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“O Poder” – explicou-me um veterano da política, ex-deputado ao longo de 6 legislaturas –

“carece de dois elementos: forma e legitimidade”. Ao caso do poder político, a forma está
consagrada na CRP, no código administrativo, na legislação que atribui e delega competências
aos dirigentes eleitos ou nomeados; quanto à legitimidade, esta encontra-se respaldada em
resultados eleitorais, consequências da democracia, tradutores da vontade popular. Assim o é,
ou costuma ser, quando o agente de poder se trata de um autarca, de um edil, de um
presidente da república, ou do primeiro-ministro.

Circunstâncias fortuitas (ou infrutíferas, dependendo de quem as vê) pode sobrelevar poderes
que, democraticamente, parecem ilegítimos. O vereador minoritário capaz de desempatar um
mandato fragmentado, o cacique que preenche as listas de lugares eletivos garantidos, o
negociador que assegura a nomeação, o chefe de gabinete “que é quem realmente manda”.
Na popular série “House of Cards” o protagonista consegue o lugar de Presidente dos Estados
Unidos da América sem nunca ter recebido um voto, confessando à audiência “Democracy is
so overrated”. Mas em política existem também poderes informes, frequentemente capazes
de superar as valias outorgadas pelo cumprimento de regimentos e estatutos. Denota-se hoje
essa situação nos partidos da direita tradicional, cujos líderes assumiram a administração
corpórea – gerem os respetivos patrimónios, os seus recursos, as suas sedes e funcionários –
todavia, contrariamente aos opositores internos, parecem não ter poder de facto, de se fazer
ouvir, de construir narrativas, de manobrar corredores mediáticos, de criar e moldar opinião
pública, de granjear reconhecimento ou impor um discurso. Em “Microfisica do Poder”,
Michael Foucault fala de uma “sociedade que em grande parte marcha 'ao compasso da
verdade' – ou seja, que produz e faz circular discursos que funcionam como verdade, que
passam por tal e que detêm, por esse motivo, poderes específicos"; Um fenómeno semelhante
terá sucedido no PS entre 2011 e 2014.

Mark Zuckerberg não precisa de se candidatar para que a sua plataforma possa interferir no
resultado eleitoral de qualquer contenda democrática, de qualquer dimensão plausível, em
qualquer ponto do mundo. A sua acção não será plasmada no diário da república, mas em vez
de alterar a legislação, consegue – conseguiu – alterar a cultura. A noção Gramsciana de que a
cultura antecede a política força os agentes políticos a procurar modelar a consciência
colectiva fora dos períodos eleitorais, fora de assembleias e ministérios. Mas é política, epur,
pressupõe uma disputa de poder. Foi como dirigente político que o Professor Gonçalo Ribeiro
Telles (réquiem eternam dona) disseminou as suas preocupações com a ecologia e a
reflorestação, que nos chegaram e marcaram décadas antes da jovem Thunberg. Quando o GTH
(grupo de trabalho homossexual) surgiu em Maio de ’91, o partido que o elaborara (PSR)
conquistou perto de 1 % nas legislativas desse ano e nenhum deputado, mas 30 anos depois as
suas ideias quanto ao casamento entre pessoas do mesmo sexo são transversais a todo o espectro
político, sem que ninguém as conteste. Teve o poder de mudar o paradigma cultural e não
precisou de legitimidade eleitoral.

Aquando do pacto com o MFA , a força dos Partidos advinha da estrutura: organizações
numerosas, com muitos militantes, destinados a transmitir programas e material de
propaganda por todo o país, assentes na territorialidade (norte, regiões autónomas e raia para
o PSD, centro e litoral para o PS) e na cercania com organizações apensas, sindicais (PC) ou
eclesiásticas (CDS). O PSR (então, LCI), de tão insignificante, não foi tido nem achado nas
reuniões com os militares. Isso mudou em 1999 com a entrada de uma pequeníssima
organização no parlamento que emanava, não da estrutura, mas da cultura. De facto, já não
eram precisos milhares de ativistas com bandeiras e megafones, bastavam apenas os
apoiantes certos em Lisboa e Porto para amplificar as suas causas, maioritariamente
mediatizáveis e vindas do estrangeiro. A imprensa, a televisão, fariam o resto. 20 anos depois,
não apenas com estas correias de transmissão, mas também graças à democratização da
internet e das redes sociais, desmultiplicaram-se os partidos representados no parlamento,
que são hoje o dobro de então. Um dirigente de uma dessas novas formulações garantiu-me:
“eu sempre disse que tínhamos de ter um partido pequeno, os partidos grandes já não estão
na moda”

