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Demétrio de Azeredo Soster

Fabiana Quatrin Piccinin

Narrativas midiáticas
contemporâneas:
perspectivas epistemológicas

Santa Cruz do Sul


2017

editora
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Editora Catarse Ltda


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C
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S716n Soster, Demétrio de Azeredo


Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
[recurso eletrônico] / Demétrio de Azeredo Soster, Fabiana Quatrin
Piccinin – Santa Cruz do Sul: Catarse, 2017.
313 p.
Texto eletrônico.
Modo de acesso: World Wide Web.

1. Narrativa (Retórica) - Teoria. 2. Jornalismo. 3. Comunicação de


massa. I. Piccinin, Fabiana Quatrin. II. Título.

ISBN: 978-85-69563-22-8 CDD: 808

Bibliotecária responsável: Fabiana Lorenzon Prates - CRB 10/1406


Projeto gráfico e diagramação: Mirian Flesch de Oliveira
Revisão: Diana Azeredo
Edição: Demétrio de Azeredo Soster
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO 6
Demétrio de Azeredo Soster e Fabiana Piccinin
PREFÁCIO 7
Luiz Gonzaga Motta

I - PERSPECTIVAS REFLEXIVAS
Narrativas jornalísticas sob a luz da pragmática: uma análise das implicações 12
ideológicas a partir da perspectiva de Motta e Habermas
Karolina de Almeida Calado e Heitor Costa Lima da Rocha
Informação e função social: perspectivas de discurso e narrativa jornalística 22
Luiz Henrique Zart
Jornalismo e narrativa: aspectos do estado da arte das pesquisas no Brasil 36
Mirian Redin de Quadros, Lara Nasi e Juliana Motta
Análise pragmática da narrativa: Teoria da narrativa como teoria da ação comunicativa 47
Luiz Gonzaga Motta
Imprensa como singular-coletivo na modernidade 64
Eduardo Luiz Correia
As temporalidades no jornalismo: do acontecimento às narrativas 73
Marta Regina Maia e Michele da Silva Tavares
De fontes a personagens: definidores do real no jornalismo literário 86
Mateus Yuri Passos
O narrador na reportagem: uma estratégia do autor 98
Jaqueline Lemos

II – VISADAS APLICADAS
A narrativa micro-histórica em O olho da rua: as personagens anônimas 112
na prosa de Eliane Brum
Francisco Aquinei Timóteo Queirós
Jornalismo e o texto da cidade: a narrativa da rua na seção Brasiliana, de CartaCapital 123
Cida Golin e Maria Rita Horn
Visualidades da grande reportagem no Brasil 138
Yara Medeiros
Hemingway não tuitava nem gugava: a história da obra jornalística 152
do Papa da reportagem
Ana Beatriz Magno
III – NARRATIVAS DO EU
Biografia Jornalística: inclinações, possibilidades e especulações 167
Rodrigo Bartz
Tempo e obsessão nas narrativas dos diários íntimos 175
Victor Lemes Cruzeiro
Diálogos transformadores: aproximações entre as narrativas etnográficas, 189
psicológicas e jornalísticas
Monica Martinez e Mara Rovida
Do estético ao ideológico na análise de narrativas jornalísticas: o caso das 200
histórias de vida
Fabiano Ormanze
“Em um mundo fragmentado é preciso organizar a memória” 212
Alexandre Zarate Maciel
As narrativas de si nas redes socias: o “eu” no facebook 226
Ana Claudia de Almeida Pfaffenseller, Fabiana Piccinin e Nize Maria Campos Pellanda

IV – OUTROS OLHARES
Narrativas do corpo inteiro: tecnomediações em realidade virtual 239
Eduardo Zilles Borba
A narrativa jornalística como mecanismo de “transcriação” 255
Maurício Guilherme Silva Jr.
A televisão e a polinarrativa do jornalismo audiovisual 264
Vânia Torres Costa, Alda Cristina Costa e Célia Trindade Amorim
Narrativa jornalística acessível por meio do recurso da audiodescrição 278
Daiana Stockey Carpes
A midiatização das narrativas de bicicleta 289
Demétrio de Azeredo Soster

Quem são os autores 308


APRESENTAÇÃO

O tudo que pode


e que é a narrativa
Se assumimos a ideia da impossibilidade da vida sem a ela atribuir rigorosamente
a tudo sentido, conforme já propôs Nietzsche, e que este sentido se constrói sob a
configuração de narrativa, então é certo dizer que a narrativa é a tradução da própria
existência. E assim, a “narrativa” cresce semanticamente, alcançando diferentes
veredas a partir das quais pode ser olhada. De questão filosófica-existencial a fonte
epistemológica. E daí prestando-se a inúmeros e sugestivos caminhos de investigação.
Esse livro se apresenta como o retrato desse conjunto de possíveis que é a
narrativa. Razão pela qual, via de regra, seus autores se sentem instados a explicar
de que “narrar” falam em seus diferentes artigos. Ainda que guardem, por salutar e
necessário, o fio condutor de suas pesquisas no que diz respeito justamente à ideia e
essência da narratividade.
Foi por este liame que a Rede de Narrativas Midiáticas (Renami), criada a 15 de julho
de 2015 para reunir pesquisadores do país às voltas com esta temática, insitui-se e vem
se consolidando. Pelas preocupações afeitas às ordens e desordens que a narrativa
tem o poder de instaurar e pelas suas complexidades disso decorrentes. Investidos da
preocupação de entender como a narrativa se arranja em suas relações, tanto advindas
dos constrangimentos técnicos quanto sócio-discursivos, seus investigadores a tomam
como esse sofisticado espaço dos dizeres e de suas reverberações na sociedade,
estruturada e estruturante, pelas e nas narrativas midiáticas.
A Renami, portanto, assume o desafiante compromisso de tentar interpretar a
contemporaneidade pelas narrativas que o contemporâneo faz de si, sendo constituída
de pesquisadores que acabam por ocupar o lugar tanto de sujeitos quanto de objetos
dessa dinâmica. Assim, perseguindo esse tudo que pode e que é a narrativa, os
trabalhos dessa coletânea, dessa forma, se organizam em três seções descritas: I)
Perspectivas Reflexivas: pelo que a narrativa propõe em termos reflexivos e teóricos,
pensada nos termos de suas teorias e métodos de análise; II) Narrativas do Eu: a
narrativa enquanto agente fundante das identidades e do ser no mundo via exame
das micro-narrativas, também chamadas de histórias mínimas, e das narrativas do
eu; III) Outros olhares: pelas aplicações do narrar a possibilidades empíricas capazes
de evidenciar em sua heterogeneidade, a onipresença da narrativa.
Que os textos, que nos chegam de diferentes miradas e intenções para aqui
construírem uma certa tessitura sobre a narrativa, sejam capazes de proporcionar
novas perspectivas e novas problematizações sobre o narrar. De nossos objetos
científicos à experiência narrativa de mundo.
Uma boa leitura a todos.
Demétrio de Azeredo Soster
Fabiana Quatrin Piccinin
Inverno de 2017

6
PREFÁCIO

Rumo a uma teoria


da narrativa jornalística?
Existe uma teoria da narrativa? Como um sub-produto, existe uma teoria da
narrativa jornalística? Se existe, qual é a sua singularidade e o seu escopo? Teorias
são abstrações compreensivas a respeito de determinados fenômenos do mundo
social, formulações abrangentes que permitem compreender comportamentos
sociais particulares. Buscam compreender o que está por detrás das aparências de
um fenômeno social e o faz tomar a forma na qual ele se revela. Qual é a extensão de
uma teoria? O que pode ser incluído e o que deve ser excluído? O que vem primeiro:
uma prévia formulação conceitual dedutiva ou a observação empírica indutiva?
Já é tempo de fazermos essas indagações preliminares. Elas fornecem as pistas para
uma reflexão a respeito da autonomia do campo de estudos da narrativa jornalística. A
teoria de um campo se constitui quando adquire consistência em si mesma, quando um
corpo de dados e formulações conceituais é suficientemente denso para justificar a sua
existência autônoma. É preciso, pois, formular tais perguntas, filtros que nos revelam a
consistência de determinado campo. Quais áreas estabelecem fronteiras com o campo?
No caso das narrativas jornalísticas, até onde os estudos e pesquisas mantém uma
proximidade com outros campos, até onde a eles se submetem ou deles se autonomiza?
Há áreas definitivamente próximas e influentes sobre os estudos da narrativa jornalística,
como a crítica literária, a teoria dos atos de fala, a antropologia interpretativa, a
historiografia, a ciência política, a psicanálise e outras. Metodologicamente, há fortes
influências das teorias interpretativas em geral, a hermenêutica, a fenomenologia, a
pragmática, a análise estrutural e a análise do discurso. Tomando estes influxos como
fatores inegav­elmente influentes, podemos delimitar os estudos da narrativa jornalística
como um campo que guardaria já uma relativa autonomia?
Além da consistência interna, uma teoria adquire relevância quando é útil porque
permite a compreensão de determinado fenômeno empírico, quando é capaz de
estabelecer um sentido integral (ainda que provisório) a respeito de tal fenômeno.
Algumas teorias costumam ter uma inserção social maior, outras permanecem em
nível mais abstrato. A pergunta é: há um corpo conceitual consistente capaz de
explicar e influenciar determinado objeto empírico? Sobre este aspecto, é possível
dizer que os estudos da narrativa jornalística expandiram seu alcance para além da
academia. Ainda que no Brasil o setor profissional continue refratário aos estudos
acadêmicos, é inegável que o meio profissional e o ambiente político em geral
adotaram recentemente uma terminologia reveladora da influência dos estudos
acadêmicos: a narrativa tornou-se um termo de uso frequente e estratégico para
setores empresariais, políticos e jornalísticos.
Fala-se hoje de narrativa e narrativas com uma freqüência e uma abrangência
bem mais amplas que nas décadas anteriores, quando o termo permanecia restrito

7
ao campo da literatura e da crítica literária. Nas últimas três ou quatro décadas - mais
particularmente a partir dos anos 1990 - a teoria e a analise da narrativa brotaram com
força no âmbito acadêmico e se expandiram com uma vitalidade surpreendente nas
teses, dissertações e pesquisas de vários campos do conhecimento: a comunicação,
a ciência política, a antropologia, a historiografia e a literatura. Dos bancos escolares
a nomenclatura e conceitos narrativos se alastraram para âmbitos menos ortodoxos
como a política, a teologia e a vida prática.
Os cursos de jornalismo, premidos talvez pela determinação da objetividade,
relutaram por décadas compreender o seu objeto como uma narrativa. Isso, felizmente,
mudou radicalmente nos últimos anos. Nos estudos do jornalismo, a análise da
narrativa tornou-se uma disciplina específica para responder às questões particulares.
Desenvolveu metodologias próprias e gradualmente se adequou às rápidas mudanças
do mundo empírico-profissional, incluindo a internet e as redes sociais. Qualquer que
seja o seu suporte, o jornalismo é obviamente uma prática narrativa e seus produtos
(a notícia, a reportagem, a crônica, a fotografia, o video, os posts e mensagens das
redes sociais, etc.) são relatos ainda que produzam significados parciais, fragmentados
e efêmeros. Não apenas porque a reportagem é a configuração dos fatos da realidade,
mas principalmente porque o jornalismo é uma nítida prática para domar e organizar
o tempo. A narrativa, já disseram tantos, dá conteúdo ao tempo, põe o tempo em
perspectiva. É por isso que utilizamos a mesma palavra para contar uma história e
contar números. Os fatos se sucedem, se passam uns depois dos outros: para registrá-
los e memoriza-los é preciso enumerá-los, contá-los. Mal ou bem, quem mais conta
o que se passa ao nosso redor hoje é o jornalismo: ele configura sucessivamente as
representações da realidade.
No entanto, não é fácil compreender e estudar o jornalismo como uma narrativa.
O olhar narrativo traz a subjetividade para um tipo de comunicação pretensamente
objetivo. Em princípio, jornalistas não contam estórias, querem reproduzir fielmente os
fatos. Dessa maneira, estudar o jornalismo como narrativa torna metodologicamente
desafiadora essa nova perspectiva. Como descortinar a ficcionalidade nas hard news,
um texto que é essencialmente descritivo, enxuto narrado sempre na terceira pessoa?
Como descortinar encadeamentos e continuidades em relatos que são por natureza
anárquicos e difusos? Como reordenar temporalmente as sequências e compor
enredos possíveis? Até que ponto as personagens da narrativa jornalística guardam
semelhanças com as personagens da ficção? No jornalismo, quem narra? A fonte, a
empresa, o veículo, a redação, os editores ou repórteres? Quais as relações de poder
se estabelecem entre esses atores? Relações de cooperação ou de enfrentamento?
Até onde se extende o poder de cada deles?Até onde a figura do autor se preserva?
Enquanto um produto cultural, o texto da narrativa jornalística cristaliza as forças
em conflito? Ou o emaranhado de sentidos torna impossível detectar o exercício do
poder? Os desafios conceituais e epistemológicos são enormes, e enfrentados com
seriedade pelos autores dos capítulos deste livro.
Parece que os estudos e a pesquisa da narrativa jornalística estão ainda longe
de constituir um campo teórico com uma autonomia mínima. O estágio que o campo
atravessa apenas rompeu o desconhecimento inicial, deu a largada. Os estudos
desenvolvidos até agora guardam ainda a marca do pioneirismo, da sondagem
preliminar. Há inúmeras duvidas e questões de cunho ontológico e epistemológico.
Os pesquisadores ainda se interrogam o que é exatamente uma narrativa jornalística:
8
qual são mesmo os fatos empíricos que conformam este campo particular? Qual é
o seu objeto? O quê a expressão ‘narrativa jornalística’ traduz? Trata-se de relatos
que abandonam o paradigma da objetividade e se permitem certa ficcionalização do
real, como as grandes reportagens, os livros-reportagem e as biografias nas quais
a liberdade permite recompor criativamente ações e personagens? Ou estamos
falando das hard news que a cada hora, cada dia ou cada semana compõem
sucessivamente certa continuidade a partir de fragmentos de sentido relacionados
a um tema único, estabelecendo assim uma nova temporalidade? A leitura atenta
dos capítulos deste livro oferecem respostas consistentes, ainda que parciais, a
essas questões fundamentais.
A divisão acima rascunhada, própria do jornalismo impresso, aplica-se igualmente
às narrativas visuais e sonoras e às difusas mensagens das redes sociais? Mal sabemos
se podemos fazer opções seguras a respeito dos veículos e gêneros tradicionais e já
estamos frente aos desafios da cultura da convergência e das narrativas multimídia,
para as quais talvez nenhuma das alternativas acima seja pertinente porque as
novas mídias invertem os encadeamentos lineares e produzem o sentido a partir de
anárquicos quebra-cabeças. Nas narrativas multimídia, a intriga parece se configurar
menos nas mensagens dos variados suportes tecnológicos e mais no terceiro estágio
do ciclo mimético, o da recepção que Paul Ricoeur chamou de ponto de chegada.
Conexões e encadeamentos ausentes necessitam ser reconfigurados em sequências
compreensíveis, assim como as lacunas de sentido precisam ser preenchidas
conforme fazem os receptores, revelando temporalidades subentendidas. Alguns
autores deste livro encaram de frente esses desafios.
Estudos da narrativa jornalística estão ainda tatuando qual paradigma convém
ao campo: o paradigma interpretativo ou o construtivista, a teoria crítica ou a
teoria da ação, entre outros possíveis. Epistemologicamente, há convergências de
divergências. Nesta fase de arranque, tomamos emprestado de outros campos
conceitos e procedimentos metodológicos, como era de se esperar. Foram muito úteis
os conceitos e procedimentos da análise estrutural, da semântica, da pragmática, da
retórica e teorias da argumentação, da análise do discurso, da teoria da recepção
estética, da etnografia, da psicanálise e das teorias da linguagem em geral. Por outro
lado, há avanços que indicam uma criatividade própria do campo e a busca por uma
melhor adequação metodológica ao objeto particular. Para não passar em branco,
cito como exemplo o estudo das fontes: inúmeros estudos se interrogam até que
ponto elas são narradoras ou personagens dos relatos jornalísticos. Não se trata de
uma questão fácil, pois dependendo da perspectiva adotada, as implícitas relações
de poder se revelam. A menção às fontes é apenas um exemplo das particularidades
do campo, enfrentadas nesta publicação por outros autores.
Em resumo, o presente livro é um espelho da arrancada conceitual do campo das
narrativas jornalísticas. Compõe um conjunto de artigos que revela a pioneira busca
da delimitação de um objeto singular. A diversidade e a complexidade conceitual e
epistemológica aparecem aqui em distintas perspectivas, desde a positivista até a
construtivista. Desde a ótica da analise do discurso, da pragmática, da etnografia
ou do ensaísmo crítico, alguns capítulos buscam descobrir as intencionalidades
implícitas ou explícitas, a retórica da argumentação narrativa, como o sentido é
ordenado, qual é a identidade e as relações de poder dos atores envolvidos. Outros se
dedicam a revelar até que ponto o caráter mercantil dos meios influencia e modifica o
9
conteúdo narrativo. Mais revelador ainda do pioneirismo das reflexões aqui reunidas
são os diferentes suportes objetos de estudo: o livro-reportagem, o telejornal, a mídia
impressa, as redes sociais, etc., e os diferentes gêneros narrativos: o jornalismo
informativo (notícias, reportagens), opinativo (redes sociais) ou interpretativo
(biografias, livros-reportagem).
Retomemos a questão básica: em diferentes suportes e gêneros, a narrativa
jornalística mantém uma fidelidade ao real ou se ficcionaliza? No estágio em que
nos encontramos, uma resposta genérica é impossível, precisamos verificar caso
a caso. Quando acumularmos suficiente informações, talvez seja possível formular
hipóteses consistentes. Por enquanto, é bom manter a curiosidade que alimenta
novas indagações: a narrativa jornalística é uma representação fiel dos fatos ou se
submete à força da intriga que determina a ficcionalização do real? O leitor atento
deste livro poderá observar até que ponto o campo mantém coerência interna e
densidade suficiente para explicar o empírico. Os estudos da narrativa jornalística
estão longe de constituir um campo particular, e mais distante ainda de alcançarem o
status de uma teoria autônoma. Creio, no entanto, que os pioneiros estudos revelam
um inequívoco passo rumo a uma disciplina autônoma e promissora. Se ainda não
temos a teoria, temos já uma disciplina singular. Boa leitura!

Luiz G. Motta
Florianópolis, agosto 2017

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I PERSPECTIVAS REFLEXIVAS

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Narrativas jornalísticas sob a luz da pragmática:
uma análise das implicações ideológicas
a partir da perspectiva de Motta e Habermas

Karolina de Almeida Calado


Heitor Costa Lima da Rocha

1. Questionando conceitos na produção jornalística

O estudo da narrativa jornalística pode ser trilhado por diversos caminhos, desde
a perspectiva do jornalismo literário até a noção de percursos imersivos individuais
realizados pelo leitor em projetos para web. Independente do formato, do estilo ou
do gênero, vê-se que a versão escolhida para relatar os fatos é passível de análise
por ser capaz de indicar as intencionalidades do narrador, seja para fins comerciais,
pessoais ou ideológicos.
A pesquisa envolvendo os processos narrativos se torna relevante quando se trata
do jornalismo, porque em seu meio perduram ainda conceitos questionáveis como
verdade (concebida no paradigma da teoria positivista da correspondência absoluta
entre a representação e a própria realidade e não no paradigma construtivista com
sua teoria consensual), objetividade (mitificada como acesso à verdade absoluta e
não humanizada como o consenso da comunidade de comunicação) e imparcialidade
(como neutralidade frente ao confronto de interesses particulares poderosos contra
o interesse público e não o compromisso ético e democrático de apresentação da
diversidade significativa das fontes e versões existentes na sociedade). Diante das
diversas correntes teóricas e metodológicas possíveis para se observar a narrativa,
a ótica abordada neste capítulo se dá pela via da pragmática proposta por Motta
(2013), associada à teoria dos Atos de Fala de Austin (1999), especialmente a partir da
reflexão e contribuição de Habermas (2012) sobre a distorção processada pelos efeitos
perlocucionários no processo comunicativo. “Todo discurso é poder, um poder que se
exerce na relação entre quem fala e quem escuta. A análise rigorosa e sistemática
da comunicação narrativa no contexto de sua configuração pode revelar esse jogo
de poder, descortinar a correlação de forças que se exerce nas relações discursivas
interpessoais e coletivas” (MOTTA, 2013, p. 19). Interessa-nos, dessa forma, discutir
como o conjunto de argumentações do narrador pode gerar entendimentos distintos
e provocar determinados efeitos de sentidos no narratário.
Entendemos que a formulação de acontecimentos midiáticos são centrais e
estratégicos na mobilização da sociedade e, portanto, na mediação da correlação de
forças da estrutura de poder – grupos de elite que controlam o aparelho de Estado
e as grandes corporações do mercado – com os setores periféricos de intelectuais,
artistas, professores, estudantes e movimentos sociais envolvidos no processo de
construção social da realidade, no qual são definidos os significados de transcendência
social que orientam as pessoas em sua vida cotidiana. Observamos, portanto, que a

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Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

produção jornalística dos repórteres, além de buscar a atenção da audiência através


da emotividade e curiosidade (HERNANDES, 2012), está sempre contribuindo para a
reprodução ou transformação da ordem institucional estabelecida.

2. A narrativa jornalística

Para compreender a narrativa jornalística contemporânea, é necessário observar


como essa narrativa é construída e sob o olhar de quem tal construção é elaborada.
Diferentemente da literatura, a narrativa no jornalismo obedece preceitos julgados
como fundamentais para o desenvolvimento de um ethos pautado pela verdade
dos fatos. Em prol dessa máxima constrói-se, tradicionalmente, discursos de
imparcialidade, neutralidade e compromisso com a realidade que compõem a ideologia
positivista da Teoria do Espelho. Esses discursos são, evidentemente, intencionais. Em
prol de verdades selecionadas busca-se mostrar ao leitor-ouvinte-telespectador uma
totalidade dos acontecimentos, como se a mídia fosse uma instituição, por excelência,
onipresente e onisciente. Junto a essa forma de se “mostrar” para a sociedade
vem uma série de abusos e violências simbólicas: a não criticidade em relação ao
papel da mídia, o questionamento sobre a subjetividade de quem narra os fatos,
o silenciamento de questões oriundas das demandas sociais, a construção social
da realidade e o juízo de valor atribuído a “heróis” e “vilões”. Todos esses aspectos
citados trazem grandes prejuízos à sociedade, por ocultar e assim não permitir que
mudanças significativas aconteçam, contribuindo para a manutenção do status quo.
A análise crítica do texto jornalístico permite que analisemos a versão escolhida
pelo narrador para contar fatos e assim observarmos as intencionalidades
presentes na narrativa jornalística, já que “narrar é uma técnica de enunciação
dramática da realidade, de modo a envolver o ouvinte na estória contada. Narrar
não é, portanto, apenas contar ingenuamente uma história, é uma atitude
argumentativa” (MOTTA, 2013, p. 74). A partir de uma série de pistas, Luiz
Gonzaga Motta aponta possibilidades de vermos peculiaridades intencionais na
fala dos interlocutores presentes na narrativa, desde a fala do repórter até a fala
de fontes e personagens. Nesse sentido, ele elenca sete movimentos: entender
a intriga como síntese do heterogêneo; compreender a lógica do paradigma
narrativo; deixar surgirem novos episódios; e permitir ao conflito dramático
se revelar; a personagem, metamorfose de pessoa a persona ; as estratégias
argumentativas; permitir o florescimento das metanarrativas.
No jornalismo, a supressão da intencionalidade e o uso da objetividade são
conceitos problemáticos, oriundos de ideais positivistas da ciência que, por sua vez,
surgiram depois das primeiras experiências jornalísticas. Os jornais, nem um pouco
objetivos, surgem com o envio de correspondências que informavam aos reis os
eventos locais e, depois, à burguesia sobre o contexto econômico.

Entre os dois tipos de manuscritos discutidos anteriormente, apareceram


os noticiosos, cartas enviadas para um número limitado de assinantes em
múltiplas cópias, principalmente entre 1550 e 1640 — ou seja, uma ou duas
gerações antes do surgimento dos jornais. A flexibilidade da forma manuscrita

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Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

permitia variações nas notícias enviadas a cada assinante, de acordo com seus
interesses e necessidades (BRIGSS e BURKE, 2006, p. 53).

O jornalismo que desde a sua origem serviu às atividades comercial e política,


transformou-se, ao longo dos séculos, em publicista, nos séculos XVII e XVIII;
sensacionalista, no século XIX; e testemunhal, no século XX (LAGE, 2006). É relevante
ressaltar que, em sua origem, os jornais eram destinados a públicos letrados,
“diferentes periódicos dirigiam-se a públicos díspares, inclusive de camponeses (para
quem se destinava La Feuille villageoise)” (BRIGSS e BURKE, 2006 p. 104). Além
desses, havia também aqueles jornais que funcionavam como agitadores políticos, os
quais agiam de modo ideológico (HABERMAS, 1984; BRIGSS e BURKE, 2006).
Motta (2006) enfatiza que, quando o jornal se torna mercadológico, a narrativa se
modifica, passando a direcionar seu foco ao entretenimento. Esse autor problematiza
que a objetividade é um discurso intencional que pretende gerar efeitos de credibilidade
aos veículos, tornando-os legítimos para serem porta-vozes da “verdade dos fatos”.

2.1 Narrativa: semelhanças entre o jornalismo e a literatura

Com características semelhantes à narrativa literária, a narrativa jornalística


possui enredo, narrador e personagem, o que a diferencia daquela é a sua capacidade
de contribuir com a construção social da realidade; é o que Motta (2005) chama de
narrativa fática, quando relacionada ao jornalismo, e narrativa fictícia, na literatura.
Mas, segundo o próprio autor, o jornalismo também desenvolve o aspecto mítico em
suas narrativas, a partir do momento em que constrói determinados personagens
como heróis ou intenciona direcionar o sentido do acontecimento por um determinado
caminho. De forma estratégica, o jornalismo utiliza seus códigos de “veracidade”
e “realidade” e inclui algumas personagens como fontes, para conduzir o leitor ao
sentido desejado. É importante entender as características da verdade nas teorias
da correspondência e consensual, a primeira com o caráter definitivo e absoluto e a
segunda com caráter provisório e mutável, sempre sofrendo as adaptações vividas
pelas pessoas que compõem a comunidade de comunicação.
Quando se diz que a atividade do jornalismo é narrar, isso significa que é possível
contar uma história, relatar um fato ou acontecimento, sob diferentes perspectivas.
A versão exposta é apenas uma possibilidade dentre tantas outras existentes. Motta
(2005) argumenta que o exercício da análise da narrativa jornalística deve enfatizar
a versão, e não a história. No mesmo sentido, Bal (1998, p. 13) acrescenta que a
narrativa não é a história: “a afirmação de que o texto narrativo é aquele em que se
relata uma história, implica que o texto não é a história”.
O fato é que o jornalismo ou o grande capital que monopoliza o controle acionário
dos veículos de comunicação de massa e as linhas de pesquisa nos centros
acadêmicos/universitários, como a MCR nos EUA, construiu alguns discursos sobre
a narração jornalística; entre eles, os conceitos de objetividade e veracidade, para
camuflar as intencionalidades e agir no âmbito ideológico. “O jornalista é, por natureza,
um narrador discreto. Utiliza recursos de linguagem que procuram camuflar seu

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Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

papel como narrador, apagar a sua mediação. É um narrador que nega até o limite
a narração” (MOTTA, 2005, p. 8-9). Luiz Gonzaga Motta acrescenta que nenhuma
narrativa é ingênua, cabendo ao analista identificar as intenções do autor, a forma
como constrói o enredo, como direciona fontes e como mistifica personagens.

As citações frequentes, por exemplo, conferem veracidade. São utilizadas


para dar a impressão de que são as pessoas reais que falam, que o jornalista
não está intervindo. (...) As citações encobrem muito bem a subjetividade
porque o leitor supõe que elas reproduzem literalmente o que a fonte disse
e quis destacar. (...) Dissimulam a mediação (MOTTA, 2005, p. 10).

Ao longo dos anos, a grande imprensa se utilizou do discurso de veracidade para,


ideologicamente, não colocar de forma autêntica os conteúdos pautados pelo
público (MOTTA, 2005). Havia agendamento de informações de interesses políticos e
empresariais, e editores que exerciam a função de controlar o portão que transforma
os acontecimentos em notícia (gatekeeper) (WOLF, 2003). Atualmente, a realidade se
tornou mais complexa, já que blogueiros e usuários da internet, em redes sociais, têm
pautado temas a serem abordados nas reportagens da grande mídia e/ou obrigar os
veículos tradicionais a reenquadrarem sua cobertura.
A narrativa é identificada no jornalismo também por características pertinentes ao
texto narrativo literário, a exemplo do enquadramento no tempo (crono) e no espaço
(topo), o cronotopo. Gancho (2002, p. 23) afirma que o espaço “(…) tem como funções
principais situar as ações dos personagens e estabelecer com eles uma interação,
quer influenciando suas atitudes, pensamentos ou emoções, quer sofrendo eventuais
transformações provocadas pelos personagens”. Sobre o tempo, Sodré e Ferrari (1986)
estabelecem dois tipos na narrativa: o tempo da história, orientado por expressões
como manhã, tarde ou noite; e o tempo do texto, medido pelo ritmo da reprodução
dos fatos, a exemplo de acelerado ou lento, a depender do efeito que se queira obter
na narração. “A técnica na dosagem do tempo da narrativa talvez seja o aspecto mais
importante para que uma história (ou reportagem) mantenha as características de
tensão — e consequentemente o interesse do leitor” (SODRÉ e FERRARI, 1986, p. 95).
Motta (2006) indica que para uma narrativa literária envolver seu aspecto fantástico
é necessário incluir fatos que se aproximam do real, justamente para provocar o
espanto, indicar a aberração. No noticiário, observamos também o fantástico. A título
de ilustração, Motta (2006) analisou uma série de notícias que envolvia o estranho, o
cômico e o grotesco, a exemplo de matérias como: “‘Lobisomen’ apavora seringal no
Acre”, “Vilarejo perde 36 letras”, “Papagaio falastrão delata infidelidade de chinês”
e “Cabo é o parteiro dentro da viatura”. Ao encontro dessa perspectiva, o limite
entre o factual e fccional é ínfimo. Podemos ver um universo marcado pelo real na
literatura, bem como, observar marcas do fantástico, do literário, na notícia. Motta
(2006) descreve esse tipo de fantástico no jornalismo como “(...) uma manifestação
irracional enquanto expressão de algo irreal, estranho ou sobrenatural percebido por
nós. Efeitos sem causa aparente, suas manifestações trazem a ideia do misterioso,
do inexplicável, daquilo que é estranho ao familiar” (MOTTA, 2006, p. 57).
No sentido de aproximação com o universo literário, além dos exemplos citados

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Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

acima, relacionados ao fantástico, temos também a construção da persona, a


partir do momento em que se constrói “personagens-mitos” como herói, anti-herói,
antagonistas ou personagens secundárias de acordo com a categorização de
Gancho (2002, p. 14), a qual descreve a personagem como “(…) um ser fictício que é
responsável pelo desempenho do enredo; em outras palavras, é quem faz a ação. Por
mais real que pareça, o personagem é sempre invenção, mesmo quando se constata
que determinados personagens são baseados em pessoas reais”. Para Motta (2013),
no jornalismo, as personagens podem ser reais, mas se transformam em ficção, a
partir do momento em que os repórteres destacam características peculiares em
detrimento de outras, criando, assim, uma persona, uma máscara, colaborando com
a construção social da realidade.
É pertinente notar que na lógica noticiosa da narração dos fatos, diferentes
interesses estão postos em jogo, sejam eles de cunho ético, moral, econômico,
ideológico ou religioso, mesmo não estando no mesmo patamar de igualdade.
O veículo, o narrador e as personagens atuam de forma a defender interesses
específicos. Um ponto pertinente a ser analisado é a metanarrativa que se desenvolve
com o fundo cultural e social, semelhante à moral da história nas fábulas. Cabendo
ao analista observar as características que direcionam a narrativa para a defesa de
determinados pontos de vista ideológicos.
Outro aspecto a ser levado em consideração na narrativa é a sequência: “toda
narrativa consiste em um discurso integrando uma sucessão de acontecimentos de
interesse humano na unidade de uma mesma ação. Onde não há sucessão não há
narrativa” (BREMOND, 2011, p. 118). Quando narramos, inserimos uma sequência
que torna compreensível nossa versão, sem a qual, segundo o estudioso, não
existe narrativa. Ainda para Motta (2013, p. 38), “o sujeito narrador dispõe tática e
estrategicamente a sucessão dos fatores (encadeamento, sequências, aproximação
ou distanciamento do referente, etc) com o objetivo de tecer uma totalidade
compreensiva. A enunciação narrativa é uma atitude intencional e argumentativa”.
Acrescenta ainda que “narrar é relatar eventos de interesse humano enunciados em
um suceder temporal encaminhado a um desfecho. Implica, portanto, narratividade,
uma sucessão de estados de transformação responsável pelo sentido. A palavra-
chave é sucessão” (MOTTA, 2013, p. 71).

2.1.1 O acontecimento-intriga

Em torno de toda narrativa há um fato narrado, denominado de trama, enredo ou


intriga. No jornalismo, Motta (2013) denomina-o de acontecimento-intriga, ou seja, a partir
de um caso, forma-se uma versão da história com o objetivo de gerar o efeito de real.
Luiz Gonzaga Motta (2013) esclarece que, para tornar concreta uma narrativa a
partir da notícia, é importante observar alguns quesitos. Em uma reportagem cotidiana,
é possível identificar uma maior liberdade do repórter nas produções nomeadas por
soft news, as quais possuem, muitas vezes, começo, meio e fim. Mas é possível
observar o desenvolvimento da narrativa nas notícias duras ou hard news. Nessas, é
preciso fazer o acompanhamento para se elaborar a reconstituição da intriga. O tempo
16
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

nessas notícias é configurado de uma forma diferenciada, não necessariamente de


modo cronológico, com início, meio e fim. Há, muitas vezes, retardamento em algumas
informações, sendo, portanto, fundamental deixar surgir um novo episódio.

(…) a lógica da narrativa só se revelará nas duras e cruas notícias do dia a dia
se observarmos como elas lidam com o tempo e o organizam. O tempo no
relato jornalístico é difuso, anárquico e invertido. Por isso, a lógica e a sintaxe
narrativas só despontarão se pudermos reconfigurar os relatos como unidades
temáticas, intrigas que contenham princípio, meio e final de uma estória (como
aliás fazem, de maneira natural, os leitores, ouvintes e telespectadores nos
atos de recepção) (MOTTA, 2013, p. 96-97).

Quando a narrativa se prolonga, é fundamental que o analista decida a hora de


deixar a coleta, ao perceber que há informações suficientes para gerar a reconstituição
da versão da história.
No acontecimento-intriga há sempre os conflitos dramáticos, caracterizados como:
“conflitos sociais e psicológicos de origem econômica, política, ideológica, religiosa, etc.
São continuamente apoderados pelo discurso narrativo como um frame demarcador
da realidade a ser recortada e contada” (MOTTA, 2013, p. 169). Ele acrescenta
que o acontecimento-intriga é “(…) o frame estruturador fundamental de qualquer
narrativa porque é ele que dispõe as ações e as personagens na estória. É ele que
tece a trama através do relato dos incidentes, peripécias, rupturas, descontinuidades,
transgressões ou anormalidade” (MOTTA, 2013, p. 169).
Nesse mesmo sentido, Gancho (2002, p. 11) afirma que, para se compreender
uma narrativa, não apenas devemos considerar seu começo, meio e fim, mas
especialmente entender o conflito, o qual é também o elemento estruturador da
narrativa: “conflito é qualquer componente da história (personagem, fatos, ambiente,
ideias, emoções) que se opõe a outro, criando uma tensão que organiza os fatos da
história e prende a atenção do leitor”.

2.2 Os Atos de Fala na narrativa jornalística

As intenções dos falantes são a preocupação central da teoria pragmática.


Observar as vozes discursivas que compõem as narrativas jornalísticas é o objetivo
de Motta (2005) com a metodologia de análise pragmática da narrativa. Conforme a
proposta desse autor, não apenas devemos analisar puramente os componentes de
uma narrativa, mas também levar em consideração que na mesma estão refletidas as
relações de poder, seja nos atos de fala das personagens que, na maioria das ocasiões,
são escolhidas pelos repórteres, seja nas pistas deixadas pelos narradores para
entendermos o discurso regente de cada ato de fala. Nessa perspectiva, a Teoria dos
Atos de Fala (1990), proposta por Austin (1990) e atualizada por Searle, é pertinente
para a análise dos usos dos enunciados nas suas específicas enunciações jornalísticas.

Os discursos narrativos se constroem através de estratégias comunicativas


(atitudes organizadoras do discurso) e recorrem a operações e a opções
(modos) linguísticos e extralinguísticos táticos para realizar certas intenções
17
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
e objetivos. (…) Quando um narrador qualquer configura um discurso na sua
forma narrativa, ele introduz necessariamente uma força ilocutiva e perlocutiva
(para utilizar expressões dos filósofos ingleses J. Austin e J. Searle) responsável
pelos efeitos que vai gerar no seu destinatário (MOTTA, 2013, p. 82).

Austin (1990) defende que alguns enunciados quando proferidos são, já em si,
ações. Complementa sua teoria afirmando que a situação de fala pode se constituir
em uma ação. O autor exemplifica que, quando um padre pergunta, em uma cerimônia
de casamento, se o casal aceita se casar, a palavra “aceito” se torna uma ação que
modifica o estado civil dos falantes. Entretanto, a pessoa precisa ter a competência
para realizar tal pergunta, ou seja, ser um padre; e os noivos que responderão sim ou
não devem estar situados nesse mesmo ritual.
O dizer realiza ações, mas o contexto diz muito sobre a força dos enunciados. As
construções frasais devem possuir uma performance. Para tanto, o autor descreve
três atos que englobam as pretensões dos atores nas situações de fala. A primeira
delas é o ato locucionário: que se realiza quando o indivíduo profere uma oração,
ou seja, esse ato diz respeito à capacidade do indivíduo de recorrer à língua, à
linguística. O ato ilocucionário, segundo ato de fala classificado por Austin (1990), é
uma expressão da vontade do ator, é a intenção dele com aquela oração específica. E
o ato perlocucionário, por fim, é o que se refere ao resultado obtido pelo enunciador
quando consegue fazer com que o ouvinte, a partir da oração pronunciada, aja de
acordo com os fins previstos pelo locutor.
No trabalho da análise da narrativa, a compreensão sobre a inserção do ato de
fala perlocucionário no jornalismo é essencial para identificar discursos ocultos que
expressam o poder simbólico e a relação de dominação na mídia, já que “o poder
simbólico, é, com efeito, esse poder invisível o qual só pode ser exercido com a
cumplicidade daqueles que não querem saber que lhes estão sujeitos ou mesmo
que o exercem” (BOURDIEU, 1998, p. 7-8). No entanto, o jornalismo é um campo
de disputas simbólicas cujas ideologias em jogo não são simples de descrever. Há
forças diversas que travam lutas no cenário midiático. Motta (2005) acrescenta que,
nessa trama, há interesses do veículo, do jornalista e do personagem. Todavia, há
hierarquias e distinção de poderes entre as partes envolvidas. Geralmente, vence
o discurso da classe dominante. É nítido, por exemplo, o conjunto de enunciados
visando a disseminar valores neoliberais: ideias do mercado livre, Estado mínimo,
meritocracia, diminuição de impostos, entre outros. Já os temas que vão de encontro
aos interesses da grande mídia ficam de fora da pauta: ascensão de governos
populistas, Bolsa Família, regulamentação da mídia, cotas, etc (GUARESCHI, 2013).
O silenciamento por parte da grande mídia traz prejuízos, pois como discursos
opostos aos interesses midiáticos não aparecem, é como se eles não existissem
para a maioria da população. Observamos, desse modo, diferentes classes sociais
dominadas reproduzindo, de modo acrítico, discursos dominantes que justificam
a dominação e a opressão: mulheres reproduzindo o machismo; trabalhadores
defendendo menos direitos em seu plano de carreira e aposentadorias, a favor da
reforma da previdência; etc.
Nesse sentido, a partir do estudo dos atos de fala, podemos observar as intenções

18
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

dos falantes no texto, no caso dos atos ilocucionários, e como o ato perlocucionário se
concretiza, no momento em que percebemos as reações das personagens envolvidas
no acontecimento-intriga, ou quando percebemos as reações dos leitores, já que
nem sempre a intenção ilocucionária é alcançada devido a uma má compreensão do
interlocutor. Motta (2013) atribui à palavra final ao leitor (interlocutor), tendo em vista
que a compreensão pertence ao mesmo. Da mesma forma, a intenção perlocucionária
pretendida pelo locutor pode não ser concretizada no interlocutor, quando esse perceber
a manipulação que pretendia ser exercida de forma dissimulada pelo enunciador.
Habermas (2002) amplia a discussão ao se interessar pelo tema e pelo ato
perlocucionário no processo de comunicação, preocupando-se em distinguir entre
as intenções e os efeitos de sentido que podem gerar entendimento daquelas que
visam a resultados estratégicos. “Eu caracterizei o compreender e o aceitar das ações
de fala como sucessos ilocucionários; todos os fins e efeitos além disso devem ser
chamados ‘perlocucionários” (HABERMAS, 1990, p. 72).
O ato perlocucionário no sentido midiático está produzindo efeitos contrários
àquilo que é legítimo, ético e bom para o coletivo, para o desenvolvimento da ética
do discurso. Uma comunicação ética, legítima e democrática está fundamentada na
teoria do agir comunicativo (HABERMAS), na qual a finalidade da comunicação deve ser
o debate para gerar o consenso, ou seja, a partir da faculdade racional, os indivíduos
podem elencar aspectos que se tornarão válidos por meio da argumentação dialógica.
Essa teoria valoriza a capacidade mental do interlocutor que é estimulado pelo locutor
a desenvolver um entendimento. O ato de fala utilizado, nesse caso, é o ilocucionário.
No agir comunicativo, “os atores participantes tentam objetivos mediatos da definição
da situação e da escolha dos fins assumindo o papel de falantes e ouvintes, que
falam e ouvem através de processos de entendimento” (HABERMAS, 1990, p. 72).
Em termos midiáticos, infelizmente, esse tipo de ação comunicativa ainda não
é a realidade brasileira. Como Motta (2005) enfatiza, a narrativa jornalística prevê
intenções que provocam distorções sistemáticas da realidade. Entre os vários
recursos utilizados estão aqueles que dissimulam a narração: dados de organizações
que fundamentam a informação, a escolha das fontes, a hierarquia de personagens,
o uso de dêiticos, entre outros.
O olhar do narrador que detém o poder de informar em detrimento de outros, se
torna uma comunicação impositiva, sem levar em consideração valores e anseios das
demandas sociais, o que se configura no processo do agir estratégico, conceito de
Habermas (1990) para identificar aquele tipo de comunicação que não leva em conta
a capacidade cognitiva do interlocutor para interpretar sua fala.

Ameaças são exemplos de atos de fala que desempenham uma função


instrumental em contextos de agir estratégico, que perderam sua força
ilocucionária e que emprestam o seu significado ilocucionário a outros
contextos de aplicação, nos quais normalmente as mesmas frases
são proferidas numa perspectiva de entendimento. Tais atos, que se
tornam independentes de modo perlocucionário, não são realmente atos
ilocucionários, pois, não visam a tomada de posição racionalmente motivada
de um destinatário (HABERMAS, 1990, p. 76).

19
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

O filósofo alemão diferencia o agir estratégico do agir comunicativo a partir do


modo da ação de fala do locutor e acrescenta uma proposição explicativa que deixa
claro sua visão sobre os processos de trocas significativas.

Eu me refiro ao “agir comunicativo”, caso em que as ações de vários atores


são coordenadas através do “entendimento”, e ao “agir estratégico”, quando
essas ações são coordenadas por intermédio da “influenciação”. Esses dois
mecanismos e os correspondentes tipos de ação excluem-se reciprocamente
na perspectiva dos participantes (HABERMAS, 1990, p. 128).

Agindo de forma estratégica, o locutor está lançando mão do ato perlocucionário.


“No agir estratégico a constelação do agir e do falar modifica-se. Aqui as forças
ilocucionárias de ligação enfraquecem; a linguagem encolhe-se, transformando-se
num simples meio de informação” (HABERMAS, 1990, p. 74).

Conclusão

A análise dos atos de fala na narrativa jornalística possibilita a visualização das


intenções das partes envolvidas no processo de narração. Podemos observar se há
uma comunicação que se utiliza dos atos ilocucionários para realizar ações válidas
para a comunidade de comunicação ou se, nessas narrativas, pelo contrário, tem-
se de modo manipulativo o uso de atos perlocucionários que buscam distorcer a
realidade para atingir finalidades particulares, agindo assim, estrategicamente.
A análise crítica da narrativa permite também a observação acerca do tipo de
jornalismo que temos valorizado nos dias atuais. Um jornalismo que preza pelo
debate, pela pluralidade de vozes e pelo aprofundamento para gerar o entendimento,
ou um jornalismo superficial e unilateral que nega a capacidade de discernimento das
pessoas e, assim, omite e contribui para uma distorção sistemática?
Consideramos que a teoria pragmática da narrativa, proposta por Motta (2005),
é relevante para a análise das diferentes textualidades jornalísticas, trazendo
técnicas importantes para identificar tanto intencionalidades que estão na superfície
da materialidade textual quanto as que estão no pano de fundo social e cultural,
permeado pelas ideologias.
Por fim, esperamos que essa reflexão possa contribuir para “o pensar”
epistemológico da narrativa contemporânea, ao abordar teorias relevantes sobre o
narrar, o comunicar e o falar. Acreditamos ser pertinente o aprofundamento dessa
reflexão em trabalhos futuros, especialmente, colocando em xeque a presença do agir
estratégico na comunicação jornalística.

Referências

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Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

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SODRÉ, M.; FERRARI, M. H. Técnica de reportagem: Notas sobre a narrativa
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21
Informação e função social: perspectivas
de discurso e narrativa jornalística1

Luiz Henrique Zart

A produção e o intercâmbio de informações e conteúdo simbólico são algo


comum a todas as sociedades humanas. Desde o princípio, toda a representação
do mundo foi transmitida, seja de maneira oral, através dos tipos móveis ou, com
o desenvolvimento da tecnologia, por jornais, revistas, rádio, televisão e internet. A
produção, o armazenamento e a circulação de informação, portanto, são aspectos
centrais da vida social – que adquirem ainda mais importância na contemporaneidade
(THOMPSON, 1995). E a imprensa, desde o século XV, é a principal produtora de
percepções e de representações do cotidiano e da cultura da sociedade. Produzem,
portanto, cultura, que condiciona a visão de mundo do homem.
E o jornalismo, neste contexto, ocupa os “espaços vazios” das relações sociais,
principalmente ocasionados pelo caráter de mediação que ele exerce. Traçando
discursos do cotidiano, é através da comunicação e da imprensa que o homem
constrói teias de significação que permitem que conheça a si mesmo, aos outros,
enfim, ao mundo à sua volta. Porém, Kovach e Rosenstiel (2003, p. 30) afirmam,
de fato: “não importa quanto o jornalismo tenha mudado. Sua finalidade tem
permanecido extraordinariamente constante, embora nem sempre bem servida,
desde que a noção de imprensa surgiu há mais de trezentos anos”. Quem reforça
esta ideia é Clóvis Rossi:

Jornalismo, independentemente de qualquer definição acadêmica, é uma


fascinante batalha pela conquista das mentes e corações de seus alvos:
leitores, telespectadores ou ouvintes. Uma batalha geralmente sutil e que
usa uma arma de aparência extremamente inofensiva: a palavra, acrescida,
no caso da televisão, de imagens. Mas uma batalha nem por isso menos
importante do ponto de vista político e social, o que justifica e explica as
imensas verbas canalizadas por governos, partidos, empresários e entidades
diversas para o que se convencionou chamar de veículos de comunicação
de massa. (ROSSI, 1980, p. 7).

Por meio dos materiais produzidos pela mídia, o homem é capaz de perceber o
mundo em que vive, mas também de tomar conhecimento, em parte, do que já não está
ao alcance dos seus olhos. Nesta conversa, a imprensa é alimentada por elementos
abrangentes da realidade e traz fragmentos dela até o público. Este mesmo público
absorve os conteúdos e, pelo valor de uso que eles contêm, transforma o social, que é
novamente aproveitado pela mídia em uma atividade cíclica infindável. Este processo
de produção da informação, principalmente por parte da imprensa na construção
de percepções, tem como principal expoente de credibilidade e responsabilidade o
jornalismo (VICCHIATTI, 2005).

22
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

O escamoteio ou a distorção de informações; as pautas motivadas por


interesses particulares não revelados; a irresponsabilidade com que se
difundem falsas informações ao público; a acomodação dos repórteres
a um jornalismo de relatos superficiais; os textos confusos e imprecisos; a
facilidade com que a imprensa acolhe, sem apurar, denúncias que favorecem
ou prejudicam alguém; a frequente prevalência dos objetivos do marketing
sobre as razões jornalísticas [...] são claros sintomas de um desequilíbrio de
identidade do jornalismo, enquanto função social. (CHAPARRO, 1994, p. 108).

E é no espaço de transformação e serviço ao público que a atividade jornalística


adquire relevância: no apoio à democracia, à cidadania, na definição de nossas
comunidades e na formação de conhecimentos comuns com base na realidade
(KOVACH; ROSENSTIEL, 2003, p. 31), a mídia e os jornalistas que a desenham são
produtores de sentido. E um dos pontos-chave acerca da função social do jornalismo
está em torno disto: a compreensão do mundo social. Afinal,

é tamanha a complexidade e diversidade de assuntos que afetam diretamente


a rotina dos cidadãos ou lhe interessam pela curiosidade e/ou necessidade
de conhecimento que ele precisa ser ajudado a entendê-los. Ele merece
explicações dos jornais. Seria impensável que um leitor qualquer, por mais
ilustrado, culto e bem informado que fosse, pudesse acompanhar e entender
informações secas sobre medicina e política, energia nuclear e Afeganistão,
Educação e Meio Ambiente. Não. Ele necessita de um aprofundamento que o
jornal (ou revista) deveria estar em condições de fornecer. (ROSSI, 1980, p. 36).

A principal forma de representação das explicações pelos jornais é a notícia. Ela


é a unidade básica da informação no jornalismo. E os chamados “fatos jornalísticos”,
que interessam às notícias, formam a menor unidade de significação no universo
da informação. “O jornalismo tem uma maneira própria de perceber e produzir seus
fatos” (GENRO FILHO, 2012, p. 194). Desta forma, os acontecimentos não existem
propriamente e integralmente como tais. Há, sim, “um fluxo objetivo na realidade, de
onde os fatos são recortados e construídos obedecendo a determinações ao mesmo
tempo objetivas e subjetivas” (Ibidem, loc. cit.). Ou “tudo que o público necessita
saber” (PENA, 2015, p. 71).
A notícia tem uma função mitológica por explicar o que não pode ser facilmente
explicado; e faz com que os fatos não pareçam atrelados à construção do relato: eles
estão ali por si só, em grande parte, pelas técnicas de despersonalização do texto
jornalístico, que tem suas falas em outras vozes (STEINBERGER, 2005).
Uma das primeiras considerações a ser levada em conta é: a notícia é um recorte.
Uma representação parcial (literalmente) da realidade. E o aspecto cíclico no qual ela
está envolvida também precisa do público. Por isso, a necessidade de informações
que as pessoas têm também está atrelada ao potencial gerador de notícia da própria
imprensa. Cria a expectativa de uma representabilidade dos fatos que será utilizada
por ela como valor de troca e pelo público como valor de uso. O grau de influência que
a mídia exerce, por ser permanente, constante, e atuar de várias formas nas relações
sociais, deve ser evidenciado (GENRO FILHO, 2012).

23
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

Essa ânsia pela informação é algo característico do ser humano. Na contem-


poraneidade, isto se torna ainda mais forte. É com a comunicação que o homem
estabelece significados consigo mesmo e dá sentido às relações em sociedade que,
afinal, servirão de matéria-prima para a própria imprensa (KOVACH; ROSENSTIEL,
2003). Neste sentido, é inegável que a informação é necessária à formação pessoal
e coletiva. Isto porque “a humanidade específica do homem e sua socialidade estão
inextrincavelmente entrelaçadas. O Homo sapiens é sempre, e na mesma medida,
homo socius” (BERGER; LUCKMANN, 1985, p. 74-75, grifos do autor). O homem se
utiliza dos conteúdos que absorve da mídia para construir e participar das relações
sociais comuns a todos os membros da sociedade.

As pessoas precisam de informação por causa de um instinto básico do ser


humano, que chamamos de Instinto de Percepção. Elas precisam saber o
que acontece do outro lado do país e do mundo, precisam estar a par de fatos
que vão além de sua própria experiência. O conhecimento do desconhecido
lhes dá segurança, permite-lhes planejar e administrar suas próprias vidas.
(KOVACH; ROSENSTIEL, 2003, p. 36)

Essa necessidade de informação foi um dos fatores que impulsionaram o


desenvolvimento da imprensa. No princípio, além de atender à crescente demanda na
produção de livros, veio satisfazer a elite intelectual das universidades renascentistas
e, principalmente, servir de suporte burocrático para a nascente burguesia comercial
e industrial (MELO, 1973 apud GENRO FILHO, 2012).
Em sequência, havia a necessidade popular de obtenção de informações, para
manter-se em dia com os acontecimentos da época, tanto para o citadino, quanto
para bancários e comerciantes burgueses, principais consumidores das primeiras
informações – sobre acessibilidade e preços de mercadorias veiculadas pelas folhas
de aviso, que dariam origem aos jornais (GENRO FILHO, 2012).

Isso traz duas consequências básicas: a procura de mais informações e,


pelo fato de que tais informações não podem ser obtidas diretamente pelos
indivíduos, surge a possibilidade de uma indústria da informação. Que
tais empresas sejam privadas e que as notícias sejam transformadas em
mercadorias não é de se estranhar, pois, afinal, tratava-se precisamente
do desenvolvimento do modo de produção capitalista. Logo, desde o seu
nascimento, o jornalismo teria de estar perpassado pela ideologia burguesa
e, do ponto de vista cultural, associado ao que foi chamado mais tarde de
“cultura de massa” ou “indústria cultural”. (GENRO FILHO, 2012, p. 31).

Em suma, este processo se desenvolveu e adquiriu relevância com a imprensa de


massa. Desta forma, destaca-se, a partir da metade do século XIX – também época de
desenvolvimento de uma série de importantes teorias da comunicação e do jornalismo,
o surgimento da chamada “opinião pública”, que designa um corpo abstrato de
interpretações particulares do mundo.

A imprensa faz, cria, constrói a opinião pública. Como diz Pierre Bourdieu,
“a opinião pública não existe, ela é o reflexo dos meios de comunicação”;
24
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

se não existisse comunicação de massa, não haveria opinião púbica, e sim


pressupostos ou crenças. (MORAES et al., 2013, p. 65).

A opinião pública, antes, era pautada pela discussão do interesse público.


Hoje, não busca mais esta discussão da mesma forma, porque recorre à mídia,
que expressa, em muitos casos, a “manifestação pública de sentimentos”.
Principalmente em tempos em que a imprensa tem se comportado como um
depósito de preferências, emoções, gostos, aversões e predileções (CHAUÍ, 2006),
a função social do jornalismo precisa ser reavaliada.

[...] os meios de comunicação tradicionais (jornal, rádio, cinema, televisão)


sempre foram propriedade privada de indivíduos e grupos, não podendo
deixar de exprimir seus interesses particulares ou privados, ainda que isso
sempre tenha imposto problemas e limitações à liberdade de expressão, que
fundamenta a ideia de opinião pública. (CHAUÍ, 2006, p. 13).

A relação entre a opinião pública e a imprensa se constitui por laços de dependência.


Partindo dos princípios fundamentais do jornalismo, diz-se que ele deve servir ao
público. Se isto é feito, a opinião pública se orienta, decide o que fazer e raciocina, não
pelas coisas propriamente ditas, “mas pelas feições que lhes damos, pelas imagens
que os veículos de comunicação lhes atribuem. Como diz Walter Lippman, as imagens
em nossa mente, eis a matéria e o conteúdo de nossas opiniões” (BAHIA, 2009, p. 224).
Deste conceito, o jornalismo ocupa uma série de esferas da vida social. Está
em contato com o poder, com os acontecimentos, com a rotina a que o público terá
acesso de maneira parcial. Bucci (2000, p. 33) diz: “Quando o poder age no sentido
de subtrair do cidadão a informação que lhe é devida, está corroendo as bases do
exercício do jornalismo ético, que é o bom jornalismo, e corrompendo a sociedade”.
Então, como lembra Chaparro (2001, p. 99, grifos do autor),

o jornalismo não pode ter a ambição vaidosa de assumir papéis e espaços


que devem pertencer a outros sujeitos, principalmente os que constroem
as divergências e os confrontos. Ao contrário, e a meu ver, deve privilegiar e
desenvolver em si mesmo a vocação de captar, entender, interpretar e ajustar
ou confrontar os discursos organizados dos grupos sociais, institucionalizados
ou não, sejam eles produtores de ações ou vítimas delas.

Entra em questão a impossibilidade de ser um mediador sem interferência. No


processo de construção da notícia, escolhas são realizadas, desde a pauta aos enfoques
e entrevistados: tudo sofre interferência direta do jornalista. A função, portanto,
passa a ser entendida como a de tradutor da realidade. Porque ao se distanciar da
situação que noticia amparado por conceitos como a submissão às fontes oficiais,
institucionais ou oficiosas (presente no quadro observado na teoria dos definidores
primários – onde as fontes institucionalizadas servem como uma espécie de “legítima
defesa” do jornalista [PENA, 2015, p. 154]), em uma sociedade normalizada contra
as patologias que surgem dela “naturalmente”, o jornalismo abdica da oposição ao
arbítrio, autoritarismo e opressão, como se destaca no Código de Ética da profissão
(FEDERAÇÃO, 2007).
25
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

Os fenômenos e eventos que povoam o mundo cotidiano precisam ser


percebidos como processos incompletos que se articulam e se apresentam,
deixando sempre uma margem de significação em aberto, a ser construída,
exatamente porque se supõe que, no processo do conhecimento, o real não
aparece imediatamente sua face concreta e essencial. A construção do
conhecimento se dá na apropriação de suas relações com o mundo. É assim
que o homem transforma as coisas, tornando o mundo compreensível.
E, embora o mundo não se esgote no que é aparentemente dado, mas é
sempre uma possibilidade, a noção de mundo real, aqui trabalhada, refere-
se à forma pela qual ele está estruturado no presente, como experienciamos
e como se apresentam as situações da vida cotidiana. (GADINI, 2009, p. 54).

Segundo Genro Filho (2012), a atuação profissional deve ser pautada em


um jornalismo crítico, posicionado e dialético, que leve em consideração as
particularidades e universalidades da sociedade, sob um ponto de vista histórico, que
permite compreender os fenômenos sociais. Na isenção dos dogmas do jornalismo
há uma incoerência de discurso.

Ora, o jornalismo deve ser “imparcial”, mas deve “interpretar” os fatos e


“guiar” seus leitores. Fica evidente que há uma interpretação e um sentido
que devem brotar naturalmente dos próprios fatos, com base, portanto, nos
preconceitos e concepções dominantes na sociedade, que se manifestam
no chamado “bom senso”, expressão individual da ideologia hegemônica.
[...] Assim, o julgamento ético, a postura ideológica, a interpretação e a
opinião não formam um discurso que se agrega aos fenômenos somente
depois da percepção, mas são sua pré-condição, o pressuposto mesmo
da sua existência como fato social. Não há um fato e várias opiniões e
julgamentos, mas um mesmo fenômeno (manifestação indeterminada
quanto ao seu significado) e uma pluralidade de fatos, conforme a opinião
e o julgamento. (GENRO FILHO, 2012, p. 38 et seq., grifos do autor).

A complexidade do fato jornalístico vem da série de contradições da produção do


social. A partir disto, o jornalismo estabelece um processo de significação que envolve
duas variáveis: “1) as relações objetivas do evento, o grau de amplitude e radicalidade
do acontecimento em relação a uma totalidade social considerada”; depois, “2) as
relações e significações que são constituídas no ato de sua produção e comunicação”
(GENRO FILHO, p. 65). Ou seja, o jornalismo se apropria de acontecimentos da
totalidade social e lhes confere novos significados em meio ao processo interpretativo
iniciado pelo jornalista e concluído pelo público.
Prevalece a ideia de que os conceitos-padrão da profissão devem servir, no máximo,
como horizontes utópicos. Ao jornalista cabe conferir a veracidade das informações
e colocá-las em ordem (independente da forma), para que o leitor possa entendê-las
(KOVACH; ROSENSTIEL, 2003). Como bem lembra Souza (1996, p. 17),

definir a realidade e facilitar sua compreensão deve ser a tarefa de todo


jornalista, embora isso não descarte a interpretação do fato e a orientação
da opinião pública. Trata-se de uma função que necessariamente mistura
conceitos técnicos com valores éticos, em proporção difícil de caracterizar.

26
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

Devem ser levados em consideração os princípios éticos e técnicos da profissão,


que se dispõem de maneira bastante tênue. Bahia (2009, p. 225) lembra que
os compromissos e deveres da imprensa devem se pautar pela independência,
pela honestidade com o público, e pela rejeição ao uso de má fé na produção de
material jornalístico. A tentativa de enganar a audiência, com convicções ideológicas,
falsificando ou distorcendo o noticiário pela omissão, cumplicidade ou negligência é
inadmissível em questões éticas. Mas, acontece. De qualquer maneira,

entre os principais deveres e compromissos da imprensa, situam-se os de


independência, apoiada em bases morais e econômicas suficientes para
rejeitar a subvenção oficial; de imparcialidade, a partir da prática de dar
espaço igual às partes em confronto, de acolher as diferentes versões de um
fato e de evitar o alinhamento deliberado ou intencional; de honestidade, no
sentido de dar voz às minorias, as notícias e os anúncios sejam transparentes,
confiáveis; de exatidão, como complemento da imparcialidade e da
objetividade, que resulta da necessidade de difundir a verdade apurada ou de
precisar os fatos de tal maneira que cada um deles possa ser conferido pela
sua veracidade; de critério, tendo em vista regras fundamentais de decência
aplicadas à linguagem, à ilustração, à busca e à publicação das notícias, de
modo a imprimir discernimento e valor ao estilo; de responsabilidade, para
que o jornalismo não seja apenas a enunciação do pensamento de seus
proprietários, para que possa estabelecer padrões duradouros de identidade
social, para que alcance na sociedade um conceito de instituição livre das
injunções materiais dos seus mantenedores e seja capaz de, acima de
quaisquer interesses, refletir o bem comum. (BAHIA, 2009, p. 223).

Partindo desta premissa, o jornalismo deveria servir como o ponto de


questionamento, reflexão, capaz de provocar mudanças reais e definitivas na vida
das pessoas, para que pudessem viver com dignidade. Na pós-modernidade onde
impera apenas a liberdade formal, e não a liberdade real, o jornalismo deveria agir
“despertando a consciência, motivando atitudes positivas, evitando a superficialidade
e a omissão perniciosa, que só fazem aumentar diferenças sociais” (SFREDDO apud
VICCHIATTI, 2005, p. 29-30). Deve-se fugir do que comumente se pratica – o jornalismo
tecnicista, que procura preencher lacunas, o jornalismo de resultados, porque

os profissionais do jornalismo, no exercício de sua profissão, têm, antes


de tudo, um compromisso com a sociedade. Compromisso de trabalhar
pela verdade, pela justiça, e pela cidadania, pela (in)formação da opinião
pública e pelo nivelamento das desigualdades sociais. Suposto isso, voltam
seus olhares para as tendências e oportunidades do mercado de trabalho.
Tendências essas que habilitam o profissional do jornalismo a exercer
condignamente sua profissão. (VICCHIATTI, 2005, p. 53).

Isto deve ser destacado, pois no capitalismo selvagem, o sujeito do capital é ele
próprio, e não o homem, e por isso alguns pagam pela segurança de suas propriedades,
outros pela segurança da própria existência (BOLAÑO, 2000). Assim, surge desta ideia
a noção do jornalismo como serviço público de conhecimento, cultura e participação
para o sujeito, que significa “1) uma subjetividade livre: um centro de iniciativas,
autor e responsável por seus atos; 2) um ser subjugado, submetido a uma autoridade
27
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

superior, desprovido de liberdade, a não ser a de livremente aceitar a sua submissão”


(ALTHUSSER, 1980, p. 104).
Neste sentido, também há a concepção de que o jornalismo é o quarto poder (que
atuaria como o “fiel da balança”, imune aos outros três constituídos). Aqui, a esfera de
poder deve ser vista de outro jeito, além do caráter constitucional. A função mitológica
do jornalismo como quarto poder hoje se altera: ainda envolve esta magnitude, mas
como um campo, que relaciona indivíduos, instituições e esferas de ação, com forças
conflituosas, assim como a atividade jornalística. Ela, dentro deste campo simbólico-
midiático, exerce poder, ocupando uma posição privilegiada que altera as condições
de convivência entre os outros campos e indivíduos em sociedade (GADINI, 2009).
Hoje, a grande imprensa é controlada por meio de um oligopólio, com base no
poder econômico, o que faz com que se perca a motivação social do jornalismo. O
que deveria servir como um caminho à conscientização se transforma em um motor
movido pelos interesses de quem controla os meios de comunicação de massa.

A escolha das notícias é o argumento mais contundente para lembrar


que não existe a neutralidade nem a imparcialidade informativa. Quando
um jornal escolhe para sua capa uma denúncia da Anistia Internacional
ou o casamento de um membro de alguma monarquia europeia, por mais
aparentemente objetiva que seja a sua apresentação, está tomando uma
determinada posição. Por isso, nossa primeira missão deve ser averiguar o
mecanismo de seleção das notícias. (SERRANO, 2010, p. 22).

A imprensa é, sobretudo, seletiva e reducionista. Isto se evidencia quando entram


em questão as práticas baseadas em interesses privados, sem nenhuma preocupação
– nem com a informação a ser levada ao público, nem com as pessoas envolvidas na
notícia (porque é de pessoas que se faz o jornalismo): em suma, há desumanização.
Então, o debate sobre estas condutas dos veículos de comunicação é dificultado,
inclusive quando nós, brasileiros, falamos em liberdade de imprensa, desde o princípio
do termo. Em inglês, se diferenciam três determinações para tratar deste assunto:
Imprensa (press: a máquina de impressão ou a prática dos meios de comunicação de
massa); expressão (speech) e impressão (print). Portanto, o conceito de “the press”,
a imprensa, em inglês, remete e mistura estes três itens.
A liberdade de opinião permite o pensar livre; a de expressão nasce com o indivíduo;
a de informação, por receber a comunicação, não ser privado dela; e a liberdade de
imprensa, vista de maneira coletiva na soma destes itens (GUARESCHI, 2013; LIMA;
2012). Assim, portanto, é na mistura destas percepções que está a atividade do
jornalista, à qual

John Hohenberg conceitua de maneira mais séria: Uma profissão agitada,


tão mutável quanto as notícias de que vive. Acrescenta, ainda, que a atração
universal pelo jornalismo se deve a uma série de ingredientes, entre os quais
novidade, surpresa, satisfação, realização, algumas vezes desapontamento
e, ocasionalmente, até mesmo choque, diante da variedade incessante na
História da humanidade. (FIDELIS, 1986, p. 9, grifos do autor).

28
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

Neste sentido, Genro Filho (2012, p. 182), classifica a imprensa como “o corpo
material do jornalismo, o processo técnico do jornal – que tem sua contrapartida
na tecnologia do rádio, da TV, etc.”, que resulta num “produto final, que podem ser
manchas de tinta num papel ou as ondas de radiodifusão”. E o jornalismo, como a
modalidade de informação “que surge sistematicamente destes meios para suprir
certas necessidades histórico-sociais que [...] expressam uma ambivalência entre
a particularidade dos interesses burgueses e a universalidade do social em seu
desenvolvimento histórico” (GENRO FILHO, 2012, p. 182).
O mesmo autor nos permite dizer que, hoje, está em curso a liberdade de empresa,
onde a propriedade dos meios de comunicação é uma espécie de capitania hereditária
(GUARESCHI, 2013). Isso traz um questionamento: afinal, a mídia se produz através
das pessoas ou é o contrário (LIMA, 2012)?
O processo de redefinição do espaço midiático brasileiro, que teve início na década
de 70, com a globalização, trouxe vários reflexos na forma de pensar a comunicação.
Entre outros: a concentração de propriedade; a diversificação das mensagens da
mídia; a globalização das indústrias da mídia e sua consequente desregulamentação.
Desta maneira, expandindo o alcance e a influência, o jornalismo e a comunicação de
massa não são mais um simples registro da realidade. São uma construção dela, na
sociedade regida pela modernidade.

A partir de uma retórica que demonstra sutil sensibilidade para lidar


com símbolos abrangentes, a mídia extravasa emoções que suscitam
identificações sociais e psíquicas. Regula-se a relação entre desejo,
necessidade e satisfação, removendo-se aquilo que retarde o ímpeto de
consumir ou protele a extinção dos impulsos. No culto ao fugaz, querem
convencer-nos de que o que perdemos em durabilidade ganhamos em
intensidade. “O parâmetro com que se mede o valor da experiência tende
a ser sua capacidade de produzir entusiasmo, não a profundidade de suas
impressões. (...) Como outras ofertas culturais sedutoras, [a experiência]
deve adequar-se “ao máximo impacto e à máxima obsolescência”, limpando
o terreno rapidamente para novas e apaixonantes aventuras (Bauman,
2004b: 213). (MORAES et al., 2006, p. 36).

Essa velocidade característica do pós-moderno-midiático (STEINBERGER, 2005)


é mais um dos empecilhos para pensar por que a mídia pouco fala de si. Pouco se
discute. Afinal, não há tempo para isto. Porque a lógica da comunicação na pós-
modernidade não permite, comumente, brechas a este debate, nem a nenhuma
interpretação. Vive em constante estado de ânsia.
Isto serve tanto para proteger interesses dos “proprietários” dos meios de
comunicação, quanto para não tocar nos dogmas e práticas que giram em torno da
atividade do jornalista. Veículos da grande mídia – aqui, em especial, a brasileira – agem
como empresas privadas, quando na verdade só podem atuar com uma concessão
pública em um período determinado. Portanto, são meios públicos antes de serem
privados. Mas, eles divulgam o conhecimento e a cultura, permitem que se apresentem
modelos diversos de participação na democracia? A atuação do jornalista hoje é um
pouco diferente do passado. Isto porque ele precisa, assim como toda a comunicação e
29
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

o jornalismo, se adaptar às novas rotinas de produção. A ditadura do relógio e a pressão


dos deadlines2 são só o começo de uma série de atribuições:

O jornalista, hoje, trabalha mais: além de preparar a notícia, deve fazer a


diagramação, indicar as fotos, desenhos, gráficos, em suma, tudo o que
constará da sua matéria. Além disso, houve uma redução drástica de pessoal
nas redações. Os repórteres são obrigados a fazer mais de uma matéria ao
mesmo tempo. Nesse processo rápido e ágil, o controle de qualidade se torna
ainda mais difícil (ABREU, 2002, p. 34 apud LAGO; ROMANCINI, 2007, p. 178,
grifos do autor).

Mas, a ascensão de padrões informativos como alternativa ao fluxo ininterrupto


de acontecimentos veiculados pela mídia pode provar que outras formas de enxergar
o jornalismo como um bem comum, de interesse público, é algo a ser resgatado.
Com o jornalista como um especialista em generalidades, empurrado um dia a “uma
entrevista sobre urbanismo, no dia seguinte para uma reportagem sobre energia
nuclear, no terceiro dia para uma entrevista com, digamos, o ministro de Relações
Exteriores da Arábia Saudita [...]” (ROSSI, 1980, p. 73-74).
O lugar intermediário assumido pela imprensa é pautado por vários dogmas. Entre
eles, o da objetividade. Importada dos padrões de imprensa norte-americanos, ela
diz que os veículos de comunicação devem se colocar de maneira neutra diante dos
acontecimentos, em tese deixando que o leitor tire as próprias conclusões.

A objetividade, então, surge porque há uma percepção de que os fatos são


subjetivos, ou seja, construídos a partir da mediação de um indivíduo, que tem
preconceitos, ideologias, carências, interesses pessoais ou organizacionais
e outras idiossincrasias. E como estas não deixarão de existir, vamos tratar
de amenizar sua influência no relato dos acontecimentos. Vamos criar uma
metodologia de trabalho. (PENA, 2015, p. 50).

A objetividade, portanto, deste ponto de vista, é um ideal normativo, vindo


para contrapor-se ao jornalismo partidário que antecedeu o conhecido hoje. Ele
caracteriza uma ficção fundadora da imprensa, e induz a certas práticas profissionais
com o objetivo de legitimar os jornalistas, e protegê-los contra possíveis ameaças à
integridade. A partilha da objetividade como uma cultura da atividade jornalística faz
com que os profissionais se vejam e sejam vistos de determinada forma:

Os jornalistas ocupam uma posição particular no contexto das outras


profissões intelectuais, as quais, muitas vezes estão associadas com
determinados valores fundamentais: a medicina com a vida e a morte, o
direito com a justiça. No caso dos jornalistas, o valor específico mais citado
é o compromisso com a verdade o qual suscita a referência à objectividade
[sic]. (SCHUDSON, 1978 apud CORREIA, 2011, p. 139).

Desta percepção de exposição surge a teoria elaborada pela socióloga Gaye


Tuchman (1993 apud PENA, 2015, p. 52), que trata a objetividade como uma espécie

30
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

de ritual estratégico de proteção dos profissionais:

A metáfora usada por Tuchman é clássica: “os jornalistas invocam a sua


objetividade quase do mesmo modo que um camponês mediterrâneo põe
um colar de alhos à volta do pescoço para afastar os espíritos malignos”.
Além da apresentação de possibilidades conflituosas, os profissionais da
imprensa usam outras três estratégias para formar o próprio “colar de alhos”:
o uso judicioso das aspas, a apresentação de provas auxiliares e a própria
apresentação da notícia na forma de pirâmide invertida, com a utilização do
lide. (PENA, 2015, p. 52).

Entretanto, por se tratar de concepções que mesclam o objetivo da técnica


ao subjetivo do humano, já é praticamente impossível distinguir se há como ser
fiel aos principais pontos orientadores da prática jornalística tradicional, como a
impessoalidade, a objetividade e a simplicidade. O repórter, ao contrário do que se
pensa, não é uma máquina repetidora do acontecimento puramente retratado; não
age com a frieza de uma máquina fotográfica. Pelo contrário, ele participa da sua
construção através do relato. A partir de então, intervém fatores de natureza pessoal,
social, ideológica, entre tantos outros. Assim, a objetividade

só pode ser sustentada enquanto tal se for teoricamente relacionada com


os modelos transmissivos da informação, centrados na difusão unilateral
de dados codificados por um emissor através de um canal até um receptor
que os descodifica e os envia ao destinatário. Ora, sabe-se que o cérebro
humano não se limita a reproduzir um saber mas a recriá-lo, a reproduzi-lo
e a reinterpretá-lo num processo complexo em que intervêm esquemas de
interpretação, informações prévias e em que a própria emoção (DAMÁSIO,
1995), anteriormente reduzida ao papel de ruído no modelo emissor-receptor
também intervêm de forma imprescindível [sic]. (MEDITSCH, 2002, p. 12-13
apud CORREIA, 2011, p. 145).

Toda esta discussão envolve um espectro abrangente de variáveis que alteram o


sentido de inviolabilidade da profissão de jornalista. Fatos são abstratos, naturalmente.
E a ocorrência deles faz com que a relevância se explique em mais de um conceito.
Correntes de pensamento divergentes explicam o fenômeno:

Na perspectiva objectivista, a realidade social surge como um dado a


priori que o jornalista deve observar de forma a reconstituir fielmente. Na
óptica «construtivista», a «realidade» e a «informação» são entendidas como
construções sociais e não como um conjunto de dados preexistentes [sic].
(CORREIA, 2011, p. 143).

Os preceitos jornalísticos estão cada vez mais em uma linha tênue, seja no que diz
respeito aos confrontos entre práticas editoriais e representação honesta da realidade;
seja na percepção do acontecimento tratada pelo editor, pelo repórter e pelos envolvidos;
ou na falta de espaço e tempo, que leva o jornalismo a cada dia apelar ao pouco
raciocínio, à instabilidade crítica, à seletividade, entre tantas outras determinantes.
Para entender o que se passa, é relevante desconstruir alguns conceitos.

31
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

A crítica à objetividade, entretanto, não indica um abandono do relato com


seriedade e comprometimento, transparência, profundidade, exatidão e equidade
(CORREIA, 2011). Mais que isso, faz com que se pensem os contextos nos quais a
informação é produzida, já que “a objetividade é definida em oposição à subjetividade,
o que é um grande erro, pois ela surge não para negá-la, mas sim por reconhecer sua
inevitabilidade” (PENA, 2015, p. 50).
Neste panorama, o conceito de objetividade do jornalista se firma como ato falho
porque, ao orientar que se descreva os fatos como aparecem, seria uma abstenção,
como forma de distanciamento do diálogo com a realidade. Um abandono da
interpretação em nome do uso apenas do que é evidente. De acordo com Lage (1979
apud GENRO FILHO, 2012), a competência profissional passa, deste modo, a ser
medida com base na observação conformada dos acontecimentos do dia a dia.
Porém, quando escolhe privilegiar aparências, e reordená-las no texto; ao suprimir
algumas ideias e incluir outras, ordenando-as de maneira diferente, e reordenando
o fluxo natural da realidade para que possa ser representada, o jornalista “deixa
inevitavelmente interferir fatores subjetivos. A interferência da subjetividade,
nas escolhas e na ordenação, será tanto maior quanto mais objetivo, ou preso às
aparências, o texto pretenda ser” (LAGE, 1979, p. 25 apud GENRO FILHO, 2012).

