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Resenha do livro FORTES, Rafael (org.).

Segurança pública, direitos humanos e


violência. Rio de Janeiro, Luminária Academia, 2008.

Por Adriana Facina1

Walter Benjamin, filósofo marxista judeu que se suicidou em 1940 para escapar
dos nazistas, dizia que o historiador que desenvolve empatia com os vencedores
beneficia os herdeiros desses vencedores, os opressores do tempo presente. “Todos os
que até hoje venceram participam do cortejo triunfal, em que os dominadores de hoje
espezinham os corpos dos que estão prostrados no chão”, dizia Benjamin em suas Teses
Sobre o Conceito de História. Como a história freqüentemente é narrada a partir da
perspectiva dos vencedores, cabe àqueles que se identificam com a tradição dos
oprimidos “escovar a história a contrapelo”.2

Há mais de um ano, uma megaoperação policial no Complexo do Alemão


combinou forças repressivas estaduais e federais, marcando época no histórico das
políticas de segurança pública desenvolvidas no estado do Rio de Janeiro. Enquanto
muitos festejavam a realização do Pan em solo carioca, 1.350 policiais foram enviados
para uma das áreas mais pobres e desassistidas da cidade. Com aproximadamente 180
mil habitantes, o Complexo do Alemão possui apenas uma escola estadual, não tem
postos de saúde funcionando e nenhum centro cultural. Na grande imprensa, o tom foi
de louvação à ação repressiva que deixou oficialmente 19 corpos estendidos no chão da
favela, alguns deles com sinais de execução sumária. Autoridades apoiando a iniciativa,
pois, como foi dito na época, não se pode combater o crime com flores. A classe média,
aterrorizada em seus guetos, cujas cercas são formadas pelo medo cotidianamente
regado pela mídia corporativa, aplaudia e tinha a sensação de que, finalmente, alguém
estava fazendo alguma coisa para combater o crime. As vozes que ousaram contestar as
visões oficiais sobre o ocorrido no Alemão falavam em chacina e denunciavam o
desrespeito flagrante aos direitos humanos. Foi pequeno o espaço que puderam ocupar
nos meios de comunicação e mesmo em instituições insuspeitas como a OAB/RJ, que
tratou de exonerar o presidente da sua Comissão de Direitos Humanos e Assistência
                                                             
1
 Antropóloga, professora da UFF. 
2
BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas vol. 1. São Paulo, Brasiliense, 1993, p.225.
Judiciária, o advogado João Tancredo, cujo papel foi fundamental na condução da
investigação sobre o massacre em questão.

Defender os direitos humanos não é tarefa fácil na sociedade brasileira hoje.


Existe um senso comum bastante difundido que estigmatiza os militantes de direitos
humanos como defensores de bandidos, sócios do crime etc. Parecemos ter esquecido
que a origem da idéia de direitos humanos remonta pelo menos ao tempo da Revolução
Francesa, movimento político que funda a época contemporânea e coloca as massas
como protagonistas de transformações sociais profundas. A perspectiva básica que
reunia todos os segmentos sociais envolvidos na revolução era a da necessidade de se
criar uma ordem na qual o ser humano deveria ser o centro da vida política e social.
Mais recentemente, sob o impacto dos horrores da Segunda Guerra Mundial, cujo saldo
de milhões de mortos incluía os assassinados em campos de extermínio e também os
civis massacrados pelas duas bombas atômicas lançadas sobre o Japão, surgiu a
Declaração Universal dos Direitos Humanos, proclamada pela ONU em 1948. Nela são
condenados o arbítrio e a tortura e garantidas a liberdade de expressão e o direito ao
trabalho, entre outros. Desse modo, procurava-se manter garantias mínimas para uma
vida digna a todos os seres humanos. Eram os chamados “anos gloriosos”, nos quais as
economias capitalistas ocidentais cresciam num ritmo acelerado e a existência do bloco
socialista alimentava sonhos concretos de revolução.

Mais de meio século depois, a conjuntura é diversa. A devastação neoliberal


gerou desemprego, fragmentação, individualismo e desesperança em meio ao
hiperconsumo e à mercantilização da vida humana. Não podendo mais ser incorporados
via emprego ou consumo, os pobres se tornaram uma massa de seres supérfluos. Como
classes perigosas, esses supérfluos são agora objeto não mais de políticas de bem estar
social, mas sim de um Estado penal, nos termos do sociólogo Loïc Wacquant, que os
condena às prisões ou mesmo ao extermínio.

Esse contexto histórico favorece a proliferação de discursos que relativizam os


direitos humanos, legitimando práticas como tortura e execuções sumárias Desse modo,
a própria idéia de ser humano, de humanidade é relativizada. Em última análise, os que
atiram contra os direitos humanos não estão dizendo que certas pessoas têm direitos e
outras não. Mas sim que alguns são humanos de verdade, enquanto que outros não
merecem tal designação. As cerca de 1300 mortes em autos de resistência registradas
em 2007, assassinatos pelos quais os representantes armados do Estado não têm de
responder, traduzem em números essa desumanização.

