fracassasse no trabalho —
não perdesse outra vez a palavra -, a capela do asilo de velhos lá
embaixo aos pés da colina receberia um sino novo para as badaladas
do meio-dia, o qual em vez do repicar teria um belo timbre… E, então,
ele pensou de novo na tarde passada e tentou rememorar alguma
coisa dela. O que lhe surgiu foram os ramos oscilantes em frente à
fenda da cortina na taberna e o cão que, exibindo sua dentadura qual
boxeador pondo à mostra sua proteção de dentes, andava em círculos
em frente.
Quedou-se admirado consigo mesmo; próximo à sensação de
calafrio há muito tempo esquecida.

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