Não há neutralidade quando se escreve, mas o ponto de vista de quem


escreve, pois o enunciador tem uma visão de mundo e manifesta-a em
seu texto. (...) mostra-se na seleção dos dados relatados e na organização
textual. (...) Tudo isso mostra que, mesmo quando o enunciador não toma
partido explícito, o enunciado manifesta um ponto de vista, uma visão de
mundo. (FIORIN E SAVIOLLI, 1992, p. 416 apud VICCHIATTI, 2005, p. 28).

Partindo do mesmo ponto de vista desenvolvido por Lage (2004), deve-se


considerar que o universo da atividade jornalística envolve uma série de fatores
“ocultos” ao público, como, por exemplo o perfil editorial adotado pelas empresas de
comunicação. Outra variável que, geralmente, se traduz em alterações de enfoque e
abordagem dos acontecimentos, de acordo com os interesses da empresa (no caso
da grande mídia brasileira, da família) que esteja à frente da coordenação do meio
de comunicação. Assim, “(...) se mesclam o público e o privado, [em que] os direitos
dos cidadãos se confundem com os do dono do jornal [no caso da imprensa escrita].
Os limites entre uns e outros são muito tênues” (CAPELATO, 1988, p. 18). Então,
entende-se que:

Se fosse possível praticar a objetividade e a neutralidade, a batalha pelas


mentes e corações dos leitores ficaria circunscrita à página de editoriais, ou
seja, à página que veicula a opinião dos proprietários de uma determinada
publicação. Elmer Davies, falecido editor norte-americano, tinha, inclusive,
uma sugestão que é definitiva em termos de culto à objetividade. Ele
propunha que os jornais publicassem, na primeira página, o seguinte aviso:
“Para a verdade sobre o que você lê abaixo, veja a página editorial”. (ROSSI,
1980, p. 10).

Na tentativa impossível de espelhar a realidade, o jornalismo atual é mecânico,


32
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

calculista, automático, frio. Noticia de maneira segmentada e não situa o público


na notícia (VICCHIATTI, 2005). A atualidade e a superficialidade destas práticas são
consequência do ritmo e da periodicidade que acabam por deixar pelo caminho
informações que são importantes para que o público tenha noção aprofundada do
fato noticiado. Por isso, o jornalismo tem uma premissa: precisa ser útil. Dar ao público
não a sensação de que o cotidiano não é apenas uma sequência empilhada de fatos
ocasionais. “A imprensa fracassa, nesse sentido, tratando os assuntos à base de
flashes que, instantaneamente, devem fazer com que o povo logo os esqueça e esteja
pronto para absorver – e consumir – o que vem a seguir” (VICCHIATTI, 2005, p. 57).
Na construção da informação, primeiro, o jornalista seleciona os eventos que
serão abordados ao longo da matéria; depois, ordena estes fatos, para, por fim,
fazer uma identificação dos que tomaram parte dos eventos (SOUZA, 1996). Sobre
isso, Bucci (2000, p. 30) diz que ao jornalismo cabe “perseguir a verdade dos fatos
para bem informar o público, que o jornalismo cumpre uma função social antes de
ser um negócio, que a objetividade e o equilíbrio são valores que alicerçam a boa
reportagem”, a base e o princípio da profissão, ao lado da entrevista.
Portanto, a partir do fator estético, deve-se pensar que é possível noticiar sem ser
sensacionalista, e sem esquecer que a matéria-prima do jornalista vem do contato
com pessoas. O manejo da linguagem, com responsabilidade e ética faz com que se
possa recorrer a um relato mais humanizado (VICCHIATTI, 2005; GUARESCHI; BIZ,
2013). E um dos passos em direção a este tipo de abordagem seria tentar tomar um
olhar infantil do mundo. Não como indício de insuficiência, incompletude mental ou
de pouco desenvolvimento da capacidade crítica. Justamente o contrário.
A “virgindade de pensamento” de alguém que viveu pouco, à qual se refere Vicchiatti
(2005, p. 34), é uma ferramenta a ser explorada pelo jornalista para “captar elementos
originais e ampliadores de seu tema”, que se escondem no metodismo e dureza da
visão adulta. O olhar livre, criativo e questionador visto em crianças, no texto não
deve ter a ambição ingênua (esta, sim, prejudicial) de encontrar toda a verdade; mas
se envolver – de certa forma, mantendo a empatia possível (e, consequentemente,
envolver o público) no acontecimento, com recursos narrativos e descritivos que dão
à imprensa a prática de ficcionalizar o mundo real em suas representações.

O ser humano não expõe, puramente, as coisas – dobra-as, mascara-as,


conforme o modo como as vê. Ao trabalhar com o acontecido presente em um
passado imediato, aquilo que o jornalismo apresenta não é a realidade, mas
sua representação, com toda a subjetividade que um olhar pode carregar.
O jornalismo está sempre em um presente, narrando o que é passado,
porém, em um passado muito próximo, atual. Faz uma reconstrução desse
passado, mas sem jamais conseguir recuperar o real em sua totalidade.
Enquanto a literatura pode transfigurar a pessoa real em personagem
fictícia, utilizando-se do real possível, o jornalismo busca o real/verdade
para compor a narrativa, mas enfrenta a influência de conhecimentos
anteriores, de conceitos pré-concebidos, de história de vida, de experiências
que antecederam o fato. Dessa forma, seu olhar sofre essa influência que
certamente será transmitida na narrativa. A verossimilhança pode ocupar o
lugar da verdade como matéria-prima do texto jornalístico. Compõe o texto

33
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

a vivência do narrador que o elabora. O texto jornalístico é, por isso, um


intertexto. (VICCHIATTI, 2005, p. 91-92, grifos do autor).

E é por este intertexto que passa a influência do jornalista na construção da


realidade representada pela mídia. Na composição da perspectiva do jornalismo como
ferramenta que atribui sentido ao cotidiano do público, a função social na qual se funda
a informação que é base ao discurso jornalístico é, também, o que norteia a atuação do
jornalista, em uma relação contínua (e complexa) com o mundo social. Um servindo de
referência ao outro, em uma construção de contextos e narrativas cíclica e interminável.

Notas

1 Esta é uma versão adaptada do primeiro capítulo do Trabalho de Conclusão de


Curso da graduação em Jornalismo do autor, entitulado “Função social, mediação da
comunicação de massa e a construção da realidade: uma análise de edições online
de El País Brasil e Jornal do Brasil”, e apresentado ao fim de 2015.
2 O deadline é a linha da morte; o fim da linha. No jornalismo, indica o prazo
final para a entrega de qualquer material, além de orientar jornalistas em horários de
fechamento de jornais, revistas e outras publicações. Depois do deadline, o material
corre o risco de cair, ou seja, não ser mais tão relevante, a ponto de deixar de ser
publicado, em qualquer que seja o meio de comunicação.

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35
Jornalismo e narrativa: aspectos do
estado da arte das pesquisas no Brasil 1

Mirian Redin de Quadros


Juliana Motta
Lara Nasi

1. Considerações iniciais

Ao relatarmos um determinado acontecimento, uma história de vida, ou mesmo


ao sintetizarmos uma obra ficcional, oferecemos a nosso interlocutor uma narrativa:
ordenamos os fatos dentro de uma lógica temporal, atribuímos papéis aos sujeitos
implicados, recorremos a memórias e molduras simbólicas. Ao narrar, atribuímos
coerência e sentidos a elementos da experiência vivida.
Neste capítulo, compreendemos a narrativa como uma abordagem teórica e
metodológica para análise dos produtos culturais como fenômenos de mediação e
vinculação social. A literatura, a história, a ciência e, hoje, de forma mais acentuada,
o jornalismo, são formas narrativas que assumem o papel de mediar, explicar e
orientar a experiência do homem no mundo, seus valores e modos de agir.
A narratividade do texto jornalístico, sob essa perspectiva, não se localiza no
produto final, como uma obra fechada, mas em seu processo de produção, como um
modo de articular experiências e sujeitos, dentro de um contexto lógico e temporal.
Mais que um mero conjunto de procedimentos técnicos de escrita, o jornalismo é um
fenômeno cultural e, como tal, está atrelado às tensões que permeiam a realidade.
A narratividade no jornalismo, assim, não se limita à análise das textualidades, mas
as considera inseridas em uma historicidade, dotadas de vinculações sociais e como
resultado de modos de produção institucionalizados.
Tomando essa perspectiva como norteadora, apresentamos neste artigo alguns
aspectos do estado da arte das pesquisas que abordam o jornalismo pelo viés da narrativa.
O objetivo é refletir acerca da aplicabilidade desta abordagem, identificando potencialidades
e desafios. Para tanto, partimos de uma breve discussão teórica inicial e, em seguida,
apresentamos os resultados de uma análise empírica de caráter quanti e qualitativo. A
partir de um corpus composto por 96 artigos apresentados em três dos principais eventos
científicos nacionais da área da Comunicação – Intercom, Compós e SBPJor – no período
de 2012 até 2016, realizamos o mapeamento dos principais objetos empíricos, autores
de referência e os métodos empregados em reflexões que se voltam à análise de produtos
jornalísticos por meio do referencial teórico e metodológico da narrativa.

2. A narrativa como perspectiva teórica e metodológica para o estudo do jornalismo

Se as teorizações sobre a narrativa como ato configurador são relativamente


recentes, frente aos esforços dos teóricos Estruturalistas e Formalistas, que se
36
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

dedicavam, em meados do século XX, a investigar a existência de uma estrutura


lógica comum a todas as narrativas (MOTTA, 2013), o ato de narrar em si tem sua
origem com a própria humanidade. Barthes (2008) já afirmava que não há povo sem
narrativa. É por meio das narrativas que o complexo mundo que nos cerca vai sendo
decifrado. Desde o princípio da comunicação oral, os seres humanos se utilizam de
práticas narrativas para relatar acontecimentos, para registrar a História, inventar
estórias2, transmitir conhecimentos e valores.
Para Leal (2013), a experiência humana só se torna compreensível pela sua
narrativização. Segundo o autor, “uma narrativa [...] não é uma simples modalidade
textual. É um modo de apreender o mundo, de dar sentido à vida” (LEAL, 2013, p.
29). Aplicada ao jornalismo, a narrativa não se resume a um modo de fazer, mas, sim,
um modo de compreender o próprio jornalismo: um produto simbólico, uma forma de
conhecimento, tal qual a história ou a ciência, que busca ordenar e explicar a realidade.
Nesse sentido, Carvalho (2012a) defende que, fora da narrativa, os acontecimentos
são meras ocorrências singulares e isoladas, rupturas na normalidade da vida que só
adquirem sentido ao serem narrados e, assim, organizados de forma coerente, dentro
de uma lógica temporal e de um determinado contexto: “Narrar, portanto, é ação de
permanente atualização, é a capacidade humana de tornar a atualidade mais do que um
momento que logo em seguida se perderá na memória” (CARVALHO, 2012b, p. 173).
Cremilda Medina (2003) compartilha desta visão acerca da narrativa, ainda
que não se fundamente na obra do filósofo francês Paul Ricoeur, como grande
parte dos pesquisadores brasileiros que adotam essa perspectiva. Para ela, a
narrativa é uma resposta humana diante do caos, um esforço pelo retorno à
estabilidade: “dotado da capacidade de produzir sentidos, ao narrar o mundo,
a inteligência humana organiza o caos em um cosmos” (MEDINA, 2003, p. 47).
A autora ainda salienta que, ao narrar os fatos, o homem configura uma outra
realidade, de caráter simbólico.
Para Motta (2013, p. 33), as narrativas não apenas representam a realidade,
mas “apresentam e organizam o mundo, ajudam o homem a construir a realidade
humana”. Esse processo é descrito na obra de Ricoeur (1994), a partir da articulação
do tempo e da narrativa, no modelo de um círculo virtuoso, que ele denomina de
tríplice mimese3. Esse círculo parte de um mundo pré-figurado, uma estrutura
pré-narrativa da experiência (mimese I), que é configurada narrativamente, ao se
extrair uma história sensata de uma pluralidade de acontecimentos (mimese II).
A terceira etapa (mimese III) seria o encontro do texto com o leitor, na refiguração
da narrativa, que Ricoeur também descreve como a intersecção entre o mundo
configurado pela narrativa e o mundo no qual a ação efetiva ocorre (RICOEUR,
1994). Ricoeur não aborda, necessariamente, o texto jornalístico, mas afirma
que seu esforço é no sentido de compreender como os conceitos aristotélicos da
composição narrativa podem se aplicar a toda e qualquer produção.
Bird e Dardenne (2016) afirmam que considerar as notícias como narrativas

não nega o valor de considerá-las como correspondentes da realidade exterior,


afetando ou sendo afetadas pela sociedade, como produto de jornalistas ou

37
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

da organização burocrática, mas introduz uma outra dimensão às notícias,


dimensão essa na qual as ‘estórias’ de notícias transcendem suas funções
tradicionais de informar e explicar. As notícias enquanto abordagem narrativa
não negam que as notícias informam; claro que os leitores aprendem com as
notícias. No entanto, muito do que aprendem pode ter pouco a ver com os
‘fatos’, ‘nomes’ e ‘números’ que os jornalistas tentam apresentar com tanta
exatidão. Estes pormenores – significantes e insignificantes – contribuem
todos para o bem mais amplo sistema simbólico que as notícias constituem.
Os fatos, nomes e detalhes modificam-se quase diariamente, mas a estrutura
social na qual se enquadram – o sistema simbólico – é mais duradoura.
(BIRD; DARDENNE, 2016, p. 359).

São as narrativas de cada sociedade e de cada época – entre as quais incluímos


o jornalismo – que ensinam e orientam o ser humano sobre o mundo, seus valores
e modos de agir. Estudar o jornalismo como narrativa é, portanto, reconhecer este
caráter configurador, intimamente relacionado à cultura. Nesse sentido, Motta (2012)
defende que o jornalismo seja interpretado como uma forma de experimentação da
realidade. Para ele, as narrativas jornalísticas são esboços instáveis e provisórios do
real, em constante configuração e reconfiguração. O jornalismo enquanto narrativa
seria responsável, portanto, por ordenar de forma preliminar nossas experiências
e os acontecimentos do presente, inserindo-os em enredos pré-figurados e, assim,
tornando-os compreensíveis e aceitáveis.
Ao mesmo tempo em que se parte desse reconhecimento, o estudo do jornalismo
à luz das narrativas implica também em desafios. Romper com uma lógica de
análise que enxergue o texto fechado em si, sem relação com as relações sociais
que o produzem e adotar, na esteira de Motta, “uma postura antropológica mais
vasta e cultural” (2013, p. 119), implica estudar as narrativas como produções
relacionada a novos modos de apreender a realidade e interpretá-la a partir de
novos métodos. É preciso, portanto, desenvolver ferramentas e procedimentos
metodológicos que busquem ir além das textualidades e considerem todo o contexto
de produção e recepção das narrativas jornalísticas, bem como a historicidade e
as vinculações sociais que permeiam estes produtos simbólicos.
Ainda não há uma consolidação de métodos e técnicas para o estudo das
narrativas associadas a seu contexto. Motta (2007; 2013) é quem apresenta uma
sistematização mais consistente de movimentos de análise, articulando conceitos
oriundos do Estruturalismo, da Hermenêutica e da Pragmática. A Análise Crítica da
Narrativa (MOTTA, 2013) – ou Análise Pragmática da Narrativa (MOTTA, 2007) –
ainda não é consenso entre os pesquisadores brasileiros, como veremos adiante.
Sem um arcabouço metodológico constituído, portanto, neste trabalho buscamos
observar e mapear os movimentos metodológicos feitos pelos pesquisadores
que estudam o jornalismo à luz das narrativas para compreender como tem sido
realizada a pesquisa na área no Brasil, com base nos trabalhos apresentados nos
principais eventos nacionais na área.

38
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

3. Composição do corpus e procedimentos de análise

A seleção dos artigos para o mapeamento proposto nesta pesquisa se deu por
meio de sucessivos movimentos. Inicialmente, optamos por buscar textos publicados
entre 2012 e 2016, nos anais de três dos principais congressos nacionais da área
da Comunicação, promovidos pela Associação Nacional dos Programas de Pós-
Graduação em Comunicação (Compós), pela Sociedade Brasileira de Estudos
Interdisciplinares da Comunicação (Intercom) e pela Associação Brasileira de
Pesquisadores em Jornalismo (SBPJor).
Valendo-nos dos mecanismos de busca on-line disponibilizados pelas
entidades promotoras dos congressos, pesquisamos por artigos que utilizavam
os termos “narrativa” e “jornalismo” 4 como palavras-chave ou no título do texto.
Nessa primeira etapa, alcançamos um total de 217 de artigos. Em seguida,
nosso segundo movimento de triagem buscou identificar, entre esses textos,
aqueles que empregavam a narrativa como perspectiva teórico e metodológica,
alinhando-se à abordagem que apresentamos anteriormente. Ou seja, nosso
olhar voltou-se aos artigos que aplicavam a narrativa para o estudo do jornalismo,
compreendendo-o como processo ou ato linguístico de ordenamento, mediação
social e produção de sentidos. Esse critério implicou no descarte dos trabalhos que
se voltavam à análise da narrativa sob um viés estruturalista, em que a narrativa
é interpretada como formato ou estrutura textual, bem como desconsiderou os
artigos que, apesar de apresentarem o termo “narrativa” no título ou entre as
palavras-chave, não desenvolveram nenhum tipo problematização ou discussão
teórica acerca do conceito.
Após esses movimentos, selecionamos 96 artigos para a análise individualizada,
em que buscamos observar como a narrativa vem sendo aplicada nos estudos
sobre jornalismo. Nesta etapa, elencamos como critérios os seguintes itens:
identificação da Instituição de origem do(s) autor(es) do artigo, objeto empírico e
mídia analisados, autores convocados para o embasamento teórico, existência de
descrição dos procedimentos metodológicos, aplicação de análises da narrativa
(AN)5 como método, autores de referência metodológica e, por fim, o emprego de
outras técnicas ou métodos de pesquisa combinados.
A análise individualizada dos artigos gerou dados de caráter quanti e qualitativo
que nos permitem tecer algumas observações e inferências quanto à aplicação
da perspectiva teórico-metodológica da narrativa nos estudos do jornalismo.
Apresentamos e discutimos nossos principais resultados no tópico a seguir.

4. A narrativa aplicada nas pesquisas sobre jornalismo:


aspectos do estado da arte

Entre os 96 artigos selecionados, encontramos 15 trabalhos de cunho teórico e 81


textos que apresentavam resultados de pesquisas empíricas. Quanto às instituições
de ensino e pesquisa de origem dos autores, foram registradas 43 instituições
brasileiras distintas. A distribuição das pesquisas por regiões pode ser observada na
Figura 1, a seguir:
39
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

Figura 1: Distribuição dos artigos por regiões geográficas

Fonte: elaboração das autoras

Como podemos observar, a maior parte das pesquisas sobre narrativa e


jornalismo concentra-se em instituições de ensino superior (IESs) da região Sudeste,
totalizando 23 instituições distintas. Na sequência, identificamos dez IESs na região
Sul, quatro na região Centro-Oeste, três na região Nordeste e três na região Norte.
Destacam-se as universidades: Federal de Minas Gerais (UFMG), com dez trabalhos;
Federal Fluminense (UFF), com nove trabalhos; Federal de Santa Catarina (UFSC),
com oito artigos, e a Federal de Juiz de Fora (UFJF), a Universidade de Brasília (UnB) e
a Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc) cada uma contabilizando seis trabalhos
apresentados envolvendo as temáticas narrativa e jornalismo.
Os 15 trabalhos de cunho teórico que compunham nosso corpus de pesquisa
apresentavam textos de revisão bibliográfica, com caráter ensaístico e também
propostas metodológicas. As temáticas abordadas eram diversas, desde reflexões
epistemológicas sobre o próprio jornalismo – entendido como uma narrativa, como
forma de conhecimento ou como mediação dialógica, para citar alguns exemplos
– até problematizações acerca da linguagem jornalística, práticas e formatos,
como aproximações entre narrativa jornalística e científica, entre as narrativas
policiais no rádio e na televisão, questões de gênero e sexualidade, humanização
das narrativas, entre outras.
Quanto às pesquisas empíricas, observamos o tipo de mídia analisada tendo como
base teórica e/ou metodológica o conceito de narrativa. Os dados obtidos podem ser
visualizados no gráfico a seguir:

40
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

Figura 2: Tipo de mídia analisada

Fonte: elaboração das autoras

Percebe-se que a aplicação da abordagem da narrativa em estudos que têm como


objeto empírico mídias impressas se sobressai6. Somente os artigos que analisam
jornais impressos correspondem a 28% das mídias (foco de análise em 32 artigos) a
que se detinham as análises nos artigos examinados. Se somarmos esse índice aos
que se referem a outros veículos impressos, como as revistas (19 artigos) e os livros-
reportagem (10 artigos), esse indicador aumenta consideravelmente, chegando a 54%
das mídias indicadas nas análises. Meios digitais também alcançaram um percentual
significativo, com aplicação em 16 pesquisas. Dentre essas, porém, seis limitavam-
se a análises textuais, desconsiderando os demais recursos digitais e, dessa forma,
assemelhando-se aos artigos que tinham como objeto produtos jornalísticos impressos.
O predomínio das pesquisas com mídias impressas pelo viés da narrativa pode ser
explicado pela questão metodológica. As pesquisas com meios impressos são as que
se revelam mais acessíveis aos pesquisadores, possivelmente em função da facilidade
de acesso ao registro do texto, que é uma das principais “camadas” a que se dedicam
os estudos das narrativas.
Já as pesquisas voltadas à análise de meios audiovisuais foram identificadas em
17 artigos, cujos objetos são produtos radiofônicos (cinco artigos) e televisivos (12
artigos). Ainda que em menor número, em comparação com os meios impressos,
estes estudos demonstram o esforço dos pesquisadores brasileiros em desenvolver
adaptações metodológicas para a análise de narrativas que vão além da linguagem
verbal, considerando também recursos sonoros e imagéticos.
No âmbito metodológico, buscamos identificar nos artigos a descrição dos
procedimentos metodológicos, a realização de análises da narrativa, a aplicação de
outros métodos e a combinação entre ambos.
Em relação ao detalhamento da metodologia empregada, encontramos 36 artigos
que, de alguma forma, descreviam as escolhas, passos ou ferramentas de análise.
O resultado obtido, que corresponde a 37,5% do nosso corpus, à primeira vista, nos
pareceu baixo; ao interpretá-lo, contudo, observamos questões que nos levam a
relativizar esta primeira impressão. É preciso considerar que o percentual alcançado se
41
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

refere ao universo total de artigos analisados, entre os quais se encontram 15 textos de


cunho teórico e ensaístico, baseados principalmente em revisões bibliográficas, o que
torna a descrição dos procedimentos metodológicos desnecessária. Além disso, nossa
amostra foi composta por artigos apresentados em eventos científicos e posteriormente
disponibilizados em anais, publicações que estabelecem critérios e formatos
específicos, geralmente limitando a extensão dos textos. Essa condição, possivelmente,
leva os autores a suprimir da redação do artigo o detalhamento metodológico, com
vistas a dedicar maior espaço às discussões teóricas e à apresentação dos resultados
da pesquisa. Por fim, quanto à descrição dos procedimentos, podemos ainda ventilar
a possibilidade de que a falta de detalhamento metodológico tenha relação com
a instabilidade de uma Análise da Narrativa mais consolidada enquanto método de
pesquisa no campo do Jornalismo (assim como da Comunicação, de maneira geral).
É interessante observamos a proximidade entre os dados obtidos em nossa análise
e estudos anteriores. Martinez e Iuama (2016), ao realizarem um mapeamento dos
pesquisadores brasileiros que estudam narrativas, também perceberam a prevalência
de pesquisas empíricas em relação às teóricas. Além disso, outro dado interessante
registrado pelos pesquisadores, e que dialoga com nossas constatações, é em relação à
descrição dos procedimentos metodológicos. Entre os pesquisadores que participaram
da pesquisa realizada por Martinez e Iuama (2016) por meio de questionários, 82,61%
afirmaram descrever explicitamente os procedimentos metodológicos em seus trabalhos,
ao que os autores ponderam: “seria apropriado, em um estudo futuro, aprofundar
a questão, uma vez que as abordagens metodológicas ainda são superficialmente
descritas nos estudos brasileiros” (MARTINEZ; IUAMA, 2016, p. 8). Ou seja, ainda que os
próprios pesquisadores brasileiros afirmem dedicar-se à descrição dos procedimentos
metodológicos, na prática, isso ainda não acontece de maneira a contribuir para a
consolidação da AN como método de pesquisa no campo do jornalismo.
Em nosso corpus, encontramos 37 trabalhos que entendemos que desenvolvem
análises da narrativa. Essa identificação se deu ora de forma clara, com a referência
explícita no texto, ora por inferência nossa, a partir dos objetivos do artigo e da descrição
dos procedimentos metodológicos. Apesar de não haver um método estabilizado,
percebemos um esforço por parte dos pesquisadores em propor percursos de análise.
Os 37 trabalhos que desenvolvem AN representam 38,5% dos textos, uma quantidade
significativa, especialmente considerando que dos outros 59 trabalhos da amostra, 15
têm viés teórico, entendendo a narrativa como forma de interpretar o jornalismo.
Excetuando-se as análises da narrativa, observamos também a aplicação de
outros métodos. Em 34 artigos, o equivalente a 35% do corpus, os autores empregam
outras técnicas e métodos de pesquisa, de forma complementar à AN ou articulando o
referencial teórico embasado nos estudos sobre narrativa. Entre os métodos utilizados,
cinco já bastante consolidados no campo da Comunicação: Análise de Conteúdo (seis
artigos), Entrevista (dois artigos), Análise do Discurso (um artigo), Grupo Focal (um
artigo) e Estudo de Caso (um artigo). Encontramos, ainda, um texto que aplicava
uma análise semiótica, baseada no conceito de abdução de Charles S. Pierce, dois
trabalhos que apresentavam como metodologia análise textual (um que explicitava o
método e outro que reconhecemos por inferência), um artigo que realizava pesquisa

42
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

empírica de inspiração etnográfica e outro que propunha uma análise com base na
caracterização de reportagens hipermídia. Quatro artigos empregaram procedimentos
de caráter quantitativo e, ainda, outros quatro trabalhos cujos métodos não foram
identificados pelos autores e que não pudemos reconhecer por inferência.
Quanto à aplicação combinada de análises da narrativa com outros métodos,
encontramos dez trabalhos: três utilizavam a Análise de Conteúdo (AC) enquanto os
outros empregavam, cada um deles, Análise do Discurso, Estudo de Caso, Grupo Focal,
análise de enquadramento, revisão histórica, modelo de caracterização de análise
de reportagens e um método identificado apenas como quantitativo. Percebe-se, nos
resultados obtidos neste item, uma leve tendência à aplicação combinada das análises
da narrativa com métodos de caráter quantitativo, em que se enquadra Análise de
Conteúdo. Essa possibilidade é sugerida por Gouvêa (2015), que indica a aplicação da
Análise de Conteúdo para análises das narrativas. Segundo a autora, a AC “se insere
em um movimento exploratório que reúne informações e prepara tanto o pesquisador
quanto a própria narrativa jornalística para a análise tematológica” (GOUVÊA, 2015, p.
214). Ou seja, ao concentrar-se no estudo da superfície textual, a Análise de Conteúdo
auxilia na compreensão discursiva das representações simbólicas construídas pelas
narrativas, bem como dos sentidos e representações sociais e culturais implícitas.
Observamos, por fim, nos 96 artigos selecionados, quais os autores e principais
obras foram utilizados para embasar teoricamente a discussão sobre narrativa e
também para fundamentar a aplicação metodológica. Quanto ao primeiro item,
identificamos 74 autores diferentes convocados para as discussões. No gráfico a
seguir (Figura 3) podemos visualizar os 16 mais citados:

Figura 3: Principais autores citados nas discussões teóricas sobre narrativa

Fonte: elaboração das autoras

Nota-se, ao observarmos a Figura 3, que as principais referências teóricas que


embasam a perspectiva da narrativa nos artigos analisados é o pesquisador e professor
brasileiro Luiz Gonzaga Motta (UnB/UFSC) e o filósofo francês Paul Ricoeur. Esta
constatação vai ao encontro do levantamento realizado por Martinez e Iuama (2016),
que também observaram a prevalência das obras de Luiz Gonzaga Motta e Paul Ricoeur
43
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

como principais referências utilizadas pelos pesquisadores brasileiros.


Em seguida, nossa análise também identificou como autores mais citados os
pesquisadores e professores Cremilda Medina (USP), Muniz Sodré (UFRJ) e Fernando
Resende (UFF). Interessante observar que entre os pesquisadores brasileiros mais
citados, pelos menos dois deles (Motta e Resende) fundamentam-se também em
Paul Ricoeur.
No âmbito metodológico, novamente, a principal referência é Luiz Gonzaga Motta,
cujos textos foram mencionados 24 vezes. Destacam-se aqui os livros Análise Crítica da
Narrativa (MOTTA, 2013) e Narratologia: teoria e análise da narrativa jornalística (MOTTA,
2005 a); o capítulo Análise Pragmática da Narrativa Jornalística, publicado no livro
Metodologia da Pesquisa em Jornalismo (LAGO; BENETTI, 2007); e o artigo homônimo
apresentado no Congresso Nacional da Intercom de 2005 (MOTTA, 2005b). Outras nove
referências remetem à obra de Paul Ricoeur, oito delas relacionadas à obra Tempo e
Narrativa (1994), e uma ao livro A memória, a história, o esquecimento (2007). Há uma
menção a dois diferentes textos de Cremilda Medina, A arte de tecer o presente (MEDINA,
2003), e Atravessagem: reflexos e reflexões na memória de repórter (MEDINA, 2014).
Ainda figuram como referências metodológicas o texto de Leal (2013) O jornalismo à luz
das narrativas, o Dicionário de Narratologia, dos portugueses Carlos Reis e Ana Cristina
M. Lopes (2007), uma menção a um texto de Gustavo Said (UFPI) e duas referências que
remetem a Walter Benjamin. O destaque alcançado pela obra de Motta nas pesquisas
brasileiras parece se justificar, justamente, por representar o principal esforço de
sistematização metodológica nos estudos de narrativa aplicados ao jornalismo.

5. Considerações finais

O mapeamento dos trabalhos apresentados nos últimos cinco anos em congressos


da área da comunicação envolvendo jornalismo e narrativa oferece-nos alguns
indicativos e inferências para compreender o modo como se está configurando uma
outra narrativa: esta sobre um novo viés para os estudos em jornalismo. A pluralidade
de abordagens revela a adoção de diferentes caminhos metodológicos, ao mesmo
tempo em que demonstra que há poucas aplicações sistematizadas de uma Análise
da Narrativa como método de pesquisa.
Ao longo dos últimos cinco anos houve um aumento significativo na produção
acadêmica que articula a narrativa como perspectiva para o estudo do jornalismo. Se o
referencial teórico está claro, ainda há desafios para a composição de sistematizações
metodológicas, tanto do ponto de vista do objeto, quanto dos métodos e recursos para a
análise. A predominância de pesquisas com produtos impressos, ou com textos escritos
disponíveis on-line, aponta para as dificuldades metodológicas implicadas no trabalho
com outros formatos narrativos, como os audiovisuais e sonoros. Para além do âmbito do
objeto, os desafios parecem estar presentes, principalmente, numa análise da narrativa
para o jornalismo, capaz de associá-la aos seus contextos de produção. A menção à
obra de Luiz Gonzaga Motta como principal referencial metodológico em nosso corpus
parece apontar justamente para a busca da adoção de uma sistematização da AN,
como propõe o autor, ainda que o método não esteja estabilizado.

44
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

Ao observar nosso corpus, percebemos, ainda, que o esforço dos pesquisadores


em jornalismo para analisar as narrativas busca superar os recursos da narratologia
e na produção dos formalistas e estruturalistas, que, embora proponham diferentes
ferramentas para a análise, centram-se nos aspectos internos do texto. Nesta
pesquisa, notamos que, mesmo os trabalhos que se voltam às textualidades buscam
alcançar as vinculações sociais e os sentidos implícitos nos textos, denotando uma
preocupação em romper com o texto em si como única superfície de análise. O desafio
para um método de análise mais estabilizado, portanto, parece-nos passar pela
sistematização de um arcabouço metodológico, sem prender-se às regras formalistas
e considerando as especificidades do texto jornalístico, indissociável do contexto
social em que é produzido.

Notas

1 Esta é uma versão ampliada e revisada do artigo apresentado no GT


Comunicação, Linguagens e Narrativas do I Simpósio Internacional de Comunicação,
realizado em agosto de 2016, em Frederico Westphalen (RS).
2 O uso do termo “estória” acompanha o posicionamento de Motta (2013), que
remete à distinção entre history e story, na língua inglesa, atribuindo ao segundo
termo um caráter narrativo e subjetivo. O uso de história, sob essa perspectiva, estaria
mais ligado aos relatos da historiografia.
3 Ricoeur busca em Aristóteles a referência à mimese, conceito que, originalmente,
remete a uma imitação. Ricoeur, entretanto, emprega o termo para designar não uma
cópia, mas uma versão da realidade. Para o filósofo, a atividade mimética promove
uma ruptura com o referente real e uma transposição metafórica deste. A mimese
ricoeuriana, assim, corresponde a um processo de recriação do mundo pela ação
narrativa do homem.
4 Consideramos também, nesta etapa de triagem, variações do termo, como,
por exemplo, “radiojornalismo”, “telejornalismo”, “fotojornalismo”, bem como
combinações de palavras-chave, como “narrativas jornalísticas”.
5 Optamos por utilizar a referência à aplicação metodológica da narrativa no plural
por entendermos que ainda não há um método definitivo e consolidado. O uso de
análises da narrativa, dessa forma, contempla as diferentes propostas metodológicas
desenvolvidas pelos autores dos artigos examinados.
6 Em números absolutos, o total de mídias analisadas chega a 115, extrapolando
o número de artigos que compõem o corpus. Isso se dá em função de que em vários
trabalhos os autores apresentaram estudos envolvendo objetos midiáticos distintos.

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46
Análise pragmática da narrativa: Teoria
da narrativa como teoria da ação comunicativa

Luiz G. Motta

Introdução

A configuração de uma narrativa pública é hoje uma prática viva, transmidiática e


intertextual (Scolari, 2009). Cada um de nós participa cotidianamente de uma rede de
construção de significados públicos a partir de fragmentos de informações extraídos
do fluxo midiático, através dos quais procuramos compreender nossas vidas. Como
observa Silverstone (1999), entramos e saímos constantemente do espaço das mídias
impressa, eletrônica e digitais e nelas nos abastecemos e reabastecemos.
Essa cultura midiática e digital substituiu a sociabilidade tradicional,
transformou-se em uma nova textura geral da experiência (Berlin, 1997), uma
mundanidade mediada (Thompson, 1998). Nesse caleidoscópico fluxo e refluxo de
socialização travam-se as batalhas discursivas pela hegemonia dos significados,
representações e senso comum. Na cultura da convergência (Jenkins, 2008), as
narrativas públicas se configuram através da intersecção de uma multiplicidade
de fontes e plataformas: cada fragmento acrescentado distende a narrativa para
trás, para adiante ou para os lados, reatualiza significados deixando os relatos em
um permanente estado de suspensão.
Até recentemente, a analise da narrativa concentrava-se no enunciado, no relato
enquanto um produto acabado possuidor per se de um sentido autônomo. O foco se
centrava na descoberta de estruturas recorrentes da narrativa que revelassem sua
organicidade interna como um sistema fechado sobre si mesmo, com moto próprio:
uma totalidade integral que agregava descrições de ações em um transcorrer sucessivo
rumo a um desfecho. Categorias como significante e significado e a correlação que
os une: encadeamento, seqüência, composição, duração, ritmo, função e outros
desempenhavam um papel fundamental nas análises. O importante era desvelar as
constantes internas que compunham um modelo universal da intriga. Esse modelo de
análise imanentista, inspirado no estruturalismo - episteme hegemônica na segunda
metade do século passado - revelou-se por si mesmo insuficiente para compreender
a dinâmica das narrativas na sociedade moderna.
A nova textura geral da experiência em redes exige procedimentos de análise mais
dinâmicos que aqueles fornecidos pela linguística ou a teoria literária, principais fontes
da epistemologia narratológica há até pouco tempo. O esgotamento da narratologia
estruturalista suscitou a necessidade de instrumentos capazes de capturar a
comunicação narrativa. Esses instrumentos já estavam se consolidando bem antes
do advento das mídias digitais. A dinâmica das novas modalidades e suportes apenas
tornou o modelo imanentista ainda mais obsoleto. O presente ensaio propõe que a
47
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

narrativa seja compreendida não mais como um discurso, escrita ou fala, mas como
uma ação cujo protagonismo, voz e perspectiva dos sujeitos narrador e destinatário
na coconstrução do sentido sejam incorporados a uma análise crítica que privilegie
as performances dos sujeitos na enunciação narrativa.
É no bojo das alternativas epistemológicas trazidas pelo linguistic turn que
uma narratologia crítica brotou. As inspirações vieram das teorias dos filósofos da
linguagem H. P. Grice (1957; 1969), J. H. Austin (1962), J. R. Searle (2001; 2002;
2002a), e outros. E se abasteceram nas sistematizações da pragmática no final
do século passado (Reyes, 1994; van Dijk, 1987 e 2000; Vidal, 2002). Aqui, não
posso recuperar as variadas proposições do linguistic turn nem as contribuições
da pragmática.1 No presente ensaio, não ofereço uma sistematização teórico-
metodológica acabada de um novo caminho epistemológico. Essa tarefa exigirá
maior maturação intelectual.
Há, aqui, apenas um esboço conceitual e metodológico preliminar que sugere
interpretar as narrativas como atos de fala dinâmicos e circunstanciais, não como
produtos fechados sobre si mesmos. Proponho-me esboçar formulações preliminares
de uma narratologia crítica, ainda nascente, que parece representar uma radical ruptura
com os modelos anteriores. Não tenho a pretensão de criar uma nova narratologia,
obviamente. Até porque a maioria das ideias aqui ensaiadas são importadas de
teorias desenvolvidas em outras áreas do conhecimento. Apenas tento produzir a
síntese de um projeto de interpretação de narrativas que parece promissor, no qual a
narratologia ganhe um status mais antropológico, para além dos restritos limites da
linguística e da teoria literária.
No projeto de uma narratologia crítica aqui esboçado, sigo em parte a teoria
pragmática dos atos de fala, segundo a qual os atos enunciativos “são operações
em contexto, como funções de contexto em contexto” (Levinson, 2007/352, grifo
meu), entendidos estes como um conjunto de proposições que descrevem crenças,
conhecimentos, compromissos e ideologias dos participantes. Quando uma narrativa
é enunciada, acontecem mais coisas que apenas a expressão do seu significado, pois
o conjunto de fundo também é alterado. A contribuição que uma enunciação fornece
à mudança do contexto é a força ilocucionária, ou potência do ato de fala. A tese de
Levinson, com a qual concordo, é que essa força é irredutível à questões de conteúdo,
verdade ou falsidade do enunciado, pois constitui um aspecto do significado que não
pode ser capturado pela semântica veridicional. “O lugar próprio da força ilocucionária
é o domínio da ação, e as técnicas adequadas para a análise devem ser encontradas
na teoria da ação, não na teoria do significado” (Levinson, 2007,312, grifo dele), uma
maneira inteiramente pragmática de lidar com a força ilocucionária.
Sigo também a hermenêutica crítica de Paul Ricoeur (1983,46/7), para quem o
discurso é um evento realizado no presente, que remete ao seu locutor mediante um
conjunto complexo de indicadores. O caráter do evento vincula-se, assim, à pessoa
que fala. Mais ainda, o evento consiste no fato de alguém falar, tomar a palavra
para expressar-se a respeito de algo: refere-se a um mundo que pretende descrever
ou representar. Neste sentido, o ato de fala é a vinda à linguagem de um mundo
mediante o discurso, e não somente um mundo, mas também o outro, outra pessoa,

48
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

um interlocutor ao qual o locutor se dirige. É da tensão entre estes dois pólos que
surge a produção do discurso como obra (o sentido). O que a hermenêutica deve
compreender, diz Ricoeur, “não é o evento, na medida em que é fugidio, mas sua
significação que permanece”.2 A obra (a narrativa) traz uma proposição de mundo
“que não se encontra atrás do texto como uma espécie de intenção oculta, mas diante
dele como aquilo que a obra desvenda, descobre, revela” (1983, 58).
Em trabalho anterior, sugeri que a narratologia deveria deslocar-se da teoria
literária para tornar-se um procedimento multidisciplinar de caráter cultural e
cognitivo, envolvendo a interpretação de mitos, ideologias e os valores canônicos
e políticos da sociedade (Motta, 2013). O presente ensaio pretende avançar nesse
rumo, até porque nunca antes a rotina de vida das sociedades foi tão permeada por
uma complexa enxurrada de narrativas como hoje. Cognitivamente, elas configuram
o sentido ordinário da vida. Cotidianamente, somos inundados por biografias, mini-
contos, breves romances, reportagens, filmes, documentários, telenovelas, canções,
videoclipes, videogames, histórias em quadrinhos, desenhos animados, comerciais
de TV, anedotas, diários de vida, breves relatos do facebook, whatsapp, Instagram
e outras redes sociais digitais. Através das novas tecnologias, o público tomou
para si um protagonismo maior do contar. Nunca antes nossas estórias foram tão
compartidas, tornando mais densa e complexa a rede coletiva de narrativas públicas.
Nunca antes fomos tão narradores, e simultaneamente destinatários, de nossas
próprias aventuras. A vida contemporânea se desenvolve sob um mar de relatos
híbridos e fragmentados que se emendam uns aos outros, entretecendo uma teia
virtual de narrativas na qual estamos todos enredados. Provenientes de diferentes
plataformas, descontínuos e dispersos, fáticos ou fictícios, locais ou universais,
comerciais ou públicos, informativos ou puro entretenimento, poucos desses relatos
alcançam constituir-se peças literárias. São erráticos, efêmeros e caleidoscópicos.
Mal ou bem, entretanto, os relatos públicos configuram as narrativas multimidiáticas
ou transmidiáticas da modernidade, e constituem o mar de híbridas histórias que
confirmam a hegemônica cultural da convergência.

Teoria da narrativa como uma teoria da ação

A tese de Paul Ricoeur no tomo I de seu reconhecido ensaio Tempo e Narrativa


(1994) é que a operação de configuração da tessitura de uma intriga extrai sua
inteligibilidade de sua faculdade de mediação entre a prefiguração (processo de
produção) e a refiguração (processo de recepção). Ou seja, a obra eleva-se do fundo
opaco do viver e agir para ser dada por um autor à um leitor que a recebe, e assim
muda seu agir. A hermenêutica ricoeuriana, dessa forma, preocupa-se em reconstruir
o arco inteiro das operações da experiência: a obra media entre autores e receptores. O
desafio, segundo ele, é a reconstituição do processo concreto pelo qual a configuração
(mimese II) faz a mediação entre a prefiguração (mimese I) e sua refiguração (mimese
III). Assim, o autor subordina a questão do encadeamento narrativo à determinação
da função mediadora da intriga: ela media entre o momento da experiência prática
que a precede e o estágio da experiência receptora que a sucede.3

49
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

Se é verdade que a intriga é uma imitação das ações humanas, quem a compõe
parte de uma pré-compreensão do mundo, suas estruturas inteligíveis, simbólicas e
temporais; e sua competência para articular a representação das ações em uma trama.
Mais importante ainda, diz Ricoeur, é observar que quem compõe age com certas
motivações a fim de produzir certos estados de espírito. Torna-se então importante,
observa ele, identificar o agente enunciador e seus motivos. Ademais, prossegue,
agir é sempre agir ‘com’ outros: “a interação pode assumir a forma de cooperação,
de competição ou luta” (Ricoeur,1994,89). A compreensão narrativa deve, pois, ser
estabelecida entre a teoria narrativa e a teoria da ação: “Compreender uma história
é compreender ao mesmo tempo a linguagem do ‘fazer’ e a tradição cultural da qual
procede a tipologia das intrigas” (pág. 91).
Pelo lado da recepção, observa Ricoeur, “a narrativa tem seu sentido pleno
quando é restituída ao tempo do agir e do padecer”, no momento em que é lida,
vista ou ouvida. A recepção, segundo ele, “marca a intersecção entre o mundo do
texto e o do leitor”. O mesmo ‘pano de fundo’ da cultura, de historias vividas e
(ainda) não contadas, imbricadas umas às outras, sobre as quais as novas histórias
emergem, opera aqui: “Narrar, seguir, compreender histórias é só a ‘continuidade’
dessas histórias não ditas” (pag. 116). No ato de ler, diz ele, o receptor reconfigura
e conclui a obra: “É o leitor, quase abandonado pela obra, que carrega sozinho o
peso da tessitura da intriga” (pág. 118). O ato de leitura, conclui ele, é “o último
vetor da configuração do mundo da ação sob o signo da intriga” (pág. 118). Não
preciso prosseguir com a rica argumentação de Paul Ricoeur a respeito da narrativa
como uma teoria da ação comunicativa. Ficou evidente que configurar e refigurar
uma intriga são ações protagonizadas por sujeitos vivos e ativos, são performances
linguísticas movidas por motivações e intenções recíprocas. As breves citações
acima são suficientes para indicar uma total reviravolta proposta por ele (e outros
autores) na teoria e análise da narrativa, pois a teoria da narrativa torna-se uma
teoria da ação comunicativa. É nessa direção que procederei rumo a uma análise
pragmática, a ela anexando o adjetivo crítica pelo seu potencial de contextualizar a
interpretação narrativa e revelas as relações de poder.
É importante trazer a palavra avaliadora de Paul Ricoeur a respeito da narrativa
como ato de fala por causa da respeitabilidade dele no campo da narratologia.
Entretanto, Ricoeur não é uma referência fundamental na teoria dos atos de fala,
que provém da filosofia da linguagem. Até pouco tempo atrás, filósofos e linguistas
estavam preocupados com a competência linguística de cada frase ou texto e
sua correspondência com a verdade. A virada aconteceu em meados do século
passado, quando alguns filósofos explicaram que falar não é somente emitir
frases para comunicar informações: a fala realiza coisas para além dos conteúdos
proposicionais, e o mais importante talvez não seja a sentença proferida, e sim o
que ela obtém como seu efeito independente de sua condição de verdade. Toda
vez que falamos, realizamos um ato de fala: faço uma pergunta, dou uma ordem,
explico ou predigo algo, etc.4
Ou seja, para além dos conteúdos, há uma força implícita na fala, que o filósofo John
Austin (1962) chamou de ilocução. Os potenciais efeitos desses atos junto aos receptores,
ele chamou de atos perlocutivos. Os atos ilocutivos detém quase sempre uma intenção
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Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

realizativa: pretendem algo. A mente do sujeito falante impõe intencionalidade aos sons,
imagens ou textos, conferindo a eles um significado relacionado à realidade.5 Para J.
Searle (2001, 127), seguidor de Austin, o significado é uma forma de intencionalidade
derivada: a intencionalidade intrínseca do pensamento do falante se transfere às
palavras e frases pronunciadas. Mas, a intenção de comunicar não coincide sempre
com a intenção de significar. Comunicar é obter que o outro reconheça a minha intenção
de produzir certo efeito, obter que o outro capte o meu significado.
Se transplantamos essas reflexões da filosofia da linguagem para a narratologia,
torna-se relevante redefinir a narração (ou enunciação narrativa) como um ato de fala
comunicativo porque os relatos sempre implicam em efeitos não necessariamente
referenciados no texto: as narrativas são por natureza irônicas, trágicas, cômicas, etc.
Cada uma delas quer produzir determinado efeito de sentido, muitas vezes apenas
subentendido. Assim, precisamos partir de uma definição de comunicação que descreva
adequadamente o processo de narração como um ato de fala narrativo com seus
possíveis efeitos de sentido. Encontro essa definição em Levinson (2007, 19), que diz:

“A comunicação consiste no fato de o emissor intentar fazer com que o


receptor pense ou faça alguma coisa, simplesmente fazendo o receptor
reconhecer que o emissor está tentando causar tal pensamento ou a ação.
Portanto, a comunicação é um tipo complexo de intenção, que é realizada ou
satisfeita simplesmente por ser reconhecida. No processo de comunicação,
a intenção comunicativa do emissor torna-se conhecimento mútuo para o
emissor (F) e o receptor (O). Isto é, F sabe que O sabe que F sabe que O sabe
(e assim ad infinitum) que F tem esta intenção específica”.

Os atos de comunicação (incluindo a narração) são regidos por acordos implícitos


entre os interlocutores que tornam possível entender o significado literal, mas também
inferir outras significações a partir da força ilocutiva do enunciado. Esse acordo virtual
revela a intenção de quem fala e sugere uma interpretação cooperativa de quem lê,
vê ou escuta uma história. Ajustamos automaticamente esses acordos em nossas
relações cotidianas com os nossos diversos interlocutores readaptando continuamente
as nossas expectativas e as deles, tornando cada fala um ato de comunicação uma
ação singular e circunstancial. Assim, o que se diz não é necessariamente o que se
comunica em cada situação: há diversas implicaturas e pressuposições insinuadas,
gestos, dêiticos, etc. Os dêiticos (sutis referências de espaço, tempo, hierarquia
social, etc.) são particularmente relevantes porque revelam a importância do contexto
comunicativo para a compreensão dos significados. Conforme observa Levinson
(2007), os dêiticos gramaticalizam traços do contexto na enunciação e revelam como
a interpretação das narrações depende da consideração do ambiente da enunciação
(voltarei à questão dos dêiticos adiante).
Por sua natureza criativa e argumentativa, a enunciação narrativa é rica em
implicaturas e pressuposições que direcionam a fala rumo a inúmeros efeitos de
sentido (espera, suspense, susto, sofrimento, riso, assombro, medo, etc.). Elas estão
presentes na própria estruturação dramática do texto, na criação do suspense, no amplo
uso de figuras de linguagem (metáforas, ironias, hipérboles), na intertextualidade, na

51
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

ênfase e hierarquia lexicais que põem a comunicação narrativa em funcionamento.


O uso intencional desses recursos de linguagem constitui a dimensão pragmática da
comunicação narrativa: significados virtuais que decorrem das intencionalidades do
sujeito narrador e das interpretações do sujeito receptor (os atos ilocutivo e perlocutivo).
As intenções do autor e sua realização (ou não) no ato de recepção são os dois extremos
de uma atividade de comunicação em que o texto funciona como o nexo entre os
interlocutores. Ou seja, a comunicação narrativa visa provocar mudanças no estado de
ânimo das pessoas, podendo eles serem positivos quando favorecem a auto-afirmação
(amor, compreensão, compaixão), ou negativos quando a desfavorecem (medo, ira,
inveja) (Motta, 2006). Embora brevemente, creio ter enumerado até aqui argumentos
suficientes para justificar que o relato não é mera representação da vida, mas um ato
comunicativo impregnado de força ilocutiva: realiza sempre uma interlocução criativa.
Nesta vertente pragmática, a teoria da narrativa distancia-se da teoria literária para
tornar-se uma teoria da ação comunicativa. Seu uso deixa de atender apenas à crítica
literária ou estética para tornar-se uma metodologia crítica dos atos narrativos.

A dimensão crítica da pragmática

A disciplina da pragmática é relativamente recente entre as teorias da linguagem.


Sobre a pragmática narrativa, não há literatura específica. A própria teoria dos atos de
fala só há pouco saiu do campo da filosofia e começou a se constituir em um projeto
metodológico mais consistente. Não há sequer uma definição precisa nem delimitação
do alcance da pragmática (Levinson, 2007; Dascal, 2006).6 Ela surgiu como uma
disciplina um tanto marginal, que se ocuparia das coisas que a semântica e outras
disciplinas linguísticas desprezavam (as pressuposições, subentendidos, ironias, etc.),
a chamada “cesta de lixo” de Gottlob Frege, ou resíduos de outras teorias (Reyes,
1994; Dascal, 2006). O interesse atual pela pragmática decorreu da percepção geral
que a língua é utilizada para comunicar, e a comunicação é mais que um conteúdo
proposicional. A partir daí, filósofos, linguistas, psicanalistas, antropólogos e outros se
deram conta da necessidade de considerar o contexto dinâmico do uso da linguagem,
a performance e motivações (intencionalidades) dos sujeitos interlocutores.7
Há consenso que a pragmática refere-se ao estudo do uso que os sujeitos interlocutores
fazem da linguagem em um determinado contexto comunicativo (Reyes, 1994). Das
condições que determinam o emprego de um enunciado concreto por parte de um falante
concreto em uma situação de comunicação concreta, tanto quanto a interpretação de parte
de um destinatário (Vidal, 2002). Isso torna a pragmática um procedimento empírico que
estuda como os sujeitos interlocutores usam e interpretam enunciados em determinado
contexto de comunicação, o que revela o potencial dela para tornar-se uma teoria crítica,
e nos anima a perseguir um projeto teórico e metodológico que pode revelar-se promissor
para a narratologia.
Transplantar as propostas da pragmática para um projeto de narratologia é
certamente uma atitude problemática que suscita inúmeros desafios não tratados
aqui. Porém, nada me impede de ousar reconhecendo a necessidade de refinamentos
posteriores. Me dedicarei em seguida a dois aspectos particulares da pragmática

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Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

que requerem uma atenção imediata devido à dimensão metodológica deles em uma
narratologia crítica: 1) o protagonismo dos atores; 2) o contexto comunicativo e os
dêiticos. Antes, porém, uma advertência sobre o uso do adjetivo ‘crítica’ na análise
que proponho: a meu ver, a possibilidade de incorporar o contexto nos procedimentos
de análise consolida uma pragmática expandida como uma teoria crítica.8 O adjetivo
crítica tem aqui um valor particular,. Ele não implica formar juízos de valor, e sim assumir
uma proficiência metodológica que incorpore de maneira rigorosa e fundamentada
o papel dos interlocutores e os elementos do contexto comunicativo e cultural nos
próprios procedimentos, o que dá à análise da comunicação narrativa um alcance
social e histórico e a remete às relações de poder.9

Protagonismo de narradores e destinatários

A primeira contribuição relevante da pragmática para o projeto de uma narratologia


crítica é levar em conta o protagonismo dos sujeitos interlocutores - narrador e
destinatário - nos procedimentos de análise, tema para o qual me volto agora. Mais
que uma questão de identidade dos atores, é necessário que o analista conheça
os papéis sociais dos sujeitos, suas intenções comunicativas e as relações de força
entre eles (posição social, hierarquia, diferenças de gênero, etc). A pragmática chama
o sujeito enunciador de emissor, mas na teoria narrativa é mais adequado denominá-
lo narrador, termo que adotarei por conferir a essa figura um ativo protagonismo.
Diferente da teoria literária clássica, na pragmática, o narrador é um sujeito empírico
que atua no momento em que emite sua narração com os seus valores, vontades
históricas, e uma performance comunicativa concreta.10
Da mesma maneira, o destinatário é também um ativo sujeito (ou sujeitos) empírico
que se engaja no ato comunicativo por vontade própria, com a sua memória, seus
valores e ideologias. O destaque, portanto, é a performance dos sujeitos interlocutores.
O que move ambos é a vontade coletiva de fazer sentido. Na comunicação narrativa,
alguém quer utilizar as técnicas de enunciação dramática para envolver o destinatário,
ainda que essa vontade possa se realizar às vezes cooperativamente e outras vezes
conflituosamente. Mas o destinatário também participa do ato comunicativo por
vontade própria. A intencionalidade é recíproca.
O narrador é quem inicia a atividade de contar conforme sua vontade, e manipula
a linguagem a fim de obter a realização de suas intenções comunicativas. Mas, não
é só ele quem toma a iniciativa. Como diz Bakhtin (2003), o ouvinte tem igualmente
desejos, se engaja no processo comunicativo com interesses próprios, e tem posturas
ativas de resposta: pode não estar de acordo, precisa completar lacunas de sentido, se
prepara para uma outra ação, etc. A simples compreensão de um discurso, diz o autor,
tem sempre algum grau de resposta, ainda que ela só venha a ocorrer tempos depois.
Ambos sujeitos estão imbuídos do desejo de produzir sentidos e, neste sentido, são
protagonistas do ato comunicativo. A correlação de forças entre eles pode ser simétrica
ou assimétrica, hierárquica ou igualitária, pode predominar a cooperação ou o conflito.
Identificar os lugares que os sujeitos interlocutores ocupam hierarquicamente, seus
papéis sociais, suas motivações, a correlação de poder entre eles no ato narrativo é o
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Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

primeiro passo que um analista precisa dar ao se propor uma interpretação crítica.
Dissemos acima que a comunicação só se completa quando o destinatário
reconhece as intenções do falante. Isso ocorre também na comunicação narrativa.
Quando alguém escolhe contar, pretende seduzir, envolver, advertir, fazer rir ou chorar,
impactar de alguma forma o outro. O significado, como diz Searle (2001, pp.127/30)
é uma forma de intencionalidade derivada:

“A intencionalidade original do pensamento de um falante se transfere às


suas palavras e textos, […] que possuem uma intencionalidade derivada do
pensamento do falante. Elas não possuem apenas o significado linguístico
convencional, mas também o significado que o falante a elas quis dar. […]
Quando nos comunicamos com alguém, logramos que esse alguém recon-
heça nossa intenção de produzir compreensão. A comunicação é peculiar
entre as ações humanas no sentido que conseguimos produzir o efeito pre-
tendido no ouvinte ao lograr que ele reconheça a intenção de produzir esse
mesmo efeito” (tradução livre do autor).

Conforme esta perspectiva, toda narração é um ato carregado de intenções: o


narrador sempre realiza algo além de proferir uma história literal: ele não só ‘convida’
alguém a ouvi-lo, mas também busca seduzir esse alguém, modificar seu espírito,
envolvê-lo e, principalmente, fazê-lo compreender como o mundo funciona.11 As
narrativas são um meio de sensibilizar e mobilizar pessoas, obter consenso, criar o
senso comum (Bruner, 1998). Neste sentido, a construção de uma intriga (fática ou
fictícia) é o ato de organizar a realidade de uma maneira coerente e compreensível a fim
de obter a aquiescência e/ou os reconhecimentos dos interlocutores. Assim, o analista
pragmático precisa identificar no texto pistas e traços que indutivamente o permitam
chegar até as intenções de um narrador diante de um destinatário (ou vários).
Já dissemos que o envolvimento entre os sujeitos interlocutores pode ocorrer
de maneira cooperativa ou conflituosa. Em si, a relação de interlocução é sempre
solidária na medida que, no ato comunicativo, um sujeito valida a fala do outro, e
vice-versa (independente da concordância sobre o conteúdo). Na comunicação face a
face, há turnos de fala, permutas flexíveis e incessantes adaptações. Na comunicação
mediada, há pouca ou nenhuma interação, embora a interlocução sempre esteja
presente de maneira mais ou menos tangível. O mundo da vida costuma ser desigual,
há sempre assimetrias sociais e culturais (antagonismos de classe, gênero, profissão,
religião, hierarquia política, institucional ou familiar, etc.) que levam à diferentes
pontos de vista sobre os acontecimentos. Há sempre forças antagônicas operando,
e a relação de confronto é mais usual. O significado resulta de uma disputa (quase
sempre velada), mais que de cooperação (no sentido do conteúdo em questão).
Torna-se então útil compreender as narrativas como instrumentos de disputas,
estratégias de argumentação, convencimento ou cooptação. Nessa perspectiva, as
narrativas passam a serem vistas como instrumentos de naturalização do mundo e de
legitimação de papéis. Instrumentos de imposição e dominação, embora talvez seja
mais usual as situações onde elas funcionam como objetos de disputa e barganha
por uma representação mais ‘legítima’ do mundo. Como ensina Foucault (2010), o
poder flutua, vai e volta, inverte e reverte, está sempre em disputa e renegociação.
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Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

Pessoas, grupos e classes estão sempre em disputa por narrativas hegemônicas.


Há convergência, divergência e permuta constante por interpretações hegemônicas.
Conforme observa Kerbrat-Orecchioni (2006/74), a interlocução é um processo
dinâmico no qual nada é determinado de uma vez por todas, pois o tabuleiro se
modifica constantemente:

“As trocas comunicativas são o lugar de batalhas permanentes pela alta


posição (batalhas mais ou menos discretas ou alardeadas, corteses ou
brutais), quer se trate de trocas institucionalmente desiguais, nas quais o jogo
dos taxemas pode infletir, e até mesmo inverter (pelo menos provisoriamente)
a relação de lugares inicial; ou de trocas, em principio iguais, nas quais sua
ação pode constituir uma relação de dominação a priori inexistente”.

A disputa por narrativas mais ‘verdadeiras’ e mais ‘naturais’ é a força que


move os sujeitos narradores e destinatários no mundo da vida. Que razão motiva
alguém a organizar a realidade narrativamente? O que pretende alguém ao contar
uma história? Que efeitos de sentido ou estados de espirito pretende produzir no
destinatário? É por isso que afirmamos: nenhuma narrativa é ingênua, toda narrativa
realiza algo, realiza jogos de linguagem e de poder: atrair, advertir, conquistar, excitar,
motivar, cooptar, mobilizar, etc. Por isso, toda narrativa é argumentativa, pois é
dotada de intencionalidade, orienta-se para mudar espíritos, realizar determinado
efeito de sentido. Se alguém escolhe organizar narrativamente seu discurso, é porque
sabe, intuitiva ou racionalmente, que o relato é a melhor estratégia para realizar
suas intenções comunicativas. Todo narrador conhece o potencial de sedução e
envolvimento que a narrativa contém. Narrativas são dispositivos argumentativos,
representam o uso consciente ou inconsciente para criar uma cooperação induzida.
O ato de argumentar e orientar o discurso no sentido de determinadas conclusões
constitui o ato linguístico fundamental, pois a todo e qualquer discurso subjaz uma
ideologia (Kock, 2011). A argumentação constitui a atividade estruturante de qualquer
discurso, e particularmente das narrativas. É através da análise pragmática e retórica
que se conhecerá o jogo de poder e as ideologias, dos quais a narrativa é uma parte
tangível. Como nenhum ato narrativo se reproduz duas vezes, resta ao analista
identificar no texto os traços e pistas que revelem as intenções comunicativas e sua
realização (ou não). Isso torna a teoria narrativa uma teoria da argumentação, e sua
interpretação, uma análise da retórica que poderá desvelar os ardis e artimanhas. Os
jogos de poder, enfim.

Contexto e dêiticos da situação comunicativa

A segunda contribuição relevante da abordagem pragmática para o projeto de


uma narratologia crítica, com o qual pretendo concluir este capítulo, é a incorporação
do contexto aos procedimentos de análise. É a incorporação de determinantes
contextuais que dá à análise um caráter crítico e a difere de outras metodologias.
Todos os autores acima citados enfatizam a importância que o contexto e as
circunstâncias da situação de comunicação (os fatores extralinguísticos) têm no
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Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

processo de construção das representações sociais. Cada ato de fala narrativo ocorre
em um ambiente psicossocial específico que contingência tal ato, eles concordam.
Argumentando que a hermenêutica só se torna relevante devido à múltipla
significação dos textos, e que o analista-intérprete precisa ter sensibilidade ao contexto,
Ricoeur (1983, 19) observa: “A sensibilidade ao contexto é o complemento necessário,
e a contrapartida inelutável da polissemia”. O manejo do contexto, prossegue ele, põe
em jogo o discernimento da permuta concreta de mensagens entre interlocutores
precisos, atividade propriamente dita da interpretação: é preciso, pois, “reconhecer qual
a mensagem relativamente unívoca o locutor construiu apoiado na base polissêmica”.
Identificar essa intenção de unicidade na recepção das mensagens é “o primeiro e mais
elementar trabalho da interpretação”.
Quero me deter sobre alguns fatores de contingenciamento que atuam de maneira
decisiva, em maior ou menor grau, sobre a configuração das histórias. A partir de uma
breve revisão da literatura, farei ao final uma sugestão para a incorporação desses
fatores aos procedimentos de análise através da consideração dos ciclos dêiticos. O
contexto é tão importante para a passagem do significado da sentença ao significado
da enunciação que o filósofo Max Black propôs certa vez que a nascente disciplina se
chamasse contextics a fim de dar conta de “todos os aspectos do contexto relevantes
para a linguagem”. (Dascal, 2007/561). A questão metodológica da incorporação
do contexto na análise da narrativa não é, entretanto, um problema fácil. É preciso
primeiro delimitar o quê é o contexto, seus limites, e qual a sua relevância para cada
ato de fala. Isso abre um amplo leque de possíveis fatores pertinentes. O que é ou
não é estrategicamente relevante para os participantes em cada ato discursivo? Até
onde se expande o entorno que intervém no processo comunicativo? Qual é a força
determinante de cada um dos fatores?12 Mais complicado ainda é incorporar as
relevâncias contextuais nos próprios procedimentos de análise, como veremos.
Para tornar a análise definitivamente crítica, sugiro observar os fatores
extralinguísticos como instrumentos de um jogo de poder que se manifesta
nos discursos narrativos de maneira argumentativa, conforme observei acima.
Penso que uma correlação de forças proveniente do ambiente psicossocial está
sempre condicionando cada ato narrativo, mesmo aqueles atos aparentemente
despretensiosos, como uma mãe que conta um singelo conto infantil ao seu filho
ao anoitecer. Ao contar, a mãe não é totalmente despretensiosa: ela tem a intenção
de acalmar e ninar sua cria, que repassar a ele certo estado de espírito. Há uma
intencionalidade implícita no ato de contar o conto. A narrativa da mãe realiza um
ato performativo ao embalar a criança. O relato dela é um texto, mas é também uma
atividade social que existe em par com outras formas semelhantes, e com elas se
interrelaciona conforme observa (Eagleton, 2006). Assim, não há ato de fala que não
seja argumentativo, nem ato de fala que não carregue alguma carga ideológica. Uma
reciprocidade de forças, de encantamento, empatia ou mútua compulsão, próprias de
cada ação humana, move e condiciona sempre a configuração de qualquer narrativa.
O estado de espirito obtido é o resultado dessa recíproca volição. Embora a vontade
de sentido não signifique sempre afinidade, como observei acima. Haverá divergência
sempre que houver assimetria psicossocial.

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Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

Metodologicamente, como delimitar as forças que movem os atores e condicionam


cada ato de fala? A resposta a essa pergunta não é fácil. Há na literatura variadas
sugestões sobre a extensão do entorno a considerar. A maioria dos autores refere-se à
identidade dos sujeitos interlocutores, ao conhecimento compartido por eles, à situação
da comunicação (lugar e tempo), e suas circunstancias sociais. Citando Corseriu (1967),
Vidal (2002, 30) enumera seis componentes não-linguísticos do contexto que, segundo
ela, influem decisivamente: 1) contexto físico (coisas que estão à vista); 2) contexto
empírico (o estado das coisas objetivas em um momento determinado); 3) contexto
natural (totalidade de contextos empíricos possíveis); 4) contexto prático (a conjuntura
particular objetiva e subjetiva onde ocorre a fala); 5) contexto histórico (circunstâncias
históricas conhecidas pelos interlocutores); 6) contexto cultural (a tradição cultural da
comunidade dos interlocutores). Segundo Vidal, só o primeiro seria um fator externo
objetivamente descritível, os demais seriam componentes relacionais que geram
conceitualizações subjetivas. Esses componentes são sugestivos, enumerarem
possibilidades e nos advertem sobre a subjetividade da maior parte dos componentes
contextuais. É preciso levar a questão mais adiante, porém.
Vidal oferece uma contribuição própria ao discorrer sobre a ‘informação pragmática’,
um conjunto de conhecimentos, crenças e sentimentos compartidos pelos interlocutores
no momento da interlocução, que ela chama de “internalização da realidade objetiva”.
Citando van Dijk (1989), Vidal diz que a informação pragmática tem um caráter geral
(conhecimento de mundo), situacional (percepções recíprocas durante a interlocução) e
contextual (aquilo que deriva das expressões linguísticas dos discursos imediatamente
precedentes), que na sua teoria da relevância Sperber e Wilson (1986) preferem
chamar de “entorno cognitivo compartido” ao se referir às representações mentais
compartilhadas. Vidal sugere que o termo ‘entorno cognitivo’ parece modesto demais
para dar conta de toda a informação pragmática que se comparte, porque considera
que as relações sociais influem pelo simples fato de ambos interlocutores, mesmo
quando assimétricos, fazerem parte de uma mesma comunidade social.
Dascal (2006), por sua vez, afirma que todos os textos são opacos e necessitam
do contexto para serem interpretados. A função do contexto, diz ele, é fornecer pistas
para a geração de hipóteses interpretativas, cuja validade deve ser interpretada à luz
da informação referencial. Em princípio, continua ele, qualquer informação contextual
pode ser relevante, e neste sentido, é impossível restringir o contexto a determinado
conjunto de dados. Ele sugere dois tipos gerais de contexto, um metalinguístico (gênero,
normas, situação comunicativa, etc.) e outro extralinguístico (universo de referência,
conhecimento de fundo, crenças compartilhadas, hábitos e idiossincrasias do falante,
etc). E apresenta um ilustrativo gráfico de pistas interpretativas (Dascal, 2006/195-
9) que vão das estruturas linguísticas ao conhecimento de mundo compartilhado
(cultura, ideologia). O autor sugere que o analista proceda a partir de pistas (clues) e
dicas (cues). A interpretação das dicas seria um processo dedutivo, enquanto o das
pistas seria indutivo.
Por último, trago a alternativa apresentada por Levinson (2007/65) a respeito da
relação entre a língua e o contexto. Diz ele que é através da dêixis que “as línguas
gramatilizam traços do contexto da enunciação”. A partir da ideia de Levinson

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Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

desenvolvo em seguida uma tentativa de lidar com o processo de gramaticalização


dos traços do contexto nos atos de enunciação, porque ela ressalta a relevância da
dêixis. Sugiro, portanto, dar uma atenção especial à deixis, e a esta sugestão me
movo em seguida.

Deixis ampliada: a atualização do contexto nos significados

O Dicionário de Linguística de Jean Dubois (2004) define a dêixis de maneira


semelhante ao Dicionário de Retórica de A. Marchese e J. Forradellas (1998). Dêixis,
segundo ambos dicionários, seriam as coordenadas espaço-temporais da enunciação:
o sujeito refere o seu enunciado ao momento da enunciação, aos participantes da
comunicação e ao lugar em que o enunciado se produz. As referências a essa situação
formariam a dêixis, um modo particular de atualização que utilizaria o gesto (dêixis
gestual) ou termos da língua chamados dêiticos verbais. Apresentando uma classificação
restrita da dêixis, ambos dicionários citam U. Weinreich, que propõe quatro influentes
fatores da situação, organizados a partir da pessoa que fala: 1) a origem do discurso
(o eu) e o interlocutor (o tu); 2) o tempo do discurso (o agora); 3) o lugar (aqui, aí); 4)
identidades substitutas na situação.
Para Levinson (2007/74), autor do qual tomaremos emprestado as ideias para
elaborar a proposta aqui desenvolvida, a dêixis diz respeito às maneiras pelas
quais a linguagem gramaticaliza traços do contexto no ato de fala. Decorre daí
que a interpretação precisa levar em conta o contexto dêitico da enunciação, pois
só as sentenças consideradas em contextos específicos expressariam proposições
definidas: “é apenas o contexto de uso que nos diz de que maneira compreender (as
sentenças)”. Em geral, a dêixis é organizada de maneira cêntrica a partir do falante,
ancorada em pontos específicos do acontecimento comunicativo, criando os centros
dêiticos: a pessoa central é quase sempre o falante, o tempo central é o tempo em
que o falante produz a enunciação, o lugar central é a localização do falante, assim
como o centro social é a posição social e hierárquica do falante, à qual a posição dos
destinatários é relativa. Irradiando-se do falante, completa Levinson, há vários círculos
concêntricos que distinguem diferentes zonas de proximidades espacial e temporal.
A partir dele, linearmente ordenada, parte uma linha imaginaria que estabelece os
acontecimentos do passado e do futuro, etc. Apesar do autor realçar a pessoa do
falante como referência de partida, a meu ver os círculos dêiticos poderiam ser melhor
equacionadas se tomados em termos do relacionamento dele com o seu interlocutor,
conforme sugerirei aqui.
A ideia de círculos dêiticos concêntricos imaginários parece-me capaz de
representar de maneira sistemática as influências do contexto sobre os atos de fala.
Partindo da localização espaço-temporal do falante (em relação a seu interlocutor) de
onde irradiam os dêiticos, e das informações pragmáticas, os círculos concêntricos
se expandiriam desde as condicionantes situacionais mais empíricas (o aqui e agora
do ato) até as mais sutis, de caráter mais subjetivo (culturais, políticas, ideológicas),
situadas em ciclos mais externos. Por exemplo, de ‘dentro’ para ‘fora’: 1) Identidade
dos sujeitos participantes, o lugar social que ocupam, seus interesses e intenções
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Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

comunicativas; 2) Coações institucionais, normas profissionais, etc.; 3) Graus de


hierarquias entre os sujeitos da enunciação e suas condicionantes na interlocução;
5) Espaço físico e sua influência na enunciação; 6) Percepções recíprocas por parte
dos participantes dos fatores anteriores; 7) Circunstâncias históricas de ocorrência
do ato; 8) Circunstâncias culturais, crenças, mitologias, ideologias, conhecimento
de mundo compartido; 9) Memória coletiva de curto e longo prazos; 10) Percepções
recíprocas de todo este conjunto de fatores.
Não será possível aqui explorar em minúcias as sugestões e problemas que
surgem da proposta apresentada. Penso, no entanto, que a imagem de círculos
dêiticos mais internos para os mais externos pode fornecer pistas sugestivas para
as hipóteses interpretativas, tornando a interpretação menos míope. Os fatores
tomados nos círculos dêiticos concêntricos não possuem fronteiras precisas nem
devem ser tomados como ‘variáveis antecedentes’ objetivas, como já se disse.
Eles se superpõem, se influenciam mutuamente, e funcionam como uma cadeia de
indicadores psicossociais intersubjetivos. Não obstante, ao visualizar os níveis dêiticos,
o analista poderá estabelecer hipóteses consistentes a partir das quais produzir uma
interpretação mais sistemática e ordenada. Os níveis dêiticos são apenas indicadores
a partir dos quais as pistas e traços argumentativos da linguagem narrativa podem
ser interpretados de maneira mais segura. Mas atenção, os fatores que estão no
centro ou periferia (mais internos ou mais externos) não possuem per se maior ou
menor força indutora que os demais. A força determinante de cada nível do contexto
dependerá da situação concreta do ato comunicativo, assim como da pergunta de
pesquisa de cada projeto interpretativo.
Parafraseando mais uma vez P. Ricoeur, o que deve ser interpretado em um texto
narrativo é a sua proposição de mundo. Não há - observa ele - uma intenção oculta a
ser procurada detrás do texto, mas um mundo a ser manifestado diante dele. Por isso,
a interpretação precisa ser altiva e ideologicamente crítica, pois o gesto interpretativo
é uma ‘oposição’ às distorções da comunicação humana. Por outro lado, o discurso
é um evento que remete aos seu interlocutores, vincula-se às pessoas que falam e
ouvem, e a algo ao qual ele se refere (um mundo que pretende relatar e representar).
Neste sentido, completa Ricoeur (1983,46), “o evento é a vinda à linguagem de
um mundo mediante o discurso”. O que importa, pois, é a seletividade do contexto
na determinação do valor das palavras e frases a respeito de determinado evento,
pronunciadas por um locutor preciso frente a um ouvinte em uma situação particular.
Retomo, para concluir, às perguntas que originaram as reflexões deste ensaio:
como incorporar as determinantes ambientais e históricas na análise da narrativa
tornando-a uma análise crítica por natureza? Tento responder de maneira objetiva:
observando previamente quais motivações e propósitos movem os sujeitos
interlocutores a se envolverem em um ato de interlocução. Perguntando previamente
que ímpeto move um narrador a configurar certa proposição de mundo na forma de uma
história em determinada circunstância? Por outro lado, porque determinado indivíduo
ou segmento social se presta ao papel de audiência? Que interesses têm cada um
dos participantes do ato comunicativo ao se engajar no esforço de coconstruir uma
representação narrativa do mundo? Qual é o protagonismo discursivo de cada um

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Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

deles neste ato? Que circunstâncias cercam esse protagonismo? Há antagonismos?


Qual é a aparente correlação de poder entre os protagonistas?
Como observei no início deste ensaio, a textura geral da experiência é hoje
transmidiática: entramos e saímos seguidamente no espaço das várias mídias de
onde retiramos extratos de significação com os quais configuramos as nossas
representações de mundo. Nesse complexo contexto, a performance dos agentes
interlocutores tornou-se mais proeminente ainda, e a incorporação desse protagonismo
à análise, ainda mais relevante. Para levar em conta esta performance, trouxemos
aqui a sugestão de uma teoria ampliada de círculos dêiticos que, a meu ver, fornece
subsídios relevantes para a análise das narrativas como atos de fala dinâmicos e
circunstancializados. Se a análise imanentista já se revelara obsoleta pelo desprezo
ao protagonismo dos agentes, ela revela-se hoje ainda mais inapropriada frente ao
dinamismo das narrativas em permanente processos de configuração e refiguração
no interior da cultura da convergência.
Seguindo a esse raciocínio, propus neste ensaio encarar a narração como um ato
de fala comunicativo, e utilizar o modelo de círculos dêiticos concêntricos imaginários
a fim de tornar mais sistemático o processo de identificação dos traços e vestígios
do contexto no texto, modelo capaz talvez de revelar o jogo de forças de uma ação
interlocutiva concreta. Nada garante uma interpretação segura, mas creio que a
sugestão de se trabalhar com os ciclos concêntricos dêiticos oferece a alternativa de
o analista partir de um lugar mais confortável e confiável para fazer as suas induções.
As estratégias argumentativas, os subentendidos e os efeitos de sentido tornarão
mais evidentes a proposição de mundo que o texto traz, e proporcionarão uma análise
mais forte: a interpretação narrativa torna-se ipso facto uma crítica da sociedade.