O livro do jornalista e historiador Rafael Fortes se coloca na contracorrente


dessas visões e fornece um material precioso para a documentação e análise das
políticas de segurança pública do governo Sergio Cabral. O autor realizou nove
entrevistas, que na verdade mais parecem diálogos, com personalidades que se
expressaram publicamente na época da chacina. Políticos, intelectuais, um jornalista,
defensores dos direitos humanos que, a partir de diferentes filiações teóricas e
filosóficas, vão se manifestar contrariamente à política de suposto confronto com a
criminalidade nas favelas, denunciando-a como ineficaz e geradora de mais violência.

Um dos entrevistados, o deputado estadual Marcelo Freixo (PSOL), afirma que a


polícia carioca é uma das mais violentas do mundo, sendo a que mais mata e a que mais
morre. É uma força pública que está sendo utilizada não para o combate ao crime, mas
sim a uma determinada imagem do criminoso: o jovem negro favelado. No dia seguinte
à chacina, de manhã cedo, o deputado estava na favela e constatou que a dinâmica do
comércio varejista de drogas continuava a mesma, enquanto mães choravam as mortes
de seus filhos e moradores reclamavam por terem suas casas e comércios saqueados
pela polícia. Defendendo a idéia de que estamos passando por um processo silencioso
de genocídio da juventude pobre e negra, ele diz que a proporção de jovens mortos em
confronto com a polícia é de 40 para 1 na cidade do Rio de Janeiro. A desproporção
desses números nos ajuda a desconstruir a idéia de existiria uma política de confronto,
como afirma o governador e seu secretário de segurança, ou mesmo uma guerra.

Cecília Coimbra, professora do curso de Psicologia da UFF e presidente do


Grupo Tortura Nunca Mais, critica essa perspectiva de que estamos em guerra, pois ela
legitima, por exemplo, um treinamento brutal para os policiais militares voltado para
identificar o pobre como inimigo. É este o homo sacer, termo utilizado por Giorgio
Agamben para definir aquele que é matável sem que isso seja considerado crime. Tanto
Cecília, quanto a entrevistada Vera Malaguti Batista, também professora da UFF,
chamam a atenção para uma cultura violenta produzida cotidianamente pelos grandes
meios de comunicação. Vera destaca ainda a importância do proibicionismo na
produção da violência ligada ao comércio varejista de drogas.
O jornalista Marcelo Salles, autor de uma bela reportagem para a revista Caros
Amigos sobre o cotidiano dos moradores do Complexo do Alemão imediatamente após
a chacina, aponta para a falta de democracia na cobertura do evento. Ele guardou os
jornais do dia seguinte à “megaoperação” e, régua e calculadora em punho, mediu o
espaço das reportagens destinado à versão da polícia, que ocupava cerca de 90% das
páginas dos jornais, restando apenas 10% para visões que a problematizavam e falavam
sobre o desrespeito aos direitos humanos cometido pelas forças estatais.

Além das entrevistas, o livro reúne artigos sobre o extermínio de pobres


conduzido pelo Estado e que nos ajudam a compreender os acontecimentos do
Complexo do Alemão dentro de um contexto mais amplo. Um exemplo é o texto “Um
Carandiru por mês”, do jornalista José Arbex Jr., que questiona a figura do mandado de
busca coletivo e nos faz pensar sobre o gigantismo das cifras do extermínio no estado
do Rio.

Completando a tarefa benjaminiana de escovar essa história a contrapelo, Rafael


Fortes publica documentos importantes que denunciam os abusos cometidos na
operação de junho de 2007. Os manifestos públicos, assinados por organizações da
sociedade civil e por militantes dos direitos humanos, se tornaram um importante
instrumento para dar voz ao dissenso e defender a vida em meio à celebração da morte.
Mas o mais impressionante é o Relatório Técnico produzido por uma comissão de
peritos independentes designada pela Secretaria Especial dos Direitos Humanos da
Presidência da República. Primeiramente disponibilizado na internet e posteriormente
tornado sigiloso, o laudo confirma a versão dos moradores do Complexo do Alemão
sobre a ocorrência de execuções sumárias durante a “megaoperação”. É o próprio
Estado brasileiro produzindo um documento oficial que confirma uma política pública
voltada para o extermínio de pobres. Publicado no livro de Rafael Fortes, essa fonte
histórica fica preservada dos misteriosos desaparecimentos de documentos que lançam
luz sobre os porões da repressão estatal, muito comuns na história recente do Brasil. Um
presente para aqueles historiadores do futuro que não formarão fileiras ao lado dos
opressores.
FORTES, Rafael (org.). Segurança pública, direitos humanos e violência. Rio de
Janeiro, Luminária Academia, 2008.

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