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Narrativas Midiáticas Contemporâneas Perspectivas Epistemológicas
Narrativas Midiáticas Contemporâneas Perspectivas Epistemológicas
Narrativas midiáticas
contemporâneas:
perspectivas epistemológicas
editora
editora
C
Copyright dos autores
I - PERSPECTIVAS REFLEXIVAS
Narrativas jornalísticas sob a luz da pragmática: uma análise das implicações 12
ideológicas a partir da perspectiva de Motta e Habermas
Karolina de Almeida Calado e Heitor Costa Lima da Rocha
Informação e função social: perspectivas de discurso e narrativa jornalística 22
Luiz Henrique Zart
Jornalismo e narrativa: aspectos do estado da arte das pesquisas no Brasil 36
Mirian Redin de Quadros, Lara Nasi e Juliana Motta
Análise pragmática da narrativa: Teoria da narrativa como teoria da ação comunicativa 47
Luiz Gonzaga Motta
Imprensa como singular-coletivo na modernidade 64
Eduardo Luiz Correia
As temporalidades no jornalismo: do acontecimento às narrativas 73
Marta Regina Maia e Michele da Silva Tavares
De fontes a personagens: definidores do real no jornalismo literário 86
Mateus Yuri Passos
O narrador na reportagem: uma estratégia do autor 98
Jaqueline Lemos
II – VISADAS APLICADAS
A narrativa micro-histórica em O olho da rua: as personagens anônimas 112
na prosa de Eliane Brum
Francisco Aquinei Timóteo Queirós
Jornalismo e o texto da cidade: a narrativa da rua na seção Brasiliana, de CartaCapital 123
Cida Golin e Maria Rita Horn
Visualidades da grande reportagem no Brasil 138
Yara Medeiros
Hemingway não tuitava nem gugava: a história da obra jornalística 152
do Papa da reportagem
Ana Beatriz Magno
III – NARRATIVAS DO EU
Biografia Jornalística: inclinações, possibilidades e especulações 167
Rodrigo Bartz
Tempo e obsessão nas narrativas dos diários íntimos 175
Victor Lemes Cruzeiro
Diálogos transformadores: aproximações entre as narrativas etnográficas, 189
psicológicas e jornalísticas
Monica Martinez e Mara Rovida
Do estético ao ideológico na análise de narrativas jornalísticas: o caso das 200
histórias de vida
Fabiano Ormanze
“Em um mundo fragmentado é preciso organizar a memória” 212
Alexandre Zarate Maciel
As narrativas de si nas redes socias: o “eu” no facebook 226
Ana Claudia de Almeida Pfaffenseller, Fabiana Piccinin e Nize Maria Campos Pellanda
IV – OUTROS OLHARES
Narrativas do corpo inteiro: tecnomediações em realidade virtual 239
Eduardo Zilles Borba
A narrativa jornalística como mecanismo de “transcriação” 255
Maurício Guilherme Silva Jr.
A televisão e a polinarrativa do jornalismo audiovisual 264
Vânia Torres Costa, Alda Cristina Costa e Célia Trindade Amorim
Narrativa jornalística acessível por meio do recurso da audiodescrição 278
Daiana Stockey Carpes
A midiatização das narrativas de bicicleta 289
Demétrio de Azeredo Soster
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PREFÁCIO
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ao campo da literatura e da crítica literária. Nas últimas três ou quatro décadas - mais
particularmente a partir dos anos 1990 - a teoria e a analise da narrativa brotaram com
força no âmbito acadêmico e se expandiram com uma vitalidade surpreendente nas
teses, dissertações e pesquisas de vários campos do conhecimento: a comunicação,
a ciência política, a antropologia, a historiografia e a literatura. Dos bancos escolares
a nomenclatura e conceitos narrativos se alastraram para âmbitos menos ortodoxos
como a política, a teologia e a vida prática.
Os cursos de jornalismo, premidos talvez pela determinação da objetividade,
relutaram por décadas compreender o seu objeto como uma narrativa. Isso, felizmente,
mudou radicalmente nos últimos anos. Nos estudos do jornalismo, a análise da
narrativa tornou-se uma disciplina específica para responder às questões particulares.
Desenvolveu metodologias próprias e gradualmente se adequou às rápidas mudanças
do mundo empírico-profissional, incluindo a internet e as redes sociais. Qualquer que
seja o seu suporte, o jornalismo é obviamente uma prática narrativa e seus produtos
(a notícia, a reportagem, a crônica, a fotografia, o video, os posts e mensagens das
redes sociais, etc.) são relatos ainda que produzam significados parciais, fragmentados
e efêmeros. Não apenas porque a reportagem é a configuração dos fatos da realidade,
mas principalmente porque o jornalismo é uma nítida prática para domar e organizar
o tempo. A narrativa, já disseram tantos, dá conteúdo ao tempo, põe o tempo em
perspectiva. É por isso que utilizamos a mesma palavra para contar uma história e
contar números. Os fatos se sucedem, se passam uns depois dos outros: para registrá-
los e memoriza-los é preciso enumerá-los, contá-los. Mal ou bem, quem mais conta
o que se passa ao nosso redor hoje é o jornalismo: ele configura sucessivamente as
representações da realidade.
No entanto, não é fácil compreender e estudar o jornalismo como uma narrativa.
O olhar narrativo traz a subjetividade para um tipo de comunicação pretensamente
objetivo. Em princípio, jornalistas não contam estórias, querem reproduzir fielmente os
fatos. Dessa maneira, estudar o jornalismo como narrativa torna metodologicamente
desafiadora essa nova perspectiva. Como descortinar a ficcionalidade nas hard news,
um texto que é essencialmente descritivo, enxuto narrado sempre na terceira pessoa?
Como descortinar encadeamentos e continuidades em relatos que são por natureza
anárquicos e difusos? Como reordenar temporalmente as sequências e compor
enredos possíveis? Até que ponto as personagens da narrativa jornalística guardam
semelhanças com as personagens da ficção? No jornalismo, quem narra? A fonte, a
empresa, o veículo, a redação, os editores ou repórteres? Quais as relações de poder
se estabelecem entre esses atores? Relações de cooperação ou de enfrentamento?
Até onde se extende o poder de cada deles?Até onde a figura do autor se preserva?
Enquanto um produto cultural, o texto da narrativa jornalística cristaliza as forças
em conflito? Ou o emaranhado de sentidos torna impossível detectar o exercício do
poder? Os desafios conceituais e epistemológicos são enormes, e enfrentados com
seriedade pelos autores dos capítulos deste livro.
Parece que os estudos e a pesquisa da narrativa jornalística estão ainda longe
de constituir um campo teórico com uma autonomia mínima. O estágio que o campo
atravessa apenas rompeu o desconhecimento inicial, deu a largada. Os estudos
desenvolvidos até agora guardam ainda a marca do pioneirismo, da sondagem
preliminar. Há inúmeras duvidas e questões de cunho ontológico e epistemológico.
Os pesquisadores ainda se interrogam o que é exatamente uma narrativa jornalística:
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qual são mesmo os fatos empíricos que conformam este campo particular? Qual é
o seu objeto? O quê a expressão ‘narrativa jornalística’ traduz? Trata-se de relatos
que abandonam o paradigma da objetividade e se permitem certa ficcionalização do
real, como as grandes reportagens, os livros-reportagem e as biografias nas quais
a liberdade permite recompor criativamente ações e personagens? Ou estamos
falando das hard news que a cada hora, cada dia ou cada semana compõem
sucessivamente certa continuidade a partir de fragmentos de sentido relacionados
a um tema único, estabelecendo assim uma nova temporalidade? A leitura atenta
dos capítulos deste livro oferecem respostas consistentes, ainda que parciais, a
essas questões fundamentais.
A divisão acima rascunhada, própria do jornalismo impresso, aplica-se igualmente
às narrativas visuais e sonoras e às difusas mensagens das redes sociais? Mal sabemos
se podemos fazer opções seguras a respeito dos veículos e gêneros tradicionais e já
estamos frente aos desafios da cultura da convergência e das narrativas multimídia,
para as quais talvez nenhuma das alternativas acima seja pertinente porque as
novas mídias invertem os encadeamentos lineares e produzem o sentido a partir de
anárquicos quebra-cabeças. Nas narrativas multimídia, a intriga parece se configurar
menos nas mensagens dos variados suportes tecnológicos e mais no terceiro estágio
do ciclo mimético, o da recepção que Paul Ricoeur chamou de ponto de chegada.
Conexões e encadeamentos ausentes necessitam ser reconfigurados em sequências
compreensíveis, assim como as lacunas de sentido precisam ser preenchidas
conforme fazem os receptores, revelando temporalidades subentendidas. Alguns
autores deste livro encaram de frente esses desafios.
Estudos da narrativa jornalística estão ainda tatuando qual paradigma convém
ao campo: o paradigma interpretativo ou o construtivista, a teoria crítica ou a
teoria da ação, entre outros possíveis. Epistemologicamente, há convergências de
divergências. Nesta fase de arranque, tomamos emprestado de outros campos
conceitos e procedimentos metodológicos, como era de se esperar. Foram muito úteis
os conceitos e procedimentos da análise estrutural, da semântica, da pragmática, da
retórica e teorias da argumentação, da análise do discurso, da teoria da recepção
estética, da etnografia, da psicanálise e das teorias da linguagem em geral. Por outro
lado, há avanços que indicam uma criatividade própria do campo e a busca por uma
melhor adequação metodológica ao objeto particular. Para não passar em branco,
cito como exemplo o estudo das fontes: inúmeros estudos se interrogam até que
ponto elas são narradoras ou personagens dos relatos jornalísticos. Não se trata de
uma questão fácil, pois dependendo da perspectiva adotada, as implícitas relações
de poder se revelam. A menção às fontes é apenas um exemplo das particularidades
do campo, enfrentadas nesta publicação por outros autores.
Em resumo, o presente livro é um espelho da arrancada conceitual do campo das
narrativas jornalísticas. Compõe um conjunto de artigos que revela a pioneira busca
da delimitação de um objeto singular. A diversidade e a complexidade conceitual e
epistemológica aparecem aqui em distintas perspectivas, desde a positivista até a
construtivista. Desde a ótica da analise do discurso, da pragmática, da etnografia
ou do ensaísmo crítico, alguns capítulos buscam descobrir as intencionalidades
implícitas ou explícitas, a retórica da argumentação narrativa, como o sentido é
ordenado, qual é a identidade e as relações de poder dos atores envolvidos. Outros se
dedicam a revelar até que ponto o caráter mercantil dos meios influencia e modifica o
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conteúdo narrativo. Mais revelador ainda do pioneirismo das reflexões aqui reunidas
são os diferentes suportes objetos de estudo: o livro-reportagem, o telejornal, a mídia
impressa, as redes sociais, etc., e os diferentes gêneros narrativos: o jornalismo
informativo (notícias, reportagens), opinativo (redes sociais) ou interpretativo
(biografias, livros-reportagem).
Retomemos a questão básica: em diferentes suportes e gêneros, a narrativa
jornalística mantém uma fidelidade ao real ou se ficcionaliza? No estágio em que
nos encontramos, uma resposta genérica é impossível, precisamos verificar caso
a caso. Quando acumularmos suficiente informações, talvez seja possível formular
hipóteses consistentes. Por enquanto, é bom manter a curiosidade que alimenta
novas indagações: a narrativa jornalística é uma representação fiel dos fatos ou se
submete à força da intriga que determina a ficcionalização do real? O leitor atento
deste livro poderá observar até que ponto o campo mantém coerência interna e
densidade suficiente para explicar o empírico. Os estudos da narrativa jornalística
estão longe de constituir um campo particular, e mais distante ainda de alcançarem o
status de uma teoria autônoma. Creio, no entanto, que os pioneiros estudos revelam
um inequívoco passo rumo a uma disciplina autônoma e promissora. Se ainda não
temos a teoria, temos já uma disciplina singular. Boa leitura!
Luiz G. Motta
Florianópolis, agosto 2017
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I PERSPECTIVAS REFLEXIVAS
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Narrativas jornalísticas sob a luz da pragmática:
uma análise das implicações ideológicas
a partir da perspectiva de Motta e Habermas
O estudo da narrativa jornalística pode ser trilhado por diversos caminhos, desde
a perspectiva do jornalismo literário até a noção de percursos imersivos individuais
realizados pelo leitor em projetos para web. Independente do formato, do estilo ou
do gênero, vê-se que a versão escolhida para relatar os fatos é passível de análise
por ser capaz de indicar as intencionalidades do narrador, seja para fins comerciais,
pessoais ou ideológicos.
A pesquisa envolvendo os processos narrativos se torna relevante quando se trata
do jornalismo, porque em seu meio perduram ainda conceitos questionáveis como
verdade (concebida no paradigma da teoria positivista da correspondência absoluta
entre a representação e a própria realidade e não no paradigma construtivista com
sua teoria consensual), objetividade (mitificada como acesso à verdade absoluta e
não humanizada como o consenso da comunidade de comunicação) e imparcialidade
(como neutralidade frente ao confronto de interesses particulares poderosos contra
o interesse público e não o compromisso ético e democrático de apresentação da
diversidade significativa das fontes e versões existentes na sociedade). Diante das
diversas correntes teóricas e metodológicas possíveis para se observar a narrativa,
a ótica abordada neste capítulo se dá pela via da pragmática proposta por Motta
(2013), associada à teoria dos Atos de Fala de Austin (1999), especialmente a partir da
reflexão e contribuição de Habermas (2012) sobre a distorção processada pelos efeitos
perlocucionários no processo comunicativo. “Todo discurso é poder, um poder que se
exerce na relação entre quem fala e quem escuta. A análise rigorosa e sistemática
da comunicação narrativa no contexto de sua configuração pode revelar esse jogo
de poder, descortinar a correlação de forças que se exerce nas relações discursivas
interpessoais e coletivas” (MOTTA, 2013, p. 19). Interessa-nos, dessa forma, discutir
como o conjunto de argumentações do narrador pode gerar entendimentos distintos
e provocar determinados efeitos de sentidos no narratário.
Entendemos que a formulação de acontecimentos midiáticos são centrais e
estratégicos na mobilização da sociedade e, portanto, na mediação da correlação de
forças da estrutura de poder – grupos de elite que controlam o aparelho de Estado
e as grandes corporações do mercado – com os setores periféricos de intelectuais,
artistas, professores, estudantes e movimentos sociais envolvidos no processo de
construção social da realidade, no qual são definidos os significados de transcendência
social que orientam as pessoas em sua vida cotidiana. Observamos, portanto, que a
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Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
2. A narrativa jornalística
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Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
permitia variações nas notícias enviadas a cada assinante, de acordo com seus
interesses e necessidades (BRIGSS e BURKE, 2006, p. 53).
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Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
papel como narrador, apagar a sua mediação. É um narrador que nega até o limite
a narração” (MOTTA, 2005, p. 8-9). Luiz Gonzaga Motta acrescenta que nenhuma
narrativa é ingênua, cabendo ao analista identificar as intenções do autor, a forma
como constrói o enredo, como direciona fontes e como mistifica personagens.
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Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
2.1.1 O acontecimento-intriga
(…) a lógica da narrativa só se revelará nas duras e cruas notícias do dia a dia
se observarmos como elas lidam com o tempo e o organizam. O tempo no
relato jornalístico é difuso, anárquico e invertido. Por isso, a lógica e a sintaxe
narrativas só despontarão se pudermos reconfigurar os relatos como unidades
temáticas, intrigas que contenham princípio, meio e final de uma estória (como
aliás fazem, de maneira natural, os leitores, ouvintes e telespectadores nos
atos de recepção) (MOTTA, 2013, p. 96-97).
Austin (1990) defende que alguns enunciados quando proferidos são, já em si,
ações. Complementa sua teoria afirmando que a situação de fala pode se constituir
em uma ação. O autor exemplifica que, quando um padre pergunta, em uma cerimônia
de casamento, se o casal aceita se casar, a palavra “aceito” se torna uma ação que
modifica o estado civil dos falantes. Entretanto, a pessoa precisa ter a competência
para realizar tal pergunta, ou seja, ser um padre; e os noivos que responderão sim ou
não devem estar situados nesse mesmo ritual.
O dizer realiza ações, mas o contexto diz muito sobre a força dos enunciados. As
construções frasais devem possuir uma performance. Para tanto, o autor descreve
três atos que englobam as pretensões dos atores nas situações de fala. A primeira
delas é o ato locucionário: que se realiza quando o indivíduo profere uma oração,
ou seja, esse ato diz respeito à capacidade do indivíduo de recorrer à língua, à
linguística. O ato ilocucionário, segundo ato de fala classificado por Austin (1990), é
uma expressão da vontade do ator, é a intenção dele com aquela oração específica. E
o ato perlocucionário, por fim, é o que se refere ao resultado obtido pelo enunciador
quando consegue fazer com que o ouvinte, a partir da oração pronunciada, aja de
acordo com os fins previstos pelo locutor.
No trabalho da análise da narrativa, a compreensão sobre a inserção do ato de
fala perlocucionário no jornalismo é essencial para identificar discursos ocultos que
expressam o poder simbólico e a relação de dominação na mídia, já que “o poder
simbólico, é, com efeito, esse poder invisível o qual só pode ser exercido com a
cumplicidade daqueles que não querem saber que lhes estão sujeitos ou mesmo
que o exercem” (BOURDIEU, 1998, p. 7-8). No entanto, o jornalismo é um campo
de disputas simbólicas cujas ideologias em jogo não são simples de descrever. Há
forças diversas que travam lutas no cenário midiático. Motta (2005) acrescenta que,
nessa trama, há interesses do veículo, do jornalista e do personagem. Todavia, há
hierarquias e distinção de poderes entre as partes envolvidas. Geralmente, vence
o discurso da classe dominante. É nítido, por exemplo, o conjunto de enunciados
visando a disseminar valores neoliberais: ideias do mercado livre, Estado mínimo,
meritocracia, diminuição de impostos, entre outros. Já os temas que vão de encontro
aos interesses da grande mídia ficam de fora da pauta: ascensão de governos
populistas, Bolsa Família, regulamentação da mídia, cotas, etc (GUARESCHI, 2013).
O silenciamento por parte da grande mídia traz prejuízos, pois como discursos
opostos aos interesses midiáticos não aparecem, é como se eles não existissem
para a maioria da população. Observamos, desse modo, diferentes classes sociais
dominadas reproduzindo, de modo acrítico, discursos dominantes que justificam
a dominação e a opressão: mulheres reproduzindo o machismo; trabalhadores
defendendo menos direitos em seu plano de carreira e aposentadorias, a favor da
reforma da previdência; etc.
Nesse sentido, a partir do estudo dos atos de fala, podemos observar as intenções
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Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
dos falantes no texto, no caso dos atos ilocucionários, e como o ato perlocucionário se
concretiza, no momento em que percebemos as reações das personagens envolvidas
no acontecimento-intriga, ou quando percebemos as reações dos leitores, já que
nem sempre a intenção ilocucionária é alcançada devido a uma má compreensão do
interlocutor. Motta (2013) atribui à palavra final ao leitor (interlocutor), tendo em vista
que a compreensão pertence ao mesmo. Da mesma forma, a intenção perlocucionária
pretendida pelo locutor pode não ser concretizada no interlocutor, quando esse perceber
a manipulação que pretendia ser exercida de forma dissimulada pelo enunciador.
Habermas (2002) amplia a discussão ao se interessar pelo tema e pelo ato
perlocucionário no processo de comunicação, preocupando-se em distinguir entre
as intenções e os efeitos de sentido que podem gerar entendimento daquelas que
visam a resultados estratégicos. “Eu caracterizei o compreender e o aceitar das ações
de fala como sucessos ilocucionários; todos os fins e efeitos além disso devem ser
chamados ‘perlocucionários” (HABERMAS, 1990, p. 72).
O ato perlocucionário no sentido midiático está produzindo efeitos contrários
àquilo que é legítimo, ético e bom para o coletivo, para o desenvolvimento da ética
do discurso. Uma comunicação ética, legítima e democrática está fundamentada na
teoria do agir comunicativo (HABERMAS), na qual a finalidade da comunicação deve ser
o debate para gerar o consenso, ou seja, a partir da faculdade racional, os indivíduos
podem elencar aspectos que se tornarão válidos por meio da argumentação dialógica.
Essa teoria valoriza a capacidade mental do interlocutor que é estimulado pelo locutor
a desenvolver um entendimento. O ato de fala utilizado, nesse caso, é o ilocucionário.
No agir comunicativo, “os atores participantes tentam objetivos mediatos da definição
da situação e da escolha dos fins assumindo o papel de falantes e ouvintes, que
falam e ouvem através de processos de entendimento” (HABERMAS, 1990, p. 72).
Em termos midiáticos, infelizmente, esse tipo de ação comunicativa ainda não
é a realidade brasileira. Como Motta (2005) enfatiza, a narrativa jornalística prevê
intenções que provocam distorções sistemáticas da realidade. Entre os vários
recursos utilizados estão aqueles que dissimulam a narração: dados de organizações
que fundamentam a informação, a escolha das fontes, a hierarquia de personagens,
o uso de dêiticos, entre outros.
O olhar do narrador que detém o poder de informar em detrimento de outros, se
torna uma comunicação impositiva, sem levar em consideração valores e anseios das
demandas sociais, o que se configura no processo do agir estratégico, conceito de
Habermas (1990) para identificar aquele tipo de comunicação que não leva em conta
a capacidade cognitiva do interlocutor para interpretar sua fala.
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Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
Conclusão
Referências
AUSTIN, John Langshaw. Quando dizer é fazer; Trad. de Danilo Marcondes de Souza
Filho. Porto Alegre: Artes Médicas: 1990. 136p.
BAL, Mieke. Teoría de la Narrativa: una introduccíon a la narratologia. Madrid:
Catedra, 1998.
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Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
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Informação e função social: perspectivas
de discurso e narrativa jornalística1
Por meio dos materiais produzidos pela mídia, o homem é capaz de perceber o
mundo em que vive, mas também de tomar conhecimento, em parte, do que já não está
ao alcance dos seus olhos. Nesta conversa, a imprensa é alimentada por elementos
abrangentes da realidade e traz fragmentos dela até o público. Este mesmo público
absorve os conteúdos e, pelo valor de uso que eles contêm, transforma o social, que é
novamente aproveitado pela mídia em uma atividade cíclica infindável. Este processo
de produção da informação, principalmente por parte da imprensa na construção
de percepções, tem como principal expoente de credibilidade e responsabilidade o
jornalismo (VICCHIATTI, 2005).
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Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
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Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
A imprensa faz, cria, constrói a opinião pública. Como diz Pierre Bourdieu,
“a opinião pública não existe, ela é o reflexo dos meios de comunicação”;
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Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
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Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
Isto deve ser destacado, pois no capitalismo selvagem, o sujeito do capital é ele
próprio, e não o homem, e por isso alguns pagam pela segurança de suas propriedades,
outros pela segurança da própria existência (BOLAÑO, 2000). Assim, surge desta ideia
a noção do jornalismo como serviço público de conhecimento, cultura e participação
para o sujeito, que significa “1) uma subjetividade livre: um centro de iniciativas,
autor e responsável por seus atos; 2) um ser subjugado, submetido a uma autoridade
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Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
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Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
Neste sentido, Genro Filho (2012, p. 182), classifica a imprensa como “o corpo
material do jornalismo, o processo técnico do jornal – que tem sua contrapartida
na tecnologia do rádio, da TV, etc.”, que resulta num “produto final, que podem ser
manchas de tinta num papel ou as ondas de radiodifusão”. E o jornalismo, como a
modalidade de informação “que surge sistematicamente destes meios para suprir
certas necessidades histórico-sociais que [...] expressam uma ambivalência entre
a particularidade dos interesses burgueses e a universalidade do social em seu
desenvolvimento histórico” (GENRO FILHO, 2012, p. 182).
O mesmo autor nos permite dizer que, hoje, está em curso a liberdade de empresa,
onde a propriedade dos meios de comunicação é uma espécie de capitania hereditária
(GUARESCHI, 2013). Isso traz um questionamento: afinal, a mídia se produz através
das pessoas ou é o contrário (LIMA, 2012)?
O processo de redefinição do espaço midiático brasileiro, que teve início na década
de 70, com a globalização, trouxe vários reflexos na forma de pensar a comunicação.
Entre outros: a concentração de propriedade; a diversificação das mensagens da
mídia; a globalização das indústrias da mídia e sua consequente desregulamentação.
Desta maneira, expandindo o alcance e a influência, o jornalismo e a comunicação de
massa não são mais um simples registro da realidade. São uma construção dela, na
sociedade regida pela modernidade.
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Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
Os preceitos jornalísticos estão cada vez mais em uma linha tênue, seja no que diz
respeito aos confrontos entre práticas editoriais e representação honesta da realidade;
seja na percepção do acontecimento tratada pelo editor, pelo repórter e pelos envolvidos;
ou na falta de espaço e tempo, que leva o jornalismo a cada dia apelar ao pouco
raciocínio, à instabilidade crítica, à seletividade, entre tantas outras determinantes.
Para entender o que se passa, é relevante desconstruir alguns conceitos.
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Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
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Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
Notas
Referências
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Jornalismo e narrativa: aspectos do
estado da arte das pesquisas no Brasil 1
1. Considerações iniciais
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Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
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Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
A seleção dos artigos para o mapeamento proposto nesta pesquisa se deu por
meio de sucessivos movimentos. Inicialmente, optamos por buscar textos publicados
entre 2012 e 2016, nos anais de três dos principais congressos nacionais da área
da Comunicação, promovidos pela Associação Nacional dos Programas de Pós-
Graduação em Comunicação (Compós), pela Sociedade Brasileira de Estudos
Interdisciplinares da Comunicação (Intercom) e pela Associação Brasileira de
Pesquisadores em Jornalismo (SBPJor).
Valendo-nos dos mecanismos de busca on-line disponibilizados pelas
entidades promotoras dos congressos, pesquisamos por artigos que utilizavam
os termos “narrativa” e “jornalismo” 4 como palavras-chave ou no título do texto.
Nessa primeira etapa, alcançamos um total de 217 de artigos. Em seguida,
nosso segundo movimento de triagem buscou identificar, entre esses textos,
aqueles que empregavam a narrativa como perspectiva teórico e metodológica,
alinhando-se à abordagem que apresentamos anteriormente. Ou seja, nosso
olhar voltou-se aos artigos que aplicavam a narrativa para o estudo do jornalismo,
compreendendo-o como processo ou ato linguístico de ordenamento, mediação
social e produção de sentidos. Esse critério implicou no descarte dos trabalhos que
se voltavam à análise da narrativa sob um viés estruturalista, em que a narrativa
é interpretada como formato ou estrutura textual, bem como desconsiderou os
artigos que, apesar de apresentarem o termo “narrativa” no título ou entre as
palavras-chave, não desenvolveram nenhum tipo problematização ou discussão
teórica acerca do conceito.
Após esses movimentos, selecionamos 96 artigos para a análise individualizada,
em que buscamos observar como a narrativa vem sendo aplicada nos estudos
sobre jornalismo. Nesta etapa, elencamos como critérios os seguintes itens:
identificação da Instituição de origem do(s) autor(es) do artigo, objeto empírico e
mídia analisados, autores convocados para o embasamento teórico, existência de
descrição dos procedimentos metodológicos, aplicação de análises da narrativa
(AN)5 como método, autores de referência metodológica e, por fim, o emprego de
outras técnicas ou métodos de pesquisa combinados.
A análise individualizada dos artigos gerou dados de caráter quanti e qualitativo
que nos permitem tecer algumas observações e inferências quanto à aplicação
da perspectiva teórico-metodológica da narrativa nos estudos do jornalismo.
Apresentamos e discutimos nossos principais resultados no tópico a seguir.
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Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
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Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
empírica de inspiração etnográfica e outro que propunha uma análise com base na
caracterização de reportagens hipermídia. Quatro artigos empregaram procedimentos
de caráter quantitativo e, ainda, outros quatro trabalhos cujos métodos não foram
identificados pelos autores e que não pudemos reconhecer por inferência.
Quanto à aplicação combinada de análises da narrativa com outros métodos,
encontramos dez trabalhos: três utilizavam a Análise de Conteúdo (AC) enquanto os
outros empregavam, cada um deles, Análise do Discurso, Estudo de Caso, Grupo Focal,
análise de enquadramento, revisão histórica, modelo de caracterização de análise
de reportagens e um método identificado apenas como quantitativo. Percebe-se, nos
resultados obtidos neste item, uma leve tendência à aplicação combinada das análises
da narrativa com métodos de caráter quantitativo, em que se enquadra Análise de
Conteúdo. Essa possibilidade é sugerida por Gouvêa (2015), que indica a aplicação da
Análise de Conteúdo para análises das narrativas. Segundo a autora, a AC “se insere
em um movimento exploratório que reúne informações e prepara tanto o pesquisador
quanto a própria narrativa jornalística para a análise tematológica” (GOUVÊA, 2015, p.
214). Ou seja, ao concentrar-se no estudo da superfície textual, a Análise de Conteúdo
auxilia na compreensão discursiva das representações simbólicas construídas pelas
narrativas, bem como dos sentidos e representações sociais e culturais implícitas.
Observamos, por fim, nos 96 artigos selecionados, quais os autores e principais
obras foram utilizados para embasar teoricamente a discussão sobre narrativa e
também para fundamentar a aplicação metodológica. Quanto ao primeiro item,
identificamos 74 autores diferentes convocados para as discussões. No gráfico a
seguir (Figura 3) podemos visualizar os 16 mais citados:
5. Considerações finais
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Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
Notas
Referências
Luiz G. Motta
Introdução
narrativa seja compreendida não mais como um discurso, escrita ou fala, mas como
uma ação cujo protagonismo, voz e perspectiva dos sujeitos narrador e destinatário
na coconstrução do sentido sejam incorporados a uma análise crítica que privilegie
as performances dos sujeitos na enunciação narrativa.