Notas

1 Aos interessados, remeto à Parte 1 do meu livro Notícias do fantástico (Motta,


2006). E particularmente à coletânea de ensaios reunidos sob o título La búsqueda
del significado, de L. M. Valdés Villanueva (2000).
2 Ricoeur (1983, 56) ressalta: o que deve ser interpretado no texto é uma
proposição de mundo, “um mundo tal como posso habitá-lo para nele projetar um de
meus possíveis mais próprios”. O mundo do texto, próprio e único deste texto.
3 Ricoeur retoma este assunto no capítulo 3, tomo II, de Tempo e Narrativa
(1995) onde reconhece a necessidade do deslocamento de atenção do enunciado
para o ato de enunciação, passando para primeiro plano os jogos entre a inclusão
e exclusão de conteúdos, a ideologia em última instância. Ao final deste capítulo, o
autor explica que as noções de voz e perspectiva narrativa precisam ser incorporadas
à análise da composição narrativa. Isso se faz, diz ele, vinculando-as às categorias de
narrador e personagem. Ricoeur admite que a questão do ‘ponto de vista’ diz respeito
à composição, mas o problema da voz narrativa é uma questão de comunicação na
medida em que ela se dirige a um leitor (pág. 163).
4 Segundo J. Searle (2000), todas as enunciações caem dentro de cinco categorias
básicas: elas podem ser assertivas (descrevem como as coisas são), diretivas (levam
as pessoas a realizar coisas), compromissivas (comprometem as pessoas), expressivas
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Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

(expressam sentimentos) ou declarativas (provocam mudanças no mundo) (Searle,


2000 e 2002). Essas mesmas cinco categorias são resumidas em outras obras do
autor. Ver Searle (2001), pág. 133-35. É discutível se todas proposições cabem dentro
de apenas cinco categorias, mas por momento elas bastam para reafirmar a narrativa
como um ato de fala.
5 Autores de variadas áreas sociais desenvolveram posteriormente a teoria da
ação. No que concerne à comunicação, J. B. Thompson (1998, 20/1), por exemplo,
critica J. Austin e seus seguidores porque eles não conduziram suas reflexões para uma
contextualização social dos atos de fala. Por isso, as considerações deles tenderiam a
ser um tanto formais e abstratas, divorciadas das circunstâncias de poder nas quais
os indivíduos e instituições utilizam a linguagem no dia a dia. Para Thompson, nós
podemos retomar as observações de Austin somente se desenvolvermos uma teoria
social substantiva da ação e dos tipos de poder em que ela se baseia. Concordo em
parte com essas observações. Na proposta que apresento no presente ensaio, sigo
em direção semelhante.
6 Vidal (2002) define pragmática como uma disciplina que toma em
consideração os fatores extralinguísticos que determinam o uso da linguagem.
Reyes (1994) a nomeia como uma disciplina linguística que estuda como os seres
falantes interpretamos enunciados em contexto. Dascal (2006) diz que a pragmática
é o estudo do uso dos meios linguísticos (ou outros) por meio dos quais um falante
transmite as suas intenções comunicativas, e um ouvinte as reconhece. Levinson
(2007) define a pragmática como o estudo das relações entre língua e contexto que
são gramaticalizadas ou codificadas na estrutura da língua: o estudo apenas dos
aspectos da relação entre a língua e o contexto que são relevantes para a elaboração
das gramáticas. Van Dijk (2000) contribui com uma teoria cognitiva da pragmática,
cuja razão fundamental é estabelecer relações entre os enunciados (a linguística) e a
interação (as ciências sociais).
7 Ver Levinson (2007), especialmente págs. 42 a 56.
8 Crítica, observa Paul Ricoeur (1983, 21) citando o famoso adágio de F.
Scheleiermacher, é o “propósito de lutar contra a não-compreensão: há hermenêutica
onde houver não compreensão; romântico, é o intuito de compreender um autor tão
bem, e mesmo melhor do que ele mesmo se compreendeu”.
9 Em sua origem, a análise crítica provém do marxismo. Diversos autores
fornecem elementos estimulantes que podem, com precauções, serem transportados
para um projeto de análise crítica das narrativas. Entre os marxistas, destaco duas
obras do crítico literário inglês Terry Eagleton: Marxism and literary criticism (2002)
e Criticism & Ideology (2006), ambos originais publicados em 1976. Entre os não-
marxistas, destaco o crítico literário canadense Northrop Frye em seu The critical path
(1971), e a segunda parte de Interpretação e ideologias, de Paul Ricoeur (1983), onde
ele discute sua hermenêutica crítica.
10 Na teoria literária narrador e destinatário têm uma especificidade ontológica,
um estatuto ficcional, primordialmente textual, diferente do autor, leitor ou audiência
concretos. O narrador é o enunciador do discurso, que pode ou não corresponder a
um sujeito real (Reis e Lopes, 2007/257-8).
11 Searle (2001/81) explica assim o conceito de intencionalidade: “Meus estados
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Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

subjetivos me relacionam com o resto do mundo e o nome geral dessa relação é


intencionalidade. Esses estados subjetivos incluem crenças e desejos, intenções e
percepções, assim como amores e ódios, temores e esperanças. Intencionalidade,
repitamos, é o termo geral para as diversas formas mediante as quais a mente pode
ser dirigida à - ou referir-se à - objetos e estados de coisas no mundo”. (Livre tradução
do autor).
12 Não se trata aqui de uma questão de variáveis dependentes ou independentes,
como certa ciência social positivista professa. A medida exata da interferência de cada
fator do contexto sobre a coconstrução compartilhada das representações sociais
é uma questão cognitiva que dificilmente poderá ser delimitada com precisão, pois
o reconhecimento recíproco dos parceiros do ato interlocutivo se processa através de
sucessivas hipóteses-testes: em uma situação concreta o que o locutor faz é avançar uma
hipótese para seu interlocutor esperando que ele interprete suas motivações. Não faltam,
entretanto, inúmeras situações de mal-entendidos. No entanto, algum tipo de interferência
do contexto precisa ser assumida pelo analista no momento da interpretação. Quanto
mais seguro e maior domínio ele retiver do contexto, mais segura será a sua interpretação.

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63
Imprensa como singular-coletivo na modernidade

Eduardo Luiz Correia

Como consequência das profundas transformações iniciadas nos primeiros tempos


das revoluções Francesa e Industrial, marcos da era moderna, a Imprensa instituiu-
se em agente fundamental na estruturação dos processos de mediações entre os
demais atores sociais na sociedade. Se antes os jornais cuidavam da circulação de
informação de interesse da aristocracia absolutista, bem como de suas demais castas
adjuntas - clero e judiciário-, com os novos ares da modernidade pós-revolucionária
a atividade jornalística passou de mobilizadora dos debates panfletários nas arenas
políticas a um ente social com novo papel, ampliado e ressignificado em suas funções:
o de dar publicidade aos debates de interesse público e o de fiscalizar os demais
poderes constituídos na esfera pública.
Ao lado dos agora reconfigurados poderes do executivo, legislativo e judiciário
dos novos tempos, a Imprensa se assumiu como o”cão de guarda”(watchdog) da
sociedade civil. Nos tempos do Iluminismo, tomados pelas normas da então recém-
formulada teoria democrática tornaram-se os jornais, eles próprios, um outro poder
-agora conhecido como o “quarto poder”. Nesta linha, a intenção desta reflexão é
analisar a formação histórica e linguística do conceito de imprensa enquanto “quarto
poder”, sob a perspectiva da formulação teórica de Koselleck, a do singular-coletivo.
Representação que busca dar conta, sob uma mesma denominação, de uma
pluralidade comum em meio a várias singularidades.

O singular-coletivo

O conceito de singular-coletivo, na definição de Koselleck (2006), aponta para uma


situação em que diversas singularidades centram-se sobre um mesmo eixo semântico
definidor resultando em uma única expressão, reconfigurada, a representar aquele
novo coletivo. Um exemplo: das várias revoluções na História criou-se a “Revolução”, o
movimento a ordenar todas as ações de ruptura com o estabelecido.
Koselleck (2006) explica que “o advento da ideia do coletivo singular, manifestação
que reúne em si, ao mesmo tempo, caráter histórico e linguístico, deu-se em uma
circunstância temporal (...) entendida como a época da singularização das simplificações”.
No caso, o período da História que o historiador Eric Hobsbawn classificou de “era das
revoluções”. Época em que das várias liberdades surgiu a Liberdade; das justiças, a
Justiça. E das imprensas (ou dos jornalismos), a Imprensa. Para Koselleck (2006, p. 69),
como um singular-coletivo, o termo Revolução torna-se um “conceito meta-histórico”,
“separando-se completamente da sua origem natural e passando a ter por objetivo
ordenar historicamente as experiências de convulsão social”. Da mesma maneira, a
Imprensa, como singular-coletivo, apropriou-se de valores morais e práticas sociais no
sentido de sedimentar seu papel no funcionamento da incipiente sociedade da esfera

64
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

pública burguesa, moldada sob os ideais iluministas da Revolução Francesa e das


transformações técnicas e sociais da Revolução Industrial.
Antes de a esfera pública moderna forjar-se sob a nova estrutura da sociedade no
pós-feudalismo, a imprensa já existia como elemento mediador das relações entre o
poder e o público. A relação, no entanto, trazia os jornais como um domínio do poder
público, sujeitos à censura e voltada à divulgação dos proclamas e editais do governante
feudal. A intenção e a função da imprensa eram tornar público (no sentido de dar
ciência e/ou publicidade) para a população as determinações e decisões dos governos
aristocráticos.
Com o crescimento das cidades, o incremento do comércio e da circulação de
mercadorias na urbe, a imprensa passa então a ocupar um novo lugar: de esfera de
domínio do poder público para o de uma esfera pública crítica, independente - ou ao
menos pretensamente desamarrada do poder político do Estado - a fornecer informações
para as trocas e garantias mercantis promovidas entre atores comerciais muitas vezes
distantes entre si, bem como a denunciar desvios nas tratativas econômicas. Segundo
Habermas (2014, p. 115), “esse capitalismo estabiliza as relações de dominação
estamentais e (...) libera aqueles elementos nos quais aquelas relações antigas vão se
dissolver”. Segue o filósofo alemão: “Referimo-nos aos elementos de um novo contexto
de relações: a circulação de mercadorias e notícias criada pelo comércio a longa distância
do capitalismo inicial” (HABERMAS, 2014, p.115). Não à toa que o desenvolvimento das
atividades mercantis tem relação direta com o crescimento da imprensa. Não é sem
razão que o deus romano Mercúrio, assim como seu equivalente grego Hermes, é o
deus ao mesmo tempo do comércio e das comunicações e imprensa.
Habermas (2014, p. 21) ressalta que a esfera pública burguesa foi “formada por
um público de pessoas privadas que se reuniam pra debater entre si e mediante
razões um amplo leque de questões da vida privada, da administração pública e da
regulação das atividades da sociedade civil”. Mas uma nova classe burguesa que não
pretendia a conquista do poder estatal em si, e sim a legitimação social para “sua
origem e seu exercício; o consentimento racional entre pessoas autônomas, livres e
iguais” (HABERMAS, 2014, p. 21). A esfera pública na modernidade, portanto, funciona
como um princípio organizador da ordem pública.
Uma outra ordem pública pela qual as cidades, grandes centros de comércio,
tornam permanentes a circulação de mercadorias e letras de câmbio, dependente
de uma burocracia e normas de funcionamento que precisam ser publicizadas aos
cidadãos. Enquanto pela ordem anterior os jornais comunicavam determinações do
poder senhorial ou aristocrático, agora as publicações vão dar “publicidade” para
decisões governamentais tanto para informar quanto para dar instrumentos aos
cidadãos seja para acompanhamento da gestão da coisa pública ou para as críticas
aos seus governantes.
A imprensa, originária da mesma cepa que o sistema de correios, institucionalizou
comunicações e contatos duradouros. A anterior mediatização das autoridades
estamentais, promovida a partir da figura central do senhor feudal, abre espaço para
uma outra esfera pública, a do poder público. “Esta se objetiva na administração
pública contínua e no exército permanente. À permanência dos contratos na circulação
65
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

de mercadorias e na circulação de notícias (bolsas de valores, imprensa) corresponde


agora uma atividade estatal continuada”(HABERMAS, 2014, p.121).
Na nova estrutura da sociedade moderna, a burguesia, que não é detentora do
poder formalmente instituído (este nas mãos dos três poderes consagrados nas
revoluções e reformas democráticas de então: executivo, legislativo e judiciário), mas
de protagonismo na centralidade da vida economia, necessita de meios de controle
vindos da sociedade civil para a garantia de suas atividades, sem interferências de
outros agentes sociais que possam prejudicar ou mesmo aniquilar a natureza de seus
negócios. Os meios de controle partem, então, dos jornais. Não mais como divulgadores
oficiais do poder institucionalizado, mas como mediadores de um espaço de debates,
críticas e fiscalização. “Com o tempo, o jornalismo deixa de ser um instrumento dos
políticos e ganha uma força autônoma” (MARCONDES, 2009, p. 269).

A esfera pública crítica

Esta nova esfera pública crítica vai abastecer a população de informações por
meio da imprensa, que por sua vez vai propiciar a formação da “opinião pública” - algo
como a expressão da consciência da sociedade civil. “O sujeito dessa esfera pública
é o público como portador da opinião pública” (HABERMAS, 2014, p.94). De modo
que a sociedade civil fosse um contraponto aos poderes formais institucionalizados.
Explica Habermas que “o público pôde assumir muito melhor esse desafio mudando
o funcionamento daquele instrumento do qual a administração pública se serviu para
tornar a sociedade um assunto público no sentido específico: a imprensa”(2014, p.
132). Ela é o instrumento a habilitar a população, ou o público, a submeter a seu jugo
os governantes. Como aponta Gomes (2014, p. 223), “a esfera pública burguesa é
descrita como um âmbito normativo livre do domínio das instâncias estabelecidas e
isento do poder do Estado”.
Esse novo “lugar” do jornalismo moderno veio sendo configurado num devir
que, historicamente, iniciava-se com as gazetas venezianas, ainda no século XV.
Foram sucedidas, posteriormente, pelas chamadas folhas volantes. Acredita-se que
imprensa periódica, com regularidade de impressão, surgiu na França, em 1604,
com a La Gazette Français, e na Antuérpia, na Bélgica, no início do século XVII, com
a folha As últimas notícias (NieuweTydinghen), em 1605. Em 1616 havia um total
de 25 folhas volantes na Europa, surgindo também publicações em Londres (1622),
Florença (1636), Roma (1640) e Madri (1661). Tratam-se de impressos que retratavam
tanto o tempo da monarquia absolutista do trono francês, com uma imprensa sob
rígida censura, quanto os ares da Inglaterra parlamentarista e que, posteriormente,
atingiriam as colônias na América.
As “gazetas” da época já tinham elementos comuns aos jornais de hoje, como
textos simplificados e diretos, data e local de impressão, periodicidades mais ou menos
regulares, menção às fontes de informação, titulação, nome do editor e narrativa
cronológica. As notícias versavam sobre assuntos variados, geralmente acontecidos
nas vésperas da edição, e tinha até mesmo anúncios pagos. Porém, eram publicações
sujeitas à censura prévia, embora houvesse também as clandestinas em circulação. O

66
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

reinado do francês Luís XIV, por exemplo, valeu-se em demasia das gazetas nas ações
de comunicação e, como diz Burke (1994), do seu pioneiro projeto de marketing político.
Conforme Souza (2008, p. 80), “o aparecimento das gazetas permite afirmar que o
jornalismo noticioso é uma invenção europeia dos séculos XVI e XVII, com raízes remotas
na antiguidade clássica e antecedentes imediatos na Idade Média e no Renascimento”.
A revolução industrial, em seus dois momentos - o da máquina a carvão e o da
eletricidade -, resultaram nos processos de urbanização e de letramento (alfabetização
em massa) da população, os quais, de um modo ou outro, forneceram condições
de crescimento dos impressos nas cidades. Uma presença só possível graças aos
avanços técnicos da nova era das máquinas, tanto que nas suas primeiras edições o
Daily Mail, de Londres, publicava no alto de sua primeira página: “invenções novas e
maravilhosas acabaram de aparecer para ajudar a imprensa. Nosso tipo é feito por
máquinas que podem produzir, cortar e dobrar 200 mil jornais por hora” (BRIGGS e
BURKE, 2006, p.192-198).
Essa situação de crescimento viria a ser consolidada tempos depois com a
chamada pennypress, fenômeno jornalístico nascido nos Estados Unidos, que
daria origem ao denominado jornalismo sensacionalista como o conhecemos hoje.
Muito embora os jornais tivessem ainda em fases incipientes as características das
publicações modernas, de certa maneira, pode-se considerar que a pennypress
representou a assunção definitiva do jornal como produto mercantil, com as notícias
sendo insumos a serem comercializados, dando a matriz econômica do que seria o
polo comercial da imprensa: jornais com grandes tiragens, com exemplares vendidos
a preços baixos, tendo a notícia tanto o caráter de prestação de serviços e informações
quanto o diversional. Ou seja, com reportagens moldadas para a diversão e distração
do leitor. E ainda contando com anúncios publicitários, na combinação de que as
receitas obtidas na venda de exemplares e publicação de propagandas seriam os
sustentáculos econômicos a dar independência aos veículos perante os demais
poderes institucionalizados.

Independência e liberdade

Independência - tanto econômica quanto editorial - e liberdade seriam as palavras-


chave da imprensa moderna como singular-coletivo. Agora, então sob designação
de um coletivo e não mais como a de um apanhado de jornais de vozes diversas,
a Imprensa passa a ocupar uma “função” determinada na nova esfera pública só
possível nesta nova configuração social daqueles tempos pós-revolução.
Na definição de Bourdieu (1997), a imprensa estruturou-se num “campo” da
esfera pública, que “com seus dois polos, o econômico e o intelectual, constituiu-
se nas sociedades democráticas numa fundação onde o jornalismo partilha como
herança toda história contra a censura e em prol da liberdade” (TRAQUINA, 2005,
p.42). O próprio conceito de campo em Bourdieu também remete à modernidade e
seu tempo histórico, quando emergiram vários “campos”, enquanto espaços sociais
relativamente autônomos, dotados de regras próprias de funcionamento e critérios
internos de legitimação, onde se configuram relações de concorrência, disputa e
67
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

cooperação entre os agentes, em torno de formas de poder específicas (BOURDIEU;


1997, 2004). Como lembra Traquina (2008, p. 20), “o ‘campo jornalístico’ começou a
ganhar forma nas sociedades ocidentais durante o séc. XIX, com o desenvolvimento
do capitalismo. E com outros processos: industrialização, urbanização, educação em
massa, progresso tecnológico e a emergência da imprensa como ‘mass media’”.
Um campo, inserido numa nova esfera pública, ao qual cabem os papeis de
fiscalizador e de mediador entre os entes sociais no espaço público, cuja atividade
é atrelada a determinadas responsabilidades, como a de “zelar” pelo equilíbrio de
forças entre as demais instâncias de poder. Agora substituindo as estruturas vindas
do período pré-revolucionário pelos novos ares políticos inspirados pelos movimentos
democráticos franceses, ingleses e estadunidenses. Tempos a moldar uma nova
ordem, em sintonia com o pensamento liberal daqueles tempos.

Os iluministas não se contentaram apenas com concepções teóricas sobre o


lugar do ser humano na sociedade. Eles lutaram por aquilo que chamaram de
‘direitos naturais’ dos cidadãos. Tratava-se de uma luta que envolvia combate
à censura, ou seja, defendia-se a liberdade de expressão. No que diz respeito
à religião, à moral e à política, o indivíduo precisava ter assegurado o seu
direito à liberdade de pensamento e de expressão de seus pontos de vista.
(PAULINO, 2008, p.43).

A “herança” de crítica à censura e pela liberdade, inspirada por pensadores como


Milton, Voltaire e Rousseau, encontra eco nesse novo campo do jornalismo moderno,
instruído pela teoria democrática. É fruto neste pensamento da época o clássico
panfleto de John Milton, “Aeropagítica”, de 1644, considerado o primeiro libelo contra
a censura e pela liberdade de imprensa, assim como a proclamação da Bill of Rights
(declaração de direitos), de 1689, do Parlamento inglês. Pelo documento, reconhecia-
se as liberdades formais dos cidadãos, entre elas, a liberdade de expressão. Mainenti
(2014, p. 48) lembra que a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, aprovada
na França, em 1789, trazia em seu artigo 11: “A livre circulação de pensamento e opinião
é um dos direitos mais preciosos do homem. Todos podem portanto falar, escrever e
publicar, livremente, exceto quando forem responsáveis pelo abuso dessa liberdade em
casos bem determinados por lei”.Essa posição, posteriormente, seria complementada
pela teoria libertária da imprensa, de Thomas Jefferson, John Stuart Mill e do próprio
John Milton, segundo a qual:

A imprensa e os outros meios de comunicação devem ser de propriedade


privada e desligados (...) do governo para que possam buscar a verdade
cada um à sua maneira e colocar o governo em xeque. A imprensa pode
ser irresponsável tanto quanto responsável, imprimir a imagem de falsidade
tanto quanto a da verdade, porque os cidadãos podem separar uma da outra.
O importante na teoria libertária é a tese de que deve haver um mercado
livre de ideias, porque se todas vozes puderem ser escutadas, a verdade,
certamente, acabará por emergir. (GOODWIN, 1993, p.45 apud PAULINO,
2008, p.50).

68
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

A opinião pública

Segundo a teoria democrática, o jornalismo teria então dois papeis: um deles,


como visto, é o de promover os debates na arena pública. Seria esse o polo positivo
da imprensa. O segundo, o polo negativo, abarcaria as questões nas quais o
jornalismo torna-se o “guardião do poder”, aquele cujas “relações se assentam numa
postura de desconfiança e claramente adversarial ao poder político”, o watchdog da
sociedade, seguindo ditames do princípio da responsabilidade social da imprensa.
Desta forma, a imprensa moldou o ethos da atividade num tripé cujas pontas são
o jornalismo em si, o poder e a opinião pública. Traquina lembra Montesquieu,
para quem a centralidade da divisão de poder é fundamental no novo desenho das
estruturas sociais. Diz o filósofo francês: “Se não quiser abusar do poder, as coisas
devem ser dispostas de modo a que o poder controle o poder” (MONTESQUIEU apud
TRAQUINA, 2005, p. 44).
A postura adversarial da imprensa, conforme pregada pela Teoria Libertária,
aparece na primeira emenda (1791) da Constituição dos Estados Unidos da América.
Nesta posição de adversária ou de contraposição ao poder, os jornais têm o atributo
fiscalizador do poder governamental para que o Estado preserve sua função original.
Esse mote fiscalizador e o de promotor de ideias e debates no interior da sociedade
acaba assim legitimado pelo “lugar” social da imprensa, o porta-voz da opinião
pública. O controle do poder por meio de uma opinião pública cujos sentidos são
formados pela imprensa livre. Sarto (2016, p. 95) aponta que a opinião pública,
“desde um ponto de vista ideal e normativo, pode ser entendida como resultado
(sempre provisório) do processo de comunicação pública, que expressa um acordo
coletivo ou uma vontade geral”. Mas ressalta que o acordo coletivo tem legitimidade
apenas “na medida em que se constitui por meio de um debate livre e inconcluso”
(SARTO, 2016, p. 95).
A corrente deliberativa, uma entre várias, da teoria democrática apregoa a
questão da racionalidade nos debates da esfera pública. O confronto de opiniões e
argumentos permitiriam chegar-se num acordo coletivo, a opinião pública. Por isso,
uma imprensa livre de amarras e a democracia assentada na vontade de maioria,
expressa por essa opinião pública.
Para pensadores clássicos como Jeremy Bentham, “a opinião pública era uma
parte integrante da teoria democrática do Estado. A opinião pública era importante
como instrumento de controle social” (BENTHAM apud TRAQUINA, 2005, p.47). Assim
como Mills, que em 1831, escrevia que “...a imprensa é nosso único instrumento,
tem nesse momento a efetuar a mais delicada e exaltante função que algum poder
teve até agora que desempenhar neste país” (MILLS apud TRAQUINA, 2005, p.49).
Opinião pública a representar o interesse público, o qual, conforme Mainenti
(2016, p. 83), trata-se de “um princípio normativo do jornalismo e um dos mais
importantes critérios de noticiabilidade que orientam a produção informativa”. Pois,
dando publicidades aos acontecimentos públicos, torna-os relevantes e visíveis.
Daí sujeitos a juízo dos cidadãos. Ou melhor, do “público”, grupo de indivíduos
com um interesse comum. Neste novo contexto, uma produção informativa que
69
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
“rompe a esfera dos laços de intimidade da vida privada e se torna passível de
circular socialmente com base num ‘uso público’ desse conteúdo pela sociedade”
(Franciscato, 2005, apud SARTOR, p.84).

O “quarto poder”

A imprensa, então legitimada em seu papel de agente fiscalizador dos arbítrios


e discricionaridades dos demais poderes constituídos, ocupa seu lugar como um
“quarto poder”. A expressão foi cunhada pelo deputado do Parlamento inglês, lorde
MacCaulay (1800-1859), que num discurso em 1828 apontou para o local onde os
jornalistas acompanhavam as sessões, referindo-se aos repórteres como o “quarto
poder”, isso considerando-se as estruturas de poder à época da Revolução Francesa:
clero, nobreza e o troisième état (burguesia e povo). E complementa Traquina (2005,
p. 46) “no novo enquadramento da democracia, com o princípio de ‘poder controla
poder’ (power ckecks power), a imprensa (os media) seria um ‘quarto’ poder em
relação aos outros três: o poder executivo, o legislativo e o judicial”.
Em síntese, tem-se que “a imprensa tal como praticada contemporaneamente nas
modernas democracias, surge e se desenvolve a partir da vontade de emancipação
da sociedade civil em relação aos Estados absolutistas predominantes na realidade
europeia no período pré-iluminista” (PAULINO, 2008. p.50). Situação que lhe concedeu
a aura “institucional” legitimada de agente social a zelar pelo funcionamento da
sociedade nos novos parâmetros sociopolíticos daqueles tempos.
Para executar com propriedade sua performance na esfera pública como “quarto
poder” e ter “autoridade” no cumprimento de suas atividades publicitárias e, de certo
modo, polemicistas, a Imprensa abriga-se então sob a capa do singular-coletivo.
Se antes os jornais dedicavam-se ao fomento dos debates políticos e a notícias de
variedades ou pitorescas, sendo uma miríade dispersa de vozes na sociedade e
sem uma unidade a uni-los, tal quadro é substancialmente alterado por essa nova
conformação da sociedade moderno-burguesa. Para ter sentido, e principalmente
legitimidade, o novo papel publicista e fiscalista dos jornais necessita de uma unidade
semântica, justamente aquela fornecida por um singular-coletivo, a “Imprensa” ou o
“quarto poder”.
Desta maneira, a diversidade jornalística entre as publicações impressas ganha
uma unidade abrigada numa metonímia que junta as partes num mesmo todo,
conforme a figura de linguagem da sinédoque. Se, conforme Koselleck, das revoluções
fez a “Revolução” (o movimento a ordenar as rupturas...) das várias edições das
“imprensas” surge a Imprensa. Como aponta Marcondes (2009, p. 242): “A imprensa
ganhará coloração: será amarela, marrom; ou condição: será imprensa de qualidade,
imprensa popular, imprensa alternativa. O livro, o panfleto, depois os jornais e revistas,
tudo o que é impresso corresponderá, num sentido mais amplo, à imprensa”. Assim,
as vozes dispersas dos jornais ganham consonância numa metalinguística de discurso
único graças à função institucional a ela deliberada pela nova sociedade civil, formada
na também nova esfera pública da modernidade.

70
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

Considerações finais

Apesar de a Imprensa ao longo da História, como pretendemos demonstrar aqui,ter-


se consolidado como um singular-coletivo e ser (re)conhecido como o “quarto poder”,
há várias críticas que podem ser feitas ao seu papel de mediador da esfera pública
na contemporaneidade. Conforme alguns autores (HABERMAS, 2003;GOMES, 2009;
MORETZSOHN, 2008; LIMA, 2006), com a transformação da imprensa num meio de
comunicação de massa, principalmente a partir do início do séc. XX, tornando-se um
empreendimento capitalista voltado ao lucro, como todos os são, os jornais ficaram
suscetíveis aos seus próprios interesses enquanto negócio. Neste aspecto, muitas
de suas posições, sob aparência de representarem a «opinião pública», guardam
intenções que são, na verdade, as suas próprias ou de agentes sociais específicos.
O jornalismo assumiu «o modelo da imprensa empresarial, não mais entendida
como um conjunto de serviços sociais destinados a suprir a arena da opinião civil,
mas como um sistema industrial de serviços voltados para prover o mercado de
informações segundo o interesse das audiências» (GOMES, 2009, p.75). Para
Habermas (2003), a redação do jornal tem «correlação» com a venda de anúncios, de
forma que, ao invés de atentar para o interesse público coletivo volta-se para atender
determinados grupos do público enquanto pessoas privadas, o que abre espaço para
a defesa de interesses privados na esfera pública.
Segundo Moretzsohn (2008, p.13), «nada é inocente, a começar pela conceituação
de ‹quarto poder›, que subverte o sentido de mediação jornalística e a apresenta como
uma espécie de fiel da balança, escondendo os interesses na seleção e hierarquização
da informação». E, por fim, tem-se que o interesse público foi incorporado pela
imprensa, nesse escopo do singular-coletivo, em seu discurso identitário, servindo
como autolegitimador de sua ação na sociedade. Mas que não dispensa divergências
ou críticas em sua práxis dos tempos atuais. Como sentencia Lima: «O conceito de
jornalismo como ‹quarto poder› livre, desvinculado de interesses econômicos e porta-
voz da opinião pública está totalmente superado pela realidade histórica. O ‹quarto
poder› se transformou em uma grande ilusão» (2007, p.1).

Notas bibliográficas

No fim do século XVII, surge o termo inglês publicity, derivado do francês publicité.
Na Alemanha, a palavra aparece no século XVIII. A própria crítica se apresenta na
forma de öffenctlichenMeinung (opinião pública), termo que se formou a partir de
opinioi publique na segunda metade do século XVIII. Quase simultaneamente surge
na Inglaterra publicopinion; contudo muito tempo antes já se falava de general opinion
(HABERMAS, 2014, p.134).

Bibliografia

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internacional. Florianópolis: Insular, 2008.

72
As temporalidades no jornalismo:
do acontecimento às narrativas

Marta Regina Maia


Michele da Silva Tavares

Introdução

Este texto apresenta uma reflexão sobre as temporalidades possíveis que constituem,
atravessam e tangenciam o fazer jornalístico, sobretudo as narrativas jornalísticas
em suas múltiplas facetas. Cabe destacar que não se trata de uma reflexão sobre a
influência do tempo nas rotinas produtivas das redações, embora reconheçamos que o
tempo de produção também é um elemento determinante das narrativas jornalísticas.
Entendemos que há um tempo de produção diferente para cada dispositivo nas
diferentes plataformas onde essas narrativas estão disponíveis (TV, Impressos, Web,
Rádio, etc.). Mas não é sobre formato ou suporte que trata nossa reflexão.
Inquieta-nos pensar o tempo como um fio condutor dos acontecimentos que nos
afetam na esfera da experiência diária e, mais ainda, instiga-nos a refletir sobre a
forma como o jornalismo tece temporalidades em suas narrativas, com tessituras
que demarcam presente, entrecruzam passado e norteiam o futuro ao tratar de
determinados acontecimentos.
O jornalismo e suas práticas estão comumente associados às temporalidades,
visto que o tempo presente, território próprio da área, não se configura sem as marcas
do passado e sem as fendas abertas para o campo dos possíveis ou das expectativas
do futuro. Vítima de certo preconceito por parte de outros campos do conhecimento,
visto que, muitas vezes, assumiu o discurso do “presentismo” de maneira absoluta,
o jornalismo (ou “os jornalismos” dada as novas configurações do campo) configura-
se como o espaço da intersecção entre as várias épocas, assumindo um lugar
proeminente para se refletir e conhecer as histórias de determinadas comunidades,
pessoas, fenômenos e lugares do mundo contemporâneo.
A noção sobejamente disseminada de que o jornalismo seria o lugar do efêmero
e do superficial perde lugar para narrativas jornalísticas que extrapolam o lugar
institucional das redações dos veículos tradicionais como jornais, revistas, emissoras
televisivas ou radiofônicas ou ainda os sites noticiosos. Com o advento de novos
formatos e suportes - como documentários, podcasts e livros -, além de novas
formas de organização da atividade jornalística - como os financiamentos coletivos -,
ampliam-se as possibilidades de tratamento dos fatos, fenômenos e acontecimentos
que traduzem o leitmotiv do campo.
A potência trazida por este novo cenário convoca a reflexão sobre a temporalidade,
afinal se o tempo não existe de maneira absoluta, há que se pensar sobre as relações
que podem ser estabelecidas entre o presente, o passado e o futuro no campo
humano, território por excelência do jornalismo. É preciso, portanto, problematizar o
73
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

modo da operacionalização dessas relações, compreendendo o papel do jornalismo


na percepção dos sujeitos e acontecimentos no tempo social.
Nessa perspectiva, compreendendo que o jornalismo, de maneira direta ou
indireta, participa ativamente desse circuito temporal, esse capítulo pretende
trabalhar as narrativas jornalísticas e as temporalidades a partir de uma perspectiva
plural da atualidade sem ater-se a um acontecimento ou visada temática específica.
Pretende-se, sobretudo, refletir sobre as instâncias acionadas pelo passado, presente
e futuro nas narrativas contemporâneas.

O Acontecimento e o Tempo Social:


eis que surgem as narrativas jornalísticas

O processo de mediação dos acontecimentos, seja pela televisão, rádio, jornais e


revistas impressos, webjornais e redes sociais, perpassa diretamente as narrativas
jornalísticas. No entanto, neste cenário contemporâneo, marcado pelo efêmero e
pela circulação cada vez mais veloz das informações, torna-se fundamental uma
breve reflexão sobre a noção de acontecimento e sua relação com o conceito de
tempo social.
A discussão sobre acontecimento não pode estar descolada da discussão
sobre tempo social, visto que as duas dimensões estão intimamente relacionadas,
em especial quando se trata da discussão sobre o campo comunicacional. Nessa
perspectiva, vários autores que trataram dessa relação poderiam ser arrolados nesse
capítulo, como Norbert Elias, responsável pelo emblemático estudo “Sobre o Tempo”.
Nesse ensaio, o autor questiona certas clivagens teóricas que buscam dissociar a
“natureza” e a “realidade humana”, já que para ele o “estudo do ‘tempo’ é o de
uma realidade humana inserida na natureza” (ELIAS, 1998, p. 79). Tendo como
mote essa perspectiva relacional, passamos, agora para a contribuição de Reinhart
Koselleck (2006), em seu estudo intitulado “Passado-futuro”, em que ele trata dos
tensionamentos entre as categorias “espaço de experiência” (passado) e “horizonte
de expectativa” (futuro).
As duas expressões tratam de categorias formais do conhecimento capazes de
fundamentar a possibilidade de uma história, não as histórias mesmas. Com isso,
compreendemos que todas as histórias foram constituídas pelas experiências vividas
e pelas expectativas das pessoas que atuam ou que são afetadas por elas.
Em termos semânticos, o par de conceitos “experiência” e “expectativa” estão
estreitamente relacionados entre si, embora não constituam imagens recíprocas. Eles
não propõem uma alternativa, não se pode ter um sem o outro: “não há expectativa
sem experiência, não há experiência sem expectativa” (KOSELLECK, 2006, p. 307).
Além disso, as duas categorias são constitutivas da história e de seu conhecimento,
produzindo uma relação interna entre passado e futuro, hoje e amanhã. Em suma, são
categorias adequadas para compreender o tempo histórico, pois enriquecidas em seu
contexto, elas dirigem as ações concretas no movimento social e político e remetem à
temporalidade dos seres humanos (KOSELLECK, 2006).

74
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

A relação entre experiência e expectativa não acontece de maneira uniforme, já


que estamos tratando de relações humanas que evocam diferenças em seu espaço
social. Koselleck (2006) menciona o Renascimento e a Reforma como exemplos de
tensões que perpassaram todas as camadas sociais desses períodos históricos.
Afinal os modos de percepção do tempo e das expectativas do futuro não acontecem
de maneira linear e equânime como nos alerta o autor: “Essa constatação, de uma
transição quase perfeita das experiências passadas para as expectativas vindouras,
não pode ser aplicada de igual maneira a todas as camadas sociais” (KOSELLECK,
2006, p. 315).
Tendo como mote essas diferenças de percepção sobre passado e futuro e que
é no campo da esfera social que as experiências acontecem, podemos refletir sobre
a relação entre tempo social e acontecimento, visto que é possível identificar no
exterior do jornalismo ou em seu âmbito disciplinar, diferentes perspectivas teórico-
metodológicas que evidenciam os estudos do acontecimento. Neste sentido, Zamin e
Marocco (2010) revisam as teorias inscritas nas perspectivas exógenas e endógenas,
numa tentativa de aproximar-se das possibilidades de formulação do objeto, das
ferramentas conceituais e dos aportes metodológicos do que elas determinam como
“estudos de acontecimento jornalístico”.
O pensamento exógeno dedica-se à teoria abstrata que busca a comprovação
empírica nos meios jornalísticos ou ao trabalho de campo, na antropologia ou na
sociologia, contrapondo-se ao modo jornalístico de objetivação do real. As teorias
exógenas reúnem um conjunto de autores que apontam modos para o estudo de
acontecimentos, a partir da sociologia (sociologia do acontecimento, segundo Edgar
Morin), da antropologia (etnografia do acontecimento, segundo Marc Augé) e da
pedagogia (pedagogia do acontecimento, segundo Daniel Dayan).
O pensamento e as teorias endógenas, por sua vez, reúnem autores que
reconhecem os processos de produção e as práticas jornalísticas que configuram
a construção jornalística dos acontecimentos e dos indivíduos. Entre eles: Verón
(1995), que se dedica à reflexão sobre a construção do acontecimento a partir de
três etapas - análise dos despachos das agências de notícias, acompanhamento do
comportamento de cada veículo a partir do material informativo e análise dos efeitos
de reconhecimento; e, Fausto Neto (1991), que realiza um exercício metodológico, no
âmbito do discurso, apoiando-se em elementos da teoria da enunciação.
A partir desta revisão teórica, Zamin e Marocco (2010) sugerem a existência
de uma terceira vertente de estudos que ocupa o espaço do “entre”, nem exógena
nem totalmente endógena. Trata-se de uma região de confluência entre filosofia
e jornalismo, na qual a primeira fornece base para uma análise do presente e, o
segundo, que se constitui no tempo da atualidade, produz e faz circular um conjunto
de informações sobre acontecimentos de todos os tipos.

O jornalismo, ao dizer do acontecimento e de seus conjuntos singulares


de elementos, por meio de aproximações de dizeres de outros campos e
de outras temporalidades e em meio a regimes diferentes de poder-saber,
o transpõe à notícia. Isso porque o acontecimento não significa em si, ele

75
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

acontece quando inserido em um discurso, em uma instância, como a


jornalística. (ZAMIN e MAROCCO, 2010, p.118, grifo das autoras).

Para Benetti (2010), a orientação do olhar sobre o que seja “acontecimento


jornalístico” consiste em um movimento circular que começa nos interesses da fala
institucionalizada do poder e retorna a esses mesmos interesses, sempre mediado
pelos procedimentos técnicos que legitimam a prática discursiva do jornalismo. Porém,
o entendimento dessa dinâmica de constituição do acontecimento jornalístico nem
sempre é partilhado pelo leitor comum, que pode não perceber as marcas discursivas
que configuram as lutas de poder e o direcionamento editorial diluídos ou explícitos
na narrativa jornalística.
Berger e Tavares (2010) apontam a existência de dois tipos de acontecimentos. O
primeiro seria o acontecimento na instância da experiência cotidiana, que é pensado
pela História, a Filosofia e as Ciências Humanas, como objeto de estudo que tangencia
reflexões sobre as relações com o tempo, objetivo e/ou (inter)subjetivo. Para os
autores, o acontecimento em si consiste em uma ação que rompe com a normalidade,
com a ordem das coisas em nosso quadro de vida, num dado contexto temporal, e
que só existe quando há sujeitos que são afetados e que lhe dão sentidos. A partir
desse movimento, inicia-se o processo da busca pelo sentido e pela explicação ao
inesperado, ao novo que fará parte do cotidiano ou da história.
O segundo tipo é acontecimento jornalístico, localizado nas reflexões dos estudos
de jornalismo ou em textos em que o acontecimento midiático ilustra a natureza da
sociedade contemporânea. É no texto jornalístico que se constroem os múltiplos
sentidos dos acontecimentos cotidianos. É nessa instância que o acontecimento se
projeta para além da experiência individual e passa a ser pensado em termos de
alcance coletivo.
Há, desse modo, certa impossibilidade de separar os dois acontecimentos e
as abordagens das diferentes disciplinas, pois é do acontecimento vivido que se
abastece o acontecimento jornalístico e este intervém na percepção daquele. Em
outras palavras, o acontecimento na esfera do jornalismo, “diz respeito à construção
do acontecimento em forma de notícia ou das linguagens jornalísticas que constroem
o acontecimento” (BERGER e TAVARES, 2010, p.122).
No entanto, segundo Patrick Charaudeau (2006), a questão do acontecimento é
frequentemente mal colocada no domínio das mídias, apresentando diversas definições
equivocadas. Pode ser definido como fenômeno que se produz no mundo que está fora
da ordem habitual. Ou ainda, confunde-se com novidade ou se diferencia dela sem
que se defina os pontos divergentes. E, por fim, defende-se também a ideia de que o
acontecimento é um dado da natureza e que pode ser provocado.
Ao observar as lógicas de configuração do acontecimento na mídia, Charaudeau
(2006) pontua que o acontecimento se encontra no que ele denomina como “mundo
a comentar”, instância de uma fenomenalidade que se impõe a um sujeito de
enunciação, em estado bruto, antes de sua captura perceptiva e interpretativa. A
significação do acontecimento, ou seja, seu direcionamento à instância da recepção,
depende do olhar que se estende sobre ele, do olhar de um sujeito que o torna
76
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

inteligível. E esse processo de “percepção-captura-sistematização-estruturação”,


que concede aos fenômenos existência significante, se dá por meio da linguagem.
“O acontecimento nasce, vive e morre numa dialética permanente da ordem e da
desordem, dialética que pode estar na natureza, mas cuja percepção e significância
dependem de um sujeito que interpreta o mundo” (CHARAUDEAU, 2006, p. 99).
Ainda segundo o autor, para que se possa compreender o processo evenemencial
ou processo de construção do acontecimento são necessárias três condições:
1) que se produza uma modificação no estado do mundo fenomenal (é preciso que
aconteça alguma coisa que cause uma ruptura na ordem estabelecida e provoque um
desequilíbrio nos sistemas que fundam essa ordem);
2) que haja a percepção dessas modificações por sujeitos (é preciso que alguém
perceba o que provoca o efeito de “saliência”, isto é, uma operação perceptivo-
cognitiva que faz com que seja o sujeito que impõe seu olhar ao mundo);
3) a inscrição dessa percepção numa rede coerente de significações sociais
(essa modificação do mundo deve ser digna de interesse, deve ser notável para o
sujeito como ser social e, ainda, inscrever-se numa problematização ou cadeia de
causalidades que lhe conferirá uma razão de ser).
Em suma, para que o acontecimento exista é necessário nomeá-lo, pois o
acontecimento não significa em si, ele só significa enquanto acontecimento em um
discurso. E o acontecimento só se torna “notícia” a partir do momento em que é levado
ao conhecimento de alguém. “O acontecimento é convertido em notícia através de um
processo narrativo que o insere numa interrogação sobre a origem e o devir, conferindo-
lhe uma aparência (ilusória) de espessura temporal” (CHARAUDEAU, 2006, p. 135).
Articulando essa perspectiva ao processo temporal e o papel de mediação das
narrativas jornalísticas, tem-se que a circulação dos acontecimentos está conectada
às possibilidades dos processos históricos, pois como argumenta França (2012, p. 46),
“a criação de fatos apenas se traduz em acontecimento se eles conseguem inscrever
no horizonte de sentidos possibilidades que não estavam dadas anteriormente”.
Assim, ao pensar os acontecimentos e o registro de sua materialidade existencial
nas narrativas jornalísticas, temos a oportunidade de refletir sobre a teia de
temporalidades tecida a partir da natureza dos fatos, seja por registro ou reforço de
“presentismos”, por necessidade de rememoração do passado ou porque vislumbra
no futuro um horizonte de mudanças.

Marcas do tempo nas narrativas jornalísticas

Deuze e Witschge (2016, p. 8) definem “o jornalismo contemporâneo como um


conjunto bastante complexo e desenvolvido de atitudes e práticas de (grupos ou
equipes de) indivíduos envolvendo tanto jornalistas profissionais quanto profissionais
de áreas afins, como programadores, designers e profissionais de marketing”. Essa
definição nos diz sobre um campo profissional instável e permeado por inúmeras
contradições.
Outro pesquisador que nos ajuda a compreender de maneira adequada as
mudanças ocorridas na cultura e na prática da profissão é o sociólogo Neveau (2010).
77
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
Para ele, três mudanças foram responsáveis pela atual condição do campo: o poder
de pressão e produção de notícias já “prontas” para os jornalistas, a transformação
das empresas familiares de comunicação em megacorporações com enorme poder
de rentabilidade e a aceleração das informações propiciada pelo advento da internet,
o que culminou no amplo processo de convergência midiática.
Isso posto, pode-se afirmar que a atividade jornalística no século XXI é bastante ampla
e envolve diferentes tipos de narrativas. O crescente interesse pelo estudo das narrativas
jornalísticas demonstra que esse campo participa ativamente do processo de midiatização,
sendo um dos lugares de produção de sentidos mais atuantes nessa dimensão.
O interesse por esse campo de estudos cresceu bastante nos últimos anos,
entretanto o conceito ainda é objeto de diferentes visadas. No caso desse trabalho,
parte-se da noção apresentada por Paul Ricoeur (2010, p. 93, grifo do autor), que,
a partir de extenso trabalho intelectual, expõe a necessária relação entre tempo e
narrativa ao afirmar que “o tempo torna-se humano na medida em que está articulado
de modo narrativo, e a narrativa alcança sua significação plenária quando se torna
uma condição da existência temporal”. Ele irá pensar a mediação entre tempo e
narrativa a partir da relação entre a mímesis I, momento de configuração da narrativa,
a mímesis II, espaço de reconfiguração e a mímesis III, responsável pela “intersecção
entre o mundo do texto e o mundo do ouvinte ou do leitor” (RICOEUR, 2010, p. 122).
Vale ressaltar que Ricoeur (2010), ao trabalhar com a dimensão mimética - noção
oriunda da “Poética”, de Aristóteles -, irá ampliar essa noção ao dizer que as narrativas
ultrapassam o mero aspecto da imitação, já que há uma dimensão criadora nesse
processo, seja pelo agenciamento dos fatos na configuração da narrativa, seja pela
presença do leitor (mímesis III) nesse processo de reconfiguração.
Essa visada é relevante na medida em que a orientação para a análise das
narrativas jornalísticas deve levar em consideração a presença do leitor nesse
processo. O jornalismo passa ser pensado então em sua dupla dimensão temporal:
aquele inscrito nas produções jornalísticas e aquele originado do encontro do leitor
com o material produzido.
O jornalismo, ao operar com a produção de sentidos e com o imaginário social,
contribui para a interação social não obstante a acirrada disputa de sentidos acionada
pela expansão de referenciais simbólicos produzidos no interior da sociedade. Refletir,
portanto, sobre essas narrativas é refletir sobre o modus operandi do próprio campo,
que produz, cotidianamente, sentidos sobre o presente, o passado e o futuro. Como
tão adequadamente nos alerta Resende (2011, p. 134):

Aos conteúdos dos acontecimentos narrados inserimos modos de dizer,


inscrevendo e excluindo sujeitos, ressaltando e apagando saberes e poderes,
concedendo e negando espaços e direitos. O mundo contado nos jornais,
à luz da narrativa, é menos da ordem da retórica das imparcialidades e
objetividades, do que do jogo de forças, das negociações e dos embates
próprios do mundo da vida.

É peculiar à narrativa jornalística, portanto, a perspectiva contraditória e complexa


da dimensão social. Os sentidos engendrados pelas inúmeras produções dessa área

78
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

nos dizem sobre a materialidade da linguagem explicitada diariamente pelos inúmeros


formatos presentes na práxis cotidiana dos sujeitos.
Ao estudar a disputa de sentidos entre narrativas jornalísticas de três revistas
brasileiras (Época, Veja e Brasileiros) acerca dos acontecimentos ocorridos durante a
vigência da ditadura civil-militar no Brasil, Maia e Aniceto (2016) puderam perceber
que a memória, aqui pensada como uma categoria que só pode ser acionada a partir
do presente, tem presença garantida nas páginas das revistas, contribuindo para a
retomada e reverberação de acontecimentos que ocorreram no passado, mas que
seguem tecendo sentidos na atualidade. Para eles, a “recuperação destes temas
na atualidade demonstra a importância e a capacidade do jornalismo de atualizar
e reconstituir acontecimentos, além de demonstrar seu papel na consolidação e
reassunção da memória, impedindo (...) que o acontecimento seja totalmente finito”
(MAIA; ANICETO, 2016, p. 250).
É possível pensar na potência das narrativas e na reescrita da história (seja
imediata ou mais alongada) por intermédio dos textos e imagens jornalísticos, pois
como nos assegura Ricoeur (2010, p. 129), “contamos histórias porque, afinal, as
vidas humanas precisam e merecem ser contadas”. É digno de nota, entretanto, o
embate que ocorre nesse processo já que há, sempre, uma memória em disputa
como tão bem nos lembra Pollak (1989, p. 8): “Conforme as circunstâncias ocorre a
emergência de certas lembranças, a ênfase é dada a um ou outro aspecto”.
Os diversos dispositivos jornalísticos fazem circular múltiplas narrativas,
em diferentes plataformas e linguagens, que podem gerar sentidos diversos e
consequentes efeitos que podem reverberar na sociedade. Os textos jornalísticos
relatam acontecimentos em âmbito factual, mas também contam e remontam
histórias que transpassam a linearidade cronológica do olhar temporal ao qual estamos
condicionados, utilizando enunciados, imagens, cores, sons, entre tantos outros
recursos verbais, visuais e sonoros, por meio de relações de temporalidade. Mas, o
jornalismo também atua como agente de memória, na medida em que também aciona
fatos passados significativos para a compreensão de determinados acontecimentos,
intencionalmente para justificar fatos do presente ou induzir a interpretações.
Torna-se, portanto, imprescindível refletir sobre tempo e memória no limiar da
história que o jornalismo ajuda a tecer, reconhecendo como suas narrativas contribuem
para a cristalização da imagem de certos acontecimentos simbólicos. Assim, buscamos
compreender como o jornalismo articula as relações de temporalidade partindo de
sua dimensão urgente de presente e rompendo as barreiras de passado e futuro, por
meio de operações narrativas. “O jornalismo é a prática de oferecer cotidianamente
uma profusão de marcações temporais – seja para dizer o que é passado, seja para
dizer o que é presente ou para indicar com que sonhos se devem sonhar o futuro”
(MATHEUS, 2011, p. 219).
A cultura jornalística, por sua vez, possui uma maneira própria de agir, falar e
ver o mundo. Da mesma forma, os jornalistas têm uma maneira própria de sentir e
experimentar o tempo em diversas circunstâncias que perpassam o processo produtivo:
seja através dos preceitos que determinam o “novo” e “atual”, seja na corrida frenética
pelo furo jornalístico em tempos instantaneidade, ou ainda, em virtude dos meios de

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Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

apuração e da natureza do dispositivo (impresso, televisivo, radiofônico, digital), e, por


fim, por meio dos mais variados formatos textuais verbo-visuais possíveis.
A noção de tempo indicada como parâmetro jornalístico e as relações da
temporalidade articuladas no texto jornalístico são discussões distintas, porém,
em certa medida, uma pode ser resultante da outra. A construção da notícia como
recorte, com uma marcação temporal, demarca um sentido de início-fim do evento
(ou acontecimento), além de sua localização num contexto temporal que é referência
para seu público-leitor. Segundo Franciscato (2005), esse movimento consiste na
“fragmentação discursiva dos eventos” e é determinado por princípios e valores
da instituição jornalística e viabilizado por ferramentas que conferem à notícia um
sentido de completude temporal.
Essa fragmentação, por sua vez, nos faz pensar em Hartog (2013) e seu debate
sobre os “regimes de historicidade”. Em síntese, o termo “historicidade” expressa a
maneira como um indivíduo ou uma coletividade se instaura e se desenvolve no tempo,
seja como artefato para esclarecer a biografia de um personagem histórico ou a de
um homem comum, ou ainda atravessar uma grande obra literária, como também
questionar a arquitetura de uma cidade ou comparar a relação com o tempo das
diferentes sociedades. O regime de historicidade, portanto, é o instrumento que ajuda a
criar um desprendimento do presente, um distanciamento, para melhor ver o próximo. É
também “uma maneira de engrenar passado, presente e futuro ou de compor um misto
das três categorias” (HARTOG, 2013, p. 11).
Esse regime de “presentismo”, segundo Hartog (2013), é fruto da tirania do
instante e da estagnação de um presente perpétuo. Para Antunes (2007), a matriz
do presentismo pode estar relacionada à diminuição do sentido histórico em favor
do horizonte restrito ao tempo presente. No jornalismo, estaria relacionado ao
“tempo real”, associando a temporalidade ao relato noticioso, situado na relação
entre presente e atualidade: “Ao invés de operar como um critério que ao mesmo
tempo permite selecionar e singularizar elementos relevantes dos fatos relatados,
a temporalidade é tomada como um mero dispositivo de ativação da atualidade na
notícia pela sua equivalência com o presente histórico” (ANTUNES, 2007, p. 4).
Cabe destacar que esse “presente fabricado” revela a vinculação entre o ambiente
midiático ao trabalho de agentes (jornalistas) que partilham saberes, crenças e modos
de interpretação do mundo social no processo de produção das notícias. “Trata-se
de um presente sobrecarregado por, ao mesmo tempo, recolher e alimentar uma
avalanche de acontecimentos que organiza o universo dos agentes sociais, saturar a
experiência social de ‘eventos presentes’” (ANTUNES, 2007, p. 6).
A contribuição do jornalismo para a percepção social do tempo é dada de duas
maneiras, conforme pontua Matheus (2011): a primeira, de ordem material, pela
inserção dos dispositivos midiáticos que dão suporte ao jornalismo e, a segunda
de unidade textual, pelas múltiplas relações de temporalidade possibilitadas pelas
narrativas jornalísticas. Ambas se complementam. Por um lado, atribuem determinados
sentidos históricos aos acontecimentos; por outro, contribuem para a percepção de
que estamos inseridos no processo histórico.

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Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

Inicialmente, perguntávamos se o jornalismo tratava fundamentalmente do


presente, mas a profusão de narrações de passado evidenciou a necessidade
de “complexificar” essa suposição. Ainda que falar do passado seja uma
atividade realizada no presente e em referência a ele, já que não possuímos
outro lugar para existir que não no agora, percebemos a existência de
narrativas jornalísticas sobre o passado muito mais do que imaginávamos, no
intuito de produzir falas autorizadas sobre esse tempo ido. É toda uma relação
particular, jornalística, entre passado, presente e futuro, que é mercantilizada
na forma de jornalismo. Sua identidade narrativa se relaciona de modo tão
íntimo com o tempo que sua forma material primeira – o impresso – tem o
nome derivado da própria duração: jornada. (MATHEUS, 2011, p. 17).

Entre outras formas, o jornalismo é o instrumento narrativo que serve para marcar
o tempo. É através de sua prática narrativa que se estabelece “as fronteiras entre o
não-mais, o agora e o ainda-não” (MATHEUS, 2011, p.218), por meio das diversas
camadas de significação. Para construir a notícia, experiência do presente imediato,
o jornalismo, recorre ao passado completando o sentido da narrativa por meio de
referências pretéritas (embora ausente, é o espaço das experiências concretas, mas
que só pode ser acessado a partir dos registros materiais e das memórias). O futuro,
horizonte do desconhecido, é o espaço das expectativas que vivenciamos no presente.
Mas o jornalismo também estabelece uma conexão com a noção de tempo que
pode ser pensada de modo mais específico: sua atuação como agente de memória.
Seja ao articular um sentido de tempo passado e de presente ou na relação do
passado com o futuro, o jornal poderá ser lido como registro documental, histórico,
impondo certo modo de recordação. “O antes é o flashback, a memória, a volta ao
passado, como foi dito” (BRUCK e SANTOS, 2013, p. 92).
Para Halbwachs (1990) o indivíduo participa de dois tipos de memória, que se
apoiam mutuamente, mas não se confundem. A memória individual está situada
no quadro da personalidade ou da vida pessoal, ou seja, são as lembranças
comuns ao indivíduo sob o aspecto que lhe interessa. Para evocar seu passado, o
indivíduo tem necessidade de fazer apelo às lembranças dos outros, reportando-
se a referências externas e que são fixadas pela sociedade. A memória coletiva diz
respeito às anotações históricas, demarcadas por um tempo social, partilhadas
pelo indivíduo enquanto membro de um grupo que contribui para evocar e manter
as lembranças impessoais.
A memória permite ao indivíduo remontar-se no tempo, porém, mantendo-se no
presente. Esse processo de acionamento da memória é dado a partir de recordações
pessoais que, parecem vívidas, mas podem ofuscar imaginários, uma vez que o passado
não pode ser restituído na íntegra. Sua reconstrução está fundada em vestígios,
imagens, relíquias, entre outros suportes da memória coletiva. “Aqui a memória coletiva
é considerada como sendo capaz de transformar, em determinadas condições, uma
recordação, uma imagem ou uma relíquia, numa presença real, de efetuar mais do que
uma reevocação: uma ressurreição do passado” (POMIAN, 2000, p. 513).
A memória é constituída, portanto, por processos de negociação com a
temporalidade, que serve como ponto de referência para estruturá-la e significar o
presente, a atualidade:
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Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

No momento em que lembramos de algo, o que era passado torna-se narrativa


e articula-se no presente, sendo portanto simultâneo a este presente. E o
que seria futuro é apenas uma especulação, podendo ser articulado apenas
no discurso, o que também o tornará presente. Neste sentido, a memória só
é memória no esquecimento ou no segredo, pois quando acionada também
se torna discurso (PENA, 2007, p. 44).

Conforme defende Ribeiro (2000), a mídia é o principal lugar de memória e/ou história
das sociedades contemporâneas na medida em que anuncia os acontecimentos e as
transformações do social. O jornalismo, por sua vez, amparado em seus parâmetros e
narrativas, atribui significado às transformações do social, retrata a realidade, registra
suas transformações e as deixa como legado às sociedades futuras (RIBEIRO, 2000).
Neste sentido, podemos afirmar que o jornalismo e a memória possuem uma relação
simbiótica e, ao mesmo tempo, desigual: são campos que sabem da existência
mútua, admitem intersecções e se tornaram fenômenos autônomos, sem demonstrar
dependência um do outro.
Em linhas gerais, o jornalismo precisa do trabalho de memória para contextualizar
o recontar de eventos públicos, ao passo que a memória precisa do jornalismo para
fornecer um “rascunho público” dos acontecimentos. Nesse sentido, os jornalistas
exercem então um papel vital e crítico de agentes da memória (ZELIZER, 2008), uma
vez que criam documentos históricos, como as reportagens e as imagens icônicas
para que no futuro possamos lembrar quem somos e como nos sentíamos em
determinadas situações (KITCH, 2011a; KITCH, 2011b).
Entretanto, os jornalistas ajustam a rememoração e as reconstruções dos
acontecimentos não apenas tomando como referência eventos passados, mas também
de acordo com sua agenda, pauta de notícias e interesses políticos, ideológicos e
editoriais. A princípio, o passado apresenta-se como um rico repositório disponível aos
jornalistas para explicar determinados eventos (ZELIZER, 2008), mas as especulações
em relação ao futuro combinadas às referências ao passado ajudam os jornalistas
a dar sentido ao presente, estabelecendo relações, sugerindo inferências, atuando
como critério para medir a magnitude e o impacto de determinado evento, oferecendo
analogias e explicações (LANG e LANG citado por ZELIZER, 2008). Nota-se então o
papel alargado da narrativa jornalística, não mais restrita ao caráter noticioso, mas
merecedora de inúmeros outros atributos em sua práxis cotidiana.

Considerações finais

Olick (2014) alega que o jornalismo participa do processo de construção, discussão


e reflexão sobre memória sob diferentes visadas. Ele argumenta que o jornalismo “não
apenas cobre comemorações como também as celebra, por exemplo, publicando
reportagens especiais sobre acontecimentos passados” (OLICK, 2014, p. 17, tradução
nossa). O autor apresenta a perspectiva de que uma memória cultural não pode ser
pensada sem a participação dos media e que o campo jornalístico ainda prescinde de
pesquisas específicas: “De fato, a literatura sobre memória midiática, mídia e memória,
e mídia da memória são agora bastante extensas. Mas não está claro de que maneira,

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Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

em que medida ou por quais razões esse tipo de pesquisa deixou o jornalismo para
trás”. (OLICK, 2014, p. 19, tradução nossa)
Nesse sentido, é possível visualizar as relações de temporalidade nas
narrativas jornalísticas na atualidade a partir de um alargamento do próprio fazer
jornalístico (NEVEAU, 2010; DEUZE; WITSCHGE, 2016), sendo este convocado pelos
acontecimentos e pelo tempo social de maneira complexa. Se antes o jornalismo
poderia ser pensado a partir de categorias mais afeitas ao presente, hoje, em pleno
século XXI, ele é acionado por outras instâncias que não mais as rotinas produtivas
do próprio processo de organização empresarial.
A partir das três condições necessárias para o processo de construção do
conhecimento apresentadas por Charaudeau (2006) é possível considerar que as
narrativas jornalísticas são configuradas (nas) e pelas rupturas, pela afetação dos
sujeitos e pela rede de significações sociais. Mas é preciso considerar ainda que essas
rupturas nem sempre significam alterações temporais de grande alcance. Muitas
vezes, verifica-se certa recorrência a acontecimentos que já ocuparam as manchetes
dos meios, o que garante relativa estabilidade aos próprios acontecimentos veiculados.
De todo modo, observamos um espaço ocupado não mais somente pelas redações
institucionalmente articuladas, mas por diversas experiências comunicacionais em
que acontecimento, memória e conexões percorrem movimentos que transbordam
o factual e o presente. Nessa perspectiva mais ampliada, destacamos a potência do
jornalismo no sentido de impulsionar movimentos que configuram as possibilidades de
sua força narrativa que ressignificam tanto o “espaço de experiência” como o “horizonte
de expectativa”, visto que o presente, tensionado por estas categorias, concebe uma
nova maneira de relacionar o passado e o futuro tomando o acontecimento como
ponto de partida.

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M.; FONSECA, Virginia Pradelina da Silveira (Orgs.). Jornalismo e acontecimento:
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85
De fontes a personagens:
definidores do real no jornalismo literário

Mateus Yuri Passos

1. Dois modelos jornalísticos

Este trabalho centra-se sobre o papel das fontes de informação no jornalismo


e move-se a partir da indagação sobre quais particularidades permitem distinguir
a função discursiva das fontes no jornalismo literário em relação a outros modelos
jornalísticos – em especial, tendo em vista os diferentes pressupostos que embasam
a episteme de cada modelo, interessa-me saber se há maior ou menor potencial
para um tratamento mais isento das fontes, expresso naquilo a que Bakhtin (2010)
denomina polifonia – a presença de uma miríade de vozes discursivas distintas que
permita reconstituir um acontecimento ou discutir um tópico de forma complexa, sem
direcionar o leitor a um fechamento conclusivo, fornecendo mais instrumentos para
uma abertura interpretativa.
Desse modo, discutiremos brevemente os elementos distintivos dos dois
modelos jornalísticos em discussão e apresentaremos alguns pressupostos sobre
seu comportamento em relação a fontes de informação. A seguir, apresentaremos
brevemente alguns casos clássicos de usos distintos de fontes de informação no
jornalismo literário. Finalmente, serão analisadas três reportagens: “Eletrochoque”,
de Consuelo Dieguez, e “Voluntário número 13”, de Roberto D’Ávila – ambas
publicadas na revista piauí e exemplares de gêneros de jornalismo literário – em
contraste a “Magnetismo contra a depressão”, de Ricardo Zorzetto, publicada na
revista Pesquisa Fapesp, mais afim aos princípios do jornalismo de pirâmide. A análise
centra-se sobre como diferentes formas de representação de entrevistados e da
articulação de seus discursos em três reportagens pode, por um lado, colocar toda
a autoridade discursiva nas mãos da ciência, e por outro colocar essas instituições
em diálogo ou confronto com outros setores da sociedade, cuja voz é igualmente
valorizada. Embora tenham sido publicados entre 2007 e 2008, os três textos
jornalísticos – coletados no contexto de uma pesquisa mais ampla sobre o uso da
narratividade em reportagens sobre ciência – permitem traçar de forma mais clara
o contraste entre modelos jornalísticos ao abordarem, de modo bastante distinto,
a aplicação de terapias experimentais em medicina. O tópico foi selecionado com o
pressuposto de que o jornalismo literário não se restringe ao que se convencionou
chamar de conteúdo “de interesse humano”, ou mesmo diversional, e oferece boas
soluções como veículo para o oferecimento de informações.
Estando claras as linhas gerais do trabalho, é preciso apresentar duas premissas
gerais que tomo como ponto de partida, desenvolvidas em trabalhos anteriores. A
primeira delas define jornalismo literário como um termo bastante amplo que abarca
um conjunto diverso de gêneros enunciativos situados na fronteira entre jornalismo

86
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

e literatura (PASSOS, 2014). O jornalismo literário surgiu e se desenvolveu de forma


independente em diversos lugares do mundo entre os séculos XVIII e XX – no mundo
anglófono, por exemplo, teve como ponto de partida as sketches que se popularizaram
a partir dos anos 1820, um gênero análogo à crônica brasileira (SIMS, 2007) –, com
alguns momentos de influência mútua – o Novo Jornalismo norte-americano da
década de 1960, por exemplo, foi decisivo para o investimento em jornalismo literário
por veículos brasileiros como a revista Realidade e o Jornal da Tarde (LIMA, 2008).
Derivando dessas considerações, a segunda premissa defende que, enquanto
representação do real, o jornalismo literário pode ser melhor compreendido como um
modelo jornalístico distinto, ao invés de um gênero ou modalidade agrupada junto às
categorias de jornalismo informativo, opinativo, interpretativo etc (PASSOS e ORLADINI,
2008). Desse modo, o jornalismo literário se contrapõe, como modelo, ao jornalismo
de pirâmide (PASSOS, 2010), assim denominado por ter como seu produto principal
e mais nobre as notícias e reportagens estruturadas na forma da pirâmide invertida
encabeçada pelo lead, o qual concentraria em si a unidade informativa essencial de
um acontecimento (GENRO FILHO, 2012) – porém, o jornalismo de pirâmide, num
escopo mais amplo, marcado pela separação histórica entre notícia e opinião, abarca
também os diversos gêneros opinativos e interpretativos associados a essa dicotomia.
Tendo isso em vista, uma primeira possibilidade a se levantar seria a de que nos
gêneros de jornalismo literário essa separação inexiste; porém, como apontado por
Eason (1990) ao tratar de vozes enunciativas no Novo Jornalismo, há uma parcela
considerável de repórteres que evita incluir conteúdo opinativo, ou prefere fazê-lo
por meio de descrições metafóricas ou comparações (MARTINEZ, 2016), sem emitir
diretamente juízo a respeito de pessoas e ações – para Eason (1990), esses são
jornalistas literários “realistas”, a quem poderíamos chamar também de empiricistas,
que tomam como pressuposto a viabilidade de se apreender e reconstruir em texto
uma realidade externa existente a priori; em oposição a esse conjunto Eason (1990)
apresenta repórteres “modernistas”, a quem poderíamos considerar fenomenologistas,
que se propõem a apresentar uma apreciação e narração de acontecimentos e
pessoas a partir de suas próprias lentes, de seus filtros culturais e ideológicos, e não
se contêm no que toca ao oferecimento de opiniões, pois compreendem seu papel
não como o da mediação isenta, mas como o da interpretação da realidade – embora
ainda baseada na apuração de fatos e na realização de entrevistas. Assim, o grau de
separação entre fatos e opiniões, o nível de interpretação autoral embutido nos textos
varia fortemente entre autores e gêneros de jornalismo literário. Conforme apontado
por Ritter (2015) em sua tese de doutoramento, o jornalismo gonzo de Hunter S.
Thompson tem como traço distintivo a parresía – uma enunciação franca, sem freios
–, a qual não se encontra de forma alguma, por exemplo, nas reportagens de Lillian
Ross, a qual entendia que as próprias ações e as falas de seus entrevistados seriam
suficientes para que os leitores tirassem conclusões a respeito deles.
Um elemento que permite distinguir de forma mais demarcada como cada um
dos modelos concebe a episteme do jornalismo, porém, está no peculiar uso de
personagens como definidores do real em obras de jornalismo literário – o qual parece
ser comum aos diversos gêneros enunciativos que o termo compreende.

87
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

No jornalismo de pirâmide o papel de fontes de informação, de acordo com


Schmitz (2011), configura-se tanto no auxílio à apuração das notícias, enquanto
entrevistados, como no oferecimento de conteúdo próprio para deliberadamente
fornecer informações que possam dar origens a pautas de notícias e reportagens –
podendo, nesse caso, ser consideradas como «um poder que mede forças com o ‹poder
da imprensa›» (SCHMITZ, 2011, p. 10). O autor distingue as fontes entre primárias
– diretamente envolvidas com fatos – e secundárias – cujo papel é o de analisar
e interpretar informações obtidas a partir das fontes primárias, podendo ser ainda
classificadas, de acordo com seu status social, como fontes oficiais, empresariais,
institucionais, populares, notáveis, testemunhais, especializadas ou referenciais.
Stuart Hall et al (2016) defendem ainda que um conjunto específico de indivíduos
ocupa um patamar privilegiado enquanto fonte – seja pelo envolvimento direto com
eventos em questão ou pelo oferecimento de análises –, a ponto de suas enunciações
serem utilizadas para definir o enfoque, o fio condutor da narrativa noticiosa; ou seja,
para definir um determinado recorte e uma determinada leitura de realidade que serão
seguidos numa determinada peça jornalística. Essas fontes, que compreendem as
oficiais, empresariais, institucionais e especializadas, são chamadas por Hall (2016)
e seus colaboradores como «definidores primários», justamente por conta desse papel
crucial na condução da produção jornalística.
Como apontei em um trabalho anterior (PASSOS, 2010), é justamente em busca de
objetividade que o jornalismo de pirâmide confia aos definidores primários o papel de
intérpretes da realidade, delegando ao repórter a função de mediador e de «garimpador»
de declarações dessas fontes. Desse modo, podemos afirmar que o jornalismo de
pirâmide se fia não em indivíduos para a representação e análise de fatos, mas em
instituições – governos, órgãos de polícia e defesa, empresas e, principalmente, os
diversos ramos da ciência; e seria justamente o poder institucional dessas organizações,
seu prestígio e reconhecimento social, o que conferiria credibilidade tanto às fontes
que as representam quanto ao material noticioso que faz uso delas para tratar de
determinado acontecimento.
Esses procedimentos, porém, têm como consequência a reprodução de um pensamento
hegemônico a que Bakthin (2012) conceitua como ideologia oficial, desenvolvida e reforçada
justamente pelo conjunto de instituições que respaldam os definidores primários, e que o
autor contrapõe a uma ideologia do cotidiano que seria formada pela experiência imediata de
indivíduos ligados ou não a essas instituições – e nesse caso me parece adequado reforçar
a acepção dessa experiência como algo não-mediado, ou seja, anterior à construção da
realidade nos meios de comunicação de massa.
A definição da leitura do real por essas fontes, assim como a circulação majoritária de
suas declarações, que as hierarquiza num estrato superior de qualidade e credibilidade
em relação a outros tipos de fonte, acaba por reforçar o suporte à ideologia oficial e
por silenciar e marginalizar outras vozes e possibilidades interpretativas, fenômeno a
que Noelle-Neumann (1993) denomina espiral do silêncio.
Por outro lado, enquanto o jornalismo de pirâmide utiliza entrevistados como
fontes de informação amparadas e validadas a partir das instituições de poder que
representam, no jornalismo literário esses indivíduos se transformam em personagens

88
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

que, retratados em seu sentir e agir no mundo, têm a validação de sua fala articulada
a partir de suas vivências, que lhes conferiria credibilidade de modo independente de
um amparo institucional.
Repórteres como Joseph Mitchell (2012) e James Agee (2009) buscavam em
suas reportagens mais célebres não apenas ouvir fontes não-oficiais, o chamado
everyman [“homem comum”], mas tornar suas experiências e ponto de vista o centro
da enunciação, o principal definidor do enfoque e do tom da narrativa. Todo o conjunto
da obra de Mitchell pode ser compreendido como análogo aos esforços de Joe Gould,
um de seus personagens, que pretendia compor uma história oral da vida norte-
americana das primeiras décadas do século XX, a suprema antologia da ideologia
do cotidiano dentro dessa delimitação cronotópica (PASSOS, 2014). Já Gay Talese
(2005) e Truman Capote (2003) ao reconstruírem em texto, respectivamente, alguns
dias na vida do cantor Frank Sinatra e os acontecimentos em torno do assassinato
da família Clutter, no Kansas, entrevistaram incansavelmente dezenas de pessoas
que tiveram contato direto com seus protagonistas – que, no caso do romance de
não-ficção de Capote, eram tanto os membros da família quanto os assassinos Perry
e Dick. Mesmo quando seus entrevistados eram indivíduos de capital institucional
que comumente receberiam o tratamento de definidores primários, como policiais,
juízes ou produtores da indústria fonográfica. Interessava mais aos repórteres a
experiência que essas pessoas carregavam consigo, aquilo de ideologia do cotidiano
que tinham a ofertar – e é na forma de experiências, de cenas que essas entrevistas
foram transportadas para as narrativas.
Podemos atribuir esse comportamento discursivo à postura contra-hegemônica
que pautava o Novo Jornalismo norte-americano (PAULY, 1990), que pode ser
estendida à tradição do jornalismo literário anglófono como um todo, estendida
mesmo a temas de ciência e tecnologia, com abordagens que não se restringem
nem têm seu enquadramento delineado necessariamente por definidores primários
– nesse caso compreendido com as expertises científicas de um determinado
conjunto de conhecimentos. Como apontei num trabalho anterior (PASSOS, 2010), o
jornalismo de pirâmide tem dificuldades em confrontar declarações de expoentes da
ciência – ou seja, de confrontar as próprias instituições científicas –, ou mesmo de
descolar-se deles para buscar outros caminhos de definição dos fatos, por ter uma
base epistemológica positivista erigida sobre a firme convicção de que os métodos
científicos geram leituras que, se não inequívocas, seriam as mais confiáveis acerca
de fenômenos, fatos e comportamentos.
O arranjo discursivo do jornalismo literário, por outro lado, ao privilegiar a experiência
e organizar as fontes/personagens de forma mais horizontalizada, comporta-se de
forma bastante similar à comunidade estendida de pares proposta por Funtowicz e
Ravetz (1993), na qual as expertises de determinada área dialogariam em igualdade
com não-especialistas diretamente interessados ou envolvidos em algum tópico para
que se pudesse realizar tomadas de decisão baseadas num diálogo mais plural –
verdadeiramente polifônico, nos termos de Bakhtin (2010), uma vez que vozes com
discursos efetivamente distintos teriam oportunidade de ser ouvidas sem que algum
poder mediador conferisse maior ou menor autoridade a uma parte delas.

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Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

Um tratamento polifônico de temas ligados a tecnociências pode ser encontrado


em Vozes de Tchernóbil, de Svetlana Aleksiévich (2016), formado por depoimentos
de pessoas de diversos estratos sociais – dentre eles camponeses e a esposa de um
bombeiro – que foram tomados de surpresa pelas consequências da explosão do quarto
reator da usina nuclear de Tchernóbil em abril de 1986 – porta-vozes da ideologia do
cotidiano que se viu fustigada pela ideologia oficial, passando por deslocamentos
forçados, testemunhando mortes apavorantes de entes queridos e recebendo sempre
ordens, mas nunca instrumentos para compreender o que se passava. Nesse aspecto,
a definição do real é pautada pelos testemunhos, pelo drama humano, em meio aos
quais pareceria irônico e de menor importância a busca por explicações científicas
sobre a explosão ou as consequências do envenenamento radioativo. Nessa mesma
linha estava também centrada a força discursiva de Hiroshima, de John Hersey (2002),
no qual ocupam lugar central na narrativa as experiências de seis sobreviventes do
bombardeio nuclear a Hiroshima em agosto de 1945.