É uma definição de Jean Charlot que os Partidos se distinguem dos grupos de pressão por
ambicionarem tomar o poder, mas se o seu poder é informe não se contabiliza em deputados
ou autarquias e se é alavancado fora das urnas, não assenta na popularidade eleitoral. Antes
de se contarem os votos, é “assim que se vê a força” aferindo a capacidade de contágio sobre
o país, de impacto, ainda que encoberto, sub-reptício. Um canal de Youtube pode mobilizar
mais apoio do que uma arruada preenchida, apoio por sua vez traduzido nas agendas que
debatemos, nas mensagens em que foca a atenção mediática, nos temas que são e não são
passíveis de discutir, nas mensagens que a vastíssima maioria dos fazedores de opinião em
consonância publicam.

Assustadoramente, passou a influir o nosso modo de vida, a forma como falamos, o que
podemos ou não dizer e até aquilo que comemos. Infectou ainda, maquiavelicamente, os
outros Partidos, infiltrando-se, inseminando-lhes temáticas, condicionando-lhes as
movimentações, colonizando o seu espaço político, seduzindo os seus apoiantes, validando ou
invalidando os seus dirigentes. Eu não posso votar num líder de um Partido onde não milito,
mas se conseguir obstaculizar a sua eleição sem me filiar ou pagar quotas, embora informal e
ilegítimo, deterei um poder tremendo.

Em pouco mais de duas décadas, contaminou praticamente todas as estruturas da vida


pública, mesmo que detenha apenas um punhado (figurativo) de activistas profissionais.

Acusei a geringonça de haver primado pela opacidade, sobretudo na relação entre governo e
parceiros. Tudo foi nebuloso. Mas podemos em retrospetiva questionarmo-nos,
pontualmente, onde se fez sentir o poder dos segundos durante o sexénio transato. Haverá
sido na instituição da polémica disciplina de Cidadania e Desenvolvimento? Na extinção do
SEF? Em junho de 2020, enquanto Portugal confinava, consentiu-se ao SOS Racismo – braço
armado do supramencionado – que se manifestasse audivelmente na capital. No ano anterior,
pretendendo satisfazer as exigentes reivindicações programáticas do junior partner, o governo
– em pré-campanha – publicava o controverso despacho 7247/2019. E em 2016, demandou-se
a exoneração do tenente-coronel António Grilo subdiretor do Colégio Militar. Terão estes
momentos insidiosos sido fruto de “Negociações”? Geringonça obligé?

Estou certo de que o despotismo que assolou a família Mesquita Guimarães seria impensável
num ministério tutelado por Mário Sottomayor Cardia ou perante um governo comandado por
António Guterres, amantes da tolerância e liberdade. Mas não estou certo das transformações
de que padeceu a conjuntura societária, transformando-nos ao longo desta era; Muito menos,
da sua autoria. Poderia especular, usurpando a sua terminologia, sobre “o dono disto tudo”
que sita ao fundo da Almirante Reis, e que apenas com meio milhão (e dezassete) votos,
instilado na regência, exercendo uma tremenda influência sobre a sociedade Portuguesa,
ultrapassa em muito os poderes determinados pela constituição ou proporcionais aos seus
méritos eletivos. Afinal, quando permitimos que o 2º Partido mais votado numas legislativas
chefiasse, incluímos também o 3º. Volto, porém, a Foucault para recordar que “todo o poder
gera resistência” e que, os déspotas em democracia, têm apenas o poder que o povo lhes
deixar.

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