É no bojo das alternativas epistemológicas trazidas pelo linguistic turn que
uma narratologia crítica brotou. As inspirações vieram das teorias dos filósofos da
linguagem H. P. Grice (1957; 1969), J. H. Austin (1962), J. R. Searle (2001; 2002;
2002a), e outros. E se abasteceram nas sistematizações da pragmática no final
do século passado (Reyes, 1994; van Dijk, 1987 e 2000; Vidal, 2002). Aqui, não
posso recuperar as variadas proposições do linguistic turn nem as contribuições
da pragmática.1 No presente ensaio, não ofereço uma sistematização teórico-
metodológica acabada de um novo caminho epistemológico. Essa tarefa exigirá
maior maturação intelectual.
Há, aqui, apenas um esboço conceitual e metodológico preliminar que sugere
interpretar as narrativas como atos de fala dinâmicos e circunstanciais, não como
produtos fechados sobre si mesmos. Proponho-me esboçar formulações preliminares
de uma narratologia crítica, ainda nascente, que parece representar uma radical ruptura
com os modelos anteriores. Não tenho a pretensão de criar uma nova narratologia,
obviamente. Até porque a maioria das ideias aqui ensaiadas são importadas de
teorias desenvolvidas em outras áreas do conhecimento. Apenas tento produzir a
síntese de um projeto de interpretação de narrativas que parece promissor, no qual a
narratologia ganhe um status mais antropológico, para além dos restritos limites da
linguística e da teoria literária.
No projeto de uma narratologia crítica aqui esboçado, sigo em parte a teoria
pragmática dos atos de fala, segundo a qual os atos enunciativos “são operações
em contexto, como funções de contexto em contexto” (Levinson, 2007/352, grifo
meu), entendidos estes como um conjunto de proposições que descrevem crenças,
conhecimentos, compromissos e ideologias dos participantes. Quando uma narrativa
é enunciada, acontecem mais coisas que apenas a expressão do seu significado, pois
o conjunto de fundo também é alterado. A contribuição que uma enunciação fornece
à mudança do contexto é a força ilocucionária, ou potência do ato de fala. A tese de
Levinson, com a qual concordo, é que essa força é irredutível à questões de conteúdo,
verdade ou falsidade do enunciado, pois constitui um aspecto do significado que não
pode ser capturado pela semântica veridicional. “O lugar próprio da força ilocucionária
é o domínio da ação, e as técnicas adequadas para a análise devem ser encontradas
na teoria da ação, não na teoria do significado” (Levinson, 2007,312, grifo dele), uma
maneira inteiramente pragmática de lidar com a força ilocucionária.
Sigo também a hermenêutica crítica de Paul Ricoeur (1983,46/7), para quem o
discurso é um evento realizado no presente, que remete ao seu locutor mediante um
conjunto complexo de indicadores. O caráter do evento vincula-se, assim, à pessoa
que fala. Mais ainda, o evento consiste no fato de alguém falar, tomar a palavra
para expressar-se a respeito de algo: refere-se a um mundo que pretende descrever
ou representar. Neste sentido, o ato de fala é a vinda à linguagem de um mundo
mediante o discurso, e não somente um mundo, mas também o outro, outra pessoa,
48
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
um interlocutor ao qual o locutor se dirige. É da tensão entre estes dois pólos que
surge a produção do discurso como obra (o sentido). O que a hermenêutica deve
compreender, diz Ricoeur, “não é o evento, na medida em que é fugidio, mas sua
significação que permanece”.2 A obra (a narrativa) traz uma proposição de mundo
“que não se encontra atrás do texto como uma espécie de intenção oculta, mas diante
dele como aquilo que a obra desvenda, descobre, revela” (1983, 58).
Em trabalho anterior, sugeri que a narratologia deveria deslocar-se da teoria
literária para tornar-se um procedimento multidisciplinar de caráter cultural e
cognitivo, envolvendo a interpretação de mitos, ideologias e os valores canônicos
e políticos da sociedade (Motta, 2013). O presente ensaio pretende avançar nesse
rumo, até porque nunca antes a rotina de vida das sociedades foi tão permeada por
uma complexa enxurrada de narrativas como hoje. Cognitivamente, elas configuram
o sentido ordinário da vida. Cotidianamente, somos inundados por biografias, mini-
contos, breves romances, reportagens, filmes, documentários, telenovelas, canções,
videoclipes, videogames, histórias em quadrinhos, desenhos animados, comerciais
de TV, anedotas, diários de vida, breves relatos do facebook, whatsapp, Instagram
e outras redes sociais digitais. Através das novas tecnologias, o público tomou
para si um protagonismo maior do contar. Nunca antes nossas estórias foram tão
compartidas, tornando mais densa e complexa a rede coletiva de narrativas públicas.
Nunca antes fomos tão narradores, e simultaneamente destinatários, de nossas
próprias aventuras. A vida contemporânea se desenvolve sob um mar de relatos
híbridos e fragmentados que se emendam uns aos outros, entretecendo uma teia
virtual de narrativas na qual estamos todos enredados. Provenientes de diferentes
plataformas, descontínuos e dispersos, fáticos ou fictícios, locais ou universais,
comerciais ou públicos, informativos ou puro entretenimento, poucos desses relatos
alcançam constituir-se peças literárias. São erráticos, efêmeros e caleidoscópicos.
Mal ou bem, entretanto, os relatos públicos configuram as narrativas multimidiáticas
ou transmidiáticas da modernidade, e constituem o mar de híbridas histórias que
confirmam a hegemônica cultural da convergência.
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Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
Se é verdade que a intriga é uma imitação das ações humanas, quem a compõe
parte de uma pré-compreensão do mundo, suas estruturas inteligíveis, simbólicas e
temporais; e sua competência para articular a representação das ações em uma trama.
Mais importante ainda, diz Ricoeur, é observar que quem compõe age com certas
motivações a fim de produzir certos estados de espírito. Torna-se então importante,
observa ele, identificar o agente enunciador e seus motivos. Ademais, prossegue,
agir é sempre agir ‘com’ outros: “a interação pode assumir a forma de cooperação,
de competição ou luta” (Ricoeur,1994,89). A compreensão narrativa deve, pois, ser
estabelecida entre a teoria narrativa e a teoria da ação: “Compreender uma história
é compreender ao mesmo tempo a linguagem do ‘fazer’ e a tradição cultural da qual
procede a tipologia das intrigas” (pág. 91).
Pelo lado da recepção, observa Ricoeur, “a narrativa tem seu sentido pleno
quando é restituída ao tempo do agir e do padecer”, no momento em que é lida,
vista ou ouvida. A recepção, segundo ele, “marca a intersecção entre o mundo do
texto e o do leitor”. O mesmo ‘pano de fundo’ da cultura, de historias vividas e
(ainda) não contadas, imbricadas umas às outras, sobre as quais as novas histórias
emergem, opera aqui: “Narrar, seguir, compreender histórias é só a ‘continuidade’
dessas histórias não ditas” (pag. 116). No ato de ler, diz ele, o receptor reconfigura
e conclui a obra: “É o leitor, quase abandonado pela obra, que carrega sozinho o
peso da tessitura da intriga” (pág. 118). O ato de leitura, conclui ele, é “o último
vetor da configuração do mundo da ação sob o signo da intriga” (pág. 118). Não
preciso prosseguir com a rica argumentação de Paul Ricoeur a respeito da narrativa
como uma teoria da ação comunicativa. Ficou evidente que configurar e refigurar
uma intriga são ações protagonizadas por sujeitos vivos e ativos, são performances
linguísticas movidas por motivações e intenções recíprocas. As breves citações
acima são suficientes para indicar uma total reviravolta proposta por ele (e outros
autores) na teoria e análise da narrativa, pois a teoria da narrativa torna-se uma
teoria da ação comunicativa. É nessa direção que procederei rumo a uma análise
pragmática, a ela anexando o adjetivo crítica pelo seu potencial de contextualizar a
interpretação narrativa e revelas as relações de poder.
É importante trazer a palavra avaliadora de Paul Ricoeur a respeito da narrativa
como ato de fala por causa da respeitabilidade dele no campo da narratologia.
Entretanto, Ricoeur não é uma referência fundamental na teoria dos atos de fala,
que provém da filosofia da linguagem. Até pouco tempo atrás, filósofos e linguistas
estavam preocupados com a competência linguística de cada frase ou texto e
sua correspondência com a verdade. A virada aconteceu em meados do século
passado, quando alguns filósofos explicaram que falar não é somente emitir
frases para comunicar informações: a fala realiza coisas para além dos conteúdos
proposicionais, e o mais importante talvez não seja a sentença proferida, e sim o
que ela obtém como seu efeito independente de sua condição de verdade. Toda
vez que falamos, realizamos um ato de fala: faço uma pergunta, dou uma ordem,
explico ou predigo algo, etc.4
Ou seja, para além dos conteúdos, há uma força implícita na fala, que o filósofo John
Austin (1962) chamou de ilocução. Os potenciais efeitos desses atos junto aos receptores,
ele chamou de atos perlocutivos. Os atos ilocutivos detém quase sempre uma intenção
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Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
realizativa: pretendem algo. A mente do sujeito falante impõe intencionalidade aos sons,
imagens ou textos, conferindo a eles um significado relacionado à realidade.5 Para J.
Searle (2001, 127), seguidor de Austin, o significado é uma forma de intencionalidade
derivada: a intencionalidade intrínseca do pensamento do falante se transfere às
palavras e frases pronunciadas. Mas, a intenção de comunicar não coincide sempre
com a intenção de significar. Comunicar é obter que o outro reconheça a minha intenção
de produzir certo efeito, obter que o outro capte o meu significado.
Se transplantamos essas reflexões da filosofia da linguagem para a narratologia,
torna-se relevante redefinir a narração (ou enunciação narrativa) como um ato de fala
comunicativo porque os relatos sempre implicam em efeitos não necessariamente
referenciados no texto: as narrativas são por natureza irônicas, trágicas, cômicas, etc.
Cada uma delas quer produzir determinado efeito de sentido, muitas vezes apenas
subentendido. Assim, precisamos partir de uma definição de comunicação que descreva
adequadamente o processo de narração como um ato de fala narrativo com seus
possíveis efeitos de sentido. Encontro essa definição em Levinson (2007, 19), que diz:
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Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
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Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
que requerem uma atenção imediata devido à dimensão metodológica deles em uma
narratologia crítica: 1) o protagonismo dos atores; 2) o contexto comunicativo e os
dêiticos. Antes, porém, uma advertência sobre o uso do adjetivo ‘crítica’ na análise
que proponho: a meu ver, a possibilidade de incorporar o contexto nos procedimentos
de análise consolida uma pragmática expandida como uma teoria crítica.8 O adjetivo
crítica tem aqui um valor particular,. Ele não implica formar juízos de valor, e sim assumir
uma proficiência metodológica que incorpore de maneira rigorosa e fundamentada
o papel dos interlocutores e os elementos do contexto comunicativo e cultural nos
próprios procedimentos, o que dá à análise da comunicação narrativa um alcance
social e histórico e a remete às relações de poder.9
primeiro passo que um analista precisa dar ao se propor uma interpretação crítica.
Dissemos acima que a comunicação só se completa quando o destinatário
reconhece as intenções do falante. Isso ocorre também na comunicação narrativa.
Quando alguém escolhe contar, pretende seduzir, envolver, advertir, fazer rir ou chorar,
impactar de alguma forma o outro. O significado, como diz Searle (2001, pp.127/30)
é uma forma de intencionalidade derivada:
processo de construção das representações sociais. Cada ato de fala narrativo ocorre
em um ambiente psicossocial específico que contingência tal ato, eles concordam.
Argumentando que a hermenêutica só se torna relevante devido à múltipla
significação dos textos, e que o analista-intérprete precisa ter sensibilidade ao contexto,
Ricoeur (1983, 19) observa: “A sensibilidade ao contexto é o complemento necessário,
e a contrapartida inelutável da polissemia”. O manejo do contexto, prossegue ele, põe
em jogo o discernimento da permuta concreta de mensagens entre interlocutores
precisos, atividade propriamente dita da interpretação: é preciso, pois, “reconhecer qual
a mensagem relativamente unívoca o locutor construiu apoiado na base polissêmica”.
Identificar essa intenção de unicidade na recepção das mensagens é “o primeiro e mais
elementar trabalho da interpretação”.
Quero me deter sobre alguns fatores de contingenciamento que atuam de maneira
decisiva, em maior ou menor grau, sobre a configuração das histórias. A partir de uma
breve revisão da literatura, farei ao final uma sugestão para a incorporação desses
fatores aos procedimentos de análise através da consideração dos ciclos dêiticos. O
contexto é tão importante para a passagem do significado da sentença ao significado
da enunciação que o filósofo Max Black propôs certa vez que a nascente disciplina se
chamasse contextics a fim de dar conta de “todos os aspectos do contexto relevantes
para a linguagem”. (Dascal, 2007/561). A questão metodológica da incorporação
do contexto na análise da narrativa não é, entretanto, um problema fácil. É preciso
primeiro delimitar o quê é o contexto, seus limites, e qual a sua relevância para cada
ato de fala. Isso abre um amplo leque de possíveis fatores pertinentes. O que é ou
não é estrategicamente relevante para os participantes em cada ato discursivo? Até
onde se expande o entorno que intervém no processo comunicativo? Qual é a força
determinante de cada um dos fatores?12 Mais complicado ainda é incorporar as
relevâncias contextuais nos próprios procedimentos de análise, como veremos.
Para tornar a análise definitivamente crítica, sugiro observar os fatores
extralinguísticos como instrumentos de um jogo de poder que se manifesta
nos discursos narrativos de maneira argumentativa, conforme observei acima.
Penso que uma correlação de forças proveniente do ambiente psicossocial está
sempre condicionando cada ato narrativo, mesmo aqueles atos aparentemente
despretensiosos, como uma mãe que conta um singelo conto infantil ao seu filho
ao anoitecer. Ao contar, a mãe não é totalmente despretensiosa: ela tem a intenção
de acalmar e ninar sua cria, que repassar a ele certo estado de espírito. Há uma
intencionalidade implícita no ato de contar o conto. A narrativa da mãe realiza um
ato performativo ao embalar a criança. O relato dela é um texto, mas é também uma
atividade social que existe em par com outras formas semelhantes, e com elas se
interrelaciona conforme observa (Eagleton, 2006). Assim, não há ato de fala que não
seja argumentativo, nem ato de fala que não carregue alguma carga ideológica. Uma
reciprocidade de forças, de encantamento, empatia ou mútua compulsão, próprias de
cada ação humana, move e condiciona sempre a configuração de qualquer narrativa.
O estado de espirito obtido é o resultado dessa recíproca volição. Embora a vontade
de sentido não signifique sempre afinidade, como observei acima. Haverá divergência
sempre que houver assimetria psicossocial.
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Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
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63
Imprensa como singular-coletivo na modernidade
O singular-coletivo
64
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
Esta nova esfera pública crítica vai abastecer a população de informações por
meio da imprensa, que por sua vez vai propiciar a formação da “opinião pública” - algo
como a expressão da consciência da sociedade civil. “O sujeito dessa esfera pública
é o público como portador da opinião pública” (HABERMAS, 2014, p.94). De modo
que a sociedade civil fosse um contraponto aos poderes formais institucionalizados.
Explica Habermas que “o público pôde assumir muito melhor esse desafio mudando
o funcionamento daquele instrumento do qual a administração pública se serviu para
tornar a sociedade um assunto público no sentido específico: a imprensa”(2014, p.
132). Ela é o instrumento a habilitar a população, ou o público, a submeter a seu jugo
os governantes. Como aponta Gomes (2014, p. 223), “a esfera pública burguesa é
descrita como um âmbito normativo livre do domínio das instâncias estabelecidas e
isento do poder do Estado”.
Esse novo “lugar” do jornalismo moderno veio sendo configurado num devir
que, historicamente, iniciava-se com as gazetas venezianas, ainda no século XV.
Foram sucedidas, posteriormente, pelas chamadas folhas volantes. Acredita-se que
imprensa periódica, com regularidade de impressão, surgiu na França, em 1604,
com a La Gazette Français, e na Antuérpia, na Bélgica, no início do século XVII, com
a folha As últimas notícias (NieuweTydinghen), em 1605. Em 1616 havia um total
de 25 folhas volantes na Europa, surgindo também publicações em Londres (1622),
Florença (1636), Roma (1640) e Madri (1661). Tratam-se de impressos que retratavam
tanto o tempo da monarquia absolutista do trono francês, com uma imprensa sob
rígida censura, quanto os ares da Inglaterra parlamentarista e que, posteriormente,
atingiriam as colônias na América.
As “gazetas” da época já tinham elementos comuns aos jornais de hoje, como
textos simplificados e diretos, data e local de impressão, periodicidades mais ou menos
regulares, menção às fontes de informação, titulação, nome do editor e narrativa
cronológica. As notícias versavam sobre assuntos variados, geralmente acontecidos
nas vésperas da edição, e tinha até mesmo anúncios pagos. Porém, eram publicações
sujeitas à censura prévia, embora houvesse também as clandestinas em circulação. O
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Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
reinado do francês Luís XIV, por exemplo, valeu-se em demasia das gazetas nas ações
de comunicação e, como diz Burke (1994), do seu pioneiro projeto de marketing político.
Conforme Souza (2008, p. 80), “o aparecimento das gazetas permite afirmar que o
jornalismo noticioso é uma invenção europeia dos séculos XVI e XVII, com raízes remotas
na antiguidade clássica e antecedentes imediatos na Idade Média e no Renascimento”.
A revolução industrial, em seus dois momentos - o da máquina a carvão e o da
eletricidade -, resultaram nos processos de urbanização e de letramento (alfabetização
em massa) da população, os quais, de um modo ou outro, forneceram condições
de crescimento dos impressos nas cidades. Uma presença só possível graças aos
avanços técnicos da nova era das máquinas, tanto que nas suas primeiras edições o
Daily Mail, de Londres, publicava no alto de sua primeira página: “invenções novas e
maravilhosas acabaram de aparecer para ajudar a imprensa. Nosso tipo é feito por
máquinas que podem produzir, cortar e dobrar 200 mil jornais por hora” (BRIGGS e
BURKE, 2006, p.192-198).
Essa situação de crescimento viria a ser consolidada tempos depois com a
chamada pennypress, fenômeno jornalístico nascido nos Estados Unidos, que
daria origem ao denominado jornalismo sensacionalista como o conhecemos hoje.
Muito embora os jornais tivessem ainda em fases incipientes as características das
publicações modernas, de certa maneira, pode-se considerar que a pennypress
representou a assunção definitiva do jornal como produto mercantil, com as notícias
sendo insumos a serem comercializados, dando a matriz econômica do que seria o
polo comercial da imprensa: jornais com grandes tiragens, com exemplares vendidos
a preços baixos, tendo a notícia tanto o caráter de prestação de serviços e informações
quanto o diversional. Ou seja, com reportagens moldadas para a diversão e distração
do leitor. E ainda contando com anúncios publicitários, na combinação de que as
receitas obtidas na venda de exemplares e publicação de propagandas seriam os
sustentáculos econômicos a dar independência aos veículos perante os demais
poderes institucionalizados.
Independência e liberdade
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Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
A opinião pública
O “quarto poder”
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Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
Considerações finais
Notas bibliográficas
No fim do século XVII, surge o termo inglês publicity, derivado do francês publicité.
Na Alemanha, a palavra aparece no século XVIII. A própria crítica se apresenta na
forma de öffenctlichenMeinung (opinião pública), termo que se formou a partir de
opinioi publique na segunda metade do século XVIII. Quase simultaneamente surge
na Inglaterra publicopinion; contudo muito tempo antes já se falava de general opinion
(HABERMAS, 2014, p.134).
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72
As temporalidades no jornalismo:
do acontecimento às narrativas
Introdução
Este texto apresenta uma reflexão sobre as temporalidades possíveis que constituem,
atravessam e tangenciam o fazer jornalístico, sobretudo as narrativas jornalísticas
em suas múltiplas facetas. Cabe destacar que não se trata de uma reflexão sobre a
influência do tempo nas rotinas produtivas das redações, embora reconheçamos que o
tempo de produção também é um elemento determinante das narrativas jornalísticas.
Entendemos que há um tempo de produção diferente para cada dispositivo nas
diferentes plataformas onde essas narrativas estão disponíveis (TV, Impressos, Web,
Rádio, etc.). Mas não é sobre formato ou suporte que trata nossa reflexão.
Inquieta-nos pensar o tempo como um fio condutor dos acontecimentos que nos
afetam na esfera da experiência diária e, mais ainda, instiga-nos a refletir sobre a
forma como o jornalismo tece temporalidades em suas narrativas, com tessituras
que demarcam presente, entrecruzam passado e norteiam o futuro ao tratar de
determinados acontecimentos.
O jornalismo e suas práticas estão comumente associados às temporalidades,
visto que o tempo presente, território próprio da área, não se configura sem as marcas
do passado e sem as fendas abertas para o campo dos possíveis ou das expectativas
do futuro. Vítima de certo preconceito por parte de outros campos do conhecimento,
visto que, muitas vezes, assumiu o discurso do “presentismo” de maneira absoluta,
o jornalismo (ou “os jornalismos” dada as novas configurações do campo) configura-
se como o espaço da intersecção entre as várias épocas, assumindo um lugar
proeminente para se refletir e conhecer as histórias de determinadas comunidades,
pessoas, fenômenos e lugares do mundo contemporâneo.
A noção sobejamente disseminada de que o jornalismo seria o lugar do efêmero
e do superficial perde lugar para narrativas jornalísticas que extrapolam o lugar
institucional das redações dos veículos tradicionais como jornais, revistas, emissoras
televisivas ou radiofônicas ou ainda os sites noticiosos. Com o advento de novos
formatos e suportes - como documentários, podcasts e livros -, além de novas
formas de organização da atividade jornalística - como os financiamentos coletivos -,
ampliam-se as possibilidades de tratamento dos fatos, fenômenos e acontecimentos
que traduzem o leitmotiv do campo.
A potência trazida por este novo cenário convoca a reflexão sobre a temporalidade,
afinal se o tempo não existe de maneira absoluta, há que se pensar sobre as relações
que podem ser estabelecidas entre o presente, o passado e o futuro no campo
humano, território por excelência do jornalismo. É preciso, portanto, problematizar o
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Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
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Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
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Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
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Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
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Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
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Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
Entre outras formas, o jornalismo é o instrumento narrativo que serve para marcar
o tempo. É através de sua prática narrativa que se estabelece “as fronteiras entre o
não-mais, o agora e o ainda-não” (MATHEUS, 2011, p.218), por meio das diversas
camadas de significação. Para construir a notícia, experiência do presente imediato,
o jornalismo, recorre ao passado completando o sentido da narrativa por meio de
referências pretéritas (embora ausente, é o espaço das experiências concretas, mas
que só pode ser acessado a partir dos registros materiais e das memórias). O futuro,
horizonte do desconhecido, é o espaço das expectativas que vivenciamos no presente.
Mas o jornalismo também estabelece uma conexão com a noção de tempo que
pode ser pensada de modo mais específico: sua atuação como agente de memória.
Seja ao articular um sentido de tempo passado e de presente ou na relação do
passado com o futuro, o jornal poderá ser lido como registro documental, histórico,
impondo certo modo de recordação. “O antes é o flashback, a memória, a volta ao
passado, como foi dito” (BRUCK e SANTOS, 2013, p. 92).
Para Halbwachs (1990) o indivíduo participa de dois tipos de memória, que se
apoiam mutuamente, mas não se confundem. A memória individual está situada
no quadro da personalidade ou da vida pessoal, ou seja, são as lembranças
comuns ao indivíduo sob o aspecto que lhe interessa. Para evocar seu passado, o
indivíduo tem necessidade de fazer apelo às lembranças dos outros, reportando-
se a referências externas e que são fixadas pela sociedade. A memória coletiva diz
respeito às anotações históricas, demarcadas por um tempo social, partilhadas
pelo indivíduo enquanto membro de um grupo que contribui para evocar e manter
as lembranças impessoais.
A memória permite ao indivíduo remontar-se no tempo, porém, mantendo-se no
presente. Esse processo de acionamento da memória é dado a partir de recordações
pessoais que, parecem vívidas, mas podem ofuscar imaginários, uma vez que o passado
não pode ser restituído na íntegra. Sua reconstrução está fundada em vestígios,
imagens, relíquias, entre outros suportes da memória coletiva. “Aqui a memória coletiva
é considerada como sendo capaz de transformar, em determinadas condições, uma
recordação, uma imagem ou uma relíquia, numa presença real, de efetuar mais do que
uma reevocação: uma ressurreição do passado” (POMIAN, 2000, p. 513).
A memória é constituída, portanto, por processos de negociação com a
temporalidade, que serve como ponto de referência para estruturá-la e significar o
presente, a atualidade:
81
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
Conforme defende Ribeiro (2000), a mídia é o principal lugar de memória e/ou história
das sociedades contemporâneas na medida em que anuncia os acontecimentos e as
transformações do social. O jornalismo, por sua vez, amparado em seus parâmetros e
narrativas, atribui significado às transformações do social, retrata a realidade, registra
suas transformações e as deixa como legado às sociedades futuras (RIBEIRO, 2000).
Neste sentido, podemos afirmar que o jornalismo e a memória possuem uma relação
simbiótica e, ao mesmo tempo, desigual: são campos que sabem da existência
mútua, admitem intersecções e se tornaram fenômenos autônomos, sem demonstrar
dependência um do outro.
Em linhas gerais, o jornalismo precisa do trabalho de memória para contextualizar
o recontar de eventos públicos, ao passo que a memória precisa do jornalismo para
fornecer um “rascunho público” dos acontecimentos. Nesse sentido, os jornalistas
exercem então um papel vital e crítico de agentes da memória (ZELIZER, 2008), uma
vez que criam documentos históricos, como as reportagens e as imagens icônicas
para que no futuro possamos lembrar quem somos e como nos sentíamos em
determinadas situações (KITCH, 2011a; KITCH, 2011b).
Entretanto, os jornalistas ajustam a rememoração e as reconstruções dos
acontecimentos não apenas tomando como referência eventos passados, mas também
de acordo com sua agenda, pauta de notícias e interesses políticos, ideológicos e
editoriais. A princípio, o passado apresenta-se como um rico repositório disponível aos
jornalistas para explicar determinados eventos (ZELIZER, 2008), mas as especulações
em relação ao futuro combinadas às referências ao passado ajudam os jornalistas
a dar sentido ao presente, estabelecendo relações, sugerindo inferências, atuando
como critério para medir a magnitude e o impacto de determinado evento, oferecendo
analogias e explicações (LANG e LANG citado por ZELIZER, 2008). Nota-se então o
papel alargado da narrativa jornalística, não mais restrita ao caráter noticioso, mas
merecedora de inúmeros outros atributos em sua práxis cotidiana.
Considerações finais
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Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
em que medida ou por quais razões esse tipo de pesquisa deixou o jornalismo para
trás”. (OLICK, 2014, p. 19, tradução nossa)
Nesse sentido, é possível visualizar as relações de temporalidade nas
narrativas jornalísticas na atualidade a partir de um alargamento do próprio fazer
jornalístico (NEVEAU, 2010; DEUZE; WITSCHGE, 2016), sendo este convocado pelos
acontecimentos e pelo tempo social de maneira complexa. Se antes o jornalismo
poderia ser pensado a partir de categorias mais afeitas ao presente, hoje, em pleno
século XXI, ele é acionado por outras instâncias que não mais as rotinas produtivas
do próprio processo de organização empresarial.
A partir das três condições necessárias para o processo de construção do
conhecimento apresentadas por Charaudeau (2006) é possível considerar que as
narrativas jornalísticas são configuradas (nas) e pelas rupturas, pela afetação dos
sujeitos e pela rede de significações sociais. Mas é preciso considerar ainda que essas
rupturas nem sempre significam alterações temporais de grande alcance. Muitas
vezes, verifica-se certa recorrência a acontecimentos que já ocuparam as manchetes
dos meios, o que garante relativa estabilidade aos próprios acontecimentos veiculados.
De todo modo, observamos um espaço ocupado não mais somente pelas redações
institucionalmente articuladas, mas por diversas experiências comunicacionais em
que acontecimento, memória e conexões percorrem movimentos que transbordam
o factual e o presente. Nessa perspectiva mais ampliada, destacamos a potência do
jornalismo no sentido de impulsionar movimentos que configuram as possibilidades de
sua força narrativa que ressignificam tanto o “espaço de experiência” como o “horizonte
de expectativa”, visto que o presente, tensionado por estas categorias, concebe uma
nova maneira de relacionar o passado e o futuro tomando o acontecimento como
ponto de partida.
Referências
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Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
84
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
RIBEIRO, Ana Paula Goulart. A mídia e o lugar da história. Revista Lugar Comum -
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85
De fontes a personagens:
definidores do real no jornalismo literário
86
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
87
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
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Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
que, retratados em seu sentir e agir no mundo, têm a validação de sua fala articulada
a partir de suas vivências, que lhes conferiria credibilidade de modo independente de
um amparo institucional.