2. A voz de pacientes e cobaias

Nesta seção, analisarei três reportagens publicadas entre 2007 e 2008 que
tinham como tópico central o estudo ou aplicação de experimentos terapêuticos –
estando, portanto, compreendidas no escopo do jornalismo científico e do jornalismo
de saúde, dois ramos bastante próximos que costumam se respaldar integralmente
em expertises científicas como fontes, chegando ao ponto de utilizar a publicação de
artigos em periódicos de alto renome como Science e Nature como principal ponto de
partida para definir suas pautas.
Como informei anteriormente, a seleção de reportagens deriva de um estudo
mais amplo sobre o uso de narratividade em reportagens de ciência e tecnologia. Um
exemplo comum de monofonia – ou não-polifonia – encontrado no corpus é o uso
de personagens não-especialistas que participam voluntariamente de experimentos
científicos, como apresentado ou de tratamentos experimentais, dos quais seriam
beneficiários. No entanto, a inclusão de suas histórias, como ocorre na reportagem
“Magnetismo contra a depressão”, de Ricardo Zorzetto, é meramente ilustrativa: os
personagens são abandonados tão logo suas histórias cumpram o papel de introduzir
o tema, que conduzirá à apresentação da pesquisa a ser detalhada:

Ana Paula custa a se lembrar da última vez em que viu a mãe sorrir. Desde
que sofreu sua primeira crise de depressão há quase 20 anos, Maria passa
os dias triste, deitada no sofá remoendo pensamentos que brotam de um
mundo sempre cinza. Já experimentou todos os tipos de antidepressivos
conhecidos, mas nenhum foi capaz de pôr fim à apatia que ainda hoje a
acompanha e a fez abandonar o trabalho na empresa da família na Região
Metropolitana de São Paulo. Úteis na maioria das vezes, os remédios, no
caso de Maria, no máximo adiavam a próxima recaída. Na última, há seis
meses, os médicos tiveram de recorrer à aplicação de descargas elétricas
no cérebro do paciente sob anestesia geral, a eletroconvulsoterapia, mais
conhecida como eletrochoque – tratamento considerado como um dos
mais eficazes para os casos mais graves, ainda que estigmatizado por já ter

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Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

sido aplicado de modo cruel e usado até mesmo como técnica de tortura
contra presos. Esse tratamento pode ajudar a restabelecer o funcionamento
normal das células nervosas, ainda que geralmente cause uma perda de
memória passageira, que pode durar de alguns dias até meses. Como nem
as descargas elétricas funcionaram, em novembro Maria iniciou no Instituto
de Psiquiatria da Universidade de São Paulo (IPq/USP) uma terapia contra a
depressão que nos últimos anos vem despertando o interesse de psiquiatras
e neurologistas do mundo todo: a estimulação magnética transcraniana
repetitiva (EMTr), uma seqüência de pulsos magnéticos intensos capazes de
estimular ou inibir a atividade do tecido nervoso. (ZORZETTO, 2007, p. 42).

Esse é um expediente bastante comum em produções da revista Pesquisa Fapesp,


cumprindo efetivamente a função que se propõe a desempenhar: o fornecimento de
uma abertura humanizadora à reportagem, permitindo chamar a atenção do leitor
para uma determinada pesquisa financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa no
Estado de São Paulo. A estratégia, porém, é menos humanizadora do que publicitária
– Ana Paula, filha de Maria, a paciente, desempenha o papel de cliente satisfeita que,
após buscar diversas alternativas para sanar a depressão da mãe, sem resultados,
descobre o tratamento por estimulação magnética – retornando, ao final da reportagem,
para atestar os bons resultados da terapia. A própria Maria, porém, não possui voz
própria na reportagem, que não fornece nenhuma declaração sua – e ambas, mãe
e filha, ao se verem desprovidas de sobrenome, têm sua condição de personagens
ilustrativas reforçada em relação a fontes como o psiquiatra Marco Antonio Marcolin,
os neurologistas Adriana Conforto e Alvaro Pascual-Leone e o físico Oswaldo Baffa,
entre outros especialistas que fornecem o contexto e a interpretação dos dados da
reportagem. O tom do texto é divulgacionista – e por isso mesmo publicitário –, com
a prerrogativa de apresentar e explicar os princípios de um determinado tratamento
experimental. Quando há questionamentos, eles vêm da própria comunidade científica
e são colocados como opiniões minoritárias, quase sempre sem nomes ou instituições
que as respaldem, e logo em seguida são apresentados dados que os refutam; trata-
se, assim, de uma pseudopolifonia.
Já “Eletrochoque”, de Consuelo Dieguez, publicada em piauí, aproxima-se dessa
narrativa, mas de forma subversiva. O tema da reportagem, o uso de eletrochoques,
ou terapia eletroconvulsiva – termos que se alternam constantemente ao longo do
texto – para o tratamento da depressão, é também introduzido pela história de um
paciente que se submete a um tratamento terapêutico:

Trancuilo Tezoto caminhou lentamente até uma fileira de cadeiras pretas.


Acomodou-se em uma delas, dobrou o corpo, descalçou os sapatos e as
meias, tirou um par de sandálias de borracha de uma sacola de plástico
e as ajeitou nos pés. Endireitou o corpo, tirou a dentadura e a aliança e as
entregou a sua mulher, Inês, para que as guardasse. Recostou a cabeça na
parede e respirou fundo, como se aquela operação banal lhe tivesse custado
um esforço sobre-humano. Há quase cinco meses, duas vezes por semana,
o metalúrgico aposentado Trancuilo Tezoto repete o mesmo ritual. Aos 69
anos, ele tem os cabelos um pouco grisalhos e uma calva que começa a se
pronunciar. Os seus olhos parecem estar sempre marejados. Aos sussurros,

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Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

ele definiu a depressão que há três anos o corrói: “É uma dor sem fim, uma
angústia e uma tristeza que não passam nunca, um mergulho permanente
no horror.” Esse estado de espírito é acompanhado por fortes dores na nuca,
inapetência e um cansaço infindável, exacerbado por noites agitadas e
insones. Desde que afundou na depressão, Tezoto tomou um sem-número de
medicamentos. Nenhum deles fez efeito. “Ele simplesmente não melhora”,
disse Inês. “Vê-lo assim é morrer um pouco a cada dia.” Eram oito e meia da
manhã de uma quarta-feira. O ex-metalúrgico fora um dos primeiros pacientes
a chegar ao ambulatório psiquiátrico do Hospital das Clínicas de São Paulo,
onde seria submetido a mais uma sessão de eletroconvulsoterapia, ou
ECT, o novo nome para um dos mais atacados tratamentos psiquiátricos,
o eletrochoque. Tezoto passara por 35 aplicações, o triplo das sessões
consideradas suficientes para ultrapassar uma crise depressiva. Os efeitos
não se fizeram sentir, embora ele admita que, nos dias em que toma choque,
se sinta um pouco mais aliviado. (DIEGUEZ, 2008, p. 58).

A abertura, assim, é pontuada pelo mesmo tema central: o drama humano


causado pela doença, que as terapias disponíveis não conseguem resolver. Porém,
o texto é polifônico, na medida em que busca nove fontes diferentes – daquelas que
se opõem ao tratamento por eletrochoque por terem sofrido abusos em hospitais
psiquiátricos com o uso dessa terapia, ou defendem o uso de medicamentos como
alternativa, àquelas que o consideram estigmatizado e o justificam frente a uma
indústria farmacêutica que visaria a lucrar ao fabricar doenças:

Para Marco Antonio Brasil, a psiquiatria tem deixado em segundo plano a


origem psicossocial dos transtornos psicológicos. Muitos deles, como a bulimia,
a anorexia, o estresse e a síndrome do pânico, ele diz, são provocados por
pressões da vida contemporânea. O psiquiatra Renato Del Sant, do Hospital
das Clínicas de São Paulo, defensor dos eletrochoques, vai na mesma linha:
“Os remédios estão substituindo totalmente as conversas com os pacientes.
Corremos o risco de tratar a doença mental meramente como distúrbio físico,
e não como um comportamento humano.» Se o paciente está triste, toma
Prozac; se está impotente, toma Viagra. A visão biológica é tão preponderante
que as escolas de medicina, segundo ele, estão reduzindo a carga horária
dos estudos de psicopatologia e aumentando a dos métodos neurocientíficos.
«Dessa forma, a psiquiatria tende a desaparecer», radicaliza Del Sant. «Nos
tornaremos neurocientistas, ou neurologistas, deixando a psicopatologia para
os psicanalistas.» (DIEGUEZ, 2008, p. 61).

O percurso narrativo parte, dessa forma, da história de um paciente sem cura


(Trancuilo Tezoto) para a contextualização da terapia eletroconvulsiva no Hospital
das Clínicas de São Paulo (seção protagonizada pelo psiquiatra Sérgio Rigonatti),
desembocando em uma breve historiografia do uso clínico de eletrochoques,
inicialmente para o tratamento de esquizofrenia, cujos possíveis ganhos logo em
seguida são colocados em confronto com o testemunho de Austregésilo Carrano, uma
das lideranças do Movimento Antimanicomial, que denuncia os abusos e danos dessas
práticas. Segue então uma seção de repercussão dos três pontos-chave – as terapias
contra a depressão, o uso clínico do eletrochoque e o movimento antimanicomial –
nos quais pesquisadores, médicos e pacientes se alternam em depoimentos, sem que

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Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

seja conferido maior peso ou credibilidade a um ou outro segmento. A reportagem se


encerra ao retomar a história de Trancuilo:

Menos de um mês depois do tratamento com eletrochoque, Trancuilo Tezoto


tentou se suicidar. Subiu na laje de sua casa e se jogou de uma altura
de quase 5 metros. Dias antes, sua mulher insistira com os médicos da
psiquiatria do Hospital das Clínicas para que o internassem. «Os médicos
me disseram para tomar conta dele até que surgisse uma vaga no hospital»,
ela contou. «Mas ele estava muito triste, esperou um descuido meu e se
jogou. Nem os remédios, nem o eletrochoque foram capazes de pôr fim a
sua angústia.» (DIEGUEZ, 2008, p. 61).

Com essa moldura narrativa, após sequências de parágrafos em que a defesa


de fármacos ou de eletrochoque estão em contraponto, o personagem ilustrativo da
abertura reaparece para tornar-se, de certa forma, protagonista. O percurso narrativo-
discursivo que a reportagem descreve é também o debate acerca de sua vida, da busca
por um tratamento que pudesse, adequadamente, livrá-lo da depressão. O desfecho,
porém, incluem um terceiro ponto discursivo, de insatisfação e indignação, visto que a
rivalidade de terapias toma a forma de uma disputa de mercado, de reserva profissional.
Nossa terceira reportagem veste um manto discursivo bastante distinto, ao optar
pela narrativa em primeira pessoa:

Na data marcada para buscar meu cheque, conheço Jordi Ribas, o


coordenador do projeto. Ele lamenta minha saída do estudo. O objetivo
específico da pesquisa que participei, diz ele, é descobrir se, depois de
tomar a segunda dose da ayahuasca, os efeitos são mais fortes ou mais
fracos. Ou seja, se o fármaco causa ou não tolerância. Não há nenhuma
pretensão em averiguar um possível uso terapêutico. Ele começou a
pesquisar o alucinógeno porque estava interessado no seu mecanismo
de ação no sistema nervoso central. Em 2003, defendeu a tese «Human
Pharmacology of Ayahuasca» na Universidade Autônoma de Barcelona. Em
um dos estudos, uma análise tomográfica mostrou que o alucinógeno ativa
áreas do cérebro ligadas ao processamento de informações emocionais,
como o sistema límbico. Daí se pode deduzir a presença de fortes mudanças
emocionais nos voluntários. Uma diminuição das chamadas ondas lentas,
delta e teta, provoca um efeito estimulante da atividade cerebral, o que
aumenta a velocidade do pensamento. Segundo ele, a experiência também
tem um «componente estressante», com o aumento da liberação de cortisol.
Geralmente, os efeitos duram de quatro a seis horas. (D’ÁVILA, 2007, p. 48).

O trecho acima, da reportagem “Voluntário número 13”, publicada na edição de


abril de 2007 de piauí, conclui um texto a partir do qual diversos pontos problemáticos
acerca da pesquisa científica – e do próprio jornalismo científico – podem ser
levantados. A narrativa acompanha alguns dias na vida do próprio repórter, Marcos
D’Ávila, que, desempregado em Barcelona, submete-se voluntariamente a um
experimento acerca dos efeitos da ayahuasca, substância alucinógena de origem
andina, utilizada em cerimônias religiosas de grupos como o Santo Daime. Um dos
temas principais são as condições a que são submetidas as cobaias de experimentos
e tratamentos experimentais, e o benefício que se pode trazer desse tipo de pesquisa.
93
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

No caso dessa reportagem, o autor deixa bem demarcado que a finalidade não é
farmacêutica, mas verificar se a substância tem efeito semelhante ao álcool, causando
tolerância conforme é consumida. O tom é diverso daquele empregado durante a maior
parte do texto1, mais debochado ou pessoal, em que são evidenciadas hesitações e
questões de identidade junto aos procedimentos do experimento. Pode-se considerar
irônico o uso de jargões técnicos da farmacologia (em geral ausentes do vocabulário
utilizado) e das aspas, num distanciamento enunciativo, ao se falar no eufemismo
de “componente estressante” para os efeitos da ahayuasca – que, em diversos
trechos, são descritos como reações insuportáveis pelo repórter-voluntário, com uma
riqueza de detalhes sensoriais e gráficos –, uma denotação da frieza da curiosidade
científica e do tratamento desumano de voluntários/cobaias, não distante da “rotina
grotesca dos criadouros” a que o autor remete. A lógica dessa reportagem segue
uma hierarquização inversa à de “Magnetismo contra a depressão” ao colocar a
experiência pessoal do repórter como principal definidora do real e fio condutor da
narrativa; quando especialistas são consultados, suas contribuições são pontuais – e
por vezes ilustrativas, curiosidades. A prerrogativa de D’Ávila (2008) é que o leitor o
acompanhe por sua jornada pessoal pelo submundo da ciência, a partir do ponto de
vista privilegiado – e incomum – da cobaia de um experimento, cujas experiências
degradantes se tornam o foco da narrativa, a informação a se compartilhar, permitindo
ao leitor problematizar, de uma forma mais ampla, o uso de seres vivos em testes
laboratoriais, lançando questionamentos à ética das pesquisas.

3. Instituições, experiência e compreensão

Ao longo deste texto, tive como preocupação central compreender distinções do


uso de entrevistados como fontes de informação e/ou personagens no jornalismo de
pirâmide e no jornalismo literário, a partir do argumento central de que o primeiro se
ampara no prestígio de instituições para buscar as definições primárias de um texto
noticioso, enquanto para o segundo importam mais as experiências individuais dos
entrevistados, mesmo no caso em que não são os protagonistas das reportagens.
A dicotomia entre instituição e experiência, entre ideologia oficial e ideologia do
cotidiano, foi exemplificada em três reportagens: “Magnetismo contra a depressão”,
de Ricardo Zorzetto, “Eletrochoque”, de Consuelo Dieguez, e “Voluntário número
13”, de Márcos D’Ávila – as quais, como pode ter sido possível depreender, são
respectivamente exemplares de jornalismo de pirâmide, jornalismo literário realista/
empiricista e jornalismo literário modernista/fenomenológico.
Na reportagem de Zorzetto (2007), seguindo um procedimento editorial padrão da
revista Pesquisa Fapesp, vemos que, das fontes ligadas à ideologia do cotidiano, uma
é silenciada e outra instrumentalizada numa retórica publicitária na qual o lugar de
saber é conferido unicamente às fontes especializadas, à ideologia oficial. No texto de
D’Ávila (2008), porém, essa equação se inverte e a ideologia do cotidiano prevalece
sobre a ideologia oficial, numa narrativa em que a experiência conta muito mais do que
os discursos oficiais – ironizados pelo uso distanciado de jargões científicos. Temos
aí um novo binômio dicotômico: o discurso individualizador da experiência única em

94
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

contraposição ao discurso universalizante de uma ideologia oficial que se pretende


como aplicável a todos os contextos.
Já em “Eletrochoque”, os polos da instituição e da experiência, universal e individual,
oficial e cotidiano, entram em um tensionamento sem resolução: a autora costura um
mosaico polifônico – uma verdadeira comunidade estendida de pares – de situações
e posicionamentos a favor do tratamento de eletroconvulsoterapia ou opostos a ele,
em geral favoráveis ao uso de medicamentos para combater condições mentais
consideradas patológicas, como esquizofrenia e depressão. A história que emoldura a
reportagem – especialmente em seu desfecho, narrativo-descritivo mas não declaratório,
oferece linhas discursivas que se contrapõem à maioria daquelas apresentadas ao
longo da reportagem: o contraste é intenso uma vez que a dicotomia ideológica que
constitui o seu fio narrativo (a defesa do eletrochoque ou do uso de fármacos), na qual a
maior parte das fontes afilia-se a um ou outro dos lados, é abalada pelo encerramento,
quando um paciente que não foi curado por nenhuma das alternativas tenta o suicídio;
assim como num romance de Henry James, as linhas finais parecem ter o poder de pôr
abaixo tudo o que se tomou como certeza ao longo do percurso narrativo, e percebe-se
que a ciência moderna possui limites, e sempre os possuirá. O maior trunfo, e potencial
libertário desse tipo de texto, é que o repórter não toma para si a tarefa de trazer uma
conclusão pronta a respeito do tema abordado; não se tem, portanto, uma impressão
de acabamento, e cabe ao leitor dar a sua contrapalavra.
A complexidade no tratamento da reportagem está bem afim aos princípios de
uma epistemologia compreensiva conforme definida por Künsch, Menezes e Passos
(2017): a reunião de diversas formas de saber, não necessariamente científicos, e o
estímulo ao debate igualitário, despido de preconceitos entre eles. Dentre os pilares da
compreensão kunschiana está ainda mais um binômio – o da compreensão oposta à
explicação; o assunto merece desenvolvimento ulterior, mas já a partir das discussões
apresentadas aqui posso tomar como pressuposto de que o jornalismo de pirâmide se
sente mais à vontade com a resolução de dúvidas, com o didatismo, com a explicação
dos fenômenos que acompanha e reforça sua tendência universalizante, enquanto
ambos os exemplares de jornalismo literário aderem, de maneiras distintas, ao gesto
da compreensão – a reportagem de Consuelo Dieguez pelo tratamento complexo e
polifônico do tema, enquanto a de Marcos D’Ávila, ao apresentar uma visão particular
que não pretende oferecer um enclausuramento discursivo, adiciona mais uma voz à
cadeia dialógica sobre o tópico do uso de seres vivos em experimentos

Notas

1 “Recebo um formulário. Sexo? Masculino. Raça? Aí complica... Opções: negro,


branco ou oriental. Tem nenhuma das anteriores? Já me confundiram com japonês.
Olhos castanhos, ligeiramente puxados, e cabelo preto bem liso. Creio que herdei de
antepassados indígenas do Peru. Mas também tem português no meio, italiano, es-
panhol. Sou, hum... Moreno? Não pode. O enfermeiro dá fim às minhas inquietações
raciais. - Põe branco. (D’ÁVILA, 2008, p. 45).

95
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

Referências

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Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

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97
O narrador na reportagem: uma estratégia do autor

Jaqueline Lemos

1. Perspectivas para contar uma história

Neste capitulo buscamos debater como o autor e o narrador se constituem


instâncias distintas na reportagem. Apresentamos reflexões sobre o ethos do narrador
no jornalismo. Na literatura, por exemplo, é visível que o autor é aquele que cria/
elabora e assina a obra. Este autor pode adotar inúmeras perspectivas para contar
uma história, eis o narrador. De acordo com Friedman (2002), para sistematizar o ato
narrativo é preciso ter claro algumas questões a serem respondidas: quem conta a
história? Qual é a posição que o narrador adota para contar a história? Quais são os
canais que ele usa? A qual distância ele coloca o leitor da história narrada?
Autor: o repórter. Narrador: aquele que o repórter escolhe para narrar a história.
Este capítulo problematiza as distinções entre a “instância autor” e a “instância
narrador”. De acordo com Reis e Lopes (2007, p. 285), “a narratologia é uma área
de reflexão teórico-metodológica autônoma, centrada na narrativa como modo de
representação literária e não-literária”. É na perspectiva da narratologia que buscamos
observar algumas experiências de reportagem nas quais os autores das reportagens
alçaram voos experimentais e revelaram uma multiplicidade de potencialidades da
narrativa da vida real.

Concebendo a narrativa numa perspectiva organicista, a narratologia procura,


pois, descrever de forma sistemática os códigos que estruturam a narrativa,
os signos que estes códigos compreendem, ocupando-se de um modo
geral, da dinâmica de produtividade que preside à enunciação dos textos
narrativos. Por ouro lado, a narratologia, ao contemplar prioritariamente
as propriedades modais da narrativa, não privilegia em exclusivo os textos
narrativos literários, nem se restringe aos textos narrativos verbais; ela visa
também práticas narrativas como o cinema [...] ou a narrativa de imprensa.
(REIS; LOPES, 2007, p. 285).

Se desejarmos compreender e experimentar as tessituras que envolvem o


autor e o narrador no jornalismo/na reportagem, é necessário que alcemos voos
emancipatórios permeados por atos epistemológicos complexos. Um desafio proposto
por Medina (2003, p. 143):

A criação de narradores, uma vez que estes não se confundem com o


autor, responde ao impulso dialógico, e não ao autoritarismo monológico.
[...] A forma de narrar não baixa do céu de graça, mas a graça de sentir
profundamente o mundo e o outro, em movimento, encurta os caminhos
nunca dantes navegados.

98
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

É por esses complexos caminhos que buscaremos navegar aqui1. Transitamos


pelas noções de autor, narrador e estratégias narrativas na reportagem.

2. Autor, um sujeito real e empírico

Quem é o autor no jornalismo? Se mesclarmos as noções de autoria propostas


por Medina (2013) com a definição de Reis e Lopes (2007), vamos caminhar no
sentido de compreender este sujeito como um agente cultural, produtor de sentidos,
que atua, cotidianamente, na reelaboração das realidades observadas. Para Medina
(2006, p. 81), o jornalista:

[...] como privilegiado leitor da cultura, uma vez que transita na primeira
realidade, observa o mundo à sua volta e capta depoimentos dos
protagonistas sociais, ouve relatos e reúne declarações do universo
conceitual (informações especializadas, opiniões e interpretações), assume,
nessas mediações, uma responsabilidade autoral que permeia qualquer
editoria. Ao produzir sentidos – e é isso que o jornalista faz –, ele está falando
de certa cultura, com os protagonistas culturais localizados2.

Ao mesmo tempo, para Reis e Lopes (2007, p. 39), o autor é:

[...] a entidade materialmente responsável pelo texto narrativo, sujeito de


uma atividade literária3 a partir da qual se configura um universo diegético
com suas personagens, acções, coordenadas temporais etc. A condição do
autor conexiona-se estreitamente com as várias incidências que atingem
a autoria: nos planos estético-cultural, ético, moral, jurídico e econômico-
social, a autoria compreende direitos e deveres, ao mesmo tempo que atribui
uma autoridade projectada sobre o receptor.

Esse sujeito, que é um leitor cultural, é também dotado de direitos e deveres, tem
um lugar social demarcado por sua formação profissional e age socialmente também
em sintonia com o veículo de comunicação para o qual trabalha (a sintonia não significa
ausência de conflitos, mas a permanente necessidade de mediação). A identidade
social do jornalista transita no cruzamento de dois planos: 1) de um conjunto de
normas e valores tacitamente aceitos e apreendidos na sua formação profissional4;
2) de um conjunto de concepções formuladas, intuitivamente, na prática cotidiana
da profissão, nas quais se detectam os traços de visão de mundo e concepção de
jornalismo que cada autor carrega consigo.
O autor, o sujeito formal e real, tem nome, sobrenome, identidade profissional.
O autor está diretamente ligado ao exercício de um ofício. É ele quem determina o
ponto de partida da narrativa jornalística. Ao pensar em uma pauta e sugeri-la para o
chefe, o jornalista dá início à elaboração da narrativa. É o momento embrionário da
narrativa, mas o narrador ainda não está, efetivamente, configurado neste momento.
Durante todas as etapas da apuração (pesquisa, produção, observação e
entrevistas), o sujeito que age e elabora é o jornalista/autor. Este autor, a priori, define

99
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

seu modus operandi e estabelece as relações com os acontecimentos – e com os


sujeitos dos acontecimentos – permeado por um papel social do qual se espera um
determinado comportamento profissional.
Os jornalistas (autores) vão ao encontro do acontecimento demarcados pela
sua identidade profissional. O encontro com o outro tem início mediante uma clara
formalização do lugar e do papel social, nos quais um dos interlocutores (o jornalista)
está envolto. A experiência e vivência da apuração das informações é permeada pela
institucionalidade que se espera de um jornalista. Ao mesmo tempo, no processo
de edição essa mesma institucionalidade deixa suas marcas. Podemos recorrer a
Goffman (1985, p. 20) para compreender alguns dos aspectos que perpassam o
lugar formal do autor/repórter no jornalismo:

A sociedade está organizada tendo por base o princípio de que qualquer


indivíduo que possua certas características sociais tem o direito moral de
esperar que os outros o valorizem e o tratem de maneira adequada.

Assim,
Quando um indivíduo desempenha um papel, implicitamente solicita de
seus observadores que levem a sério a impressão sustentada perante eles.
Pede-lhes para acreditarem que o personagem que veem no momento
possui os atributos que aparenta possuir, que o papel que representa terá
as consequências implicitamente pretendidas por ele e que, de um modo
geral, as coisas são o que parecem ser. (GOFFMAN, 1985, p. 25).

No jornalismo, autor e narrador estão envoltos em conflituosas tramas conceituais,


quando não raro passam por um processo de “apagamento”. O jornalismo,
historicamente, recusa até mesmo a autonomia da autoria no texto, quando encarcera o
jornalista em um narrador de 3ª pessoa, disciplinado em manuais de redação. Imagine,
então, admitir que a “narrativa da vida real” possa ser elaborada por um sujeito “criado”
pelo autor? Se não há a autonomia da autoria, o jornalista é apenas aquele que redige
“narrativas enclausuradas”, conforme analisa Resende (2002, p. 42):

[...] porque partem [os jornalistas] do princípio de que sua construção


[a narrativa] depende exclusivamente de normas/regras previamente
estabelecidas que, uma vez aplicadas ao texto jornalístico, são capazes de
explicar os acontecimentos do mundo. Um dos princípios epistemológicos
do jornalismo ancora-se no fato de ser este o lugar do discurso pautado
pela verdade.

É possível perceber que as normatizações sedimentadas como verdades na


prática jornalística não só promovem um embaçamento do olhar do repórter, mas
também atam o processo de elaboração do texto. Se o jornalista aceitar, tacitamente,
que o seu lugar profissional é o do simples relato objetivo dos fatos, ele estará
abrindo mão de ser um sujeito partícipe da construção cotidiana das narrativas
da contemporaneidade. Esse problema está, frequentemente, colocado nas rotinas
profissionais, como verifica Christofoletti (2004) na sua tese de doutorado. Ao
100
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

investigar a questão da objetividade e da autoria na reportagem, ele diz:

Na maioria dos produtos jornalísticos oferecidos ao público, existe uma


tentativa deliberada de calar os sujeitos que reportam em detrimento de uma
suposta possibilidade de os fatos falarem por eles mesmos. Nas redações,
nos estúdios, e nas ruas, o repórter deve desaparecer em nome da notícia.
(CHRISTOFOLETTI, 2004, p.165).

Mas também alerta que fazer desaparecer a autoria no jornalismo é impossível,


posto que:
A comunicação, e em especial o Jornalismo, envolve sujeitos que consomem
informações e sujeitos que as produzem e as disseminam. Por mais que
se tente, não é possível fazer desaparecer os sujeitos dessa equação.
Por natureza, a atividade é humana e não pode prescindir dos elos que a
compõem. A cada tentativa de matar o autor, mais o estilo se firma como
um eco da voz do criador. Não só na literatura, mas também no jornalismo
(CHRISTOFOLETTI, 2004, p.173).

A partir dessa premissa, é possível caminhar no sentido oposto a um conjunto de


valores e práticas que, hegemonicamente, está alicerçado nas rotinas profissionais
jornalísticas. Eis a possiblidade de um ethos: compreender o jornalismo como uma
forma de mediação social, cujas narrativas estejam abertas à pluralidade, à polifonia,
à dialogia, à experimentação, portanto, à complexidade.
O jornalista, dotado de autoria, é um sujeito que se deixa tocar pelos fatos e que
se coloca na perspectiva de elaborar sujeitos outros aos quais cabe a arte da tessitura
do presente, da narrativa do presente. Exige-se uma postura complexa do jornalista,
como ressalta Medina (2008, p. 98):

[...] a reportagem, na sua estilística interpretativa, articula [...] entrevistas


conceituais com o protagonismo e o contexto sociocultural numa narrativa
autoral que põe em movimento a aventura humana. O resgate da cena
viva exige a criação de um narrador que dramatize o que se passa à sua
volta. Para isso o autor da narrativa é um ser aberto aos demais códigos da
experiência social que observa.

A postura complexa, um olhar amplo sobre a vida é citado como uma


necessidade também por Martinez (2008, p. 39):

[...] os comunicadores sociais envolvidos na produção de biografias, perfis


e grandes reportagens precisam transcender o mero domínio dos aspectos
técnicos da profissão. Uma vez que a sua missão é a de captar fatos e seus
desdobramentos, eles necessitam de amplo conhecimento sobre a vida.

Medina (2008) reitera a importância da desobstrução dos sentidos para que o


jornalista seja capaz de uma narrativa fértil. Uma narrativa provocativa, inquietante,
problematizadora da realidade? Sim! Com uma postura epistemológica que promova
o rompimento com reducionismo, com as padronizações e os superficialismos.

101
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

Ou melhor,

O que efetivamente sinaliza a busca autoral é a narrativa dos afetos.


Descobrir-se afeto ao seu tempo. Perceber a dimensão identitária de estar
afeto ao outro, embora existam conflitos e diferenças que são inerentes à
convivência. (MEDINA, 2006, p. 77).

Pois,

A plenitude dos cinco sentidos no repórter afeto ao acontecimento lhe dá


condições para ensaiar uma compreensão da dinâmica do caos em seus
múltiplos códigos. Jornalistas que narram tanto o cotidiano quanto o evento
extraordinário são convidados a fertilizar o texto verbal com notações não-
verbais. (MEDINA, 2008, p. 107).

3. Um passeio por quatro reportagens

Se compreendermos a busca autoral do repórter como uma condição inequívoca


para a possibilidade de dar maior complexidade ao ato narrativo, o autor assume
perspectivas distintas no texto. Isto é, mobiliza distintos narradores. Abre-se para
a possibilidade de articular vozes, visões de mundo e experiências no desejo de
compreender a atualidade. Adota estratégias singulares para contar o que vê e o
que e apura. Aqui neste capítulo, trazemos à reflexão experiências de estratégias
narrativas singulares expressas em quatro reportagens, a saber: Povo caranguejo5,
de Audálio Dantas; Sonhos e frustrações do Velho Chico6, de Cremilda Medina; Sou
suçuarana7, de Ivan Marsiglia e Memórias póstumas de um estudante da Medicina8,
de Angelo Ishi.
[Reportagem 1] O repórter Audálio Dantas, lá nos idos de 1970, recebeu a
incumbência de acompanhar a vida de catadores de caranguejo. E lá foi ele. Por uma
semana, se embrenhou nos mangues na aldeia de Livramento, uns 20 quilômetros de
João Pessoa, no estado da Paraíba. Como parceira de empreitada jornalística, Audálio
teve a companhia da fotógrafa Maureen Bisilliat. Povo caranguejo é a história que eles
contam e que rendeu, além do destaque na capa da edição da revista, mais oito páginas
de texto e fotos. Impossível conter o espanto ao ler uma batalha visceral entre homem
e caranguejo. Entre caçador e caça. Mas não era uma simples batalha, narrada com
o olhar de um observador distante da ação. Audálio se dispôs a “enfiar o pé na lama”9
(DANTAS, 2012, p. 113) expressão que ele mesmo usa para justificar suas escolhas.
O texto narrado em terceira pessoa adota, esquematicamente, dois pontos de
vista: do homem e do caranguejo. A reportagem nos transporta para uma batalha no
mangue, que segue o ritmo da lida na cata dos crustáceos. Trecho do homem. Trecho
do caranguejo. Trecho do homem. Trecho do caranguejo.
Trecho do homem.
Compadre Ota, Zé Preto, Luciano e Sabino reúnem-se no alpendre da venda
de dona Nevinha, sobre o pequeno Porto do Livramento. A aldeia ainda está

102
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

mal amanhecida, dormindo em seus ranchos debaixo das jaqueiras e das


mangueiras. As luzes de João Pessoa ainda brilham a distância, sumidas
e trêmulas, acima da massa escura dos mangues. Eles são os primeiros
homens a chegar e começam a preparar as canoas — Nazaré e Correio da
Ilha — para a viagem em busca dos caranguejos.

Trecho do caranguejo.

Na solidão e no silêncio sombrios do lamaçal, caranguejo é rei. Riscam a face


lisa e negra da lama com suas patas cabeludas, as molas atentas, agressivas,
movendo-se como alicates, à espera das folhas de mangue, que caem de
maduras ou derrubadas, pelo vento. As molas — patas maiores — recolhem
rapidamente as folhas, que são o alimento principal dos caranguejos desses
pântanos distantes de cidade (quando encontram, eles comem de tudo —
dejetos humanos, frutas, bichos mortos). [...]

De repente, o fervilhar aumenta. Há uma enorme agitação, um rápido correr


de lado, para todos os lados. Os homens estão chegando, a pisar forte e
profundamente a lama. Fuga. Fundo de buraco. Medo.

[Reportagem 2] A pesquisadora e repórter Cremilda Medina, em tempos de Signo


da Relação à frente da Coordenadoria de Comunicação Social da USP, aproveitou
para mergulhar na história do rio São Francisco. A reportagem “Sonhos e frustrações
do Velho Chico” é a história que ela conta. Ancorada na pequena Pirapora, norte de
Minas Gerais, à margem direita do rio, Cremilda dá voz ao próprio São Francisco que
vagueia entre passado e presente num diálogo de profundezas.
O texto narrado em primeira pessoa, na perspectiva do rio, faz uma síntese afetuosa
dos caminhos, conflitos, contradições e possibilidades de futuro que o São Francisco
tem. Documentos fundadores, um acervo municipal e a memória dos ribeirinhos vão
tecendo, pari passu, com o Velho Chico uma narrativa caudalosa, composta de cenas
míticas, donde quase é possível vislumbrar ele, Chico, personificado num sábio em
ruminações com o mundo.
Assim começa a narrativa:

Já me chamaram “rio sem história”, depois reconheceram que sou importante


na unidade e na integração nacional. Coisas da civilização moderna, porque
desde tempos não registrados, sou o caminho das águas para os andarilhos
de terras de Santa Cruz. Ficaram para sempre aqui, no meu primeiro trecho
navegável, as marcas dos índios que habitaram nas minhas margens:
Pirapora, de origem tupi, conjuga pira (peixe) e poré (salto). A cachoeira onde
o peixe salta. Isso me faz lembrar guerras antigas. Os índios cariris, aqui
abrigados das lutas na costa atlântica, atacaram os bandeirantes em 1687.
A bandeira de Fernão Dias Paes Leme desceu o Rio das Velhas e, na batalha
que se travou na altura das cachoeiras de Pirapora, os nativos venceram os
invasores.

Mais adiante, o rio-narrador dá as mãos para uma moradora, com quem partilha
a história:

103
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

Você conhece dona Maria Eugênia? Se encontrar com ela, ouça só: aos 75
anos, firme e alegre, mulher de forte presença como muitas que você vai
encontrar no interior de Minas, Goiás, Bahia, Rio Grande do Norte, enfim,
nessas terras longe das águas atlânticas, conta os vinte e três filhos, nove,
infelizmente, já morreram, mas aí estão onze mulheres e três homens para
contar a história.

Dona Maria Eugênia, matriarca do povoamento contemporâneo do sertão,


ainda criou mais 28 meninos, seus afilhados, que vieram da roça com a
roupa do corpo, muitas vezes sem sapatos. A sua casa, irrigada pelas minhas
águas, deu teto, comida e roupa lavada para todos os necessitados.

[Reportagem 3] O repórter Ivan Marsiglia, quase findando a primeira década


do século XXI, em momento de especial maestria no jornal O Estado de S. Paulo,
publica a reportagem “Sou suçuarana”, no caderno Aliás, impulsionado por uma
informação veiculada no dia 14 de setembro no mesmo diário. Ao revisitar o tema
já explorado na forma de notícia, Marsiglia adota como narrador da história a onça
batizada de Anhanguera. Personagem principal da história e narrador, o animal
ganha voz, memória, ironia e olhar astuto para conduzir o leitor às idiossincrasias
do mundo humano contemporâneo, que valoriza condomínios ecológicos
amplamente protegidos.
Na narrativa, as contradições do ser humano urbano soam estranhas, descabidas,
incompreensíveis na perspectiva do animal. Enquanto proseia com o leitor, Anhanguera
deixa seus rastros de bicho do mato. “Vagueia”. Está acostumado a “zanzar”. “Busca
de-comer”. “Agarrou vereda nesse mundéu”. Enfim, a aventura de um atropelamento
às margens da Via Anhanguera, no km 71, assume feições de fábula na reportagem
jornalística. E a gente segue a onça-parda nas suas andanças e divagações.
O narrador conta o atropelamento:

[...] Como ia contando, domingo à noite já estava cansado de vaguear


atrás de uma refeição quentinha: o senhor sabe que eu só saio para comer
quando escurece. E, com o desassossego da juventude - só tenho 1 ano de
idade -, agarrei vereda nesse mundéu. Quando dei por mim tinha descido a
ribanceira toda, escutando a barulhada que vem da toca de vocês. Tenho
audição sensível, de ouvir detalhe, farfalhar. De modo que fiquei atordoado
com tanta balbúrdia. Para piorar, aquelas luzes passando... Olho de gato é
feito para enxergar no escuro, viu? Então me apercebi que o dia já ia raiar e
eu ali, tão longe de casa. Corri em disparada.

A onça-parda, enquanto se recuperava do atropelamento, traz a perspectiva dos


humanos para o texto:

Ainda ontem, da jaula de 1 m por 1,5 m onde estou convalescendo, ouvi


o dono da ONG, Jorge Bellix, explicar que os muros dessas propriedades
funcionam como uma armadilha para os animais. Irracionais que somos, a
cada vez que saímos da área de proteção e damos nos fundos do condomínio,
em vez de voltar para trás, tentamos contornar a muralha. E, assim, caímos
direto nas ruas e rodovias. Sem falar nos fios de alta tensão, no arame

104
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

farpado e nas cercas eletrificadas. Jorge disse que não sou o primeiro de
minha espécie a pôr o focinho nas redondezas esse ano, embora certos
estudos de licenciamento digam que não há animais em risco de extinção
por aqui.

[Reportagem 4] O repórter-estudante Angelo Ishi, quando ainda um aprendiz de


jornalista nas salas da ECA/USP, estava aberto às experimentações que o laboratório
da vida universitária oferece. Permeado pelas provocações da mestra Cremilda Medina,
ele iria muito além do lead ao noticiar o suicídio de um jovem estudante de medicina.
Em uma reportagem sintética, sem imagens, diagramada no canto inferior do Jornal
do Campus, o estudante de jornalismo alçava um voo autoral de singular afetuosidade.
“Memórias póstumas de um estudante da Medicina” é a história que ele conta.
Angelo Ishi optou por elaborar uma reportagem em primeira pessoa, assumindo
a perspectiva do estudante de medicina já morto. De clara inspiração machadiana, o
narrador-defunto, procura reconstruir “o que talvez seriam suas palavras póstumas”.
Numa apuração que envolveu entrevistas com amigos, professores e familiares, o
repórter expõe, de forma visceral, os conflitos, inquietudes, dramas e dores do aluno
de medicina.
Vejamos o início da reportagem:

Me matei — e comigo morreu um pouco de todos eles. A aula começou,


mas continuaram ali, sentados na escadaria. Chocados, arrasados. Será
que agi mal? Silêncio. O repórter chega, logo adivinha meus amigos: e o
suicida? Sérgio o chama para um canto: “Ele já está enterrado”. Sim, eu,
Pedro Bezerra Arantes, terceiranista, aluno da turma 73, matei-me às onze
da manhã, no quarto de casa, na Consolação. Meu corpo foi encontrado às
13h pela empregada. Deixei escrita uma pequena carta, que a polícia levou.
Como meus pais, os amigos da faculdade passaram a noite em claro. Ainda
pensam estar vivendo um pesadelo. Estou morto! Morto... Era bonito, rico,
nem precisava trabalhar... Como justificar?

As quatro reportagens aqui observadas têm narrativas que podem nos conduzir
à uma reflexão epistemológica sobre o ethos do narrador no jornalismo. Justamente
por deixarem explícita a diferença entre narrador e autor, aqui encontramos peças
jornalísticas que são reveladoras dos caminhos da narrativa. Audálio Dantas,
Cremilda Medina, Ivan Marsiglia e Angelo Ishi não se furtaram a ir plenamente ao
outro – assumir sua voz em primeira pessoa. Mesmo no texto de Dantas, no qual a
narrativa está em terceira pessoa, a voz do caranguejo vem à tona com a mesma
intensidade da voz humana. São exemplos raros, que não fazem parte das rotinas
em veículos de comunicação. A experimentação e singularidades detectadas nestas
quatro reportagens colocam-nos diante da explicitação das duas instâncias – autor
e narrador.

4. Narradores: percursos e escolhas dos autores

Contar uma história é uma forma de ressignificar o tempo, o espaço e os sujeitos.


105
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

É o narrador quem conta, conduz, guia, alinha palavras e acontecimentos. Então,


perguntamos: quem é o narrador no jornalismo? Dificilmente este questionamento pode
ser feito no singular. Portanto, quem são os narradores no jornalismo? O plural, logo
de início, traz uma marca forte desta noção quando no campo jornalístico. A narrativa
jornalística é, preponderantemente, uma costura, uma articulação de narrativas. De
acordo com Medina (2014, p. 49), “ao narrar, o escritor mobiliza múltiplos narradores
literários, muitos coautores e receptores da mensagem. A intertextualidade existe
antes, durante e depois de uma escritura”.
A constituição do(s) narrador(es) do jornalismo está sob a batuta do autor da
reportagem. É o repórter – aquele que observou, sentiu, viu e ouviu –, o sujeito
que impulsiona o “nascer” dos narradores na reportagem. Pelo que foi possível
compreender das leituras das reportagens e diálogos com os respectivos autores,
os elementos disparadores do processo de criação dos narradores se dá por um
conjunto de variáveis intrincadas: na observação atenta e sensível dos fatos
e personagens; na experiência in loco (isto é, ir aos acontecimentos); no
diálogo com distintas fontes de informação/personagens; na costura de
visões/opiniões/vozes na elaboração do texto.
Para uma definição de narrador, recorremos a Reis e Lopes (2007, p. 257-258):

[...] o conceito de narrador deve partir da distinção inequívoca relativamente


ao conceito de autor, não raro susceptível de ser confundido com aquele,
mas realmente dotado de diferente estatuto ontológico e funcional. Se
o autor corresponde a uma entidade real e empírica, o narrador será
entendido fundamentalmente com o autor textual, entidade fictícia a quem,
no cenário da ficção cabe a tarefa de enunciar o discurso, como protagonista
da comunicação narrativa.

[...] o narrador é, de facto, uma invenção do autor; responsável, de um ponto


de vista genético, pelo narrador, o narrador pode projetar sobre ele certas
atitudes ideológicas, éticas, culturais etc., que perfilha, o que não quer
dizer que o faça de forma directa e linear, mas eventualmente cultivando
estratégias ajustadas à representação artística dessas atitudes: ironia,
aproximação parcial, construção de um alter ego, etc.

Entidade fictícia. Autor textual. Invenção do autor. Definições precisas e claras


no mundo das artes, mas uma caixa de marimbondos no mundo do jornalismo.
Embarcamos aqui em um universo de reflexão que encontra ressalvas e rejeições
várias de estudiosos da comunicação. Entretanto, é impossível deixar de meter a mão
na caixa de marimbondos.
Narradores em primeira pessoa. Narradores em terceira pessoa. Mutantes.
Invisíveis. Próximos. Afastados. Acima. Ao lado. Adiante. Atrás. Solidários. Generosos.
Pacientes. Questionadores. Mediadores. Ensimesmados. Ordeiros. Irônicos.
Autoritários. Imperiosos. Banhados das falas e da vivência da apuração. Impregnados
da experiência de campo. Centrados no eixo da psiquê do autor. Centrados na psiquê
de outrem. Mais, mais e muito mais. Eis as múltiplas possibilidades da composição
dos narradores na reportagem.
106
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

Para além de um olhar reducionista e permeado pela “gramática normativa”


(MEDINA, 2003; 2006) da narrativa jornalística, é possível, sim, identificar que
há sujeitos distintos mobilizados na narrativa de uma reportagem. Há profundas
heterogeneidades nesse processo: daquilo que é uma experiência mais radical,
digamos, como um narrador-rio; um narrador-defunto; um narrador-bicho tal qual neste
capítulo; àquilo que poderíamos, convencionalmente, denominar como narradores
clássicos, especialmente aquele que se posiciona em terceira pessoa e procura “um
distanciamento” do que é narrado. Então, quais seriam, as relações que podemos
pontuar para caminhar no sentido de alinhavar elementos que compõem o ethos do
narrador no jornalismo?
A tradição teórico-conceitual (também deontológica) na qual o jornalismo está
preponderantemente envolta, de proposição explicativa, monocausal e asséptica
nos conduz à pretensão de narrar com distanciamento, com uma “pressuposta
neutralidade” e com primazia de objetividade. Ancoradas na postura epistemológica
hegemônica, as técnicas profissionais que moldam as narrativas pouco contribuem
para que repórteres sejam instigados à autonomia, capazes de assumirem a condição
de autores e experimentarem todas as potencialidades da construção de narradores
na elaboração de reportagens.
A mudança de foco narrativo é um dos elementos que pode enriquecer o
conhecimento do real no campo da reportagem. É uma atitude de descentralização
da autoria no caminho rumo ao outro; é uma atitude de democratização das possíveis
leituras de mundo que a reportagem proporciona, enquanto uma privilegiada forma
de narrativa da contemporaneidade.
 O jornalismo teme explorar a descentralização do foco narrativo/ponto de
vista e a democratização de vozes?
O narrador em terceira pessoa e distanciado corresponde a uma postura
epistemológica tradicional no campo do jornalismo, alicerçado numa posição
positivista e racionalista com a pretensa possiblidade de controle daquilo que se narra.
Entretanto, mesmo o narrador em terceira pessoa pode banhar-se das incertezas, das
problematizações que a contemporaneidade provoca em cada um de nós.
 Autores “afetos à” cena viva da realidade, ao outro e às incompletudes do
humano ser potencializam narradores de maior complexidade?
O “deslocamento de sujeito” experimentado pelo repórter-autor para narrar está
na episteme do ato narrativo. Impossível evitá-lo, ignorá-lo. O autor pode caminhar
por trilhas experimentais ou tradicionais. Pode tatear novos caminhos. É no encontro
com o outro, na observação atenta, sutil e minuciosa das realidades encontradas que
o autor se abre para a disponibilidade de elaborar/constituir narradores. Entretanto,
cabe alertar que o deslocamento de sujeito no ato narrativo não é per si garantia
de uma narrativa complexa, solidária, compreensiva, generosa, problematizadora.
Os sujeitos mobilizados pelo autor para narrar podem ser autoritários, incisivos,
professorais, arrogantes...
 Uma trilha possível seria a confluência da problematização de uma postura
epistemológica complexa; com uma postura de autonomia autoral do repórter;
com um deixar-se levar pelos intuitivos signos da relação?
107
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

Notas
1 Neste capítulo, trabalhamos com uma síntese da tese de doutorado O autor
e o narrador nas tessituras da reportagem, elaborada sob orientação de Cremilda
Medina, na qual estabelecemos diálogos com 10 repórteres e um conjunto de 20
reportagens para detectar as estratégias narrativas adotadas pelos autores para
contar cada uma das histórias que eles apuraram. Para além destes diálogos, a tese
foi construída a partir da observação das estratégias singulares adotadas por quatro
outros repórteres, que fizeram opções narrativas incomuns no jornalismo. Foram
estes quatro textos que nos despertaram para a problematização da questão: autor e
narrador na reportagem.
2 Grifos meus.
3 Reis e Lopes sempre fazem referência ao ambiente literário nas suas definições,
entretanto, podemos trazê-las para o campo jornalístico.
4 Neste ponto vale ressaltar a obra de Carlos Eduardo Sandano Santos, Para
além do código digital: o lugar do jornalismo em um mundo conectado, publicada
em 2015, pela EDUFSCAR. O autor discute o status epistemológico do jornalismo, os
valores culturais e sociais nos quais o exercício profissional está envolto. Caminha
para “descrever o jornalismo como uma ação comunicativa virtuosa, realizada
por mediadores epistemologicamente qualificados e responsáveis, que visa ao
endossamento democrático e à afirmação de solidariedade nas relações humanas”.
5 A reportagem Povo caranguejo foi publicada na revista Realidade, em edição
de março de 1970. Tem quase 25 mil caracteres. Na capa, com foto de uma menina
enlameada, havia a manchete Vida Corajosa.
6 A reportagem Sonhos e frustrações do Velho Chico foi publicada no Jornal da
USP, ano XVIII, no 666, de 17 a 23 de novembro de 2003. O texto ocupa as páginas
10 e 11 da edição do jornal, tem quatro fotos e pouco mais de 16 mil caracteres.
7 A reportagem Sou suçuarana foi publicada no jornal O Estado de S.Paulo, de
20 de setembro de 2009. O texto ocupa a página J8 do caderno Aliás, tem cinco fotos
e pouco mais de 8 mil caracteres.
8 A reportagem Memórias póstumas de um estudante da Medicina foi publicada
no Jornal do Campus, jornal laboratório do curso de jornalismo da ECA/USP, edição no
54, de 14 de setembro de 1987. O texto ocupa parte da página 7 do jornal, sem fotos,
e tem um total de quase 6 mil caracteres.
9 A afirmação é dita em um texto do livro Tempo de reportagem – histórias
que marcaram época no jornalismo brasileiro, publicado com uma coletânea de
treze textos do repórter, cada um deles com uma breve reflexão sobre a apuração, as
escolhas narrativas em cada situação.

108
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
Referências

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Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

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110
II VISADAS APLICADAS
A narrativa micro-histórica em O olho da rua:
as personagens anônimas na prosa de Eliane Brum

Francisco Aquinei Timóteo Queirós

1. Micro-história e jornalismo: aproximações

O presente capítulo ancora-se nos pressupostos da micro-história na tentativa


de compreender como a redução de escala de observação e a exploração exaustiva
das fontes podem auxiliar na representação da vida das pessoas comuns na
narrativa jornalística. Sob essa perspectiva teórico-metodológica serão analisadas as
reportagens A floresta das parteiras e A guerra do começo do mundo, presentes no
“livro de repórter” O olho da rua, da jornalista Eliane Brum.
Carlo Ginzburg (2007) serve de parâmetro para se analisar os contextos sociais,
históricos e, por extensão, jornalísticos a partir de uma escala reduzida. Seus trabalhos
focalizam os indivíduos em detrimento dos agregados anônimos de longa duração.
Desse modo, a micro-história tem se constituído como uma metodologia importante
para o trabalho dos historiadores, principalmente, por ajudar na reconstrução de
trajetórias e biografias. Tomando-se a microanálise como caminho epistemológico,
nota-se que os acontecimentos e fatos assumem uma dimensão social, em que as
narrativas engendram uma gama profusa de sentidos e promovem o aprofundamento
dos aspectos históricos – adotando como termo central o indivíduo – em contraposição
aos valores arraigados que colocam em primeiro plano a história social dominante.
O trabalho de Eliane Brum pode ser concebido dentro dessa vertente – uma vez
que a vida dos sujeitos ditos subalternos é elevada ao patamar do debate social e suas
histórias emergem como acontecimentos jornalísticos. O estudo baseia-se também
na articulação com o pensamento dos comentadores Henrique Espada Lima (2006)
e Carlos Antonio Aguirre Rojas (2012).
Richard Romancini (2007) pontua que os campos jornalístico e histórico
guardam profundas semelhanças. Esse aspecto é constatado nas diretrizes teórico-
metodológicas dos estudos sobre história do jornalismo e também nas investigações
em que “o jornalismo serve de fonte ou objeto para a História” (2007, p. 24).
Compreende-se que o campo jornalístico é clivado por práticas sociotécnicas e
por linguagens. Desse modo, o fazer jornalístico instaura um intricado processo de
interação – atravessado por dinâmicas de disputa que transformam o tecido social.
A prática jornalística é pensada aqui como arena de significação e de inteligibilidade
sócio-cultural, tendo-se a micro-história como processo hermenêutico para a
compreensão e discussão do “livro de repórter” O olho da rua.
A disciplina historiográfica forja seu aparato científico em fins do século XIX,
assentando suas ideias sob as premissas do historiador alemão Leopold von Rank.

112
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

O paradigma rankeano sedimenta suas matrizes de investigação à luz dos arquivos


oficiais – nutrindo-se na crença de que os documentos dos governos e das autoridades
garantem uma maior cientificidade e credibilidade aos estudos do campo da história.
O modelo de von Rank apresenta marcas profundas dos ideais de objetividade
científica – encontrados no positivismo de Auguste Comte.
Este modelo de pesquisa histórica – chamado de tradicional – apresentará uma
mudança de paradigma somente no século XX, com a primeira geração da Escola
dos Annales, liderada por Lucien Febvre, Marc Bloch e Fernand Braudel, em 1929.
As principais críticas ao modelo rankeano dizem respeito “à tentativa de superar o
nível da descrição dos acontecimentos para alcançar uma análise das estruturas,
ou seja, a compreensão dos mecanismos que presidem as mudanças históricas”
(ROMANCINI, 2007, p. 26).
Romancini (2007) coloca os pressupostos da Escola dos Annales dentro do que
se denomina de paradigma “moderno” dos estudos historiográficos. Com o pós-
1968 emerge a concepção “pós-moderna” de pesquisa histórica, com a finalidade de
entender o dinâmico e complexo devir social.

Com efeito, a insatisfação com as teorias de viés holístico existentes – ou


a dificuldade para construí-las – a fim de explicar a realidade social e as
mudanças colocaram dificuldades ao paradigma “moderno”. Ao mesmo tempo,
ensejaram as alternativas ou respostas, ao seu modo, do novo paradigma.
Assim, em perspectivas mais relativistas da corrente “pós-moderna” a própria
noção de que deva existir uma teoria global é vista como problemática ou
superada (...). A possibilidade de realizar uma macroanálise seria uma ilusão
cientificista. Propõe-se então – neste extremo relativista do paradigma – a
feitura de diferentes discursos, “histórias” sobre ou para grupos particulares.
(ROMANCINI, 2007, p. 27-28).

É na confluência dessas discussões que a micro-história italiana alcança espaço


privilegiado para pensar os contextos socioculturais e também a crise política, teórica
e historiográfica. O olhar da história – antes consagrado aos processos macrossociais
– direciona suas interrogações e problemáticas de pesquisa para os novos sujeitos
sociais, como os estudantes, as mulheres, os migrantes e os anônimos. Há um
deslocamento das análises totalizadoras para os processos microscópicos do social.
O jornalismo desenvolvido por Eliane Brum, em O olho da rua, pode ser analisado
à luz das matrizes analíticas presentes na micro-história italiana. O relato de Brum
desvia a pauta jornalística das discussões hegemônicas para uma abordagem em
que o sujeito comum aparece como o articulador social.
Observa-se, nesse sentido, uma aproximação do campo jornalístico com a micro-
história no que diz respeito à forma como se articulam os discursos, os sujeitos e os
aspectos culturais. Pensar a narrativa jornalística de Eliane Brum a partir do arcabouço
teórico da micro-história italiana constitui um trabalho de reflexão necessário –
porque permite trazer para o primeiro plano as discussões sobre os anônimos e a
constituição microanalítica dos contextos sociais e culturais. Para entender como as
análises da micro-história podem auxiliar na compreensão da prosa jornalística de
Brum é necessário investigar como essa corrente historiográfica se estruturou, quais
113
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

são suas ferramentas de análise e os principais pensadores.


Os primeiros debates sobre a micro-história remontam a década de 1970 em torno
da revista Quaderni Storici1 – fundada em Ancona por Alberto Caracciolo - durante o
outono de 1965. A revista mais tarde seria editada em Bolonha com a colaboração
de diversos historiadores ligados à micro-história, como Edoardo Grendi, Carlo Poni,
Giovanni Levi e Carlo Ginzburg.
Lima (2006) explica que, é em torno da revista Quaderni Storici, que os principais
textos programáticos e os primeiros trabalhos influenciados pela micro-história irão
aparecer. Os Quaderni Storici são marcados por uma clara atitude interdisciplinar.
A revista começa a ocupar um espaço destacável frente às demais publicações de
história na Itália, como os Studi Storici, revista do Instituto Gramsci e a tradicional
Rivista Storica Italiana. Suas discussões estão centradas na “amostra”, isto é, afasta-
se de uma perspectiva epistemológica de se pensar o regional a partir do nacional;
pelo contrário, tenta-se entender a “história local”, seus sujeitos e suas problemáticas
a partir de um recorte circunscrito de análise.
Rojas (2012, p. 89) alerta para a perspectiva problemática contida no termo
micro-história que, ao contrário do que se pode supor, não busca pensar uma história
de microespaços, microrregiões ou microlocalidades, isto é, “uma história local ou de
espaços pequenos -, mas antes uma nova maneira de se enfocar a história”. Desse
modo, o caminho traçado pela micro-história italiana sedimenta suas bases sobre
os procedimentos de mudança de escalas no âmbito de observação e também de
análises pormenorizadas das problemáticas históricas.

Isso significa que ela utiliza o acesso aos níveis “micro-históricos” – as


escalas pequenas ou reduzidas de observação, que podem ser locais,
mas também individuais ou referidas a um fragmento, uma parte ou um
elemento de uma realidade qualquer – como espaço de experimentação
e de trabalho, como procedimento metodológico para o enriquecimento da
análise. (ROJAS, 2012, p. 89).

Nas páginas dos Quaderni Storici, os debates acerca do estudo microanalítico


envolvendo a família e as comunidades do Antigo Regime são desenvolvidas por
Edoardo Grendi, Giovanni Levi e Gérard Delile. O diferencial desses estudos iniciais,
além de uma aproximação com a história oral e com a antropologia, dizia respeito
à escala de análise. Em vez de se focalizar nas instâncias de longa duração e em
vastos espaços geográficos, os estudos apontavam para uma investigação sobre
comunidades, grupos familiares e indivíduos. Optava-se, portanto, por uma escala
reduzida de observação.

A justificativa dessa redução de escala estava no fato de que apenas no âmbito


“microscópico” seria possível articular de modo mais consistente os vários
perfis que as fontes seriais produziam – originalmente independentes entre
si – em uma compreensão coerente da realidade social. As fontes seriais,
tratadas em escala reduzida, não deveriam, portanto, ser consideradas apenas
separadamente. Ao contrário, seriam combinadas entre si de modo a revelar,

114
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

ainda que indiretamente, o conjunto de estratégias comuns e individuais que


constituem o concreto das relações sociais. (LIMA, 2006, p. 62).

A escala reduzida de observação constitui um elemento importante para se


pensar os contextos microssociais – uma vez que permite uma visão mais ampla
das dinâmicas cotidianas. Isso significa que a opção por uma escala particular de
observação resulta em efeitos de conhecimento distintos. A variação de escala não
quer dizer ampliar ou diminuir o corpus, porém, consiste em analisar as mudanças na
forma e na trama. Atrelada à ideia de escala, apresenta-se a do “método nominativo”.
Lima (2006) pontua que, em termos gerais, o “método nominativo” significa um
exame histórico caracterizado pela interrogação sobre um espaço delimitado e pela
necessidade de reconstituição da teia que reveste o tecido social em que os sujeitos
estão inseridos.
Dessa forma, como destaca Ginzburg, Poni e Castelnuovo (1991), em O nome e o
como, a pergunta sobre o sujeito reconstitui as estruturas sociais. Os autores definem
a micro-história como uma “prosopografia a partir de baixo”, isto é, apresentam-
na como uma busca para reconstituir uma biografia coletiva, tentando colocar em
primeiro plano as ações e pontos de vistas das chamadas classes subalternas.
A corrente historiográfica italiana erige suas linhas temáticas e metodológicas,
sustentando-se sob as bases da microanálise e da redução da escala de observação.
A primeira tem as redes de relações sociais como processo catalisador e definidor. A
segunda operação desdobra-se sobre problemas historiográficos, tendo as biografias
e os estudos de caso como corpus de investigação privilegiados.
A micro-história trouxe para o primeiro plano as discussões referentes aos sujeitos
marginalizados, subalternos, as pessoas comuns. Nessa senda, destacam-se as
obras O queijo e os vermes: o cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela
Inquisição (publicado em 1976), de Carlo Ginzburg, e A herança imaterial: trajetória
de um exorcista no Piemonte do século XVII (lançado em 1985), de Giovanni Levi.
Igor Sacramento (2014) ressalta que os trabalhos referenciados no parágrafo
acima procuram engendrar novos amálgamas entre o particular e o geral ao restringir
a escala de análise ao plano do indivíduo comum:

No lugar dos grandes personagens tidos como responsáveis pelos grandes


acontecimentos, passou a fazer parte da história sujeitos subalternos,
comuns e esquecidos. Por conta disso, a microanálise histórica se estruturou
no jogo entre a descrição detalhada do que é enfocado com a relação com o
contexto social mais amplo e que passa a ser complexificado pela análise do
microssocial. (SACRAMENTO, 2014, p. 167).

A microanálise tem se constituído como uma metodologia importante para o


trabalho dos historiadores, principalmente, por ajudar na reconstrução de trajetórias e
biografias. A questão central passa a ser a de problematizar os sujeitos colocando-os em
diferentes contextos e relações sociais, salientando semelhanças e, principalmente,
diferenças. Trazendo Ginzburg (2007, p. 264) ao debate:

115
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

Reduzir a escala de observação queria dizer transformar num livro aquilo


que, para outro estudioso, poderia ter sido uma simples nota de rodapé
numa hipotética monografia sobre a Reforma protestante no Friul. (...) Pouco
a pouco me dei conta de que uma grande quantidade de acontecimentos e
conexões que eu ignorava totalmente contribuiu para orientar as decisões
que eu imaginara tomar automaticamente: um fato em si banal, mas sempre
surpreendente, porque contradiz as nossas fantasias narcísicas.

Sob a perspectiva da microanálise, os acontecimentos e fatos assumem


uma dimensão social, em que as narrativas articulam os sentidos e promovem o
aprofundamento dos aspectos históricos – tomando como termo central o indivíduo
– em contraposição aos valores arraigados que colocam em primeiro plano a história
social dominante.
O trabalho de Eliane Brum2 pode ser concebido dentro dessa vertente – uma vez
que a vida dos sujeitos ditos subalternos é elevada ao patamar do debate social e
suas histórias emergem como acontecimentos jornalísticos.
Em duas obras bastante destacáveis, A vida que ninguém vê (2006) e O olho da
rua (2008), Brum apresenta personagens como habitantes de favelas e trabalhadores
que executam atividades simples e modestas. Mostra, por exemplo, a vida de um
carregador de malas, uma mulher analfabeta cujo sonho é aprender a ler, parteiras
que moram nas florestas da Amazônia, garimpeiros e idosos abandonados em casas
de repouso.
Para Cardoso (2016), diferente das bases do jornalismo referencial, a escrita de
Brum prioriza “as vozes ordinárias”. A autora de O olho da rua deixa cair um olhar
oblíquo sobre as fontes institucionalizadas, isto é, os valores-notícia que guiam sua
prática estão assentados sob as bases da imersão no cotidiano e pela “visibilidade
dos esquecidos sociais”.
Apreende-se, a partir de Cardoso (2016), que o lugar de estudo sobre os anônimos
configura-se como campo aberto à problematização. Essa atitude permite determinar
a identidade dos sujeitos, os lugares sociais que ocupam, suas posições hierárquicas
e o seu ordenamento para se colocar na disputa das representações sociais.

2. A floresta das parteiras e A guerra do começo do mundo

A corrente investigação busca pensar os sujeitos subalternos na prosa


jornalística de Eliane Brum. Nessa perspectiva serão analisadas as reportagens A
floresta das parteiras e A guerra do começo do mundo presentes no “livro de repórter”
O olho da rua. A pesquisa adota como aporte teórico-metodológico a micro-história
italiana, tendo-se as pesquisas de Carlo Ginzburg como o leitmotiv para se discutir a
presença das pessoas comuns na tessitura da prosa jornalística.
O livro O olho da rua foi inicialmente publicado em 2008 e é resultado de
reportagens produzidas por Eliane Brum para a revista Época. A obra foi lançada pela
editora Globo e é composta pelas reportagens A floresta das parteiras, A guerra do
começo do mundo, A casa de velhos, O homem estatística, O povo do meio, Expectativa
de vida: vinte anos, Coração de ouro, Um país chamado Brasilândia, O inimigo sou eu
116
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
e Vida até o fim. Barcellos (2008) escreve, no prefácio do livro, que o trabalho da
reportagem “para Eliane, é um ato de entrega, de envolvimento intenso entre quem
fala e quem escuta, por meio de uma relação preciosa de confiança mútua entre
repórter e personagem” (BARCELLOS, 2008, p. 10).
Santos (2014, p.2) pondera que a micro-história configura-se como um percurso
metodológico que pode possibilitar a construção de uma “história dos sistemas
comunicativos, a partir da trajetória individual”. Nessa senda, os estudos de Carlo
Ginzburg permitem a arquitetura de uma modalidade de jornalismo centrado nos
aspectos individuais, nas relações com o outro e nas formas de sociabilidades das
classes subalternas na narrativa jornalística.
Opera-se, dessa forma, uma rede de identidades sociais, de concorrências, de
solidariedades e alianças. A figura do jornalista investe-se de uma série multifacetada
de contextos e sujeitos com a finalidade de compreender e problematizar os fenômenos
que medeiam os espaços histórico-sociais. Rompe-se com o tom homogeneizador da
teia social (que privilegia a história vista de cima), deslocando-se para a ambiência dos
processos individuais das classes subalternas - como forma de entender e articular
contextos sociais, políticos e culturais.
Sob esse viés é que se julga que os parâmetros da microanálise e da redução da
escala de investigação podem ser problematizados à luz das reportagens A floresta
das parteiras e em A guerra do começo do mundo.
Para compor o enredo da reportagem A floresta das parteiras, Eliane Brum viaja
ao Amapá – que no momento da escrita do texto – era o estado brasileiro recordista
em partos normais. A narrativa da jornalista gaúcha é entrecortada pela descrição dos
rios sinuosos e pelo ritmo dos remos, pela apresentação da floresta e, principalmente,
por trazer para o âmbito de discussão a atividade “das pegadoras de meninos”.
A história é urdida pelas vozes das parteiras. Nos locais em que não há
maternidades, os pequenos vêm ao mundo pelas mãos das apanhadoras de crianças.
A narrativa é tecida pelas “personagens” Maria dos Santos Maciel, a Dorica; Jovelina
Costa dos Santos; Rossilda Joaquina da Silva; Tereza Bordalo; Cecília Forte; Delfina
dos Santos; Maria Labonté; Maria Rosalina dos Santos; Nazira Narciso e Juliana
Magave de Souza.
Já em A guerra do começo do mundo, a atenção de Eliane Brum recai sobre o
conflito judicial envolvendo a demarcação da reserva indígena Raposa-Serra do Sol, em
Roraima. Na reportagem, a autora de O olho da rua não se atém a relatar as contendas
que põem em campos antagônicos as figuras dos arrozeiros, dos indígenas e do exército.
Sua narrativa se constitui a partir da arquitetura de diferentes vozes - de anônimos a
figuras hegemônicas. O objetivo é tentar capturar a complexidade dos contextos sociais
e a heterogeneidade dos sujeitos que compõem a sociedade roraimense.
As reflexões sobre as reportagens A floresta das parteiras e A guerra do começo do
mundo ancoram-se também no conceito de “livro de repórter” proposto por Marocco
(2010, 2016) e Zamin (2011). Diferentemente da perspectiva de Lima (2009, p.26)
que concebe o livro-reportagem como veículo impresso “não-periódico que apresenta
reportagens em grau de amplitude superior ao tratamento costumeiro nos meios de
comunicação jornalística periódicos”, a noção de “livro de repórter”, para Marocco,

117
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

sustenta-se no valor hermenêutico do jornalismo, guiando-se pela crítica e pela


interpretação. A pesquisadora corrobora que:

Trata-se de um tipo de texto que se ocupa do jornalismo, para dele elaborar


outro texto que oferece o desvendamento de certos processos jornalísticos,
ou a crítica dos mesmos, em operações de produção de sentidos, em que o
jornalista, naturalmente, fará um exercício de interpretação criativa do que é
considerado jornalismo. (MAROCCO, 2010, p. 5).

Zamin (2011, p.394) reitera que por meio da tessitura da narrativa, os “livros
de repórteres” expõem um conjunto de práticas, formulam comentários e permitem
“complexificar a compreensão do próprio jornalismo”.
As reportagens em análise permitem a apropriação dos conceitos de micro-história
e de “livro de repórter” para se pensar a constituição das narrativas jornalísticas.
Marocco (2016) explicita que, para Eliane Brum, o texto jornalístico é substantivo,
isto é, a tessitura da narrativa ancora-se na investigação, apuração e na escuta. A
descrição e o aprofundamento sobre as “personagens” retratadas nunca constitui
um mero bordado em prosa, mas apresenta-se como uma unidade de sentido para
a composição do enredo da reportagem. Nesse sentido, para a jornalista gaúcha, o
bom jornalismo é aquele que sabe ouvir os silêncios, que assimila as sutilezas e que
se desloca em direção ao outro.
Para abarcar a dimensão social, cultural e política que desempenham as parteiras,
Brum se despe do regime de práticas do jornalismo e direciona-se para o íntimo de
suas entrevistadas. O ouvir se converte em uma atitude heurística, interpretativa.
Para a autora de O olho da rua,

O que as pessoas falam, como dizem o que têm a dizer, que palavras
escolhem, que entonação dão ao que falam e em que momentos se calam
revelam tanto ou mais delas quanto o conteúdo do que dizem. Escutar de
verdade é mais do que ouvir. Escutar abarca a apreensão do ritmo, do tom,
da espessura das palavras – e do silêncio. (BRUM, 2008, p. 37).

Em A floresta das parteiras e em A guerra do começo do mundo, observa-se que a


construção da narrativa alicerça-se sob a perspectiva da microanálise e da redução da
escala de observação, centrando-se nos sujeitos. Tais aspectos podem ser percebidos
nos excertos a seguir:

Do interior da floresta, elas vão surgindo tímidas, silenciosas. De pés no chão,


sandálias de borracha. São pobres, as parteiras. Muitas nem dentes têm.
Outras só comem farinha de tapioca. Ajudar a humanidade a vir ao mundo
nunca lhes rendeu um tostão. “O que eu mais queria nesta minha vida era
uma cama bonita”, suspira Cecília Forte, 66 anos, que nunca conheceu
outro pouso para o corpo que não fosse uma rede de algodão. Quando a
fome aperta o ventre, o coração capitula, ameaça parar. Moldada em casca
dura, Cecília resiste. De partejar, ela confessa que nem gosta tanto. “O que
eu mais gosto é de remendar roupa velha. Por quê? Ora, acho que todo velho
gosta de remendar a roupa. É um pouco como remendar a vida. Todos dois,
118
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

um pelo outro.” (BRUM, 2008, p. 32-33).

Numa manhã comum no sul de Roraima, a maranhense Cleonice Conceição,


de 36 anos, despenca do ônibus, traz no corpo a poeira dos caminhos. A
fome azeda o estômago, o medo escala o esôfago. Pela mão arrasta os
dois filhos, Silene, de quinze, e Rosenildo, de oito, assustados como ela,
resignados também. Carregam um colchão emprestado, meia dúzia de
roupas, as escovas de dentes penduradas na caixa de papel. Cleonice não
tem um centavo. Gastou tudo o que amealhou com a venda de um guarda-
roupa e de uma mesa na viagem de Santarém, no Pará, a Rorainópolis, a
porta de entrada de Roraima. Não tem para onde ir. (BRUM, 2008, p. 49).

As vidas de Cecília Forte e Cleonice Conceição trazem para o plano da análise


as minúcias dos contextos sociais. As duas fazem parte, respectivamente, das
reportagens A floresta das parteiras e A guerra do começo do mundo. Nos fragmentos
percebe-se algumas características da micro-história, como a pesquisa exaustiva das
fontes, a exposição narrativa do fato e a descrição pormenorizada das “personagens”
e realidades.
O enredo representa uma mudança epistemológica no tratamento que é dado às
fontes – porque rompe com o espaço sacralizado das personalidades hegemônicas
– trazendo para a zona de discussão as narrativas oblíquas dos sujeitos anônimos,
como pode ser percebido nas figuras da parteira Cecília e da retirante Cleonice.
Essa escrita nas bordas se deve às táticas de resistência utilizadas por Eliane
Brum – o que redunda em um modo particular de apurar os “desacontecimentos” e
também à arquitetura de uma narrativa que se equilibra nas margens, tendo como
leitmotiv os sujeitos subalternos. Marocco (2016) explica que para a autora de O olho
da rua, a notícia não emerge como uma matriz da prática jornalística unicamente,
mas como uma escolha histórica, cultural, política e econômica.
A prosa de Brum opta pelos sujeitos comuns como forma de assimilar os aspectos
históricos e culturais. Dessa forma, a jornalista gaúcha consegue adentrar por
paisagens mais densas do tecido social e compreender como se formam as redes
de relações de sentido, a estrutura social em suas complexas nuances e como se
estabelecem a história dos sujeitos subalternos.
Alicerçada sob essas diretrizes, Brum engendra uma espécie de narrativa em
palimpsesto, em que os diálogos enredados com os sujeitos subalternos processam
um universo heterogêneo de realidades, reproblematizam contextos e instauram novas
interpretações sobre o mundo.
Nos fragmentos em estudo, a realidade emerge como poliedro. A prosa de Brum
busca trazer para a tessitura da reportagem as fraturas e as incongruências que
atravessam os contextos históricos e culturais.
A percepção sobre o mundo social alicerça-se, como se vê, na premissa de
resgate das estratégias individuais e de grupos para assimilar de que maneira são
processadas situações particulares no âmbito social da grande escala. Essa alquimia
de visões de mundo pode ser percebida no conjunto de cenas alinhavadas por Eliane
Brum para a composição das reportagens investigadas.

119
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

A heterogeneidade que perpassa o sistema de normas sociais é verificada


por meio do compósito de sujeitos e de vozes enredados na trama da sociedade
roraimense, por exemplo. Fato constatado por meio do surgimento de “personagens”
como o Maurício Habert Filho, do suíço Walter Vogel, do general Claudimar Magalhães
Nunes, dos ianomâmis Chicão e Davi Kopenawa, dos arrozeiros Paulo César Quartiero
e Genor Faccio e da retirante Cleonice Conceição, com os filhos e o esposo, Francisco
Gildo dos Santos.
As reportagens A floresta das parteiras e A guerra do começo do mundo apontam,
sob esse viés, para a impossibilidade de o contexto social ser concebido como um
continuum homogêneo, uma vez que a realidade é resultado do fazer humano,
apresentando-se, portanto, como um dado problemático e complexo. Deduz-se,
assim, que tanto a narrativa jornalística de Eliane Brum quanto a micro-histórica
estão assentadas sob o mesmo terreno rugoso, alimentando-se dos mesmos sulcos
e depressões. E é no conjunto desses interditos que as vozes subalternas alcançam
repercussão e emergem como constructo social.

Considerações finais

As bases metodológicas da micro-história articulam processos de contextualização


da vida social a partir de um compósito de ângulos e de percursos analíticos. Esse
processo redunda na manifestação da realidade como poliedro. Suprime-se o lugar
hegemônico de observação – tanto na narrativa historiográfica quanto na prosa
jornalística de Eliane Brum – instaurando-se uma topografia em que a pluralidade
dos sujeitos, as oportunidades de ação e protagonismo, a multiplicidade de
linguagens e das práticas sociais emergem como um espaço de contestação e
de desvio, trazendo para o primeiro plano a narrativa do sujeito subalterno como
elemento heurístico, como revelação, como problemática.
As reflexões sobre o “livro de repórter” O olho da rua são atravessadas aqui pelo
campo da história, contudo, busca-se desentranhar o comunicacional como forma
de compreender as afetações proporcionadas pela micro-história italiana na práxis
jornalística. Sob essa perspectiva, quando se analisa as reportagens A floresta das
parteiras e A guerra do começo do mundo, percebe-se que a narrativa jornalística se
estrutura como espaço privilegiado para se analisar as dinâmicas sociais e culturais
que se estabelecem em contextos econômicos e históricos específicos.
Com a utilização do arcabouço teórico-metodológico advindo da micro-história,
busca-se alcançar a abertura do conceito de jornalismo para refletir que o contexto
político-cultural não é estático, mas que é atravessado por um complexo matiz de
cores sociais.
A confluência entre os parâmetros da micro-história e do “livro de repórter”
articulam de forma problematizadora os mundos social, cultural, histórico e da
prática jornalística. Nesse aspecto, a microanálise se caracteriza como um processo
relacional. Os “instrumentos” micro-históricos podem ser utilizados para a sondagem
dos espaços sociais e culturais.

120
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

Os nexos analíticos são cartografados por meio da redução da escala de


observação, da microanálise e da atenção às trajetórias anônimas, que abrangem
a diversidade das transformações sociais. Por fim, percebe-se que a micro-história e
os “livros de repórteres” refletem uma perspectiva epistemológica que busca pensar
a prática jornalística longe dos parâmetros etnocêntricos, afastando-se, assim, do
caráter homogeneizador da realidade social, cultural, histórica e jornalística.

Notas

1 Rojas (2012) explica que a revista Quaderni Storici se constitui como o espaço
de expressão e propagação da perspectiva micro-histórica na Itália. Inicialmente
chamada de Quaderni Storici delle Marche, a revista traz em seu número inicial, a
primeira tradução italiana do famoso artigo de Fernand Braudel “História e ciências
sociais: a longa duração”. Em 1970, depois da reorganização de seu comitê e de
perder o complemento “delle Marche”, o periódico passa a funcionar como o principal
espaço de concentração e de difusão da corrente micro-histórica. A partir de 1981,
Carlo Ginzburg e Giovanni Levi publicam pela editora Einaudi, a coleção Microstorie,
que passa a concentrar grande parte dos pensamentos, das publicações e do
arcabouço teórico-metodológico da micro-história italiana. Nesse período, a revista
Quaderni Storici perde parte de seu status de núcleo estruturador dos principais
debates sobre a micro-história.

