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Zé Carioca
Em parábola do país contemporâneo, personagem encontra
um Rio diferente do que apresentou ao mundo e aos próprios
brasileiros. Há ufanismo e malandros românticos — mas
também a desigualdade brutal que a idealização oculta
OUTRASPALAVRAS
POÉTICAS
por Gabriel Bayarri
Publicado 04/07/2019 às 16:59 - Atualizado 04/07/2019 às 17:09
A vitória política dos monstros não se entendia nos outros continentes. Brasil
era a terra do Zé Carioca, aquele que tinha mostrado ao mundo em 1942,
durante a Segunda Guerra Mundial, um Brasil que parecia cordial e feliz, um
Brasil que valorizava sua mestiçagem como símbolo da cultura nacional. O
papagaio apresentava ao Pato Donald uma cidade orgulhosa de si mesma,
bonita e alegre, onde se misturava o samba, a cachaça, a festa e os malandros
românticos. Agora observava assombrado como a cidade maravilhosa abraçava
a heróis armados, e empreendeu um voo pintado em sua perplexidade, tratando
de entender o que se tinha transformado numa cidade que recordava pintada
em aquarela. Zé Carioca voou ao coração da cidade tropical, onde se
simbolizavam os espaços de resistência de uma democracia que ele achava
harmoniosa e blindada aos monstros que agora a governavam.
O papagaio agitou as asas entre os morros, e pousou suas penas na sua querida
praça da Cinelândia, e respirou sua história, da que só reconhecia a parte
harmoniosa: desde sua época inicial de areal deserto, a praça tinha se
transformado num lugar central a inícios do Século XX, que foi pintando sua
paisagem de pequenos cafés e pastelarias, representando a Belle Époque do Rio
de Janeiro, de seu conflito pela modernização urbana e cultural da vida no
campo. A Cinelândia adquiriu traços afrancesados, tão desejados pela recente
República brasileira, que tratou de refletir a antiga capital como uma Paris
Tropical através das reformas estéticas e higienistas do prefeito Pereira Passos
(1902-1906). Ao centro da cidade chegavam os escravos recentemente libertos
das plantações de café, açúcar e algodão, ao mesmo tempo em que a Praça
adquiria uma personalidade cosmopolita com seu Teatro Municipal, a Escola
Nacional de Belas Artes, o demolido Palácio Monroe, a Biblioteca Nacional e a
Câmara Municipal. Isso tudo resultava familiar para o Papagaio, que encontrava
na história um relato alegre.
Respirando fundo, o papagaio lembrou como desde os anos 20, avalado pelo
setor empresarial, o Paris Tropical começou a observar a Broadway nova-
iorquina como modelo de ócio, empresarial e cultural a se reproduzir no centro
carioca. A Cinelândia começava a se dotar de cinemas e salas de espetáculo,
hotéis, restaurantes e bares noturnos. A chegada do cachorro-quente na Praça
resultou revolucionária como ponta de acesso das influências culturais norte-
americanas após a Segunda Guerra Mundial na vida carioca. O Rio de
Janeiro brasileirizou seus elementos, introduzindo ingredientes como os ovos
de codorna e o purê de batata, e compondo na sua homenagem marchas
carnavalescas que cristalizavam sua influência nas interações da Cinelândia.
O papagaio sentia orgulho da sua cidade, até que uma mulher se aproximou a
ele: “O nosso cachorro-quente é carioca da gema”, explicou a vendedora
ambulante que portava uma camiseta com o rosto de Marielle Franco. Quem era
essa mulher que lhe queria explicar os elementos da brasilidade? E quem era
essa mulher negra que levava na camiseta? Onde estava a Carmen Miranda?
Onde estavam as frutas da sua cabeça? Então o papagaio escutou na praça a
história do assassinato da vereadora e seu motorista, e os novos relatos sobre a
violência da “noite carioca”, de seus conflitos policiais, da cidadania incompleta
e da transição do Polo Cultural do Centro para a Zona Sul burguesa e elitizada.
Mas Zé Carioca não acreditava que sua bela cidade estivesse afetada por estas
questões.