Repórteres como Joseph Mitchell (2012) e James Agee (2009) buscavam em
suas reportagens mais célebres não apenas ouvir fontes não-oficiais, o chamado
everyman [“homem comum”], mas tornar suas experiências e ponto de vista o centro
da enunciação, o principal definidor do enfoque e do tom da narrativa. Todo o conjunto
da obra de Mitchell pode ser compreendido como análogo aos esforços de Joe Gould,
um de seus personagens, que pretendia compor uma história oral da vida norte-
americana das primeiras décadas do século XX, a suprema antologia da ideologia
do cotidiano dentro dessa delimitação cronotópica (PASSOS, 2014). Já Gay Talese
(2005) e Truman Capote (2003) ao reconstruírem em texto, respectivamente, alguns
dias na vida do cantor Frank Sinatra e os acontecimentos em torno do assassinato
da família Clutter, no Kansas, entrevistaram incansavelmente dezenas de pessoas
que tiveram contato direto com seus protagonistas – que, no caso do romance de
não-ficção de Capote, eram tanto os membros da família quanto os assassinos Perry
e Dick. Mesmo quando seus entrevistados eram indivíduos de capital institucional
que comumente receberiam o tratamento de definidores primários, como policiais,
juízes ou produtores da indústria fonográfica. Interessava mais aos repórteres a
experiência que essas pessoas carregavam consigo, aquilo de ideologia do cotidiano
que tinham a ofertar – e é na forma de experiências, de cenas que essas entrevistas
foram transportadas para as narrativas.
Podemos atribuir esse comportamento discursivo à postura contra-hegemônica
que pautava o Novo Jornalismo norte-americano (PAULY, 1990), que pode ser
estendida à tradição do jornalismo literário anglófono como um todo, estendida
mesmo a temas de ciência e tecnologia, com abordagens que não se restringem
nem têm seu enquadramento delineado necessariamente por definidores primários
– nesse caso compreendido com as expertises científicas de um determinado
conjunto de conhecimentos. Como apontei num trabalho anterior (PASSOS, 2010), o
jornalismo de pirâmide tem dificuldades em confrontar declarações de expoentes da
ciência – ou seja, de confrontar as próprias instituições científicas –, ou mesmo de
descolar-se deles para buscar outros caminhos de definição dos fatos, por ter uma
base epistemológica positivista erigida sobre a firme convicção de que os métodos
científicos geram leituras que, se não inequívocas, seriam as mais confiáveis acerca
de fenômenos, fatos e comportamentos.
O arranjo discursivo do jornalismo literário, por outro lado, ao privilegiar a experiência
e organizar as fontes/personagens de forma mais horizontalizada, comporta-se de
forma bastante similar à comunidade estendida de pares proposta por Funtowicz e
Ravetz (1993), na qual as expertises de determinada área dialogariam em igualdade
com não-especialistas diretamente interessados ou envolvidos em algum tópico para
que se pudesse realizar tomadas de decisão baseadas num diálogo mais plural –
verdadeiramente polifônico, nos termos de Bakhtin (2010), uma vez que vozes com
discursos efetivamente distintos teriam oportunidade de ser ouvidas sem que algum
poder mediador conferisse maior ou menor autoridade a uma parte delas.
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Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
Nesta seção, analisarei três reportagens publicadas entre 2007 e 2008 que
tinham como tópico central o estudo ou aplicação de experimentos terapêuticos –
estando, portanto, compreendidas no escopo do jornalismo científico e do jornalismo
de saúde, dois ramos bastante próximos que costumam se respaldar integralmente
em expertises científicas como fontes, chegando ao ponto de utilizar a publicação de
artigos em periódicos de alto renome como Science e Nature como principal ponto de
partida para definir suas pautas.
Como informei anteriormente, a seleção de reportagens deriva de um estudo
mais amplo sobre o uso de narratividade em reportagens de ciência e tecnologia. Um
exemplo comum de monofonia – ou não-polifonia – encontrado no corpus é o uso
de personagens não-especialistas que participam voluntariamente de experimentos
científicos, como apresentado ou de tratamentos experimentais, dos quais seriam
beneficiários. No entanto, a inclusão de suas histórias, como ocorre na reportagem
“Magnetismo contra a depressão”, de Ricardo Zorzetto, é meramente ilustrativa: os
personagens são abandonados tão logo suas histórias cumpram o papel de introduzir
o tema, que conduzirá à apresentação da pesquisa a ser detalhada:
Ana Paula custa a se lembrar da última vez em que viu a mãe sorrir. Desde
que sofreu sua primeira crise de depressão há quase 20 anos, Maria passa
os dias triste, deitada no sofá remoendo pensamentos que brotam de um
mundo sempre cinza. Já experimentou todos os tipos de antidepressivos
conhecidos, mas nenhum foi capaz de pôr fim à apatia que ainda hoje a
acompanha e a fez abandonar o trabalho na empresa da família na Região
Metropolitana de São Paulo. Úteis na maioria das vezes, os remédios, no
caso de Maria, no máximo adiavam a próxima recaída. Na última, há seis
meses, os médicos tiveram de recorrer à aplicação de descargas elétricas
no cérebro do paciente sob anestesia geral, a eletroconvulsoterapia, mais
conhecida como eletrochoque – tratamento considerado como um dos
mais eficazes para os casos mais graves, ainda que estigmatizado por já ter
90
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
sido aplicado de modo cruel e usado até mesmo como técnica de tortura
contra presos. Esse tratamento pode ajudar a restabelecer o funcionamento
normal das células nervosas, ainda que geralmente cause uma perda de
memória passageira, que pode durar de alguns dias até meses. Como nem
as descargas elétricas funcionaram, em novembro Maria iniciou no Instituto
de Psiquiatria da Universidade de São Paulo (IPq/USP) uma terapia contra a
depressão que nos últimos anos vem despertando o interesse de psiquiatras
e neurologistas do mundo todo: a estimulação magnética transcraniana
repetitiva (EMTr), uma seqüência de pulsos magnéticos intensos capazes de
estimular ou inibir a atividade do tecido nervoso. (ZORZETTO, 2007, p. 42).
91
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
ele definiu a depressão que há três anos o corrói: “É uma dor sem fim, uma
angústia e uma tristeza que não passam nunca, um mergulho permanente
no horror.” Esse estado de espírito é acompanhado por fortes dores na nuca,
inapetência e um cansaço infindável, exacerbado por noites agitadas e
insones. Desde que afundou na depressão, Tezoto tomou um sem-número de
medicamentos. Nenhum deles fez efeito. “Ele simplesmente não melhora”,
disse Inês. “Vê-lo assim é morrer um pouco a cada dia.” Eram oito e meia da
manhã de uma quarta-feira. O ex-metalúrgico fora um dos primeiros pacientes
a chegar ao ambulatório psiquiátrico do Hospital das Clínicas de São Paulo,
onde seria submetido a mais uma sessão de eletroconvulsoterapia, ou
ECT, o novo nome para um dos mais atacados tratamentos psiquiátricos,
o eletrochoque. Tezoto passara por 35 aplicações, o triplo das sessões
consideradas suficientes para ultrapassar uma crise depressiva. Os efeitos
não se fizeram sentir, embora ele admita que, nos dias em que toma choque,
se sinta um pouco mais aliviado. (DIEGUEZ, 2008, p. 58).
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Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
No caso dessa reportagem, o autor deixa bem demarcado que a finalidade não é
farmacêutica, mas verificar se a substância tem efeito semelhante ao álcool, causando
tolerância conforme é consumida. O tom é diverso daquele empregado durante a maior
parte do texto1, mais debochado ou pessoal, em que são evidenciadas hesitações e
questões de identidade junto aos procedimentos do experimento. Pode-se considerar
irônico o uso de jargões técnicos da farmacologia (em geral ausentes do vocabulário
utilizado) e das aspas, num distanciamento enunciativo, ao se falar no eufemismo
de “componente estressante” para os efeitos da ahayuasca – que, em diversos
trechos, são descritos como reações insuportáveis pelo repórter-voluntário, com uma
riqueza de detalhes sensoriais e gráficos –, uma denotação da frieza da curiosidade
científica e do tratamento desumano de voluntários/cobaias, não distante da “rotina
grotesca dos criadouros” a que o autor remete. A lógica dessa reportagem segue
uma hierarquização inversa à de “Magnetismo contra a depressão” ao colocar a
experiência pessoal do repórter como principal definidora do real e fio condutor da
narrativa; quando especialistas são consultados, suas contribuições são pontuais – e
por vezes ilustrativas, curiosidades. A prerrogativa de D’Ávila (2008) é que o leitor o
acompanhe por sua jornada pessoal pelo submundo da ciência, a partir do ponto de
vista privilegiado – e incomum – da cobaia de um experimento, cujas experiências
degradantes se tornam o foco da narrativa, a informação a se compartilhar, permitindo
ao leitor problematizar, de uma forma mais ampla, o uso de seres vivos em testes
laboratoriais, lançando questionamentos à ética das pesquisas.
94
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
Notas
95
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
Referências
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Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
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O narrador na reportagem: uma estratégia do autor
Jaqueline Lemos
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Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
[...] como privilegiado leitor da cultura, uma vez que transita na primeira
realidade, observa o mundo à sua volta e capta depoimentos dos
protagonistas sociais, ouve relatos e reúne declarações do universo
conceitual (informações especializadas, opiniões e interpretações), assume,
nessas mediações, uma responsabilidade autoral que permeia qualquer
editoria. Ao produzir sentidos – e é isso que o jornalista faz –, ele está falando
de certa cultura, com os protagonistas culturais localizados2.
Esse sujeito, que é um leitor cultural, é também dotado de direitos e deveres, tem
um lugar social demarcado por sua formação profissional e age socialmente também
em sintonia com o veículo de comunicação para o qual trabalha (a sintonia não significa
ausência de conflitos, mas a permanente necessidade de mediação). A identidade
social do jornalista transita no cruzamento de dois planos: 1) de um conjunto de
normas e valores tacitamente aceitos e apreendidos na sua formação profissional4;
2) de um conjunto de concepções formuladas, intuitivamente, na prática cotidiana
da profissão, nas quais se detectam os traços de visão de mundo e concepção de
jornalismo que cada autor carrega consigo.
O autor, o sujeito formal e real, tem nome, sobrenome, identidade profissional.
O autor está diretamente ligado ao exercício de um ofício. É ele quem determina o
ponto de partida da narrativa jornalística. Ao pensar em uma pauta e sugeri-la para o
chefe, o jornalista dá início à elaboração da narrativa. É o momento embrionário da
narrativa, mas o narrador ainda não está, efetivamente, configurado neste momento.
Durante todas as etapas da apuração (pesquisa, produção, observação e
entrevistas), o sujeito que age e elabora é o jornalista/autor. Este autor, a priori, define
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Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
Assim,
Quando um indivíduo desempenha um papel, implicitamente solicita de
seus observadores que levem a sério a impressão sustentada perante eles.
Pede-lhes para acreditarem que o personagem que veem no momento
possui os atributos que aparenta possuir, que o papel que representa terá
as consequências implicitamente pretendidas por ele e que, de um modo
geral, as coisas são o que parecem ser. (GOFFMAN, 1985, p. 25).
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Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
Ou melhor,
Pois,
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Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
Trecho do caranguejo.
Mais adiante, o rio-narrador dá as mãos para uma moradora, com quem partilha
a história:
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Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
Você conhece dona Maria Eugênia? Se encontrar com ela, ouça só: aos 75
anos, firme e alegre, mulher de forte presença como muitas que você vai
encontrar no interior de Minas, Goiás, Bahia, Rio Grande do Norte, enfim,
nessas terras longe das águas atlânticas, conta os vinte e três filhos, nove,
infelizmente, já morreram, mas aí estão onze mulheres e três homens para
contar a história.
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Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
farpado e nas cercas eletrificadas. Jorge disse que não sou o primeiro de
minha espécie a pôr o focinho nas redondezas esse ano, embora certos
estudos de licenciamento digam que não há animais em risco de extinção
por aqui.
As quatro reportagens aqui observadas têm narrativas que podem nos conduzir
à uma reflexão epistemológica sobre o ethos do narrador no jornalismo. Justamente
por deixarem explícita a diferença entre narrador e autor, aqui encontramos peças
jornalísticas que são reveladoras dos caminhos da narrativa. Audálio Dantas,
Cremilda Medina, Ivan Marsiglia e Angelo Ishi não se furtaram a ir plenamente ao
outro – assumir sua voz em primeira pessoa. Mesmo no texto de Dantas, no qual a
narrativa está em terceira pessoa, a voz do caranguejo vem à tona com a mesma
intensidade da voz humana. São exemplos raros, que não fazem parte das rotinas
em veículos de comunicação. A experimentação e singularidades detectadas nestas
quatro reportagens colocam-nos diante da explicitação das duas instâncias – autor
e narrador.
Notas
1 Neste capítulo, trabalhamos com uma síntese da tese de doutorado O autor
e o narrador nas tessituras da reportagem, elaborada sob orientação de Cremilda
Medina, na qual estabelecemos diálogos com 10 repórteres e um conjunto de 20
reportagens para detectar as estratégias narrativas adotadas pelos autores para
contar cada uma das histórias que eles apuraram. Para além destes diálogos, a tese
foi construída a partir da observação das estratégias singulares adotadas por quatro
outros repórteres, que fizeram opções narrativas incomuns no jornalismo. Foram
estes quatro textos que nos despertaram para a problematização da questão: autor e
narrador na reportagem.
2 Grifos meus.
3 Reis e Lopes sempre fazem referência ao ambiente literário nas suas definições,
entretanto, podemos trazê-las para o campo jornalístico.
4 Neste ponto vale ressaltar a obra de Carlos Eduardo Sandano Santos, Para
além do código digital: o lugar do jornalismo em um mundo conectado, publicada
em 2015, pela EDUFSCAR. O autor discute o status epistemológico do jornalismo, os
valores culturais e sociais nos quais o exercício profissional está envolto. Caminha
para “descrever o jornalismo como uma ação comunicativa virtuosa, realizada
por mediadores epistemologicamente qualificados e responsáveis, que visa ao
endossamento democrático e à afirmação de solidariedade nas relações humanas”.
5 A reportagem Povo caranguejo foi publicada na revista Realidade, em edição
de março de 1970. Tem quase 25 mil caracteres. Na capa, com foto de uma menina
enlameada, havia a manchete Vida Corajosa.
6 A reportagem Sonhos e frustrações do Velho Chico foi publicada no Jornal da
USP, ano XVIII, no 666, de 17 a 23 de novembro de 2003. O texto ocupa as páginas
10 e 11 da edição do jornal, tem quatro fotos e pouco mais de 16 mil caracteres.
7 A reportagem Sou suçuarana foi publicada no jornal O Estado de S.Paulo, de
20 de setembro de 2009. O texto ocupa a página J8 do caderno Aliás, tem cinco fotos
e pouco mais de 8 mil caracteres.
8 A reportagem Memórias póstumas de um estudante da Medicina foi publicada
no Jornal do Campus, jornal laboratório do curso de jornalismo da ECA/USP, edição no
54, de 14 de setembro de 1987. O texto ocupa parte da página 7 do jornal, sem fotos,
e tem um total de quase 6 mil caracteres.
9 A afirmação é dita em um texto do livro Tempo de reportagem – histórias
que marcaram época no jornalismo brasileiro, publicado com uma coletânea de
treze textos do repórter, cada um deles com uma breve reflexão sobre a apuração, as
escolhas narrativas em cada situação.
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Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
Referências
______. Sonhos e frustrações do Velho Chico, Jornal da USP, São Paulo, 17 a 23 de nov.
2003.
______. O signo da relação: comunicação e pedagogia dos afetos. São Paulo: Paulus,
2006.
______. Ciência e Jornalismo: da herança positivista ao diálogo dos afetos. São Paulo:
Summus, 2008.
MORIN, Edgar. Introdução ao Pensamento Complexo. Lisboa: Instituto Piaget, 1995.
REIS, C.; LOPES, A. C. M. Dicionário de Narratologia. Coimbra: Edições Almedina, 2007.
RESENDE, Fernando. O olhar às avessas: a lógica do texto jornalístico. 2002. Tese
(Programa de Pós-Graduação em Jornalismo e Editoração – Doutorado) – Escola de
Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP), São Paulo, 2004.
______. O Jornalismo e suas Narrativas: as Brechas do Discurso e as Possibilidades do
Encontro. Revista Galáxia, São Paulo, n. 18, p. 31-43, dez. 2009.
RICOUER, Paul. Tempo e Narrativa: a configuração do tempo na narrativa de ficção. São
Paulo: WMF Martins Fontes, 2010.
110
II VISADAS APLICADAS
A narrativa micro-histórica em O olho da rua:
as personagens anônimas na prosa de Eliane Brum
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Zamin (2011, p.394) reitera que por meio da tessitura da narrativa, os “livros
de repórteres” expõem um conjunto de práticas, formulam comentários e permitem
“complexificar a compreensão do próprio jornalismo”.
As reportagens em análise permitem a apropriação dos conceitos de micro-história
e de “livro de repórter” para se pensar a constituição das narrativas jornalísticas.
Marocco (2016) explicita que, para Eliane Brum, o texto jornalístico é substantivo,
isto é, a tessitura da narrativa ancora-se na investigação, apuração e na escuta. A
descrição e o aprofundamento sobre as “personagens” retratadas nunca constitui
um mero bordado em prosa, mas apresenta-se como uma unidade de sentido para
a composição do enredo da reportagem. Nesse sentido, para a jornalista gaúcha, o
bom jornalismo é aquele que sabe ouvir os silêncios, que assimila as sutilezas e que
se desloca em direção ao outro.
Para abarcar a dimensão social, cultural e política que desempenham as parteiras,
Brum se despe do regime de práticas do jornalismo e direciona-se para o íntimo de
suas entrevistadas. O ouvir se converte em uma atitude heurística, interpretativa.
Para a autora de O olho da rua,
O que as pessoas falam, como dizem o que têm a dizer, que palavras
escolhem, que entonação dão ao que falam e em que momentos se calam
revelam tanto ou mais delas quanto o conteúdo do que dizem. Escutar de
verdade é mais do que ouvir. Escutar abarca a apreensão do ritmo, do tom,
da espessura das palavras – e do silêncio. (BRUM, 2008, p. 37).
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Considerações finais
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Notas
1 Rojas (2012) explica que a revista Quaderni Storici se constitui como o espaço
de expressão e propagação da perspectiva micro-histórica na Itália. Inicialmente
chamada de Quaderni Storici delle Marche, a revista traz em seu número inicial, a
primeira tradução italiana do famoso artigo de Fernand Braudel “História e ciências
sociais: a longa duração”. Em 1970, depois da reorganização de seu comitê e de
perder o complemento “delle Marche”, o periódico passa a funcionar como o principal
espaço de concentração e de difusão da corrente micro-histórica. A partir de 1981,
Carlo Ginzburg e Giovanni Levi publicam pela editora Einaudi, a coleção Microstorie,
que passa a concentrar grande parte dos pensamentos, das publicações e do
arcabouço teórico-metodológico da micro-história italiana. Nesse período, a revista
Quaderni Storici perde parte de seu status de núcleo estruturador dos principais
debates sobre a micro-história.
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122
Jornalismo e o texto da cidade: a narrativa
da rua na seção Brasiliana, de CartaCapital
Cida Golin
Maria Rita Horn
123
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
O tecido da cidade
124
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
com a realidade dos dados objetivos dos mapas. Isso porque a cidade fala a seus
habitantes, que, ao percorrê-la e habitá-la, criam diferentes significações sobre ela.
Para além das metáforas, Barthes (1993) pondera que os significados extraídos da
cidade estão sempre em mutação, portanto, uma análise não deveria pretender fixá-
los, pois “a cidade é uma escritura, quem se move pela cidade, quer dizer, o usuário
da cidade (que somos todos), é uma espécie de leitor que, segundo suas obrigações
e deslocamentos, isola fragmentos do enunciado para atualizá-los secretamente”
(BARTHES, 1993, p. 264, tradução nossa).
Das inúmeras categorias de leitores da cidade, desde o sedentário ao forasteiro
(BARTHES, 1993), o antropólogo da comunicação urbana Massimo Canevacci
(1997) trabalha com a ideia de cidade polifônica, lida e interpretada por diferentes
vozes, cada qual com suas regras, estilos e improvisações. Ele defende que, para se
fazer ver a polifonia da cidade, é preciso estar atento às inúmeras interações que
se dão entre ela e seus diferentes espectadores. Esse olhar sobre a cidade leva em
consideração que a comunicação urbana é do tipo dialógico, e não unidirecional,
e atravessada pelos fluxos emotivos dos espectadores. Estes, ao escolherem um
percurso por uma rua e não por outra, por exemplo, agem sob influência de critérios
subjetivos e imprevisíveis: “As memórias biográficas elaboram mapas urbanos
invisíveis” (CANEVACCI, 1997, p. 22).
Como espaço construído, a cidade é também a construção de significados e os
entendimentos que foram sendo fixados pelos homens ao longo do tempo. Isso é o
que está embutido na ideia de cidade palimpsesto4, trazida a partir da perspectiva
histórica e defendida por Pesavento (2004). Para chegar às cidades soterradas ou
desvendar suas múltiplas combinações possíveis a partir de superposição, substituição
ou composição entre formas do passado e do presente que compõem a paisagem
urbana, é preciso se valer da vontade e da atitude hermenêutica (PESAVENTO, 2004).
Assim, os textos ocultos e os sentidos das experiências de outros tempos da cidade
podem se desvendar aos olhos de quem assume essa posição.
A ideia de palimpsesto remete também a ver além, aproximando-se do princípio
literário da mise en abyme, ou seja, da história que contém outra história, um
“tecido, onde os diferentes fios se articulam em trama na montagem das camadas
superpostas. Neste caso, é o autor/tecelão da cidade imaginária que deve construir
enredos, descobrir caminhos e apresentar a composição da trama” (PESAVENTO,
2004, p. 28).
126
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
disso, a cultura também se transforma em mercadoria.
Tendo, portanto, como parâmetro os pressupostos da cidade como um texto que
pode ser lido e reinterpretado, sintetizamos a seguir inferências feitas após o estudo
da série Brasiliana da revista semanal CartaCapital por meio da análise da narrativa
conforme sistematizada por Motta (2013) para aplicação em estudos de jornalismo e
apoiada em apontamentos de Ricoeur (1994).
128
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
O caminho que “percorre” para descrever a via, neste primeiro momento, é como
a figura ambulatória que amplifica o detalhe, conforme Certeau (2014). Em sua
proposta de mostrar outra visão sobre o espaço, ele percorre a superfície, vai ao
subterrâneo e retorna à superfície, simulando seu próprio andar. Na parte introdutória
reproduzida, ao enumerar como a avenida “fala” por meio da arquitetura, dos rituais,
do estilo de vida conhecido como característico deste espaço, o jornalista-narrador
não nega a existência dessas vozes da Paulista, tidas como as mais conhecidas.
Todavia, ele deixa os executivos empertigados e passa, então, a focar na descrição
das personagens que sustentam uma outra Paulista, quando lança luz, a partir de sua
caminhada, à invisibilidade dos artistas de rua, camelôs, religiosos e mendigos vistos
sempre a partir de sua perspectiva, mas agora em um novo olhar sobre a via.
O jornalista-narrador apresenta o porteiro como alguém que tem esta função, mas
que, muitas vezes, é acometido também pelo sentimento de pena. Ao mostrar que o
conflito dá lugar à compaixão, ele aponta que, neste espaço, ocorrem distanciamentos,
mas também empatia.
A narrativa jornalística é conhecida por uma retórica própria, que busca a maior
coerência possível com a realidade por meio de algumas estratégias que buscam a
produção de efeitos de veracidade nos textos. Muitos são encontrados nas Brasilianas.
O principal deles é o uso do tempo presente pelos jornalistas-narradores.
Um dos efeitos de elidir a distância da narração do momento dos fatos é fazer
131
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
com que o leitor se aproxime mais daquilo que é narrado. Ao fazer isso, o jornalismo,
como mediador dos textos da cidade, também constrói os tempos desses locais,
ambientando a vida do dia a dia. Essa aproximação com a rotina das ruas das cidades
é bastante forte nestas Brasilianas.
Outras estratégias de efeitos de real11 se repetem nos textos: precisão na
localização dos espaços, idade e nome completo das personagens, estatísticas,
comparações de dados e localizações temporais. As narrativas também apresentam
falas das personagens em discursos diretos e, com menos frequência, por discurso
indireto. Esse recurso busca causar a impressão de que não houve intervenção do
narrador no discurso das personagens.
As fotos presentes nas Brasilianas costumam ser das personagens relatadas ou
dos lugares visitados pelos jornalistas, uma forma de provar que elas são pessoas que
existem no mundo reportado. Algo que ganha ainda mais força quando as imagens
são do próprio repórter, como no caso do texto sobre a Avenida Paulista – e se repetiu
em outros cinco textos do conjunto analisado.
Junto às artimanhas para produzir coerência entre o narrado e o mundo real, o
jornalista-narrador pode utilizar recursos da retórica para alcançar diferentes estados
de espírito, como surpresa, espanto, compaixão, deboche, riso, entre outros. Assim
como também a forma em que o narrador dispõe os acontecimentos em princípio,
meio e fim.
Em A Paulista invisível (MARTINS, 2006), por exemplo, o narrador recorre a
muitos adjetivos na introdução para causar no leitor a perspectiva de uma avenida
de magnitude: “Grandes corporações”, “imponentes edifícios”, “ampla rede”. Quando
apresenta “o homem-placa sonhador”, busca fazer com que o leitor sinta simpatia
pela primeira personagem citada por Martins. É também ao panfleteiro que o autor
atribui um sorriso maroto ao final de uma fala, deixando que o leitor decida se o que
o homem disse era verdade ou não.
narradores desses textos revelaram ruas que são palcos de diferentes interações.
Isso não apenas demonstra a polifonia dessas vias, como desenha esses espaços
em molduras nas quais as diferenças sociais da cidade estão demarcadas, onde
também se dão interações afetivas e identidades são sedimentadas, repensadas ou
disputadas.
Considerações finais
133
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
Notas
134
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
7 As ruas de cada texto são: Praça Buenos Aires, Avenida Richieri, Rua Yasser
Arafat, Avenida Jornalista Roberto Marinho, Rua João Briccola, Avenida Paulista,
Travessa Arroio Uirapuru, Rua Al-Silsila, ruas com nomes de personagens da Disney,
Rodovia Serafim Derenzi e Rua São Caetano.
8 Para Genette (1995), a análise da narrativa implica o estudo das relações entre
o discurso narrativo e os acontecimentos que relata, entre esse discurso e o ato que o
produz. A essas instâncias, ou, como ele diz, aspectos da realidade narrativa, ele dará
designações próprias: chamará de história o significado ou conteúdo narrativo, de nar-
rativa o discurso ou texto narrativo em si, e de narração o ato narrativo produtor.
9 Além destas duas narrativas, foram analisadas no trabalho de Horn (2017)
também os seguintes textos: Buenos Aires, Brasil, de Sérgio Lírio, de 23 de janeiro de
2002, sob a cartola Portenha, trata do agravamento da crise financeira em Buenos
Aires; Como é triste Belém, de Guila Flint, de 13 de março de 2002, sob a cartola
Palestina, fala do conflito entre judeus e muçulmanos, tendo a Rua Yasser Arafat, em
Belém, como cenário; Quem é esse Vladimir?!, de Ana Paula Sousa, de 27 de outubro
de 2004, é uma Brasiliana que relata um protesto em que um grupo de pessoas resol-
ve cobrir as placas de uma rua de São Paulo com um novo nome; Ilustres desconhe-
cidos, Brasiliana de Sérgio Lírio, de 15 de dezembro de 2004, mostra como muitos
paulistanos desconhecem a origem dos nomes das ruas; História nos muros, de Luiz
Alberto Carvalho, é uma Brasiliana de 29 de outubro de 2008 que conta sobre como
uma pintura nos muros registra a memória de moradores da travessa Arroio Uirapuru,
rua de um bairro de periferia de São Paulo; Sagrados elos imobiliários, sob a cartola
Palestina, de Viviane Vaz, de 12 de janeiro de 2011, conta sobre a disputa entre ára-
bes e judeus por uma rua de Jerusalém; A Disney paulista, de Willian Vieira, publicada
em 10 de abril de 2013 sob a cartola Brasiliana, fala de um bairro de Ferraz de Vas-
concelos, na Grande São Paulo, em que algumas ruas foram nomeadas em homena-
gem a personagens de Walt Disney; A via de Deus, Brasiliana de Jobson Lemos, de 14
de outubro de 2015, trata da característica peculiar da Rodovia Serafim Derenzi, em
Vitória, no Espírito Santo, por contabilizar 54 igrejas e templos de diferentes religiões;
e Um sonho sob véus, Brasiliana de Rosane Pavam, de 10 de agosto de 2016, conta
como a fotógrafa Dulce Soares chegou à rua São Caetano, no bairro da Luz, na capital
paulista, e desvendou a “ilusão casamenteira” da via.
10 Embora Resende (2006) se refira a isso que ele chama de estratégia textual
como narrador-jornalista, adotamos a expressão jornalista-narrador. A inversão
de termos se explica por entendermos que se impõe uma ordem das palavras que
advém da hierarquia a partir dos fazeres. Primeiro, temos o jornalismo como campo
institucional, depois, a maneira escolhida por seus agentes para realizar esse fazer,
que pode ser narrativa ou não.
11 O lugar central da descrição na produção de efeito de real foi discutido por
Barthes (1972) no artigo O efeito de real. Nesse texto, a partir da presença de um
barômetro em uma cena descrita por Gustave Flaubert no conto Um coração simples,
ele debate a utilidade da descrição do objeto citado para a narrativa, pois, na lógica
de uma análise estrutural, poderia ser apenas um item supérfluo, mas sua utilidade
passa a ser dizer “eu sou o real”. A aproximação da escrita jornalística a esse modo
de fazer literário também sofreu influência de algumas técnicas que foram desenvolvi-
das, como a fotografia e a reportagem. Estas são apontadas por Barthes (1972) como
135
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
elementos que podem autenticar o real, por apresentarem como suficiente o princípio
de “ter estado lá”.