2 A jornalista se destaca pela qualidade textual, preocupação estética na forma


de escrever sobre o cotidiano e sua predileção por uma narrativa humana – centrada
nas pessoas e nos “desacontecimentos”. Brum trabalhou durante onze anos como
repórter do jornal Zero Hora, em Porto Alegre, e dez como repórter especial da Revista
Época, em São Paulo. Publicou os livros Coluna Prestes: o avesso da lenda (1994);
A vida que ninguém vê (2006); A menina quebrada e outras histórias (2013); Meus
desacontecimentos: a história da minha vida com as palavras (2014); O olho da rua
(2008, 2017), além do primeiro romance, Uma duas (2011). Também codirigiu os
premiados documentários Uma história Severina Laerte-se e Gretchen filme estrada.

Referências

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da literatura na vida real. São Paulo: Globo, 2008.
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121
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

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122
Jornalismo e o texto da cidade: a narrativa
da rua na seção Brasiliana, de CartaCapital

Cida Golin
Maria Rita Horn

Apontamentos sobre jornalismo e cidade

Desde o século XIX, a experiência da cidade se constituiu em uma das chaves


para compreendermos o movimento da transformação da cultura em uma oferta
interminável e repetitiva de mercadorias. Foi nessa experiência regida pelo controle
abstrato do tempo e pela troca monetária que o jornalismo se consolidou, ajudando,
tanto quanto a literatura, a domesticar o medo, o anonimato, e a institucionalizar a
consciência do tempo presente alinhando o leitor no instante dos eventos (BENJAMIN,
1991; MATOS, 2006; FRANCISCATO, 2005). Determinados formatos narrativos,
hoje naturalizados, nasceram e se atualizam vinculados às exigências das rotinas
temporais e de circulação urbana.
Evocamos aqui o clássico A cidade das letras, de Angel Rama (2015), para sugerir
que as cidades se constituem como linguagem mediante pelo menos duas redes
superpostas: uma física, material, constituída pela experiência do múltiplo e do
fragmento; e a simbólica, que a ordena, a interpreta e propõe determinada ordem
sujeita à resistência e à reinvenção. Entendemos a cidade a partir da perspectiva
de um construto simbólico, lugar socialmente criado em um contexto histórico-
espacial; texto feito de camadas e superposições, cenário de disputa de relatos e
perspectivas e que tem no jornalismo um de seus emblemáticos artífices (CERTEAU,
2014; BARTHES, 1993; PESAVENTO, 2004; LIMONAD; RANDOLPH, 2002). Ao explorar
determinadas espacialidades, o jornalismo é um produtor privilegiado de sentidos,
oferecendo critérios para interpretar a realidade citadina.
Este artigo discorre, na primeira parte, sobre as relações amplas entre jornalismo
e narrativa a partir da metáfora da cidade-texto, tensionando, posteriormente, estes
pressupostos em um estudo sistemático que tem como foco a construção narrativa
da rua, um dos textos emblemáticos da urbe, tendo como objeto a seção Brasiliana
da revista semanal CartaCapital1.
Considerando que ancoramos nossa discussão sobre um objeto jornalístico
impresso, relembramos a associação entre a cidade e a escrita, entre a cidade e o
livro, como signos representativos da modernidade ocidental expressa no desejo ideal
e abstrato de fazer da paisagem uma ordenação dividida em partes, enxergando-a
através de textos prenhes de significados. Se um parágrafo, uma página ou um
capítulo pressupõe um projeto de leitura, o plano de fazer do habitar uma forma de
escrita também estrutura a divisão, a funcionalidade, a identidade dos espaços, a
toponímica das ruas (DI FELICE, 2009)2.

123
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

O tecido da cidade

Partimos da metáfora da cidade como um texto, figura encontrada em autores


de diferentes perspectivas, como da história, da antropologia e da semiologia, as
quais se refletem no jornalismo. A cidade seria como uma obra escrita por diversos
autores, caminhantes que moldam frases à medida que desenham percursos. De
um conjunto de sentenças, formam-se os pequenos textos, nos quais encontramos
múltiplas construções de sentido. Esse espaço é muito mais do que algo demarcado
pela objetividade da cartografia, é constructo, nunca fixo, a partir da apropriação de
seus pedestres.
Vale apontar que esta ideia do que tomamos por cidade segue na trilha da
perspectiva de Limonad e Randolph (2002)3: lugares socialmente estabelecidos
em relação a um contexto histórico-espacial. E lugares, nessa linha de pensamento,
não são localidades, mas são entendidos como uma criação com caráter simbólico,
realizada por meio de representações. Se os objetos que compõem o lugar têm
autonomia de existência, explica Santos (1988), ao mesmo tempo eles não têm
autonomia de significação, já que as funções de prédios, ruas, calçamentos podem
mudar ao longo do tempo.
Ao voltarmos à ideia de cidade como um texto, apontamos para interessantes
analogias encontradas no trabalho de Certeau (2014) entre o ato de andar pela urbe e
o exercício de enunciação. Nos passos do caminhante da cidade – que escolhe e traça
percursos em razão de tempo, afetos ou memórias –, espaços e lugares são “escritos”.
O próprio ato de caminhar seria um ato de enunciação, percurso subjetivo, descrição
como ato criador. Segundo Certeau (2014, p. 164), “o processo de apropriação do
sistema topográfico pelo pedestre é uma realização espacial do lugar (assim como o
ato de palavra é uma realização sonora da língua) e implica relações entre posições
diferenciadas, ou seja, ‘contratos’ pragmáticos sobre a forma de movimentos”.
As improvisações da caminhada reservam ainda mais semelhanças aos rearranjos
de uso da língua. Assim como na linguagem, a norma oferece variantes que podem
ser utilizadas ou não pelo falante, que faz a escolha e abre portas para este ou aquele
significado; o caminhante, ao privilegiar diferentes percursos em momentos distintos,
multiplica o número de possibilidades que existem para além do que é oferecido pela
ordem urbanística planejada. A esta combinação de usos e estilos ou variação de
percursos que se assemelham a “figuras de estilos”, Certeau (2014) chamará de
retórica da caminhada. Entre elas estão a sinédoque e o assíndeto. Essas figuras
ambulatórias são complementares, uma vez que uma delas representa o papel de
um “mais”, ao dilatar um elemento de espaço, e a outra, pela elisão, cria um “menos”
(CERTEAU, 2014).
Entretanto, o conflito entre a carga semântica que a história de uma cidade carrega
e a necessidade de ter quantificados e planificados todos os elementos desse espaço
coloca em desalinho muitos urbanistas. Pois se uma cidade é formada por elementos
fortes e elementos neutros, por elementos marcados e elementos não marcados,
como afirma Barthes (1993), esse processo de significação entra em confronto direto

124
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

com a realidade dos dados objetivos dos mapas. Isso porque a cidade fala a seus
habitantes, que, ao percorrê-la e habitá-la, criam diferentes significações sobre ela.
Para além das metáforas, Barthes (1993) pondera que os significados extraídos da
cidade estão sempre em mutação, portanto, uma análise não deveria pretender fixá-
los, pois “a cidade é uma escritura, quem se move pela cidade, quer dizer, o usuário
da cidade (que somos todos), é uma espécie de leitor que, segundo suas obrigações
e deslocamentos, isola fragmentos do enunciado para atualizá-los secretamente”
(BARTHES, 1993, p. 264, tradução nossa).
Das inúmeras categorias de leitores da cidade, desde o sedentário ao forasteiro
(BARTHES, 1993), o antropólogo da comunicação urbana Massimo Canevacci
(1997) trabalha com a ideia de cidade polifônica, lida e interpretada por diferentes
vozes, cada qual com suas regras, estilos e improvisações. Ele defende que, para se
fazer ver a polifonia da cidade, é preciso estar atento às inúmeras interações que
se dão entre ela e seus diferentes espectadores. Esse olhar sobre a cidade leva em
consideração que a comunicação urbana é do tipo dialógico, e não unidirecional,
e atravessada pelos fluxos emotivos dos espectadores. Estes, ao escolherem um
percurso por uma rua e não por outra, por exemplo, agem sob influência de critérios
subjetivos e imprevisíveis: “As memórias biográficas elaboram mapas urbanos
invisíveis” (CANEVACCI, 1997, p. 22).
Como espaço construído, a cidade é também a construção de significados e os
entendimentos que foram sendo fixados pelos homens ao longo do tempo. Isso é o
que está embutido na ideia de cidade palimpsesto4, trazida a partir da perspectiva
histórica e defendida por Pesavento (2004). Para chegar às cidades soterradas ou
desvendar suas múltiplas combinações possíveis a partir de superposição, substituição
ou composição entre formas do passado e do presente que compõem a paisagem
urbana, é preciso se valer da vontade e da atitude hermenêutica (PESAVENTO, 2004).
Assim, os textos ocultos e os sentidos das experiências de outros tempos da cidade
podem se desvendar aos olhos de quem assume essa posição.
A ideia de palimpsesto remete também a ver além, aproximando-se do princípio
literário da mise en abyme, ou seja, da história que contém outra história, um
“tecido, onde os diferentes fios se articulam em trama na montagem das camadas
superpostas. Neste caso, é o autor/tecelão da cidade imaginária que deve construir
enredos, descobrir caminhos e apresentar a composição da trama” (PESAVENTO,
2004, p. 28).

A rua como sulco e a escritura da flânerie

Ao tomar o mapa de uma cidade nas mãos, podemos enxergar um emaranhado de


traços viários e um conjunto de nomes de pessoas, acontecimentos, datas importantes
que nem sempre dizem diretamente sobre a memória, os afetos, as batalhas de cada
um desses lugares. Obra em constante construção e ressignificação, a cidade deixa
também vestígios nos produtos do jornalismo, que age como mediador dos possíveis
textos nela contidos ao organizar os discursos sobre ela. Entre os textos da cidade,
tramados a partir de imaginários superpostos, temos a rua.
125
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

Relatamos, pela concepção de Rodrigues (2014), esse espaço de interações como


um território de constituição da sociabilidade. Nesse contexto, é interessante pensar,
conforme sugere o autor, a etimologia da palavra rua para as línguas portuguesa e
francesa. Rua e rue vêm do latim ruga, ou seja, como rugas de um rosto, as ruas
são, para essas comunidades de fala, como sulcos cavados na superfície. Gerações
deixam marcas inscritas nas ruas, que podem ser identificadas em seus traçados,
toponímia ou monumentos. Por mais que estejam escondidos, os sulcos da história
da cidade estão à disposição para serem decifrados em um jogo de interações que dá
espessura às ruas (RODRIGUES, 2014).
Esta rua que Rodrigues (2014) chama de espaço público por excelência é também
espaço simbolicamente demarcado como referencial para o jornalismo. Do processo
de urbanização intensa entre os séculos XVIII e XX à cidade informacional do século
XXI, o vínculo entre as experiências vividas na cidade e a mediação exercida pelo jor-
nalismo integra uma continuidade histórica. Tal relação está na base do surgimento
da atividade jornalística moderna.
O valor da rua é produto da modernidade, que se expressa no avanço de diferen-
tes cidades a partir do século XIX. Deste momento nasce a importância da rua para o
repórter, uma vez que a cidade grande, as grandes avenidas e a presença da multidão
aparecem como requisito à existência do flâneur, ou, no mínimo, à sua ação (SAL-
GADO, 2006). O cronista e repórter João do Rio (1908), que personificou a saída do
jornalista do espaço fechado, afirmou que a rua é um fator de vida nas cidades e só
poderia ter sua psicologia conhecida por aqueles que apresentam espírito vagabundo
e cheio de curiosidades, a quem define como flâneur, recuperando o termo expandido
por Charles Baudelaire no século XIX. Por meio da obra e do legado do escritor fran-
cês, o conceito é reapresentado por Benjamin (1991) sob o manto de sua importância
histórica e operacional. Ele é usado para uma espécie de reconhecimento no labirinto
da modernidade, um instrumento de orientação e mapeamento da sociedade: aristo-
cracia, burguesia, trabalhadores, produtores de cultura e os desclassificados.
Para Benjamin (1991), o flâneur é considerado o primeiro paisagista da cidade
ao produzir textos (fisiologias) imprimindo um tom inofensivo às narrativas da urbe,
tendo nas passagens5 de Paris no início do século XIX seu lugar emblemático. À�����
������
ati-
vidade desse sujeito estava atrelada a disposição ao ócio e ao devaneio, mas era
também um detetive atento, que olhava, observava e classificava (FEATHERSTONE,
2000). Nessa arte do flâneur havia uma hermenêutica do olhar, que buscava tornar
o estranho familiar e o familiar, estranho. Novamente aqui surge a cidade como um
texto a ser inscrito, lido, reescrito e relido (BENJAMIN, 1991; BOLLE, 2000).
Se a flânerie tinha em sua essência o locomover-se pela cidade sem um propósito
a não ser o protesto ao tempo de produção capitalista, a ociosidade como hábito foi
assumindo o contorno hostil do indivíduo desocupado e desempregado. Ameaçado
de extinção, fascinado pelo espetáculo das mercadorias, o flâneur como um
“caleidoscópio dotado de consciência” torna-se um abandonado na multidão e se
entrega ele próprio à situação de mercadoria. Entre as ocupações da burguesia a que
teve de se curvar, estava também o jornalismo. Sua base social, escreve Benjamin
(1997), foi o jornalismo. A cidade torna-se condenada à existência de capital e, fruto

126
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
disso, a cultura também se transforma em mercadoria.
Tendo, portanto, como parâmetro os pressupostos da cidade como um texto que
pode ser lido e reinterpretado, sintetizamos a seguir inferências feitas após o estudo
da série Brasiliana da revista semanal CartaCapital por meio da análise da narrativa
conforme sistematizada por Motta (2013) para aplicação em estudos de jornalismo e
apoiada em apontamentos de Ricoeur (1994).

A seção Brasiliana da revista CartaCapital

Em agosto de 2001, quando CartaCapital entrou no time das revistas semanais


de informação6, surgia Brasiliana. É uma seção composta normalmente por duas
páginas espelhadas, com fotos, localizada após o índice, as cartas dos leitores e alguns
anúncios. Quase sempre é a reprodução do relato sobre algum lugar, personagem
ou situação. A cartola Brasiliana é a mais recorrente, mas pode trazer reportagens
de lugares de fora do país, quando receberá a cartola correspondente. Por exemplo,
Americana, Inglesa, Palestina.
Pela leitura de seus textos, percebe-se que, ao longo de 15 anos de produção
da seção, são adotadas formas narrativas menos amarradas a recursos como
lead e uso de fontes convencionais, por exemplo. No início, aproximava-se mais do
gênero crônica, mas, com o tempo e a variação de autores, foi ganhando formatos
mais híbridos.
Em uma pesquisa que teve a coluna como objeto de estudo (HORN, 2017), e por
meio de uma análise flutuante dos textos veiculados entre agosto de 2001 e agosto de
2016, percebeu-se que o assunto cidade era bastante presente na seção: 272 textos
dentre 742 narrativas percorridas. Pelo interesse em estudar a seção pelo viés das
articulações entre jornalismo e cidade, e pensando a urbe como um texto composto
por fragmentos menores, a rua foi tomada como referência para estudo do objeto. Por
meio de uma nova leitura flutuante entre os 272 textos, chegou-se a 11 narrativas que
tratavam de diferentes ruas7.
A apresentação desta análise será conduzida, a seguir, por meio de três eixos:
a narração sobre a rua, em que são apontados os percursos na rua traçados pelo
jornalista-narrador a partir do ponto de vista do ato de narrar; as personagens e
os conflitos da rua que são relatados nos textos, observados no plano do conteúdo
narrativo; e os efeitos sobre a espacialidade da rua, quando buscamos identificar as
estratégias de figuração do jornalista-narrador no plano do discurso8.

A narração sobre a rua

Ao olhar para o conjunto de matérias, foi possível fazer algumas observações


sobre como se dá o ato de narrar na seção e alguns resultados sobre as escolhas
narrativas feitas pelo jornalista-narrador para construir uma realidade sobre a rua.
Relatamos aqui as principais inferências sobre os 11 textos estudados por meio
de duas matérias exemplares – As babás da Buenos Aires (FERNANDES, 2001) e
A Paulista invisível (MARTINS, 2006), cujas ponderações apontam para indícios
127
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

representativos do conjunto de textos que têm a rua como protagonista.


O texto As babás da Buenos Aires (FERNANDES, 2001) foi publicado em 19 de
dezembro de 2001, sob a cartola Brasiliana. A partir de um diálogo entre personagens,
começa a descrição de uma manhã em que babás zelam pelas crianças. O espaço é
urbano, uma praça, a Buenos Aires, localizada em um bairro elitizado de São Paulo,
o Higienópolis. Então, o leitor é levado a uma série de conversas entre as cuidadoras.
Quanto a A Paulista invisível (MARTINS, 2006), trata-se de uma Brasiliana publicada
em 4 de outubro de 2006, que tem como objetivo mostrar as personagens anônimas
da Avenida Paulista. Para isso, o narrador percorre a via atrás de histórias para contar9.
O primeiro ponto a se atentar é que parece não existir um protocolo de posição
do narrador que seja próprio da coluna. Embora a ausência do uso de primeira
pessoa pelo narrador seja característica da maioria dos textos, podemos observar
que, quase sempre, existe a presença do jornalista-narrador como conceituado por
Resende (2006). Para o autor, quando o jornalista se permite observar e contar
a história e coloca-se como um outro que vê, seu texto passa a ser habitado pelo
narrador-jornalista10. Em As babás da Buenos Aires (FERNANDES, 2001), se ele apaga
sua presença ao não deixar marcas de enunciação, ao mesmo tempo leva o leitor a
“passear” pela praça, por meio de seu olhar.

Os pimpolhos passeiam. Os tênis são Nike, as camisas, Polo Ralph Lauren. A


bolsa da mamadeira da Maria Antonia do Tom é Vuitton. Uma babá confessa
a outra a paixão por perfumes:
– Ah, o vinte e quatro vírgula seis (na verdade o 24) da Faubourg, quinhentos
e cinquenta reais.
– Eu só compro Avon.
– Avon? Avon? Eu, só importado. (FERNANDES, 2001, p. 7).

Ao descrever uma cena cotidiana do local, o comportamento do narrador é como o


de um cinegrafista, buscando causar no leitor a sensação de ver uma película em que
se desenrolam os acontecimentos. Essa percepção é possível porque ele opta por um
percurso pela praça que se mostra mais estático do que móvel.
Já em A Paulista invisível (MARTINS, 2006), o jornalista-narrador sai a percorrer
a avenida em busca de histórias, ou seja, o percurso pela rua é móvel – algo que
podemos perceber em outros sete textos dos 11 pesquisados, incluindo também
uma variação entre ritmos lentos e percursos velozes, refletindo a aceleração das
grandes cidades.
No primeiro parágrafo do texto, o jornalista-narrador descreve uma avenida que
tanto apresenta significados em mutação, se pensarmos em uma semântica da
cidade (BARTHES, 1993), quanto demonstra que ela pode ser um lugar polifônico,
onde se sobrepõem diversas interações com aquele espaço (CANEVACCI, 1997).

Há muitas avenidas paulistas. Uma é a vitrine das grandes corporações


financeiras, dos executivos empertigados, da arquitetura moderna que
reveste os imponentes edifícios, como a torre espelhada do Banco Bic.
Outra é o palco das constantes manifestações políticas e comemorações

128
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

esportivas, a via que melhor exemplifica a lentidão do trânsito paulistano


na hora do rush. Outra ainda é o lar de 12 mil habitantes, que se orgulham
de ter acesso a uma ampla rede de bares, restaurantes, cinemas, museus
e espaços culturais a poucos passos de casa, ou melhor, do apartamento.
(MARTINS, 2006, p. 6).

O caminho que “percorre” para descrever a via, neste primeiro momento, é como
a figura ambulatória que amplifica o detalhe, conforme Certeau (2014). Em sua
proposta de mostrar outra visão sobre o espaço, ele percorre a superfície, vai ao
subterrâneo e retorna à superfície, simulando seu próprio andar. Na parte introdutória
reproduzida, ao enumerar como a avenida “fala” por meio da arquitetura, dos rituais,
do estilo de vida conhecido como característico deste espaço, o jornalista-narrador
não nega a existência dessas vozes da Paulista, tidas como as mais conhecidas.
Todavia, ele deixa os executivos empertigados e passa, então, a focar na descrição
das personagens que sustentam uma outra Paulista, quando lança luz, a partir de sua
caminhada, à invisibilidade dos artistas de rua, camelôs, religiosos e mendigos vistos
sempre a partir de sua perspectiva, mas agora em um novo olhar sobre a via.

Os subterrâneos também são os locais de trabalho do engenheiro Gilberto


Dimitrov e do eletricista Fernando Baptistucci, funcionários da Eletropaulo
com mais de 20 anos de carreira. Responsáveis pela manutenção de 90
transformadores e de 41 quilômetros de cabos da rede subterrânea da
Paulista, eles trabalham em cubículos de 20 metros quadrados cravados no
subsolo da avenida. [...]
De volta à superfície, um prédio desperta a atenção. Abandonado há mais de
dez anos, o edifício Dumont Adams, ao lado do Masp, tem paredes pichadas
e vidros quebrados. [...] A alguns metros dali, Adolfo Rodrigues toma conta
de um casarão tombado pelo patrimônio histórico. (MARTINS, 2006, p. 7).

No caso de As babás da Buenos Aires (FERNANDES, 2001), essa relação entre


o jornalista-narrador e a rua se revela ao percebermos que ele parece ocupar uma
manhã de trabalho para escutar as histórias das personagens que encontra na praça.
Ele ouve para depois filtrar e reproduzir aqueles diálogos. Daquilo que escolhe narrar
– uma série de conversas entre babás –, surge uma nova moldura sobre o espaço, o
que mostra que as ruas da cidade podem revelar diferentes formas de interação dos
habitantes com esses locais, lembrando que trechos da cidade podem ter significados
diferentes para cada um. Aqui, ele opta por dar voz e visibilidade às babás que ocupam
aquele ambiente, ao mesmo tempo em que mostra que ali também estão mendigos,
seguranças e enfermeiras, demarcando a cidade como espaço de diferenças.
A maneira como os jornalistas se deslocam pelas ruas revela que a cidade não
obedece a caminhos impostos. Como pedestres, eles percorrem essas ruas de maneira
própria, assumindo atalhos e opções em nome daquilo que pretendem revelar sobre
elas. Isso, junto às escolhas feitas pelos jornalistas-narradores, os transforma em
figuras centrais, protagonistas, ainda que muitas vezes ancorados na narração em
terceira pessoa. Daquele espaço da realidade urbana, arbitram sobre o que narrar e
como fazê-lo, ou seja, assumem a mediação narrativa e dão uma nova inteligibilidade
a esses espaços.
129
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

As personagens e os conflitos da rua

Antes de analisar a disposição dos conflitos na narrativa jornalística, é preciso


observar a escolha dos locais que foram retratados, uma vez que os espaços dizem
muito sobre os tipos de embates que ali se estabelecem. Das ruas que fazem parte
dos 11 textos estudados, seis são na capital de São Paulo, uma na Grande São Paulo,
uma em Vitória, no Espírito Santo, e três no exterior (Buenos Aires, na Argentina,
Belém, na Cisjordânia, e Jerusalém, em Israel). Dentre as localizadas na cidade de
São Paulo, duas são em bairros de classe média alta, três em região central e duas
em periferia.
Apontar as seleções dos locais, de onde personagens e conflitos serão
destacados, é identificar também o enquadramento ou o ponto de vista do narrador.
No caso dos textos analisados, as opções realizadas mostram um alinhamento do
jornalista-narrador ao posicionamento à esquerda de CartaCapital no espectro
político-ideológico, pois mesmo nos textos ambientados em bairros nobres, como
nos dois exemplos que escolhemos mostrar aqui, quem ganha visibilidade são as
personagens periféricas.
Os espaços, diz Bourdieu (2007), refletem as hierarquias da sociedade e as
distâncias sociais, que podem se desenhar pela distribuição de capital desses locais.
Nas Brasilianas, encontramos descrições de espaços marcados pelas diferenças
econômicas e sociais. A partir dos tipos de conflitos que se estabelecem nesses
cenários, percebe-se o quanto as personagens são também produto do lugar onde
vivem, trabalham, interagem.
Essa capacidade de domínio do espaço pela posse do capital fica bastante
evidente no texto As babás da Buenos Aires (FERNANDES, 2001). Dezenas dessas
profissionais que cuidam de filhos de celebridades têm, em um trecho da praça, a
Pracinha da Mãe, um lugar assegurado para levar os pequenos, ainda que observadas
por seguranças. A ambientação, em uma zona elitizada, ressalta ainda mais a
discrepância socioeconômica das personagens. Ao mesmo tempo em que o narrador
cita que o bairro é de “cidadãos de posses quase sempre acima da média e ainda
incrustado de apartamentos na casa do milhão de dólares”, ele revela que “o piso
salarial das babás ronda os seiscentos reais” (FERNANDES, 2001, p. 6). No mesmo
texto, apresenta valores de objetos que custam mais do que a remuneração pelo
trabalho ali iluminado, como a carteira Fendi, de R$ 700, que uma das empregadas
ganhou da patroa.
As personagens que ilustram as 11 narrativas selecionadas para estudo são sempre
pessoas comuns, da vida cotidiana, de feitos menos extraordinários e mais inusitados,
e raríssimas vezes são descritas de forma a ganhar mais complexidade. No texto de
Fernandes (2001, p. 6), o protagonismo é de um tipo social, as babás, e talvez por
isso mesmo sejam tratadas apenas pelo primeiro nome, Maria Amélia, Eliete, Ililda,
Lina, entre outras, mas ao mesmo tempo designadas como “Maria Amélia, babá da
Maria Antonia do Tom Cavalcante”, “Eliete, babá da Ana da Silvia Poppovic”. No entanto,
cabe ressaltar que o tratamento das personagens apenas pelo primeiro nome, também
observado em outros textos do conjunto, reforça a ideia de que as cidades, como palco
130
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

do cotidiano, são, sobretudo, habitadas por anônimos.


Já na narrativa A Paulista invisível (MARTINS, 2006), a “invisibilidade” pode ser
percebida pela opção do narrador pelo tipo de personagem que vai retratar. Com
o objetivo de mostrar que a avenida é também “arena de personagens anônimos”,
em vez de apresentar executivos e empresários, ele fala sobre o homem-placa
sonhador Rogério Gonçalves, a prestadora de serviços para o Ibope Eliana Carvalho
e o missionário hare krishna Rãmalandra Rrpa Dos, entre outros, todos com nome e
sobrenome, mas trabalhadores informais.
O propósito deste texto nos ajuda a perceber que, tanto em A Paulista invisível
(MARTINS, 2006) quanto nas outras narrativas, o jornalista-narrador é também
personagem das histórias. Neste caso específico, a motivação é dar visibilidade para
outras visões de mundo, como de panfleteiros, artistas de rua, vendedores ambulantes
e carroceiros. Ele tenta construir um novo sentido sem negar os outros da avenida.
As personagens podem ser divididas conforme as funções que exercem no conflito,
expostas pela forma como interagem com a avenida e os outros habitantes desse
espaço: as que clamam por atenção, as que apelam de forma sutil e as que preferem
se manter na discrição.
O principal conflito na Avenida Paulista é socioeconômico. Vemos a história
de trabalhadores informais que lutam pela atenção de outros transeuntes para
desempenhar suas funções e conseguir um sustento, mas também é possível destacar
que, nessa informalidade, vivem um embate com o poder público. Na história, temos
artistas, vendedores e carroceiros que, muitas vezes, têm seus pertences e produtos
confiscados pela polícia, que representa a fiscalização do Estado. Assim como temos
também o conflito de um espaço em que os moradores de rua não são “bem-vindos”.

Abandonado há mais de dez anos, o edifício Dumond Adams, ao lado do


Masp, tem paredes pichadas e vidros quebrados. Ao redor dele, moradores
de rua disputam um lugar coberto. Em breve, serão enxotados pelo porteiro
José Luiz da Silva, de 33 anos. Responsável pelo turno da noite, ele tem a
tarefa de manter ladrões, bêbados e maltrapilhos afastados. “Sempre que
encontro um mendigo, peço para ele sair. Às vezes fico com pena e deixo o
cara passar uma noite.” (MARTINS, 2006, p. 7).

O jornalista-narrador apresenta o porteiro como alguém que tem esta função, mas
que, muitas vezes, é acometido também pelo sentimento de pena. Ao mostrar que o
conflito dá lugar à compaixão, ele aponta que, neste espaço, ocorrem distanciamentos,
mas também empatia.

Os efeitos sobre a espacialidade da rua

A narrativa jornalística é conhecida por uma retórica própria, que busca a maior
coerência possível com a realidade por meio de algumas estratégias que buscam a
produção de efeitos de veracidade nos textos. Muitos são encontrados nas Brasilianas.
O principal deles é o uso do tempo presente pelos jornalistas-narradores.
Um dos efeitos de elidir a distância da narração do momento dos fatos é fazer
131
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

com que o leitor se aproxime mais daquilo que é narrado. Ao fazer isso, o jornalismo,
como mediador dos textos da cidade, também constrói os tempos desses locais,
ambientando a vida do dia a dia. Essa aproximação com a rotina das ruas das cidades
é bastante forte nestas Brasilianas.
Outras estratégias de efeitos de real11 se repetem nos textos: precisão na
localização dos espaços, idade e nome completo das personagens, estatísticas,
comparações de dados e localizações temporais. As narrativas também apresentam
falas das personagens em discursos diretos e, com menos frequência, por discurso
indireto. Esse recurso busca causar a impressão de que não houve intervenção do
narrador no discurso das personagens.
As fotos presentes nas Brasilianas costumam ser das personagens relatadas ou
dos lugares visitados pelos jornalistas, uma forma de provar que elas são pessoas que
existem no mundo reportado. Algo que ganha ainda mais força quando as imagens
são do próprio repórter, como no caso do texto sobre a Avenida Paulista – e se repetiu
em outros cinco textos do conjunto analisado.
Junto às artimanhas para produzir coerência entre o narrado e o mundo real, o
jornalista-narrador pode utilizar recursos da retórica para alcançar diferentes estados
de espírito, como surpresa, espanto, compaixão, deboche, riso, entre outros. Assim
como também a forma em que o narrador dispõe os acontecimentos em princípio,
meio e fim.
Em A Paulista invisível (MARTINS, 2006), por exemplo, o narrador recorre a
muitos adjetivos na introdução para causar no leitor a perspectiva de uma avenida
de magnitude: “Grandes corporações”, “imponentes edifícios”, “ampla rede”. Quando
apresenta “o homem-placa sonhador”, busca fazer com que o leitor sinta simpatia
pela primeira personagem citada por Martins. É também ao panfleteiro que o autor
atribui um sorriso maroto ao final de uma fala, deixando que o leitor decida se o que
o homem disse era verdade ou não.

O homem-placa sonhador é Rogério Gonçalves, de 30 anos. Por 700 reais


mensais, o profissional passa mais de 12 horas por dia em pé a distribuir
panfletos. Dos oito colegas que disputam o mesmo trecho da calçada, é o
único que não tem um banquinho de descanso. E raramente perde o bom
humor. “Um cara ciumento já tentou me bater porque chamei a namorada
dele de ‘loirinha’. Fui mal interpretado, eu só queria distribuir os papéis”,
conta, com um sorriso maroto. (MARTINS, 2006, p. 6).

Além dessa liberdade maior de organização do texto, também percebemos nas


colunas que os narradores algumas vezes se aproximam do uso de uma linguagem
mais literária, com traços de ironia e humor, como neste trecho de As babás da Buenos
Aires: “Manhã de uma quarta-feira. Na pracinha da mãe, um círculo com chão de
pedras portuguesas e bancos de madeira no alto da Buenos Aires, 52 babás cuidam
das crianças e das vidas. Das suas e das alheias” (FERNANDES, 2001, p. 6).
Com isso, eles alcançam uma maior humanização dos relatos, que resulta em
uma melhor compreensão dos conflitos vividos. No caso das 11 narrativas analisadas,
percebemos que, ao humanizar os embates das personagens, os jornalistas-
132
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

narradores desses textos revelaram ruas que são palcos de diferentes interações.
Isso não apenas demonstra a polifonia dessas vias, como desenha esses espaços
em molduras nas quais as diferenças sociais da cidade estão demarcadas, onde
também se dão interações afetivas e identidades são sedimentadas, repensadas ou
disputadas.

Considerações finais

O jornalismo, cujo campo se institucionalizou no compasso da Modernidade e se


desenvolveu atrelado ao crescimento urbano, exerce papel fundamental na produção
de conhecimento sobre a cidade. Em Brasiliana, encontramos narrativas capazes de
mediar esse conhecimento ao articular em mosaico determinados fragmentos que
revelam os sulcos da urbe, um mapa possível de travessia sobre o cotidiano das ruas.
Ao analisar os percursos dos jornalistas-narradores pelas vias escolhidas, bem
como as personagens e os conflitos relatados, além das estratégias de figuração
adotadas, os resultados apontaram que, pela forte presença de alguém que pesquisa
a realidade a ser retratada, escolhe e filtra fragmentos desse quadro e não se prende
a recursos do discurso jornalístico como institucionalizado, as Brasilianas são um
exemplo de fazer jornalístico mais plural sobre a cidade. São retratos construídos
por um profissional que fugiu dos itinerários oficiais tanto do discurso jornalístico
quanto do percurso físico por esses espaços. Por meio de atalhos que tangenciaram
o “discurso utópico e urbanístico” (CERTEAU, 2014, p. 160), foram capazes de alargar
o horizonte de sentidos sobre as ruas.
Na descrição minuciosa de cenas, na forma como escolheram amplificar detalhes
do mapa urbano e no uso de uma linguagem às vezes mais próxima da literária, que
ajudou a humanizar os relatos, esses jornalistas-narradores foram capazes de mostrar
como a cidade-texto apresenta diferentes matizes. Ou seja, na sua função mediadora,
este autor-tecelão assumiu o arbítrio na seleção de personagens, percursos,
conflitos para relatar que deram nova inteligibilidade a esses espaços, muitas vezes
contrapondo-se à sua moldura consensual. A análise dos 11 textos apontou para a
composição polifônica das ruas, pois os enquadramentos mostraram diferentes vozes
em disputa, seja qual fosse a classe dos conflitos – embora muitos fossem de ordem
socioeconômica. São também vias que refletem a condição da cidade, muito mais do
que lugar de acolhimento e pertencimento, como espaço da produção de diferença.
Se no século XIX foi o estranhamento em relação à experiência urbana que fez
surgir a figura do fisiologista, tipo que foi às ruas para produzir relatos que visavam
a apaziguar inquietações, a tentativa hoje de colocar muros visíveis e invisíveis em
tudo aquilo que seja estranho ou diferente na realidade das cidades demonstra a
relevância do repórter em sair das redações para contar histórias, produzir novas
escrituras sobre o já escrito.
Pelas considerações feitas, reassumimos a crença de que o jornalismo, aqui
representado pela seção Brasiliana, ao revelar em suas narrativas jornalistas-
narradores abertos à pluralidade das ruas e ao desvelar o diário de seus habitantes,
pessoas comuns ou não, que interagem nesses espaços e elaboram novos sentidos

133
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

sobre eles, atua como um importante mediador de um alargamento da compreensão


do cotidiano das urbes. Trata-se da letra do jornalismo ordenando a cidade, lançando
sobre ela um manto de projeções, sensível à sua dimensão de tecido sempre aberto
e móvel.

Notas

1 Dissertação de mestrado “A construção narrativa da rua na seção Brasiliana


da revista CartaCapital” defendida em março de 2017 junto ao Programa de Pós-
-graduação em Comunicação e Informação da Universidade Federal do Rio Grande do
Sul (UFRGS).
2 No mesmo livro, o autor desenvolve as formas eletrônicas do habitar, lembran-
do que o território deslocativo, cuja paisagem é desfocada pelo movimento, encontra-
-se na gênese da metrópole moderna, do trem ao olhar distraído do flâneur na rua ou
na vitrine. O desenvolvimento dos meios eletrônicos vai possibilitar, cada vez mais,
experiências híbridas de intersecção de espaços e territórios materiais e imateriais,
a expansão de metageografias comunicativas, espacialidades eletrônicas e digitais
estendidas ao infinito, novas superfícies de escrita e de leitura das relações sociais e
do espaço (DI FELICE, 2009; LEMOS, 2007).
3 Pesquisadores na área de planejamento urbano, Ester Limonad e Rainer Ran-
dolph, no ensaio Cidade e lugar: sua representação e apropriação ideológica (2002),
compilam o pensamento de alguns autores para pensar uma diferenciação entre ci-
dade e urbano (ou urbanização) e ancoram suas ideias na hipótese de que a urbani-
zação é uma condição generalizada e extrapola os limites físicos da cidade. As novas
formas de interações proporcionadas pela internet não apenas modificam o dia a dia
das pessoas, mas a convivência no âmbito cotidiano. Neste artigo, os autores partem
da suposição do fim da cidade em um mundo urbanizado não para tomar isso como
uma possível realidade de agora ou no futuro, mas como desafio para buscar uma
definição de cidade.
4 Imagem arquetípica para a leitura do mundo, palimpsesto é uma palavra gre-
ga do século V a. C. Tratava-se de um pergaminho do qual se apagava a primeira
escritura para reaproveitamento por outro texto. Ocorria que a raspagem de um texto
não conseguia apagar todos os caracteres antigos dos outros precedentes, “que se
mostravam, por vezes, ainda visíveis, possibilitando uma recuperação” (PESAVENTO,
2004, p. 26).
5 Em Paris, as passagens ficaram conhecidas como vias cobertas de vidro e
revestidas de mármore, por dentro de um conglomerado de casas. Benjamin (1991) diz
que elas ocupavam uma posição intermediária entre a rua e o interior de uma residência.
Na metade do século XIX, eram cerca de 150 em Paris. Com a reforma promovida na
cidade pelo Barão Haussmann, muitas foram demolidas para a construção de grandes
avenidas. Cerca de duas dezenas ainda são mantidas até hoje.
6 CartaCapital foi fundada em 1994 pelos jornalistas Mino Carta e Bob Fer-
nandes, como uma revista mensal. Em março de 1996, na edição de número 20,
passou a ser quinzenal, periodicidade que se manteve até agosto de 2001, quando
passou a ser semanal.

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Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
7 As ruas de cada texto são: Praça Buenos Aires, Avenida Richieri, Rua Yasser
Arafat, Avenida Jornalista Roberto Marinho, Rua João Briccola, Avenida Paulista,
Travessa Arroio Uirapuru, Rua Al-Silsila, ruas com nomes de personagens da Disney,
Rodovia Serafim Derenzi e Rua São Caetano.
8 Para Genette (1995), a análise da narrativa implica o estudo das relações entre
o discurso narrativo e os acontecimentos que relata, entre esse discurso e o ato que o
produz. A essas instâncias, ou, como ele diz, aspectos da realidade narrativa, ele dará
designações próprias: chamará de história o significado ou conteúdo narrativo, de nar-
rativa o discurso ou texto narrativo em si, e de narração o ato narrativo produtor.
9 Além destas duas narrativas, foram analisadas no trabalho de Horn (2017)
também os seguintes textos: Buenos Aires, Brasil, de Sérgio Lírio, de 23 de janeiro de
2002, sob a cartola Portenha, trata do agravamento da crise financeira em Buenos
Aires; Como é triste Belém, de Guila Flint, de 13 de março de 2002, sob a cartola
Palestina, fala do conflito entre judeus e muçulmanos, tendo a Rua Yasser Arafat, em
Belém, como cenário; Quem é esse Vladimir?!, de Ana Paula Sousa, de 27 de outubro
de 2004, é uma Brasiliana que relata um protesto em que um grupo de pessoas resol-
ve cobrir as placas de uma rua de São Paulo com um novo nome; Ilustres desconhe-
cidos, Brasiliana de Sérgio Lírio, de 15 de dezembro de 2004, mostra como muitos
paulistanos desconhecem a origem dos nomes das ruas; História nos muros, de Luiz
Alberto Carvalho, é uma Brasiliana de 29 de outubro de 2008 que conta sobre como
uma pintura nos muros registra a memória de moradores da travessa Arroio Uirapuru,
rua de um bairro de periferia de São Paulo; Sagrados elos imobiliários, sob a cartola
Palestina, de Viviane Vaz, de 12 de janeiro de 2011, conta sobre a disputa entre ára-
bes e judeus por uma rua de Jerusalém; A Disney paulista, de Willian Vieira, publicada
em 10 de abril de 2013 sob a cartola Brasiliana, fala de um bairro de Ferraz de Vas-
concelos, na Grande São Paulo, em que algumas ruas foram nomeadas em homena-
gem a personagens de Walt Disney; A via de Deus, Brasiliana de Jobson Lemos, de 14
de outubro de 2015, trata da característica peculiar da Rodovia Serafim Derenzi, em
Vitória, no Espírito Santo, por contabilizar 54 igrejas e templos de diferentes religiões;
e Um sonho sob véus, Brasiliana de Rosane Pavam, de 10 de agosto de 2016, conta
como a fotógrafa Dulce Soares chegou à rua São Caetano, no bairro da Luz, na capital
paulista, e desvendou a “ilusão casamenteira” da via.
10 Embora Resende (2006) se refira a isso que ele chama de estratégia textual
como narrador-jornalista, adotamos a expressão jornalista-narrador. A inversão
de termos se explica por entendermos que se impõe uma ordem das palavras que
advém da hierarquia a partir dos fazeres. Primeiro, temos o jornalismo como campo
institucional, depois, a maneira escolhida por seus agentes para realizar esse fazer,
que pode ser narrativa ou não.
11 O lugar central da descrição na produção de efeito de real foi discutido por
Barthes (1972) no artigo O efeito de real. Nesse texto, a partir da presença de um
barômetro em uma cena descrita por Gustave Flaubert no conto Um coração simples,
ele debate a utilidade da descrição do objeto citado para a narrativa, pois, na lógica
de uma análise estrutural, poderia ser apenas um item supérfluo, mas sua utilidade
passa a ser dizer “eu sou o real”. A aproximação da escrita jornalística a esse modo
de fazer literário também sofreu influência de algumas técnicas que foram desenvolvi-
das, como a fotografia e a reportagem. Estas são apontadas por Barthes (1972) como
135
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

elementos que podem autenticar o real, por apresentarem como suficiente o princípio
de “ter estado lá”.

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137
Visualidades da grande reportagem no Brasil

Yara Medeiros

1. Para ver a narrativa

É à velocidade da luz que as visualidades do mundo nos atravessam a percepção


com seu poder arrebatador. Uma experiência diferenciada de leitura que envolve
um tempo absorto para conhecer o conteúdo da história. As imagens tornaram-
se onipresentes nas mídias, sobretudo após o advento do cinema e da televisão.
As grandes reportagens brasileiras do jornalismo impresso foram importantes
catalisadoras nessa transição para um meio híbrido entre verbo e imagem e que vieram
a desenvolver-se em formato multimídia. O reconhecimento de um caráter narrativo
da imagem na imprensa foi um processo gradual e em constante reinvenção. O uso
de imagens era um recurso raro até a metade do século XIX e foi incorporado à cultura
profissional forjada em paradigmas da objetividade jornalística. O desenvolvimento
da reportagem, gênero textual delineador do campo jornalístico, funda suas bases ao
mesmo tempo em que as imagens tecnológicas passam a fazer parte da vida com a
disseminação da fotografia no século XIX.
O aperfeiçoamento na produção e reprodução de imagens inundou a cultura
profissional jornalística de formas visuais, primeiro com a incorporação da ilustração
e da fotografia e, posteriormente, com a valorização da forma pelo design. A indústria
cultural validou-se construindo um mundo de imagens comercializáveis no século
XX, e o jornalismo incorporou os recursos visuais para solidificar o que é dito na
imprensa como “a verdade”, o retrato nu e cru da realidade. A fotografia foi o principal
recurso para servir aos propósitos da objetividade jornalística. A instituição da grande
reportagem ilustrada na revista O Cruzeiro nos anos 1940 adicionou à cultura visual
do país um modo de ver influenciado por vanguardas artísticas e do design industrial.
Duas correntes do design foram enriquecedoras para o jornalismo nos anos 1920:
a Nova Tipografia e a Escola Internacional. A partir das quais criaram-se as bases da
diagramação moderna dotada de princípios de hierarquia e multimodalidade. A Nova
Tipografia frutificou na Bauhaus, escola de arte e design alemã na década de 1920,
incorporando o pensamento Construtivista e De Stijl. O professor da Bauhaus, László
Moholy-Nagy, construtivista húngaro, teve participação importante na concretização
dessa nova linguagem visual. Os princípios básicos eram guiar o olhar do leitor de modo
que as funções do texto fossem reconhecidas pela visualidade. No Estilo Internacional
houve a racionalização desse processo criativo com a criação de regras matemáticas
de diagramação. Josef Müller-Brockmann, em conjunto com outros designers suíços,
desenvolveram padrões geométricos para hierarquizar o conteúdo em estruturas
modulares. As composições passaram a ser pré-determinadas por modelos conhecidos
como grid (ARAUJO, MAGER, 2016; MEGGS, PURVIS, 2009).

138
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

Esse pensamento foi decisivo para a edição visual das notícias, o grid é fundamental
nas redações. O tamanho dos textos e dos títulos passaram a ser calculados para
adequarem-se a uma folha milimetrada na qual se desenhavam os espelhos das
páginas. Editores precisaram refinar a redação para atender às formas industriais.
Nessa transição o exemplo emblemático brasileiro é a reforma do Jornal do Brasil,
que ocorreu entre 1956 e 1961. De influência modernista, as principais mudanças
foram a simplificação da tipografia, diagramação modular assimétrica, hierarquização
do conteúdo e a inserção de fotografias na primeira página.
Nos anos 1950, o jornalista brasileiro começa a participar efetivamente da
criação das páginas nos jornais. Essa relação ficou mais próxima com a criação dos
departamentos de arte na década de 1970. É quando o designer é introduzido na
redação e a impressão mais fiel do offset se dissemina. A necessidade de produzir um
bom visual tornou-se onipresente em um contexto de concorrência com as revistas
ilustradas e a televisão, mídias de apelo visual. Segundo Freire (2009), as matérias
se tornam mais fragmentadas e ilustradas, há o uso de cores como elemento estético
e ilustrativo, o jornal se torna mais organizado, limpo e arejado. É o momento da
aproximação do jornalista com os profissionais da arte.
Mesmo com uma trajetória de valorização do visual no jornalismo, grande parte do
conteúdo diário não vem acompanhado de informações visuais além das fotografias.
Os rígidos padrões de tempo e tamanho da produção de notícias são fatores limitantes
ao trabalho dos designers. No campo jornalístico, a clareza, a objetividade e o interesse
público são conceitos basilares da profissão. Há um modo de se fazer design para o
jornalismo. Vidal e Souza (2010) defende que a fotografia no Brasil ajudou o jornalismo
a construir sua alteridade em relação à literatura e à opinião política, com a delimitação
de um espaço jornalístico para o repórter e o fotógrafo. “Foi um processo que, junto
com a profissionalização, contribuiu decisivamente para a consolidação do jornalismo
brasileiro como um campo mais autônomo” (VIDAL E SOUZA, 2010, p. 110).
O reconhecimento profissional do jornalista foi marcado pela instituição do repórter,
profissional diferente de colunistas que escreviam em jornais e revistas. A reportagem
é uma forma de narrar e selecionar os fatos distinta da crônica, da opinião, da notícia,
do colunismo. Repórteres apresentam a história com um viés interpretativo que se
vale de personagens, descrição e dados contextuais, todos verificáveis. Na reportagem
recursos visuais são aliados elucidatórios da narrativa ou a narrativa em si. Todos
os elementos devem servir como informação e isso inclui a forma como o texto é
apresentado. O uso de imagens é anterior à preocupação conceitual e discursiva com
forma ao menos no jornalismo. Foi no século XX que a instituição do design como
padrão industrial passou a funcionar como um recurso situado além da simples da
paginação. A forma assume-se como informação e elemento narrativo.
No Brasil, as imagens passam a compor as narrativas da imprensa antes da existência
da reportagem propriamente dita. No século XIX, quando o jornalismo era eminentemente
opinativo, o recurso da imprensa era a charge, a caricatura, sobretudo de caráter político.
Nos primórdios, os jornais eram montados à semelhança dos livros, com páginas sem
hierarquização. A publicação de ilustrações abriu caminho para o uso narrativo da imagem.
Normalmente, representado por uma imagem única, caricatural de cunho político.

139
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

Andrade (2004) diferencia o cenário brasileiro em relação aos Estados Unidos


e à Europa. A litografia nesses países foi adotada pelo gênero caricatural da
imprensa. Já os periódicos ilustrados noticiosos preferiam a xilogravura, que era
impressa simultaneamente ao texto. “Aqui, arriscaríamos afirmar, os periódicos
ilustrados litográficos, quase todos dando espaço às caricaturas, se tornaram um
sinônimo de imprensa ilustrada no geral, a partir das décadas de 1850 e 1860”
(ANDRADE, 2004, p. 52). O pesquisador pondera que no Brasil a imprensa noticiosa
e caricatural era uma só. Na época era inexistente a mão-de-obra para xilogravura
com a rapidez que a imprensa necessitava. Os ilustradores eram estrangeiros,
olhavam criticamente para a sociedade brasileira e, além disso, a falta de laços
familiares “implicava um menor bloqueio, portanto, para exercitar a veia artística
caricatural” (ANDRADE, 2004, p. 53).
O interesse pelas histórias de vida demarca os primeiros laços da imprensa
com a ideia de reportar que é diferente de noticiar. A reportagem é um relato
mais aprofundado do que uma notícia (LIMA, 2009). A descrição do cotidiano,
dos personagens e de como os fatos repercutem em suas vidas fundaram as
características do ato de reportar. É um tipo de texto com algumas características
fundamentais: predominância da forma narrativa; humanização do relato, texto de
natureza impressionista e objetividade dos fatos narrados, conforme Sodré e Ferrari
(1986, p.15). Alguns desses aspectos podem se destacar mais, dependendo do
tema, mas segundo os autores, a narrativa sempre deve estar presente ou “não
será reportagem”. Medina (2003, p. 52-53) defende que a “a ação coletiva da
grande reportagem ganha em sedução quando quem a protagoniza são pessoas
comuns que vivem a luta do cotidiano”. E esta é uma marca indelével da grande
reportagem brasileira, espaço no qual o jornalista elabora com profundidade sua
narrativa, embrenhando-se nos recônditos das histórias e naquilo que é exótico e/
ou distante dele pela geografia ou por questões socioculturais.
“Com a reportagem, o jornalista aproxima-se do etnógrafo. A viagem em busca
da alteridade nas narrativas emblemáticas das duas atividades está situada em
locais remotos ou de difícil acesso e integração”, relaciona Vidal e Souza (2010, p.
113). Para a autora, “o ‘outro’, por quem procura o repórter, assim como a alteridade
da etnografia modelar, está distante espacialmente do seu ponto de partida”. E ela
compara a grande reportagem à descrição densa de Geertz (1978) lembrando que
para Clifford (1988, p. 24) o new journalism é um gênero “paraetnográfico”. “O new
journalism é conhecido pela valorização da reportagem e pela imersão do autor na
realidade concreta e subjetiva dos personagens reportados, além da preocupação
com contextos sociais explicativos das ações e das ideias dos indivíduos mencionados”
(VIDAL E SOUZA, 2010, p. 113).
Quando a reportagem é valorizada com o advérbio de intensidade “grande” não
significa que seja extensa apenas em relação ao espaço que ocupa. Esse termo está
associado no jargão da área a um tipo de matéria jornalística que passa por um
processo de aprofundamento do tema, de um olhar complexo que cerca a pauta de
inúmeras problematizações para construir a narrativa. Para Lima (2009, p. 18), a
grande reportagem é “um mergulho de fôlego nos fatos e em seu contexto, oferecendo
a seu autor ou a seus autores, uma dose ponderável de liberdade”. O autor observa
140
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

que “a reportagem ganha esse status [de grande reportagem] quando incorpora à
narrativa elementos que possibilitam a compreensão verticalizada do tema no tempo
e no espaço ao estilo do melhor jornalismo interpretativo” (LIMA, 2009, p. 26).
A produção de grandes reportagens demanda um modo de elaboração diferente
da rotina tanto para o texto como para o planejamento visual. São produzidas com pelo
menos três meses de apuração e podem ultrapassar um ano de produção. A pressão do
tempo é substituída pelo planejamento, o que para os designers e demais produtores
visuais é uma chance de criar um trabalho diferenciado. A produção da imagem recebe
atenção especial, com fotógrafo e equipe de design impresso e digital. Para um dos mais
famigerados repórteres brasileiros, o jornalista Ricardo Kotscho, a grande reportagem
“rompe todos os organogramas, todas as regras sagradas da burocracia – por isso é o
mais fascinante reduto do jornalismo, aquele em que sobrevive o espírito de aventura,
de romantismo, de entrega, de amor pelo ofício” (KOTSCHO, 1995, p. 71).
Grandes reportagens são um investimento e pressupõem, na maioria das vezes,
viagens para locais distantes da redação. Vidal e Souza (2010, p. 111-112) em sua
pesquisa aponta que a vocação da reportagem brasileira em busca de histórias
sobre o outro “é a descoberta da alteridade”. Os repórteres entendem seu trabalho
como reveladores de realidades desconhecidas dos leitores. “Eles fazem com que
pessoas e espaços, até então ausentes do registro jornalístico, passem a existir posto
que descrevem, nomeiam e fixam sua imagem” (VIDAL E SOUZA, 2010, p. 82). O
caráter desbravador da reportagem solicita imagens. O relato descritivo, analítico e
interpretativo associado a elementos visuais, enriquece e conta a história criando
um tipo de narrativa visual jornalística. Nas grandes reportagens brasileiras, desde
os seus primórdios, jornalistas se empenharam em apresentar um relato visual das
histórias.

2. Narrativas visuais brasileiras

Todos os elementos constituintes de uma reportagem existem para contar uma história
e, como já é consenso, histórias podem ser contadas por imagens. Aumont (1993, p. 244)
reconhece que as imagens “(...) na maioria das vezes, representam um acontecimento
também situado no espaço e no tempo. A imagem representativa, portanto costuma
ser uma imagem narrativa”. No jornalismo, a função narrativa das imagens é básica e
extrapola o campo das fotografias. Os elementos gráficos narrativos estão presentes em
ilustrações, infográficos, ícones, cores, tipografia e na diagramação. No campo da rotina
diária esses recursos encontram-se engessados em fórmulas para acionar a agilidade e
atender aos anseios de temporalidade do jornalismo. Mas em projetos longos, o raciocínio
para um visual narrativo deve ser mais elaborado.
No caso brasileiro, em que as grandes reportagens buscam a alteridade, essa
interpendência verbo-visual é marcante. Na Figura 1, temos um registro histórico do
uso de imagens para enfatizar fatos narrados e solidificar o efeito de verdade. Em 1878,
o jornal Gazeta de Notícias, do Rio de Janeiro, enviou o jornalista José do Patrocínio
para o Ceará com a função de contar como estavam sendo empregados os recursos
públicos para amainar os efeitos da grave seca que obrigou uma legião de pessoas
famintas a migrarem para a capital Fortaleza. Publicada na primeira página do jornal
141
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

na seção Folhetim, a “reportagem” intitulada “Viagem ao Norte” foi realizada em


série e publicada aos sábados, de maio a setembro de 1878. De modo intermitente,
José do Patrocínio enviava relatos alarmantes sobre o cenário da miséria pelas ruas:
“Criancinhas nuas ou seminuas, com rostos escaveirados, cabelos emaranhados,
sobre crânios enegrecidos pelo pó de longas jornadas” (PATROCÍNIO, 1878, p. 1).
Andrade (2004, p. 191) observa que “o jornalista certamente desejava cumplicidade
para o triste espetáculo que presenciava, mas a eloquência de suas palavras não era
suficiente.” A Gazeta de Notícias não publicava imagens. José do Patrocínio enviou
então para a redação de O Besouro, as fotografias de vítimas da seca para ilustrar sua
história. É interessante perceber que para sensibilizar a opinião pública foi necessário
ver para crer (ANDRADE, 2004) e o jornalista reconheceu a visualidade como uma
força para legitimar a narrativa articulando um modo de mostrar os personagens.
O exemplo apresenta uma ilustração litográfica. Como as fotografias ainda não
eram reprodutíveis no país, os ilustradores as copiavam. Na imagem foi inserida
uma mão esquelética com roupa fina demarcando o viés de denúncia contra os
governantes. O caráter elucidador da imagem é reiterado em texto: “A nossa estampa
de primeira página é uma prova cabal àqueles que acusavam da exageração que
se fazia do estado infeliz da província” (O BESOURO, 1878, p. 2). Segundo Andrade
(2004), a ilustração é bastante fiel às fotografias e quem as reproduziu foi Bordallo
Pinheiro, artista gráfico e designer pioneiro em Portugal e no Brasil. Para o autor, tudo
indica que este foi o primeiro uso de uma fotografia com caráter de denúncia e defesa
de um estatuto de verdade na imprensa carioca. O autor indaga se Bordallo e José
do Patrocínio não seriam uma primeira dupla da fotorreportagem brasileira, tradição
que se fará presente na produção de grandes reportagens da revista O Cruzeiro das
décadas de 1940-1950 e ainda hoje é uma prática no jornalismo de profundidade.
Em relação às narrativas da grande reportagem esse episódio é destacável por ser
uma viagem rumo a uma realidade diferente da carioca, publicada em série ao longo
de meses e que precisou se valer de imagens para ser aceita como relato verídico,
mesmo que não tenham sido publicadas no mesmo meio.
Figura 1 – Capa de O Besouro de 20/07/1878

Fonte: Biblioteca Nacional


142
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

Quando não era possível reproduzir fotografias, ilustradores iam aos locais dos
fatos e elaboravam gravuras para acompanhar o texto. Assim, “o desenho realista
construía o jornalismo visual” (BUITONI, 2011, p. 48). No Brasil, um exemplo dessa
prática na história da grande reportagem brasileira é a série de reportagens “Mysterios
do Rio”, produzida por Benjamim Costallat para o Jornal do Brasil, em maio de 1924.
Nesta época, o texto carregava o hibridismo literário em estilo de crônica. Conforme
Bulhões (2007), os textos de Costallat assinalam uma transição entre o folhetim e as
histórias “reais”, o que chama de contos-reportagem. Os textos de Costallat flertam
com a reportagem brasileira de aprofundamento e interpretação. Pois é um “repórter”
que se embrenhou na periferia carioca em busca das histórias do outro, produzindo
um relato extenso, publicado em série.

Figura 2– Páginas da série de contos-reportagem para o Jornal do Brasil

Fonte: Biblioteca Nacional

O próprio Costallat anuncia esse trabalho como distinto das habituais histórias
de ficção que escrevia. “Hoje o que os escritos procuram dar, e que o próprio público
ledor exige, é a verdade. A verdade nos ambientes, a verdade na ação e a verdade
nos personagens.” (COSTALLAT apud BULHÕES, 2007, p. 115). Embora a leitura
dos textos revele preconceitos e uma boa dose sensacionalismo, ele acreditava
em sua fidelidade com o real. Se o público quer “verdade”, ilustrar essas histórias
deveria apresentar uma base “real”. Nos dois exemplos temos uma imprensa que
transita entre o jornalismo opinativo e o interpretativo, cenário em que jornalistas
e escritores ficcionais trabalham em um campo profissional ainda não totalmente
delineado. Porém, as bases do jornalismo moderno valorizando a objetividade com
dados verificáveis é presente. No texto da série (Figura 2), “No bairro da cocaína”, o
ilustrador da reportagem é o acompanhante do narrador-repórter, conforme Bulhões
(2007); um indício de que o ilustrador acompanhou Costallat durante a reportagem.
E a menção a esse detalhe da produção mostra como havia uma preocupação em
atestar a veracidade dos desenhos.
Em período posterior, quando a objetividade já era um “código moral”
da profissão, ao menos no jornalismo norte-americano, podemos constatar
transgressões a esta norma nas páginas da revista O Cruzeiro. Na Figura 3, a
reportagem “Enfrentando os Chavantes”, de David Nasser (texto) e Jean Manzon
143
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

(fotos) para a revista O Cruzeiro, em 1944, faz a documentação de uma viagem de


sertanistas com o registro de indígenas isolados a partir da expedição e voos sobre
as aldeias. A montagem das fotos assemelha-se às histórias em quadrinhos pela
forma sequencial de apresentação, além de toda uma fabulação sobre os perigos
enfrentados pela equipe. O arranjo das imagens demonstra a interpretação do
fotógrafo em um estilo que busca a objetividade na forma de narrar, apresentando
em um passo a passo a “aventura” da equipe. Ao mesmo tempo em que “dirige”
as imagens ao paladar da subjetividade de um criador de estilo épico e por vezes,
sensacionalista.

Figura 3 – Revista O Cruzeiro - Ano XVI – nº 35, 24/06/1944

Fonte: Biblioteca Nacional

A reportagem brasileira e o fotojornalismo ainda davam seus primeiros passos


rumo a uma padronização dos procedimentos da imprensa. Na revista O Cruzeiro,
conviviam diferentes estilos de texto e de fotografias: ficcionalizadas (Figura 3);
copiando o estilo de revistas ilustradas estrangeiras; ou de compromisso com o
real. Na Figura 4, o trabalho do fotógrafo José Medeiros apresenta o estilo realista,
porém com caráter interpretativo e autoral. Nota-se no conjunto de imagens, que
os jornalistas e fotógrafos eram retratados junto com as fontes na narrativa visual,
participantes da ação. Com as imagens, a revista “prova” ao leitor que a “aventura”
do repórter realmente aconteceu1.
O Cruzeiro foi responsável pelo desenvolvimento da reportagem integrando textos
e imagens na década de 1940. A revista é uma referência histórica em montagens
gráficas com fotografia interligadas ao texto. E, em muitos casos, privilegiando a
imagem. Esse modelo foi implantado ao exemplo das fotorreportagens de publicações
como a americana Life (1936) e a francesa Match (1938).

144
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

Figura 4 – Revista O Cruzeiro - Ano XXI – nº 34, 11/06/1949

Fonte: Biblioteca Nacional

A produção de grandes reportagens é um fator que contribuiu para a instituição


do espaço profissional. Entende-se que para a produção de matérias desse formato
era indispensável a dobradinha repórter e fotógrafo. São conhecidas as duplas já
citadas, David Nasser e Jean Manzon e ainda, Arlindo Silva e José Medeiros. Quando
os fotógrafos passaram a assinar as matérias junto ao autor do texto institui-se a
figura do fotorrepórter no país (COSTA; BURGI, 2012). O fotojornalismo moderno,
de caráter mais espontâneo e noticioso, é marcado pelo abandono aos aspectos
formais, após a I Guerra Mundial. Uma mudança influenciada por câmeras mais
velozes e menores. Sousa (2004, p. 19) lembra que Szarkowski (1973) “caracteriza
o fotojornalismo moderno como sendo franco, favorecedor da emoção sobre o
intelecto, enfatizador da subjetividade, redefinidor da privacidade e marcado pela
publicitação da autoria”.
Em O Cruzeiro as imagens eram agrupadas em páginas sequenciadas e com
edição de legendas curtas. As fotografias não acompanhavam o texto completo da
reportagem, pois este era espalhado ao longo da revista em páginas alternadas.
Quem vai trazer novidades a este aspecto na grande reportagem brasileira é a
proposta editorial da revista Realidade (Figura 5). As páginas eram compostas
de arranjos gráficos inéditos na imprensa e as imagens acompanhavam o texto
do começo ao fim da narrativa. Melo (2008) vê na maneira de compor as fotos a
influência da linguagem cinematográfica com a diagramação alusiva ao movimento.
O autor considera que a revista Realidade contribuiu para a história da linguagem
jornalística brasileira quando, em suas páginas, “texto, fotografia e design passam
a andar juntos, dividindo irmanamente a responsabilidade pela construção do
discurso” (MELO, 2008, p. 149).

145
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

Figura 5 – Páginas da revista Realidade – Janeiro de 1968

Fonte: Reprodução

Alguns exemplos memoráveis estão nas grandes reportagens: “Por que a América
é odiada?”(Figura 5), “Este homem é um palhaço. Este palhaço é um homem” e
“Revolução na Igreja”. Na reportagem sobre os Estados Unidos, uma foto-ilustração
trabalhada com recursos publicitários e claramente produzida abre a revista. No interior,
uma montagem de imagens pouco convencional para o jornalismo brasileiro da época.
Porém, como em uma época reinante do paradigma da objetividade no jornalismo
puderam surgir layouts de produção encenada? As respostas podem estar na influência
do cinema e televisão como concorrentes dos meios impressos e na influência
da linguagem publicitária. E, ainda, no crescimento do New Jornalism, de caráter
interpretativo e marcado por um mergulho aprofundado do repórter nos meandros das
histórias, também chamado de jornalismo literário. Este estilo não nega a objetividade,
mas abre brechas para recursos estilísticos e de narração, incluindo a vivência do
repórter, seja em primeira pessoa ou com detalhada descrição. Em Wolfe (2005), essa
nova reportagem é apresentada como uma reação justamente à padronização que a
imprensa vivia desde a década de 1920, nos Estados Unidos. Os textos cada vez mais
semelhantes, já não davam conta da complexidade do mundo.
As experimentações desenvolvidas pelas revistas americanas como a Esquire
demonstraram, para Wolfe (2005, p. 37), que os jornalistas estavam indo além
da reportagem convencional: “A ideia era dar à descrição objetiva completa mais
alguma coisa que os leitores sempre tiveram que procurar em romances e contos:
146
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
especificamente a vida subjetiva ou emocional dos personagens.” Porém, muitas
dessas reportagens eram publicadas desacompanhadas de fotografias. A visualidade
é trabalhada no próprio texto com descrições impressionistas. Nos Estados Unidos,
um dos principais modelos foi a revista The New Yorker. Realidade apresenta
características dessa corrente narrativa do jornalismo. E ainda vai agregar um estilo
artístico e de interpretação às narrativas visuais da imprensa.

3. Narrativas visuais da contemporaneidade

Na atualidade, as grandes reportagens da mídia tradicional são produzidas,


principalmente, por jornais de referência, embora de forma esporádica. Nos diários,
os ensaios têm aparato sofisticado de produção da imagem. A pós-produção da
imagem com uso de softwares de edição é recorrente e intensa. Na web, as grandes
reportagens são apresentadas como especiais multimídia, contendo vídeo, infográficos
e conteúdos diferenciados do impresso. Trata-se de uma densidade narrativa visual
hipermidiática, que a reportagem incorpora adequando a linguagem ao perfil do leitor.
Nas páginas dos impressos, cadernos especiais de grande reportagem com
pouco ou sem nenhuma publicidade, deixam a página livre para criação de equipes
multidisciplinares com jornalistas, designers, fotógrafos, infografistas e ilustradores.
Embora o formato em cadernos especiais tenha sido um investimento em anos
anteriores, em 2016 e nos primeiros meses de 2017, os jornais estão privilegiando a
série. Uma volta às origens das grandes reportagens brasileiras.
O jornal O Povo, de Fortaleza, Ceará, é um exemplo da aparição na imprensa de
layouts de grande reportagem empenhados em pesquisa visual e amplo espaço para
o tratamento visual da informação. Na figura 7, um exemplo de páginas densas em
saber visual. A composição visual revela uma produção editorial elaborada com ampla
pré e pós-produção de recursos visuais (MEDEIROS, 2015, p. 12). A equipe fica ciente
do projeto gráfico como um todo e trabalha pela expressão gráfica como conteúdo.

Figura 6 – Layouts do caderno especial “Sertão a ferro e fogo”, de O Povo

Fonte: O Povo de 2014 e O Povo Online

Na imprensa consolidou-se uma “fórmula narrativa” visual (FREEMAN, 2014)


semelhante às construções textuais. Se a narrativa é por natureza dramática e seus
147
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
efeitos de sentido estético são reforçados pelas marcas da linguagem e nos conteúdos
das narrativas (MOTTA, 2013, p. 203), os elementos gráficos são importantes marcas
criadoras de sentidos. As imagens incorporam funções narrativas: apresentação de
personagens, descrição do espaço da história, clímax, encerramento (FREEMAN,
2014). Os fotógrafos buscam responder a essas necessidades informativas antes de
ousarem nos ângulos. Assim como os designers buscam os pontos chaves da história
para hierarquizar e dar forma a todos os elementos visuais da narrativa. E por isso,
os manuais de design editorial em jornalismo afirmam que a relação do designer
com o editor é fundamental nesse processo. É a discussão conjunta que vai dar à
reportagem as imagens e a forma essenciais de comunicarem a história.
Sousa (2004, p. 224) tem dúvidas sobre a superação, no fotojornalismo, da visão
objetivante e realística, “já que, hoje em dia, a atividade é dominada por uma produção
rotineira que continua a perseguir o realismo e que pouco ou nada engloba o criativo, a
arte e, por vezes, o ponto de vista”. Para ele, o fotojornalista deve investir na autoria sem
perder a intenção informativa, ao mesmo tempo em que se abre para a criatividade.
Baesa (2001) alerta para uma perda da cultura visual profissional crítica do
jornalismo com o predomínio de imagens do acontecimento fornecidas por agências
como a Associated Press, Reuters e Agência France-Presse. “Imágenes iguales para
todos que reducen la realidad del mundo a estereotipos que anulan la diversidad de
los fenómenos a los que se refieren y que sin embargo ocultan, en su profusión de
escenarios, lo más óbvio: a quién aprovecha la injusticia y la violencia” (BAESA, 2001,
p. 14). Para o autor, a falta de um jornalismo investigativo resulta na inexistência
de imagens equivalentes, ou seja, em imagens diferenciadas capazes de provocar a
crítica e a interpretação social.

Figura 7 – Imagens de grandes reportagens

Foto de Alexandre Severo Arte sob foto de Dida Foto de Charles Guerra para
para “Os Sertões”, 2009. Sampaio para “Favela “As quatro estações de
Fonte: Jornal do Commercio Amazônica: um novo retrato Iracema e Dirceu”, 2015.
da floresta”, 2015. Fonte: Diário Catarinense
Fonte: O Estado de S.Paulo

Fonte: Montagem elaborada pela autora


148
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

Mas, a padronização da abordagem fotográfica da imprensa não é exclusividade


da rotina produtiva diária (MEDEIROS, 2016). Na Figura 7, as fotografias carregam a
herança da fotografia documental e exploram um tipo de composição clássica nos
retratos etnográficos. A representação dos personagens é bastante semelhante,
sendo até repetitivas, gerando estereótipos que podem invisibilizar outros aspectos
dos retratados, como pode ser constatado nas capas dos cadernos especiais “Os
sertões” (2009), do Jornal do Commercio; “Favela Amazônica” (2015), do Estado de
S. Paulo e “As quatro estações de Iracema e Dirceu” (2015), do Diário Catarinense.
(Figura 7).
A matriz digital revolucionou os processos de produção no jornalismo e favoreceu
a visualidade. Mas, a página impressa continua propiciando “narrativas visuais não-
lineares” com os arranjos gráficos e os inúmeros recursos de design que podem ser
empregados. As tentativas de importar as características da página impressa para
web mostraram-se infrutíferas. Para o texto, a visualização em tela é mais confortável
em formato de rolagem, como os antigos pergaminhos. É curioso que um dos
primeiros modos de se organizar e transmitir informação seja o formato preferido
de consumo na era digital. As grandes reportagens da atualidade são multimídia
apresentam registros em vídeo, infográficos animados e a inclusão de conteúdos que
vão além do que é publicado no registro impresso. Jacobson et al (2016) analisaram
50 pacotes de grandes reportagens americanas de agosto de 2012 a dezembro de
2013, e concluíram que as reportagens multimídias de longo formato representam
uma nova onda do jornalismo literário americano. Ela delimita essa corrente com as
produções influenciadas pelo estilo do New Journalism. Mais uma vez, a reportagem
usa recursos visuais para reconfigurar a narrativa. Jacobson (2016, p. 540) observa
que as narrativas digitais são mais do que blocos hipertextuais fragmentados. “Eles
promovem o entendimento do campo sobre o potencial da web para o jornalismo
dramático e imersivo” ². Bem diferente de seus primórdios, o repórter tem hoje um
arsenal de possibilidades visuais com produção de baixo custo. A grande reportagem
caminha por novas formas narrativas também no Brasil alargando o espaço de
produção imagética para uma visualidade multimidiática.
A visualidade na construção das narrativas das grandes reportagens sempre esteve
presente e vem se imiscuindo ao longo de sua trajetória no modo como interagimos
com as histórias. O desenvolvimento de estudos sobre um jornalismo visual deve
integrar todos os elementos constituintes da visualidade tentando reconhecer como os
jornalistas buscam a visibilidade para suas narrativas. Articulam-se assim conhecimentos
do jornalismo, da imagem, do design. As visualidades influenciam a forma de narrar e
de ler reportagens. Se somos uma sociedade visual, as imagens e formas da imprensa
precisam ajudar o público a interpretar, questionar e criar saberes. Pela breve trajetória
brasileira aqui descrita observa-se a grande reportagem como um espaço privilegiado
para exercitar inovações narrativas abertas à criatividade no ato de contar.

Notas

1 Na reportagem “Enfrentando os Xavantes”, há uma imagem com David Nasser


em frente ao avião como prova da autenticidade da participação do repórter. Porém,
149
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

é conhecida a história de que o repórter não participou da viagem. (VIDAL E SOUZA, p.


111).

2 Tradução livre.

Referências

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150
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
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151
Hemingway não tuitava nem gugava:
A história da obra jornalística do Papa da reportagem

Ana Beatriz Magno

Figura 1: Hemingway entrevistando família espanhola em Teruel


durante a Guerra Civil, em dezembro de 1937

Fonte: Magnum Photos (Crédito: Robert Capa)


Que tal lhe parece Madri? – perguntei.
- Está dominada pelo terror. É uma coisa que se sente onde quer que você vá. Estão
encontrando milhares de cadáveres – disse o jornalista.
- Quando foi que você chegou?
- A noite passada.
- E onde viu os cadáveres?
- Oh, veem-se por toda a parte – respondeu ele – Poderá vê-los de manhã cedo.
- Você saiu cedo esta manhã?
- Não.
- Viu alguns cadáveres?
- Não, não vi. Mas sei que há montes deles.
- E que provas de terror você conseguiu.
- Oh. Ele está aí. Você não poderá negá-lo.
- Mas que provas viu por si mesmo?
- Ainda não tive tempo de vê-las pessoalmente, mas sei que não faltam.
- Escute aqui – disse eu – Você chegou a Madri a noite passada. Ainda não meteu o

152
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

nariz na cidade. Não saiu do hotel.


Vem dizer-nos, a nós, que vivemos aqui e trabalhamos aqui, que existe terror na cidade (...)
Ora, o sujeito era correspondente de um grande jornal, pelo
qual eu tinha o maior respeito, e só por isso não o esmurrei.

Ernest Hemingway, setembro de 1938.


1. Introdução

O jornalista Ernest Hemingway estava prestes a completar seu 45o aniversário


quando realizou o sonho de todo repórter: registrou o raro momento em que a História
se congela num feito. Era 6 junho de 1944. Ele trabalhava como correspondente
internacional da revista americana Collier’s Weekly e cobria a saga dos soldados
aliados que partiram da Inglaterra para libertar a França da tirania alemã.

O vento soprava forte do Noroeste. Navegávamos em direção à terra na luz


cinzenta precoce. Os barcos de aço em forma de caixão com 36 metros levavam
sólidos lençóis verdes de água que caiam sobre as tropas, embaladas ombro
a ombro pelo duro, embaraçoso e desconfortável sentimento de solidão do
homem que parte para o combate. (HEMINGWAY, 1969b, p. 101).

A reportagem de Hemingway ocupou quatro páginas inteiras da edição de 22 de


julho de 1944 da Collier’s, está guardada na biblioteca John F. Kennedy e é importante
documento sobre o desembarque dos aliados na Normandia.

Há muito mais que eu não escrevi. Poderia escrever durante uma semana e não
conseguiria dar o crédito a tudo que foi feito naquele front. Guerra de verdade
nunca é como guerra de papel (...) Mas se você quer saber o que se passou, isso
é o relato mais fiel que eu posso lhe dar. (HEMINGWAY, 1969b, p.118).

O Dia D de Hemingway sinaliza o vigor de sua obra jornalística, tão pouco estudada
no Brasil. Hemingway escreveu crônicas, artigos e reportagens para jornais e revistas
entre 18 e 60 anos de idade. Foi repórter, cronista, editor e ativo correspondente
de guerra durante os principais conflitos que sangraram o século XX. Porém, apesar
da intensidade, da regularidade e da qualidade de sua obra, suas matérias são
pouco conhecidas no Brasil, e praticamente inexploradas em termos de reflexão
acadêmica. O único livro publicado no país com suas reportagens data de 1969,
numa edição já esgotada da Civilização Brasileira. Os números acadêmicos são ainda
mais desoladores. O banco de Teses do IBICT1 não registra nenhum trabalho sobre o
jornalismo de Ernest Hemingway nos 98 programas de pós-graduação cadastrados.
O esforço reflexivo e empírico deste artigo, no entanto, ultrapassa a recuperação
biográfica do repórter Ernest Hemingway. Ele está ancorado na pergunta “O que é
Reportagem?” e se alinha às tradições teóricas que entendem o jornalismo como
narrativa (MOTTA, 2013) e como forma de conhecimento (MEDITSCH, 2011). Nossa
premissa central sustenta que a reportagem é uma forma narrativa de conhecimento
do real e que esse “conhecer” está alicerçado em peculiaridades significativas e
articuladas que atravessam todas as etapas do processo de produção da informação
153
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

jornalística. Nossa perspectiva é de que o resgate da reportagem como produto


noticioso é essencial para a superação da crise narrativa do jornalismo, hoje sitiado
pelas ferramentas de busca como Google e pelos textos-relâmpagos do twitter.
A pesquisa está amparada em Modelo de Caracterização e Análise de Reportagens,
ferramenta analítica desenvolvida na Tese de Doutorado da autora e sustentada na
Narratologia. Durante a pesquisa doutoral, examinamos 262 matérias de Hemingway
publicadas entre 1918 e 1958, textos que são instigantes não apenas porque contam
uma história do século XX, mas porque traduzem forma particular de conhecer, de
narrar e de documentar uma versão do presente. Essa forma prioriza abordagens
socioculturais temáticas, recorre a fontes cidadãs, está ancorada na observação e na
apuração realizada pelo próprio repórter. Sua estrutura narrativa é descritiva, reveladora
e interpretativa. Os relatos são circunstanciados, detalhistas e movidos por intrigas
humanistas e embates morais virtuosos que confirmam a visão do colombiano Gabriel
García Márquez de que a reportagem é o mais fascinante dos gêneros jornalísticos.

2. Hemingway, o repórter

“Recorde-se dos ruídos que ouviu e das coisas que cada um disse. Quando as
pessoas falam, você deve escutá-las completamente. Não fique pensando no que vai
responder, no que vai dizer a seguir. A maioria das pessoas não ouve. Nem observa.
Você deve estar capacitado para entrar numa sala e quando sair, saber tudo que
ali viu e não só isso. Se essa sala lhe despertou algum sentimento, deverá saber
exatamente o que foi que lhe deu esse sentimento (...)Depois escreva tudo com a
maior clareza para que o leitor também veja como se fosse uma testemunha visual
dos acontecimentos”.
Ernest Hemingway

A vida nunca foi uma festa para Hemingway. Sua imagem de boêmio incorrigível,
sempre metido em aventuras por mares e desertos ainda hoje se multiplica em filmes,
verbetes e enciclopédias, mas não combina com os capítulos de angústia e morte
que cercam sua biografia. Papa viveu assombrado pela crueldade das guerras, pela
solidão da depressão e pelo mistério do suicídio, epílogo dramático que abreviou a
vida de seis Hemingways2. O primeiro deles foi o patriarca da família e pai do escritor.
Ernest Miller Hemingway tinha apenas 29 anos de idade, viajava a caminho do sol
da Florida, quando recebeu um telegrama com a notícia de que seu pai se matara com
um tiro de revólver, calibre 32. Doutor Clarence Edmonds estava com 52 anos, sofria
com os males provocados pelo diabetes e por um casamento rancoroso com Grace
Hall, a mãe musicista que Hemingway aprendeu a detestar desde garoto, quando ela
o vestia de menina e o obrigava a tocar violoncelo.
Na biografia Papa, escrito por A. E. Hotchner, Hemingway reconhece a crueldade
da mãe, a responsabiliza pelo suicídio paterno e insinua que, de alguma forma, ela
arquitetou algo semelhante para o destino do filho (HOTCHNER, 2008, p. 16). “No
Natal, recebi um embrulho da minha mãe. Continha o revólver com que o meu pai se
suicidara. Trazia um bilhete dizendo que achava que eu talvez gostasse de o ter. Não

154
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
sei se era agouro ou profecia”. Agouro ou profecia materna, o fato é que o destino do
pai médico se repetiu com o filho escritor. No alvorecer de 2 de julho de 1961, depois
de cinco internações seguidas com 15 dolorosas sessões de eletroconvulsoterapia,
Ernest Hemingway se matou com a espingarda que usava para caçar pombos.

Notícias da Infância

Nascido numa família de classe média alta, na pequena cidade de Oak Park, perto
de Chicago, no estado de Illinois, Ernest Hemingway cresceu dividido entre as Letras
e os esportes. Excelente aluno de literatura inglesa, devorador contumaz de toda
sorte de romances, Ernest lia e escrevia no sótão de sua casa, onde se refugiava tanto
das pressões maternas para que tocasse violoncelo, quanto do rigor paterno que
condenava toda sorte de exageros. Hemingway era um exagerado.
Louco por esportes, encarava cada jogo com fúria competitiva – mais tarde, focou
esse vigor na paixão por touradas, boxe e safaris. Na escola, participava das equipes de
polo aquático, atletismo, natação e futebol americano. No ensino médio, acrescentou
mais um time em sua rotina: o de redator e editor da Tábula e do Trapaze, o jornal e a
revista da escola. Escrevia sobre esportes, inclusive sobre as competições das quais
participava e sobre as lutas de boxe as quais começava a assistir em Chicago.
Gostava de imitar o estilo de cronistas esportivos profissionais dos grandes jornais
das capitais. Seu ritmo de trabalho era frenético para um adolescente de 17 anos.
Entre novembro de 1916 e março de 1917, por exemplo, o jovem Hemingway escreveu
24 matérias para a Tábula. Seu gosto pela escrita era tanto que assinava uma média
de três textos por edição.
Naquela época, o ocidente fervia com a Primeira Guerra Mundial e tremia de pavor
com as turbulências provocadas pela revolução russa. Os Estados Unidos puseram os
pés no front europeu, alistando recrutas e enviando tropas para a França e para a
Itália. Hemingway queria se alistar, mas o pai não deixou. Achava o filho muito jovem
para a empreitada. Doutor Edmond Claurence sonhava que o rebento seguisse seus
passos na Medicina e ocupasse a vaga conquistada na Universidade de Illinois. Ernest
recusou. Aos 18 anos, comunicou à família que não iria seguir os sonhos dos pais e
que escolhera ser repórter, em Kansas City, a três horas de trem da pacata Oak Park.
O voluntarioso foca não estava decidido apenas a ser jornalista. Ernest Hemingway
sabia onde queria trabalhar. Aspirava uma vaga no Kansas City Star, o maior jornal da
região. E conseguiu. Com a ajuda de um tio, arranjou o emprego de cup reporter (foca),
no que hoje chamamos de Editoria de Cidades. Começou a trabalhar em 17 de outubro
de 1917 e desde o primeiro dia impressionou os colegas.
Todos usavam chapéu ou gorro. “Hemingway era o único vestido com uma
camisa xadrez e preta, traje típico de caçadores. Os colegas veteranos reprovaram a
vestimenta”, lembra o colunista Jim Fisher, num dos vários artigos sobre Hemingway,
publicados na página3 virtual que o jornal dedica ao mais famoso americano que
passou por sua redação.
Hemingway começou no jornalismo fazendo o que quase todo jovem repórter
faz: escrevia notícias locais, sobre casos de polícia, de costumes e de problemas
155
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

urbanos. Sua primeira matéria publicada, Kerensky, a pulga em combate4, data de


16 de dezembro de 1917, e ocupou uma coluna na página 3C, conforme fac-símile
reproduzido no site jornal. A matéria trata de um office-boy, cujas feições lembravam
o líder russo “Kerensky” e que nas horas vagas fazia bicos como pugilista5.
Em 6 de janeiro de 1918, Hemingway conquistou sua primeira chamada de capa
com “Batalha de Policiais”, texto sobre uma trapalhada dos agentes da lei que resultou
no ferimento de dois detetives. A delegacia da região mandou duas equipes diferentes
para “estourar” um ponto de drogas. Os policiais confundiram os colegas com bandidos
e atiraram em suas pernas. Resultado: dois detetives quase morreram.
Hemingway trabalhou seis meses e meio no Star. Em 30 de abril de 1918, pediu
demissão e partiu para a Primeira Guerra Mundial. Arranjou uma vaga como motorista
de ambulância da Cruz Vermelha. Ao recordar dos tempos de foca no Star, era enfático:
“No Star, você era obrigado a escrever uma sentença declarativa simples. Isso é muito
útil para qualquer um”, declarou o autor, em entrevista a Paris Review, publicada em
1958 e reeditada no Brasil pela Companhia das Letras, em 2006.
Em outro texto histórico, guardado na John Kennedy Presidencial Library
responsável pelo acervo do autor, Hemingway relembra as lições que aprendera no
primeiro emprego: “No Star, aprendi as melhores regras sobre o negócio da escrita.
Eu nunca as esqueci. Nenhum homem com algum talento que sente e escreve sobre
algo verdadeiramente pode deixar de escrever bem se ele escreve a partir das regras
do Star”6
Com 110 normas de estilo, as regras do Star nasceram em 1917. Eram um embrião
dos manuais de redação e faziam do jornal um exemplo de pioneirismo no jornalismo
ocidental (BRUCCOLI, 1970). No Brasil, por exemplo, o primeiro manual semelhante
só foi publicado nos anos 50, no extinto Diário Carioca, por iniciativa do jornalista
Pompeu de Sousa (WERNECK SODRÉ, 1999).
As regras do Star7 ficavam penduradas numa imensa folha no meio da redação
e eram cobradas a ferro e fogo por W.E Nelson, rigoroso editor-chefe que adorava
eliminar os barroquismos do texto jornalístico e aproximá-lo do cotidiano. Para isso,
cobrava o cumprimento dos 110 mandamentos, entre eles “empregue frases curtas”,
“faça seus parágrafos de abertura breves”, “utilize um “inglês” vigoroso”, “seja
afirmativo, não negativo, evite o emprego de adjetivos”.

Primeira Guerra - Primeiras Feridas

Em 23 de maio de 1918, Hemingway deu adeus à América e partiu para a Itália


como motorista da Cruz Vermelha. Queria colocar os olhos na guerra real. No final de junho,
passou a pilotar sua ambulância no front. O serviço durou pouco. No dia 8 de julho, em
Fossalta di Piave, enquanto distribuía chocolates e cigarros para soldados, foi gravemente
ferido por uma bomba austríaca. Mesmo machucado, com estilhaços nas duas pernas,
carregou um colega nos ombros. O ato lhe rendeu medalhas, mas não aliviou a agonia
de passar dois meses hospitalizado. Ali, cercado pelo cheiro de morte e aterrorizado pelo
som da guerra, o motorista de ambulância reencontrou suas entranhas de repórter e, em
relatos minuciosos, descreveu o que viu e sentiu naqueles dias.
156
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

Eu mantinha uma vasilha ao lado de minha cama, cheia de fragmentos de


metal que eles tiraram da minha perna (...). 227 pedaços. Fui ferido por um
Minenwerfer arremessado por um morteiro de trincheira austríaco. Eles
enchiam esses Minenwerfers com a pior coleção de lixo que você jamais
viu – parafusos, porcas, pregos, estacas, sucatas de metal – e, quando
atiravam, você era atingido por tudo aquilo. Três italianos ao meu lado tiveram
suas pernas arrancadas. Tive sorte (...) A grande luta foi para impedir que
eles amputassem a perna. Recebi a Croce al Merito di Guerra e Medaglia
D’Argento al Valore Militare. Joguei as duas dentro da vasilha com toda a
sucata de metal. (HEMINGWAY, 2008, p. 46).

A primeira guerra de Hemingway não lhe deixou apenas feridas. Rendeu-lhe um amor
e um livro. Durante a temporada em que ficou acamado no hospital, o jovem Hemingway
apaixonou-se pela enfermeira Agnes von Kurowsky, sete anos mais velha do que ele,
uma charmosa filha de general que confortava os ferimentos e os olhos dos pacientes de
guerra. Foi o primeiro grande amor de Hemingway e também seu mais sonoro não. Agnes
rejeitou seu pedido de casamento e subiu ao altar com um oficial italiano.
Hemingway não escondeu a frustração. Ao contrário, publicou-a. Os estilhaços da
bomba e do amor não correspondido inspiraram um dos maiores sucessos literários
do autor, Adeus às Armas, publicado em 1929 e aplaudido pela crítica com 80 mil
exemplares vendidos em apenas quatro meses de prateleira.
Adeus às Armas pode ser interpretado como um jornalismo literário às avessas
- gênero nascido nos anos 50 com o nome de “new journalism” e que empresta
técnicas literárias ao texto noticioso. Hemingway fez o inverso em seu Adeus às Armas.
Impregnou o texto ficcional de estratégias jornalísticas, secou a prosa de devaneios
e advérbios, inundou-a com relatos ásperos do conflito bélico na Europa e mostrou a
potencialidade narrativa e documental da reportagem.

De Volta à América - e ao Jornalismo

Ferido na perna e no coração, Hemingway partiu da Europa em fim de janeiro


de 1919 e se mudou para o Canadá, onde arranjou um emprego no Toronto Star
Weekly, revista semanal publicada pelo jornal Toronto Star. Durante 12 meses, Ernest
Hemingway ganhou US$ 10 por matéria publicada. Em geral textos sobre o cotidiano
e serviços da cidade. Após seis meses, o jornalista retornou para os Estados Unidos,
passou a viver entre Chicago e Michigan, e seguia escrevendo para o jornal, mas o
trabalho não estava lhe agradando (BAKER, 1972).
Hemingway buscava a realidade nua e crua, queria escrever matérias com temas
mais definitivos, jamais suportou a efemeridade do jornalismo. Ainda não sabia se
essa crueza seria fonte de ficção ou de reportagem, mas precisava se inspirar na
dureza violenta do real (REYNOLDS, 1987). Em dezembro de 1921, já casado com
Hadley Richardson, a primeira de suas quatro esposas e com quem teve seu primeiro
filho, Hemingway conseguiu um contrato de correspondente na Europa.
O Toronto Daily Star - jornal integrante do mesmo grupo onde ele trabalhara antes,
mas com periodicidade diária e foco noticioso - pagaria US$ 65 por semana para
157
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

Hemingway fazer matérias em várias cidades europeias, sobre temas que incluíam
desde touradas até economia e geopolítica. Ele também ganharia um extra, sem valor
fixo, por cada palavra publicada no jornal. Hemingway aceitou. Primeiro foi para a
Itália, mas logo partiu para Paris, a cidade que mudou sua vida e suas ideias.

Paris foi muito mais que uma festa

Hemingway sugou tudo o que havia pela frente naqueles efervescentes anos 20.
Sugava e escrevia. Não conseguiu esperar sequer o desembarque em Paris para
despachar a primeira matéria. Ainda na viagem de navio dos Estados Unidos para
a Europa, quando a embarcação parou em Vigo, Hemingway enviou sua primeira
reportagem como correspondente internacional: “A pesca de Atum na Espanha”.
O texto parte do grande para o pequeno, do universal para o particular, movimento
recorrente em suas grandes matérias o qual, num passe de mágica descritivo, carrega
o leitor pela mão para compreender antes de mais nada o cenário da história que irá
contar. Eis seu “lead”, publicado num sábado 18 de fevereiro de 1922.

Vigo é uma pequena cidade que parece construída de papelão, ruas


empedradas, as casas brancas e laranja, assentadas num dos lados de uma
baía em forma de concha, quase cercada de terra por todos os lados, à
exceção de uma estreita embocadura, e que é suficientemente vasta para
abrigar a esquadra britânica em peso. Montanhas tostadas de sol mergulham
no mar como velhos dinossauros e a cor das águas é azul como um postal
ilustrado de Nápoles. (HEMINGWAY, 1969a, p. 24).

Em 4 de março de 1922, menos de 15 dias depois da publicação do texto anterior,


Hemingway, mesmo em ritmo de mudança, emplacou mais uma reportagem. Dessa
vez, uma matéria que hoje estaria nas editorias de turismo, e que trata da hotelaria na
Suíça. Sua acuidade descritiva produz trechos como “a Suíça está repleta de grandes
hotéis pardacentos, construídos no estilo arquitetônico dos relógios de cuco (...) todos
os hotéis parecem ter sido talhados pelo mesmo alfaiate da construção civil, sobre o
mesmo molde e com a mesma tesoura”.
Hemingway e a esposa escolheram viver no coração da algazarra boêmia de Paris.
Graças à ajuda de um amigo americano, Hemingway se aproximou da matriarca dos
anos loucos parisienses, a escritora Gertrude Stein, uma feminista inveterada, que
conseguia reunir na copa de casa gente como Picasso, Erza Pound, Matisse e James
Joyce. Madame Stein aproximou Hemingway da literatura e tentou distanciá-lo do
jornalismo. “Stein incitava vivamente que ele abandonasse o jornalismo. Ela dizia que
o jornalismo iria lhe roubar toda a energia criativa” (MEYERS, 1985, p. 85).
Hemingway não obedeceu aos conselhos de Stein e seguiu escrevendo para o
jornal e a revista canadenses. O cargo de correspondente internacional lhe permitiu
viajar por toda a Europa para cobrir encontros presidenciais, conflitos regionais e
testemunhar o dia a dia do Pós-Primeira Guerra.
“Mussolini: o Maior Blefe da Europa” é um exemplo de matéria produzida nessa
mesma época e que revela um repórter ágil que conseguia erguer pontes consistentes
158
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

entre os detalhes do que via e o conteúdo do que lia, ouvia e pensava. Publicado em
27 de janeiro de 1923 no Toronto Daily, a matéria relaciona o estilo bufão do recém-
eleito governante com sua vocação tirana.
Essa primeira temporada como correspondente na Europa durou até 1927, porém
marcou o autor tão profundamente que oito anos depois, já vivendo em Key West, no
Golfo do México, ele ainda escrevia sobre o assunto em artigo na revista Esquire, de
setembro de 1935:

A primeira panaceia para uma nação mal administrada é a inflação da moeda;


a segunda é a guerra. Ambas provocam uma prosperidade temporária;
ambas acarretam uma ruína permanente. Mas ambas são o refúgio dos
oportunistas políticos e econômicos. (HEMINGWAY, 1969a, p. 244).

Dois anos depois, em 1937 a realidade, a própria, o convocou para cobrir a Guerra
Civil Espanhola, embate que dividiu a Espanha entre fascistas e republicanos. “Só existe
uma forma de governo que não produz bons escritores e esse sistema é o fascismo. O
fascismo é uma mentira contada por matones. Um escritor que não mente não pode
viver e trabalhar debaixo do fascismo”, declarou o Hemingway, durante o congresso de
escritores americanos no Carnegie Hall, em Nova York, em 1937.
Naquele mesmo ano, o repórter que aprendera a escrever notícias respeitando
as regras do Star e que agora era celebrado mundialmente com o apelido de Papa,
rendeu-se ao chamado da reportagem e partiu para o coração do confronto espanhol.

Guerra Civil: Utopia e Reportagem

Hemingway viajou para a Espanha em março de 1937 aos 38 anos de idade.


Pela primeira vez iria atravessar trincheiras internacionais como correspondente de
um órgão de imprensa dos Estados Unidos. Ele firmou um contrato de 12 meses
de trabalho com North American Newspaper Alliance (NANA) e começou a enviar
despachos por telégrafo assim que desembarcou em solo espanhol.
Do avião rumo a Alicante, passou por Barcelona, “onde um bombardeiro acabara
de sobrevoar a cidade, escoltado por dois caças, sua carga de bombas, matando
sete e ferindo 34”, escreveu o correspondente em 18 de março de 1937, na primeira
de 28 reportagens telegrafadas da Espanha. Os textos “representam o regresso de
Hemingway à reportagem jornalística profissional”, resume White (1969, p. 4).
Professor de Comunicação na Universidade de Wayne, William White é um dos
raros estudiosos da obra noticiosa escrita pelo autor de Bombardeio em Madri, título
da segunda matéria escrita por Hemingway no front espanhol e que oferece ao leitor
uma cadência frenética de descrições aterradoras:

As ruas estavam repletas com as habituais multidões de domingos (.)


Durante essa manhã caíram em Madri 22 obuses. Mataram uma velhota
que regressava do mercado, jogando-a ao solo num montão enrodilhado de
roupa preta, com uma perna, subitamente arrancada (...) Um automóvel que
descia a rua estacou subitamente e derrapou sob o relâmpago deslumbrante

159
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

(...) O motorista foi arrancado do carro, o couro cabeludo pendendo sobre


os olhos (...) o sangue reluzente correndo pela cara abaixo. (HEMINGWAY,
1969b, p. 7).

Os relatos de Hemingway não eram feitos apenas de observações precisas do


que seus olhos viam no cotidiano da guerra. Seus textos traziam informações sobre
estratagemas militares, entrevistas com comandantes, mas também mostravam a
maturidade de um homem que sabia as regras da guerra, mas que escrevia análises
indignadas contra a crueldade de ataques a civis.

Por três vezes foi atingido um dos mais altos edifícios. O seu bombardeio é
legítimo, pois trata-se de um conhecido centro de informações telegráficas, mas
o bombardeio que varria as ruas nessa manhã, procurando intencionalmente
os passeantes dominicais, nada tinha de militar. (HEMINGWAY, 1969b, p. 7).

Hemingway já era um jornalista conhecido e escritor consagrado nos Estados


Unidos quando firmou seu contrato como a NANA. Sua cobertura da Guerra Civil é
engajada. Ele não esconde a preferência pelos republicanos, mas seus textos não
são panfletários. São secos, descritivos, narrados em primeira pessoa, mas jamais
autocentrados. Hemingway está na cena, mas não é o protagonista. O personagem
central é a guerra, o duelo entre a vida e a morte, o complicado mundo do entreguerras.
Àquela altura, os Estados Unidos acabavam de reeleger o presidente Roosevelt
e estavam virados para dentro - priorizavam combate ao desemprego, a redução da
pobreza e o fortalecimento da indústria nacional. A imprensa escrita já funcionava em
ritmo bastante profissionalizado, jornais e revistas eram ilustradas com fotografias e
mapas, e as matérias, transmitidas por telex (SCHUDSON, 2010).
Havia um princípio de temor diante da crescente concorrência com a TV. Para
driblá-la e manter algum nicho para o jornalismo de papel, editores de jornais e
revistas convidavam mestres da narrativa para fazer grandes reportagens, caso de
John Steinbeck, John dos Passos, John Gunter, Jonathan Michell e Ernest Hemingway
que foi um dos últimos jornalistas a deixar a Espanha, cobrindo até o último combate.

3. À guisa de conclusão: amor no front, na redação e na literatura

Sujeito de natureza intensa, que passou a vida misturando trabalho com


casamentos e transformando o que via como repórter em inspiração literária, Ernest
Hemingway deixou a Espanha com uma derrota política e duas vitórias pessoais.
Nas trincheiras de Madri, ele se apaixonou pela brilhante e destemida
correspondente de guerra, Martha Guellhorn8. Dessa vez, o amor foi correspondido.
Os dois se casaram e a história inspirou um dos maiores sucessos literários de Ernest
Hemingway, Por Quem os Sinos Dobram, livro publicado em 1940 e dedicado à Martha.
A vitória do fascismo sobre a República, embate que os historiadores consideram
um ensaio para a Segunda Grande Guerra Mundial, não afastou Hemingway do front
das reportagens. Ao contrário. O cidadão, que, em 1939, prometera jamais retornar

160
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

a um campo de batalha, voltou para o seu refúgio em Key West, mas não resistiu ao
chamado da reportagem. Menos de três anos depois, já estava no front novamente
escrevendo longas matérias sobre o maior conflito bélico do século XX.
Contratado inicialmente pelo extinto jornal nova-iorquino PM, Hemingway percorreu
locais raramente visitados por outros correspondentes, passou um mês em Hong
Kong, foi à Birmânia e à China, revirou o Extremo Oriente nos tempos de Chiang Kai-
Chek, o generalíssimo poderoso do governo Chinês, a quem conseguiu entrevistar e
publicar um furo mundial no qual o governante garantia por escrito que a China não
romperia o acordo de apoio aos Aliados, mesmo depois de a extinta URSS afagar os
inimigos japoneses no famoso Pacto Russo-Nipônico.
Sua série de reportagens no PM oferece um retrato ao mesmo tempo analítico,
interpretativo e descritivo do que se passava do outro lado do mundo, no desconhecido
Oriente. Hemingway não viajou desamparado. Sua pauta foi cuidadosamente discutida
com Ralph Ingersoll, respeitado editor do PM, que forneceu a Hemingway aquilo que
todo grande repórter deseja: tempo, espaço e recursos para realizar uma grande
reportagem.

Quando Ernest Hemingway partiu para o Oriente, PM fez com ele o seguinte
acordo: que se as operações (os ataques de ambas as partes) fossem
desencadeadas, ele permaneceria em campo para fazer a sua cobertura
por telegrama, mas se não se registrassem ações de envergadura ele
apuraria mas não escreveria para o jornal enquanto não completasse seu
estudo - quer dizer enquanto não estivesse na posse de todos os elementos
e dispusesse de tempo e perspectiva para analisar tudo o que vira e ouvira,
produzindo um relato de valor mais duradouro que a correspondência
cotidiana. (INGERSOLL in HEMINGWAY, 1969b, p. 63).

Hemingway se saiu melhor do que a encomenda. Além da China, passou um


mês em Hong Kong, onde entrevistou chineses e japoneses. A cidade era uma terra
de ninguém e de todos. Havia serviços de informação da Inglaterra, da China, do
Japão e dos Estados Unidos. Pouco antes de ele chegar, o governo inglês determinou
a evacuação das mulheres britânicas, transformando o lugar num paraíso para
homens, onde o “moral era elevado e a moral baixa”.

Há pelo menos, 500 milionários chineses vivendo em Hong Kong... guerra


demais no interior, terrorismo demais em Xangai, para o gosto de um milionário.
A presença dos 500 milionários provocou uma outra concentração: a de
moças bonitas. A situação entre as moças menos bonitas é muito má (...) Há
cerca de 50 mil prostitutas em Hong Kong. A sua superabundância nas ruas
à noite, quando acorrem em verdadeiros enxames é uma das características
inevitáveis em tempos de guerra. (HEMINGWAY, 1969b, p. 63-64).

Tamanho inventário sobre o sexo feminino no Oriente deve ter causado imensos
problemas domésticos para Hemingway. Ele viajava junto com a esposa, Martha
Guellhorn, que também estava a trabalho. Ela era correspondente da revista The
Collier’s, tinha índole tão competitiva quanto à do marido e disputava com ele cada
furo de reportagem (MEYERS, 1985).

161
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

Hemingway conseguiu várias exclusivas em sua longa peregrinação pelo


Oriente. Depois de 30 dias em Hong Kong, onde não havia caixas de descarga
nem canos de esgoto e o medo da guerra se misturava com o pânico de
sucessivos blackouts varrerem a cidade em epidemias de cólera, Hemingway e
a esposa percorreram a frente chinesa Kuomintang de batalha. Era a primeira
vez que jornalistas americanos visitavam o lugar, famoso por impor uma censura
rigorosa. O casal conseguiu driblá-la.
Viajou rio abaixo em sampanas, depois a cavalo e a pé. Foram 12 dias de
chuva na estrada, sem jamais vestir uma roupa seca, tomando vinho de sapo e de
cobra – um “vinho especial de arroz com um certo número de cobras enroladas
no fundo da garrafa (...) No de pássaro, há uma porção de cucos mortos”
(HEMINGWAY,1969b, p. 66).
O esforço valeu a pena. Hemingway escreveu várias linhas sobre armamentos,
treinamentos militares realizados, cenários possíveis de confronto e ainda conseguiu
uma exclusiva com Chiang Kai-Shek, na qual a esposa chinesa do líder fazia as vezes
de intérprete, mas pulava as questões mais delicadas sobre assuntos militares.
A viagem prosseguiu mais 60 dias por escolas militares, vilarejos, zonas de treino,
estradas tortuosas em Rangum, visitas a Birmânia, Manila, Lashio e Kuming. Ao final,
o correspondente chegou a conclusões visionárias sobre a recorrente questão se a
América deveria lutar contra o Japão:

O tempo é nosso aliado. Quanto ao Japão, o tempo está lhe fugindo, e


ninguém, nem mesmo os japoneses, sabe quando chegará o derradeiro
momento estratégico (...) Se a Grã-Bretanha cair, isso constituirá o sinal
para o Japão prosseguir nas suas conquistas agressivas em outras
direções. E isso poderá muito bem significar a guerra com os Estados
Unidos. (HEMINGWAY, 1969b, p. 73).

A Grã-Bretanha não caiu exatamente, mas sofreu horrores com os bombardeios


alemães. Menos de seis meses depois de publicadas as palavras proféticas de
Hemingway, os japoneses atacaram os Estados Unidos em Pearl Harbor, empurrando
a América para o centro da Segunda Guerra. Hemingway foi junto. Derrubou a própria
esposa do posto de correspondente da Collier’s, sofreu algumas horas com um
previsível divórcio imposto por ela e embarcou para a Europa.
De lá, noticiou bombardeios de Londres, relatou a chegada da Normandia e a
retomada de Paris em 1944. Terminava ali, na cidade luz, uma longa temporada
de sete anos de jornalismo de guerra, tempo em que o próprio Hemingway
lembrava como um período em que sua veia de repórter prevaleceu sobre seu
coração de escritor.
Nos 17 anos seguintes, tudo diminuiu. Hemingway escreveu menos romances
e menos reportagens. Casou-se, de novo, com sua quarta esposa, outra jornalista,
mas sofreu sucessivos problemas de saúde e longas crises depressivas (ASTRE,
1968). Os poucos lampejos de alegria eram no mar e no deserto. Sobre eles, são
seus últimos escritos importantes, como O Velho e o Mar, livro pequeno, denso
e profundo que lhe rendeu o Pulitzer de 1959 e o Nobel de Literatura em 1960.
162
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
Quatro anos antes, ele publicou sua última reportagem, Presente de Natal, na Look,
sobre suas caçadas na África.
“Quanto ao jornalismo, escrever sobre alguma coisa que acontece no dia a dia,
no que fui treinado desde jovem e que não considero uma prostituição quando se
faz honestamente, com rigor informativo, não irei fazê-lo mais”, despediu-se em
artigo na Look de setembro 1956, anunciando o fim de seus textos na imprensa.
Cinco anos depois, um repórter nascido na distante Colômbia, noticiou o suicídio de
Ernest Miller Hemingway.
O repórter era Gabriel García Márquez, 34 anos, colunista da revista mexicana
Novedades. Ali, sob o título Um homem morreu de morte natural, ele, Gabo, publicou o
fim trágico e previsível de seu autor predileto que, como ele, passou a vida escrevendo
livros e notícias.

Hemingway somente contou o que viu com os próprios olhos, o gozado e


padecido pela própria experiência, que era, ao fim e ao cabo, o único que
podia crer. Sua vida foi uma contínua e arriscada aprendizagem de seu
ofício, em que ele foi honesto até o limite do exagero. (GARCÍA MÁRQUEZ,
2013, p. 399).

Notas

1 A Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações (BDTD) pertence ao


IBICT e integra os sistemas de informação de teses e dissertações existentes nas
instituições de ensino e pesquisa brasileiras.
2 O suicídio marcou a história familiar dos Hemingways. Foram seis suicídios em
apenas três gerações. Ernest, seu pai, sua irmã, seu irmão, uma neta e o filho caçula
Gregory que, aos 69 anos, após fazer uma cirurgia para mudança de sexo, sofrendo
com depressão e alcoolismo, se matou em outubro de 2001.
3 http://www.kcstar.com/hemingway/hem3.shtml
4 Arquivo do Kansas City Star.
5 As matérias não eram assinadas porque não havia esse costume na época. A
autenticidade da autoria dos textos é garantida pelo próprio jornal.
6 http://www.jfklibrary.org/Research/The-Ernest-Hemingway-Collection/Online-
Resources/Storytellers-Legacy.aspx
7 A íntegra das regras do Star pode ser acessada pelo endereço eletrônico:
http://www.kcstar.com/hemingway/ehstarstyle.shtml.
8 Martha Guellhorn foi uma das primeiras mulheres correspondentes de guerra.
Brilhante, percorreu o mundo num tempo em que as moças eram educadas para ficar
em casa. Martha trabalhou até pouco antes de morrer em 1998, aos 90 anos de
idade (MEYERS, 1985).

163
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

Referências

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Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

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165
III NARRATIVAS DO EU
Biografia Jornalística: inclinações,
possibilidades e especulações

Rodrigo Bartz

1. Nossas curiosidades e motivações

Nossa curiosidade, em relação ao gênero biográfico, está diretamente ligada ao


interesse em estudar as complexificações que emergem desse gênero, quando resolve
dialogar com a literatura, com a fabulação. Esse gênero superlota as prateleiras de
livrarias e bibliotecas, sendo inclusive número um em vendas em alguns sites1.
Mesmo com tamanha visibilidade, a biografia ainda é um campo vasto para pesquisa,
visto que, de certa forma, continua “desprezada”, constatação essa obtida por meio
dos poucos estudos encontrados acerca do tema2. A narrativa biográfica, dessa forma,
torna-se, em qualquer ângulo de pesquisa, fecunda. Na atualidade, verificamos muitas
inovações no gênero, inclusive com as diversas narrativas (auto)biográficas lançadas
nas redes sociais, além, do que chamamos de biografias vivas, que é, apenas uma, das
muitas mudanças do gênero, quando lança-se mão do herói póstumo e se escreve uma
biografia de algum notável famoso, ainda vivo.
Tais questionamentos nos fizemos, por diversas vezes e resolvemos ampliá-lo.
Assim, percebemos que o tempo biográfico, mesmo muito importante para tentar
entender melhor a narrativa, havia ficado à mercê das várias áreas que despendem
tempos para a análise do gênero. Nesse intuito, além de todo fascínio acerca do
tema, propomo-nos a continuar a percorrer os caminhos biográficos. Com o objetivo
de interdisciplinarizá-la, procuramos algumas teorias que pudessem dialogar com
nossas pesquisas e, dessa forma, contribuir para a elaboração de uma teoria que
conseguisse dar conta de elucidar algumas questões dentre elas o tempo biográfico.
Enfim, mas o que mais nos interessa nessas metamorfoses são as emergências
da biografia no cenário editorial e, na observação das muitas fases e mudanças
biográficas, elaborar uma concepção de tempo relacionando teorias das mais
diversas áreas do conhecimento, tentando, assim, preencher uma lacuna, que no
nosso entendimento, trata-se de uma omissão complexa e de suma importância
para as pesquisas acerca desse gênero visivelmente crescente, “filão” do mercado
editorial, não somente no Brasil, mas no mundo.

2. Algumas inclinações biográficas

Para Jaguaribe (2007) há um boom das biografias e das escritas do “eu” no meio
editorial. As muitas aparições da vida íntima tanto no circuito audiovisual quanto na
internet assinalam novas mesclas entre o público e o privado, ficcional e o real. Para a
autora a desaparição dessas divisas é consequência “[...] da politização da vida privada
[...] a presença avassaladora da mídia que engloba [...] tanto agendas e eventos públicos,
quanto notícias referentes à individualidade privada” (JAGUARIBE, 2007, p. 153). Segundo
167
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

a pesquisadora, ficou quase impossível separar o real e o ficcional na modernidade, pois


incorporamos o imaginário no próprio cotidiano e quando processos de ficcionalização se
cristalizam, como disponíveis, buscamos experiências não mediadas.
Nesse percurso, assim como a biografia, a ficção brasileira passou por diversas fases.
Conforme Schollhammer (2011), o Brasil, prioritariamente, urbano em 1960 tem como
norte a prosa urbana e em 1970 há uma busca pela narrativa, em resposta à situação
política. Em 1980, o narrador começa a narrar se apropriando do cenário brasileiro
e dos grandes centros. Assumindo, assim, um compromisso com a realidade social.
Dessa forma, destacamos a produção de romances híbridos - entre eles a biografia – na
divisa entre o ficcional e o real, aqui, uma resposta à notícia reprimida pela ditadura.
Schollhammer (2011) afirma que a geração de 90 tem preferência pelo miniconto,
formas de escritas instantâneas, os flashes e stills com uma retomada inovadora
ao romance realista regional como vemos, por exemplo, em Assis Brasil. Ainda na
década de 90, há a intensificação do hibridismo literário e incorporação da narrativa
roteirizada da linguagem publicitária. Os escritores trazem para suas narrativas
a factualidade da criação, tirando proveito da tensão entre o plano referencial e o
plano ficcional, para confundir os limites e para inserir índices de um real originário
da experiência íntima que legitima e ampara a ficção. Flora Süssekind, citada por
Schollhamer (2011), batizou a produção feita pós 68; AI5 – em que os jornalistas
encontraram no romance híbrido; biográfico, uma resposta à notícia reprimida que
aparecia mesclada ficção/realidade – de literatura verdade.

[...] bem verdade que a metaficcão tornou-se lugar comum no debate


em torno da noção moderna de literatura, como aquilo que vem explicar
a atenção autoconsciente da natureza construtiva da ficção. [...] detona a
possibilidade de manter uma confiança na verossimilhança realista dentro
de um universo em que os signos apontam para outros signos, textos se
referem a outros textos, e as interpretações só se realizam numa tensa
disputa entre interpretações. (SCHOLLHAMER, 2011, p. 129-130).

A narrativa biográfica segue, pelo menos neste ponto, fielmente os rumos da


ficção brasileira. Nas biografias contemporâneas escritas por jornalistas, percebemos
essa busca, de certa forma paradoxal3, pela instantaneidade usufruindo de técnicas
do conto. Na biografia jornalística encontramos paratextos ou indexadores4 indicados
nos capítulos em que, mesmo se tratando de uma obra linear, cronológica, é possível
ler o último capítulo sem ter lido os demais, sem prejuízo do entendimento. Aqui,
podemos citar a obra Getúlio: dos anos de formação à conquista do poder (1882-
1930), do jornalista Lira Neto (2012) e O Mago (2008), do jornalista Fernando Moraes
que seguem divisão com paratextos e indexadores, isso para ficar somente em dois
exemplos. Nesse sentido, visualizamos a semelhança da forma como é estruturada a
narrativa biográfica contemporânea com a analogia da fotografia e do conto levantada
por Julio Cortázar. Cortázar (1993) afirma que a foto e o conto fazem um recorte na
realidade apontando a uma realidade mais ampla, pois ambas se aproveitam de um
acontecimento significativo para elaborar um efeito de sentido a obra5.
Assim, tal característica, segundo Cortázar (1993), impulsiona no leitor amplitude,
passível de levar o interlocutor a algo que transcende o que está registrado de forma
168
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
incisiva desde a primeira página na obra. É uma possibilidade de leitura paratextual, ou
seja, paralela, para além do escrito. Dessa forma, essa narrativa biográfica (ou Puzzle),
fragmentada em capítulos – biografemática –, é entendida como um acontecimento
real ou fictício que proporciona ruptura de linhas, que vai além daquilo que é contado
na narrativa. Aqui, temos o biodiagrama que segundo Pignatari (1996) age na biografia
como uma espécie de olho mágico (peep hole), pelo qual, por meio dos biografemas,
não lemos uma biografia, mas “espiamos” a vida de alguém, ou seja, esses detalhes
biografemáticos são parte de um todo maior – eis o biodiagrama. O biografema
traz à baila, assim, pela leitura, um corpo vivificado pela e na linguagem. Um corpo
fragmentado, baseado em relações de semelhança, cujo princípio básico é a analogia.
Corroborando com as constatações acima, Selzer (1998) citado por Schollhammer
(2011) afirma que vivemos a “cultura da ferida” quando expomos a intimidade privada e
ela é exposta confundindo o individual e a multidão. De acordo com o autor, trata-se de
uma patologização da esfera pública por meio de sentimentos individuais que se tornam
coletivos num tempo em que a indiferença atinge a esfera privada e a vivência pública.
Assim, a biografia é uma narrativa costurada que se situa nos limiares do
jornalismo, da história, do relato do real e do ficcional. O que podemos extrair daí é
a extrapolação do micro, dos pequenos detalhes, da explicação do todo por meio da
narrativa de pequenos personagens ou cenas, a uma primeira mirada, banais. Assim,
por meio do micro chegar ao macro, característica fortemente ligada à micro-história6
, que conforme Burke (1990) enfocou o homem comum, considerou não somente
ações individuais, mas também coletivas.
Ou seja, híbrida – pautada, por um lado, nas marcas que dão credibilidade à
narrativa frente ao público leitor, a biografia, pegando carona nesse fenômeno, alterou
suas táticas narrativas e de estilo. Considerando as proporções devidas, podemos
comparar a biografia jornalística contemporânea com a narrativa autoficcional, pois
conforme Hidalgo (2013)7, na autoficção temos a vantagem de poder embaralhar, de
certa forma, apagar os limites entre a verdade e a ficção.
Por outro, nos diversos entrelaçamentos contidos na contemporaneidade quando
temos, segundo Piccinin (2014)8 a “estética dos múltiplos”, ou seja, não há um narrar
hegemônico o que auxilia a hibridização das narrativas:

[...] trazendo a presença e a importância de todas as formas narrativas advindas


de variados suportes. Assim, tem-se a narrativa a partir do recurso da oralidade,
do texto impresso, do áudio e do vídeo e dos recursos oferecidos pelo ambiente
web, resultando em um narrar fruto dessa multiplicidade. As histórias se
dão na combinação das formas narrativas tradicionais associadas às novas
possibilidades e recursos, ou em novas “dicções” [...]. (PICCININ, 2014, p. 167).

Talvez, uma das causas dessa extrapolação do micro, como o uso dos biografemas
abordados anteriormente – a fragmentação do enredo por meio dos capítulos – , seja
característica da autenticidade, como afirma Jaguaribe (2007, p. 159) que: “[...] o
retrato da favela verbalizado pelo favelado possui maior poder de barganha do que a
visão da favela relatada pelo fotógrafo classe-média, pelo cineasta publicitário ou pelo
escritor erudito.” Dessa forma, a narrativa biográfica continua híbrida no paradoxo e
limiar do contemporâneo, quando serve de igual maneira de indexador da experiência
169
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

de legitimação do real e estrutura do ficcional.


Logo, leitores encantados com esse narrar despendem fascinados momentos de
leitura mesmo sabendo de antemão o desfecho da história. Isso porque tendemos a
ficcionalizar a vida por parecer mais agradável e confortável. Talvez por isso reality shows e
biografias façam tanto sucesso, pois vemos nos “personagens”, de ambos, semelhanças
com o que nos deparamos. A biografia atrelada à literatura, a essa forma de descrição
verossímil, biografemática aproxima e encanta o leitor. O texto biográfico, assim, faz com
que o personagem biografado (na tentativa do narrador em captar o real) seja explicável
em um maior grau de originalidade que a própria vida, ofertando ao leitor uma sensação
de “poder” transformando esse personagem em algo mais manejável e palpável.
Tentamos construir, assim, possibilidades de acesso e inclinações das biografias.
Em seguida, adentraremos no gênero pelo viés temporal da narratologia nos moldes
de Reis e Lopes (1988), pois, de certa forma, conseguimos constatar a estrutura,
para além dos gêneros e categorias, que se constituem tais relatos, uma vez que,
como afirma Mota (2013), construímos nossa biografia narrando e temos que estudar
as narrativas para entender quem somos.

3. Tentativa de especulação temporal

Em nossas pesquisas, até o momento, procuramos tratar a biografia, na maioria


das vezes, como fabulação, como símbolo de algum famoso ou notório, ou seja,
caminhos em direção à fragmentação biográfica, captada pela fusão biografemática9.
Dessa maneira, intrigamo-nos com a relação temporal da biografia, ou seja, como
se estabelece o tempo nas diversas formas biográficas, em suas transformações
na contemporaneidade, dado que a biografia é uma simulação, não o momento da
existência, quando, aqui, tenta-se evidenciar o não esquecimento da morte simbólica
e não física (MARTINEZ, 2016). Como, então, pode-se conceber o tempo? É possível
falar de presente? Para Agostinho (1999), conceber um espaço de tempo que não seja
susceptível de ser dividido em minúsculas partes de momentos, torna-se impossível,
ou seja, o tempo psicológico10, que para Massaud Moisés é usado como um atrativo,
pois, “começando pelo princípio, corria-se o risco de partir de um acontecimento
insignificante, o que repeliria o leitor.” (MASSAUD MOISES, 2004, P 240). Mas como
encantar um leitor que já sabe de antemão o desfecho da história?
Uma possível forma seria fazer na narrativa biográfica um retrospecto dos
episódios que nos levam ao final da história, conforme Ricoeur (1994), através de
um movimento teleológico11, direcionando nossas expectativas, caracterizando a
compreensão da história, que para o autor faz parte da dimensão configural da trama
quando conectamos eventos reflexivos, para, então delimitá-los em segmentos.
Assim, lendo essa metabiografia, aprendemos a ler o tempo propriamente dito.
Reis e Lopes (1988) ao abordar a narratividade12 afirmam que se tem, de certa
forma, a necessidade de explicá-la, como última instância, pela conjugação da intriga e
do tempo. Segundo Ricoeur (1994), o tempo torna-se humano na sua articulação com
a narratividade, uma vez que somente é plena a narrativa quando essa se estabelece
como uma condição da existência temporal.
Assim, na relação entre história e discurso, a ordem temporal possui papel
170
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
relevante, pois a ordem cronológica da história foi alterada por analepses, anacronias/
prolepses do discurso, ou seja, essas inversões provocam uma nova ordem temporal.
Isto posto, podemos identificar a importância do tempo do discurso. Este pode
ser entendido como uma consequência da representação do tempo histórico, quando
o narrador articula as ocorrências individuais do tempo histórico, sucessivamente,
narrando as ocorrências individuais dessa multiplicidade de tempos:

Daí a tendência possuída pelo tempo do discurso para se assumir como


instância seletiva, pelo reconhecimento tácito ou explícito de que é possível
respeitar, ao nível do discurso, a totalidade temporal da história. (REIS e
LOPES, 1988, p. 294).

Ou seja, para haver narrativa, nossa atenção precisa ser estimulada para que,
segundo Ricoeur (1994), o fim da história seja aceitável e não previsível.
Assim, em narrativas biográficas o mais importante refere-se ao tempo do discurso
biográfico. Ele é o resultado de uma estratégia textual que interage com as respostas
dos leitores e cria um tempo de leitura (ECO, 1994).
No entanto, torna-se difícil estabelecer o tempo do discurso e o tempo de leitura, mas,
muitas vezes, a abundância de detalhes (caso da maioria das biografias, composta por
biografemas) pode ser mais que apenas representação, mas sim uma tática para levar
o leitor mais próximo ao ritmo que o autor acredita ser necessário para o gozo do texto:
“portanto, o tempo do discurso é o resultado de uma estratégia textual que interage com
a resposta dos leitores e lhes impõe um tempo de leitura” (ECO, 1994, p. 63).
Dessa forma, deve haver um – parafraseando Umberto Eco – “contrato de leitura
biográfica”, ou seja, o leitor deve aceitar que a história que lê é ficção, mas nem por
isso mentira. É por isso que temos a fragmentação biografemática, pois somente assim
esse leitor, poderá realizar o passeio inferencial e honrar esse contrato. Dessa forma,
podemos entender o contrato de leitura biográfica a partir do seguinte esquema:

Gráfico 1: Contrato de leitura biográfica

O tempo de leitura O tempo de leitura


biográfica biográfica

Fonte: Elaboração do autor


Talvez, em função da convergência percebida acima, lê-se biografia com o contrato
em mãos, sendo que o importante sejam os passeios pelo bosque – como afirma Eco
(1994) – uma vez que isso fascina esse leitor.
Dessa forma, na biografia rechaça-se, de certa forma, o tempo histórico, restando
171
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
ao “contratado” o tempo do discurso como elemento fundamental. Este pode ser
entendido como consequência da representação narrativa do tempo da história (REIS
e LOPES, 1988, p. 294).
Assim, a perspectiva temporal é fundamental à narratividade, pois somente
entendemos, por exemplo, as vivências subjetivas do personagem quando a
dimensão humana do tempo e suas qualidades semânticas surgem, nascendo daí
explicações na constituição do biografado. Ademais, o tempo e o espaço integram-
se, não raras vezes, transformando, assim, o espaço em uma mostra temporal
de uma determinada época, e suas transformações efetivas, como nas biografias
de personagens históricos, quando mobiliários, jantares, entre outras atividades,
mostram o poder econômico, os costumes, etc.

4. Considerações interpretativas

Tentamos verificar, aqui, somente algumas possibilidades de acesso a biografias


de cunho jornalístico pelo viés da narratologia nos moldes de Reis e Lopes (1988),
pois assim conseguimos constatar a estrutura, para além do previsível de como se
constituem tais relatos.
Além disso, nesse contexto, o narrador jornalista ao se comportar como narrador
literário, não deixa de ser um narrador midiático, pois se formata através da experiência
do personagem. Desse modo, busca novos formatos imprimindo ao texto marcas
literárias. Portanto, ao tornar o texto uma narrativa, segundo Barthes (1991), há uma
ficcionalização do sujeito. Ao escrever acerca da vida de alguém se ficcionaliza esse
sujeito. E essa ficcionalização não está no plano irreal, tampouco no real, que se
funde com o personagem tornando-se um mesmo tecido.
Como vimos, queremos sim entender como esses vários processos ocorrem nas
biografias. Um dos aspectos que mais nos intrigam é a constituição temporal desse
gênero, como se configura, de forma larga – o que não conseguimos aqui em função
do espaço – nos vários campos do conhecimento, como a historiografia, a sociologia,
filosofia, literatura, jornalismo, psicologia buscando assim caminhos para tentar
melhor compreender enigmas biográficos que sobrevivem a sua escrita, pois “a porta
permanece escancarada para sempre, oferecida a todos em revisitações sempre
possíveis das efrações individuais e de seus traços no tempo” (DOSSE, 2009, p. 410).
Enfim, mas o que mais nos interessa mesmo nessas metamorfoses são as
emergências da biografia de natureza jornalística principalmente, no cenário editorial.
Terminamos com poucas certezas, porém com a capacidade de perceber que
compreender o que significam, principalmente em tempos evolutivos do jornalismo,
por exemplo, implica ter condições de observar importantes transformações e
intertextualidades que estão, atualmente, em constante processo.

Notas

1 http://www.liraneto.com/2012/05/getulio-o-mais-vendido-na-livraria.html.
http://top10mais.org/top-10-livros-mais-vendidos-no-brasil-em-2014/.
http://ego.globo.com/famosos/noticia/2015/09/andressa-urach-festeja-biografia-
no-topo-da-lista-dos livros-mais-vendidos.html.
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Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
2 Ver Jornalismo e literatura: as complexificações narrativas jornalísticas de cunho
biográfico [recurso eletrônico] / Rodrigo Bartz – Santa Cruz do Sul: Catarse, 2015, p. 17.
3 Afirmamos ser paradoxal, pela sua extensão.
4 Ver ECO, Umberto. Seis passeios pelos bosques da ficção. São Paulo: Companhia
das Letras, 1994 e RAMOS, Fernão. Mas afinal -- o que é mesmo documentário?. São
Paulo: SENAC-SP, 2008.
5 Numa fotografia ou num conto de grande qualidade [...] o fotógrafo ou o contista
sentem necessidade de escolher e limitar uma imagem ou um acontecimento que sejam
significativos, que não só valham por si mesmos, mas também sejam capazes de atuar
no espectador ou no leitor como uma espécie de abertura, de fermento que projete a
inteligência e a sensibilidade em direção a algo que vai muito além do argumento visual
ou literário contido na foto ou no conto (CORTÁZAR, 1993, p. 151-152).
6 Ver BURKER, Peter. A escola dos annales (1929-1989) – A revolução francesa
da historiografia. São Paulo: Unesp, 1990.
7 HIDALGO, Luciana. Literatura da urgência – Lima Barreto no domínio da loucura.
São Paulo: Annablume, 2008.
8 A expressão é uma criação da própria autora e é utilizada para se referir às diversas
estéticas presentes na contemporaneidade sem que haja hegemonia de uma sobre a outra.
9 Ver Jornalismo e literatura: as complexificações narrativas jornalísticas de
cunho biográfico [recurso eletrônico] / Rodrigo Bartz – Santa Cruz do Sul: Catarse,
2015. Disponível em: http://editoracatarse.com.br/site/2015/10/26/jornalismo-e-
literatura-as-complexificacoes narrativas-de-cunho-biografico/.
10 Termo da retórica moderna, equivalente a flashback (MOISES, 2004, p. 24).
11 Aqui, o movimento teleonímico também se torna importante, no que
pretendemos avançar em futuros momentos de pesquisa.
12 A definição do conceito de narratividade incide sobre o estado específico, sobre
as qualidades intrínsecas [...] dos textos narrativos [...] para aquém, portanto, do
estádio da análise superficial. (REIS e LOPES, 1988, p. 69).

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Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

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174
Tempo e obsessão nas narrativas dos diários íntimos

Victor Lemes Cruzeiro

1. Os retalhos dos relatos


16 de Março de 1778

Você não receberá minha primeira carta até o dia depois de amanhã. Eu
espero por esse dia impacientemente, constantemente me recriminando, do
fundo do meu coração, por não ter te escrito antes. Eu não poderia imaginar
que imenso abismo se abriria ao perder duas entregas do correio, quando
há duzentas e cinquenta léguas entre nós. Eu admito que achei difícil aceitar
quando você mudou do seu encantador horal para esta correspondência
ordinária, e que você apenas começa suas cartas após receber as minhas
(...).

(CHARRIÈRE, Isabelle de, apud LEJEUNE, Philippe, 2009, p. 91. Tradução e


grifos nossos).

Iniciar este texto com um trecho de correspondência entre dois escritores, a


holandesa Isabelle de Charrière (1740-1805) e o francês Benjamin Constant (1767-
1830) é dar uma mostra do âmago da ideia que dirige esta pesquisa: o registro
compulsivo. O romance epistolar entre os dois, iniciado em 1786, prosseguiu até a
morte da escritora, e foi marcado pela diligente descrição de Constant de seus dias,
dividindo as cartas nos horários em que ele escrevia cada parte. A essa curiosa e
devota atividade, Constant chamou de horal – heural em francês – brincando com
a palavra journal, que designa tanto o registro dos acontecimentos públicos (jornal),
quanto pessoais (diário).
Mais do que uma demonstração de afeto do escritor, o horal demonstra essa
vivacidade com a qual a escrita ocidental se presta a registrar diligentemente tudo
que se passa, numa obsessão quase militar ou sacra, de não deixar que os momentos
se esvaiam.
E, mesmo que traduza um ethos de uma época, cujos ramos espraiam-se até
nossos dias – quiçá com mais força do que nunca – é importante notar que, desde
sua aurora, este comportamento não foi compreendido com tal entusiasmo como por
Constant, ainda que fosse seguido à risca. Contemporânea e conterrânea dele, Lucille
Desmoulins (1770-1794) escreve, à época dos seus 18 anos:

Terça-feira, 07 [de julho de 1788]. Não saí pela manhã. Fomos caminhar
pelo parque. Estava chovendo bem forte, nos cobrimos e... eu não preciso
escrever isso! Eu vou me lembrar. Depois de meia hora, entramos em nossa
carruagem e voltamos para cá. Eu mandei alguém pegar ovos. Eu voltei e

175
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

joguei badminton com Mar. [o escritor Sylvain Maréchal]. Eu fui andar sozinha.
Eu tenho mesmo que contar tudo? Deus, como isso é chato! Nós jantamos.
E então subimos de novo. Eu cantei, ainda que não tivesse vontade alguma.

(DESMOULINS, Lucille, apud LEJEUNE, Philippe, 2009, p. 91-92. Tradução e


grifos nossos).

Nas seções que se seguem, será visto como esse comportamento origina-se de
uma noção mercantil, que contabiliza – e monetariza – o tempo, que enraiza-se no
imaginário do Ocidente, e floresce na manifestação do diário, no qual os autores
podem dedicar-se não apenas ao registro livre do eu, mas também à experimentação
livre de formas de lidar com esta contabilidade compulsória.

2. A personalidade introdirigida

Antes de saltar na rica amplidão dos diários íntimos de personalidades como Henri-
Frédéric Amiel (1821-1881) ou Pierre-Hyacinthe Azaïs (1766-1845), é importante
deter-se na noção de personalidade introdirigida. Embora um termo de feição mais
técnica, trazido pela pesquisadora argentina Paula Sibilia (2016), este não deve
ser considerado como uma categoria de análise aglutinadora, que compacta uma
multiplicidade de experiências subjetivas, à guisa de uma generalização. Entender a
introdireção é entender uma configuração social, psicológica e mesmo material, que
deu vazão e forma a essas várias manifestações íntimas – como os diários – atraídas
como mariposas, em direção à luz do registro máximo e, quiçá, perfeito.
Como se define tal personalidade? Em O Show do Eu, Paula Sibilia diz que a
personalidade introdirigida é fruto de uma tradição ocidental que pensa no indivíduo
“como uma criatura dotada de uma profundeza abissal e frondosa, em cujos obscuros
meandros se esconde uma bagagem tão enigmática como incomensurável: eu”
(SIBILIA, 2016, p. 125). Imersos em uma configuração social e material que privilegiava
a solidão e a privacidade, os indivíduos introdirigidos dedicaram-se à leitura e à escrita
silenciosa, como forma de – ao longo do tempo – percorrer essa sua obscura vida
interior, revisitando experiências e realizando “fascinantes ou pavorosas viagens auto
exploratórias, que muitas vezes eram vertidas no papel” (SIBILIA, 2016, p. 96).
A pesquisadora argumenta que essa tradução no papel das vidas interiores só
pode ipso facto existir com a materialização de um ambiente para tal. No século XVIII,
começaram a aparecer “os ambientes nos quais era possível se retirar da visão do
público” (SIBILIA, 2016, p. 86), a saber, os quartos individuais. Um espaço privado,
confortável e silencioso, protegido dos olhares externos, incluindo o da família. Cada
morador poderia, agora, ficar à vontade com seu eu, para “se expandir sem reservas
e se auto afirmar em sua individualidade” (SIBILIA, 2016, p. 86).
Essa expressão completa e irrestrita do eu íntimo para si mesmo, que configura
uma mudança de ethos1, demandou o surgimento de outros objetos, conforme será
visto mais adiante. No entanto, é inegável afirmar que já havia um espaço para a
expressão da personalidade de cada indivíduo.
Nesses ambientes, as pessoas podiam dedicar-se a uma série de atividades longe

176
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

dos austeros resguardo e império do decoro burguês, incluindo duas atividades que,
para esse espírito ocidental, demandavam uma certa solidão ou, no mínimo, quietude:
ler e escrever. Uma infinidade de anônimos, incluindo Denis Diderot (1713-1784),
Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) e Ludwig Wittgenstein (1889-1951), devotaram-
se a verter suas ideias para si e para os demais, na forma de cartas íntimas, anotações
pessoais e, claro, diários íntimos.
Os diários de Wittgenstein dão uma bela mostra dessa cisão entre foro íntimo
e esfera pública que a mera existência desse ambiente de isolamento causava.
Conta Sibilia (2016, p. 95) que “nas páginas pares, o filósofo austríaco vertia suas
vivências e reflexões íntimas numa linguagem codificada, só para ele mesmo,
enquanto nas páginas ímpares anotava seus pensamentos públicos em perfeito e
claríssimo alemão”.
No entanto, fosse o diário de Wittgenstein tomado de experiências adolescentes ou
eventos sem importância – como é o trecho de Lucille Desmoulins – não seria diferente
o fato de que esse espaço permitiu-lhe expressar-se de maneira irrestrita, deixando fluir
livremente seus próprios medos, angústias, desejos e outras emoções consideradas
estritamente íntimas, fossem elas “memoráveis” para o resto do mundo ou não.
Este fluxo íntimo, no entanto, demandava tempo, um tempo que envolvia não
apenas sua escrita, mas a própria investigação da vida íntima que dava origem a essa
escrita. Os historiadores Alain Corbin e Michelle Perrot falam de um “deciframento
de si”, que Sibilia (2016, p. 96) explicita da seguinte maneira: “todos escreviam para
firmar seu eu, para se autoconhecerem e se cultivarem, imbuídos tanto pelo espírito
iluminista do conhecimento racional (...) como pelo ímpeto romântico de mergulho
nos mistérios mais insondáveis da alma”. E a pesquisadora vai além, dizendo que
esse furor de autoescrita não era restrito a homens, mas também tomou conta de
inúmeras mulheres e crianças2.
Uma multidão de indivíduos buscava, então, limpar as portas da sua percepção,
tentando ver a si mesmos como realmente o são. E o mais digno de nota é que todos
estes indivíduos não se moviam por um desejo de fama ou celebridade – como talvez
ocorra hoje, no afã de exposição que toma a internet3 – mas por uma conformação
subjetiva de uma personalidade, conhecida como “homo psychologicus” (SIBILIA,
2016, p. 98).
Fortemente voltado para dentro, o homo psychologicus refugiava-se em um
espaço íntimo, experimentando a revolução de refletir sobre si mesmo para si próprio.
E, somado ao espaço individual e à especulação íntima do seu eu, possuía o homo
psychologicus uma última peça, recentemente adquirida e essencial para seu efetivo
funcionamento, a saber, o tempo. Sobre ele, Sibilia (2016) diz que a elaboração de
cartas e diários, de fato, remeta aos ritmos cadenciados e ao tempo esticado de
outras épocas, hoje flagrantemente perdidos.
O tempo percebido pelo homo psychologicus não é o mesmo que se tem registro
hoje. Antes do tempo unir-se ao espaço nas ideias de físicos como Albert Einstein e
Hermann Minkowski, e da internet fazer o mundo menor do que jamais foi, o tempus
psychologicus dilatava-se em todos os aspectos, inclusive na comunicação, tanto
íntima quanto com o outro. A escritora francesa Maria de Rabutin-Chantal, também
177
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

Marquesa de Sevigné, escreve à filha, que se encontrava no sul da França: “não


podemos deixar de admirar a diligência e a fidelidade dos serviços postais; recebi no
dia 18 a tua carta do dia 9; são apenas nove dias, não se pode pedir mais!” (apud
SIBILIA, 2016, p. 88).
Da mesma forma que as cartas tardavam mais a chegar, e mesmo a serem
confeccionadas – lembrando que eram escritas à mão, com tinta, pluma e mata-borrão
– também tomava tempo a aventura psicológica reflexiva que levava à elaboração dos
diários. Ainda que seja difícil mensurar, é possível pensar que, muitas vezes, esse
trajeto tomava uma vida toda!
No centro dessa configuração que possibilitou ao diário surgir e à personalidade
introdirigida exprimir-se, encontra-se, portanto, o tempo. É preciso compreendê-
lo como peça-chave dessa máquina de motor perpétuo que se tornou a escrita
arquivística do íntimo ocidental.

3. O tempo nos diários

O pesquisador francês Philippe Lejeune (2009) dedicou grande parte de sua


trajetória à conceituação dos diários, primeiro como uma bifurcação da autobiografia
– seu campo de estudo inicial – depois comparando-o a outros gêneros, até finalmente
alçá-lo a um estado mais sólido, suficiente para diferenciá-lo dos demais.
Diz o pensador francês que o diário origina-se da necessidade comercial de
administrar, tal como a própria escrita. Essa noção ordenadora da escrita não é
nova, conforme lembra Vilém Flusser (2010, p. 24), ao dizer que “escrever é um
gesto que orienta e alinha o pensamento”. Já se encontra este afã ordenador nos
sistemas ideográficos mais antigos – ditos primitivos – como as tábuas de argila da
Caldeia, os hieróglifos egípcios, o Linear B dos micênicos. Com a chegada do papel
à Europa, no século XIV, e seu feliz encontro com a prensa de tipos móveis, a escrita
ocidental superlativa este desejo ordenatório, não só facilitando a disseminação,
mas o armazenamento do que é escrito.
Data desta época o surgimento dos livres de raison, no centro comercial de Florença
(LEJEUNE, 2009). A palavra francesa raison deriva da latina ratio, que designa conta,
relato. Tais livres eram, então, nada mais do que livros de contabilidade, estruturados
em colunas, nas quais todas as operações comerciais eram discriminadas por ordem
de ocorrência. Lejeune (2009, p. 51) conta que possuíam dois propósitos básicos:
“um propósito interno (gerir seus negócios baseados em dados completos e precisos)
e um propósito externo (servir de evidência em uma situação de disputa)”.
Além dos livres de raison, surgem outros dois artefatos importantes para a
consolidação desse novo espírito do tempo. Também no século XIV surge o relógio –
primeiramente em torres (século XIV), depois em casas (XVII) – e o calendário anual, que
substituía o calendário perpétuo e o livro de datas4. O tempo era agora divisível em partes,
que ficavam para trás, podendo ser aproveitadas ou perdidas. Tornara-se “precioso e
irreversível” (LEJEUNE, 2009, p. 59) e, dado seu novo status quase pecuniário, deveria
ser adequadamente contabilizado5. A escrita acompanha esta mudança de relação

178
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

com o tempo, tratando de acompanhá-lo e garantindo seu uso efetivo.


Apanhados por este espírito gestor do tempo, surgem figuras como o erudito francês
Marc-Antoine Jullien (1775-1848), um dos que melhor compreendeu essa mudança de
ethos do tempo na sua época. Homem de letras, mas também de treinamento militar
e afeito às elites, Jullien criou um elaborado método de educação para a eficiência
dos jovens franceses. Didaticamente intitulado de Ensaio sobre o emprego do tempo,
ou Método que visa regular sua vida, a primeira maneira de tornar-se feliz; destinada
especialmente aos jovens entre 15 e 25 anos6, o método de Jullien propunha dividir
não apenas o dia de forma absolutamente precisa (três períodos de oito horas para
sono, lazer e trabalho), mas também cada ano de toda a formação de um jovem até
aproximadamente os vinte e cinco, “quando já estaria apto a se casar e a tomar parte
ativa na vida de seu país” (LEJEUNE, 2009, p. 106).
Jullien compõe o elo positivista entre a erudição do iluminismo e o espírito pré-
industrial do século XIX. Seu método de divisão metódica buscava não apenas a
eficiência das atividades, mas também da moralidade. Qualquer tipo de paixão ou
desvio era a perdição para seu modelo de alto rendimento, similar ao que configura
o pecado para a salvação cristã. A felicidade que o método almejava era, então,
encontrada no autocontrole e na privação. E tal autocontrole, bem como a garantia
da privação, eram obtidos através do diário7.
O programa de educação de Jullien sugeria que o jovem entre sete e quatorze anos
fosse monitorado por um tutor que detalharia as atividades da criança em um diário,
fazendo-a ler no dia seguinte. A partir dos quatorze, cada jovem deveria assumir a
tarefa, mas ao invés de escrever o próprio diário, ele deveria também escrever os
diários de seus pares, realizando o mesmo controle dos seus tutores. Apenas na
adolescência é que o jovem teria direito de escrever em seu próprio diário somente,
sendo ainda necessário que uma figura de autoridade – pai ou tutor – lesse-o de
tempos em tempos. A prática prosseguia para a vida adulta, diminuindo apenas a
frequência com a qual o diário deveria ser apresentado a outro. A prática, garantia o
próprio autor, era mais eficiente que a confissão religiosa.
Tal percepção do tempo é tão monetária que é passível de débito, dada a culpa
que se pretende creditar ao tempo “mal utilizado”8. No entanto, não passa de uma
percepção. É importante perceber como a noção da passagem do tempo não passa
de uma transmutação das percepções do espaço de um grupo, que contamina e
subjaz a inúmeras transformações materiais e psicológicas de uma época. Sobre
isso, o filósofo estadunidense Adrian Bardon explica que:

Tempo como nós o apreendemos na experiência é uma questão de como


nós organizamos nossas próprias experiências adaptativamente; em
um contexto físico e cosmológico, é uma questão de como nós podemos
propor um modelo de maior sucesso para um universo de ocorrências.
Assim, o tempo é uma resposta: uma solução para o problema de organizar
experiências e propor modelos (BARDON, 2013, p. 175).

Compreender o tempo em um modelo específico, seja de personalidade,


de expressão, ou mesmo de escrita, é, portanto, compreender o tempo dentro
179
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

de um tempo. A partir de um espírito de uma época única, no qual um modelo e


uma cosmologia específicos foram propostos, ancorados em meios materiais e
configurações subjetivos únicos. Aprofundando o conceito do tempo estendido a que
Sibilia (2016) faz referência, vê-se uma percepção de tempo fundada em preceitos
mecânicos e mercantis, fruto de uma época que buscava alcançar todos os rincões do
globo – com seus sistemas postais e ferrovias – e, mais ainda, que buscava também
conquistar todas as zonas ermas da mente humana. Esse controle e segurança
oriundos do conhecimento e descrição de tudo eram precisamente o que sistemas
positivos como o de Jullien buscavam, mas também o que doutrinas como a psicanálise
reivindicariam nos séculos seguintes. É dessa reivindicação, constante e obcecada,
que origina a vontade de arquivar tudo, principalmente de tudo relativo a si.
Deve-se notar também que as manifestações desse Zeitgeist – literalmente, o
espírito de um tempo – não se manifestaram pontualmente em doutrinas e criações
eruditas como a de Jullien, mas proliferaram-se numa forma de tornar natural essa
percepção comercial e contabilizável do tempo.
Lejeune (2009, p. 79) diz que o diário moderno não se tornou o que é até o dia em
que recebeu – como herança da carta – a data: “quando a data abandonou o campo
do enunciado para o campo da enunciação”. Na carta, a data não apenas especifica
quando ela foi escrita, mas também garante que ela foi escrita. A partir do momento
em que é datada, ela passa a existir como tal.
Nas formas anteriores de enunciação, como nos livres de raison, a data era
mencionada no momento em que algo acontecia, e não a data do momento da escrita.
Lejeune justifica esse fato explicando que as notas de contabilidade eram escritas
relativamente próximas ao evento, e que este comportamento também se repetia nos
escritos de cronistas e testemunhas de guerras e revoluções da época. Segundo ele,
“não se fetichizava o imediatismo da escrita ou o traço do momento” (LEJEUNE, 2009,
p. 81) e, mais ainda, que tais notas, escritas quase in loco com o evento, eram copiadas
e reconstruídas, quase sempre sendo destruídas em seguida.
A data do momento da escrita não apenas identifica – e localiza – o evento no
tempo, mas une-se, indissociavelmente àquele que a enuncia (LEJEUNE, 2009).
Data e assinatura fundem-se numa evidência da subjetividade que vê aquele
evento específico naquele específico momento no tempo. Antes, a ação era descrita
no passado e, com ela, toda a emoção perdia-se nesse abismo que se abria entre
o antes e o agora9. Ao indicar a data no início, abre-se o caminho para toda uma
personalização da narrativa. O enunciador liberta-se da narrativa e pode descrever
tudo no momento presente, tendo um grande controle sobre o tempo, que pode ser
categorizado e dividido, mas nunca retido.
A data, então, além de aproximar diário e carta, cria um “efeito de sinceridade”,
que suga o leitor para a narrativa (LEJEUNE, 2009, p. 87)10, seguramente escrita
naquele momento presente. E entre esses dois momentos distintos estabelece-se
um diálogo que pode ser acompanhado pelo destinatário, no caso de cartas, e pelo
próprio autor, no caso de um diário.
Surge, então, uma questão interessante, relativa ao status desse diálogo. Tome-
se uma série de cartas, ricas em detalhes como os horais de Benjamin Constant;
180
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
ou registros curtos, como os de Wittgenstein; ou diários longos, como os de Claude
Mauriac e Henri-Frédéric Amiel. Cada um constrói uma rica tessitura de retalhos
temporais subjetivos, que incluem além de momentos importantes e memoráveis na
vida daquela personalidade, também eventos dos mais banais e sem importância,
que estão, todavia, ali registrados, pela simples vontade de seu autor.
Roland Barthes, para referir-se a esses diversos momentos, evoca os biografemas.
São trechos de uma vida que se seleciona, ao recontar a vida de outro (COSTA, 2010).
São reencontros com fatos documentais, que lançam um novo olhar sobre o que
se sabe sobre o biografado (BARTZ, 2014). E, nas palavras do próprio Barthes, os
biografemas “vão além de qualquer destino e vão de encontro a um corpo futuro”
(BARTHES, 1989, p. 9). São, portanto, retalhos selecionados de uma vida, cuja
tessitura forma uma rede, um quebra-cabeças, cujas lacunas são preenchidas pelos
afetos daquele que vai contar esta vida.
No entanto, aqui se coloca uma questão sobre a narrativa do diário. Na escrita
íntima, a seleção é feita pelo próprio diarista, no momento da escrita, que aproxima-
se ao máximo do momento da experiência. Num ímpeto diarístico, como o de Claude
Mauriac – que durou sessenta e nove anos – como encontrar os biografemas? E as
lacunas?
A presença da data no diário estabelece pontes entre uma entrada e outra,
a despeito das “paradas, esquecimentos, preguiça, silêncios e comunicações
cruzadas” que houver (LEJEUNE, 2009, p. 84). As lacunas, então, não são facilmente
preenchidas, porque a escrita não se dá com o objetivo de preenchê-las com o afeto
de um biógrafo. O diarista costura, não redes, mas tapeçarias, extensas tapeçarias
que são passíveis de serem expostas, mas, indo além, dignas de serem arquivadas.

4. Arquivando tudo que há

Antes de mais nada, arquivo é registro. É a materialidade selecionada de algo


que já foi, para aquilo que ainda será. Jacques Derrida traça, em Mal de Arquivo,
as raízes físicas, históricas, ontológicas e nomológicas do arquivo até o termo grego
arkhê: o primeiro, o primitivo, o originário, o começo. Dele também vem o arconte e
o arkheion, respectivamente o magistrado responsável pela guarda dos arquivos, e o
edifício onde se armazenavam esses arquivos.
Mais ainda, o arconte detinha o poder de interpretar os arquivos. Cabia a eles a
hermenêutica da lei. Diz Derrida (2001, p. 13) que “depositados sob a guarda desses
arcontes, estes documentos diziam, de fato, a lei: eles evocavam a lei e convocavam
a lei”. O arconte era então, para quem se dirigia o documento passado, e quem dirigia
a interpretação futura. Emana dele a vontade do pesquisador do passado em ser “o
primeiro arquivista, o primeiro a descobrir o arquivo, o arqueólogo”, aquele que “institui
o arquivo como deve ser (...) não apenas exibindo o documento, mas estabelecendo-o.
Ele o lê, interpreta e classifica” (DERRIDA, 2001, p. 73, grifos nossos).
Esse ler, interpretar e classificar, presente em todo arquivo, apresenta-se de uma
forma única no diário, na medida em que se diferencia de toda outra relação escrita

181
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

entre emissor e receptor.


As leis que os arcontes zelavam eram escritas por outros magistrados, ainda que
fossem eles seus intérpretes. Da mesma forma, o Linear B, ainda que tenha sido
decifrado por Michael Ventris e John Chadwick, em 1950, foi elaborado, escrito e
pensado pelos e para os micênicos, entre os séculos XV e XII a. C.. O arquivo deriva do
passado e se constrói a partir da sua relação com o futuro, usualmente com o outro,
que descende daqueles que criaram o tal conteúdo arquivável. E o que ocorre quando
este outro, que supostamente vem depois no tempo, é o mesmo que criou o primeiro
arquivo?
Relendo seus diários da adolescência, Lejeune (2009, p. 331) relembra como, aos
quinze anos, estava tomado por angústias metafísicas sobre Deus, a origem do mundo
e a morte, mas que nunca falava sobre isso em casa: “eu tinha uma vida interna e
ninguém para mostrar. Eu tive que lidar com isso sozinho. Eu não tinha amigos (...) Eu
busquei refúgio no papel”. O diarista “ajuda a si próprio no futuro”, continua, dizendo
que seus escritos adolescentes eram uma voz para todos os Philippes futuros! E
conclui dizendo que “o diário não é apenas uma zona de refúgio no espaço; é também
um arquivo no tempo. Eu escapo do presente e faço contato com um vasto futuro”
(LEJEUNE, 2009, p. 334).
Ao deixar o escrito no diário, na solidão única do eu com o eu, o diarista abre sua
morada ao seu eu futuro, da mesma forma que seu eu futuro abre as portas da sua
leitura para o eu passado, numa relação de hospitalidade:

O reino do papel, como uma casa para a qual você é convidado, é um


espaço protegido onde as leis do mundo exterior estão em suspensão:
suas ações não têm as mesmas consequências e não são sancionadas
da maneira que seriam em qualquer outro lugar (...) Mas isso não significa
que você possa fazer tudo o que quiser: o convidado deve respeitar seu
anfitrião e obedecer as regras e costumes da casa. Não é uma terra sem
lei. (LEJEUNE, 2009, p. 333).

Essa relação de hospitalidade é também uma relação de diálogo. O eu passado


reapresenta sua vida, que o eu futuro reavalia, repensando também a sua. Longe dos
escritos confessionais, em que o interlocutor era um colérico Deus, e das tentativas
de doutrinação distópicas de Marc-Antoine Jullien, o diário íntimo proporciona um
espaço de confidência, na presença de “um amigo para quem você pode contar tudo,
que não irá julgá-lo, que irá entendê-lo e não dizer nada” (LEJEUNE, 2009, p. 335). E
o silêncio é oriundo, principalmente, do abismo que existe entre o presente e o futuro.
Frente a essas possibilidades de compartilhamentos e aceitação incondicional,
o diário torna-se um arkheion cujos critérios de seleção são ainda mais amplos e o
espaço é, virtualmente, infinito. Mais ainda, a tentação da obsessão da escrita torna-
se quase inevitável. Ainda que seja importante lembrar que não há seleção exaustiva
– ao contrário da destruidora memória de Irineo Funes, personagem de Jorge Luis
Borges – é inegável perceber como as amplas seleções/coleções de diários que se
seguirão diferenciam-se de qualquer outra forma de escrita para um outro externo,
mesmo das mais compulsoriamente detalhistas, como os horais de Benjamin

182
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

Constant. Na solidão do íntimo, o diário é o verdadeiro mapa de exploração do eu


introdirigido, um manual de taxidermia do homo psychologicus.