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137
Visualidades da grande reportagem no Brasil
Yara Medeiros
138
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
Esse pensamento foi decisivo para a edição visual das notícias, o grid é fundamental
nas redações. O tamanho dos textos e dos títulos passaram a ser calculados para
adequarem-se a uma folha milimetrada na qual se desenhavam os espelhos das
páginas. Editores precisaram refinar a redação para atender às formas industriais.
Nessa transição o exemplo emblemático brasileiro é a reforma do Jornal do Brasil,
que ocorreu entre 1956 e 1961. De influência modernista, as principais mudanças
foram a simplificação da tipografia, diagramação modular assimétrica, hierarquização
do conteúdo e a inserção de fotografias na primeira página.
Nos anos 1950, o jornalista brasileiro começa a participar efetivamente da
criação das páginas nos jornais. Essa relação ficou mais próxima com a criação dos
departamentos de arte na década de 1970. É quando o designer é introduzido na
redação e a impressão mais fiel do offset se dissemina. A necessidade de produzir um
bom visual tornou-se onipresente em um contexto de concorrência com as revistas
ilustradas e a televisão, mídias de apelo visual. Segundo Freire (2009), as matérias
se tornam mais fragmentadas e ilustradas, há o uso de cores como elemento estético
e ilustrativo, o jornal se torna mais organizado, limpo e arejado. É o momento da
aproximação do jornalista com os profissionais da arte.
Mesmo com uma trajetória de valorização do visual no jornalismo, grande parte do
conteúdo diário não vem acompanhado de informações visuais além das fotografias.
Os rígidos padrões de tempo e tamanho da produção de notícias são fatores limitantes
ao trabalho dos designers. No campo jornalístico, a clareza, a objetividade e o interesse
público são conceitos basilares da profissão. Há um modo de se fazer design para o
jornalismo. Vidal e Souza (2010) defende que a fotografia no Brasil ajudou o jornalismo
a construir sua alteridade em relação à literatura e à opinião política, com a delimitação
de um espaço jornalístico para o repórter e o fotógrafo. “Foi um processo que, junto
com a profissionalização, contribuiu decisivamente para a consolidação do jornalismo
brasileiro como um campo mais autônomo” (VIDAL E SOUZA, 2010, p. 110).
O reconhecimento profissional do jornalista foi marcado pela instituição do repórter,
profissional diferente de colunistas que escreviam em jornais e revistas. A reportagem
é uma forma de narrar e selecionar os fatos distinta da crônica, da opinião, da notícia,
do colunismo. Repórteres apresentam a história com um viés interpretativo que se
vale de personagens, descrição e dados contextuais, todos verificáveis. Na reportagem
recursos visuais são aliados elucidatórios da narrativa ou a narrativa em si. Todos
os elementos devem servir como informação e isso inclui a forma como o texto é
apresentado. O uso de imagens é anterior à preocupação conceitual e discursiva com
forma ao menos no jornalismo. Foi no século XX que a instituição do design como
padrão industrial passou a funcionar como um recurso situado além da simples da
paginação. A forma assume-se como informação e elemento narrativo.
No Brasil, as imagens passam a compor as narrativas da imprensa antes da existência
da reportagem propriamente dita. No século XIX, quando o jornalismo era eminentemente
opinativo, o recurso da imprensa era a charge, a caricatura, sobretudo de caráter político.
Nos primórdios, os jornais eram montados à semelhança dos livros, com páginas sem
hierarquização. A publicação de ilustrações abriu caminho para o uso narrativo da imagem.
Normalmente, representado por uma imagem única, caricatural de cunho político.
139
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
que “a reportagem ganha esse status [de grande reportagem] quando incorpora à
narrativa elementos que possibilitam a compreensão verticalizada do tema no tempo
e no espaço ao estilo do melhor jornalismo interpretativo” (LIMA, 2009, p. 26).
A produção de grandes reportagens demanda um modo de elaboração diferente
da rotina tanto para o texto como para o planejamento visual. São produzidas com pelo
menos três meses de apuração e podem ultrapassar um ano de produção. A pressão do
tempo é substituída pelo planejamento, o que para os designers e demais produtores
visuais é uma chance de criar um trabalho diferenciado. A produção da imagem recebe
atenção especial, com fotógrafo e equipe de design impresso e digital. Para um dos mais
famigerados repórteres brasileiros, o jornalista Ricardo Kotscho, a grande reportagem
“rompe todos os organogramas, todas as regras sagradas da burocracia – por isso é o
mais fascinante reduto do jornalismo, aquele em que sobrevive o espírito de aventura,
de romantismo, de entrega, de amor pelo ofício” (KOTSCHO, 1995, p. 71).
Grandes reportagens são um investimento e pressupõem, na maioria das vezes,
viagens para locais distantes da redação. Vidal e Souza (2010, p. 111-112) em sua
pesquisa aponta que a vocação da reportagem brasileira em busca de histórias
sobre o outro “é a descoberta da alteridade”. Os repórteres entendem seu trabalho
como reveladores de realidades desconhecidas dos leitores. “Eles fazem com que
pessoas e espaços, até então ausentes do registro jornalístico, passem a existir posto
que descrevem, nomeiam e fixam sua imagem” (VIDAL E SOUZA, 2010, p. 82). O
caráter desbravador da reportagem solicita imagens. O relato descritivo, analítico e
interpretativo associado a elementos visuais, enriquece e conta a história criando
um tipo de narrativa visual jornalística. Nas grandes reportagens brasileiras, desde
os seus primórdios, jornalistas se empenharam em apresentar um relato visual das
histórias.
Todos os elementos constituintes de uma reportagem existem para contar uma história
e, como já é consenso, histórias podem ser contadas por imagens. Aumont (1993, p. 244)
reconhece que as imagens “(...) na maioria das vezes, representam um acontecimento
também situado no espaço e no tempo. A imagem representativa, portanto costuma
ser uma imagem narrativa”. No jornalismo, a função narrativa das imagens é básica e
extrapola o campo das fotografias. Os elementos gráficos narrativos estão presentes em
ilustrações, infográficos, ícones, cores, tipografia e na diagramação. No campo da rotina
diária esses recursos encontram-se engessados em fórmulas para acionar a agilidade e
atender aos anseios de temporalidade do jornalismo. Mas em projetos longos, o raciocínio
para um visual narrativo deve ser mais elaborado.
No caso brasileiro, em que as grandes reportagens buscam a alteridade, essa
interpendência verbo-visual é marcante. Na Figura 1, temos um registro histórico do
uso de imagens para enfatizar fatos narrados e solidificar o efeito de verdade. Em 1878,
o jornal Gazeta de Notícias, do Rio de Janeiro, enviou o jornalista José do Patrocínio
para o Ceará com a função de contar como estavam sendo empregados os recursos
públicos para amainar os efeitos da grave seca que obrigou uma legião de pessoas
famintas a migrarem para a capital Fortaleza. Publicada na primeira página do jornal
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Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
Quando não era possível reproduzir fotografias, ilustradores iam aos locais dos
fatos e elaboravam gravuras para acompanhar o texto. Assim, “o desenho realista
construía o jornalismo visual” (BUITONI, 2011, p. 48). No Brasil, um exemplo dessa
prática na história da grande reportagem brasileira é a série de reportagens “Mysterios
do Rio”, produzida por Benjamim Costallat para o Jornal do Brasil, em maio de 1924.
Nesta época, o texto carregava o hibridismo literário em estilo de crônica. Conforme
Bulhões (2007), os textos de Costallat assinalam uma transição entre o folhetim e as
histórias “reais”, o que chama de contos-reportagem. Os textos de Costallat flertam
com a reportagem brasileira de aprofundamento e interpretação. Pois é um “repórter”
que se embrenhou na periferia carioca em busca das histórias do outro, produzindo
um relato extenso, publicado em série.
O próprio Costallat anuncia esse trabalho como distinto das habituais histórias
de ficção que escrevia. “Hoje o que os escritos procuram dar, e que o próprio público
ledor exige, é a verdade. A verdade nos ambientes, a verdade na ação e a verdade
nos personagens.” (COSTALLAT apud BULHÕES, 2007, p. 115). Embora a leitura
dos textos revele preconceitos e uma boa dose sensacionalismo, ele acreditava
em sua fidelidade com o real. Se o público quer “verdade”, ilustrar essas histórias
deveria apresentar uma base “real”. Nos dois exemplos temos uma imprensa que
transita entre o jornalismo opinativo e o interpretativo, cenário em que jornalistas
e escritores ficcionais trabalham em um campo profissional ainda não totalmente
delineado. Porém, as bases do jornalismo moderno valorizando a objetividade com
dados verificáveis é presente. No texto da série (Figura 2), “No bairro da cocaína”, o
ilustrador da reportagem é o acompanhante do narrador-repórter, conforme Bulhões
(2007); um indício de que o ilustrador acompanhou Costallat durante a reportagem.
E a menção a esse detalhe da produção mostra como havia uma preocupação em
atestar a veracidade dos desenhos.
Em período posterior, quando a objetividade já era um “código moral”
da profissão, ao menos no jornalismo norte-americano, podemos constatar
transgressões a esta norma nas páginas da revista O Cruzeiro. Na Figura 3, a
reportagem “Enfrentando os Chavantes”, de David Nasser (texto) e Jean Manzon
143
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
144
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
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Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
Fonte: Reprodução
Alguns exemplos memoráveis estão nas grandes reportagens: “Por que a América
é odiada?”(Figura 5), “Este homem é um palhaço. Este palhaço é um homem” e
“Revolução na Igreja”. Na reportagem sobre os Estados Unidos, uma foto-ilustração
trabalhada com recursos publicitários e claramente produzida abre a revista. No interior,
uma montagem de imagens pouco convencional para o jornalismo brasileiro da época.
Porém, como em uma época reinante do paradigma da objetividade no jornalismo
puderam surgir layouts de produção encenada? As respostas podem estar na influência
do cinema e televisão como concorrentes dos meios impressos e na influência
da linguagem publicitária. E, ainda, no crescimento do New Jornalism, de caráter
interpretativo e marcado por um mergulho aprofundado do repórter nos meandros das
histórias, também chamado de jornalismo literário. Este estilo não nega a objetividade,
mas abre brechas para recursos estilísticos e de narração, incluindo a vivência do
repórter, seja em primeira pessoa ou com detalhada descrição. Em Wolfe (2005), essa
nova reportagem é apresentada como uma reação justamente à padronização que a
imprensa vivia desde a década de 1920, nos Estados Unidos. Os textos cada vez mais
semelhantes, já não davam conta da complexidade do mundo.
As experimentações desenvolvidas pelas revistas americanas como a Esquire
demonstraram, para Wolfe (2005, p. 37), que os jornalistas estavam indo além
da reportagem convencional: “A ideia era dar à descrição objetiva completa mais
alguma coisa que os leitores sempre tiveram que procurar em romances e contos:
146
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
especificamente a vida subjetiva ou emocional dos personagens.” Porém, muitas
dessas reportagens eram publicadas desacompanhadas de fotografias. A visualidade
é trabalhada no próprio texto com descrições impressionistas. Nos Estados Unidos,
um dos principais modelos foi a revista The New Yorker. Realidade apresenta
características dessa corrente narrativa do jornalismo. E ainda vai agregar um estilo
artístico e de interpretação às narrativas visuais da imprensa.
Foto de Alexandre Severo Arte sob foto de Dida Foto de Charles Guerra para
para “Os Sertões”, 2009. Sampaio para “Favela “As quatro estações de
Fonte: Jornal do Commercio Amazônica: um novo retrato Iracema e Dirceu”, 2015.
da floresta”, 2015. Fonte: Diário Catarinense
Fonte: O Estado de S.Paulo
Notas
2 Tradução livre.
Referências
150
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
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151
Hemingway não tuitava nem gugava:
A história da obra jornalística do Papa da reportagem
152
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
Há muito mais que eu não escrevi. Poderia escrever durante uma semana e não
conseguiria dar o crédito a tudo que foi feito naquele front. Guerra de verdade
nunca é como guerra de papel (...) Mas se você quer saber o que se passou, isso
é o relato mais fiel que eu posso lhe dar. (HEMINGWAY, 1969b, p.118).
O Dia D de Hemingway sinaliza o vigor de sua obra jornalística, tão pouco estudada
no Brasil. Hemingway escreveu crônicas, artigos e reportagens para jornais e revistas
entre 18 e 60 anos de idade. Foi repórter, cronista, editor e ativo correspondente
de guerra durante os principais conflitos que sangraram o século XX. Porém, apesar
da intensidade, da regularidade e da qualidade de sua obra, suas matérias são
pouco conhecidas no Brasil, e praticamente inexploradas em termos de reflexão
acadêmica. O único livro publicado no país com suas reportagens data de 1969,
numa edição já esgotada da Civilização Brasileira. Os números acadêmicos são ainda
mais desoladores. O banco de Teses do IBICT1 não registra nenhum trabalho sobre o
jornalismo de Ernest Hemingway nos 98 programas de pós-graduação cadastrados.
O esforço reflexivo e empírico deste artigo, no entanto, ultrapassa a recuperação
biográfica do repórter Ernest Hemingway. Ele está ancorado na pergunta “O que é
Reportagem?” e se alinha às tradições teóricas que entendem o jornalismo como
narrativa (MOTTA, 2013) e como forma de conhecimento (MEDITSCH, 2011). Nossa
premissa central sustenta que a reportagem é uma forma narrativa de conhecimento
do real e que esse “conhecer” está alicerçado em peculiaridades significativas e
articuladas que atravessam todas as etapas do processo de produção da informação
153
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
2. Hemingway, o repórter
“Recorde-se dos ruídos que ouviu e das coisas que cada um disse. Quando as
pessoas falam, você deve escutá-las completamente. Não fique pensando no que vai
responder, no que vai dizer a seguir. A maioria das pessoas não ouve. Nem observa.
Você deve estar capacitado para entrar numa sala e quando sair, saber tudo que
ali viu e não só isso. Se essa sala lhe despertou algum sentimento, deverá saber
exatamente o que foi que lhe deu esse sentimento (...)Depois escreva tudo com a
maior clareza para que o leitor também veja como se fosse uma testemunha visual
dos acontecimentos”.
Ernest Hemingway
A vida nunca foi uma festa para Hemingway. Sua imagem de boêmio incorrigível,
sempre metido em aventuras por mares e desertos ainda hoje se multiplica em filmes,
verbetes e enciclopédias, mas não combina com os capítulos de angústia e morte
que cercam sua biografia. Papa viveu assombrado pela crueldade das guerras, pela
solidão da depressão e pelo mistério do suicídio, epílogo dramático que abreviou a
vida de seis Hemingways2. O primeiro deles foi o patriarca da família e pai do escritor.
Ernest Miller Hemingway tinha apenas 29 anos de idade, viajava a caminho do sol
da Florida, quando recebeu um telegrama com a notícia de que seu pai se matara com
um tiro de revólver, calibre 32. Doutor Clarence Edmonds estava com 52 anos, sofria
com os males provocados pelo diabetes e por um casamento rancoroso com Grace
Hall, a mãe musicista que Hemingway aprendeu a detestar desde garoto, quando ela
o vestia de menina e o obrigava a tocar violoncelo.
Na biografia Papa, escrito por A. E. Hotchner, Hemingway reconhece a crueldade
da mãe, a responsabiliza pelo suicídio paterno e insinua que, de alguma forma, ela
arquitetou algo semelhante para o destino do filho (HOTCHNER, 2008, p. 16). “No
Natal, recebi um embrulho da minha mãe. Continha o revólver com que o meu pai se
suicidara. Trazia um bilhete dizendo que achava que eu talvez gostasse de o ter. Não
154
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
sei se era agouro ou profecia”. Agouro ou profecia materna, o fato é que o destino do
pai médico se repetiu com o filho escritor. No alvorecer de 2 de julho de 1961, depois
de cinco internações seguidas com 15 dolorosas sessões de eletroconvulsoterapia,
Ernest Hemingway se matou com a espingarda que usava para caçar pombos.
Notícias da Infância
Nascido numa família de classe média alta, na pequena cidade de Oak Park, perto
de Chicago, no estado de Illinois, Ernest Hemingway cresceu dividido entre as Letras
e os esportes. Excelente aluno de literatura inglesa, devorador contumaz de toda
sorte de romances, Ernest lia e escrevia no sótão de sua casa, onde se refugiava tanto
das pressões maternas para que tocasse violoncelo, quanto do rigor paterno que
condenava toda sorte de exageros. Hemingway era um exagerado.
Louco por esportes, encarava cada jogo com fúria competitiva – mais tarde, focou
esse vigor na paixão por touradas, boxe e safaris. Na escola, participava das equipes de
polo aquático, atletismo, natação e futebol americano. No ensino médio, acrescentou
mais um time em sua rotina: o de redator e editor da Tábula e do Trapaze, o jornal e a
revista da escola. Escrevia sobre esportes, inclusive sobre as competições das quais
participava e sobre as lutas de boxe as quais começava a assistir em Chicago.
Gostava de imitar o estilo de cronistas esportivos profissionais dos grandes jornais
das capitais. Seu ritmo de trabalho era frenético para um adolescente de 17 anos.
Entre novembro de 1916 e março de 1917, por exemplo, o jovem Hemingway escreveu
24 matérias para a Tábula. Seu gosto pela escrita era tanto que assinava uma média
de três textos por edição.
Naquela época, o ocidente fervia com a Primeira Guerra Mundial e tremia de pavor
com as turbulências provocadas pela revolução russa. Os Estados Unidos puseram os
pés no front europeu, alistando recrutas e enviando tropas para a França e para a
Itália. Hemingway queria se alistar, mas o pai não deixou. Achava o filho muito jovem
para a empreitada. Doutor Edmond Claurence sonhava que o rebento seguisse seus
passos na Medicina e ocupasse a vaga conquistada na Universidade de Illinois. Ernest
recusou. Aos 18 anos, comunicou à família que não iria seguir os sonhos dos pais e
que escolhera ser repórter, em Kansas City, a três horas de trem da pacata Oak Park.
O voluntarioso foca não estava decidido apenas a ser jornalista. Ernest Hemingway
sabia onde queria trabalhar. Aspirava uma vaga no Kansas City Star, o maior jornal da
região. E conseguiu. Com a ajuda de um tio, arranjou o emprego de cup reporter (foca),
no que hoje chamamos de Editoria de Cidades. Começou a trabalhar em 17 de outubro
de 1917 e desde o primeiro dia impressionou os colegas.
Todos usavam chapéu ou gorro. “Hemingway era o único vestido com uma
camisa xadrez e preta, traje típico de caçadores. Os colegas veteranos reprovaram a
vestimenta”, lembra o colunista Jim Fisher, num dos vários artigos sobre Hemingway,
publicados na página3 virtual que o jornal dedica ao mais famoso americano que
passou por sua redação.
Hemingway começou no jornalismo fazendo o que quase todo jovem repórter
faz: escrevia notícias locais, sobre casos de polícia, de costumes e de problemas
155
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
A primeira guerra de Hemingway não lhe deixou apenas feridas. Rendeu-lhe um amor
e um livro. Durante a temporada em que ficou acamado no hospital, o jovem Hemingway
apaixonou-se pela enfermeira Agnes von Kurowsky, sete anos mais velha do que ele,
uma charmosa filha de general que confortava os ferimentos e os olhos dos pacientes de
guerra. Foi o primeiro grande amor de Hemingway e também seu mais sonoro não. Agnes
rejeitou seu pedido de casamento e subiu ao altar com um oficial italiano.
Hemingway não escondeu a frustração. Ao contrário, publicou-a. Os estilhaços da
bomba e do amor não correspondido inspiraram um dos maiores sucessos literários
do autor, Adeus às Armas, publicado em 1929 e aplaudido pela crítica com 80 mil
exemplares vendidos em apenas quatro meses de prateleira.
Adeus às Armas pode ser interpretado como um jornalismo literário às avessas
- gênero nascido nos anos 50 com o nome de “new journalism” e que empresta
técnicas literárias ao texto noticioso. Hemingway fez o inverso em seu Adeus às Armas.
Impregnou o texto ficcional de estratégias jornalísticas, secou a prosa de devaneios
e advérbios, inundou-a com relatos ásperos do conflito bélico na Europa e mostrou a
potencialidade narrativa e documental da reportagem.
Hemingway fazer matérias em várias cidades europeias, sobre temas que incluíam
desde touradas até economia e geopolítica. Ele também ganharia um extra, sem valor
fixo, por cada palavra publicada no jornal. Hemingway aceitou. Primeiro foi para a
Itália, mas logo partiu para Paris, a cidade que mudou sua vida e suas ideias.
Hemingway sugou tudo o que havia pela frente naqueles efervescentes anos 20.
Sugava e escrevia. Não conseguiu esperar sequer o desembarque em Paris para
despachar a primeira matéria. Ainda na viagem de navio dos Estados Unidos para
a Europa, quando a embarcação parou em Vigo, Hemingway enviou sua primeira
reportagem como correspondente internacional: “A pesca de Atum na Espanha”.
O texto parte do grande para o pequeno, do universal para o particular, movimento
recorrente em suas grandes matérias o qual, num passe de mágica descritivo, carrega
o leitor pela mão para compreender antes de mais nada o cenário da história que irá
contar. Eis seu “lead”, publicado num sábado 18 de fevereiro de 1922.
entre os detalhes do que via e o conteúdo do que lia, ouvia e pensava. Publicado em
27 de janeiro de 1923 no Toronto Daily, a matéria relaciona o estilo bufão do recém-
eleito governante com sua vocação tirana.
Essa primeira temporada como correspondente na Europa durou até 1927, porém
marcou o autor tão profundamente que oito anos depois, já vivendo em Key West, no
Golfo do México, ele ainda escrevia sobre o assunto em artigo na revista Esquire, de
setembro de 1935:
Dois anos depois, em 1937 a realidade, a própria, o convocou para cobrir a Guerra
Civil Espanhola, embate que dividiu a Espanha entre fascistas e republicanos. “Só existe
uma forma de governo que não produz bons escritores e esse sistema é o fascismo. O
fascismo é uma mentira contada por matones. Um escritor que não mente não pode
viver e trabalhar debaixo do fascismo”, declarou o Hemingway, durante o congresso de
escritores americanos no Carnegie Hall, em Nova York, em 1937.
Naquele mesmo ano, o repórter que aprendera a escrever notícias respeitando
as regras do Star e que agora era celebrado mundialmente com o apelido de Papa,
rendeu-se ao chamado da reportagem e partiu para o coração do confronto espanhol.
159
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
Por três vezes foi atingido um dos mais altos edifícios. O seu bombardeio é
legítimo, pois trata-se de um conhecido centro de informações telegráficas, mas
o bombardeio que varria as ruas nessa manhã, procurando intencionalmente
os passeantes dominicais, nada tinha de militar. (HEMINGWAY, 1969b, p. 7).
160
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
a um campo de batalha, voltou para o seu refúgio em Key West, mas não resistiu ao
chamado da reportagem. Menos de três anos depois, já estava no front novamente
escrevendo longas matérias sobre o maior conflito bélico do século XX.
Contratado inicialmente pelo extinto jornal nova-iorquino PM, Hemingway percorreu
locais raramente visitados por outros correspondentes, passou um mês em Hong
Kong, foi à Birmânia e à China, revirou o Extremo Oriente nos tempos de Chiang Kai-
Chek, o generalíssimo poderoso do governo Chinês, a quem conseguiu entrevistar e
publicar um furo mundial no qual o governante garantia por escrito que a China não
romperia o acordo de apoio aos Aliados, mesmo depois de a extinta URSS afagar os
inimigos japoneses no famoso Pacto Russo-Nipônico.
Sua série de reportagens no PM oferece um retrato ao mesmo tempo analítico,
interpretativo e descritivo do que se passava do outro lado do mundo, no desconhecido
Oriente. Hemingway não viajou desamparado. Sua pauta foi cuidadosamente discutida
com Ralph Ingersoll, respeitado editor do PM, que forneceu a Hemingway aquilo que
todo grande repórter deseja: tempo, espaço e recursos para realizar uma grande
reportagem.
Quando Ernest Hemingway partiu para o Oriente, PM fez com ele o seguinte
acordo: que se as operações (os ataques de ambas as partes) fossem
desencadeadas, ele permaneceria em campo para fazer a sua cobertura
por telegrama, mas se não se registrassem ações de envergadura ele
apuraria mas não escreveria para o jornal enquanto não completasse seu
estudo - quer dizer enquanto não estivesse na posse de todos os elementos
e dispusesse de tempo e perspectiva para analisar tudo o que vira e ouvira,
produzindo um relato de valor mais duradouro que a correspondência
cotidiana. (INGERSOLL in HEMINGWAY, 1969b, p. 63).
Tamanho inventário sobre o sexo feminino no Oriente deve ter causado imensos
problemas domésticos para Hemingway. Ele viajava junto com a esposa, Martha
Guellhorn, que também estava a trabalho. Ela era correspondente da revista The
Collier’s, tinha índole tão competitiva quanto à do marido e disputava com ele cada
furo de reportagem (MEYERS, 1985).
161
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
Notas
163
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
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164
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
165
III NARRATIVAS DO EU
Biografia Jornalística: inclinações,
possibilidades e especulações
Rodrigo Bartz
Para Jaguaribe (2007) há um boom das biografias e das escritas do “eu” no meio
editorial. As muitas aparições da vida íntima tanto no circuito audiovisual quanto na
internet assinalam novas mesclas entre o público e o privado, ficcional e o real. Para a
autora a desaparição dessas divisas é consequência “[...] da politização da vida privada
[...] a presença avassaladora da mídia que engloba [...] tanto agendas e eventos públicos,
quanto notícias referentes à individualidade privada” (JAGUARIBE, 2007, p. 153). Segundo
167
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
Talvez, uma das causas dessa extrapolação do micro, como o uso dos biografemas
abordados anteriormente – a fragmentação do enredo por meio dos capítulos – , seja
característica da autenticidade, como afirma Jaguaribe (2007, p. 159) que: “[...] o
retrato da favela verbalizado pelo favelado possui maior poder de barganha do que a
visão da favela relatada pelo fotógrafo classe-média, pelo cineasta publicitário ou pelo
escritor erudito.” Dessa forma, a narrativa biográfica continua híbrida no paradoxo e
limiar do contemporâneo, quando serve de igual maneira de indexador da experiência
169
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
Ou seja, para haver narrativa, nossa atenção precisa ser estimulada para que,
segundo Ricoeur (1994), o fim da história seja aceitável e não previsível.
Assim, em narrativas biográficas o mais importante refere-se ao tempo do discurso
biográfico. Ele é o resultado de uma estratégia textual que interage com as respostas
dos leitores e cria um tempo de leitura (ECO, 1994).
No entanto, torna-se difícil estabelecer o tempo do discurso e o tempo de leitura, mas,
muitas vezes, a abundância de detalhes (caso da maioria das biografias, composta por
biografemas) pode ser mais que apenas representação, mas sim uma tática para levar
o leitor mais próximo ao ritmo que o autor acredita ser necessário para o gozo do texto:
“portanto, o tempo do discurso é o resultado de uma estratégia textual que interage com
a resposta dos leitores e lhes impõe um tempo de leitura” (ECO, 1994, p. 63).
Dessa forma, deve haver um – parafraseando Umberto Eco – “contrato de leitura
biográfica”, ou seja, o leitor deve aceitar que a história que lê é ficção, mas nem por
isso mentira. É por isso que temos a fragmentação biografemática, pois somente assim
esse leitor, poderá realizar o passeio inferencial e honrar esse contrato. Dessa forma,
podemos entender o contrato de leitura biográfica a partir do seguinte esquema:
4. Considerações interpretativas
Notas
1 http://www.liraneto.com/2012/05/getulio-o-mais-vendido-na-livraria.html.
http://top10mais.org/top-10-livros-mais-vendidos-no-brasil-em-2014/.
http://ego.globo.com/famosos/noticia/2015/09/andressa-urach-festeja-biografia-
no-topo-da-lista-dos livros-mais-vendidos.html.
172
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
2 Ver Jornalismo e literatura: as complexificações narrativas jornalísticas de cunho
biográfico [recurso eletrônico] / Rodrigo Bartz – Santa Cruz do Sul: Catarse, 2015, p. 17.
3 Afirmamos ser paradoxal, pela sua extensão.
4 Ver ECO, Umberto. Seis passeios pelos bosques da ficção. São Paulo: Companhia
das Letras, 1994 e RAMOS, Fernão. Mas afinal -- o que é mesmo documentário?. São
Paulo: SENAC-SP, 2008.
5 Numa fotografia ou num conto de grande qualidade [...] o fotógrafo ou o contista
sentem necessidade de escolher e limitar uma imagem ou um acontecimento que sejam
significativos, que não só valham por si mesmos, mas também sejam capazes de atuar
no espectador ou no leitor como uma espécie de abertura, de fermento que projete a
inteligência e a sensibilidade em direção a algo que vai muito além do argumento visual
ou literário contido na foto ou no conto (CORTÁZAR, 1993, p. 151-152).
6 Ver BURKER, Peter. A escola dos annales (1929-1989) – A revolução francesa
da historiografia. São Paulo: Unesp, 1990.
7 HIDALGO, Luciana. Literatura da urgência – Lima Barreto no domínio da loucura.
São Paulo: Annablume, 2008.
8 A expressão é uma criação da própria autora e é utilizada para se referir às diversas
estéticas presentes na contemporaneidade sem que haja hegemonia de uma sobre a outra.
9 Ver Jornalismo e literatura: as complexificações narrativas jornalísticas de
cunho biográfico [recurso eletrônico] / Rodrigo Bartz – Santa Cruz do Sul: Catarse,
2015. Disponível em: http://editoracatarse.com.br/site/2015/10/26/jornalismo-e-
literatura-as-complexificacoes narrativas-de-cunho-biografico/.