5. Os arcontes de si

O jornalista Claude Mauriac (1914-1996) foi um dos maiores diaristas de seu


tempo. Seu diário original, escrito durante 69 anos em cadernos manuscritos e folhas
datilografadas, ocupavam uma estante de três metros e meio em sua casa.
E, para completar, entre 1974 e 1988, Mauriac editou e publicou quinze volumes,
com excertos de seus diários, seguindo um arranjo labiríntico baseado em duas
premissas: a analogia (a busca de tudo de similar que criou ecos ao longo dos anos),
e a amostragem arbitrária, que Mauriac chamava de “mergulho” (LEJEUNE, 2009, p.
185). Os volumes receberam os títulos de Le Temps Immobile (O Tempo Imóvel, de 1 a
10) e Le Temps Accompli (O Tempo Completo, de 1 a 5). A coleção não é só um trabalho
hercúleo – e um tanto bórgico – de escrita íntima, mas um panorama riquíssimo de
história de um país e de uma época, montando uma tessitura gigantesca, pelas mãos
de um único homem.
A compulsão arquivística de Mauriac somente sucumbiu ao tempo. A última entrada
em seu diário se encerra com a palavra “ilegível”, em uma caligrafia igualmente difícil
de ler. Não podendo mais escrever e, o que é pior, reler-se, dialogando com os Claudes
passados e futuros, Mauriac abandonou sua empreitada.
Outro obstinado exemplo vem do filósofo francês Pierre-Hyacinthe Azaïs (1766-
1845). Azaïs também inovou em sua tentativa de ser o arconte de sua própria vida,
mantendo, entre 31 de dezembro de 1810 e 7 de dezembro de 1844, 366 diários
paralelos, um para cada dia do ano. A cada dia, Azaïs voltava-se para o mesmo dia
do ano anterior, lembrando-se do que estava fazendo naquele dia e comparando sua
situação atual (familiar, financeira, de saúde etc.) com aquelas do passado. Essa
forma de registro é de tal forma sólida e inventiva que, diz Lejeune, a sua publicação
adequada “provavelmente encontra-se fora do espectro do livro de papel”, com
hyperlinks em um CD-ROM, por exemplo (LEJEUNE, 2009, p. 184-185).
Azaïs também foi responsável pela confecção e aperfeiçoamento de um aparato
que buscava possibilitar a ele escrever enquanto caminhava. Desenvolvido por um
amigo seu, o pintor Jean-Baptiste Jalon, o aparato consistia em uma maleta de
alumínio que funcionava como uma pequena escrivaninha, com um estoque de
papel, alguns lápis, um estilete para apontá-los e uma tábua de papelão para servir
de apoio. Engenhosamente, o próprio Azaïs aprimorou o aparelho, com “uma simples
lousa, bem pequena e leve, acoplada à minha bengala de caminhar”, que tornava a
escrita possível em qualquer posição (apud LEJEUNE, 2009, p. 124-125).
Vê-se com clareza a obsessão pelo arquivamento de todo e qualquer momento de
uma vida, que chama ao seu auxílio até mesmo a mais refinada técnica. Infelizmente,
os aparelhos de Azaïs não sobreviveram, mas permaneceram suas inscrições, como
esta, de 06 de outubro de 1801: “se eu tivesse duas vidas, gastaria a primeira
escrevendo em meu diário!” (LEJEUNE, 2009, p. 123).

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Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

Um terceiro exemplo é Henri-Frédéric Amiel (1821-1881). Brevemente, Amiel


deixou 173 diários, escritos durante 42 anos, e somando quase 17 mil páginas. Tão
impressionante quanto Mauriac, Amiel chama a atenção por sua postura dúbia com
relação ao diário, que mesmo assim não logrou desviá-lo de seu colecionismo de si.
Em primeiro lugar, Amiel foi um ávido leitor de Marc-Antoine Jullien. Leu o Ensaio
para o uso do tempo... em fevereiro de 1840, então com dezenove anos, um ano após
iniciar sua prática diarística contumaz. No entanto a leitura, longe de direcioná-lo à
felicidade, fez com que Amiel se sentisse culpado. Ele diz, em 20 de janeiro de 1854,
aos trinta e dois anos que

Nesses últimos dias, eu estou sendo assombrado pela ideia de ordenar,


planejar uma vida, usar de tabelas, administrar e capitalizar uma obra, de
mobilizar notas e papeis: em suma, a arte de voltar-se para as melhores
vantagens das forças. (apud LEJEUNE, 2009, p. 113).

E em 23 de março de 1860, seis anos depois da entrada anterior, Amiel inicia


um novo caderno com uma frase de Jullien – “Com todos os minutos que gastamos,
poderíamos ter feito uma obra imortal” – e contando que, à parte da única ação positiva
daquele dia, não fez nada além de “perambular e falar” (LEJEUNE, 2009, p. 113).
Um pouco mais adiante, em 19 de dezembro de 1867, Amiel classifica sua própria
atitude como estéril, ao dizer que:

Se carnívoros se prezam a caçar presas medíocres, porque vivem de outros


animais, então qualquer animal que viva de si mesmo seria a pior presa de
todas. Um gato que persegue o seu rabo é uma criatura um tanto ridícula.
Ora! Um diário íntimo não nos mostra alguém que dedica-se a estas duas
ocupações estéreis: correr atrás do próprio rabo e devorar a si mesmo?

19 de dezembro, 1867. (apud LEJEUNE, 2009, p. 149).

Percebe-se como essa dúvida quanto à própria atividade tomou o espírito de Amiel
durante toda a sua vida, e mesmo assim ele persistiu, deixando volume suficiente
para doze grossos volumes publicados. E, mesmo presa de uma ideia de futilidade
desse arquivamento de si – oriunda da noção errônea de Jullien – Amiel escreveu até
exaurir suas forças. Sua última entrada data de 29 de abril de 1881, e ele faleceu 12
dias depois, em 11 de maio.
Os três exemplos são patentes demonstrações dessa vontade obsessiva de deixar
registrado algo que servirá – em um primeiro momento – somente ao próprio autor. O
medo da futilidade de Amiel é real, ainda que não necessariamente válido. E, à parte
das suas diferentes formas de expressão e mesmo publicação, os três compartilham
essa missão de construir gigantescas tapeçarias com o maior número possível de
registros, considerações e reflexões sobre si.
Tal missão mostra que Amiel, Azaïs e Mauriac são filhos do homo psychologicus.
Amiel e Azaïs são, de certa forma, contemporâneos desse ethos; enquanto Mauriac,
e também Lejeune, são ecos desse clamor que vem dos recônditos da alma humana
até os abismos do tempo.
184
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

Voltando aos seus diários de adolescência, Lejeune percebe como a escrita para
si no futuro, essa autoanálise projetada e íntima, remetia a um movimento que datava
de muito antes. A internalização do remetente, essa conversa consigo que é o diário,
em que “todo mundo é seu melhor amigo” (LEJEUNE, 2009, p. 336) deu a ele a
sensação de que “o que acontecia comigo quando tinha quinze anos, no outono de
1953, é o que aconteceu na Europa durante a segunda metade do século XVIII: a
incrível ideia de pegar uma folha de papel e escrever para ninguém, escrever para si
mesmo, escrever para o eu” (LEJEUNE, 2009, p. 335, grifo nosso).
De maneira sucinta, e um tanto épica, Lejeune (2009, p. 330) conclui que “minha
adolescência ressoava com a adolescência da civilização ocidental”.

6. Expondo as tapeçarias

O afã da escrita que ressoa desde as primeiras palavras de Amiel aos mais recentes
cadernos de Lejeune não tem unicamente a função de registrar-se para a decifração
de si, mas também de manter-se vivo para si11. O diário é o escudo e o broquel contra
o olvido, contra o ocaso da existência, que traz não só angústia, mas frustração.
Na impossibilidade de prolongar a vida, os diaristas tentavam armazená-la ao
máximo como, hoje em dia, tenta-se fazer ciberneticamente. A reconstrução exata em
palavras de cada pensamento que Azaïs tinha enquanto caminhava aspira à mesma
imortalidade que a ciência moderna busca com a transferência de mentes para o
ambiente digital.
E essa reconstrução não aceita lacunas, como no caso da rede biografemática
(BARTZ, 2014). Uma informação que falta de um cérebro trará uma projeção digital
imperfeita. É informação que se perde. Na compulsão arquivística, ocorre o mesmo.
São as lembranças, por mais ínfimas que sejam, que constituem o mais valioso
arquivo: o todo de uma vida. E seu valor vem do fato de que ele é único para cada um,
irreproduzível e inigualável, como o indivíduo moderno, que se desprende da multidão
para ir encontrar suas idiossincrasias no conforto do seu quarto. O diário, então, assim
como a cibernética, busca manter o indivíduo intacto, em detrimento da passagem dos
séculos e do colapso das civilizações, fazendo-o triunfar sobre tudo.
Essa noção, além de altamente hipotética, esbarra em considerações
problemáticas. Lembra Artières (1998, p. 11), outro pesquisador francês da
autobiografia, que “não arquivamos nossas vidas de qualquer maneira; não
guardamos todas as maçãs da nossa cesta pessoal; fazemos um acordo com a
realidade, manipulamos a existência: omitimos, rasuramos, riscamos, sublinhamos,
colocamos em exergo certas passagens”.
E, sobre o próprio arquivo, Derrida (2001, p. 8) lembra que “não há arquivo sem
o espaço instituído de um lugar de impressão. Externo, diretamente no suporte, atual
ou virtual”.
É materialmente impossível, portanto, que um diário contenha todas as memórias
de um indivíduo. Não há caderno grande o suficiente para toda uma vida, tampouco
tempo suficiente para escrevê-la em sua totalidade. Artières (1998, p. 3), referindo-

185
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

se de outra forma aos biografemas, diz que:

Num diário íntimo, registramos apenas alguns acontecimentos, omitimos


outros; às vezes, quando relemos nosso diário, acrescentamos coisas
ou corrigimos aquela primeira versão (...) não só escolhemos alguns
acontecimentos, como os ordenamos numa narrativa; a escolha e a
classificação dos acontecimentos determinam o sentido que desejamos dar
às nossas vidas. (ARTIÈRES, 1998. p. 3)

Dado que cada releitura traz novas ideias, reflexões e mesmo correções, um diário
hipotético, infinito, talvez escrito pelo Irineo Funes de Borges, não poderia ser jamais
lido pelo seu destinatário. Tristemente, Funes jamais leria Funes. Mas, felizmente,
Amiel, Mauriac e Lejeune foram, na medida do possível, lidos por eles próprios, pelos
demais, e por quem mais quiser. As grandes tapeçarias de Mauriac e seus tantos
outros companheiros podem não estar em exposição nas paredes de casa, mas
podem ser conferidas através de retalhos em outras redes, que formam novas e mais
resistentes tessituras, tecidos e textos. A escrita prossegue seu caminho em direção
ao futuro, como este código que suporta e transmite a cultura ocidental (FLUSSER,
2010) e que, a despeito das grandes angústias e pequenas patologias daqueles
que escrevem, também prossegue rumo ao fim dos tempos.

Notas
1 Literalmente, caráter. Originalmente, o termo grego designa lugar de costume
e, por derivação, o costume em si. Nas Leis, (792e), Platão refere-se aos hábitos como
sementes de todo caráter. Esta é precisamente a definição que buscamos aqui, ao
compreender o caráter (de uma época) nascer a partir de uma mudança de costumes.
2 Para saber mais sobre as primeiras manifestações desse ímpeto de registro
íntimo de mulheres e crianças, cf. dois artigos de Philippe Lejeune ricos em exemplos:
“O My Paper” (2009, p. 93-101) e “Marc-Antoine Jullien: Controlling Time” (2009, p.
102-121).
3 Sobre isso, o livro de Paula Sibilia citado até aqui é pródigo, mas sugere-se
com mais ênfase os capítulos 6 e 9.
4 Até a segunda metade do século XVII, o calendário não possuía dias da
semana, e o ciclo de dias era indicado pela sequência de A a G, sendo necessário
fazer um cálculo para atribuir uma dessas letras ao 1º dia do mês, a chamada “letra
dominical”, referência para todo o ano. Já o livro de datas consistia em uma sequência
de atividades a serem realizadas no mesmo dia durante todos os anos, como festivais
religiosos, plantio, colheita etc. (LEJEUNE, 2009, p. 58).
5 É desta mesma época a expressão “tempo é dinheiro”, cunhada pelo
estadunidense Benjamin Franklin em 1748, no texto Conselho a um jovem comerciante.
Franklin, juntamente com o filósofo inglês John Locke, foi uma das principais influências
de Jullien (LEJEUNE, 2009, p. 110).
6 Essai sur l’emploi du temps; ou, Méthode qui a pour objet de bien régler sa vie,
186
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

premier moyen d’être heureux; destinée spécialement à l’usage des jeunse gens de
15 a 25 ans (1808).
7 Jullien não estava sozinho nessa empreitada de controle moral. Um comerciante
maçônico lionês, de nome Joseph Bergier (1800-1878) sonhava com uma sociedade
na qual todos fossem compulsoriamente obrigados a manter diários pessoais como
forma de evitar a realização de atos considerados impróprios pelos seus pares/vigias.
Essa noção de controle interior assemelha-se ao poder que Foucault descreve em
Vigiar e Punir nas prisões, hospícios e escolas. No entanto, enquanto o controle vem
de fora nas instituições descritas por Foucault (para então internalizar-se), Jullien e
Bergier creem em um controle perfeito unicamente subjetivo. E, finalmente, todos se
equiparam na divisão metódica do tempo como forma de controle.
8 É importante notar a ligação semântica em várias línguas ocidentais entre
a culpa como uma falta – legal ou religiosa – e também a obrigação oriunda desta
falta (BUCK, 1988, p. 1183-1184), havendo inclusive casos de coincidência em uma
mesma palavra. No alemão – língua protestante e, portanto, comercial por excelência
– a palavra Schuld designa não somente a culpa, como a própria compensação
pecuniária oriunda dessa falta: o débito.
9 Lejeune apresenta alguns exemplos retirados de personagens da época: “No
sábado, 13, eu não me movi deste lugar”; “Na terça-feira, 28 do mesmo mês, no Dia
dos Inocentes, uma multidão que ia atrás do Rei, que apenas havia chegado à Ilha de
Saint Denis, morreu afogada” (2009, p. 79).
10 O autor ainda sugere um pacto cronográfico (p. 84), brincando com o termo
cunhado por ele próprio, o “pacto autobiográfico”.
11 Nesse rol incluem-se nomes como Nicolas Rétif de La Bretonne (1734-1806),
que entre 1779 e 1785, espalhou inscrições com datas e pequenas sentenças em
latim pelas pedras da ilha de São Luís, no coração de Paris, com o objetivo de celebrar
eventos importantes de sua vida. Ao perceber que alguém havia começado a apagar
essas inscrições, põe-se a inventariá-las em um caderno, iniciado em 1º de setembro
de 1785 e finalizado em 4 de novembro. Chamado de Mes Inscriptions (Minhas
Inscrições), o livro não é exatamente um diário, e tampouco uma autobiografia. É um
escrito de caráter memorioso, engatilhado e disparado pelo fato de que seu autor
percebeu que alguém estava apagando o que ele havia deixado para trás – tentando
privá-lo de arquivar.

Referências
ARTIÈRES, Philippe. Arquivar a própria vida. Estudos Históricos, São Paulo, Fundação
Getúlio Vargas (FGV), v. 11, n. 21, 1998.
BARDON, Adrian. A Brief History of the Philosophy of Time. Nova Iorque: Oxford
University Press, 2013.
BARTHES, Roland. Sade, Fourier, Loyola. Los Angeles: University of California Press,
1989.
187
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

BARTZ, Rodrigo. Jornalismo e Literatura: as complexificações narrativas jornalísticas


de cunho biográfico. 158 f. Dissertação (Mestrado em Letras). Universidade de Santa
Cruz do Sul, Santa Cruz do Sul. 2014.
BORGES, Jorge Luís. Ficções. Trad. Davi Arrigucci Jr. São Paulo: Companhia das Letras,
2007.
BUCK, Carl Darling. A Dictionary of Selected Synonyms in the Principal Indo-
European Languages – A Contribution to the History of Ideas. Chicago: The University
of Chicago Press, 1988.
COSTA, Luciano Bedin da. Biografema como estratégia biográfica: escrever uma
vida como Nietzsche, Deleuze, Barthes e Henry Miller. 180 f. Tese (Doutorado em
Educação). Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre. 2010.
DERRIDA, Jacques. Mal de Arquivo: uma impressão freudiana. Trad. Cláudia de
Moraes Rego. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001.
FLUSSER, Vilém. A Escrita: Há futuro para a Escrita?. São Paulo: Annablume, 2010.
LEJEUNE, Philippe. On Diary. POPKIN, J.; RAK, J. (ed.). Manoa: University of Hawaii
Press, 2009.
SIBILIA, Paula. O Show do Eu – a intimidade como espetáculo. Rio de Janeiro:
Contraponto. 2016.

188
Diálogos transformadores – aproximações entre
as narrativas etnográficas, psicológicas e jornalísticas

Monica Martinez e Mara Rovida

1. Prólogo: os elementos precedentes ou elucidativos da narrativa

Toda narrativa está impregnada de um movimento que a antecede, pois há sempre


um caminho prévio percorrido, claramente refletido ou não, que evidencia o tempo e
o espaço nos quais o autor está mergulhado. Não por acaso, uma das obras seminais
dos estudos de narrativas é a de Paul Ricoeur, na qual o estudioso francês pontua
que “o tempo se torna humano na medida em que está articulado de modo narrativo,
e a narrativa alcança sua significação plenária quando se torna uma condição da
existência temporal” (RICOEUR, 2010, p. 93).
Teríamos, portanto, para construção desse argumento, três esferas temporais. A
primeira seria a do autor, entendido aqui em sua estruturação complexa que contém,
implícito ou não, embora geralmente de forma não consciente do ponto de vista da
produção jornalística, igualmente um narrador (MARTINS, 2016). A segunda seria a
do tempo do entrevistado (MARTINEZ, 2015; PERAZZO, 2015). Finalmente, a terceira,
contextual, seria ainda mais ampla: a do Zeiltgeist, isto é, do espírito do tempo,
no sentido das características intelectuais e culturais de uma determinada época
(HEGEL, 1998).
Nesse contexto, que tipo de experiência ainda poderia ser observada como fonte de
narrativa criativa (BENJAMIN, 2012), num contexto mundial de sistemas econômicos
predominantemente capitalistas (SODRÉ, 2012), de globalização (GHEMAWAT, 2008),
de avanços tecnológicos sem precedentes que disponibilizam a informação de forma
imediata aos mercados econômicos (STRAUBHAAR, 2012), que causaram uma
transformação social de tal amplitude que alteraram estruturalmente o modelo de
negócio jornalístico e, por extensão, o mercado de trabalho dos profissionais do campo?
(MICK; LIMA, 2013; PAULINO; NONATO; GROHMANN, 2013).
Seja qual for a análise empreendida desse cenário, o fato é que estudos recentes
apontam que em culturas democráticas os leitores seguem devotando sua lealdade a
conteúdos noticiosos de qualidade e do interesse de suas respectivas comunidades,
preferencialmente produzidos por jornalistas profissionais, sejam esses conteúdos
distribuídos por canais tradicionais ou não, compartilhados na íntegra ou “aprimorados”
por meio das múltiplas possibilidades de interatividade contemporânea das mídias
sociais (MASIP et al., 2015).
Entendendo, aqui, uma noção jornalística que transcende a mera palavra como
texto, mas que abraça o contexto semiótico, no qual todos os textos – de imagens
a teoremas − têm um nível narrativo, uma vez que trabalham com transformações
(FIORIN, 1995). Estamos, portanto, na esfera ampla da noção de texto da cultura
proposta pelo semioticista russo Iúri Lotman (1922-1993), que contempla as variadas

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Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

manifestações da cultura humana, inclusive a palavra oral e a escrita, como parte


integrante de uma semiosfera, isto é, de um espaço no qual signos, linguagens, textos
e códigos, entre outros, estão em relação, em semiose. Alguns autores inclusive
propõem, de forma mais específica no caso da esfera midiática, a existência de uma
mediosfera (CONTRERA, 2010).

2. Primeiro momento do processo jornalístico criativo: apuração

Mesmo no século 21, o jornalismo de credibilidade continua se amparando no


clássico tripé apuração, redação e publicação. Comprometido com seu papel de
mediador social, o jornalista seria tomado como um autor que desenvolve sua arte em
dois momentos diferentes. Num primeiro movimento, ele iria ao encontro do Outro, dos
protagonistas da cena real. “Outra revolução ocorre quando autor e ambiente do relato,
autor e protagonista da ação social se enlaçam como sujeito-sujeito, e não sujeito-
objeto. [...] Perde-se então a pretensão do signo do distanciamento e a interação dos
afetos constitui o signo da relação” (MEDINA, 2003, p. 140). Entender esse Outro
como sujeito e não objeto de pauta requer uma postura aberta, uma disposição para
deixar-se impregnar pelo desconhecido representado pela alteridade. Como adverte
Medina (2003), nem sempre essa interação se desenrola nesses moldes, mas essa é
uma possibilidade conquistável e desejável.
Por isso, no jornalismo há quem defenda o processo de apuração – levantamento
e checagem de informações que pressupõe contato com fontes de informação – como
o momento de inspiração por excelência. Em alguns casos são notáveis as marcas
intensas de transformações promovidas pelo encontro de alteridades desenvolvido
nesse momento em que a autoria criativa está em fase de afetação (MEDINA, 2014).
Em outras palavras, o momento em que o jornalista desempenha seu papel de repórter
e se aproxima da polifonia e da polissemia do contexto social. Quando esta interação
é plena e o diálogo realmente se estabelece, uma transformação tanto no jornalista
como na fonte de informação torna-se possível. É o que Medina (2008, p. 31) nomeia
de “interação social criadora”.
Esse movimento anterior à redação da narrativa jornalística guarda semelhanças
com algumas metodologias de pesquisa que propõem um mergulho intenso nesta fase
de levantamento e checagem de dados. É o caso da etnografia, parte da antropologia
cuja metodologia de trabalho de campo é orientada por dois momentos distintos
nos quais o antropólogo imerge numa realidade desconhecida para depois narrar a
interpretação daquilo que foi observado (GEERTZ, 2008). A narrativa resultante desse
processo imersivo seria uma ficção, não no sentido de ter sido criada ou de ser falsa
(MARTINEZ; CORREIA; PASSOS, 2015), mas “sim como experimento de pensamento”
(GEERTZ, 2008, p. 11). Em processos mais longos de observação, o etnógrafo se vê
mergulhado num emaranhado de notas e ideias colhidas em campo que precisam
de organização para serem apresentadas e, quanto maior a abertura permitida no
processo, maior a riqueza da descoberta (LA PASTINA, 2014).
Outra abordagem imersiva na questão da alteridade é a psicologia, em particular
a analítica. Enquanto a etnografia e outras disciplinas cuidam dos conteúdos
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Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

considerados conscientes, a psicologia contribui com investigações nos abissais


conteúdos do inconsciente, seja ele o inconsciente pessoal e, em alguns casos,
até o inconsciente coletivo (JUNG, 2012a). De tal forma que pode ser salutar
para compreender processos centrais do processo produtivo jornalístico, como os
bloqueios sofridos por escritores como Joseph Mitchel (MARTINEZ, 2008; MARTINEZ;
CORREIA; PASSOS, 2015; SALLES, 2003).
O fato é que os estudos da área de Comunicação e Informação no Brasil ainda
privilegiam a análise de processos que ocorrem por meio de aparatos midiáticos.
Mesmo nos processos comunicacionais que envolvem o ser humano, o aspecto
psicológico ainda é pouco compreendido porque pouco estudado ou visto no
viés de abordagens psicológicas que, ainda que sejam importantes, estão mais
preocupadas com a superfície dos fenômenos. Uma abordagem jornalística
clássica, investigativa, em geral está presa a uma visão predominantemente
positivista, moderna, explicativa, mecanicista, cartesiana. O jornalista convencional,
mesmo que de forma legítima, que não consegue compreender a complexidade
contemporânea, ainda está a busca da “verdade”. Já outras áreas do conhecimento,
como a História Oral, compreendem que essa noção de verdade é, no mínimo,
subjetiva. Muitos historiadores orais trabalham com o conceito de ucronia, isto
é, de uma verdade “possível” para dadas circunstâncias que o indivíduo pode ter
achado intolerável, como um prisioneiro de um campo de concentração (MARTINEZ,
2016a). A noção de verdade psicológica, igualmente, preconiza que se algo está
trazendo sofrimento psíquico é porque, para aquele ser, naquele dado momento,
aquilo é real. É a partir desta base que a questão será trabalhada nas sessões,
isto é, a partir da habilidade do paciente em se abrir para a transformação e
do psicoterapeuta em fazer seu paciente, de forma gradual, ir percebendo as
tênues e porosas fronteiras entre as fantasias, isto é, suas construções, e as
razões, os sentimentos, as ações a partir de outros olhares. À semelhança da
filosofia, realidade é uma palavra pouco empregada num setting terapêutico por
ser considerada demasiado subjetiva.
Em comum, jornalistas e psicoterapeutas analíticos trabalham com bases
narrativas, portanto com processos comunicacionais com potencial de transformação.
Em uma entrevista jornalística, sobretudo nas apurações de longa duração, sabe-
se de forma empírica, embora ainda pouco estudada no campo da Comunicação e
Informação, que entrevistado e jornalista poderão sair transformados em alguma
medida do encontro.
Um livro seminal de como este processo pode ter repercussões dramáticas para o
jornalista é O Segredo de Joe Gould (MITCHELL, 2003). O primeiro perfil de Gould, “O
Professor Gaivota”, escrito pelo escritor estadunidense Joseph Mitchell (1908-1996),
foi publicado na revista The New Yorker em 12 de dezembro de 1942 − época em que
as apurações levavam até três anos.
Joe Gould (1889-1957) era um “sem-teto” atípico. Nascido numa família
aristocrática de Boston, nos Estados Unidos, estudou – como seu avô e pai –
medicina em Harvard. Distúrbios psicológicos levaram-no a não conseguir se inserir
no meio social. Devido às suas boas relações sociais, ele se tornou um boêmio que
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Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

alternava internações com a vida em albergues em Manhattan sustentada à base de


“contribuições” de celebridades como o autor E. E. Cummings.
Jornalista vindo do interior dos Estados Unidos, de família de fazendeiros, Mitchell
projetou-se de tal forma no carismático sem teto que “mentia” sobre ter escrito uma
obra maior que a Bíblia, que acabou sofrendo um bloqueio de escrita. Apenas após
a morte de Gould, em 1957, revelou a verdade em um segundo perfil, “O Segredo de
Joe Gould”, publicado nas edições de 19 e 26 de setembro de 1964. Depois teria
se calado até 1996, ano de seu falecimento. Mitchell também não havia “cumprido”
a vontade paterna de cuidar da fazenda familiar, também se sentia um peixe fora
d´água em Nova York (os perfis que trabalhava expressavam isso, com relatos de
mulheres barbadas, coveiros e outros anônimos), também tinha na cabeça um grande
romance que jamais chegou a colocar no papel.
Por 32 anos, diariamente, Mitchell ia para a redação. Os colegas de trabalho
ouviam o tac-tac-tac da máquina de escrever ao longo do dia. E ele recebia o salário
integralmente ao final do mês. Quando faleceu, os colegas correram revirar seu
escritório, na esperança de achar uma produção fenomenal. Não encontraram sequer
uma linha (SALLES, 2003). Mais tarde, a própria revista The New Yorker publicou
alguns fragmentos póstumos −“Street Life”, “Days in the Branch’ e “A Place of Pasts”
− do livro de memórias inacabado que Mitchell teria se dedicado a trabalhar durante
seu longo silêncio entre 1964 e 1996 (PASSOS, 2017).
No caso de Mitchell, podemos supor que o inconsciente coletivo manifestado em
Gould transbordou de tal forma para o inconsciente pessoal do jornalista que este, já
fragilizado, não deu conta da relação: acompanhou o sem-teto neste mar profundo e,
não raro, sem volta. Os fragmentos permitem supor que, sem conseguir lidar com o
presente, Mitchell passou a viver em seu próprio passado como uma forma que lhe
era possível de mediação funcional com a realidade (PASSOS, 2017). Nesse sentido,
fica claro que, por não dispor de técnicas e métodos como os profissionais do campo
da psicologia, Mitchell não conseguiu por si só integrar os conteúdos “sombrios” de
seu inconsciente à sua personalidade. Sem esse salto transcendente que permitisse
a transformação, tornou-se por 32 anos, até falecer, um prisioneiro de si mesmo.
Já um analista junguiano tem ferramentas que permitem compreender que há
interações de vários níveis que podem estar acontecendo entre ele e o(a) analisando,
além da comunicação consciente. Os egos do paciente e do analista estão em contato
com os seus respectivos inconscientes. Os egos de ambos também podem afetar seus
respectivos inconscientes. E ambos podem estar sujeitos à influência do inconsciente
de cada um (JACOBY, 2011).
A abertura ao outro como ponto crucial para uma transcendência criativa, portanto,
também faz parte do fazer jornalístico. Na medida em que o comunicador permite ser
afetado pelos personagens de suas histórias, por suas fontes de informação, jornalista
e protagonista são mutuamente afetados e o texto jornalístico será decisivamente
impregnado, facilitado ou bloqueado por essa interação. Contudo, o diálogo entre
especialistas das áreas de Comunicação e Informação com a Psicologia, entre outras,
pode ser salutar não só para a saúde psíquica dos profissionais de jornalismo, mas

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Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

também para o avanço destas duas ciências no século XXI, notadamente no período
complexo pelo qual passa a civilização.

3. O segundo momento da autoria jornalística: o relato

Depois desse encontro com a alteridade, no qual primam a abertura à diversidade


e à complexidade, o jornalista desenvolve sua narrativa com a intenção, embora sem
garantias, de colocar seu público em contato com a visão e a percepção que teve da
experiência de campo. A relação desses dois momentos vai além do simples fato de
serem partes de um mesmo processo de mediação porque a experiência do contato
com os personagens da notícia é determinante para a formatação do texto jornalístico.
“[...] é na realidade narrável que se encontra o mote de estrutura narrativa” (MEDINA,
1996, p. 228). Segundo Medina, é a partir da observação da cena real e do contato com
os protagonistas que o jornalista-autor tira subsídios para criar; é desse movimento de
aproximação com a realidade, orientado pela disposição e abertura aos afetos, que a
narrativa nasce. A estrutura do texto está, nessa perspectiva, intimamente vinculada
à experiência do campo cuja riqueza depende do ato presencial (MEDINA, 2016) e da
postura de mediador dialógico.
Um ponto que merece ser destacado é que afeto, aqui, não está entendido
meramente como sentimento. Antes, no sentido psicológico do termo, como sinônimo
de emoção com potencial de desencadear transformações corporais (JUNG, 2012b,
§ 750). O afeto, portanto, tem tonalidades, isto é, a transformação que causará
dependerá da intensidade de sua força psíquica.
É comum, portanto, o questionamento sobre como o autor pode elaborar uma
narrativa capaz de imprimir emoções e sensações, além da informação mais
objetiva de seu enredo. Na ficção muito se discute sobre a inspiração de autores que
conseguem impregnar a imaginação de leitores ou expectadores com textura, cheiros
e sensações ainda não promovidas pelas tecnologias digitais. Entre as respostas
estaria a genialidade desses indivíduos, desses autores (GAGLIARDI, 2014, p. 288).
Gênios sensíveis e experimentados ou bons técnicos das artes da escrita capazes de
reinventar e aprimorar seus antecessores (GAGLIARDI, 2010, p. 290), de um jeito ou
de outro, autores criativos usam experiências ou conhecimento prévios como alicerce
para suas narrativas. Estudos recentes sugerem que, na realidade, a criatividade não
está restrita a poucos, podendo ser ensinada (MARTINEZ, 2010).
Não parece muito diferente o efeito produzido por densas narrativas elaboradas na
esfera da não ficção. Na história do jornalismo e, em particular, do jornalismo literário,
guardam-se capítulos especiais para autores que desenvolveram competência destacada
nas artes da escrita (MARTINEZ, 2016b). Como arte de tecer o presente (MEDINA,
2003a), além da narrativa vívida em cores e sabores, capaz de promover sensações e
emoções, o texto jornalístico em geral se diferencia das narrativas de ficção pelos laços
com esse momento anterior à redação propriamente dita e, de alguma forma, com os
movimentos posteriores à publicação do texto. Dito de outra forma, a vocação jornalística
estreita relações com o factual, o que implica na interação anterior com os protagonistas
da cena real bem como mantém eticamente um compromisso com o público fruidor da
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Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

informação, o que o estudioso de Jornalismo Literário Mark Kramer chama de pacto com
o leitor (KRAMER, 1995). Ainda assim, há que se notar que esse mergulho na realidade
também faça parte do processo criativo de muitos escritores de ficção, bem como de
outras expressões artísticas, como a desempenhada por artistas. Como um processo
triádico, contudo, a comunicação jornalística se estabelece em um potencial dialógico,
promovido pelo mediador jornalista.

Para além da liberdade de expressão, o direito social à informação exige


uma reversão do ego do jornalista que distribui conteúdos (não importa
o suporte tecnológico) para uma autoria na interação social criadora.
Em outras palavras, impõe-se o aprendizado de toda uma vida para se
desempenhar numa autoria relacionadora, dialógica, articuladora de
conteúdos plurais (polissemia) e regência de vozes conflitivas (polifonia)
(MEDINA, 2016, p. 24).

A experiência desse estar em campo, dessa observação cautelosa e cuidadosa,


torna-se essencial para o resultado narrativo e, como vimos, aproxima o jornalismo
de outra área do conhecimento, a etnografia. “O repórter e o antropólogo precisam
observar, sentir o cheiro, tocar e, de certa forma, se colocar em relação, em contato
com os contextos e personagens sobre os quais tratam” (ROVIDA, 2015b, p. 86-87).
Como observado anteriormente, a inspiração do etnógrafo também se dá no
encontro com os sujeitos observados, por isso a elaboração narrativa precisa ser
pensada, ser organizada de forma a apresentar esse primeiro movimento a um terceiro
sujeito, o público. Nesse momento o pesquisador exercitará sua veia de mediação pela
narrativa que estará impregnada de uma carga de informação, objetiva e subjetiva,
originada no campo. Aqui também não existem fórmulas fechadas ou desenhos
previamente esboçados.
Clifford Geertz irá trabalhar essa segunda etapa de sua descrição densa como
uma elaboração manuscrita recheada de imprecisões e elipses.

[...] a etnografia é uma descrição densa. Fazer a etnografia é como tentar


ler (no sentido de “construir uma leitura de”) um manuscrito estranho,
desbotado, cheio de elipses, incoerências, emendas suspeitas e comentários
tendenciosos, escrito não com os sinais convencionais do som, mas com
exemplos transitórios de comportamento modelado (GEERTZ, 2008, p. 7).

Esse manuscrito de que o autor fala é a narrativa etnográfica que não se organiza
como simples descrição de cenas e personagens observados, ela é acima de tudo um
esforço de interpretação. Para Geertz, a cultura é uma teia de significados (GEERTZ,
2008, p. 4), no sentido weberiano da ideia, e o desafio do etnógrafo é analisar e
interpretar essa teia a partir da imersão em campo.
A imersão em campo, geralmente longa (LA PASTINA, 2014, p. 128), demanda do
pesquisador não apenas atenção para os detalhes anotados em seus diários para
mais tarde subsidiar narrativas, mas também um esforço para estabelecer relações
com os chamados informantes (GEERTZ, 2008, p. 4). Partícipes do contexto social
estudado, os informantes se tornam cúmplices do pesquisador e ajudam a descobrir
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Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

os significados, a interpretar aquilo que foi apreendido na observação.


Se a etnografia é uma ciência interpretativa, a narrativa etnográfica deve ser capaz
de expor ao público uma perspectiva inteligível a respeito das cenas apresentadas.
Em outros termos, com apoio desses informantes, o etnógrafo apresenta os
valores atribuídos pelos próprios protagonistas da cena ou, em outras palavras,
um ““entendimento do entendimento” (grifo do autor), [que] hoje dá-se o nome de
hermenêutica” (GEERTZ, 2014, p. 11).
Além de costurar cenas e valores dos sujeitos de pesquisa, o etnógrafo investido
de seu papel de mediador precisa lidar com as particularidades de seu próprio
campo científico – seu público potencial – e para isso terá de acionar seu arsenal
de conhecimento teórico. Os conceitos das ciências sociais são utilizados como
suporte nessa etapa narrativa, estabelecendo-se um pensar com os conceitos e não
exatamente sobre eles (GEERTZ, 2008, p. 16-17).
A descrição densa se concretiza como interpretação inscrita numa narrativa criada,
embora estreitamente vinculada ao factual. “Trata-se, portanto, de ficções; ficções
no sentido de que são “algo construído”, “algo modelado” — o sentido original de
fictio — não que sejam falsas, não-fatuais ou apenas experimentos de pensamento”
(GEERTZ, 2008, p. 11). Geertz observa que, embora a narrativa etnográfica seja fruto
de trabalho científico metodologicamente desenvolvido, os textos produzidos pelos
antropólogos são representações da realidade, são criações sociais (coletivas) e
devem ser entendidas assim.
Talvez o ponto mais alto desse debate etnocêntrico seja representado pela noção
de perspectivismo ameríndio do antropólogo brasileiro Eduardo Viveiros de Castro
(CASTRO, 2015). Professor do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de
Janeiro, Viveiros de Castro baseou-se nas cosmologias amazônicas para questionar
o ponto de vista antropocêntrico, ampliando o foco do modo não apenas como
humanos, mas também como animais e espíritos veem-se a si mesmos e aos outros
seres do mundo. Essa noção ampliada sugere uma possibilidade de reconfiguração
das relações clássicas de natureza, cultura e sobrenatureza, isto é, uma terceira
categoria de seres presentes nas “cosmologias indígenas que não são nem humanos
nem animais (refiro-me aos “espíritos”) (CASTRO, 1996, p. 4). Nesse aspecto pode-se
observar outro ponto de proximidade entre as narrativas etnográficas e as narrativas
jornalísticas: a de que estas também são produções ligadas ao factual, mas que não
devem ser tomadas como a própria cena social e sim como representações arbitrárias,
porque criadas potencialmente a partir de múltiplos pontos de vista (MEDINA, 2003b;
WOLFE, 2005).
Nessa abordagem, a narrativa jornalística tem representatividade ampliada porque
desenvolvida como mediação social, como articulação de histórias fragmentadas
(MEDINA, 2003, p. 48). Em vez de trabalhar numa perspectiva técnico-burocratizante,
o jornalista deve buscar uma postura alinhada à emoção solidária e à criação estética
para criar uma comunicação que estabeleça comunhão; o que, segundo Medina, se
apoia na “tríplice tessitura ética, técnica e estética” (MEDINA, 2003, p. 50). Com
essa proposta, o jornalista evita fechar-se “numa razão reducionista [impeditiva da]
emoção solidária que capta os movimentos do outro” (MEDINA, 2003, p. 50).

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Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

Entre racionalidades e subjetividades, o mediador busca inspiração nas artes de


forma geral para representar essa carga informativa apreendida no campo. Medina
defende uma inspiração pelas artes, não apenas literárias, e não uma aplicação de
fórmulas prontas. Isso porque se a inspiração é encontrada no campo, no processo de
apuração, a sensibilidade precisa ser acionada no processo e a técnica engessada não
permitiria uma verdadeira criação autoral. Dessa forma, os modelos são banidos e a
busca por uma maneira de narrar a experiência do contato com as fontes de informação
se torna parte do próprio processo jornalístico ou etnográfico.

4. Algumas percepções

Assim como a produção jornalística aberta aos afetos, a etnografia e a psicologia


são possibilidades incertas onde os caminhos do pesquisador não são previamente
garantidos. A opção por esse tipo ampliado de metodologia de trabalho depende
da capacidade em lidar com as incertezas do campo (LAPASTINA, 2014), estas que
são também a riqueza desse tipo de imersão por guardarem gratas descobertas e
preciosidades a serem transformadas em narrativas inspiradoras.
Em grande medida, esses resultados, percebidos no potencial sensível dos textos,
devem-se à aproximação dos cenários observados por antropólogos e jornalistas e,
principalmente, pela possibilidade de interação com o Outro. Assim é pelo diálogo,
pela interação entre sujeitos que as narrativas jornalísticas e etnográficas ganham
em amplitude e profundidade. A relação entre alteridades abre um universo rico de
possibilidades e inspiração autoral.
As narrativas inspiradas por esse tipo de abordagem apresentam um potencial
ampliado de diálogo e de interação justamente por permitirem ao público, fruidores
e/ou curiosos, entrar em contato com a cena contemporânea com riqueza de cores,
sabores e sensações. Como arte narrativa, impregnada por diálogos transformadores,
esse tipo de produção se destaca por seu potencial dialógico num momento em que
o volume de dados disponíveis é expressivo o que por vezes implica em dificuldades
no estabelecimento de uma verdadeira comunicação social. O público parece prezar
pela experiência do diálogo, mesmo em situações corriqueiras da cobertura cotidiana
de prestação de serviço.
O jornalismo guarda espaço cada vez maior para a chamada prestação de serviço
informativo. Pautas como tempo e temperatura, cotação de moedas estrangeiras, hora
certa (no caso da TV e do rádio) e o trânsito fazem parte desse escopo. Mesmo nesses
espaços é possível observar o quanto as narrativas inspiradas numa abordagem
mediadora e dialógica se destacam e repercutem. Uma situação observada na
cobertura do trânsito da cidade de São Paulo em 2011 pode exemplificar justamente
essa percepção.
A cena, narrada por um repórter em campo, teve grande repercussão junto ao
público ouvinte da emissora especializada na cobertura do trânsito e permitiu que
um personagem normalmente visto como antagonista tenha sido apreendido pelos
ouvintes numa perspectiva solidária e respeitosa (ROVIDA, 2015a). Esse exemplo, ao
lado de outros tantos – que não caberia aqui detalhar –, ajuda a compreender ainda
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Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

que de forma superficial a participação do terceiro sujeito da tríade comunicacional,


o público. É sempre difícil criar mecanismos que permitam uma leitura mais
pormenorizada da participação do público nesse processo. Mesmo assim, observa-se
também na participação do público uma reação mais aberta, porque também afetada,
quando a narrativa se molda pelo diálogo transformador.
Afinal, como diz Cremilda Medina, a arte narrativa é uma maneira que o humano
ser tem de organizar o caos da vida. Esse dizer sobre a realidade é reconstrução
simbólica do real, algo essencial para sobreviver. Assim, narrar segue sendo o que,
desde o tempo dos mitos, sempre foi: muito mais do que um talento de alguns, é uma
necessidade de todos (MEDINA, 2003).

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Gêneros biográficos: humanização e identificação como processos discursivos

Perfis, biografias e obituários – gêneros essencialmente ligados às histórias de vida


ou, de modo geral, chamados de gêneros biográficos – são publicados com frequência no
Brasil, na Europa e nos Estados Unidos, país do qual vieram as principais referências para
o jornalismo brasileiro. Políticos, artistas, (pseudo)celebridades, escritores e pessoas
comuns, que justifiquem uma publicação, a princípio, a partir de valores-notícia1, como
atualidade, novidade, interesse público/interesse do público, universalidade ou mesmo
a exemplificação de um dado estatístico, merecem páginas de revistas, jornais, livros,
sites de informação ou, então, espaço em produtos audiovisuais, como telejornais,
revistas eletrônicas ou documentários, isso sem levar em conta as narrativas que se
constituem a partir de referências verossímeis à vida, tais como as cinebiografias e os
docudramas, muito comuns no Brasil.
Diversos autores têm se dedicado a estudar esses gêneros, em geral, associando-
os à narrativa literária de não ficção ou ao chamado Jornalismo Literário. Assim, esses
autores refletem sobre a história de vida no jornalismo a partir de uma preocupação
estético-literária, pela qual a escrita de tais gêneros fica associada a uma escrita
mais livre, criativa, fora dos padrões do jornalismo tradicional. Outro ponto em comum
entre esses autores é a noção de humanização, compreendida como a preocupação
com a história de vida de um ser humano e não apenas considerando-o como uma
fonte de informação ou coadjuvante na narrativa.
Vilas Boas (2003, p. 9) promove uma discussão acerca da proximidade entre os
gêneros perfil e biografia, dizendo ser o primeiro uma espécie de sinônimo de “reportagem
biográfica”. Assim, em comum, tanto a biografia quanto o perfil têm o foco no personagem.
No caso da primeira, em sentido stricto, ter-se-ia uma narrativa que pretende apresentar
a história de toda (uma) vida, em geral, tendo o livro como suporte. No segundo, tem-se
um gênero mais associado à ideia de noticiabilidade e a um recorte temporal, portanto,
mais comum em veículos periódicos, como sites noticiosos, jornais e revistas. Um gênero
derivado e híbrido entre ambos é o obituário, comum em veículos impressos e caracterizado
por um texto breve em que se apresenta uma síntese da vida de uma pessoa que tenha
morrido nos dias que antecedem a publicação.
Nesses três gêneros, o personagem é o protagonista. O que interessa não é
propriamente a opinião, especializada ou não, com que determinada pessoa pode
contribuir para que se aborde, de modo jornalístico, um fato, mas sim a capacidade
de essa pessoa ser ela mesma a própria informação, trazendo dados do contexto
quando se trata de um personagem que ilustra uma determinada situação, ou então,
focalizando apenas a sua trajetória de vida, se assim se justificar. “Significa enfoque
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Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

na pessoa – seja uma celebridade, seja um tipo popular –, mas sempre o focalizado
é protagonista de uma história: sua própria vida” (MUNIZ SODRÉ; FERRARI, 1986,
p. 126). Na mesma direção, temos a definição de Lima (2009, p. 325): “Em geral, o
jornalista ilustra o fato com a historinha de alguém. No entanto, o que se quer na boa
reportagem (e no perfil, nessa perspectiva humanizada) é encontrar o personagem
que vai irradiar o contexto sociocultural, as razões históricas de um fato”.
Mais do que servir como uma definição do que seja o gênero perfil, a breve retomada
desses conceitos tem o objetivo de expor o que, de modo geral, é utilizado nas escolas de
Jornalismo para conceituar e ensinar como se deve fazer um perfil. Os autores e textos
citados são os mais utilizados nos cursos brasileiros, o que significa que, como memória,
constituem-se como já-ditos para jornalistas sobre o que eles devem perseguir em seus
processos de escrita. Filiando-nos à Análise de Discurso Francesa, compreendemos os
já-ditos como tudo o que, em algum momento, foi enunciado e que, pelo conjunto de
suas repetições, alianças e contradições, constituem-se como memória discursiva.
Nesse ponto, começamos a delimitar mais claramente o objetivo deste texto:
refletir de que modo os estudos discursivos – dos quais vêm os conceitos de já-
dito e memória indicados o parágrafo anterior – podem contribuir para a análise
de narrativas jornalísticas e para a ideia de humanização. Para tal, baseamo-nos
sobretudo em discussões teóricas iniciadas por Michel Pêcheux e Michel Foucault, na
França, a partir do final dos anos 1960 e que tiveram no Brasil terreno fértil para seu
desenvolvimento, principalmente a partir do trabalho de Eni Orlandi.
Os perfis, obituários e biografias, pela já explicitada relação com a forma de escrita
literária, são dos poucos gêneros jornalísticos informativos que incluem, em sua
definição teórica, alguma ideia de subjetividade, ainda que ela seja compreendida,
em geral, como originária no próprio sujeito2 e como uma oposição à objetividade que
impera nos discursos sobre o jornalismo.
Essas definições, contudo, colocam-nos diante do interesse por uma definição
mais histórico-crítica da noção de humanização, no intuito de buscar uma coerência
teórica, articulando o conceito à Análise de Discurso Francesa. Em geral, na bibliografia
de referência, a humanização constitui-se como um processo triádico, envolvendo
autor, leitor e personagem:

Os perfis cumprem um papel importante que é exatamente gerar empatias.


Empatia é a preocupação com a experiência do outro, a tendência a tentar
sentir o que sentiria se estivesse nas mesmas situações e circunstâncias
experimentadas pelo personagem. Significa compartilhar as alegrias e
tristezas de seu semelhante, imaginar situações do ponto de vista do
interlocutor. (VILAS BOAS, 2003, p. 14).

Todavia, a nosso ver, a ideia de humanização não pode ser compreendida como
uma característica inata ao sujeito e experimentada por autor, personagem e leitor numa
relação inequívoca e imediata. Antes disso, ela se constitui num processo de significação
diante do encontro/embate entre a subjetividade que projeta uma representação do
personagem na escrita do perfil3 e a posição do leitor, seu enunciatário.
A noção de identificação, considerando as posições teóricas de Pêcheux ([1975]

201
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

2009), que entende o discurso como efeito de sentido entre locutores, só é possível
ser concebida se estiver relacionada às noções de formação discursiva e de posição-
sujeito. Dito de outro modo, a identificação é um processo em que o interlocutor se
vê, por uma interpelação ideológica, projetado no discurso “do” e “sobre” o outro.
Ele se vê tanto representado quanto projetado naquilo que é dito por outrem sobre
determinado assunto ou pessoa.
Ao ser publicado, um perfil (e seus congêneres, como biografias e obituários) demonstra
uma reconstrução sobre a vida de um personagem, que, ao ser retirado do mundo histórico,
representa, concomitantemente, “o mesmo” e “o diferente”4, numa espécie de porta-voz
da realidade que se projeta aos outros. Nesse diálogo, há no processo de humanização
e, por conseguinte, de identificação, uma espécie de localização de caracteres comuns
entre o personagem do perfil e o ser humano que o lê, que está fora do texto, mas que se
vê ali presente de algum modo pelo que é dito sobre o outro.
Há, assim, algo que permite ao interlocutor a identificação daquilo que lhe
possibilita dizer, diante do outro-representado no texto: “Há alguém ali, como eu”. Por
outro lado, há também algo que, na construção narrativa, coloca o outro-representado
numa posição distinta, que o diferencia dos demais, permitindo ao interlocutor dizer:
“Embora como eu, há algo de distinto, algo que o coloca ali especialmente, que o
faz justificar-se nesse lugar”. Num outro extremo dos sentidos possíveis, há ainda a
possibilidade de que o sentido seja algo como: “Essa pessoa é totalmente diferente de
mim, não tenho nada que me assemelha a ela”. A diferença, de acordo com a posição
do sujeito, pode, portanto, ser ferramenta de aproximação ou de distanciamento. O
algo de que falamos que possibilita essas diferentes reações é a formação discursiva.
Nesse corolário jogo entre o mesmo, o diferente e o totalmente diferente, insere-
se o processo de humanização e identificação no perfil jornalístico, que se justifica
pela noticiabilidade, mas produz sentidos pelo jogo da igualdade e da diferença,
embora essas forças não se encontrem, nunca, em relação de paridade. Temos a
lembrar ainda que a ideia de noticiabilidade, para além dos elementos estruturais da
narrativa jornalística, encontra-se determinada pela posição-sujeito e, portanto, pelas
formações discursivas.
O conceito de formação discursiva foi cunhado por Foucault, em sua Arqueologia
do Saber ([1969] 2012), e depois recuperado por Pêcheux, em Semântica e Discurso
([1975] 2009). A formação discursiva, pela sua relação com o ideológico, demonstra
“o que pode e deve ser dito, a partir de uma posição dada numa conjuntura dada: o
ponto essencial aqui é que não se trata apenas da natureza das palavras empregadas,
mas também (e sobretudo) de construções nas quais essas palavras se combinam
(...) e as palavras ‘mudam de sentido’ ao passar de uma formação discursiva a outra”
(PÊCHEUX, [1975] 2009, p. 162).
Como discurso, esse processo de identificação (ou repulsa) emerge numa relação
que é também ilusória, porque o sujeito-representado está reconstruído e submetido
aos dois esquecimentos de que fala Pêcheux (2009): no esquecimento número 1, o
sujeito, tanto leitor quanto quem assina o texto, recalca sua inscrição numa formação
discursiva, acreditando ser a origem do dizer. No número 2, o sujeito tem a ilusão
de que o que foi dito só pode ser enunciado daquela maneira. Como discurso, a
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Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

representação do sujeito no perfil está submetida a essa lógica. Quem o escreve e


quem o lê, ao identificar-se com tal, tem ali uma representação que ele acredita ser a
única e, mais que isso, a verdadeira sobre determinado personagem. Ademais, quem
produziu tal texto tem a ilusão de que, por ser dotado de técnicas e preceitos sobre o
que justifica aquela publicação, está produzindo a verdade sobre o personagem, sem
ter clareza de que essa verdade é também fruto de uma formação discursiva na qual,
sem saber, inscrevem-se e produzem-se sentidos.
A inscrição de um sujeito a uma determinada formação discursiva faz com que,
em seu discurso, emerjam, a partir daquilo que é possível de ser dito, formulável, os
chamados pré-construídos, que provocam a emergência da memória discursiva. No
pré-construído, fazem-se presentes discursos acionados e colocados em circulação,
constituintes da formação discursiva. Assim, compreendemos que os elementos
estruturais da narrativa – descrições, símbolos de status de vida, narrações, diálogos,
metáforas e os demais recursos advindos da relação com a literatura – devem ser
analisados, não só numa perspectiva estética, mas também a partir da relação com
a ideologia e com a historicidade. O mesmo pode-se dizer sobre a humanização e a
identificação, processos discursivos, e, portanto, ideológicos.
A seguir, veremos um exemplo, a partir da análise do polêmico obituário da
cientista Yvonne Brill, publicado no jornal The New York Times, nos Estados Unidos,
comparando-o com textos publicados no Twitter, em formato de memes e que se
colocavam em outra formação discursiva, ao fazer críticas ao modo como o texto
sobre a vida da cientista tinha sido escrito.

Um caso exemplar: o obituário de Yvonne Brill

Os jornais dos Estados Unidos publicam, desde o século 19, obituários. Essas
seções – introduzidas no jornalismo brasileiro na mesma época – sempre tiveram
bons índices de leitura. Muitos jornalistas que ganharam notoriedade depois ou se
dedicaram à literatura, como é o caso de Ernest Hemingway, empregaram-se em
jornais na função de autores de materiais nesse formato. Na história da imprensa,
The New York Times destaca-se como um dos veículos que produzem textos diários
nesse gênero e que já geraram, inclusive, coletâneas, reunindo alguns de seus mais
marcantes obituários, como é o caso de The best obituaries from Legendary New
York Times e Book of Obituaries and Farewell – A Celebration of Unusual Lives. No
Brasil, parte desses textos foi publicada numa coletânea lançada pela editora Cia. das
Letras, chamada “O livro das vidas” (2008).
Quando a cientista Yvonne Brill, pioneira no desenvolvimento de foguetes, morreu, em
27 de março de 2013, o The New York Times publicou, três dias depois, o perfil dela na
seção de obituários, assinado pelo repórter Douglas Martin. Note-se que, nesse caso, se
tratava, além de um perfil, também de uma notícia de reconhecido valor jornalístico: quem
morria era uma cientista que havia dado grandes contribuições ao projeto astronômico
dos EUA. O texto, que recebeu centenas de críticas de leitores, mulheres cientistas e
ativistas das causas feministas, começava mencionando as habilidades culinárias, a
maternidade e o casamento de Yvonne. Dizia o texto em seus dois primeiros parágrafos:
203
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

Ela fazia um estrogonofe de carne muito bom, acompanhou seu marido por
vários empregos e se afastou do trabalho por oito anos para criar seus filhos. ‘A
melhor mãe do mundo’, disse seu filho Matthew. Mas Yvonne Brill, que morreu
na quarta, aos 88 anos, em Princeton, Nova Jersey, foi também uma brilhante
cientista de foguetes, que, no início da década de 1970, inventou o sistema de
propulsão para manter satélites de comunicação fora de suas órbitas5.

Na sequência, o texto trazia informações sobre o sistema de propulsão por ela


criado e, mais ao final, narrava sua trajetória de vida, filha de um carpinteiro que
emigrou da Bélgica para tentar a vida na América do Norte. Com essas considerações,
diversas questões nos tocam diante desses enunciados, considerando o jogo entre o
estético e o ideológico.
Na primeira das inquietações, consideramos o que se diz, costumeiramente,
sobre os gêneros biográficos. Diversos autores, entre os quais Vilas Boas (2004, p.
84), dizem que a biografia (os gêneros biográficos de modo mais geral) deve trazer
o “relato detalhado” da vida de alguém, baseando-se na humanização. Assim,
interessaria ao biógrafo contar uma história de vida, relatando os feitos, o cotidiano
e, principalmente, as características que tornam o biografado uma “pessoa” capaz
de gerar identificação nos leitores, com importância a ponto de merecer tal relato.
Entretanto, o entendimento sobre o que é uma vida e quais características merecem ser
relatadas encontram-se determinados pela historicidade e pela memória discursiva,
conforme Pêcheux (2009), conceito sobre o qual já discutimos aqui.
Nesse sentido, não se pode negligenciar que o sujeito-autor do texto, a quem compete
“humanizar” e contar uma vida, está preso numa rede de significações, constituída pela
ideologia e pela história. No jogo das significações possíveis no texto sobre Yvonne Brill,
o sujeito-jornalista foi interpelado pelo que já foi dito sobre “ser mulher”, “ser cientista”
e ser também ambas as coisas. Teria tido ele a intenção de ser machista – como foi
interpretado por boa parte de leitores – e valorizar as (não) qualidades de Yvonne como
mulher? Provavelmente, não. Mas, como diz Pêcheux (2009), é preciso compreender de
que modo os sujeitos são interpelados e recebem como evidente e inconscientemente
um discurso que é histórico e ideologicamente constituído.
Notemos para esta análise a presença do conectivo “mas” (but, na versão em
inglês) no texto. Ele surge para relacionar duas sentenças. Há, primeiro, uma forte
imagem do feminino, historicamente constituída: vê-se uma imagem de mulher casada,
que deve se dedicar à cozinha com esmero e seguir os passos do marido. O que
justifica, logo no início do texto, a presença de uma frase dizendo que seu estrogonofe
era bom? Diante do legado como cientista, qual a importância de materializar uma
característica que poderia parecer tão banal? Fazer um bom estrogonofe não alteraria
sua carreira, mas colocá-la-ia numa formação discursiva que diz que “homens pilotam
foguetes” e “mulheres… os fogões”.
O sujeito do discurso que, ao mesmo tempo determina um lugar de mulher, percebe
existir algo distinto na vida sobre a qual escreve e isso se materializa no conectivo “mas”.
Notemos aqui também como se materializa o jogo do “mesmo” e do “diferente” que
caracteriza o personagem perfilado em sua relação com o autor do texto e o leitor. Nesse
caso, o conectivo “mas” serve como um ponto de inflexão entre aquilo que colocava
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Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

Yvonne como “mesmo” e o que o autor, na formação discursiva em que está, elenca
como sendo o “diferente”, o que justifica a publicação. Da forma como enuncia, parece
haver uma visível não coincidência entre ser a “melhor mãe do mundo” E também
a grande cientista. Dessa não coincidência, desse estranhamento, materializa-se o
conectivo “MAS”, que imputa coerência ao que está sendo enunciado pelo autor.
As duas informações não se apresentam simplesmente como adição, o que
teríamos se houvesse, interligando as sentenças, apenas a conjunção “também”
(also), que só aparece mais à frente, depois de exposta a contradição pelo uso
de “mas” (but). A presença dessa adversativa, portanto, demarca um discurso de
sustentação: ser mãe E cientista não correspondem às imagens possíveis de mulher
na formação discursiva em que o sujeito-autor insere-se.
A formação discursiva, como demonstra Foucault ([1969] 2012, p. 284), é “um
conjunto de regras anônimas, históricas, sempre determinadas no tempo e no espaço,
que definiram em uma época dada, e a para a área social, econômica, geográfica ou
linguística dada, as condições de exercício da função enunciativa”. Não está em jogo
apenas a seleção das informações – o que demonstraria um processo de escrita
pautado apenas pela intencionalidade. Tampouco se trata de dizer que é um texto
com essas marcas porque seu ‘autor’ é um homem. Todavia, o que está em jogo
é como o vínculo a uma formação discursiva – independente do gênero de quem
escreve – lhe imputa sentidos e modos de dizer.
O trecho que informa que Yvonne “se afastou do trabalho por oito anos para
criar seus filhos” também funciona como discurso de sustentação, principalmente,
quando o próprio obituário, parágrafos à frente, demonstra certa imprecisão nessa
informação. Diz o texto, quase ao final:

Ela deixou a companhia [Wright Aeronautical] em 1958, entretanto, para


cuidar de seus filhos, mantendo-se no mercado em tempo parcial, como
consultora para a FMC Corporation. Em 1966, ela voltou a trabalhar em
tempo integral, trabalhando para a subsidiária de foguetes RCA´s. Logo, ela
faria um trabalho que lhe daria aclamação internacional6.

A cientista nunca deixou de trabalhar, mas, no primeiro parágrafo do texto, a


imagem que se tem é de uma mulher que deixou a carreira para cuidar dos filhos.
A boa razão para essa justificativa é reforçada por outra adversativa: “entretanto”
(However). Não é uma razão qualquer. Ela só deixou o trabalho por razões esperadas
de uma mulher: o cuidado materno. A presença de fatos e o esquecimento de outros
fazem pensar em que história a formação discursiva permite contar.
Só para citar um exemplo de uma informação “esquecida” pelo The New York
Times, a reportagem do Washington Post sobre a morte da mesma cientista informava
também que os períodos de trabalho na FMC incluíam, às vezes, noites e fins de
semana. Outras imagens como “dona de casa” e “esposa” surgem ao longo de todo
o texto, inclusive, em falas da própria Yvonne, reproduzidas no obituário. Ao abordar
o casamento da cientista com o químico William Brill, a fala dela citada no texto é
“Bons maridos são tão difíceis de encontrar quanto bons trabalhos” (Good husbands

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Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

are harder to find than good jobs). O que seria “um bom marido”? Na enunciação
produzida pelo The New York Times, parece ser um homem que não a impedia de ter
uma grande carreira.
O fato de as informações sobre as qualidades culinárias e maternas de Yvonne
estarem no primeiro parágrafo produzem também efeito pela importância dessa parte
do texto na estrutura jornalística. O primeiro parágrafo na narrativa noticiosa (lead, no
jargão) deve trazer as informações essenciais para o relato de um fato. Mesmo em textos
construídos a partir de uma estética literária, as informações colocadas no início do texto
têm importante papel no processo de sedução do leitor para a continuidade da leitura.
Assim, seja para quem escreve ou para quem lê, há uma memória que hierarquiza
no começo do texto as informações mais importantes a se saber (coisas-a-saber, diria
Pêcheux) dentro de determinada formação discursiva. Evidentemente que, ao se falar
de discurso, considera-se que o sujeito não tem consciência de tudo o que diz, embora
tenha a ilusão de ser origem e fim. O sujeito não é a origem do dizer, não devendo,
portanto, ser entendida essa hierarquização como um processo de organização, mas,
sim, uma interpelação, um dizer que carrega outros, que se formula por meio de outros
tantos. Entre as formas de dizer, há também dominantes e dominados.

Discursos de oposição e formação discursiva

A publicação do texto pelo The New York Times fez surgirem diversas manifestações
contrárias à abordagem dada à história da cientista. Nos dias que se seguiram,
correspondências chegaram à redação do jornal questionando o tratamento dedicado
à cientista. Pelo Twitter, a bioquímica colombiana e blogueira especializada em
ciências Adela Torres Daumith7, que se autodefine no microblog como alguém que
“ama a ciência, a ficção e Sherlock Holmes”, produziu uma série de memes em que
apresenta cientistas do sexo masculino a partir de informações como o casamento, a
aparência física, as habilidades domésticas e a dedicação à família.
Os memes, do ponto de vista etimológico, têm sua origem no termo grego mimese,
o que nos faz pensar em imitação. Como concebido atualmente, a expressão é
um neologismo criado por Robert Dawkins, em seu livro O Gene Egoísta, de 1976,
em que ele preconiza a capacidade de replicação própria das novas tecnologias.
Trata-se, portanto, de uma imitação, mas que, usando a sátira e a ironia, em geral,
coloca o dizer numa outra formação discursiva. “No ciberespaço, os memes têm a
ver principalmente com comentários, postagens de fotos, vídeos, paródias que são
comumente relacionados a notícias do cotidiano, provenientes em grande parte de
outros canais midiáticos, sendo estes a televisão, os jornais impressos e o rádio”
(SOUZA, 2001, p. 131).
Nas redes sociais digitais, os memes são encontrados na forma de elementos
verbovisuais, como ferramentas de crítica e humor, que fazem circular discursos. Tais
elementos têm um alto grau de potencialidade de viralizar, dada a capacidade de
convergência e interatividade dos usuários na internet. É uma apropriação capaz de
criar novos sentidos, relacionados a dadas filiações e formações ideológicas. Essa ação
acaba por criar sempre novos laços significantes, como observa Martino (2015):
206
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

[Os memes] seriam uma forma de criar laços, ainda que difusos, entre as
pessoas: reelaborar um “meme” é ser parte de uma comunidade talvez anônima,
mas não menos forte. “Memes” são compartilhados em redes sociais digitais,
de certa maneira, pelo mesmo motivo que pessoas contam piadas ou histórias
que ouviram: para fazer parte do grupo. (MARTINO, 2015, p. 179).

Em termos discursivos, fazer parte de um grupo pode significar estar filiado a uma
determinada formação discursiva ou, então, demonstrar sua presença nesse modo
de dizer. Assim, podemos pensar que são nesses laços que se percebem as vozes que
constituem os memes. Essa materialidade é um lugar propício para que formações
ideológicas sejam (re)construídas, (re)ordenadas e transformadas em outras
postagens, com novos deslizamentos. A possibilidade de “curtir” ou “compartilhar”
um meme também insere esse dizer numa rede de significações, ampliando esse
pertencimento e sua significação.
Dito isso, vamos aos memes de Adela. A ironia, discurso naturalmente polifônico,
só é perceptível quando se compreende que a blogueira escrevia de uma outra
formação discursiva, distinta daquela em que estava The New York Times. Com os
memes, ela pretendia comparar o quanto sexista fora a abordagem do obituário do
jornal, demonstrando que há lugares diferentes na ciência reservados para homens
e mulheres. Os memes de Adela chamam a atenção para a presença de lugares e
dizeres na ciência, na divulgação científica e nos textos biográficos sobre cientistas
determinados pelo gênero do biografado.
São alguns exemplos de postagens sobre o assunto feitos pela blogueira:

“Marido e pai devoto, Darwin balanceava suas obrigações familiares com o


estudo de espécies que trazia de suas viagens”

“Ninguém podia imaginar que atrás daqueles olhos grandes e aparência


frágil de Isaac Newton, se escondia uma das mentes mais prodigiosas do
mundo”

“Ele tinha um corpo de atleta e um rosto de estrela de cinema, mas Oliver


Sacks preferiu a ciência ao glamour”

“Pierre Curie, casado e pai orgulhoso de dois, encontrou tempo para o amor
e a família em sua curta carreira na ciência”

Esses excertos colocam em xeque a diferença que existe entre o que contar sobre
uma mulher e sobre um homem num texto biográfico. Tornam-se irônicos e sarcásticos,
quando características que fazem parte de um pré-construído sobre mulher aparecem
associados a homens. Por uma contradição que se apresenta entre o pré-construído e o
discurso de sustentação, emerge a crítica. A partir do que discutimos na primeira parte
deste texto, o que se tem aí é uma reação de perceber-se “totalmente diferente” em
relação ao que foi enunciado. Assim, nota-se que, enquanto alguns poderiam considerar
207
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

o texto sobre Yvonne um exemplo de humanização, outros percebem-no como sexista.


Dentro das características da comunicação contemporânea, os textos que circulam
nas redes sociais digitais, como o Twitter, têm importante papel na produção de sentidos,
influenciando as mídias tradicionais, como jornais e TVs. São esses textos produzidos por
internautas que permitem contrapor discursos e indicar sentidos que se opõem àqueles
aparentemente evidentes e transparentes. Nesse caso específico, os memes de Adela
Torres são capazes de desvelar não só a formação discursiva em que está o autor dos
textos no The New York Times, como também os pré-construídos sobre homem e mulher
que impactam a biografia e, nesse caso específico, a divulgação científica.
A repercussão dos memes e as críticas que chegaram à redação fizeram com que
os editores do jornal optassem por “corrigir” o texto na internet. Se o jornal impresso
eternizou dizeres sobre Yvonne Brill que enfatizam suas características de esposa e
mãe, o texto disponível online foi alterado para dizer mais sobre a profissional:

Ela foi uma brilhante cientista de foguetes que acompanhou seu marido
de trabalho em trabalho e ficou oito anos fora do mercado para cuidar de
três filhos. ‘A melhor mãe do mundo’, disse seu filho Matthew. Yvonne Brill,
que morreu na quarta aos 88, em Princeton, Nova Jersey, na década de
1970 inventou um sistema de propulsão para ajudar a manter satélites de
comunicação fora de suas órbitas.8

Quando se torna consciente dos sentidos produzidos pelo texto anterior, o jornal
altera sua formulação, embora sem deixar de enfatizar o caráter maternal da cientista ao
abandonar o trabalho (ou parte dele, como o próprio texto diz à frente) para cuidar dos
filhos. Há ainda no trecho reescrito, outra informação distinta da primeira versão: ela criou
um sistema “para ajudar a manter” (to help keep) e não “para manter” (to keep) como
está no texto publicado na versão impressa. O que mudou? No segundo texto, a edição
buscava precisão de informação ou se trata de um acerto que coloca a cientista num
papel de menor protagonismo? Sentidos possíveis. Deslizes. Escapes do dizer. Embate do
“mesmo” que se encontra com o “diferente” quando colocado em circulação.
Os sentidos seriam outros se o início do texto enfatizasse, por exemplo, que “ser a
melhor mãe do mundo”, como disse o filho, significou, na vida da família, dedicar tempo
para brincar com eles e também fazer foguetes. Do mesmo modo, o fato de ser mulher
teria significado de modo diferente se, na versão original ou na modificada, a informação de
que ela incentivou mulheres a se tornarem engenheiras e cientistas aparecesse logo nas
frases iniciais e não quatro parágrafos antes de o texto terminar. A ênfase poderia, ainda,
estar no fato de seu pioneirismo, já que o texto também informa, depois de apresentá-la
como mãe e esposa, que ela foi recusada em engenharia pela Universidade de Manitoba,
no Canadá, porque não havia acomodações para mulheres9. Por essa razão, Yvonne
estudou Matemática e Química.
Uma vida diferente, uma mulher diferente, uma história diferente. Em cada forma
de enunciar produz-se outra biografia, outra história, outro retrato do personagem. Os
dizeres colocados em circulação na rede, em formato de memes ou de manifestações
em forma de comentários aos editores, também produzem outra narrativa biográfica,
pois a história da vida de alguém está sempre em construção:

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Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

Uma história nunca poderá ser completamente conclusiva, por mais


testemunhado que seja seu caráter de verdade. Mas esse deslizamento de
uma história a outra, de uma posição de enunciação a outra, não é nada
além da manifestação da flutuação da identidade, dessa tensão entre o
mesmo e o outro que atravessa a nossa experiência vivencial. (ARFUCH,
2010, p. 186).

Destaque-se ainda que a alteração no texto publicado no site não vem associada
a nenhuma informação para o leitor de que não se trata da mesma versão da edição
impressa, tampouco que houve atualização. Ao final, aparece em letras menores
apenas a menção da página em que o texto foi publicado no jornal. Nova enunciação
em jogo, afinal, acessam-se histórias e sentidos diferentes sobre a mesma pessoa
num e noutro suporte, sabendo-se ou não da polêmica causada pelo texto inicial.
Cada um dos textos, contudo, sem a menção da alteração sofrida, mantém-se como
independente, como uma história com começo, meio e fim, com um sentido que tenta
se estabilizar no apagamento da alteração pela qual passara e das outras formas
possíveis de ser enunciado.
Esses memes ou outras formas de narrativa surgidas com as redes sociais digitais
permitem acessar vozes que constituem os dizeres de quem pretende transmitir a
impressão de uma vida como unidade, mas que só existe e toma forma pelo relato
que a organiza. A vida de alguém só é possível de ser materializada numa biografia a
partir do que é possível de ser formulado pelo sujeito-biógrafo, inscrito e interpelado
por uma rede de forças.

(Re)pensar sempre o (já)dito

O ocorrido com o The New York Times mostra que a história de alguém nunca
estará finalizada numa narrativa ou, como lembra Pierre Bourdieu ([1986] 2006),
estamos sempre diante de uma ilusão biográfica. Como discurso, os gêneros
biográficos apenas fazem memória de uma vida, reorganizando e lhe dando sentido,
a partir de uma historicidade, identidade e condições de produção. Nesse sentido, as
redes sociais digitais e a interatividade facilitam o trânsito dos sentidos, a circulação,
ainda que sem paridade, de diversos dizeres. As novas formas de comunicação
expõem formas de dizer, comparam-nas, organizam-nas de outros modos a partir de
formações discursivas possíveis e materializadas.
Além disso, o exemplo sobre o qual refletimos neste texto também nos ajuda a
pensar como os pré-construídos, muitas vezes, são o que mais se mostram a partir
dos recursos literários empregados na narrativa, o que exige de quem se propõe a
analisá-la, um olhar que circule entre o estético e o ideológico, entre o estrutural e
o histórico. Refletir sobre ideologia e como os discursos se constituem “pela” e “na”
história também são maneiras de ajudar a escrever não só (sobre) a vida de um
personagem da vida diária, mas também compreender quem é o sujeito-jornalista
que pretende contar a vida de um outro ser humano.

209
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

Notas
1 Sobre a relação dos perfis com os critérios de noticiabilidade e os valores-
notícia ver: Ormaneze, 2013. Disponível em: http://www.fnpj.org.br/soac/ocs/
viewpaper.php?id=983&print=1&cf=26.
2 Nos estudos discursivos, a subjetividade não pode ser compreendida apenas
como uma oposição à objetividade ou mesmo como originária no próprio sujeito. Para
autores como Pêcheux e Foucault, ela deve ser pensada a partir de uma relação do
inconsciente, com a historicidade e a ideologia.
3 Destacamos aqui o fato de que o personagem é “colocado” numa determinada
posição, uma vez que entendemos a produção jornalística como uma criação de
sentidos, uma construção discursiva da realidade.
4 Sobre as categorias de “mesmo” e “diferente” atribuídas ao porta-voz, nas
quais nos inspiramos para essa reflexão, ver Zoppi-Fontana (2016, p. 19-27).
5 No original: “She made a mean beef stroganoff, followed her husband from
job to job and took eight years off from work to raise three children. ‘The world’s
best mom’, her son Matthew said. But Yvonne Brill, who died on Wednesday at 88 in
Princeton, N.J., was also a brilliant rocket scientist who in the early 1970s invented a
propulsion system to keep communications satellites from slipping out of their orbits.”
6 No original: “She left the company in 1958, however, to care for her young
children, keeping her hand in the field by working part-time as a consultant for the
FMC Corporation. In 1966, she went back to work full time, taking a job at RCA’s rocket
subsidiary. Soon she doing the work that won international acclaim.”
7 O perfil de Adela Torres Daumith no Twitter está disponível em: https://twitter.
com/daurmith. O blog está em: http://daurmith.blogalia.com/.
8 O texto completo está em: http://www.nytimes.com/2013/03/31/science/
space/yvonne-brill-rocket-scientist-dies-at-88.html?pagewanted=all. No original: “She
was a brilliant rocket scientist who followed her husband from job to job and took eight
years off from work to raise three children. “The world’s best mom,” her son Matthew
said. Yvonne Brill, who died on Wednesday at eighty-eight in Princeton, N.J., in the
early nineteen-seventies invented a propulsion system to help keep communications
satellites from slipping out of their orbits.
9 No obituário, esta informação aparece no seguinte parágrafo: “It was a
distinction she earned in the face of obstacles, beginning when the University of
Manitoba in Canada refused to let her major in engineering because there were no
accommodations for women at an outdoor engineering camp, which students were
required to attend.”

Referências

ARFUCH, Leonor. O espaço biográfico: dilemas da subjetividade contemporânea. Rio


de Janeiro: EdUERJ, 2010.
210
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

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______. Yvonne Brill, a Pioneering Rocket Scientist, Dies at 88. The New York Times,
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ZOPPI-FONTANA, M. Cidadãos modernos: discurso e representação política. 2. ed.
Campinas: Ed. da Unicamp, 2016.

211
“Em um mundo fragmentado
é preciso organizar a memória”

Alexandre Zarate Maciel

1. Estratégias narrativas no livro-reportagem brasileiro

Organizar a narrativa de um livro-reportagem envolve estratégias de sedução do


leitor. É preciso desenvolver uma abertura impactante e o final não pode ser menos
atraente. O volume grande de páginas exige ganchos de atração constantes, em
geral no início e no encerramento dos capítulos. Descrições vívidas de ambientes e
personagens, panos de fundo históricos e humor são alguns elementos bem-vindos.
Todos esses artifícios, no entanto, não são meros acessórios. Devem contribuir para o
leitor comungar com o jornalista que escreveu a obra os resultados de uma pesquisa
exaustiva e paciente a partir de fontes orais e documentais. Um esforço de compreensão
conjunto de problemáticas sociais complexas e os personagens que as constituem.
Neste artigo, os jornalistas que escrevem livros-reportagem entrevistados, Zuenir
Ventura, Fernando Morais, Lira Neto, Caco Barcellos, Daniela Arbex, Ruy Castro,
Adriana Carranca, Laurentino Gomes, Leonencio Nossa e Rubens Valente demonstram
consciência sobre os mecanismos de construção social da realidade que engendram
em suas respectivas obras e opinam a respeito do polêmico conceito de jornalismo
literário e sobre a validade da inserção do repórter na narrativa. Ao mesmo tempo,
tentam descrever e definir suas estratégias narrativas. Em comum, defendem práticas
jornalísticas, independentemente do suporte midiático, identificadas com a pluralidade
das visões sobre o que é convencionado como “real” e compromissadas com a reflexão
mais contextualizada dos múltiplos aspectos da memória brasileira.
Em meio às reflexões desses jornalistas-escritores, coletadas em entrevistas qualitativas
semi-estruturadas e em profundidade, entram no debate as ideias de pesquisadores que
procuraram compreender as particularidades das formas narrativas no jornalismo e no
livro-reportagem. Lima (2009) defende as posturas de um narrador mais atento à visão
contextualizada da contemporaneidade do que ao factual. Bourdieu (2000) alerta sobre a
ilusão biográfica e Vilas Boas (2006) tece ponderações críticas a respeito das estratégias
narrativas dos biógrafos brasileiros. Sob a ótica de Bulhões (2006), estão os mecanismos
de sedução do texto jornalístico em livro, que muitas vezes se amalgama com a literatura.
Como lidam por longo tempo com o tema ou personagem central dos seus respectivos
livros, os jornalistas escritores têm condições de refletir com acuidade sobre a linha de
força central que norteará sua obra e pensar sobre as melhores maneiras de dispor tantos
aspectos apurados em forma de uma narrativa coerente e atraente.