10 Termo da retórica moderna, equivalente a flashback (MOISES, 2004, p. 24).
11 Aqui, o movimento teleonímico também se torna importante, no que
pretendemos avançar em futuros momentos de pesquisa.
12 A definição do conceito de narratividade incide sobre o estado específico, sobre
as qualidades intrínsecas [...] dos textos narrativos [...] para aquém, portanto, do
estádio da análise superficial. (REIS e LOPES, 1988, p. 69).
Referências
173
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
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Tempo e obsessão nas narrativas dos diários íntimos
Você não receberá minha primeira carta até o dia depois de amanhã. Eu
espero por esse dia impacientemente, constantemente me recriminando, do
fundo do meu coração, por não ter te escrito antes. Eu não poderia imaginar
que imenso abismo se abriria ao perder duas entregas do correio, quando
há duzentas e cinquenta léguas entre nós. Eu admito que achei difícil aceitar
quando você mudou do seu encantador horal para esta correspondência
ordinária, e que você apenas começa suas cartas após receber as minhas
(...).
Terça-feira, 07 [de julho de 1788]. Não saí pela manhã. Fomos caminhar
pelo parque. Estava chovendo bem forte, nos cobrimos e... eu não preciso
escrever isso! Eu vou me lembrar. Depois de meia hora, entramos em nossa
carruagem e voltamos para cá. Eu mandei alguém pegar ovos. Eu voltei e
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Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
joguei badminton com Mar. [o escritor Sylvain Maréchal]. Eu fui andar sozinha.
Eu tenho mesmo que contar tudo? Deus, como isso é chato! Nós jantamos.
E então subimos de novo. Eu cantei, ainda que não tivesse vontade alguma.
Nas seções que se seguem, será visto como esse comportamento origina-se de
uma noção mercantil, que contabiliza – e monetariza – o tempo, que enraiza-se no
imaginário do Ocidente, e floresce na manifestação do diário, no qual os autores
podem dedicar-se não apenas ao registro livre do eu, mas também à experimentação
livre de formas de lidar com esta contabilidade compulsória.
2. A personalidade introdirigida
Antes de saltar na rica amplidão dos diários íntimos de personalidades como Henri-
Frédéric Amiel (1821-1881) ou Pierre-Hyacinthe Azaïs (1766-1845), é importante
deter-se na noção de personalidade introdirigida. Embora um termo de feição mais
técnica, trazido pela pesquisadora argentina Paula Sibilia (2016), este não deve
ser considerado como uma categoria de análise aglutinadora, que compacta uma
multiplicidade de experiências subjetivas, à guisa de uma generalização. Entender a
introdireção é entender uma configuração social, psicológica e mesmo material, que
deu vazão e forma a essas várias manifestações íntimas – como os diários – atraídas
como mariposas, em direção à luz do registro máximo e, quiçá, perfeito.
Como se define tal personalidade? Em O Show do Eu, Paula Sibilia diz que a
personalidade introdirigida é fruto de uma tradição ocidental que pensa no indivíduo
“como uma criatura dotada de uma profundeza abissal e frondosa, em cujos obscuros
meandros se esconde uma bagagem tão enigmática como incomensurável: eu”
(SIBILIA, 2016, p. 125). Imersos em uma configuração social e material que privilegiava
a solidão e a privacidade, os indivíduos introdirigidos dedicaram-se à leitura e à escrita
silenciosa, como forma de – ao longo do tempo – percorrer essa sua obscura vida
interior, revisitando experiências e realizando “fascinantes ou pavorosas viagens auto
exploratórias, que muitas vezes eram vertidas no papel” (SIBILIA, 2016, p. 96).
A pesquisadora argumenta que essa tradução no papel das vidas interiores só
pode ipso facto existir com a materialização de um ambiente para tal. No século XVIII,
começaram a aparecer “os ambientes nos quais era possível se retirar da visão do
público” (SIBILIA, 2016, p. 86), a saber, os quartos individuais. Um espaço privado,
confortável e silencioso, protegido dos olhares externos, incluindo o da família. Cada
morador poderia, agora, ficar à vontade com seu eu, para “se expandir sem reservas
e se auto afirmar em sua individualidade” (SIBILIA, 2016, p. 86).
Essa expressão completa e irrestrita do eu íntimo para si mesmo, que configura
uma mudança de ethos1, demandou o surgimento de outros objetos, conforme será
visto mais adiante. No entanto, é inegável afirmar que já havia um espaço para a
expressão da personalidade de cada indivíduo.
Nesses ambientes, as pessoas podiam dedicar-se a uma série de atividades longe
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Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
dos austeros resguardo e império do decoro burguês, incluindo duas atividades que,
para esse espírito ocidental, demandavam uma certa solidão ou, no mínimo, quietude:
ler e escrever. Uma infinidade de anônimos, incluindo Denis Diderot (1713-1784),
Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) e Ludwig Wittgenstein (1889-1951), devotaram-
se a verter suas ideias para si e para os demais, na forma de cartas íntimas, anotações
pessoais e, claro, diários íntimos.
Os diários de Wittgenstein dão uma bela mostra dessa cisão entre foro íntimo
e esfera pública que a mera existência desse ambiente de isolamento causava.
Conta Sibilia (2016, p. 95) que “nas páginas pares, o filósofo austríaco vertia suas
vivências e reflexões íntimas numa linguagem codificada, só para ele mesmo,
enquanto nas páginas ímpares anotava seus pensamentos públicos em perfeito e
claríssimo alemão”.
No entanto, fosse o diário de Wittgenstein tomado de experiências adolescentes ou
eventos sem importância – como é o trecho de Lucille Desmoulins – não seria diferente
o fato de que esse espaço permitiu-lhe expressar-se de maneira irrestrita, deixando fluir
livremente seus próprios medos, angústias, desejos e outras emoções consideradas
estritamente íntimas, fossem elas “memoráveis” para o resto do mundo ou não.
Este fluxo íntimo, no entanto, demandava tempo, um tempo que envolvia não
apenas sua escrita, mas a própria investigação da vida íntima que dava origem a essa
escrita. Os historiadores Alain Corbin e Michelle Perrot falam de um “deciframento
de si”, que Sibilia (2016, p. 96) explicita da seguinte maneira: “todos escreviam para
firmar seu eu, para se autoconhecerem e se cultivarem, imbuídos tanto pelo espírito
iluminista do conhecimento racional (...) como pelo ímpeto romântico de mergulho
nos mistérios mais insondáveis da alma”. E a pesquisadora vai além, dizendo que
esse furor de autoescrita não era restrito a homens, mas também tomou conta de
inúmeras mulheres e crianças2.
Uma multidão de indivíduos buscava, então, limpar as portas da sua percepção,
tentando ver a si mesmos como realmente o são. E o mais digno de nota é que todos
estes indivíduos não se moviam por um desejo de fama ou celebridade – como talvez
ocorra hoje, no afã de exposição que toma a internet3 – mas por uma conformação
subjetiva de uma personalidade, conhecida como “homo psychologicus” (SIBILIA,
2016, p. 98).
Fortemente voltado para dentro, o homo psychologicus refugiava-se em um
espaço íntimo, experimentando a revolução de refletir sobre si mesmo para si próprio.
E, somado ao espaço individual e à especulação íntima do seu eu, possuía o homo
psychologicus uma última peça, recentemente adquirida e essencial para seu efetivo
funcionamento, a saber, o tempo. Sobre ele, Sibilia (2016) diz que a elaboração de
cartas e diários, de fato, remeta aos ritmos cadenciados e ao tempo esticado de
outras épocas, hoje flagrantemente perdidos.
O tempo percebido pelo homo psychologicus não é o mesmo que se tem registro
hoje. Antes do tempo unir-se ao espaço nas ideias de físicos como Albert Einstein e
Hermann Minkowski, e da internet fazer o mundo menor do que jamais foi, o tempus
psychologicus dilatava-se em todos os aspectos, inclusive na comunicação, tanto
íntima quanto com o outro. A escritora francesa Maria de Rabutin-Chantal, também
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5. Os arcontes de si
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Percebe-se como essa dúvida quanto à própria atividade tomou o espírito de Amiel
durante toda a sua vida, e mesmo assim ele persistiu, deixando volume suficiente
para doze grossos volumes publicados. E, mesmo presa de uma ideia de futilidade
desse arquivamento de si – oriunda da noção errônea de Jullien – Amiel escreveu até
exaurir suas forças. Sua última entrada data de 29 de abril de 1881, e ele faleceu 12
dias depois, em 11 de maio.
Os três exemplos são patentes demonstrações dessa vontade obsessiva de deixar
registrado algo que servirá – em um primeiro momento – somente ao próprio autor. O
medo da futilidade de Amiel é real, ainda que não necessariamente válido. E, à parte
das suas diferentes formas de expressão e mesmo publicação, os três compartilham
essa missão de construir gigantescas tapeçarias com o maior número possível de
registros, considerações e reflexões sobre si.
Tal missão mostra que Amiel, Azaïs e Mauriac são filhos do homo psychologicus.
Amiel e Azaïs são, de certa forma, contemporâneos desse ethos; enquanto Mauriac,
e também Lejeune, são ecos desse clamor que vem dos recônditos da alma humana
até os abismos do tempo.
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Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
Voltando aos seus diários de adolescência, Lejeune percebe como a escrita para
si no futuro, essa autoanálise projetada e íntima, remetia a um movimento que datava
de muito antes. A internalização do remetente, essa conversa consigo que é o diário,
em que “todo mundo é seu melhor amigo” (LEJEUNE, 2009, p. 336) deu a ele a
sensação de que “o que acontecia comigo quando tinha quinze anos, no outono de
1953, é o que aconteceu na Europa durante a segunda metade do século XVIII: a
incrível ideia de pegar uma folha de papel e escrever para ninguém, escrever para si
mesmo, escrever para o eu” (LEJEUNE, 2009, p. 335, grifo nosso).
De maneira sucinta, e um tanto épica, Lejeune (2009, p. 330) conclui que “minha
adolescência ressoava com a adolescência da civilização ocidental”.
6. Expondo as tapeçarias
O afã da escrita que ressoa desde as primeiras palavras de Amiel aos mais recentes
cadernos de Lejeune não tem unicamente a função de registrar-se para a decifração
de si, mas também de manter-se vivo para si11. O diário é o escudo e o broquel contra
o olvido, contra o ocaso da existência, que traz não só angústia, mas frustração.
Na impossibilidade de prolongar a vida, os diaristas tentavam armazená-la ao
máximo como, hoje em dia, tenta-se fazer ciberneticamente. A reconstrução exata em
palavras de cada pensamento que Azaïs tinha enquanto caminhava aspira à mesma
imortalidade que a ciência moderna busca com a transferência de mentes para o
ambiente digital.
E essa reconstrução não aceita lacunas, como no caso da rede biografemática
(BARTZ, 2014). Uma informação que falta de um cérebro trará uma projeção digital
imperfeita. É informação que se perde. Na compulsão arquivística, ocorre o mesmo.
São as lembranças, por mais ínfimas que sejam, que constituem o mais valioso
arquivo: o todo de uma vida. E seu valor vem do fato de que ele é único para cada um,
irreproduzível e inigualável, como o indivíduo moderno, que se desprende da multidão
para ir encontrar suas idiossincrasias no conforto do seu quarto. O diário, então, assim
como a cibernética, busca manter o indivíduo intacto, em detrimento da passagem dos
séculos e do colapso das civilizações, fazendo-o triunfar sobre tudo.
Essa noção, além de altamente hipotética, esbarra em considerações
problemáticas. Lembra Artières (1998, p. 11), outro pesquisador francês da
autobiografia, que “não arquivamos nossas vidas de qualquer maneira; não
guardamos todas as maçãs da nossa cesta pessoal; fazemos um acordo com a
realidade, manipulamos a existência: omitimos, rasuramos, riscamos, sublinhamos,
colocamos em exergo certas passagens”.
E, sobre o próprio arquivo, Derrida (2001, p. 8) lembra que “não há arquivo sem
o espaço instituído de um lugar de impressão. Externo, diretamente no suporte, atual
ou virtual”.
É materialmente impossível, portanto, que um diário contenha todas as memórias
de um indivíduo. Não há caderno grande o suficiente para toda uma vida, tampouco
tempo suficiente para escrevê-la em sua totalidade. Artières (1998, p. 3), referindo-
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Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
Dado que cada releitura traz novas ideias, reflexões e mesmo correções, um diário
hipotético, infinito, talvez escrito pelo Irineo Funes de Borges, não poderia ser jamais
lido pelo seu destinatário. Tristemente, Funes jamais leria Funes. Mas, felizmente,
Amiel, Mauriac e Lejeune foram, na medida do possível, lidos por eles próprios, pelos
demais, e por quem mais quiser. As grandes tapeçarias de Mauriac e seus tantos
outros companheiros podem não estar em exposição nas paredes de casa, mas
podem ser conferidas através de retalhos em outras redes, que formam novas e mais
resistentes tessituras, tecidos e textos. A escrita prossegue seu caminho em direção
ao futuro, como este código que suporta e transmite a cultura ocidental (FLUSSER,
2010) e que, a despeito das grandes angústias e pequenas patologias daqueles
que escrevem, também prossegue rumo ao fim dos tempos.
Notas
1 Literalmente, caráter. Originalmente, o termo grego designa lugar de costume
e, por derivação, o costume em si. Nas Leis, (792e), Platão refere-se aos hábitos como
sementes de todo caráter. Esta é precisamente a definição que buscamos aqui, ao
compreender o caráter (de uma época) nascer a partir de uma mudança de costumes.
2 Para saber mais sobre as primeiras manifestações desse ímpeto de registro
íntimo de mulheres e crianças, cf. dois artigos de Philippe Lejeune ricos em exemplos:
“O My Paper” (2009, p. 93-101) e “Marc-Antoine Jullien: Controlling Time” (2009, p.
102-121).
3 Sobre isso, o livro de Paula Sibilia citado até aqui é pródigo, mas sugere-se
com mais ênfase os capítulos 6 e 9.
4 Até a segunda metade do século XVII, o calendário não possuía dias da
semana, e o ciclo de dias era indicado pela sequência de A a G, sendo necessário
fazer um cálculo para atribuir uma dessas letras ao 1º dia do mês, a chamada “letra
dominical”, referência para todo o ano. Já o livro de datas consistia em uma sequência
de atividades a serem realizadas no mesmo dia durante todos os anos, como festivais
religiosos, plantio, colheita etc. (LEJEUNE, 2009, p. 58).
5 É desta mesma época a expressão “tempo é dinheiro”, cunhada pelo
estadunidense Benjamin Franklin em 1748, no texto Conselho a um jovem comerciante.
Franklin, juntamente com o filósofo inglês John Locke, foi uma das principais influências
de Jullien (LEJEUNE, 2009, p. 110).
6 Essai sur l’emploi du temps; ou, Méthode qui a pour objet de bien régler sa vie,
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premier moyen d’être heureux; destinée spécialement à l’usage des jeunse gens de
15 a 25 ans (1808).
7 Jullien não estava sozinho nessa empreitada de controle moral. Um comerciante
maçônico lionês, de nome Joseph Bergier (1800-1878) sonhava com uma sociedade
na qual todos fossem compulsoriamente obrigados a manter diários pessoais como
forma de evitar a realização de atos considerados impróprios pelos seus pares/vigias.
Essa noção de controle interior assemelha-se ao poder que Foucault descreve em
Vigiar e Punir nas prisões, hospícios e escolas. No entanto, enquanto o controle vem
de fora nas instituições descritas por Foucault (para então internalizar-se), Jullien e
Bergier creem em um controle perfeito unicamente subjetivo. E, finalmente, todos se
equiparam na divisão metódica do tempo como forma de controle.
8 É importante notar a ligação semântica em várias línguas ocidentais entre
a culpa como uma falta – legal ou religiosa – e também a obrigação oriunda desta
falta (BUCK, 1988, p. 1183-1184), havendo inclusive casos de coincidência em uma
mesma palavra. No alemão – língua protestante e, portanto, comercial por excelência
– a palavra Schuld designa não somente a culpa, como a própria compensação
pecuniária oriunda dessa falta: o débito.
9 Lejeune apresenta alguns exemplos retirados de personagens da época: “No
sábado, 13, eu não me movi deste lugar”; “Na terça-feira, 28 do mesmo mês, no Dia
dos Inocentes, uma multidão que ia atrás do Rei, que apenas havia chegado à Ilha de
Saint Denis, morreu afogada” (2009, p. 79).
10 O autor ainda sugere um pacto cronográfico (p. 84), brincando com o termo
cunhado por ele próprio, o “pacto autobiográfico”.
11 Nesse rol incluem-se nomes como Nicolas Rétif de La Bretonne (1734-1806),
que entre 1779 e 1785, espalhou inscrições com datas e pequenas sentenças em
latim pelas pedras da ilha de São Luís, no coração de Paris, com o objetivo de celebrar
eventos importantes de sua vida. Ao perceber que alguém havia começado a apagar
essas inscrições, põe-se a inventariá-las em um caderno, iniciado em 1º de setembro
de 1785 e finalizado em 4 de novembro. Chamado de Mes Inscriptions (Minhas
Inscrições), o livro não é exatamente um diário, e tampouco uma autobiografia. É um
escrito de caráter memorioso, engatilhado e disparado pelo fato de que seu autor
percebeu que alguém estava apagando o que ele havia deixado para trás – tentando
privá-lo de arquivar.
Referências
ARTIÈRES, Philippe. Arquivar a própria vida. Estudos Históricos, São Paulo, Fundação
Getúlio Vargas (FGV), v. 11, n. 21, 1998.
BARDON, Adrian. A Brief History of the Philosophy of Time. Nova Iorque: Oxford
University Press, 2013.
BARTHES, Roland. Sade, Fourier, Loyola. Los Angeles: University of California Press,
1989.
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Diálogos transformadores – aproximações entre
as narrativas etnográficas, psicológicas e jornalísticas
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também para o avanço destas duas ciências no século XXI, notadamente no período
complexo pelo qual passa a civilização.
informação, o que o estudioso de Jornalismo Literário Mark Kramer chama de pacto com
o leitor (KRAMER, 1995). Ainda assim, há que se notar que esse mergulho na realidade
também faça parte do processo criativo de muitos escritores de ficção, bem como de
outras expressões artísticas, como a desempenhada por artistas. Como um processo
triádico, contudo, a comunicação jornalística se estabelece em um potencial dialógico,
promovido pelo mediador jornalista.
Esse manuscrito de que o autor fala é a narrativa etnográfica que não se organiza
como simples descrição de cenas e personagens observados, ela é acima de tudo um
esforço de interpretação. Para Geertz, a cultura é uma teia de significados (GEERTZ,
2008, p. 4), no sentido weberiano da ideia, e o desafio do etnógrafo é analisar e
interpretar essa teia a partir da imersão em campo.
A imersão em campo, geralmente longa (LA PASTINA, 2014, p. 128), demanda do
pesquisador não apenas atenção para os detalhes anotados em seus diários para
mais tarde subsidiar narrativas, mas também um esforço para estabelecer relações
com os chamados informantes (GEERTZ, 2008, p. 4). Partícipes do contexto social
estudado, os informantes se tornam cúmplices do pesquisador e ajudam a descobrir
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4. Algumas percepções
Referências
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Do estético ao ideológico na análise de narrativas
jornalísticas: o caso das histórias de vida
Fabiano Ormaneze
na pessoa – seja uma celebridade, seja um tipo popular –, mas sempre o focalizado
é protagonista de uma história: sua própria vida” (MUNIZ SODRÉ; FERRARI, 1986,
p. 126). Na mesma direção, temos a definição de Lima (2009, p. 325): “Em geral, o
jornalista ilustra o fato com a historinha de alguém. No entanto, o que se quer na boa
reportagem (e no perfil, nessa perspectiva humanizada) é encontrar o personagem
que vai irradiar o contexto sociocultural, as razões históricas de um fato”.
Mais do que servir como uma definição do que seja o gênero perfil, a breve retomada
desses conceitos tem o objetivo de expor o que, de modo geral, é utilizado nas escolas de
Jornalismo para conceituar e ensinar como se deve fazer um perfil. Os autores e textos
citados são os mais utilizados nos cursos brasileiros, o que significa que, como memória,
constituem-se como já-ditos para jornalistas sobre o que eles devem perseguir em seus
processos de escrita. Filiando-nos à Análise de Discurso Francesa, compreendemos os
já-ditos como tudo o que, em algum momento, foi enunciado e que, pelo conjunto de
suas repetições, alianças e contradições, constituem-se como memória discursiva.
Nesse ponto, começamos a delimitar mais claramente o objetivo deste texto:
refletir de que modo os estudos discursivos – dos quais vêm os conceitos de já-
dito e memória indicados o parágrafo anterior – podem contribuir para a análise
de narrativas jornalísticas e para a ideia de humanização. Para tal, baseamo-nos
sobretudo em discussões teóricas iniciadas por Michel Pêcheux e Michel Foucault, na
França, a partir do final dos anos 1960 e que tiveram no Brasil terreno fértil para seu
desenvolvimento, principalmente a partir do trabalho de Eni Orlandi.
Os perfis, obituários e biografias, pela já explicitada relação com a forma de escrita
literária, são dos poucos gêneros jornalísticos informativos que incluem, em sua
definição teórica, alguma ideia de subjetividade, ainda que ela seja compreendida,
em geral, como originária no próprio sujeito2 e como uma oposição à objetividade que
impera nos discursos sobre o jornalismo.
Essas definições, contudo, colocam-nos diante do interesse por uma definição
mais histórico-crítica da noção de humanização, no intuito de buscar uma coerência
teórica, articulando o conceito à Análise de Discurso Francesa. Em geral, na bibliografia
de referência, a humanização constitui-se como um processo triádico, envolvendo
autor, leitor e personagem:
Todavia, a nosso ver, a ideia de humanização não pode ser compreendida como
uma característica inata ao sujeito e experimentada por autor, personagem e leitor numa
relação inequívoca e imediata. Antes disso, ela se constitui num processo de significação
diante do encontro/embate entre a subjetividade que projeta uma representação do
personagem na escrita do perfil3 e a posição do leitor, seu enunciatário.
A noção de identificação, considerando as posições teóricas de Pêcheux ([1975]
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Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
2009), que entende o discurso como efeito de sentido entre locutores, só é possível
ser concebida se estiver relacionada às noções de formação discursiva e de posição-
sujeito. Dito de outro modo, a identificação é um processo em que o interlocutor se
vê, por uma interpelação ideológica, projetado no discurso “do” e “sobre” o outro.
Ele se vê tanto representado quanto projetado naquilo que é dito por outrem sobre
determinado assunto ou pessoa.
Ao ser publicado, um perfil (e seus congêneres, como biografias e obituários) demonstra
uma reconstrução sobre a vida de um personagem, que, ao ser retirado do mundo histórico,
representa, concomitantemente, “o mesmo” e “o diferente”4, numa espécie de porta-voz
da realidade que se projeta aos outros. Nesse diálogo, há no processo de humanização
e, por conseguinte, de identificação, uma espécie de localização de caracteres comuns
entre o personagem do perfil e o ser humano que o lê, que está fora do texto, mas que se
vê ali presente de algum modo pelo que é dito sobre o outro.
Há, assim, algo que permite ao interlocutor a identificação daquilo que lhe
possibilita dizer, diante do outro-representado no texto: “Há alguém ali, como eu”. Por
outro lado, há também algo que, na construção narrativa, coloca o outro-representado
numa posição distinta, que o diferencia dos demais, permitindo ao interlocutor dizer:
“Embora como eu, há algo de distinto, algo que o coloca ali especialmente, que o
faz justificar-se nesse lugar”. Num outro extremo dos sentidos possíveis, há ainda a
possibilidade de que o sentido seja algo como: “Essa pessoa é totalmente diferente de
mim, não tenho nada que me assemelha a ela”. A diferença, de acordo com a posição
do sujeito, pode, portanto, ser ferramenta de aproximação ou de distanciamento. O
algo de que falamos que possibilita essas diferentes reações é a formação discursiva.
Nesse corolário jogo entre o mesmo, o diferente e o totalmente diferente, insere-
se o processo de humanização e identificação no perfil jornalístico, que se justifica
pela noticiabilidade, mas produz sentidos pelo jogo da igualdade e da diferença,
embora essas forças não se encontrem, nunca, em relação de paridade. Temos a
lembrar ainda que a ideia de noticiabilidade, para além dos elementos estruturais da
narrativa jornalística, encontra-se determinada pela posição-sujeito e, portanto, pelas
formações discursivas.
O conceito de formação discursiva foi cunhado por Foucault, em sua Arqueologia
do Saber ([1969] 2012), e depois recuperado por Pêcheux, em Semântica e Discurso
([1975] 2009). A formação discursiva, pela sua relação com o ideológico, demonstra
“o que pode e deve ser dito, a partir de uma posição dada numa conjuntura dada: o
ponto essencial aqui é que não se trata apenas da natureza das palavras empregadas,
mas também (e sobretudo) de construções nas quais essas palavras se combinam
(...) e as palavras ‘mudam de sentido’ ao passar de uma formação discursiva a outra”
(PÊCHEUX, [1975] 2009, p. 162).
Como discurso, esse processo de identificação (ou repulsa) emerge numa relação
que é também ilusória, porque o sujeito-representado está reconstruído e submetido
aos dois esquecimentos de que fala Pêcheux (2009): no esquecimento número 1, o
sujeito, tanto leitor quanto quem assina o texto, recalca sua inscrição numa formação
discursiva, acreditando ser a origem do dizer. No número 2, o sujeito tem a ilusão
de que o que foi dito só pode ser enunciado daquela maneira. Como discurso, a
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Os jornais dos Estados Unidos publicam, desde o século 19, obituários. Essas
seções – introduzidas no jornalismo brasileiro na mesma época – sempre tiveram
bons índices de leitura. Muitos jornalistas que ganharam notoriedade depois ou se
dedicaram à literatura, como é o caso de Ernest Hemingway, empregaram-se em
jornais na função de autores de materiais nesse formato. Na história da imprensa,
The New York Times destaca-se como um dos veículos que produzem textos diários
nesse gênero e que já geraram, inclusive, coletâneas, reunindo alguns de seus mais
marcantes obituários, como é o caso de The best obituaries from Legendary New
York Times e Book of Obituaries and Farewell – A Celebration of Unusual Lives. No
Brasil, parte desses textos foi publicada numa coletânea lançada pela editora Cia. das
Letras, chamada “O livro das vidas” (2008).
Quando a cientista Yvonne Brill, pioneira no desenvolvimento de foguetes, morreu, em
27 de março de 2013, o The New York Times publicou, três dias depois, o perfil dela na
seção de obituários, assinado pelo repórter Douglas Martin. Note-se que, nesse caso, se
tratava, além de um perfil, também de uma notícia de reconhecido valor jornalístico: quem
morria era uma cientista que havia dado grandes contribuições ao projeto astronômico
dos EUA. O texto, que recebeu centenas de críticas de leitores, mulheres cientistas e
ativistas das causas feministas, começava mencionando as habilidades culinárias, a
maternidade e o casamento de Yvonne. Dizia o texto em seus dois primeiros parágrafos:
203
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
Ela fazia um estrogonofe de carne muito bom, acompanhou seu marido por
vários empregos e se afastou do trabalho por oito anos para criar seus filhos. ‘A
melhor mãe do mundo’, disse seu filho Matthew. Mas Yvonne Brill, que morreu
na quarta, aos 88 anos, em Princeton, Nova Jersey, foi também uma brilhante
cientista de foguetes, que, no início da década de 1970, inventou o sistema de
propulsão para manter satélites de comunicação fora de suas órbitas5.
Yvonne como “mesmo” e o que o autor, na formação discursiva em que está, elenca
como sendo o “diferente”, o que justifica a publicação. Da forma como enuncia, parece
haver uma visível não coincidência entre ser a “melhor mãe do mundo” E também
a grande cientista. Dessa não coincidência, desse estranhamento, materializa-se o
conectivo “MAS”, que imputa coerência ao que está sendo enunciado pelo autor.
As duas informações não se apresentam simplesmente como adição, o que
teríamos se houvesse, interligando as sentenças, apenas a conjunção “também”
(also), que só aparece mais à frente, depois de exposta a contradição pelo uso
de “mas” (but). A presença dessa adversativa, portanto, demarca um discurso de
sustentação: ser mãe E cientista não correspondem às imagens possíveis de mulher
na formação discursiva em que o sujeito-autor insere-se.
A formação discursiva, como demonstra Foucault ([1969] 2012, p. 284), é “um
conjunto de regras anônimas, históricas, sempre determinadas no tempo e no espaço,
que definiram em uma época dada, e a para a área social, econômica, geográfica ou
linguística dada, as condições de exercício da função enunciativa”. Não está em jogo
apenas a seleção das informações – o que demonstraria um processo de escrita
pautado apenas pela intencionalidade. Tampouco se trata de dizer que é um texto
com essas marcas porque seu ‘autor’ é um homem. Todavia, o que está em jogo
é como o vínculo a uma formação discursiva – independente do gênero de quem
escreve – lhe imputa sentidos e modos de dizer.
O trecho que informa que Yvonne “se afastou do trabalho por oito anos para
criar seus filhos” também funciona como discurso de sustentação, principalmente,
quando o próprio obituário, parágrafos à frente, demonstra certa imprecisão nessa
informação. Diz o texto, quase ao final:
205
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
are harder to find than good jobs). O que seria “um bom marido”? Na enunciação
produzida pelo The New York Times, parece ser um homem que não a impedia de ter
uma grande carreira.
O fato de as informações sobre as qualidades culinárias e maternas de Yvonne
estarem no primeiro parágrafo produzem também efeito pela importância dessa parte
do texto na estrutura jornalística. O primeiro parágrafo na narrativa noticiosa (lead, no
jargão) deve trazer as informações essenciais para o relato de um fato. Mesmo em textos
construídos a partir de uma estética literária, as informações colocadas no início do texto
têm importante papel no processo de sedução do leitor para a continuidade da leitura.
Assim, seja para quem escreve ou para quem lê, há uma memória que hierarquiza
no começo do texto as informações mais importantes a se saber (coisas-a-saber, diria
Pêcheux) dentro de determinada formação discursiva. Evidentemente que, ao se falar
de discurso, considera-se que o sujeito não tem consciência de tudo o que diz, embora
tenha a ilusão de ser origem e fim. O sujeito não é a origem do dizer, não devendo,
portanto, ser entendida essa hierarquização como um processo de organização, mas,
sim, uma interpelação, um dizer que carrega outros, que se formula por meio de outros
tantos. Entre as formas de dizer, há também dominantes e dominados.
A publicação do texto pelo The New York Times fez surgirem diversas manifestações
contrárias à abordagem dada à história da cientista. Nos dias que se seguiram,
correspondências chegaram à redação do jornal questionando o tratamento dedicado
à cientista. Pelo Twitter, a bioquímica colombiana e blogueira especializada em
ciências Adela Torres Daumith7, que se autodefine no microblog como alguém que
“ama a ciência, a ficção e Sherlock Holmes”, produziu uma série de memes em que
apresenta cientistas do sexo masculino a partir de informações como o casamento, a
aparência física, as habilidades domésticas e a dedicação à família.
Os memes, do ponto de vista etimológico, têm sua origem no termo grego mimese,
o que nos faz pensar em imitação. Como concebido atualmente, a expressão é
um neologismo criado por Robert Dawkins, em seu livro O Gene Egoísta, de 1976,
em que ele preconiza a capacidade de replicação própria das novas tecnologias.
Trata-se, portanto, de uma imitação, mas que, usando a sátira e a ironia, em geral,
coloca o dizer numa outra formação discursiva. “No ciberespaço, os memes têm a
ver principalmente com comentários, postagens de fotos, vídeos, paródias que são
comumente relacionados a notícias do cotidiano, provenientes em grande parte de
outros canais midiáticos, sendo estes a televisão, os jornais impressos e o rádio”
(SOUZA, 2001, p. 131).
Nas redes sociais digitais, os memes são encontrados na forma de elementos
verbovisuais, como ferramentas de crítica e humor, que fazem circular discursos. Tais
elementos têm um alto grau de potencialidade de viralizar, dada a capacidade de
convergência e interatividade dos usuários na internet. É uma apropriação capaz de
criar novos sentidos, relacionados a dadas filiações e formações ideológicas. Essa ação
acaba por criar sempre novos laços significantes, como observa Martino (2015):
206
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
[Os memes] seriam uma forma de criar laços, ainda que difusos, entre as
pessoas: reelaborar um “meme” é ser parte de uma comunidade talvez anônima,
mas não menos forte. “Memes” são compartilhados em redes sociais digitais,
de certa maneira, pelo mesmo motivo que pessoas contam piadas ou histórias
que ouviram: para fazer parte do grupo. (MARTINO, 2015, p. 179).
Em termos discursivos, fazer parte de um grupo pode significar estar filiado a uma
determinada formação discursiva ou, então, demonstrar sua presença nesse modo
de dizer. Assim, podemos pensar que são nesses laços que se percebem as vozes que
constituem os memes. Essa materialidade é um lugar propício para que formações
ideológicas sejam (re)construídas, (re)ordenadas e transformadas em outras
postagens, com novos deslizamentos. A possibilidade de “curtir” ou “compartilhar”
um meme também insere esse dizer numa rede de significações, ampliando esse
pertencimento e sua significação.
Dito isso, vamos aos memes de Adela. A ironia, discurso naturalmente polifônico,
só é perceptível quando se compreende que a blogueira escrevia de uma outra
formação discursiva, distinta daquela em que estava The New York Times. Com os
memes, ela pretendia comparar o quanto sexista fora a abordagem do obituário do
jornal, demonstrando que há lugares diferentes na ciência reservados para homens
e mulheres. Os memes de Adela chamam a atenção para a presença de lugares e
dizeres na ciência, na divulgação científica e nos textos biográficos sobre cientistas
determinados pelo gênero do biografado.
São alguns exemplos de postagens sobre o assunto feitos pela blogueira:
“Pierre Curie, casado e pai orgulhoso de dois, encontrou tempo para o amor
e a família em sua curta carreira na ciência”
Esses excertos colocam em xeque a diferença que existe entre o que contar sobre
uma mulher e sobre um homem num texto biográfico. Tornam-se irônicos e sarcásticos,
quando características que fazem parte de um pré-construído sobre mulher aparecem
associados a homens. Por uma contradição que se apresenta entre o pré-construído e o
discurso de sustentação, emerge a crítica. A partir do que discutimos na primeira parte
deste texto, o que se tem aí é uma reação de perceber-se “totalmente diferente” em
relação ao que foi enunciado. Assim, nota-se que, enquanto alguns poderiam considerar
207
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
Ela foi uma brilhante cientista de foguetes que acompanhou seu marido
de trabalho em trabalho e ficou oito anos fora do mercado para cuidar de
três filhos. ‘A melhor mãe do mundo’, disse seu filho Matthew. Yvonne Brill,
que morreu na quarta aos 88, em Princeton, Nova Jersey, na década de
1970 inventou um sistema de propulsão para ajudar a manter satélites de
comunicação fora de suas órbitas.8
Quando se torna consciente dos sentidos produzidos pelo texto anterior, o jornal
altera sua formulação, embora sem deixar de enfatizar o caráter maternal da cientista ao
abandonar o trabalho (ou parte dele, como o próprio texto diz à frente) para cuidar dos
filhos. Há ainda no trecho reescrito, outra informação distinta da primeira versão: ela criou
um sistema “para ajudar a manter” (to help keep) e não “para manter” (to keep) como
está no texto publicado na versão impressa. O que mudou? No segundo texto, a edição
buscava precisão de informação ou se trata de um acerto que coloca a cientista num
papel de menor protagonismo? Sentidos possíveis. Deslizes. Escapes do dizer. Embate do
“mesmo” que se encontra com o “diferente” quando colocado em circulação.
Os sentidos seriam outros se o início do texto enfatizasse, por exemplo, que “ser a
melhor mãe do mundo”, como disse o filho, significou, na vida da família, dedicar tempo
para brincar com eles e também fazer foguetes. Do mesmo modo, o fato de ser mulher
teria significado de modo diferente se, na versão original ou na modificada, a informação de
que ela incentivou mulheres a se tornarem engenheiras e cientistas aparecesse logo nas
frases iniciais e não quatro parágrafos antes de o texto terminar. A ênfase poderia, ainda,
estar no fato de seu pioneirismo, já que o texto também informa, depois de apresentá-la
como mãe e esposa, que ela foi recusada em engenharia pela Universidade de Manitoba,
no Canadá, porque não havia acomodações para mulheres9. Por essa razão, Yvonne
estudou Matemática e Química.
Uma vida diferente, uma mulher diferente, uma história diferente. Em cada forma
de enunciar produz-se outra biografia, outra história, outro retrato do personagem. Os
dizeres colocados em circulação na rede, em formato de memes ou de manifestações
em forma de comentários aos editores, também produzem outra narrativa biográfica,
pois a história da vida de alguém está sempre em construção:
208
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
Destaque-se ainda que a alteração no texto publicado no site não vem associada
a nenhuma informação para o leitor de que não se trata da mesma versão da edição
impressa, tampouco que houve atualização. Ao final, aparece em letras menores
apenas a menção da página em que o texto foi publicado no jornal. Nova enunciação
em jogo, afinal, acessam-se histórias e sentidos diferentes sobre a mesma pessoa
num e noutro suporte, sabendo-se ou não da polêmica causada pelo texto inicial.
Cada um dos textos, contudo, sem a menção da alteração sofrida, mantém-se como
independente, como uma história com começo, meio e fim, com um sentido que tenta
se estabilizar no apagamento da alteração pela qual passara e das outras formas
possíveis de ser enunciado.
Esses memes ou outras formas de narrativa surgidas com as redes sociais digitais
permitem acessar vozes que constituem os dizeres de quem pretende transmitir a
impressão de uma vida como unidade, mas que só existe e toma forma pelo relato
que a organiza. A vida de alguém só é possível de ser materializada numa biografia a
partir do que é possível de ser formulado pelo sujeito-biógrafo, inscrito e interpelado
por uma rede de forças.
O ocorrido com o The New York Times mostra que a história de alguém nunca
estará finalizada numa narrativa ou, como lembra Pierre Bourdieu ([1986] 2006),
estamos sempre diante de uma ilusão biográfica. Como discurso, os gêneros
biográficos apenas fazem memória de uma vida, reorganizando e lhe dando sentido,
a partir de uma historicidade, identidade e condições de produção. Nesse sentido, as
redes sociais digitais e a interatividade facilitam o trânsito dos sentidos, a circulação,
ainda que sem paridade, de diversos dizeres. As novas formas de comunicação
expõem formas de dizer, comparam-nas, organizam-nas de outros modos a partir de
formações discursivas possíveis e materializadas.
Além disso, o exemplo sobre o qual refletimos neste texto também nos ajuda a
pensar como os pré-construídos, muitas vezes, são o que mais se mostram a partir
dos recursos literários empregados na narrativa, o que exige de quem se propõe a
analisá-la, um olhar que circule entre o estético e o ideológico, entre o estrutural e
o histórico. Refletir sobre ideologia e como os discursos se constituem “pela” e “na”
história também são maneiras de ajudar a escrever não só (sobre) a vida de um
personagem da vida diária, mas também compreender quem é o sujeito-jornalista
que pretende contar a vida de um outro ser humano.
209
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
Notas
1 Sobre a relação dos perfis com os critérios de noticiabilidade e os valores-
notícia ver: Ormaneze, 2013. Disponível em: http://www.fnpj.org.br/soac/ocs/
viewpaper.php?id=983&print=1&cf=26.
2 Nos estudos discursivos, a subjetividade não pode ser compreendida apenas
como uma oposição à objetividade ou mesmo como originária no próprio sujeito. Para
autores como Pêcheux e Foucault, ela deve ser pensada a partir de uma relação do
inconsciente, com a historicidade e a ideologia.
3 Destacamos aqui o fato de que o personagem é “colocado” numa determinada
posição, uma vez que entendemos a produção jornalística como uma criação de
sentidos, uma construção discursiva da realidade.
4 Sobre as categorias de “mesmo” e “diferente” atribuídas ao porta-voz, nas
quais nos inspiramos para essa reflexão, ver Zoppi-Fontana (2016, p. 19-27).
5 No original: “She made a mean beef stroganoff, followed her husband from
job to job and took eight years off from work to raise three children. ‘The world’s
best mom’, her son Matthew said. But Yvonne Brill, who died on Wednesday at 88 in
Princeton, N.J., was also a brilliant rocket scientist who in the early 1970s invented a
propulsion system to keep communications satellites from slipping out of their orbits.”
6 No original: “She left the company in 1958, however, to care for her young
children, keeping her hand in the field by working part-time as a consultant for the
FMC Corporation. In 1966, she went back to work full time, taking a job at RCA’s rocket
subsidiary. Soon she doing the work that won international acclaim.”
7 O perfil de Adela Torres Daumith no Twitter está disponível em: https://twitter.
com/daurmith. O blog está em: http://daurmith.blogalia.com/.
8 O texto completo está em: http://www.nytimes.com/2013/03/31/science/
space/yvonne-brill-rocket-scientist-dies-at-88.html?pagewanted=all. No original: “She
was a brilliant rocket scientist who followed her husband from job to job and took eight
years off from work to raise three children. “The world’s best mom,” her son Matthew
said. Yvonne Brill, who died on Wednesday at eighty-eight in Princeton, N.J., in the
early nineteen-seventies invented a propulsion system to help keep communications
satellites from slipping out of their orbits.
9 No obituário, esta informação aparece no seguinte parágrafo: “It was a
distinction she earned in the face of obstacles, beginning when the University of
Manitoba in Canada refused to let her major in engineering because there were no
accommodations for women at an outdoor engineering camp, which students were
required to attend.”
Referências
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______. Yvonne Brill, a Pioneering Rocket Scientist, Dies at 88. The New York Times,
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211
“Em um mundo fragmentado
é preciso organizar a memória”
2. “Você tem que ser denso e ao mesmo tempo leve”: formas de narrar
214
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
Caco Barcellos salienta que a narrativa, em sua opinião, “tem sua importância
essencial”, mas é preciso que envolva um conteúdo contundente e bem apurado. Isso
não o impede de buscar incessantemente cativar o leitor e também o seu telespectador.
“Claro, não há a possibilidade de ser algo desonesto, porque aí não vale. Mas sendo
correto, por que não ser atraente, não é? Cada reportagem ser um pequeno filme, ser
cinema puro. Uma tentativa de conquista”. (BARCELLOS, 2016, informação verbal).
Barcellos revela-se obcecado pelo estilo narrativo de Truman Capote e guarda com ele
várias edições rabiscadas de A sangue frio (1996).
Teórico da área de Letras e Literatura, Bulhões (2006, p. 45) explica, ao analisar
livros-reportagem como os de Caco Barcellos, que a “concessão ao desempenho de
uma atitude individualizada, do eu que reporta” garante à grande reportagem o lugar
simbólico de “ambiente mais inventivo da textualidade informativa”. Assim, levando em
conta que o jornalista autor opera com formas de “dilatação do evento noticioso”, a
reportagem, particularmente na forma de livro, “pode estender-se como uma realização
descritiva, na composição astuciosa de um personagem ou na coloração de um cenário”.
Esses aspectos, além de demonstrar uma contraposição aos formatos tradicionais do
jornalismo, atraem o leitor pela perspectiva da identificação.
A experiência de sempre “ir para rua” e viajar a outros países de culturas diferentes
como repórter especial do jornal O Estado de S.Paulo, além de escrever obras como
o livro-reportagem infantil Malala: a menina que queria ir para a escola (2015) e o
adulto O Irã sob o Chador (2010) definiu o estilo narrativo de Adriana Carranca (2016,
informação verbal)7: “Não tem matéria sem descrição, sem personagem. Isso marcou
completamente. Eu não consigo fazer matéria que não seja convivência”.
Quando está escrevendo um livro, Adriana Carranca diz pensar o tempo inteiro em
como levar o leitor para dentro da história, “algo quase físico”, de “pegar pelo braço”.
Na tentativa de despertar sensações sinestésicas em quem lê, principalmente as
crianças, a jornalista costuma anotar vários detalhes que comporão os ambientes de
fundo dos seus livros: “Eu anoto tudo. Cheiro, clima, calor, roupas, se tem quadros.
Eu tento observar coisas que me informam sobre aquele personagem”. (CARRANCA,
2016, informação verbal)
A relevância deste tipo de olhar já havia sido ressaltada por Wolfe (2005, p.37),
quando salientou a necessidade do repórter mergulhar nos ambientes que pesquisa.
“Parecia absolutamente importante estar ali quando ocorressem as cenas dramáticas,
para captar o diálogo, os gestos, as expressões faciais, os detalhes do ambiente”. O
jornalista e pesquisador acrescenta, referindo-se não só às obras dos escritores do
chamado new journalism americano, mas a várias que os antecederam, que a ideia
era dar a descrição objetiva completa e “mais alguma coisa”. Algo aproximado do que
o leitor espera de um romance: “a vida subjetiva ou emocional dos personagens”.
Ter trabalhado em revistas como Veja ajudou Laurentino Gomes (2016, informação
verbal)8 a transpor para a narrativa do livro uma estrutura em que cada capítulo pareceria
justamente uma reportagem de magazine: “Por isso que eu não faço uma história
cronológica, linear. Começou aqui com o descobrimento, depois teve a colonização, a
Inconfidência Mineira, Ciclo do Ouro...os meus capítulos são meio que aleatórios”. A
ideia é fechar assuntos em cada um deles, de forma que, se o leitor ler um capítulo do
215
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
meio da obra, vai entender sem ter lido o início. O autor tenta jogar luzes sobre o tema
central a partir de diversos ângulos, cada qual contemplado em um capítulo. “Então são
diferentes focos de um mesmo assunto que na hora que você lê todos, vira um mosaico.
Acho que esse é um estilo meu. À primeira vista, os capítulos parecem aleatórios, mas,
na soma, conseguem explicar um fenômeno, um acontecimento”. (GOMES, 2016,
informação verbal). A trilogia 1808, 1822 e 1899 (2007, 2010, 2013) já superou a
vendagem de 2 milhões de exemplares. No momento, Laurentino Gomes prepara uma
nova série de três livros, desta vez a respeito da escravidão.
Jornalista da Folha de S.Paulo, Rubens Valente lidou com um tema árido, difícil de
explicar em todas as minúcias, em seu primeiro livro, Operação banqueiro (2014), a
respeito do caso do proprietário do banco Opportunity, Daniel Dantas, que, apesar de
envolvido em escândalos financeiros, foi inocentado pelo Supremo Tribunal Federal
(STF). Rubens Valente (2016, informação verbal)9 exercitou o didatismo e a descrição
minuciosa e paciente dos fatos para inserir o leitor naquela narrativa complexa, sobre
fraudes econômicas. Ele admite que a preocupação com a clareza, o que aproxima
a narrativa de uma forma mais objetiva do que “literária”, pode tornar o texto mais
“truncado”, ou “seco”.
É preciso tomar muito cuidado, segundo Valente (2016, informação verbal),
quando se está tratando de temas como “honra, intimidade, direito de presunção de
inocência”, já que seriam questões que não permitiriam maiores arroubos criativos de
linguagem. Uma interpretação mais adjetivada de algum fato que envolve o jornalismo
sobre crimes de corrupção pode abrir brecha para uma penalização do jornalista na
Justiça. De toda forma, Rubens Valente salienta que o seu maior desafio é construir
um texto “agradável, informativo, sem ser opinativo, sem transpor as barreiras das
técnicas jornalísticas e seus pilares, sem tirar conclusões apressadas”. Em seu livro
mais recente e volumoso, Os fuzis e as flechas (2017), sobre a situação dos indígenas
durante a ditadura militar brasileira, o jornalista tenta colocar em prática de forma
acurada esses procedimentos. Amealha uma imensa pesquisa documental com
dados de entrevistas, em uma narrativa ágil.
Como lidam por longo tempo com o tema ou personagem central dos seus
respectivos livros, os jornalistas-escritores entrevistados têm condições de refletir
com mais acuidade do que um repórter de jornal diário a respeito da linha de força
central que norteará cada obra. Quando falam da construção narrativa dos seus
livros, eles costumam argumentar longamente, e com consciência, sobre o “espírito”,
a mensagem central que esperam ver compreendido pelos seus leitores. Os biógrafos,
particularmente, buscam raciocinar a respeito das formas de compreensão psicológica
dos seus personagens. Ou seja, estes escritores demonstram um claro conhecimento,
fruto de autorreflexões constantes, a respeito dos mecanismos de interpretação da
realidade que articulam.
Com a missão de descrever o rio Amazonas desde a sua foz até quando desemboca
no mar, com todos os elementos humanos e problemas ambientais que encontrou
216
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
ao longo do seu caminho, no livro O rio (2010), Leonencio Nossa (2016, informação
verbal)10 teve que fazer oito excursões, cada vez percorrendo um trecho e até
retornando para alguns. Quem lê o livro, no entanto, segue a viagem uma única vez, da
origem do rio até o Oceano Atlântico. O jornalista explica que a fluência narrativa que
tentou engendrar é “como se tivesse incorporado a fluência do Amazonas na escrita”.
Nossa procurou contestar uma “visão exótica da Amazônia” que aparece em tantas
obras e mostrar uma “Amazônia em que o ribeirinho, o índio, pudessem ser descritos
como personagens, com voz, uma voz única, uma voz de poder por meio da cultura”
(NOSSA, 2016, informação verbal). O jornalista também já descortinou os conflitos
da região do Araguaia em Mata: o major Curió e as guerrilhas no Araguaia (2012)
e prepara atualmente uma biografia não autorizada do empresário da comunicação
Roberto Marinho.
Motta (2013, p.198) pondera que “a estratégia textual principal do narrador realista
é provocar o efeito do real, fazer com que os leitores e ouvintes interpretem os fatos
narrados como verdades, como se os fatos estivessem falando por si mesmos [grifos
do autor]”. Assim, o jornalismo ofereceria ao leitor, elemento ativo no processo de
interpretação, “um lugar empírico de onde se pode observar o mundo, compreender
o passado e especular sobre o futuro”. Se o jornalista de redação opera diariamente
vários desses efeitos de forma desfragmentada, o profissional que escreve um livro-
reportagem lança mão dos mesmos artifícios, talvez de maneira mais consciente,
com a vantagem da distância temporal e até mesmo mais tempo para estudar suas
estratégias de sedução.
Entre os estratagemas de criação do efeito do real a citação é, segundo Motta
(2013, p.201), um dos recursos utilizados fartamente “para dar a impressão de que
são as pessoas reais que falam, de que o jornalista não está intervindo”. Mas, ao
citar, “o jornalista pinça da fala da fonte aspectos que pretende ressaltar dando outra
dimensão ao discurso, dirigindo a leitura”.
Para a elaboração do livro Abusado, Caco Barcellos procurou basear-se ao máximo
no jeito de falar das pessoas. O jornalista comenta que, quando entrevistava um
personagem marginal no morro, ele já “dava o romance pronto”. “Ele não diz ó: ‘Você
não sabe, essa minha noite foi uma das piores do mundo’. Não, ele fala assim: ‘Ó, aí.
Oito horas da noite. Estou sentando aqui na saaala. Não acredito!’. E pá, vai falando.
‘Ih, um tiro!’ Até chegar ao tiroteio real ele já te deu o diálogo completo” (BARCELLOS,
2016, informação verbal). Na hora de botar no papel as entrevistas, Caco Barcellos
voltava várias vezes a fita gravada para captar a entonação ideal do sotaque carioca
e as gírias. Ou seja, tentou rearticular o que foi narrado com a mesma vivacidade e
oralidade que ouviu da fonte entrevistada. Humanizou-a em personagem na narrativa.
Sob a perspectiva dos procedimentos narrativos, Medina (2003, p. 52) aponta
que pesa para o leitor de uma narrativa o grau de identificação com os anônimos e
suas histórias de vida. “De certa forma a ação coletiva da grande reportagem ganha
em sedução quando quem a protagoniza são pessoas comuns que vivem a luta do
cotidiano”. Em seus livros e mesmo no seu trabalho na televisão, Caco Barcellos parece
estar atento ao receituário considerado ideal por Medina (2003, p. 53): “Descobrir essa
trama dos que não têm voz, reconstituir o diário de bordo da viagem da esperança,
217
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
recriar os falares, a oratura dos que passam ao largo dos holofotes da mídia”.
Falando, por sua vez, como biógrafo, Lira Neto (2016, informação verbal)
esclarece que, em primeiro lugar, institui o narrador do livro e que “música, ritmo”,
a obra vai ter: “Cada livro tem uma linguagem diferente no sentido de que ele é
contado a partir de uma perspectiva, de um narrador, a partir de um eu narrativo”. O
jornalista sente que já consegue estruturar uma narração quando percebe que pode
“materializar o personagem na sua frente”: “Se ele sentasse aqui na sua frente você
saberia como ele deveria falar. Se ele tem algum tique nervoso. Se ele chegasse
em sua casa o que você serviria para ele comer?”. Assim, cria-se uma “intimidade
necessária” na qual não há “nenhum distanciamento entre o pesquisador e o seu
objeto de estudo”. Esse personagem vive, na ótica de Lira Neto, uma relação quase
“incestuosa” com o jornalista que busca compreendê-lo para narrá-lo, já que ele
“invade sua vida na perspectiva em que tudo o que você faz ao longo do seu dia você
está pensando nele”.
No texto A ilusão biográfica, Bourdieu (2000) aponta dilemas essenciais para
quem se propõe a narrar histórias de vida. Esse é justamente o caso dos jornalistas
biógrafos, que têm grande aceitação no mercado editorial brasileiro. Mas não deixa
de ser uma questão séria para os autores de livros-reportagem em geral, já que
todos trabalham com reconstituição de trajetórias de alguma forma. Para Bourdieu,
a “ilusão” reside no fato do biógrafo acreditar, muitas vezes, que está organizando a
narrativa de uma história em ordem cronológica, segundo a lógica de “um começo,
uma origem, no duplo sentido de ponto de partida, de início, mas também de princípio,
de razão de ser, de causa primeira, até seu término, que também é um objetivo”
(BOURDIEU, 2000, p.184).
Bourdieu (2000, p.190) acredita que não é possível compreender uma trajetória
sem construir previamente “os estados sucessivos do campo no qual ela se desenrolou”
e, também, “o conjunto de relações objetivas que uniram o agente considerado ao
conjunto de outros agentes envolvidos no mesmo campo e confrontado com o mesmo
espaço dos possíveis”. Ele pondera que essa “ilusão biográfica” de compreender
uma vida “como uma série única e por si suficiente de acontecimentos sucessivos”,
rigidamente associados a um “sujeito”, ou “nome próprio”, seria uma postura tão
estranha quanto “tentar explicar a razão de um trajeto de metrô sem levar em conta a
estrutura da rede, isto é, a matriz das relações objetivas entre as diferente estações”
(BOURDIEU, 2000, p.189-190).
Como desafio pessoal, Ruy Castro (2016, informação verbal), ao escolher um
personagem para biografar, sempre pensa que abordagens ainda não foram feitas
sobre ele. O jornalista conta que, quando teve a ideia de interpretar a vida de Carmem
Miranda, pensou em duas questões que nenhum outro biógrafo tinha aprofundado
sobre a cantora. A primeira missão era não ficar apenas concentrado na Carmem
“norte-americana”, que está fartamente documentada e, sim, lançar luzes sobre a sua
vida brasileira. Outro foco de Ruy Castro foi descrever o impacto que a dependência
química de álcool e remédios causou no organismo de Carmem Miranda, já que esses
abusos foram cruciais para a sua morte precoce. “Essas duas coisas que eu poderia
fazer em relação à Carmem era o que me empolgavam. Na época, eu não sabia nem
218
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
por onde começar. Isso é uma coisa que, de cara, vai tornar a sua biografia diferente
de todos os que já fizeram até hoje”. (CASTRO, 2016, informação verbal)
Alguns pesquisadores percebem certa pretensão de relato de uma verdade
absoluta, comum em biografias brasileiras. Essa tendência foi apontada pelo
pesquisador Sérgio Vilas Boas, na sua tese defendida na USP em 2006, Metabiografia
e seis tópicos para aperfeiçoamento do jornalismo biográfico, na qual ele concentrou-
se no estudo das biografias. A partir das leituras de obras de Ruy Castro, Fernando
Morais e Cláudio Bojunga, autor de JK: o artista do impossível, critica alguns aspectos
recorrentes nas biografias brasileiras até então publicadas e estimula que os autores
deixem mais transparentes seus processos, dúvidas, angústias para os seus leitores,
já que estabelecem com eles uma relação diferenciada.
Em um contrato ideal com o leitor, mais transparente, seria recomendável, segundo
Vilas Boas (2006), explicar os contextos em que esses documentos foram gerados
e, principalmente, as múltiplas formas como foram encadeados e organizados pelo
autor tantos depoimentos, por vezes contraditórios. “Ou seja, essa massa bruta,
fragmentária e lacunar dos documentos (de todos os tipos e formas) é passível de
explicitação pelo eu-convincente, rumo à maior transparência”. (VILAS BOAS, 2006,
p.166-167). O pesquisador faz uma provocação com base na psicanálise. Ao afirmar
que estão apenas “executando o seu trabalho e averiguando o que podem para
montar um painel convincente sobre a vida dos personagens”, os jornalistas-autores
de biografias estariam suprimindo o seu “eu-autor-autoconsciente-solidário” (VILAS
BOAS, 2006, p.162). Ou seja, sutilmente negando que criaram qualquer tipo de
vínculo, seja negativo ou positivo, com os seus personagens.
Na ótica de Fernando Morais (2016, informação verbal), “é muita pretensão,
muita arrogância, muita soberba, alguém dizer que biografia é definitiva”. Ele conta
que ficou surpreso ao visitar uma grande livraria nos Estados Unidos e se deparar não
com uma prateleira para o gênero, o que é mais comum no Brasil, mas, sim, com um
andar inteiro que acomodava, inclusive, uma tradução do seu livro Olga. “Naquela
época eu contei 19 ou 20 biografias diferentes da Jackeline Kennedy”.
Rubens Valente (2016, informação verbal) acrescenta que, em certo sentido,
“a história sua é dos outros também” sendo, portanto, uma “tentação autoritária
controlar o que os outros acham de você”. Ele aplaude a decisão do Supremo Tribunal
Federal (STF) de derrubar a censura prévia às biografias não autorizadas, pois, na
sua concepção, “o mundo atual é o da transparência, da informação disseminada, de
uma sociedade livre que partilha experiências”. O papel crucial do jornalismo como
uma instituição voltada para a preservação da memória também é frisado por Rubens
Valente. “Em um mundo fragmentado, de informação rápida que entra e sai, é preciso
agregar, consolidar, lidar, organizar a informação. E isso é a memória, trabalhar a
memória”. Essas são, justamente, algumas das principais vantagens na produção de
livros-reportagem.
Para Lima (2009, p.85) o jornalista escritor estaria “livre do rancor limitador da
presentificação restrita” e poderia avançar, com mais paciência, “para o relato da
contemporaneidade, resgatando informações do tempo algo mais distante do de
219
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
hoje, mas que, todavia segue causando efeitos neste” (LIMA, 2009, p.85). Pode-se
concordar com os benefícios óbvios do prazo mais dilatado para a pesquisa jornalística
documental e oral, mas não sustento que seja necessariamente determinante para
que o jornalista que se aventura nessa seara não incorra em uma visão estereotipada
do real. Mais espaço para discorrer suas interpretações e mais tempo para coletá-
las e organizá-las não significa que o autor de determinada biografia, por exemplo,
entenderá ou explicará com mais precisão e de forma multiangular, determinados
aspectos contraditórios de uma personalidade ou fato histórico. Uma biografia pode
contribuir, por exemplo, para detratar de forma injusta a personalidade de determinada
pessoa, apoiada em um discurso de meticulosa objetividade jornalística, pensado
com calma.
Zuenir Ventura (2016, informação verbal) abordou uma questão importante,
a inserção do repórter na narrativa. Para entender melhor o Rio de Janeiro fora do
imaginário da Zona Sul, onde reside, Ventura mergulhou em um baile funk em um
trecho de Cidade Partida. Interessado no comportamento da geração brasileira do
início do século XXI, inseriu-se em uma imensa rave, experiência relatada em um
capítulo do livro 1968:o que fizemos de nós. Zuenir Ventura (2016, informação verbal)
confessa que, no seu primeiro livro, 1968: o ano que não terminou, procurou narrar
os acontecimentos daquele ano de forma mais contida, mas em Cidade Partida foi
inevitável o retorno do cronista que comenta suas impressões, seu choque cultural:
“Para mim foi uma experiência existencial, não digo profissional. Mas foi incrível,
porque imagina, eu moro aqui a 30 minutos de Vigário Geral e é um outro universo,
totalmente diferente”. Ventura (2016, informação verbal) conta que chegou a pensar
em alugar um casebre para conviver mais diretamente com a comunidade, mas desistiu
da ideia: “Eu sou de Ipanema, pô. E esse choque realmente eu tenho que revelar para
o leitor, não fingir que estou achando tudo natural”. São limites da imersão.
Como demonstram os depoimentos, elaborar um livro-reportagem envolve uma série
de questionamentos internos, que, no fundo, são questões do campo jornalístico, refletidas
de forma coletiva. Mesmo, talvez, sem conhecer plenamente os meandros teóricos
que marcaram a superação da teoria da verdade como correspondência para a teoria
consensual da verdade, os jornalistas escritores entrevistados parecem estar atentos à
concepção de que a construção da notícia e, principalmente do livro-reportagem, é um
trabalho autoral, mas que só se completa com as ponderações dos leitores. Todo processo
de elaboração de um livro-reportagem pode ter como ponto central essa reflexão calcada
no impacto que aquela obra terá junto à comunidade interpretativa, numa observação e
interpretação conjunta da realidade na qual o jornalista e o leitor são chamados a serem
parceiros.
220
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
221
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
Notas1
1 MORAIS, Fernando [17/09/2016]. Entrevistador: Alexandre Zarate Maciel. São
Paulo: apartamento do entrevistado. 1 arquivo .mp3 (1h49min).
2 NETO, Lira [17/09/2016]. Entrevistador: Alexandre Zarate Maciel. São Paulo:
apartamento do entrevistado. 1 arquivo .mp3 (1h52min).
3 VENTURA, Zuenir [17/08/2016]. Entrevistador: Alexandre Zarate Maciel. Rio
de Janeiro: apartamento do entrevistado. 1 arquivo .mp3 (1h56min).
4 CASTRO, Ruy [22/08/2016]. Entrevistador: Alexandre Zarate Maciel. Rio de
1 Todas referências em aspas aos entrevistados, neste capítulo, são informações verbais retiradas das
mesmas e respectivas gravações.
222
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
Referências
ARBEX, Daniela. Holocausto brasileiro: genocídio: 60 mil mortos no maior hospício
do Brasil. São Paulo: Geração Editorial, 2013.
______. Cova 312: a longa jornada de uma repórter para descobrir o destino de um
guerrilheiro, derrubar uma farsa e mudar um capítulo da história do Brasil. São Paulo:
Geração Editorial, 2015.
BARCELLOS, Caco. Abusado: o dono do morro Dona Marta. São Paulo: Record, 2003.
______. Rota 66: a história da polícia que mata. São Paulo, Record, 1992.
BOJUNGA, Cláudio. JK: o artista do impossível. São Paulo: Saraiva, 2001.
BOURDIEU, Pierre. A ilusão biográfica. In: FERREIRA, M. M.; AMADO, J. Usos e abusos
da história oral. Rio de Janeiro: Editora da FGV, 2000.
BULHÕES, Marcelo. Jornalismo e literatura em convergência. São Paulo: Ética, 2006.
CALVINO, Ítalo. Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo: Companhia das
Letras, 1990.
CAPOTE, Truman. A sangue frio. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
CARRANCA, Adriana. Malala: a menina que queria ir para a escola. São Paulo,
Companhia das Letrinhas, 2015.
______. O Afeganistão depois do Talibã. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011.
CARRANCA, A.; CAMARGOS, M. O Irã sob o Chador: duas brasileiras no país dos aitolás.
São Paulo: Globo, 2010.
223
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
CASTRO, Ruy. Estrela solitária: um brasileiro chamado Garrincha. São Paulo: Companhia
das Letras, 1995.
______. Carmem: uma biografia. São Paulo, Companhia das Letras, 2005.
______. O anjo pornográfico: a vida de Nelson Rodrigues. São Paulo: Companhia das
Letras, 1992.
GOMES, Laurentino. 1808: Como uma rainha louca, um príncipe medroso e uma corte
corrupta enganaram Napoleão e mudaram a História de Portugal e do Brasil. São
Paulo: Planeta, 2007.
______. 1822: como um homem sábio, uma princesa triste e um escocês louco por
dinheiro ajudaram D. Pedro a criar o Brasil, um país que tinha tudo para dar errado.
São Paulo: Nova Fronteira, 2010.
______. 1899: como um imperador cansado, um marechal vaidoso e um professor
injustiçado contribuíram para o fim da Monarquia e a proclamação da República no
Brasil. São Paulo: Globo Livros, 2013.
LIMA, Edvaldo Pereira. Páginas ampliadas: livro-reportagem como extensão do
jornalismo. São Paulo: editora Manole. 4ª edição, 2009.
MEDINA, Cremilda. A arte de tecer o presente: narrativa e cotidiano. Summus, 2003.
MORAIS, Fernando. Corações sujos. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
______. Olga: a vida de Olga Benário Prestes, judia comunista entregue a Hitler pelo
governo Vargas. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
MOTTA, Luiz Gonzaga. Análise crítica da narrativa. Brasília, editora da UnB, 2013.
NETO, Lira. Maysa: só numa multidão de amores. São Paulo: editora Globo, 2007.
______. Getúlio (1882-1930): Dos anos de formação à conquista do poder. São Paulo:
Companhia das Letras, 2012.
______. Padre Cícero. Poder, fé e guerra no sertão. São Paulo: Companhia das Letras,
2009.
______. O inimigo do rei: uma biografia de José de Alencar. São Paulo: editora Globo,
2006.
______. Uma história do samba. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.
NOSSA, Leonencio. Mata! : o major Curió e as guerrilhas no Araguaia. São Paulo:
224
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
225
As narrativas de si nas redes sociais: o “eu” no facebook 1
A vida não é a que a gente viveu e sim a que a gente recorda, e como recorda para contá-la.
Gabriel García Márquez
1. Narrativa de si
Por outras palavras, é dizer, conforme aponta Motta (2013) que nossas vidas são
acontecimentos narrativos, posto que vivemos por meio de narrações por meio das
226
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
quais nossa existência se constitui enquanto uma teia de narrativas na qual estamos
enredados. E é assim que seres humanos constroem suas biografias e identidades
pessoais narrando mediante o fato de que nossas vidas são as nossas narrativas,
orientadas pela construção de uma realidade em que a personagem principal e seu
narrador maior são o próprio indivíduo criador.
Em razão disso, observa-se as narrativas como prática tão antiga quanto sempre
nova, agora viabilizada por arranjos e gagdets tecnológicos e midiáticos que oportunizam
a reflexão sobre a arte de contar histórias. Trata-se, conforme apontando em trabalhos
anteriores, (Piccinin: 2012; Piccinin: 2013; Piccinin: 2016) da condição ontológica do
indivíduo e que implica no narrar e no narrar-se. Seja a partir de si para si, ou de si para os
outros, ou dos outros em busca de si mesmo. O fenômeno de gerar e organizar sentidos
à existência, justifica o reconhecimento da narrativa como centro de um processo no
qual as tecnologias estão relacionadas como estruturas viabilizadoras dessa atividade,
independente de quais sejam as plataformas.
Assumindo, portanto, a ideia de que somos os narradores da vida enquanto grande
evento, entende-se a narrativa, em última análise, como oportunidade da prática poiética,
subjetiva e individual. É por meio da narrativa de si que cada um, não apenas conta o seu
passado, como projeta o futuro, num exercício capaz de permitir um posicionamento no
mundo, enxergando e construindo seu próprio presente. A autopoiese (Maturana; Varela:
1995) trata justamente desta capacidade que os seres vivos têm de se autoproduzirem
e se autoconstituírem sobretudo narrativamente. É elucidativo lembrar, neste sentido,
conforme Pellanda (2009), que a palavra autopoiese origina-se do grego, quando auto
significa “por si” e poiesis “produção”, na perspectiva de expressar a autoprodução dos
seres vivos, a autocriação, ou criação de si próprio.
Conforme Pogozelski (2010), p. 13), a teoria da autopoiese, nos moldes propostos
por Maturana e Varela, apresenta os seres vivos como um:
[...] sistema de organização circular, com uma visão central de que a cognição
– o processo de conhecer - é muito mais ampla do que a concepção do
pensar, raciocinar e medir, pois envolve a percepção, a emoção e a ação.
Autopoiese é esta capacidade de auto-organização da vida, de produção
contínua de si mesmo. (POGOZELSKI, 2010, p. 13).
Para Maturana e Varela (1995, p. 49) o “ser humano” é aquele que “se faz” e
que, assim, produz continuamente a si mesmo, num operar recursivo valendo-se para
tanto de processos autopoiéticos e sociais como a linguagem e com os quais se gera
continuamente a autodescrição que faz de si. Diferenciam-se entre si por estruturas
diferentes, mas são iguais em sua organização, de modo que o sujeito é um sistema
autopoiético por si que, como todo e qualquer sistema deste tipo, tem a capacidade de
se organizar como uma rede autorreferente. E regenera continuamente a rede que o
produziu por meio de suas interações e transformações (Parente, 2010).
Já para Freud (2010), a compreensão das autonarrativas se estabelece a partir
do enfoque na questão do “eu” que, para o psicanalista não existe desde sempre no
indivíduo, mas precisa ser desenvolvido numa perspectiva autopoiética. O “eu”, na
visão autopoiética, está sempre sendo organizado, em um processo incessante de
autonarrar-se. Em um sentido similar no que diz respeito à capacidade da narrativa
227
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
na constituição dos sujeitos, Gai (2009) diz que a narrativa também serve para que se
possa interpretar e conhecer a si em uma atividade que pode resultar, em razão disso,
no autoconhecimento remetendo à capacidade terapêutica da narrativa. Na mesma
perspectiva, Piccinin (2012, p. 70) diz que “(...) ao fazer ecoar os pensamentos, a
narrativa demanda a sistematização em voz do sujeito ao dizer a si e de si, produzindo
a estruturação e a catarse ‘curativa’ em uma perspectiva psicanalítica”. O que
possibilita, em última instância, que os sujeitos se enxerguem, se compreendam a
fim da cura no processo de se autoconstruírem.
É o que funda o sentido também das próprias autobiografias que, segundo Motta
(2013), são organizadas a partir do destaque feito a alguns acontecimentos que
se crê estarem mais carregados de significações e que marcam a história pessoal.
Conforme o autor, cria-se, a partir de pontos do passado vinculados ao presente e que
remetem ao futuro, representações das próprias identidades individuais. Para ele,
narrando, constrói-se o passado, o presente e o futuro, razão pela qual as narrativas
criam o ontem, fazem o hoje acontecer e justificam a espera do amanhã.
Neste sentido, Santaella (2016, s/p) cita Byong-Chul Han para dizer que a ideia
da evidência da narrativa autoral é fortalecida pelos movimentos de exposição da
intimidade que marcam o contemporâneo. São sociedades “pornô” como diz o autor,
onde os indivíduos se exibem e se desnudam em um gigantesco panóptico digital.
Para Santaella (2016, s/p), a ideia do panóptico trazida por Han caracteriza o próprio
funcionamento do universo digital em que desaparecem a distinção entre centro e
periferia e qualquer ótica perspectivista. É o trunfo da vigilância e do controle segundo
a autora em que no lugar da esfera pública, há um vazio que acaba sendo ocupado
pela intimidade e aspectos da vida privada”, pois:
o trabalho começou por uma pesquisa exploratória para recortar o corpus que resultou
de uma amostragem, feita pela seleção de 528 indivíduos da rede de contatos da
timeline. Os usuários foram escolhidos por postarem com frequência textos referindo-
se ao “eu”, com alusões aos temas privados e às suas intimidades e que continham
pronomes “mim” “meu”, “nós”, “nosso”, ou ainda verbos conjugados na “primeira
pessoa” do singular e do plural.
Selecionou-se assim, para fins de operacionalização, 9 sujeitos que melhor se
adequassem aos quesitos observados em suas postagens por quatro meses – de
01 de julho de 2015 a 31 de outubro de 2015 – por meio da captura das telas
printscreen4 diretamente nas timelines5. Na amostra6, 1.112 posts analisados foram
sistematizados em oito grandes temáticas a partir de assuntos recorrentes como
Propaganda de si (7%), Alimentação (8%), Atividades laborais (12%), Cultura (13%),
Estado de ânimo (18%), Reflexões (18%) e Relacionamentos (20%) e Diversos (5%).
Neste artigo, são apresentados os resultados das narrativas associadas à temática
dos Relacionamentos, a mais frequente no estudo e que, em razão disso, resultou na
maior porcentagem de todas com 20% dos posts que, na sua variedade de assuntos,
foi capaz de dar conta de uma gama ampla de assuntos que dizem respeito à vida
dos analisados.
4. Narrativas de Relacionamento:
4.1. Família:
O analisado S3 narrou sobre “Família” em postagem com 94 curtidas, de
231
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
09/08/2015, que acompanha ainda uma selfie dele com a filha:
Sim meu dia foi muito mais que especial porque ela estava ao meu lado neste Dia
dos Pais, sempre junto comigo em minhas loucuras e folias...hehehe! Obrigado
meu Amor sempre quero lhe ter pertinho de mim, seja no frio ou no calor, de
dia ou a noite. Bjão e obrigado por tornar meus dias ainda mais felizes e ser um
dos motivos para que eu continue ainda mais focado em meus objetivos, porque
isso é por você e para você. Te amo [nome da filha]! (sic).
4.2. Pets/Animais:
4.3.Vida Amorosa
4.4. Amigos:
S7 narrou sobre “Amigos”, em postagem com 48 curtidas, de 20/07/2015:
Todos os dias é dia do Amigo, defino meus amigos como irmãos que podemos
escolher, são pessoas especiais que por um motivo ou outro estão no meu
coração. Por um motivo ou outro, eu nunca deixo de pensar neles, mesmo
eu as vezes estando distante, ou as vezes viajando, eu sempre penso em
neles. Sou bastante sociável e muito e muito leal aos meus verdadeiros
amigos, hoje uma amizade sincera é rara e difícil de se encontrar. Aos meus
pragas, um forte abraço e saibam que sempre que precisar terão um amigo
pra contar, pra chorar, rir e incomodar!! Feliz dia do amigo! (sic).
233
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
5. Considerações Finais
234
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
Notas
235
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
Referências
236
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
237
IV OUTROS OLHARES
238
Narrativas do corpo inteiro:
tecnomediações em realidade virtual
operar instrumentos que otimizam as relações com o mundo têm sido, de fato, uma
habilidade diferencial da nossa espécie (HARARI, 2016).
À luz do pensamento darwiniano, Enriquez (2009) sugere que, no momento em que
passamos a produzir instrumentos (a lança, a roda, a escrita, a bússola, o automóvel,
a eletricidade, a internet, etc.), inconscientemente, adicionamos um ingrediente à
evolução natural: a tecnologia. Isto é, somada à necessidade de sobrevivência, a
capacidade de criar artefatos passou a ser elemento catalisador da nossa própria
evolução (evolução tecnológica)1 (KURZWEIL, 2007).
Seguindo esta linha de pensamento tecnoliberal é correto afirmar que o nosso
comportamento, há cerca de 50 mil anos, vem sendo influenciado pelos avanços
tecnológicos que nós mesmos criamos. Como disse McLuhan (1964), nós moldamos as
ferramentas para, depois, as ferramentas nos moldarem. A história das revoluções da
humanidade confirmam de forma empírica esta teoria. Foi assim na Revolução Agrícola (há
cerca de 12,5 mil anos), quando a domesticação de plantas e animais proporcionou que
abandonássemos o estilo nômade e caçador para nos organizarmos em pequenas polis e,
de certa forma, iniciarmos uma cultura comunitária e social. Da mesma forma, a Revolução
Industrial (há cerca de 200 anos) permitiu que fabricássemos produtos em larga escala com
máquinas que estenderam nossa força bruta, consequentemente, alterando paradigmas
fundamentais em nossa organização social, laboral e econômica (consumo).
Ao trazer tal reflexão para a realidade tecnológica desta segunda década do
século XXI, quando vivemos em meio a uma Revolução Digital (NEGROPONTE, 1995),
fica evidente que os recursos digitais, assim como outros que influenciaram nossa
formatação sociocultural e comportamental até aqui, entranham-se cada vez mais na
pele da cultura (KERCKHOVE, 1995). Esta cibercultura na qual estamos mergulhados
nos coloca, diariamente, em contato com tecnologias da informação e comunicação
que, de alguma maneira, potencializam nossas relações no mundo (LÉVY, 1999).
Mas o que torna a Revolução Digital tão especial em relação às demais2? Para Kurzweil
(2007), a resposta está na velocidade exponencial com que os instrumentos inovadores e
disruptivos chegam em nossas vidas, alterando constante e radicalmente nossos padrões
de comunicação e relações com as pessoas, os objetos e/ou os espaços (Figura 1).
241
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
245
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
A imagem anterior ilustra que o corpo do usuário pode ser parcial ou totalmente
estimulado por dispositivos, criando a sensação de que habita outra realidade
(sinto, logo existo no virtual). Estes mecanismos de interação humano-máquina, que
estimulam a experiência sensorial, estão diretamente associados ao realismo e à
interatividade na tríade de imersão em ambientes virtuais. Ou seja, às narrativas
estéticas e funcionais do ambiente.
Vale lembrar que, segundo Slater et al. (2009), os equipamentos e dispositivos de
interação humano-máquina não estimulam diretamente a experiência mental (penso,
logo não existo no virtual). Caso para dizer que, mesmo que, por vezes, a pessoa
acredite habitar a RV, por vezes. ela também recorda-se de que se trata de uma
simulação tecnológica com a qual se propôs a interagir. Neste sentido, as propriedades
de envolvimento da tríade de imersão têm importância na construção de narrativas
que deem plausibilidade à noção de presença no ambiente virtual (SKARBEZ, 2017).
Por exemplo, o interesse pessoal do usuário no enredo da experiência ou, ainda, a
estratégia de storytelling através de uma narrativa de gamificação que prenda a atenção
são algumas formas de aumentar o envolvimento da pessoa com a experiência. Este
pilar se afasta dos aspectos de realismo e de interatividade, justamente, porque não
geram estímulos sensoriais (imersão), mas criam inputs psicológicos que despertem
emoções (presença) como, por exemplo: interesse afetivo, familiarização, memória de
experiências passadas, gostos, preferências, etc. (DAVIDOFF, 2001).
Agora, independentemente da resolução interpretativa que o usuário tem da sua
experiência com os ambientes comunicacionais em plataformas virtuais imersivas, o
processo de significação que se constrói na busca da consciência daquilo que se está
vivenciando é iniciado no momento em que veste/usa algum dispositivo tecnológico
246
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
que lhe permita sentir, perceber e interpretar narrativas em RV. Isto é, acreditamos
que as narrativas imersivas – imagem, 3D, texto, som, vibrações, calor, aromas, etc.
– surgem como impulsos sensoriais que só se tornam estímulos se forem captados
pelos órgãos receptores do usuário (olhos, ouvidos, pele, etc.).
Partindo do princípio de Ferreira (2007), de que o processo de midiatização é
influenciado pelas relações e intersecções entre dispositivos, processos sociais e processos
comunicacionais, parece-nos ser fundamental considerar que, para refletir sobre as
narrativas contemporâneas alocadas em plataformas pós-web, nomeadamente em
ambientes de RV, sempre será necessário compreender como o usuário sente, percebe e
interpreta o contexto narrativo. E, conforme vimos, estas interpretações são carregadas de
subjetividade. Isto significa que, independentemente do estímulo gerado pelas narrativas
multissensoriais (este sempre é padronizado, pois trata-se de um processo objetivo), a
resolução interpretativa que temos das tecnoexperiências terá sempre particularidades
intrínsecas às memórias, afinidades e vivências de cada pessoa.
A seguir apresentamos três situações em que o sujeito é incentivado a crer que está
imerso e/ou presente no contexto virtual: narrativas visuais, narrativas audiovisuais
e narrativas hápticas.
248
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
Atualmente, alguns dispositivos de RV já possuem os instrumentos necessários para
oferecer experiências audiovisuais de qualidade. É o caso do Oculus Rift que, além de possuir
um visor para projeção de imagens tridimensionais estereoscópicas de alta qualidade,
possui fones de ouvido embutidos na estrutura do dispositivo de acesso a RV.
Aqui, é interessante sublinhar que os equipamentos mais complexos para captação
de áudio natural são preocupações do produtor de conteúdos e não do usuário final.
Ou seja, para criar a espacialização do som, o produtor do ambiente virtual deve usar
microfones binaurais, a fim de simular o posicionamento dos ouvidos do usuário na
cena e, assim, simular qualquer tipo de bloqueio ou elemento que interfira na origem do
som até a sua jornada ao receptor sensorial do sujeito (SLATER et al., 2017).
Um exemplo de narrativa audiovisual bem integrada é a experiência do jogo The Bow,
que está entre as demonstrações gratuitas do HMD da Oculus. Nela, o usuário deve usar
um arco e flecha para eliminar robôs que correm em sua direção. Seu diferencial está
no mapeamento do som ao redor do cenário. Os passos dos inimigos são percebidos
de acordo com a sua distância (próximo ou distante) e localização (direita, esquerda,
frente, trás), o que permite ao indivíduo perceber a aproximação do perigo (Figura 8).
Fonte: http://www.oculus.com
navegação no cenário virtual. E, de fato, isto gera uma oportunidade para criar narrativas
imersivas que estimulam todo o conhecimento motor e cognitivo que faz parte do repertório
de conhecimento do sujeito no mundo real (CABRAL et al., 2016).
Porém, os equipamentos hápticos podem fazer muito mais do que captar a posição,
gestos e movimentos do usuário no mundo real para transpô-los ao mundo virtual.
Eles podem ser utilizados para gerar vibrações e feedbacks de tato em objetos ou,
ainda, emitir frio ou calor para simular temperaturas de ambientes ou objetos. Neste
sentido, abre-se um leque de oportunidades para a criação de narrativas em mídias
digitais que nunca foram possíveis em outras mídias. Afinal, mais do que oferecer
uma imagem tridimensional com som mapeado no cenário, com estes dispositivos
hápticos o sujeito pode sentir as texturas, temperaturas ou peso dos objetos virtuais,
criando uma elevada noção de que seu corpo habita o cenário virtual ou, no sentido
contrário, de que os objetos virtuais projetados por imagens computacionais são reais.
Diversas são as aplicabilidades para os dispositivos hápticos em ambientes de RV.
Na Medicina, por exemplo, a possibilidade do estudante fazer operações a pacientes
virtuais e sentir o feedback de força necessária a projetar para realizar cortes em
diferentes órgãos permite que nos primeiros anos da faculdade o estudante já tenha a
percepção de toque, texturas e particularidades para realizar operações num pulmão,
intestino, fígado ou coração, sem a necessidade de uso de cadáveres para realizar
este treinamento. Noutra perspectiva, com o projeto VR Thor – Virtual Reality Training
with Hostick Operations of Risk10, Cabral et al. (2016) utilizam recursos hápticos
para complementar a experiência narrativa do operador de cabos de alta tensão em
ambiente de RV. Nesta experiência, além de visualizar um espaço urbano com postes
e cabos de alta tensão precisando de manutenção, o usuário possui um bastão para
realizar as ações de manutenção com movimentos reais que são projetados em tempo
real no mundo virtual. Também, para criar realismo e envolvimento com a experiência,
em vez de levar uma descarga elétrica de alta tensão, que levaria a morte do operador
no mundo real, quando o usuário faz algum procedimento errado, o bastão treme
para que ele sinta que falhou na sua missão (Figura 9).
5. Considerações finais
Notas
251
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
8 https://www.oculus.com
9 Segundo Kirner e Siscoutto (2007), em 2007, a taxa de atualização mínima
para gerar experiências confortáveis e que não gerem enjoo ou mal-estar do usuário
ao vestir os óculos de realidade virtual – modelos head-mounted display (HMD) –
é de 10 a 20 quadros por segundo. Hoje, manuais de boas práticas dos principais
desenvolvedores – Oculus e HTC – recomendam que esta taxa seja de 90 quadros.
10 www.cavernadigital.org.br
Referências
254
A narrativa jornalística como
mecanismo de “transcriação”
255
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
em outra língua, uma outra informação estética, autônoma, mas ambas [...]
ligadas entre si por uma relação de isomorfia: serão diferentes enquanto
linguagem, mas, como os corpos isomorfos, cristalizar-se-ão dentro de um
mesmo sistema.
Em tal sistema, porém, não há técnica única, apta a orientar os tradutores de modo
generalizado: ao ser traduzidas, as (novas) narrativas necessitarão de “transcriações” em
paisagens específicas. Há de se ressaltar, ainda, que Campos (2015) valorizava a dialética
entre elementos macro e microestéticos. No caso da tradução de textos literários, o
investimento em soluções dialéticas poderia resultar em algo para além de mera “réplica
aproximativa”. Daí, segundo Santaella (2005, p. 222), o grande paradoxo em Campos
(2015): o próprio fato de a tradução literal ser impossível faz com que haja necessidade
de recorrer à recriação – ou, em outros termos, à “transcriação”.
3. Emancipação intelectual
seu próprio poema com os elementos do poema que tem diante de si. Parti-
cipa da performance refazendo-a à sua maneira, furtando-se, por exemplo, à
energia vital que esta supostamente deve transmitir para transformá-la em
pura imagem e associar essa pura imagem a uma história que leu ou sonhou,
viveu ou inventou. Assim, são ao mesmo tempo espectadores distantes e in-
térpretes ativos do espetáculo que lhes é proposto. (RANCIÈRE, 2012, p. 11).
O autor recusa, pois, o princípio de que seria possível uma espécie de “tradução
perfeita”, elaborada a partir de uma “racionalidade totalmente desprovida de impo-
sições culturais e de limitações comunitárias” (RICOEUR, 2011, p. 28-29). O ato de
traduzir implica, pois, perdas e impossibilidades, resultantes do exercício de transpo-
sição entre territórios narrativos.
Ricoeur (2011) cria, assim, o ideal de “hospitalidade linguística”, com fins a delinear
a gratificação experimentada pelo tradutor, devido ao “horizonte razoável do desejo de
traduzir”. O autor busca destacar que o “prazer de habitar a língua do outro é compen-
sado pelo prazer de receber em casa, na acolhida de sua própria morada, a palavra do
estrangeiro” (RICOEUR, 2011, p. 30). Como cerne de sua análise, Ricoeur substitui a
dicotomia “traduzível X intraduzível” pela ideia de “fidelidade X traição”.
No que tange ao ambiente conceitual das narrativas jornalísticas, a necessária inte-
pretação criativa de conteúdos e significados extraídos a partir das fontes exige procedi-
mentos específicos, por parte de repórteres, editores etc., para que se possa “traduzir”
“estrangeiridades” – concepções originais do acontecimento a ser transcriado – e, simul-
taneamente, fomentar diálogos complexos com leitores/ouvintes/usuários.
Eis o momento de promover a aproximação entre os pensamentos de Campos,
Rancière, Ricoeur e José Paulo Paes (1926-1998), criador do neologismo transleitura,
termo capaz de sintetizar o labiríntico processo de interpretação de textos literários
por parte de leitores: “O prefixo trans- visa simplesmente, no caso, a acentuar que a
leitura de uma obra literária é um ato de imersão e de distanciamento a um só tempo.
Tal duplicidade do ato de leitura responde, simetricamente, à duplicidade do ato de
criação literária” (PAES, 1995, p. 5).
Destaque-se, pois, que “transleitura” congrega a concepção de que os livros integram
um complexo sistema, “formado teoricamente por todas as obras literárias jamais
escritas e por todas as interpretações ou comentários críticos que vêm suscitando”
(PAES, 1995, p. 5). Conforme ressalta o crítico, o processo de leitura configura um
corredor de ecos, em que uma voz responde à outra e vai-se formando aquele
coro de vozes isoladas de certo modo se articulando. É aquela ideia baudelariana
das correspondências, só que transposta do plano da criação poética para o
plano da análise crítica. Quando você lê um livro, ele traz à sua lembrança os
outros livros que você leu. É uma espécie de tentativa de close reading com far
reading, de misturar o microscópio com o telescópio. (PAES, 1995, p. D4).
258
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
Segundo o autor, leituras diversas – não apenas de peças literárias, mas, também,
do mundo da vida – requerem sensibilidade às “instigações extratextuais” do texto:
5. Transcriação e (trans)experiência
só com domínio técnico das ferramentas de transmissão, mas, também, aptos a agir,
simultaneamente, como consumidores e produtores de bens simbólicos. Em síntese,
isso revela que, daqui em diante, os jornalistas precisarão conviver com amplo volu-
me de conteúdo – assaz credível – elaborado e disseminado, em rede, por centenas
de milhões de pessoas ao redor do mundo.
Desse modo, se, por um lado, o domínio da praxis jornalística requer, hoje, o co-
nhecimento de múltiplas ferramentas de transmissão de informações, por outro, há
que se levar em conta uma nova (e complexa) miríade de desafios ético-profissionais
– o que inclui, por parte de empresas/instituições de Jornalismo, o investimento, por
exemplo, em propostas educomunicacionais.
Em tal cenário, pensar o engendramento da narrativa jornalística como processo
transcriador é imaginar modos de traduzir/recriar discursos do mundo da vida (cul-
turais, científicos, políticos, religiosos, esportivos, comportamentais etc.) – a partir
dos múltiplos processos de produção –, com vistas à conformação de um “discurso
outro”, capaz de acionar, nos sujeitos em situação de diálogo, uma série de mecanis-
mos de transleitura.
Destaque-se a importância, neste sentido, de também pensar o “fazer jornalístico”
com base na(s) experiência(s) do leitor/espectador/usuário a quem são ofertadas
as narrativas. Trata-se de espectadores – emancipados ou não, segundo a carga
conceitual atribuída ao adjetivo por Jacques Rancière – bastante heterogêneos, posto
que indivíduos instáveis e “munidos” de (trans)experiências diversas sobre o tempo,
o universo, a existência.
Em tal cenário, os mecanismos de transleitura – propostos por Paes (1995),
no território das investigações literárias – apresenta-se como adaptável a certas
pressuposições e necessidades da prática jornalística. Afinal, ao buscar novos
modos de dizer o mundo, os jornalistas precisarão compreender que a conformação
de seu discurso não se dissocia das múltiplas “experiências vividas” por leitores/
espectadores/usuários (público-fim das narrativas) e, também, por suas fontes de
informação e conhecimento.
Já em consonância aos estudos de Campos (2015) e Ricoeur (2011), faz-se
importante admitir a intraduzibilidade do mundo da vida, senão pela construção
(transcriadora) da realidade: a narrativa jornalística, portanto, reveste-se de
impossibilidades e perdas – no caso, referentes à “tradução” de discursos (culturais,
sociais, políticos etc.) –, para, então, fazer-se inteligível e dialogável em relação
a indivíduos com (trans)experiências – que, por sua vez, hão de interpretar as
informações jornalísticas de maneira completamente distinta, devido a seu particular
“corredor de ecos” vivencial.
Com foco nas especificidades teóricas e práticas do Jornalismo, chega-se, pois, à
questão central aqui delineada: de que modo os processos de observação, apuração,
decodificação, conformação e edição jornalísticos acabam por se tornar capazes
de produzir narrativas socialmente dialógicas? A resposta se situa, justamente, no
ideal de produção jornalística como atividade ligada à (trans)criação de discursos, de
maneira a problematizar os múltiplos significados do mundo da vida.
Em outras palavras: de que modo estimular coberturas jornalísticas, referentes a
260
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
6. Considerações finais
261
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
de entrevistados (fontes primárias) quanto de (trans)leitores (público-alvo da iniciativa
jornalística). Fala-se, pois, de narrativas que “podem aparecer no cotidiano, contadas
pelos seres humanos, ajudando-os a viver e agrupando-os, distinguindo-os, marcando
seus lugares e possibilitando a criação de comunidades” (LEAL, 2006, p. 21).
Daí o desafio central das narrativas jornalísticas, nascidas do processo de transcriação:
inventar – ou reinventar, encenar etc. – formas mais democráticas e interativas de “dizer
o mundo”. Para tal, parte-se, em primeiro lugar, do pressuposto de que o público, mesmo
que leigo em relação a uma série de temáticas, detenha experiências (categoricamente)
próprias – o que o tornará, de modos vários, disposto à instauração de diálogos com o
“discurso outro” (conforme ressaltado, a “narrativa jornalística transcriada”).
Por isso, aliás, o investimento de inúmeros grupos jornalísticos – no Brasil e no
exterior – em ampla experimentação de linguagens, formatos e princípios editoriais.
Muitos deles pretendem a (trans)criação – contextualizada – de “discursos do outro” a
seus públicos. Sob o ponto de vista da ampliação do criticismo dos transleitores, quanto
às questões do mundo, o ofício da transcriação jornalística revela-se ético por natureza,
pois que, para além de ações básicas da prática cotidiana dos profissionais da área –
delineamento de pauta, angulação, apuração, edição, escrita etc. –, será preciso (re)
inventar modos de ampliação do diálogo entre a narrativa transcriada e a sociedade.
Em tal panorama, almeja-se, portanto, a existência de iniciativas jornalísticas
– passíveis, aliás, de verificação empírica em pesquisas futuras – centradas em
narrativas transcriadas capazes de, concomitantemente, informar e instigar o debate
(emancipado) em torno de questões caras à contemporaneidade.
Notas
Referências
CAMPOS, Haroldo. Transcriação. TÁPIA, M.; NÓBREGA, T. M. (Orgs.). São Paulo: Pers-
pectiva, 2015.
______. Da transcriação: poética e semiótica da operação tradutora. In: CAMPOS, Ha-
roldo. Transcriação. TÁPIA, M.; NÓBREGA, T. M. (Orgs.). São Paulo: Perspectiva, 2015.
262
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
da imagem, considerando-se que parte das ‘ações’ está fora do alcance da vista do
espectador, ou seja, está em um espaço imaginário (chamado de contracampo e fora
do campo), “um espaço inesperado, um espaço ao mesmo tempo presente (na mente
do espectador) e ausente (da imagem)” (FECÉ, 1998, p. 39).
Por isso, no cinema, a imagem seria imperfeita e insuficiente, deixando, na nossa
concepção, ao espectador a possibilidade do preenchimento e da interpretação.
Já na televisão, segundo Fecé (1998, p. 39), não existiria o contracampo, somente
imagens que seduzem o espectador por sua pseudo-evidência: “a televisão mostra
o como das coisas, mas dificilmente o porquê; sacrifica o universal ao particular, as
ideias abstratas a uma realidade reduzida ao visível”. A realidade existe porque é
visível, porque é ‘evidenciada’ ou captada pelas imagens da TV, porque é visibilidade
imediata, com perspectiva de presente a-histórico e de atualidade. Portanto, o objetivo
da visibilidade não é o conhecimento, mas o reconhecimento. Nesse sentido, para
reconhecer um fato, ele precisa ser visível.
Diferentemente do cinema, na TV a imagem perde a complexidade e se aproxima
do clichê. Como nos diz Fecé (1998, p. 32), diante do filme mais ‘realista’, o espectador
sabe que está vendo um filme, sabe que entre o representado e sua representação
existe uma mediação, um ponto de vista. Já no discurso televisivo, principalmente
nas transmissões diretas, essa mediação é ocultada: o representado é percebido
de modo imediato, e o telespectador é testemunha do acontecimento. Para o autor,
de modo diferente do cinema, o espectador não acredita estar diante da verdade da
representação da TV, mas sim diante da ‘verdade’ do representado.
Em Bazin (1991, p. 10), também encontramos uma ‘vocação realista’ do
cinema, “não propriamente como uma veiculação de uma visão fechada e correta
do mundo, mas como uma forma de olhar que desconfia da retórica (montagem) e
da argumentação excessiva, buscando a voz dos próprios fenômenos e situações”.
O realismo da produção de imagem, segundo o autor, requer um estilo, implica uma
escolha, aspectos que também concebemos como relevantes na representação
televisiva da realidade. O cinema é a arte do encontro com o real, diz o pesquisador,
ainda que os ‘efeitos de realidade’ sejam diferentes.
Deleuze (1985) vem somar a essas discussões sobre a teoria da imagem, do
movimento e do tempo, ou então, sobre a ‘imagem-movimento’ e ‘imagem-tempo’,
marcando a separação entre o cinema clássico e o moderno. Suas reflexões, baseadas
em grande parte em Bergson, e suas teses sobre o movimento ampliam as análises
sobre os interstícios entre as imagens, ou a ligação entre os cortes de imagem, em
que, segundo Deleuze (1985), o pensamento se movimenta.
De acordo com o pensamento deleuziano, entre um plano e outro há uma conexão
com o pensamento: aquilo que está fora, não presente, o intervalo, é a potência
sígnica do cinema. Assim, o regime da ‘imagem-movimento’ se ancora num efeito de
verdade. Por outro lado, a ‘imagem-tempo’ não pressupõe uma verdade existente, mas
a capacidade de lançar novos signos, novas formas de pensar e entender o mundo.
Para ele, no cinema, o movimento é percebido por meio da montagem, instrumento
de domínio do tempo sobre o movimento.
O autor dialoga com o cinema como um instrumento filosófico, gerador de conceitos
267
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
268
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
270
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
273
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
A polinarrativa do telejornalismo
A televisão não é mais a mesma. Essa mídia foi reconfigurada a partir das demandas
das novas tecnologias digitais. Sofreu remodelações em sua estrutura física, assim
como nas suas narrativas. Desde seu nascimento, nos idos dos anos de 1940, a
televisão representou uma revolução no ‘mundo da comunicação’, possibilitou aos
indivíduos o uso concomitante dos sentidos humanos: ouvir, ver, falar e se mover,
ampliando as experiências para o sonhar, o pensar, o significar e o interpretar, indo do
mais simples ao mais complexo da comunicação e da compreensão humana. Com a
imagem em movimento, os indivíduos foram lançados ao mundo e, do mesmo modo,
o mundo adentrou nossas casas. Aparentemente, tornamo-nos controladores do real,
pois a imagem possibilitou ‘ver’ tudo em qualquer canto do planeta.
É nessa perspectiva de pensar a realidade e sua captura pelo jornalismo de TV que
temos nos lançado ao desafio de pensar um método, não sem antes amadurecer as
questões epistemológicas do audiovisual, que dê conta de analisar o real produzido
pelo audiovisual televisivo. Daí indagamos: como a televisão narra? Como conta suas
histórias? E, mais especificamente, como o jornalismo, que se ancora em fatos reais,
propõe narrativas e roteirizações que envolvem a audiência, ao produzir sentidos
sobre o mundo?
Como bem nos lembra Bouissac (1995, p. 65-66), “as tecnologias da comunicação
criaram tanto entusiasmo intelectual como ansiedade ontológica, e levantaram uma
série de conceitos e abordagens teóricas, que surgem com o objetivo de compreensão
e controle dessa nova situação”.
E é Bakhtin quem nos ajuda a ‘modelar’ algumas construções para compreender aquilo
que denominamos de polinarrativa jornalística televisiva, a partir de seu dialogismo, e da
“interminável permutação de textualidade, ao invés da ‘fidelidade’ de um texto posterior a
um modelo anterior”, pensamentos apontados por Stam (2006, p. 21) sobre Bakhtin, na
sua discussão sobre adaptações de filmes a partir de romances.
Na busca por encontrar uma linguagem alternativa às análises fílmicas que têm
como propostas as adaptações, Stam (2006, p. 27) empreende uma tessitura, levando
em conta o conceito de dialogismo de Bakhtin e a definição de intertextualidade de
Genette, pensando em termos de uma prática intertextual, como um amplo arquivo
de termos e conceitos para dar conta da mutação de formas entre mídias, ou seja,
de uma “adaptação enquanto leitura, re-escrita, crítica, tradução, transmutação,
metamorfose, recriação, transvocalização, ressuscitação, transfiguração, efetivação,
transmodalização, significação, performance, dialogização”.
Portanto, é a partir dessas perspectivas em direção ao dialogismo e à
intertextualidade que propomos a polinarrativa do telejornalismo, uma mistura que é
enquadrada, emoldurada, encenada, que fala com e pelas imagens, presentificando
o real e o telespectador. O ‘poli’ dessa narrativa teria como base duas categorias
apresentadas e discutidas por Bakhtin: a polifonia e o dialogismo.
Para Bakhtin, a polifonia é parte relevante da enunciação, pois, em um mesmo
texto, ocorrem diferentes vozes que se expressam, além disso, todo discurso é formado
por diversos discursos. Ao selecionar o telejornalismo como objeto de análise, o
274
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
275
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
Notas
1 WILLIAMS, Raymond. The technology and the society. In: WILLIAMS, Raymond.
Television technology and cultural form. London: Routledge, 1997. p. 9-31.
2 Nessa discussão, Coutinho e Mata (2012, p. 375) apontam também um novo
lugar do jornalista de TV na narrativa: “antes narrador ou personagem periférico,
agora sujeito de – e sujeito a – uma narração de protagonismo. O repórter passaria,
nesse sentido, a também falar de si, estratégia de aproximação e construção da
credibilidade”. A busca é por um público jovem, que vem desviando para a internet,
pelo improviso e pela redução da formalidade.
Referências
277
Narrativa jornalística acessível por meio
do recurso da audiodescrição1
1. Introdução
No Brasil, de acordo com o último Censo (IBGE, 2010), realizado pelo Instituto Brasileiro
de Geografia e Estatística, 506,3 mil pessoas afirmaram ser cegas. Sendo que 35,8 milhões
de pessoas declaram ter alguma dificuldade para enxergar, mesmo com o uso de óculos
ou lentes de contato. Para atender esse público, no processo comunicacional, o recurso da
audiodescrição é primordial para ampliar o entendimento dos cegos.
A audiodescrição traduz as imagens, as expressões faciais e corporais, os
sentimentos e as emoções, os cenários, as paisagens, os figurinos, os efeitos
especiais, as mudanças de tempo e espaço em palavras. Enfim, o recurso possibilita
que qualquer informação visual relevante seja repassada aos cegos por meio de sons.
Assim, o cego, possui condições de entender e de chegar a suas próprias conclusões
acerca da obra audiodescrita.
Esse recurso, conforme explica Tavares (2013, p. 11), também pode ser aplicado
em imagens – estáticas ou em movimento, em eventos com ou sem deslocamento do
público – em sons e que permitem a uma pessoa cega ou com baixa visão compreender
278
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
o que está contido no visual. Para que a audiodescrição cumpra o seu objetivo, ela deve
ser breve e concisa, evitando afirmações com significados semelhantes ou óbvios.
As vantagens desse recurso não se limitam apenas aos cegos, mas se estendem às
pessoas idosas, com deficiência intelectual, disléxicas3, com síndrome de Down e para
todos aqueles com dificuldades de compreensão de leitura e de textos com imagens.
Os veículos de comunicação usam e abusam das imagens para ilustrar suas
reportagens. Fotografias, gráficos, vídeos e ilustrações são alguns exemplos de
materiais encontrados diariamente em jornais impressos e nos portais noticiosos.
Logo, a qualidade das informações recebidas pelo público cego está diretamente
ligada à acessibilidade promovida por quem disponibiliza o conteúdo jornalístico.
Por esse viés, jornais de grande repercussão no país estão proporcionando
recursos de acessibilidade para que todos tenham acesso aos conteúdos publicados.
Em 2014, a TV Folha4 exibiu a primeira reportagem com audiodescrição e legendas,
tendo como personagem o radialista Alberto Pereira, que conta a história do cão-guia
Simon, que estava próximo de se aposentar. A repórter, Melina Cardoso, idealista
do projeto, explicou que a ideia era colocar em prática os seus estudos, além de
proporcionar às pessoas com deficiência o direito de ter acesso a notícias de forma
clara, principalmente os vídeos da TV Folha, que são tão visuais e cheios de informação.
Em seu artigo sobre audiodescrição em charges do jornal Folha de São Paulo,
Cardoso (2016) destaca que quando os cegos não percebem a falta que as imagens
significam é importante alerta para os veículos de comunicação que esquecem o
público cego. “A falta de acesso aos conteúdos imagéticos, além de contrariar a lei
e desrespeitar o leitor, o desmotiva a buscar informações nos veículos que têm essa
lacuna” (CARDOSO, 2016, p. 45).
(LEITE, 2000, p. 6). Motta (2013, p. 74), salienta que “narrar não é apenas contar
ingenuamente uma história”; é, portanto, uma atitude argumentativa, um dispositivo
de linguagem persuasivo, sedutor e envolvente.
A evolução das formas narrativas é estruturada por Motta (2007, p. 265-266) em
três partes:
281
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
Eu acho que eles são o espaço através do qual o ensino de jornalismo adquire
a sua própria vivacidade. Mas nós não podemos manter órgãos laboratoriais
independentes das atividades de transmissão de conhecimento, nas
próprias disciplinas de natureza profissional. Eu só entendo a existência de
órgãos laboratoriais, em qualquer curso de jornalismo, na medida que eles
estejam a serviço da teoria, eles estejam para permitir a aplicação prática de
conhecimentos sedimentados e muitas vezes para negar a própria teoria, para
produzir um conhecimento novo. Sem essa orientação, parece-me que esses
laboratórios podem se tornar verdadeiros equívocos.
Outro aspecto para tornar-se jornalista, apontado por Moraes Júnior (2013, p.
69), é conter na sua formação os valores de cidadania e de sociedade. “As práticas
laboratoriais ultrapassaram a noção de ensaio experimental para se tornarem uma
iniciativa factível de serviço comunitário e produção midiática alternativa” (FERREIRA,
2011, p. 158). A partir disso, percebe-se que a prática laboratorial audiodescrita,
analisada nesta dissertação, também assume os valores de cidadania e de sociedade,
proposta por Moraes Júnior (2013), além de prestar um serviço comunitário, como
aconselha Ferreira (2011).
Formar jornalistas sem que lhes desperte o interesse pela crítica dos
padrões vigentes na sociedade e sem que lhes ofereça oportunidades
de testar tais modelos em laboratórios e de criar alternativas inovadoras,
sempre foi motivo de frustração generalizada na área desde a década de
1950. (FERREIRA, 2011, p. 158).
5. Metodologia da pesquisa
A análise foi precedida de uma descrição dos encontros com o grupo. Optou-se,
como estratégia metodológica, dividir a análise por datas conforme os encontros
que foram realizados virtualmente, ou seja, via redes sociais – pelo Facebook, e os
presencialmente, com os acadêmicos para a produção do jornal audiodescrito.
Logo no início do primeiro semestre de 2016, quando começaram as tratativas do jornal
audiodescrito pela turma de Produção em Mídia Impressa, o professor Demétrio inseriu a
criação deste produto em um projeto de extensão na Unisc, que deu origem ao e-book Manual
de audiodescrição para produtos jornalísticos laboratoriais impressos (Catarse, 2016). O
projeto permitiu que este grupo de acadêmicos, responsável pelo Unicom audiodescrito,
desenvolvessem, por meio da prática laboratorial, atividades inclusivas, qualificando sua
formação e incentivando a democratização do acesso aos meios de comunicação social.
Além da produção do Unicom audiodescrito, surge o manual, no mesmo ambiente de sala
de aula, a fim de orientar as práticas jornalísticas inclusivas.
7. Considerações interpretativas
noticiar os fatos: é preciso garantir que todos tenham o mesmo acesso à informação.
A mídia precisa ser reeducada para incluir as pessoas com deficiência no que tange
a divulgação de notícias. E pensar na inserção deste tema, desde a formação dos
jornalistas, faz toda a diferença na qualificação deste profissional do ponto de vista
humano, mas, também, para instrumentalizá-los a uma prática acessível que requer
conhecimento técnico.
Diante de tudo isso, foi possível pensar em um conceito para aquele jornalismo
que se preocupa com a acessibilidade, entendido aqui como jornalismo acessível, no
qual há uma adaptação do seu conteúdo original, com o objetivo de incluir as pessoas
com deficiência para ter acesso à informação. O jornalismo acessível rompe as
barreiras tradicionais da informação e procurará mecanismos e tecnologias para que
todos tenham acesso à mesma informação. A regra aqui é incluir. Como meios para
promover a inclusão no jornalismo, pode-se citar a Libras para produtos audiovisuais,
a audiodescrição para conteúdos imagéticos, sites com formatos acessíveis e textos
alternativos para imagens na web.
Os processos de audiodescrição jornalísticos levam a novas práticas do jornalismo
e demandam adaptações na sua estrutura narrativa e nas estratégias de diálogo que
estabelece com seu público, principalmente aqueles que possuem cegueira. Auxiliar
na composição de uma narrativa mais atraente, acessível e de fácil compreensão
para sujeitos com deficiência visual é dever do comunicador, que tem no seu papel
fornecer o conteúdo compreensível a todos os públicos. Comunicar por meio do som,
uma vez que é realizada a audiodescrição do impresso, envolve entender inúmeros
elementos que dialogam no processo de construção da informação do impresso para
o áudio, entre eles, a técnica da audiodescrição, e da transmissão de emoções e
sensações do público que se quer atingir. E é a partir destes elementos que se forma
a narrativa acessível aos cegos e, consequentemente, consolida-se a comunicação,
efetivando o processo de inclusão.
Além disso, identifica-se uma convergência do jornal-laboratório. Ou seja, o produto
original (Unicom Impresso) foi traduzido para o áudio, por meio da audiodescrição, e
foi inserido na web, sendo divulgado e inserido nas redes sociais e também nos sites
Hipermídia e SoundCloud.
Trabalhar com a interdisciplinaridade, aliada às questões da acessibilidade, como
a audiodescrição, reflete nas qualidades e aptidões que este futuro jornalista poderá
oferecer no mercado de trabalho, conforme já salientado. Além disso, aqueles alunos
que fazem uso das técnicas da audiodescrição em produtos jornalísticos exercitam
as habilidades de atenção, de descrição cuidadosa e minuciosa de cada página,
analisando cada detalhe do conteúdo imagético.
A força desta pesquisa está em promover um jornal-laboratório acessível aos cegos
e, em decorrência disto, tornar a formação de jornalistas mais inclusiva e cidadã. A
pesquisa também se justifica por estar em movimento de ascensão à acessibilidade
comunicacional, tanto em pesquisas científicas, como acadêmicas. Diante destas
observações, aponta-se uma necessidade de constante revisão das práticas jornalísticas
e comunicacionais, buscando o aprimoramento e a inovação, em prol da inclusão.
Logo, pode-se incluir o Unicom audiodescrito como um meio de comunicação acessível,
284
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
Notas
Referências
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Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
1. Primeiros movimentos
289
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
290
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
2. Um problema de circulação
3. Circuitos Informacionais
4. Zonas intermediárias
No gráfico abaixo, as ZICs são representadas pelos círculos em azul gradiente,
pontilhados. Observe-se que elas se formam tanto nos
292
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
293
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
5. Narrativas de bicicleta
294
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
chinelo: porque pobre também precisa viajar”, mantido pelos cicloturistas Luíd
e Stefane Monsores, da Vassouras, Rio de Janeiro. O projeto nasceu3 da vontade
de se aventurarem, mas foi determinado em termos de forma – cicloturismo –
tanto pelos custos baixos de uma viagem de bicicleta como por relatos lidos em
sites cicloturísticos:
Por meio dos relatos sistemáticos que realizavam em seus blog e redes sociais
(facebook, instagram e youtube, principalmente), Luíd e Stefane não apenas
descreveram seus preparativos às cicloviagens como publicizaram os mesmos até a
realização. Inseriram, dessa maneira, o que era para ser simples viagem de bicicleta
na discursividade midiática, midiatizando suas próprias narrativas. As imagens 1 e 2,
abaixo, ilustram o que estamos afirmando:
Fonte: http://turismopedechinelo.blogspot.com.br
295
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=-laGsGgPPJY
Fonte: Youtube
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Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
desde o Brasil, sobre a importância de se ter onde dormir durante cicloviagens, havia
servido de mote para o comentário do dia.
Os cicloviajantes fazem referência, no vídeo5, ao texto do facebook, leem seu
conteúdo, tecem comentários a respeito da importância de serviços de hospedagem
como o Warmshower6 e, finalmente o mostram o post na tela, como podemos
observar nas imagens 6 e 7, ficando o que estava previsto para aquele dia, como
dissemos, em segundo plano.
Fonte: Youtube
Fonte: Facebook
297
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
Fonte: Youtube
Fonte: Apoia.se
298
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
Nosso objetivo é mostrar a vida de uma forma mais leve, e assim, incentivar
as pessoas a serem felizes. Queremos levar entretenimento e diversão
para as famílias de forma simples e descontraída e futuramente conseguir
independência financeira, para que assim possamos dedicar a maior
parte do nosso tempo de trabalho para produzir conteúdo para vocês no
canal do youtube8.
Fonte: Youtube
Nela, um mês depois de ter tomado a decisão de realizar uma cicloviagem pelo
mundo, Lammel grava um vídeo no youtube dizendo que se desligara do emprego;
mais adiante, que terminara seu relacionamento.
299
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
À medida que a viagem avançava, aos relatos em filme identificados pela tag
“Manual”, Lammel compartilha, via youtube, o que chama de “suas experiências para
executar tarefas, conseguir algo ou vencer desafios em prol de uma viagem mais
econômica, longa, cultural e divertida”18. É o que se observa na Imagem 7.
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Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
Imagem 7: Dialogando via youtube
Fonte: Youtube
Fonte: Youtube
Com o passar do tempo, os movimentos voltam-se com cada vez mais frequência
para inserção da cicloviagem à discursividade midiática por meio da oferta de novas
tecnologias. Ou seja, passam a oferecer novas formas de acesso aos que com ele
dialogam. É o que se observa, por exemplo, quando, em sua página no facebook19,
anuncia a criação de um aplicativo (APP):
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todos os conteúdos da volta ao mundo de uma forma muito mais rápida pelo
celular: vlog, websérie, diário, manual, roteiro, estatísticas e nossas redes sociais
Vale lembrar que tudo aqui é independente e ainda não colocamos nosso app
na Google Play por ser caro para nós (U$25/anual), mas ainda assim você pode
baixar direto do nosso site e instalar com segurança. Versão para iPhone e iPad,
em breve.
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Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
Ou, ainda, quando promove pesquisa21 (Imagem 9) para saber quantos cicloturistas,
ao redor do mundo, estão viajando tendo como inspiração sua experiência:
Imagem 9 – Interatividade
Tudo o que peço a quem me acompanha desde 2015 quando pus meu
apartamento pra alugar e fui pra estrada e a quem passará a me fazer
companhia desde agora, peço que respeite meu momento de estar quietinho
em Praga com a minha flor antes de termos de dizer adeus um para o outro
pra seguirmos sonhos em direções opostas por vivermos momentos de
vida tão diferentes. A vida não é preto no branco como regras escritas
num manual para amadores, as histórias são complexas e com infinitas
perspectivas. Usufrua de tudo o que compartilho no Youtube, Facebook
e em meus livros gratuitos no Medium (grifo nosso) que te prometo que
vc encontrará novas possibilidades bem diante dos teus olhos, sem mágica
ou romantismo em excesso.
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Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
6. Considerações interpretativas
Vale lembrar que, até há bem pouco tempo, quando da sociedade dos meios, os
dispositivos que compunham o sistema midiático – rádios, televisões, jornais etc. – eram
os grandes artífices, do ponto de vista axiomático, da composição disso que Silverstone
(2002) chamou, em outro momento, de tessitura da experiência. Um tempo de “meios
e mediações”, na categorização seminal de Barbero (2009). À medida que a sociedade
se complexifica pela processualidade da midiatização – e a internet ocupa um lugar
central nesta discussão, as condições de acesso, no diálogo com Verón (2013), mudam
substancialmente, reconfigurando toda uma ecologia comunicacional.
É o que os exemplos analisados neste artigo buscaram demonstrar. Ou seja,
mesmo que ambos estejam inseridos em uma lógica discursiva antiga – as narrativas
de viagem, e que estas se vinculem seminalmente a um determinado formato de
jornalismo, a geografia do ambiente em que seus autores se inserem dispensa
mediações. Melhor dizendo, dispositivos como tablets, smartphones e computadores,
aliados às facilidades de acesso à rede e à usabilidade do sistema, não tornam mais
imperativa a presença de uma organização, ou mesmo instituição, e seus agentes,
para a oferta de sentidos, ainda que sigam existindo.
Com isso, Luíd e Stefane Monsores, Aldo Lammel, e tantos outros cicloturistas passam
a tecer, por meio de seus relatos, não a rede, mas a malha da discursividade midiática,
transformando e sendo transformado neste percurso. “À medida que os dispositivos da
web permitem aos usuários produzirem conteúdos, e tendo em conta, também, que os
usuários têm controle do switch entre o privado e o público, podemos ter uma ideia da
complexidade e das mudanças em curso23” (VERON, 2013, p. 282). Compreender o que
estas transformações representam, portanto, é o desafio que nos apresenta.
Notas
1 Web como de world wide web, ou, ainda, www.
2 As demais características são autorreferência, descentralização, dialogia e
atorização.
3 Disponível em: http://turismopedechinelo.blogspot.com.br/2015/08/turismo-
pe-de-chinelo.html#more
4 Disponível em: [https://www.facebook.com/dsoster.jor/
posts/10155201953529260] Acesso em: 15 jul. 2017.
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Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
Referências
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SOBRE OS AUTORES
I - PERSPECTIVAS REFLEXIVAS
II – VISADAS APLICADAS
III – NARRATIVAS DO EU
IV – OUTROS OLHARES