2. “Você tem que ser denso e ao mesmo tempo leve”: formas de narrar

Cada jornalista autor de livros-reportagem entrevistado toma por base o seu


212
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

arsenal de recursos narrativos, muitas vezes lapidados na experiência do jornalismo


diário, para dar forma atraente e consistente a todo material que apurou durante
anos. O estilo narrativo é o primeiro assunto, que engendra nas questões relativas
à consciência dos autores de que estão elaborando um livro-reportagem com
determinados propósitos e efeitos e atentos também às peculiaridades, por exemplo,
do fazer biográfico.
Informar e seduzir o leitor o tempo inteiro é a meta declarada de Fernando Morais
(2016, informação verbal)1: “Se eu fosse recomeçar a minha carreira de autor eu
escreveria livros de aventuras para jovens. Você pega, por exemplo, um Corações
Sujos (2000), a abertura: os quatro caras atravessando a cidade, à noite, com espada
na mão, e aquilo é real, tem foto, sabe?”. Outro exemplo de abertura impactante citado
por Fernando é o de Olga (1993), que lembra um thriller, descrevendo a “menina
bonitinha que entra na cadeia com um revólver escondido na bolsa e bota na cabeça
do guarda para poder tirar o namorado da prisão”. O escritor diz que gosta de inserir
ação nos seus livros, pois “seduz, agarra mais o leitor”. Mas pondera que é preciso
não “forçar a barra”.
Leveza, consistência, visibilidade, velocidade, precisão e multiplicidade. As Seis
propostas para o próximo milênio sugeridas por Ítalo Calvino (1990) representam,
para Lira Neto (2016, informação verbal)2, “uma Bíblia para qualquer pessoa que
tente viver de escrever”. O jornalista afirma que, a princípio, parecem antagônicas as
duas primeiras categorias, mas, no livro-reportagem, segundo Lira, “você tem que ser
denso, ao mesmo tempo em que tem que ser leve”, algo que ele diz buscar de forma
constante. Já a questão da visibilidade na narrativa é entendida por Lira Neto como
as técnicas de “levar o leitor para dentro da cena a partir de certas sugestões visuais
no texto”, que são fruto de muita pesquisa iconográfica.
Velocidade pode ser mais bem traduzida, no caso do livro-reportagem, pela
necessidade de criar um ritmo interno nas formas de narrar, como explica Lira Neto
(2016, informação verbal): “No meu caso, se você olhar os capítulos de todos os
meus livros, todos eles têm mais ou menos o mesmo número de páginas. Todos têm
certa lógica interna, todos eles começam com uma cena visual”. O escritor se diz
obsessivo pela precisão, lançando mão constantemente de dicionários de época para
encontrar “aquela palavra que quando você troca uma pela outra ilumina o texto”.
Por fim, a última característica, a da multiplicidade, é entendida por Lira Neto como a
necessidade de buscar múltiplas vozes a partir do mesmo objeto. Ele conclui que, a
cada obra, foi tentando aperfeiçoar seu estilo tendo esses princípios como norte. Lira
Neto é autor, entre outros livros, das biografias Padre Cícero: poder, fé e guerra no
sertão (2009), Maysa: só numa multidão de amores (2007) e de José de Alencar, em
O inimigo do rei (2006), além da trilogia sobre o ex-presidente Getúlio Vargas, Getúlio
(2012, 2013, 2014). Em 2017 lançou a primeira parte de Uma história do samba.
Na ótica de Lima (2009, p. 34), pesquisador pioneiro da área no Brasil, muitas
vezes, o livro-reportagem é fruto da inquietude do repórter de “realizar um trabalho
que lhe permita utilizar todo o seu potencial de construtor de narrativas da realidade”.
Lima (2009, p. 102) acredita que “assumir a relatividade de qualquer visão e tentar,
dentro desse limite, abarcar com o máximo de fidelidade possível a compreensão
total da realidade – nas câmeras interpenetradas que se puder – surge como o novo
213
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

desafio do jornalismo”. Assim, o jornalista deveria substituir o “ranço reducionista” da


objetividade por novos níveis de compreensão do real.
Tanto Zuenir Ventura quanto Ruy Castro afirmam que o seus estilos foram forjados
em anos de jornalismo impresso, em um período de liberdades mais aparentes. No
caso de Zuenir Ventura (2016, informação verbal)3, autor de 1968: o ano que não
terminou (2013), Cidade partida (1994) e Chico Mendes: crime e castigo (2003),
identifica-se uma forma de narrar bem próxima à da crônica, marca que ele foi
percebendo à medida que seus próprios colegas de profissão a apontavam: “Eu já
tinha uma embocadura nas matérias, já por influência dessa questão literária. Não
foram só os grandes escritores que me influenciaram, foi o ambiente de jornalismo
aberto para a crônica”.
Ruy Castro (2016, informação verbal)4, por sua vez, autor das biografias de
Carmem Miranda, Carmem (2005), Garrincha - A estrela solitária (1995) - e Nelson
Rodrigues - O anjo pornográfico (1992) -, conta que, no início da carreira, assinava com
o nome verdadeiro apenas artigos que considerava sérios. O escritor disfarçava-se
atrás de pseudônimos quando arriscava textos mais bem-humorados. Foi o jornalista
e polemista Paulo Francis quem lhe alertou que ele deveria apostar no estilo mais
solto como característica central do seu trabalho, sem medo de assumir o humor na
narrativa. “Sempre minha intenção é escrever sério sobre tudo, mas eu não consigo
evitar, de repente, uma observação mais crítica, mais jocosa, digamos assim, escape
e se intrometa no que eu estou escrevendo”. (CASTRO, 2016, informação verbal)
Daniela Arbex (2016, informação verbal)5 surpreendeu o mercado editorial
com o relato doloroso da morte de 60 mil internos do Hospício de Barbacena em
Holocausto brasileiro (2013). Ela acredita que exista, até mesmo, um jeito feminino
de narrar que transparece na escolha dos temas, das abordagens, do olhar e na
forma como os personagens aparecem no livro-reportagem: “No caso do Holocausto,
o que mais me tocou? As mães que não puderam alimentar seus filhos. Porque eu
estava amamentando o meu. E eu chegava em casa e ficava: ‘Meu Deus, como se
arranca isso de uma mãe?’.” Daniela Arbex (2016) também tributa seu estilo de
narrar à experiência do jornalismo, apostando bastante na descrição de ambientes
e personagens, dando “rosto para os números”: “Sempre quis mostrar para o leitor
como aquela pessoa se sente, o sentimento daquela pessoa. Têm histórias que batem
na veia, têm outras que não. Agora, qual é a mágica? Se a gente soubesse, a gente
teria feito”. A obra mais recente de Daniela Arbex, Cova 312 (2015), venceu o Prêmio
Jabuti de melhor livro-reportagem.
Para Caco Barcellos6 (2016, informação verbal), o leitor promove uma verdadeira
“viagem” quando lê um livro-reportagem, embora acredite ser arriscado opinar se esse
formato de jornalismo representa algo tão transformador a ponto de levar a mudanças
de atitude. “É um grande privilégio para o leitor ter a chance de um mergulho de 30
anos na vida de alguém naquelas páginas ali. Lendo confortável, seguro”. O leitor
conviveria, em seus livros-reportagem, como Rota 66 (1992) e Abusado (2003), com
os submundos opostos, respectivamente, dos policiais que matam e dos traficantes
dos morros cariocas.

214
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

Caco Barcellos salienta que a narrativa, em sua opinião, “tem sua importância
essencial”, mas é preciso que envolva um conteúdo contundente e bem apurado. Isso
não o impede de buscar incessantemente cativar o leitor e também o seu telespectador.
“Claro, não há a possibilidade de ser algo desonesto, porque aí não vale. Mas sendo
correto, por que não ser atraente, não é? Cada reportagem ser um pequeno filme, ser
cinema puro. Uma tentativa de conquista”. (BARCELLOS, 2016, informação verbal).
Barcellos revela-se obcecado pelo estilo narrativo de Truman Capote e guarda com ele
várias edições rabiscadas de A sangue frio (1996).
Teórico da área de Letras e Literatura, Bulhões (2006, p. 45) explica, ao analisar
livros-reportagem como os de Caco Barcellos, que a “concessão ao desempenho de
uma atitude individualizada, do eu que reporta” garante à grande reportagem o lugar
simbólico de “ambiente mais inventivo da textualidade informativa”. Assim, levando em
conta que o jornalista autor opera com formas de “dilatação do evento noticioso”, a
reportagem, particularmente na forma de livro, “pode estender-se como uma realização
descritiva, na composição astuciosa de um personagem ou na coloração de um cenário”.
Esses aspectos, além de demonstrar uma contraposição aos formatos tradicionais do
jornalismo, atraem o leitor pela perspectiva da identificação.
A experiência de sempre “ir para rua” e viajar a outros países de culturas diferentes
como repórter especial do jornal O Estado de S.Paulo, além de escrever obras como
o livro-reportagem infantil Malala: a menina que queria ir para a escola (2015) e o
adulto O Irã sob o Chador (2010) definiu o estilo narrativo de Adriana Carranca (2016,
informação verbal)7: “Não tem matéria sem descrição, sem personagem. Isso marcou
completamente. Eu não consigo fazer matéria que não seja convivência”.
Quando está escrevendo um livro, Adriana Carranca diz pensar o tempo inteiro em
como levar o leitor para dentro da história, “algo quase físico”, de “pegar pelo braço”.
Na tentativa de despertar sensações sinestésicas em quem lê, principalmente as
crianças, a jornalista costuma anotar vários detalhes que comporão os ambientes de
fundo dos seus livros: “Eu anoto tudo. Cheiro, clima, calor, roupas, se tem quadros.
Eu tento observar coisas que me informam sobre aquele personagem”. (CARRANCA,
2016, informação verbal)
A relevância deste tipo de olhar já havia sido ressaltada por Wolfe (2005, p.37),
quando salientou a necessidade do repórter mergulhar nos ambientes que pesquisa.
“Parecia absolutamente importante estar ali quando ocorressem as cenas dramáticas,
para captar o diálogo, os gestos, as expressões faciais, os detalhes do ambiente”. O
jornalista e pesquisador acrescenta, referindo-se não só às obras dos escritores do
chamado new journalism americano, mas a várias que os antecederam, que a ideia
era dar a descrição objetiva completa e “mais alguma coisa”. Algo aproximado do que
o leitor espera de um romance: “a vida subjetiva ou emocional dos personagens”.
Ter trabalhado em revistas como Veja ajudou Laurentino Gomes (2016, informação
verbal)8 a transpor para a narrativa do livro uma estrutura em que cada capítulo pareceria
justamente uma reportagem de magazine: “Por isso que eu não faço uma história
cronológica, linear. Começou aqui com o descobrimento, depois teve a colonização, a
Inconfidência Mineira, Ciclo do Ouro...os meus capítulos são meio que aleatórios”. A
ideia é fechar assuntos em cada um deles, de forma que, se o leitor ler um capítulo do
215
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

meio da obra, vai entender sem ter lido o início. O autor tenta jogar luzes sobre o tema
central a partir de diversos ângulos, cada qual contemplado em um capítulo. “Então são
diferentes focos de um mesmo assunto que na hora que você lê todos, vira um mosaico.
Acho que esse é um estilo meu. À primeira vista, os capítulos parecem aleatórios, mas,
na soma, conseguem explicar um fenômeno, um acontecimento”. (GOMES, 2016,
informação verbal). A trilogia 1808, 1822 e 1899 (2007, 2010, 2013) já superou a
vendagem de 2 milhões de exemplares. No momento, Laurentino Gomes prepara uma
nova série de três livros, desta vez a respeito da escravidão.
Jornalista da Folha de S.Paulo, Rubens Valente lidou com um tema árido, difícil de
explicar em todas as minúcias, em seu primeiro livro, Operação banqueiro (2014), a
respeito do caso do proprietário do banco Opportunity, Daniel Dantas, que, apesar de
envolvido em escândalos financeiros, foi inocentado pelo Supremo Tribunal Federal
(STF). Rubens Valente (2016, informação verbal)9 exercitou o didatismo e a descrição
minuciosa e paciente dos fatos para inserir o leitor naquela narrativa complexa, sobre
fraudes econômicas. Ele admite que a preocupação com a clareza, o que aproxima
a narrativa de uma forma mais objetiva do que “literária”, pode tornar o texto mais
“truncado”, ou “seco”.
É preciso tomar muito cuidado, segundo Valente (2016, informação verbal),
quando se está tratando de temas como “honra, intimidade, direito de presunção de
inocência”, já que seriam questões que não permitiriam maiores arroubos criativos de
linguagem. Uma interpretação mais adjetivada de algum fato que envolve o jornalismo
sobre crimes de corrupção pode abrir brecha para uma penalização do jornalista na
Justiça. De toda forma, Rubens Valente salienta que o seu maior desafio é construir
um texto “agradável, informativo, sem ser opinativo, sem transpor as barreiras das
técnicas jornalísticas e seus pilares, sem tirar conclusões apressadas”. Em seu livro
mais recente e volumoso, Os fuzis e as flechas (2017), sobre a situação dos indígenas
durante a ditadura militar brasileira, o jornalista tenta colocar em prática de forma
acurada esses procedimentos. Amealha uma imensa pesquisa documental com
dados de entrevistas, em uma narrativa ágil.

3. “Penso em que música, ritmo, a obra vai ter”: consciência narrativa

Como lidam por longo tempo com o tema ou personagem central dos seus
respectivos livros, os jornalistas-escritores entrevistados têm condições de refletir
com mais acuidade do que um repórter de jornal diário a respeito da linha de força
central que norteará cada obra. Quando falam da construção narrativa dos seus
livros, eles costumam argumentar longamente, e com consciência, sobre o “espírito”,
a mensagem central que esperam ver compreendido pelos seus leitores. Os biógrafos,
particularmente, buscam raciocinar a respeito das formas de compreensão psicológica
dos seus personagens. Ou seja, estes escritores demonstram um claro conhecimento,
fruto de autorreflexões constantes, a respeito dos mecanismos de interpretação da
realidade que articulam.
Com a missão de descrever o rio Amazonas desde a sua foz até quando desemboca
no mar, com todos os elementos humanos e problemas ambientais que encontrou
216
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

ao longo do seu caminho, no livro O rio (2010), Leonencio Nossa (2016, informação
verbal)10 teve que fazer oito excursões, cada vez percorrendo um trecho e até
retornando para alguns. Quem lê o livro, no entanto, segue a viagem uma única vez, da
origem do rio até o Oceano Atlântico. O jornalista explica que a fluência narrativa que
tentou engendrar é “como se tivesse incorporado a fluência do Amazonas na escrita”.
Nossa procurou contestar uma “visão exótica da Amazônia” que aparece em tantas
obras e mostrar uma “Amazônia em que o ribeirinho, o índio, pudessem ser descritos
como personagens, com voz, uma voz única, uma voz de poder por meio da cultura”
(NOSSA, 2016, informação verbal). O jornalista também já descortinou os conflitos
da região do Araguaia em Mata: o major Curió e as guerrilhas no Araguaia (2012)
e prepara atualmente uma biografia não autorizada do empresário da comunicação
Roberto Marinho.
Motta (2013, p.198) pondera que “a estratégia textual principal do narrador realista
é provocar o efeito do real, fazer com que os leitores e ouvintes interpretem os fatos
narrados como verdades, como se os fatos estivessem falando por si mesmos [grifos
do autor]”. Assim, o jornalismo ofereceria ao leitor, elemento ativo no processo de
interpretação, “um lugar empírico de onde se pode observar o mundo, compreender
o passado e especular sobre o futuro”. Se o jornalista de redação opera diariamente
vários desses efeitos de forma desfragmentada, o profissional que escreve um livro-
reportagem lança mão dos mesmos artifícios, talvez de maneira mais consciente,
com a vantagem da distância temporal e até mesmo mais tempo para estudar suas
estratégias de sedução.
Entre os estratagemas de criação do efeito do real a citação é, segundo Motta
(2013, p.201), um dos recursos utilizados fartamente “para dar a impressão de que
são as pessoas reais que falam, de que o jornalista não está intervindo”. Mas, ao
citar, “o jornalista pinça da fala da fonte aspectos que pretende ressaltar dando outra
dimensão ao discurso, dirigindo a leitura”.
Para a elaboração do livro Abusado, Caco Barcellos procurou basear-se ao máximo
no jeito de falar das pessoas. O jornalista comenta que, quando entrevistava um
personagem marginal no morro, ele já “dava o romance pronto”. “Ele não diz ó: ‘Você
não sabe, essa minha noite foi uma das piores do mundo’. Não, ele fala assim: ‘Ó, aí.
Oito horas da noite. Estou sentando aqui na saaala. Não acredito!’. E pá, vai falando.
‘Ih, um tiro!’ Até chegar ao tiroteio real ele já te deu o diálogo completo” (BARCELLOS,
2016, informação verbal). Na hora de botar no papel as entrevistas, Caco Barcellos
voltava várias vezes a fita gravada para captar a entonação ideal do sotaque carioca
e as gírias. Ou seja, tentou rearticular o que foi narrado com a mesma vivacidade e
oralidade que ouviu da fonte entrevistada. Humanizou-a em personagem na narrativa.
Sob a perspectiva dos procedimentos narrativos, Medina (2003, p. 52) aponta
que pesa para o leitor de uma narrativa o grau de identificação com os anônimos e
suas histórias de vida. “De certa forma a ação coletiva da grande reportagem ganha
em sedução quando quem a protagoniza são pessoas comuns que vivem a luta do
cotidiano”. Em seus livros e mesmo no seu trabalho na televisão, Caco Barcellos parece
estar atento ao receituário considerado ideal por Medina (2003, p. 53): “Descobrir essa
trama dos que não têm voz, reconstituir o diário de bordo da viagem da esperança,

217
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

recriar os falares, a oratura dos que passam ao largo dos holofotes da mídia”.
Falando, por sua vez, como biógrafo, Lira Neto (2016, informação verbal)
esclarece que, em primeiro lugar, institui o narrador do livro e que “música, ritmo”,
a obra vai ter: “Cada livro tem uma linguagem diferente no sentido de que ele é
contado a partir de uma perspectiva, de um narrador, a partir de um eu narrativo”. O
jornalista sente que já consegue estruturar uma narração quando percebe que pode
“materializar o personagem na sua frente”: “Se ele sentasse aqui na sua frente você
saberia como ele deveria falar. Se ele tem algum tique nervoso. Se ele chegasse
em sua casa o que você serviria para ele comer?”. Assim, cria-se uma “intimidade
necessária” na qual não há “nenhum distanciamento entre o pesquisador e o seu
objeto de estudo”. Esse personagem vive, na ótica de Lira Neto, uma relação quase
“incestuosa” com o jornalista que busca compreendê-lo para narrá-lo, já que ele
“invade sua vida na perspectiva em que tudo o que você faz ao longo do seu dia você
está pensando nele”.
No texto A ilusão biográfica, Bourdieu (2000) aponta dilemas essenciais para
quem se propõe a narrar histórias de vida. Esse é justamente o caso dos jornalistas
biógrafos, que têm grande aceitação no mercado editorial brasileiro. Mas não deixa
de ser uma questão séria para os autores de livros-reportagem em geral, já que
todos trabalham com reconstituição de trajetórias de alguma forma. Para Bourdieu,
a “ilusão” reside no fato do biógrafo acreditar, muitas vezes, que está organizando a
narrativa de uma história em ordem cronológica, segundo a lógica de “um começo,
uma origem, no duplo sentido de ponto de partida, de início, mas também de princípio,
de razão de ser, de causa primeira, até seu término, que também é um objetivo”
(BOURDIEU, 2000, p.184).
Bourdieu (2000, p.190) acredita que não é possível compreender uma trajetória
sem construir previamente “os estados sucessivos do campo no qual ela se desenrolou”
e, também, “o conjunto de relações objetivas que uniram o agente considerado ao
conjunto de outros agentes envolvidos no mesmo campo e confrontado com o mesmo
espaço dos possíveis”. Ele pondera que essa “ilusão biográfica” de compreender
uma vida “como uma série única e por si suficiente de acontecimentos sucessivos”,
rigidamente associados a um “sujeito”, ou “nome próprio”, seria uma postura tão
estranha quanto “tentar explicar a razão de um trajeto de metrô sem levar em conta a
estrutura da rede, isto é, a matriz das relações objetivas entre as diferente estações”
(BOURDIEU, 2000, p.189-190).
Como desafio pessoal, Ruy Castro (2016, informação verbal), ao escolher um
personagem para biografar, sempre pensa que abordagens ainda não foram feitas
sobre ele. O jornalista conta que, quando teve a ideia de interpretar a vida de Carmem
Miranda, pensou em duas questões que nenhum outro biógrafo tinha aprofundado
sobre a cantora. A primeira missão era não ficar apenas concentrado na Carmem
“norte-americana”, que está fartamente documentada e, sim, lançar luzes sobre a sua
vida brasileira. Outro foco de Ruy Castro foi descrever o impacto que a dependência
química de álcool e remédios causou no organismo de Carmem Miranda, já que esses
abusos foram cruciais para a sua morte precoce. “Essas duas coisas que eu poderia
fazer em relação à Carmem era o que me empolgavam. Na época, eu não sabia nem
218
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

por onde começar. Isso é uma coisa que, de cara, vai tornar a sua biografia diferente
de todos os que já fizeram até hoje”. (CASTRO, 2016, informação verbal)
Alguns pesquisadores percebem certa pretensão de relato de uma verdade
absoluta, comum em biografias brasileiras. Essa tendência foi apontada pelo
pesquisador Sérgio Vilas Boas, na sua tese defendida na USP em 2006, Metabiografia
e seis tópicos para aperfeiçoamento do jornalismo biográfico, na qual ele concentrou-
se no estudo das biografias. A partir das leituras de obras de Ruy Castro, Fernando
Morais e Cláudio Bojunga, autor de JK: o artista do impossível, critica alguns aspectos
recorrentes nas biografias brasileiras até então publicadas e estimula que os autores
deixem mais transparentes seus processos, dúvidas, angústias para os seus leitores,
já que estabelecem com eles uma relação diferenciada.
Em um contrato ideal com o leitor, mais transparente, seria recomendável, segundo
Vilas Boas (2006), explicar os contextos em que esses documentos foram gerados
e, principalmente, as múltiplas formas como foram encadeados e organizados pelo
autor tantos depoimentos, por vezes contraditórios. “Ou seja, essa massa bruta,
fragmentária e lacunar dos documentos (de todos os tipos e formas) é passível de
explicitação pelo eu-convincente, rumo à maior transparência”. (VILAS BOAS, 2006,
p.166-167). O pesquisador faz uma provocação com base na psicanálise. Ao afirmar
que estão apenas “executando o seu trabalho e averiguando o que podem para
montar um painel convincente sobre a vida dos personagens”, os jornalistas-autores
de biografias estariam suprimindo o seu “eu-autor-autoconsciente-solidário” (VILAS
BOAS, 2006, p.162). Ou seja, sutilmente negando que criaram qualquer tipo de
vínculo, seja negativo ou positivo, com os seus personagens.
Na ótica de Fernando Morais (2016, informação verbal), “é muita pretensão,
muita arrogância, muita soberba, alguém dizer que biografia é definitiva”. Ele conta
que ficou surpreso ao visitar uma grande livraria nos Estados Unidos e se deparar não
com uma prateleira para o gênero, o que é mais comum no Brasil, mas, sim, com um
andar inteiro que acomodava, inclusive, uma tradução do seu livro Olga. “Naquela
época eu contei 19 ou 20 biografias diferentes da Jackeline Kennedy”.
Rubens Valente (2016, informação verbal) acrescenta que, em certo sentido,
“a história sua é dos outros também” sendo, portanto, uma “tentação autoritária
controlar o que os outros acham de você”. Ele aplaude a decisão do Supremo Tribunal
Federal (STF) de derrubar a censura prévia às biografias não autorizadas, pois, na
sua concepção, “o mundo atual é o da transparência, da informação disseminada, de
uma sociedade livre que partilha experiências”. O papel crucial do jornalismo como
uma instituição voltada para a preservação da memória também é frisado por Rubens
Valente. “Em um mundo fragmentado, de informação rápida que entra e sai, é preciso
agregar, consolidar, lidar, organizar a informação. E isso é a memória, trabalhar a
memória”. Essas são, justamente, algumas das principais vantagens na produção de
livros-reportagem.
Para Lima (2009, p.85) o jornalista escritor estaria “livre do rancor limitador da
presentificação restrita” e poderia avançar, com mais paciência, “para o relato da
contemporaneidade, resgatando informações do tempo algo mais distante do de

219
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

hoje, mas que, todavia segue causando efeitos neste” (LIMA, 2009, p.85). Pode-se
concordar com os benefícios óbvios do prazo mais dilatado para a pesquisa jornalística
documental e oral, mas não sustento que seja necessariamente determinante para
que o jornalista que se aventura nessa seara não incorra em uma visão estereotipada
do real. Mais espaço para discorrer suas interpretações e mais tempo para coletá-
las e organizá-las não significa que o autor de determinada biografia, por exemplo,
entenderá ou explicará com mais precisão e de forma multiangular, determinados
aspectos contraditórios de uma personalidade ou fato histórico. Uma biografia pode
contribuir, por exemplo, para detratar de forma injusta a personalidade de determinada
pessoa, apoiada em um discurso de meticulosa objetividade jornalística, pensado
com calma.
Zuenir Ventura (2016, informação verbal) abordou uma questão importante,
a inserção do repórter na narrativa. Para entender melhor o Rio de Janeiro fora do
imaginário da Zona Sul, onde reside, Ventura mergulhou em um baile funk em um
trecho de Cidade Partida. Interessado no comportamento da geração brasileira do
início do século XXI, inseriu-se em uma imensa rave, experiência relatada em um
capítulo do livro 1968:o que fizemos de nós. Zuenir Ventura (2016, informação verbal)
confessa que, no seu primeiro livro, 1968: o ano que não terminou, procurou narrar
os acontecimentos daquele ano de forma mais contida, mas em Cidade Partida foi
inevitável o retorno do cronista que comenta suas impressões, seu choque cultural:
“Para mim foi uma experiência existencial, não digo profissional. Mas foi incrível,
porque imagina, eu moro aqui a 30 minutos de Vigário Geral e é um outro universo,
totalmente diferente”. Ventura (2016, informação verbal) conta que chegou a pensar
em alugar um casebre para conviver mais diretamente com a comunidade, mas desistiu
da ideia: “Eu sou de Ipanema, pô. E esse choque realmente eu tenho que revelar para
o leitor, não fingir que estou achando tudo natural”. São limites da imersão.
Como demonstram os depoimentos, elaborar um livro-reportagem envolve uma série
de questionamentos internos, que, no fundo, são questões do campo jornalístico, refletidas
de forma coletiva. Mesmo, talvez, sem conhecer plenamente os meandros teóricos
que marcaram a superação da teoria da verdade como correspondência para a teoria
consensual da verdade, os jornalistas escritores entrevistados parecem estar atentos à
concepção de que a construção da notícia e, principalmente do livro-reportagem, é um
trabalho autoral, mas que só se completa com as ponderações dos leitores. Todo processo
de elaboração de um livro-reportagem pode ter como ponto central essa reflexão calcada
no impacto que aquela obra terá junto à comunidade interpretativa, numa observação e
interpretação conjunta da realidade na qual o jornalista e o leitor são chamados a serem
parceiros.

4. “O personagem já está lá, criadinho para a gente”: jornalismo literário?

Impossível concluir esse debate sobre formas narrativas sem problematizar o


polêmico conceito de jornalismo literário - aquele que herdaria da literatura elementos
como a descrição impressionista dos ambientes e personagens, narrativas de ação,

220
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

resgate de diálogos e até mesmo fluxo de consciência psicológica. O chamado new


journalism norte-americano deixou uma provocação no ar, chegando ao extremo do
jornalismo de sensações, com nomes como Hunter Thompson e o seu estilo gonzo.
O caso do jornalismo brasileiro, muito marcado pela participação de escritores nas
redações antes da chegada do lead e das reformas mais padronizadoras dos anos
1950, leva à necessidade de discutir como os jornalistas escritores brasileiros pensam
a questão em uma ótica nacional. E, principalmente, na perspectiva específica do
território suposto de mais liberdades narrativas, que é o livro-reportagem.
Quando trataram sobre o tema, os entrevistados tentaram equilibrar as palavras,
em busca de uma definição mais precisa sobre as suas próprias práticas. É o caso
de Fernando Morais (2016, informação verbal). “Olha, jornalismo literário, na minha
opinião, não tem nada a ver com jornalismo ficcional. Tem que ver com você dar
um tratamento literário a fatos reais apurados por você. É um tratamento elegante”.
Descrente na possibilidade real, salvo algumas exceções de sua geração, de uma
prática diária dessa modalidade, Fernando Morais crê que o livro-reportagem é o
espaço ideal para promover experiências de linguagem, já que o jornalista pode ficar
“três, quatro dias, procurando uma palavra”.
Preocupado com os modismos da profissão, Leonencio Nossa (2016, informação
verbal) questiona certo senso comum do que se entende por “literário”, geralmente um
texto permeado de floreios. Em tom de deboche, Leonencio Nossa brincou que o fato
de o jornalista se colocar como “literário” pode até servir como lógica para a chefia de
redação liberá-lo para ter mais tempo para produzir matérias. “O negócio é o texto, é a
inspiração. Daí você pensa: beleza, não precisa de apuração não, porque ele não apura
bem, mas sabe escreeeverr. Tenho que sentiiir. Tenho que me inspirarrr”.
Brincadeiras à parte, Leonencio Nossa acredita que o autor de livros-reportagem
deve procurar, sim, escrever da forma mais simples possível. Ele lembra, inclusive,
que o texto do escritor Graciliano Ramos é seco, direto, sem adjetivos. Porém, o cerne
da questão, em sua opinião, não é a forma do texto, mas a necessidade de uma
apuração mais acurada no jornalismo, que precisaria de “textos muito profundos e
que sejam feitos com um tempo maior”. (NOSSA, 2016, informação verbal)
Na ótica de Adriana Carranca (2016, informação verbal), é possível, por exemplo,
descrever melhor os ambientes e personagens no livro-reportagem, por isso certa
comparação com os elementos da literatura. Mas há algumas diferenças de olhar
entre o autor ficcional e o jornalista. “A casa onde o personagem mora, o autor de
ficção cria aquela casa tudo arrumadinho. A gente faz o contrário, que é observar o
personagem, ele já está lá, criadinho para a gente”. Como se depara constantemente
com realidades múltiplas e diversificadas, Adriana Carranca frisa que os personagens
reais que ela encontra “são muito mais complexos e incríveis do que qualquer um
criado pela ficção poderia imaginar”.
Quem não vê tanto problema no uso do termo jornalismo literário, como
Laurentino Gomes (2016, informação verbal), também faz questão de ressaltar que
“a consistência da reportagem, das informações é de não ficção”. Ou seja, o jornalista
não pode cair na tentação de “preencher lacunas do conhecimento com ficção”. Na

221
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

abertura do capítulo que trata da chegada de D. João VI ao Rio de Janeiro, no livro


1808, por exemplo, Gomes diz que o céu estava azul, fazia calor e uma brisa soprava
do mar do continente. O autor apoiou todas essas descrições nos relatos deixados por
um cronista conhecido como padre Perereca: “Tinha um sujeito lá, tinha um repórter,
então eu sigo a narrativa dele. Agora...a maneira como eu descrevo não são as
palavras dele. Daí eu uso ferramentas da literatura”. Laurentino Gomes conclui que,
se o autor de livros de reconstituição histórica, como ele, “reproduzir mecanicamente
as fontes originais, o texto fica chato”. Ao mesmo tempo, se partir para a “construção
meramente literária, acaba fugindo da reportagem e entrando no território da ficção”,
pisando no terreno diferenciado do romance histórico.
O que se percebe no discurso dos jornalistas-escritores entrevistados é o temor de
serem enquadrados em determinadas definições pré-estabelecidas e até banalizadas.
O próprio autor deste artigo, ao explicar que está pesquisando o livro-reportagem,
geralmente ouve como resposta imediata: “ah, jornalismo literário...”. A posição
de defesa contra classificações é típica em grupos que buscam uma afirmação
diferenciada em seu campo, como frisa Bourdieu (2010). Talvez por esse motivo, os
jornalistas escritores prefiram termos como jornalismo “de fôlego” e “bem apurado”,
aos mais genéricos ou amplos demais, como “literário” ou “investigativo”.
Ou seja, a diferença não estaria no resultado do texto, e, sim, no processo de
apuração multiangular, no tempo disponível para ponderar o volume imenso de
descobertas, no espaço maior do livro, que podem permitir, isso sim, uma descrição
mais fiel dos ambientes e personagens. Não se trata de semear o texto com floreios,
adjetivá-lo, mas conferir consistência interpretativa na narrativa final.
O debate promovido neste artigo ajuda a entender como os jornalistas escritores
de livros-reportagem entrevistados compreendem a importância mais ampla do
trabalho que desenvolvem. Para além da ressonância imediata de uma manchete,
o livro-reportagem trabalha com elementos de reconstituição e reconstrução da
memória nacional muito mais complexos do que no jornalismo diário. Ao tratar sobre
o estilo narrativo e as formas de construção do real em suas obras, os profissionais
entrevistados demonstram conhecimento dos potenciais da profissão para a
interpretação das realidades em plena crise dos sentidos.

Notas1
1 MORAIS, Fernando [17/09/2016]. Entrevistador: Alexandre Zarate Maciel. São
Paulo: apartamento do entrevistado. 1 arquivo .mp3 (1h49min).
2 NETO, Lira [17/09/2016]. Entrevistador: Alexandre Zarate Maciel. São Paulo:
apartamento do entrevistado. 1 arquivo .mp3 (1h52min).
3 VENTURA, Zuenir [17/08/2016]. Entrevistador: Alexandre Zarate Maciel. Rio
de Janeiro: apartamento do entrevistado. 1 arquivo .mp3 (1h56min).
4 CASTRO, Ruy [22/08/2016]. Entrevistador: Alexandre Zarate Maciel. Rio de
1 Todas referências em aspas aos entrevistados, neste capítulo, são informações verbais retiradas das
mesmas e respectivas gravações.
222
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

Janeiro: apartamento do entrevistado. 1 arquivo .mp3 (1h15min).


5 ARBEX, Daniela [08/08/2016]. Entrevistador: Alexandre Zarate Maciel. Juiz de
Fora, Minas Gerais: redação jornal Tribuna de Minas. 1 arquivo .mp3 (2h31min).
6 BARCELLOS, Caco [09/09/2016]. Entrevistador: Alexandre Zarate Maciel. São
Paulo: apartamento do entrevistado. 1 arquivo .mp3 (2h07min).
7 CARRANCA, Adriana [12/09/2016]. Entrevistador: Alexandre Zarate Maciel.
São Paulo: café Starbucks. 1 arquivo .mp3 (1h30min).
8 GOMES, Laurentino [13/09/2016]. Entrevistador: Alexandre Zarate Maciel.
São Paulo: livraria Saraiva shopping Eldorado. 1 arquivo .mp3 (2h14min).
9 VALENTE, Rubens [07/05/2016]. Entrevistador: Alexandre Zarate Maciel.
Brasília: café. 1 arquivo .mp3 (3h).
10 NOSSA, Leonencio [05 e 08/05/2016]. Entrevistador: Alexandre Zarate Maciel.
Brasília:apartamento do autor. 1 arquivo .mp3 (4h30min).

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225
As narrativas de si nas redes sociais: o “eu” no facebook 1

Ana Claudia de Almeida Pfaffenseller


Fabiana Piccinin
Nize Maria Campos Pellanda

A vida não é a que a gente viveu e sim a que a gente recorda, e como recorda para contá-la.
Gabriel García Márquez

1. Narrativa de si

A arte de contar histórias acompanha o ser humano desde os mais longínquos


tempos, constituindo-o enquanto sujeito pela sua capacidade de narrar. Ao longo
de diversas épocas, vem estabelecendo sempre uma relação de forma e conteúdo
com seu contexto sócio-técnico-discursivo de modo que a narrativa é sempre um
reflexo do espírito de um tempo. No dizer de Scholes e Kellog (1977), toda época e
cultura têm suas formas narrativas, uma vez que a narrativa é uma prática atávica
e ancestral e por isso indissociável da experiência humana. Viver é, portanto, um
acontecimento linguístico. Diz Motta (2013):

Nossa vida, nossa identidade, é uma narrativa pessoal. Estamos sempre


contando histórias de nós mesmos, enviando mensagens diversas, por
meio de diários, e-mails, tuítes, mensagens nas redes sociais, em geral,
etc. Por meio dessas histórias que contamos de nós mesmos estamos
construindo um autossignificado singular: “nosso eu se transforma em um
conto, um relato valorativo. Podemos estudar as narrativas, portanto, para
compreender esse conto. (MOTTA, 2013, p. 27).

Também Barthes (1976) lembra que a narrativa é a expressão da história humana


porque é condição para que se forneça à experiência de viver as epistemologias e
sentidos necessários. Dessa forma, a narrativa é capaz de apresentar o mundo ao
sujeito, apresentando-se sob um número grande de manifestações:

[...] inumeráveis são as narrativas do mundo. Há em primeiro lugar uma


variedade prodigiosa de gêneros, distribuídos entre substâncias diferentes,
como se toda matéria fosse boa para que o homem lhe confiasse suas
narrativas: a narrativa pode ser sustentada pela linguagem, articulada, oral ou
escrita, pela imagem, fixa ou móvel, pelo gesto ou pela mistura ordenada de
todas essas substâncias; está presente no mito, na lenda, na fábula, no conto,
na novela, na epopeia, na história, na tragédia, no drama, na comédia, na
pantomima, na pintura (...), no vitral, no cinema, nas histórias em quadrinhos,
no fait divers, na conversação. (BARTHES, 1976, p.19).

Por outras palavras, é dizer, conforme aponta Motta (2013) que nossas vidas são
acontecimentos narrativos, posto que vivemos por meio de narrações por meio das
226
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
quais nossa existência se constitui enquanto uma teia de narrativas na qual estamos
enredados. E é assim que seres humanos constroem suas biografias e identidades
pessoais narrando mediante o fato de que nossas vidas são as nossas narrativas,
orientadas pela construção de uma realidade em que a personagem principal e seu
narrador maior são o próprio indivíduo criador.
Em razão disso, observa-se as narrativas como prática tão antiga quanto sempre
nova, agora viabilizada por arranjos e gagdets tecnológicos e midiáticos que oportunizam
a reflexão sobre a arte de contar histórias. Trata-se, conforme apontando em trabalhos
anteriores, (Piccinin: 2012; Piccinin: 2013; Piccinin: 2016) da condição ontológica do
indivíduo e que implica no narrar e no narrar-se. Seja a partir de si para si, ou de si para os
outros, ou dos outros em busca de si mesmo. O fenômeno de gerar e organizar sentidos
à existência, justifica o reconhecimento da narrativa como centro de um processo no
qual as tecnologias estão relacionadas como estruturas viabilizadoras dessa atividade,
independente de quais sejam as plataformas.
Assumindo, portanto, a ideia de que somos os narradores da vida enquanto grande
evento, entende-se a narrativa, em última análise, como oportunidade da prática poiética,
subjetiva e individual. É por meio da narrativa de si que cada um, não apenas conta o seu
passado, como projeta o futuro, num exercício capaz de permitir um posicionamento no
mundo, enxergando e construindo seu próprio presente. A autopoiese (Maturana; Varela:
1995) trata justamente desta capacidade que os seres vivos têm de se autoproduzirem
e se autoconstituírem sobretudo narrativamente. É elucidativo lembrar, neste sentido,
conforme Pellanda (2009), que a palavra autopoiese origina-se do grego, quando auto
significa “por si” e poiesis “produção”, na perspectiva de expressar a autoprodução dos
seres vivos, a autocriação, ou criação de si próprio.
Conforme Pogozelski (2010), p. 13), a teoria da autopoiese, nos moldes propostos
por Maturana e Varela, apresenta os seres vivos como um:

[...] sistema de organização circular, com uma visão central de que a cognição
– o processo de conhecer - é muito mais ampla do que a concepção do
pensar, raciocinar e medir, pois envolve a percepção, a emoção e a ação.
Autopoiese é esta capacidade de auto-organização da vida, de produção
contínua de si mesmo. (POGOZELSKI, 2010, p. 13).

Para Maturana e Varela (1995, p. 49) o “ser humano” é aquele que “se faz” e
que, assim, produz continuamente a si mesmo, num operar recursivo valendo-se para
tanto de processos autopoiéticos e sociais como a linguagem e com os quais se gera
continuamente a autodescrição que faz de si. Diferenciam-se entre si por estruturas
diferentes, mas são iguais em sua organização, de modo que o sujeito é um sistema
autopoiético por si que, como todo e qualquer sistema deste tipo, tem a capacidade de
se organizar como uma rede autorreferente. E regenera continuamente a rede que o
produziu por meio de suas interações e transformações (Parente, 2010).
Já para Freud (2010), a compreensão das autonarrativas se estabelece a partir
do enfoque na questão do “eu” que, para o psicanalista não existe desde sempre no
indivíduo, mas precisa ser desenvolvido numa perspectiva autopoiética. O “eu”, na
visão autopoiética, está sempre sendo organizado, em um processo incessante de
autonarrar-se. Em um sentido similar no que diz respeito à capacidade da narrativa
227
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
na constituição dos sujeitos, Gai (2009) diz que a narrativa também serve para que se
possa interpretar e conhecer a si em uma atividade que pode resultar, em razão disso,
no autoconhecimento remetendo à capacidade terapêutica da narrativa. Na mesma
perspectiva, Piccinin (2012, p. 70) diz que “(...) ao fazer ecoar os pensamentos, a
narrativa demanda a sistematização em voz do sujeito ao dizer a si e de si, produzindo
a estruturação e a catarse ‘curativa’ em uma perspectiva psicanalítica”. O que
possibilita, em última instância, que os sujeitos se enxerguem, se compreendam a
fim da cura no processo de se autoconstruírem.
É o que funda o sentido também das próprias autobiografias que, segundo Motta
(2013), são organizadas a partir do destaque feito a alguns acontecimentos que
se crê estarem mais carregados de significações e que marcam a história pessoal.
Conforme o autor, cria-se, a partir de pontos do passado vinculados ao presente e que
remetem ao futuro, representações das próprias identidades individuais. Para ele,
narrando, constrói-se o passado, o presente e o futuro, razão pela qual as narrativas
criam o ontem, fazem o hoje acontecer e justificam a espera do amanhã.

2. Narrativas de si e redes sociais

De acordo com Martino (2010), quando alguém questiona “quem somos”,


primeiramente informa-se o nome e idade. Porém, a partir daí, passando a um diálogo,
a questão fica mais complexa e novos elementos entram em cena, como local de
nascimento, residência, gostos pessoais, time de futebol, músicas favoritas e, enfim,
endereço de blog e de rede social. Ou seja, para o autor, quando perguntam quem
somos, inicia-se, de súbito, a formação de um discurso e uma narrativa sobre si
mesmo (Martino, 2010). Assim, para pensar como as narrativas do “eu” se dão nas
redes sociais como processo de autoconstrução, é preciso sobretudo compreender que
tipo de narrativa emerge contemporaneamente e como esta reflete o espírito deste
tempo. Assume-se, neste sentido, a ideia de que a contemporaneidade oportunizou
o surgimento de uma narrativa adequada e adaptada às circunstâncias de forma e
conteúdo, a partir das tecnologias comunicacionais que passaram a ser oferecidas.
Neste sentido, buscar compreender as narrativas que os sujeitos constroem sobre si
contemporaneamente demanda observar o contexto em que estão inseridos. Ou seja, é
próprio da pós-modernidade, conforme Lyotard (2004), tratar-se de um tempo marcado
pelo fim das grandes metanarrativas e do discurso fundamentado na racionalidade que
sustentaram as potencialidades da ciência em relação aos desafios apresentados pela
experiência moderna. No lugar das vigorosas epistemologias da Modernidade e suas
crenças na capacidade de explicar a realidade objetivamente, gradativamente assiste-
se a emergência de narrativas marcadas pela relativização dos discursos.
Assim, a modernidade almejava a beleza, a limpeza e a ordem, hoje, o que se pode
afirmar é que vivemos na contemporaneidade, uma época marcada pelo que Bauman
(2007), entender ser a passagem da fase “sólida” para a fase “líquida”, quando as
organizações sociais não conseguem mais sustentar suas formas por muito tempo, visto
que se dissolvem com rapidez. Lida-se com a redução da segurança comunal (laços inter-
humanos) em prol do individualismo competitivo, de onde surge o conceito de sociedade
em “rede” em vez de uma “estrutura”. Convive-se com a substituição do pensamento de
228
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

longo prazo pelo imediatismo e a vida frente à volatilidade e a instabilidade. O mundo


agora escorrega por entre os dedos, e de uma forma cada vez mais rápida.
Segundo Bauman (2001, p. 9), as razões para considerar fluidez ou liquidez estão
no fato de serem metáforas adequadas à tradução da presente fase. Trata-se, portanto,
de enfrentar contemporaneamente a insuficiência do discurso científico, objetivo e
impessoal, nos moldes apresentados por Morin (1996) que, desde o século XVII, vive
uma disjunção esquizofrênica do mundo do conhecimento intuitivo e reflexivo, o mundo
dos sujeitos. Contudo, para o autor, de fato não é possível dissociar o sujeito de sua
narrativa que lhe constitui e é, ao mesmo tempo constituída por ele.
Por conta disso, o momento atual vai apresentando as condições que reforçam a
emergência da nova narrativa, desta vez marcada e potencializada na perspectiva do “eu”
em sua autoralidade e força. O narrador pós moderno2 é, conforme Santiago (1989, p. 40),
aquele que narra, como já havia preconizado Benjamin (1987), e que também experencia
o que narra. O autor diz que o narrador pós-moderno é aquele que quer extrair a si da ação
narrada, em atitude semelhante à de um repórter ou de um espectador”. Uma dinâmica
resultante, entre outros movimentos, do que se tem convencionado chamar de crise da
representação (Figueiredo: 2010), manifestada originalmente nas artes, mas que vai
alcançando variadas dimensões na medida em que vem por em cheque especialmente
as pretensas narrativas realistas. Dessa maneira, a legitimidade de um discurso baseado
na autoralidade está, portanto, na união da história contada a quem conta, pressupondo
sua participação como elemento qualitativo e diferencial desse narrar.
É dessa forma que nasce uma nova narrativa marcadamente pela perspectiva do
“eu”, de uma autonarrativa, na qual há um estreito limiar entre informações, muitas
vezes da vida cotidiana, no que se refere ao que é privado e ao que é público. Como diz
Brasil (2010, p. 4), na sociedade pós-moderna, as formas de vida se criam em processos
de auto-gestão, tendo a imagem como espaço de projeção e experimentação. Para
o autor a vida se produz e se performa em dispositivos audiovisuais vocacionados
à exposição da intimidade, como é o caso dos reality shows, blogs e redes sociais
web. Estamos em uma sociedade da desinibição, sendo a vida retratada de maneira
ordinária nos espetáculos de realidade (Brasil, 2010).
Contemporaneamente, as autonarrativas estão, sobretudo, nos sites e blogs da
Internet, ocupando espaços hipermídiáticos. Segundo Santaella e Lemos (2010),
estes são ambientes novos onde ocorrem a hibridização da linguagem e a organização
não linear do que está posto (dos conteúdos) e da leitura e onde há navegabilidade
em que o sujeito pode interagir. Para Santaella e Lemos (2010, p.13), as redes sociais
são conjuntos de laços sociais; trocas realizadas por gestos e atos de linguagem; e
vários meios técnicos de mediação das interações atuais.
No entanto, segundo Tejera (2006, p.14), é preciso considerar que, a existência da esfera
pública implica a manutenção da esfera privada, mesmo que atos verificados socialmente
pressuponham a derrubada de algumas barreiras associadas ao privado. A autora ainda
diz, referindo-se aos blogs e a outras propostas similares veiculadas na rede, que:

[...] demonstram a publicização do sujeito apresentando também uma


outra face da realidade: há um exercício hedonista que sugere uma
ênfase tão grande no “eu” privado que ele acaba por transbordar para a
229
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

esfera pública. Este transbordamento é de tal ordem que impõe a todos a


visualização do que deveria estar resguardado no refúgio da privacidade.
Mas, de qualquer forma, garante a manutenção de uma existência
privada, ainda que pública. (TEJERA, 2006, p.14).

Neste sentido, Santaella (2016, s/p) cita Byong-Chul Han para dizer que a ideia
da evidência da narrativa autoral é fortalecida pelos movimentos de exposição da
intimidade que marcam o contemporâneo. São sociedades “pornô” como diz o autor,
onde os indivíduos se exibem e se desnudam em um gigantesco panóptico digital.
Para Santaella (2016, s/p), a ideia do panóptico trazida por Han caracteriza o próprio
funcionamento do universo digital em que desaparecem a distinção entre centro e
periferia e qualquer ótica perspectivista. É o trunfo da vigilância e do controle segundo
a autora em que no lugar da esfera pública, há um vazio que acaba sendo ocupado
pela intimidade e aspectos da vida privada”, pois:

De fato, nas redes, tudo está exposto, descoberto, desvestido. O excesso de


exposição transforma tudo em mercadoria para a devoração imediata. As
coisas e as pessoas não desaparecem na obscuridade, mas na iluminação
excessiva, desvanecem-se no mais visível que o visível: a obscenidade. À
hipervisibilidade falta o oculto, o inacessível e o misterioso. É obscena a coação
de entregar tudo à comunicação e à visibilidade. É pornográfico entregar o
corpo e a alma ao olhar panóptico. (HAN apud SANTAELLA, 2016, s/p).

As redes sociais são, portanto, ambientes em que “o valor da exposição constitui


uma lógica em que cada sujeito é objeto de sua própria publicidade”, por meio da
publicização de si mesmo, através de narrativas.

3. O “eu” nas autonarrativas do Facebook

A rede social Facebook, é maior rede social da web no contemporâneo. A


plataforma também é uma mídia social que promove além das relações entre as
pessoas, o compartilhamento de conteúdo. Segundo Santaella e Lemos (2010), é
mais fácil rastrear os processos de formação de laços sociais no Facebook que em
outras redes, pois as pessoas levam para a timeline3 indivíduos já de seu convívio,
amigos, família, colegas.
Conforme Santi (2015, p.30), o Facebook é “de longe, a maior rede da história
da humanidade”, pois “nunca existiu, antes, um lugar onde 1,4 bilhão de pessoas
se reunissem – e 936 milhões entrassem todo santo dia (só no Brasil, 59 milhões)”.
Segundo o autor, metade das pessoas que têm acesso à internet em todo planeta entra
no Facebook, nem que seja ao menos uma vez ao mês. Os números são extraordinários,
pois o Facebook tem mais adeptos do que a maior das religiões e mais usuários do que
a internet inteira tinha há dez anos atrás. Logo, é o meio de comunicação mais poderoso
da atualidade (Santi, 2015). Em sua missão, a rede traz a proposta de dar às pessoas o
poder de compartilhar informações e fazer do mundo um lugar mais aberto e conectado.
E foi razão disso que o Facebook se tornou objeto da pesquisa e fonte da amostra
empírica a partir dos quais se investigou as narrativas do eu nas redes sociais. Assim,
230
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

o trabalho começou por uma pesquisa exploratória para recortar o corpus que resultou
de uma amostragem, feita pela seleção de 528 indivíduos da rede de contatos da
timeline. Os usuários foram escolhidos por postarem com frequência textos referindo-
se ao “eu”, com alusões aos temas privados e às suas intimidades e que continham
pronomes “mim” “meu”, “nós”, “nosso”, ou ainda verbos conjugados na “primeira
pessoa” do singular e do plural.
Selecionou-se assim, para fins de operacionalização, 9 sujeitos que melhor se
adequassem aos quesitos observados em suas postagens por quatro meses – de
01 de julho de 2015 a 31 de outubro de 2015 – por meio da captura das telas
printscreen4 diretamente nas timelines5. Na amostra6, 1.112 posts analisados foram
sistematizados em oito grandes temáticas a partir de assuntos recorrentes como
Propaganda de si (7%), Alimentação (8%), Atividades laborais (12%), Cultura (13%),
Estado de ânimo (18%), Reflexões (18%) e Relacionamentos (20%) e Diversos (5%).
Neste artigo, são apresentados os resultados das narrativas associadas à temática
dos Relacionamentos, a mais frequente no estudo e que, em razão disso, resultou na
maior porcentagem de todas com 20% dos posts que, na sua variedade de assuntos,
foi capaz de dar conta de uma gama ampla de assuntos que dizem respeito à vida
dos analisados.

4. Narrativas de Relacionamento:

Na análise quantitativa da categoria Relacionamentos, conforme mostra a


ilustração, foram tabulados subtemas a ela associados que são “Família”, com 40%
das incidências, seguida por “Pet/Animais”, com 27%, “Vida amorosa”, com 18% e, por
fim, “Amigos”, com 15%. Já na investigação qualitativa, muitas narrativas emergiram
dos sujeitos durante a pesquisa, de modo que outra decisão tomada foi a de trazer
para o trabalho a descrição de apenas um post de cada uma delas, escolhido a partir
da maior recorrência a verbos, pronomes e expressões que remetessem a si mesmos
e à explicitude de suas intimidades.

4.1. Família:
O analisado S3 narrou sobre “Família” em postagem com 94 curtidas, de
231
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
09/08/2015, que acompanha ainda uma selfie dele com a filha:

Sim meu dia foi muito mais que especial porque ela estava ao meu lado neste Dia
dos Pais, sempre junto comigo em minhas loucuras e folias...hehehe! Obrigado
meu Amor sempre quero lhe ter pertinho de mim, seja no frio ou no calor, de
dia ou a noite. Bjão e obrigado por tornar meus dias ainda mais felizes e ser um
dos motivos para que eu continue ainda mais focado em meus objetivos, porque
isso é por você e para você. Te amo [nome da filha]! (sic).

4.2. Pets/Animais:

O analisado S1 narrou sobre “Pets/Animais”, em postagem com 10 curtidas, de


05/07/2015, na qual foram marcadas três pessoas, bem como foi marcada a localização:

Ajudando os gatinhos. Comprando fofices de gatinhos e comendo delícias!


[Nome do gato] já ganhou cama nova (sic).

4.3.Vida Amorosa

O analisado S9 narrou sobre “Vida Amorosa”, em postagem com 69 curtidas, de


14/08/2015:

Meu marido [nome do marido], chegou atrasado para o almoço. O motivo


foi salvar uns muçuns (sic) novinhos que ficaram em uns pneus retirados
da sanga que foi limpa htem (sic). Quase desisti, disse ele, pois resvalam
muito, consegui salvar todos e estão de volta na água. Tudo por ti..Esse é
meu companheiro!!! (sic).

4.4. Amigos:
S7 narrou sobre “Amigos”, em postagem com 48 curtidas, de 20/07/2015:

Todos os dias é dia do Amigo, defino meus amigos como irmãos que podemos
escolher, são pessoas especiais que por um motivo ou outro estão no meu
coração. Por um motivo ou outro, eu nunca deixo de pensar neles, mesmo
eu as vezes estando distante, ou as vezes viajando, eu sempre penso em
neles. Sou bastante sociável e muito e muito leal aos meus verdadeiros
amigos, hoje uma amizade sincera é rara e difícil de se encontrar. Aos meus
pragas, um forte abraço e saibam que sempre que precisar terão um amigo
pra contar, pra chorar, rir e incomodar!! Feliz dia do amigo! (sic).

Desta forma, a partir das postagens, observa-se que na postagem sobre


“Família”, S3 inicia sua autonarrativa contando algo passado, como se estivesse
respondendo a um questionamento a um interlocutor especificamente. Leva a
crer que dialoga com alguém, enquanto ao mesmo tempo responde à pergunta
feita pelo Facebook - “O que você está pensando? – pelo sentido impositivo que
a rede social produz ao colocar esta pergunta na tela de seus usuários. Assim, já
na segunda frase da mensagem, o sujeito se dirige à filha, pelo nome, ainda que,
232
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

em nenhuma das postagens tenha marcado a menina7 no texto ou na fotografia.


Escreveu a uma pessoa, portanto, que não tem acesso à rede, para explicitar aos
usuários do Facebook de maneira geral um diálogo entre “pai e filha”. Observa-se,
neste sentido, em seu texto a convocação do indivíduo contemporâneo, por meio da
exposição íntima de temas que só a ele dizem respeito, em busca da visibilidade.
Na postagem “Pets/Animais”, S1 fala de si para narrar o que está fazendo. O verbo,
no gerúndio, indica um processo incompleto, prolongado ou em curso, de modo que é
pela simultaneidade que seu autor pretende conquistar a visibilidade na medida em
que narra, autopoieticamente, o que vivencia e enquanto vivencia. A narrativa afirma e
reafirma continuamente por meio do constructo de seu eu e de sua ação.
No subtema sobre “Vida Amorosa”, o post mais evidente a respeito do eu enquanto
narrativa organizadora da experiência contemporânea e do lugar do sujeito que rompe com
suas privacidades é apresentado por S9. A pessoa narra o atraso do marido para o almoço
em virtude de uma ação feita pelo mesmo. Contudo, na terceira frase do relato, S9 passa a
repetir uma fala do cônjuge com ela (S9) em outra situação. Na última frase, S9 volta a falar
por si, como simples narrativa e não mais como se a autoria das palavras não fosse ela.
Vê-se que, mesmo quando fala de outro, portanto, o indivíduo das redes sociais
assume o lugar do narrador, daquele que organiza a narrativa e que, assim, chama
para si esse lugar. Novamente a autoralidade é a marca das narrativas que acabam
por sinalizar para um sentido organizativo do seu viver quanto ao mesmo tempo
exprime-se como estratégia de sedução aos navegantes de sua timeline. O “eu” e
a autonarrativa em suas intimidades são os recursos de que lança mão o sujeito
narrador do Facebook. A autoralidade chama o narrador ao protagonismo das funções
principais: tanto a da função narrativa (ele conta e evoca um mundo) quanto a da a
função de direção ou de controle (ele organiza a narrativa, na qual insere e alterna
narração, descrição e falas das personagens)”.
Na postagem sobre “Amigos” dentro da grande temática dos Relacionamentos, S7
inicia o relato narrando no presente, falando dos amigos por meio de discurso indireto
até a penúltima frase, quando troca pelo discurso direto, dirigindo-se diretamente aos
amigos. Também aqui, no dia do “amigo”, o sujeito usa a narrativa para falar de si e
descrever as suas características como amigo. O “eu” é utilizado inclusive e sobretudo
para publicizar suas intimidades em uma arena pública. Além de expressarem questões
da vida particular, os sujeitos expõem suas felicidades e das pessoas de seu círculo
íntimo, bem como o fato de serem amados e bem quistos.
De modo geral, portanto, as autonarrativas levam a entender que os sujeitos se
constroem na narrativa da história pessoal como frisou Motta (2013) e que a família
é, sem dúvidas, significativa nos relacionamentos. O ser humano é, sobretudo, um
ser social. Como diz Lipovetsky (2007), as tecnologias não só não dispensaram a
necessidade dos indivíduos de manterem contato entre si, com os amigos, com o
“mundo”, como os indivíduos tentam potencializá-las por meio das relações virtuais.
O que ajuda a compreender porque o tema “Relacionamentos” foi o mais citado pelos
sujeitos analisados em suas narrativas de si e justifica as temáticas do “eu” serem
razão para que os usuários tentem convocar a atenção para si.

233
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
5. Considerações Finais

Ao olhar para as narrativas do “eu” no Facebook, considera-se preliminarmente


que estas são, entre outras, as narrativas resultantes em forma e conteúdo de um
certo tempo e contexto sócio-técnico discursivo. Na forma, observa-se que se colocam
como extratos de um real construído em termos das redes sociais, consideradas neste
âmbito como uma das grandes arenas constituintes da esfera pública contemporânea,
onde os sujeitos, ao se narrarem se constituem e se organizam afirmativamente. Ou
seja, ainda que se tome os relatos de “eu” dos sujeitos pesquisados como seleções,
portanto, extratos de autonarrativas, são narrativas capazes de ofertar indícios do
que e de como se mobilizam no cenário atual, evidenciando o lugar de centralidade
que o “eu” vem gerando de algum modo como autoconstrução de si.
Por consequência, em termos de conteúdo, vê-se que a vida, que se apresenta
em performance por meio das plataformas virtuais é narrada na perspectiva de
convocação, pela valoração da autoralidade e do protagonismo, à exposição das
intimidades. Não sem razão, portanto, os sujeitos falam como narradores oniscientes
a seus narratários. São, eles próprios, narradores e personagens da própria narrativa,
como se existissem duas personas que se fundem: a que narra e a que é narrada. Por
outras palavras, é dizer que a narrativa de si feita por meio da plataforma Facebook
resulta numa maneira de os sujeitos ordenarem suas vidas e nesse processo tornarem
esse ordenamento palavra pública por meio das postagens que pretendem produzir
a “transparência” de suas vidas. Seja em acontecimentos dos quais fazem parte
e em situações envolvendo as pessoas de quem gostam, suas indignações e seus
sentimentos, os indivíduos estão falando e construindo em termos autopoiéticos,
sobretudo a si mesmos, quem são neste mundo, ao mesmo tempo em que pretendem
chamar a si as atenções dos navegadores da plataforma.
Assim, as autonarrativas, ao fazer evocar os pensamentos, podem ter cárater
catártico na medida em que possibilitam problematizar problemas, compartilhar
sentimentos, mimetizando em alguma medida, o divã de analista. Ao mesmo
tempo, permitem aos sujeitos uma saída do anonimato em direção a algum lugar de
reconhecimento, mesmo que ordinário, mas capaz de fazê-lo se instituir na esfera
pública. Narrando e compartilhando o que incomoda sobre situações profundas e
reflexivas, pode o indivíduo sentir a suavização das dores, ainda que esse divã virtual
não tenha o ouvido atento, treinado e profissional.
Cabe lembrar ainda que, ao mesmo tempo, as narrativas convocam o olhar sobre
si, buscando mobilizar a atenção de quem supõem despertar, ao custo de expor
suas intimidades e privacidades, porque entendidas como estratégia de conquista
do outro, bem em acordo com os valores contemporâneos. E indicando em alguma
medida como se dá a organização autonarrativa em tempos de redes sociais a quem,
em outros momentos, seguramente não as organizaria narrativamente e nem teria
suas intimidades publicizadas.

234
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

Notas

1 As discussões propostas neste capítulo se iniciaram por conta da investigação feita


pela, na época, mestranda, Ana Claudia Almeida Pfaffenseller por ocasião da produção
da dissertação de Mestrado, orientada pela professora Fabiana Piccinin. A primeira
reflexão derivada da dissertação, que tratava do tema das narrativas do eu na rede social
Facebook, foi apresentada no “Congreso Internacional sobre Nuevas Narrativas: Entre la
información y la ficción”, em Barcelona, na Espanha em julho de 2017.
2 Entende-se aqui o conceito de pós-modernidade nos moldes propostos por
Lyotard (2004) quando passa a trata da condição pós-moderna, de Baudrillard (2001)
em sentido similar com a hipermodernidade, bem como Bauman (2001), quando fala
da modernidade líquida, Castells (1999) com a sociedade em rede e Lipovetsky (2007),
com hipermoderno, entre outros. Todas as nomenclaturas remetem ao conceito de
contemporâneo, do tempo iniciado em meados do século XX e que, segundo Taschner
(1999), tem como contraponto a modernidade, dominada pela produção e pelo
capitalismo industrial, e caracterizada pela tecnologia industrial e pela explosão da
mercantilização, sendo a pós-modernidade uma era pós-industrial, constituída por
novas formas de tecnologia, cultura e sociedade.
3 Linha do tempo, ou página principal da rede social Facebook.
4 Ação de captura, em formato de imagem, daquilo que está presente na tela
do computador.
5 Eram incialmente 10 sujeitos a serem analisados, mas o décimo se mostrou
dissonante com os propósitos da pesquisa ao longo do tempo. Assim, passou-se a
considerar nove sujeitos para a investigação. Estes autorizaram a utilização das suas
narrativas na pesquisa, assinando o formulário disponibilizado para tanto, desde que
tivessem suas identidades preservadas. No presente estudo, me refiro aos sujeitos
voluntários como S1, que se refere ao sujeito 1, e assim por diante: S2, S3, S4, S5,
S6, S7, S8 e S9.
6 No período de quatro meses em que foram observados os sujeitos voluntários
selecionados para o presente estudo, verificou-se que os mesmos, além das
narrativas de si propriamente ditas, postaram outros vários tipos de informações,
como: imagens em geral, memes, frases em formato de imagem, fotos e selfies, os
autorretratos digitais, ou, uma foto que a pessoa tira de si mesma que não foram
consideradas na amostragem.
7 Marcar uma pessoa em uma postagem do Facebook é quando o autor da
mensagem menciona uma pessoa, uma página ou um grupo em uma publicação ou
comentário (essa menção se dá quando o autor digita o nome da pessoa com a primeira
letra em maiúscula ou @ mais o nome de uma página ou grupo). Assim, um link é criado
a partir dessa marcação. Além disso, a pessoa, a página ou o grupo citado na postagem
poderá receber uma notificação e a publicação ou o comentário poderá aparecer na
Linha do Tempo, timeline, dessa pessoa, página ou grupo também (FACEBOOK, 2015).

235
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

Referências

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VARELA, Francisco. Ética y Acción. Santiago: Editorial Dolmen, 1996. 104 p.

237
IV OUTROS OLHARES

238
Narrativas do corpo inteiro:
tecnomediações em realidade virtual

Eduardo Zilles Borba

A evolução exponencial das tecnologias digitais tem nos proporcionado operar


relações cada vez mais estreitas e intuitivas com as mídias digitais. Estreitas, no
sentido em que os cenários virtuais nos são apresentados como extensões de nossas
atividades rotineiras. Intuitivas, porque o diálogo que mantemos com estes cenários
através de dispositivos eletrônicos é, cada vez mais, sustentado por experiências
multissensoriais (tocar, gesticular, pegar, falar, ouvir, sentir).
No campo das mídias digitais, a atual ascensão dos dispositivos de realidade
virtual sugere que as interações naturais para o humano com interfaces tecnológicas,
anteriormente ligadas apenas à fantasia dos filmes da ficção científica (Minority Report,
Blade Runner, Star Treck, Homem de Ferro, etc.), já não é exatamente uma coisa de
outro mundo. Apesar de ainda não atingirem um estatuto de mídia para as massas,
que todos têm em casa, há tempos que estas plataformas pós-web são utilizadas
em centros de pesquisa de universidades e grandes corporações – realidade virtual,
realidade aumentada, internet das coisas, inteligência artificial, etc. (FRIEDBERG,
2006). Conforme Zilles Borba e Zuffo (2016), aos poucos, estamos deixando de lado o
modus operandi para assumir uma relação de comunicação natural com as máquinas.
Partindo do princípio de Ferreira (2007), de que o processo de midiatização é
influenciado pelas relações e intersecções entre dispositivos, processos sociais e
processos de comunicação, este capítulo preocupa-se em executar uma reflexão sobre
as narrativas contemporâneas alocadas em plataformas pós-web, nomeadamente em
ambientes de realidade virtual. Uma vez que estes ambientes imersivos estimulam no
usuário uma sensação completa de mergulhar no cenário virtual através da integração
dos gestos, dos movimentos ou, até mesmo, do corpo inteiro nas interações com as
mídias, consideramos pertinente trazer à tona a perspectiva de midiatização de Sodré
(2001), na qual o autor lança a ideia de que as plataformas midiáticas multissensoriais
(dispositivos x processos de comunicação) produzem uma enorme transformação
social no âmbito perceptivo de espaço, tempo e corpo (processos sociais). “Estamos
assistindo a uma multiplicação, uma disseminação das tecno-interações na vida social”,
(SODRÉ, 2001, p.3). De fato, nunca foi tão evidente a premissa de McLuhan (1964), de
que os meios de comunicação são extensões do humano, afinal, os dispositivos e a
forma como nos apropriamos deles está modelando uma nova forma de relação entre
humano-máquina, humano-máquina-humano e, por que não (?), máquina-máquina.

1. Tecnocultura: humano, tecnologia e comportamento

Desde que nos tornamos racionais – o homo sapiens – desenvolvemos


ferramentas que auxiliam-nos a superar as próprias limitações. Pensar, criar e
239
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

operar instrumentos que otimizam as relações com o mundo têm sido, de fato, uma
habilidade diferencial da nossa espécie (HARARI, 2016).
À luz do pensamento darwiniano, Enriquez (2009) sugere que, no momento em que
passamos a produzir instrumentos (a lança, a roda, a escrita, a bússola, o automóvel,
a eletricidade, a internet, etc.), inconscientemente, adicionamos um ingrediente à
evolução natural: a tecnologia. Isto é, somada à necessidade de sobrevivência, a
capacidade de criar artefatos passou a ser elemento catalisador da nossa própria
evolução (evolução tecnológica)1 (KURZWEIL, 2007).
Seguindo esta linha de pensamento tecnoliberal é correto afirmar que o nosso
comportamento, há cerca de 50 mil anos, vem sendo influenciado pelos avanços
tecnológicos que nós mesmos criamos. Como disse McLuhan (1964), nós moldamos as
ferramentas para, depois, as ferramentas nos moldarem. A história das revoluções da
humanidade confirmam de forma empírica esta teoria. Foi assim na Revolução Agrícola (há
cerca de 12,5 mil anos), quando a domesticação de plantas e animais proporcionou que
abandonássemos o estilo nômade e caçador para nos organizarmos em pequenas polis e,
de certa forma, iniciarmos uma cultura comunitária e social. Da mesma forma, a Revolução
Industrial (há cerca de 200 anos) permitiu que fabricássemos produtos em larga escala com
máquinas que estenderam nossa força bruta, consequentemente, alterando paradigmas
fundamentais em nossa organização social, laboral e econômica (consumo).
Ao trazer tal reflexão para a realidade tecnológica desta segunda década do
século XXI, quando vivemos em meio a uma Revolução Digital (NEGROPONTE, 1995),
fica evidente que os recursos digitais, assim como outros que influenciaram nossa
formatação sociocultural e comportamental até aqui, entranham-se cada vez mais na
pele da cultura (KERCKHOVE, 1995). Esta cibercultura na qual estamos mergulhados
nos coloca, diariamente, em contato com tecnologias da informação e comunicação
que, de alguma maneira, potencializam nossas relações no mundo (LÉVY, 1999).
Mas o que torna a Revolução Digital tão especial em relação às demais2? Para Kurzweil
(2007), a resposta está na velocidade exponencial com que os instrumentos inovadores e
disruptivos chegam em nossas vidas, alterando constante e radicalmente nossos padrões
de comunicação e relações com as pessoas, os objetos e/ou os espaços (Figura 1).

Figura 1: crescimento exponencial do impacto tecnológico no comportamento humano

Fonte: adaptado de Kurzweil (2007)


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Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

Nunca foi tão evidente a premissa mcluhaniana de que os meios de comunicação


são extensões do humano. Ao nos apropriarmos dos dispositivos eletrônicos estamos
assumindo uma nova relação de interação entre humano-máquina, humano-máquina-
humano e, por que não (?), máquina-máquina. “São dispositivos que passam a fazer
parte do nosso corpo, numa espécie de simbiose-postiça (ainda não-invasiva) entre
sujeito e dispositivos eletrônicos interativos (celular, tablet, óculos de realidade virtual,
etc.)”, (ZILLES BORBA; ZUFFO, 2016a, p.7). Por vezes, estas relações são tão intensas
que simplesmente não conseguimos imaginar como seria nossa organização social,
cultural, político e econômica sem o apoio de telefones celulares, computadores,
tablets e demais aparelhos eletrônicos que nos mantêm conectados com um universo
informacional via fluxos comunicacionais.
Também, esta evolução exponencial das tecnologias digitais tem nos proporcionado
operar relações cada vez mais estreitas e intuitivas com as mídias digitais. Estreitas, no
sentido em que os cenários virtuais nos são apresentados como extensões de nossas
atividades rotineiras. Intuitivas, porque o diálogo que mantemos com estes cenários
através de dispositivos eletrônicos é, cada vez mais, sustentado por experiências
multissensoriais (tocar, gesticular, pegar, falar, ouvir, sentir).
No campo das mídias digitais, a atual ascensão dos dispositivos de Realidade
Virtual (RV) sugere que as interações naturais para o humano com interfaces
tecnológicas, anteriormente ligadas apenas à fantasia dos filmes da ficção
científica (Minority Report, Blade Runner, Star Treck, Homem de Ferro, etc.), já não é
exatamente uma coisa de outro mundo (SHERMAN; CRAIG, 2003). Apesar de ainda
não atingirem um estatuto de mídia para as massas, que todos têm em casa, há
tempo que estas plataformas pós-web são utilizadas em centros de pesquisa de
universidades e grandes corporações – realidade virtual, realidade aumentada,
internet das coisas, inteligência artificial, etc. (FRIEDBERG, 2006). Conforme Zilles
Borba e Zuffo (2016a), aos poucos, estamos deixando de lado o modus operandi
para assumir uma relação de comunicação natural com as máquinas. Isto é, as
interfaces digitais estão se tornando transparentes no que se refere à mediação
do diálogo entre usuário e computador. E, com isso, a percepção de sua existência
começa a se apagar na leitura do usuário.

2. A naturalidade em lidar com a artificialidade

O princípio de nossas interações com computadores esteve limitado ao domínio


da linguagem de programação3 (STEPHENSON, 1999). Para dialogar com a máquina
informática deveríamos ter elevado conhecimento do protocolo de programação (linhas
de comando). “Com o auxílio de um teclado, responsável pela entrada de comandos
pré-definidos no computador, digitamos funções específicas para a execução de tarefas
que são visualizadas (em textos) num monitor”, (ZILLES BORBA; ZUFFO, 2015, p.6).
Num segundo momento surgiram as interfaces gráficas com o usuário4
(FRIEDBERG, 2006). Elas tornaram as experiências interativas e atrativas, uma vez
que trouxeram a imagem para a tela do computador e, também, a possibilidade de
navegarmos em profundidade pelo ambiente virtual com o hipertexto. O modelo

241
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

Macintosh da Apple, na década de 1980, foi um dos pioneiros a promover interações


WIMP (windows, icons, mouse, pointing device)5.

As operações passaram a ser realizadas com dispositivos de entrada de


dados mais intuitivos. Além disso, a visualização de conteúdos passou a ser
organizada por janelas e ícones. Ao invés de digitarmos linhas de comandos, a
interface tornou-se amigável, inclusive para quem não dominasse linguagens
de programação, pois permitia a seleção de comandos através de menus
acessíveis ao clique do mouse. (ZILLES BORBA; ZUFFO, 2015, p. 7).

Hoje, devido ao avanço das tecnologias informáticas, notamos a tendência de


adesão à lógica natural de interações com as interfaces digitais. Isto é, muito mais
simples do que aprender o modus operandi das máquinas, cada vez mais percebemos
existirem possibilidades para realizarmos ações naturais como, por exemplo: tocar,
gesticular ou, até mesmo, falar (ZILLES BORBA; ZUFFO, 2015).
Ora, mais intuitivo do que escrever linhas de comando ou utilizar um mouse para
clicar em ícones e menus, a fim de realizar determinada operação no ambiente virtual,
nossos movimentos naturais em cenários virtuais permitem que todo o conhecimento
cognitivo adquirido no mundo real seja aplicado no espaço virtual (FRIEDBERG,
2006). Os recentes ambientes de RV, conforme Zilles Borba e Zuffo (2016a), trazem
maior liberdade para estas ações, substituindo a metáfora (clique, visualização 2D,
representações) pela analogia (gesto, visualização 3D, simulações)6 (Figura 2).

Figura 2: relações cada vez mais naturais com as interfaces digitais

Fonte: adaptado de Zilles Borba e Zuffo (2016A)

Ao assumirmos que as interações naturais com interfaces tecnológicas já não são,


exclusivamente, operações de maquinários em filmes da ficção científica, consideramos
imperativo refletir sobre as possibilidades e potencialidades das narrativas
contemporâneas alocadas em plataformas pós-web, nomeadamente: ambientes de RV.
Uma vez que estes ambientes imersivos estimulam-nos o mergulho no cenário virtual
através da visualização tridimensional estereoscópica e da integração dos gestos,
dos movimentos ou, até mesmo, do corpo inteiro do utilizador nas tecnointerações,
trazemos à tona a perspectiva de midiatização de Sodré (2001), na qual o autor lança
242
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

a ideia de que as plataformas midiáticas multissensoriais (dispositivos x processos de


comunicação) produzem uma enorme transformação social no âmbito perceptivo de
espaço, tempo e corpo (processos sociais). “Estamos assistindo a uma multiplicação,
uma disseminação das tecnointerações na vida social”, (SODRÉ, 2001, p.3).
De fato, estamos diante de uma nova perspectiva para as relações do usuário com
os ambientes comunicacionais eletrônicos. Afinal, se o ecrã sempre fora visto como
o mediador responsável pelo nosso acesso ao espaço virtual, diante das plataformas
imersivas, ele parece obsoleto e ineficaz. Para Zagalo (2010), inevitavelmente, o ecrã atua
como moldura que gera tensão na imersão do receptor, justamente, porque evidencia o que
está dentro e fora do espaço virtual. Com os ambientes imersivos de RV, esta tensão entre
real (usuário) e virtual (espaço e conteúdos) evapora-se para dar lugar a uma conflituosa
percepção de quase-lugar, quase-objetos e quase-realidades que, consequentemente,
anulam qualquer certeza que sempre foi tida como garantida no que se refere à dicotomia
entre verdade e mentira ao interpretamos os espaços de RV (ACCIOLY, 2010).

3. A realidade virtual sob à perspectiva da midiatização

O conceito de RV pode ser apresentado por diferentes pontos de vista. No campo


da Informática, por exemplo, ela é compreendida como um sistema (SHERMAN; CRAIG,
2003). Engenheiros eletrônicos, por sua vez, compreendem-na como uma simulação
tecnológica (BURDEA, 2003). Ou, ainda, na vertente da Comunicação, como ambiente
imersivo (BAUDRILLARD, 1994; GRAU, 2003).
Na posição de um comunicólogo, agrada-me olhar para a RV como um ambiente
comunicacional extremamente avançado no que se refere à interação humano-
máquina, no qual a percepção do usuário é estimulada a assimilar os contextos
estético-espaciais e/ou semântico-operacionais à semelhança das ações que realiza
no espaço real. Isto é, a RV é um ambiente comunicacional avançado devido sua
interface usuário-computador permitir a visualização, a interação e a manipulação
dos conteúdos digitais à semelhança da própria realidade física (GRAU, 2003). Mesmo
que a pessoa utilize algum dispositivo para acessar este ambiente, como os óculos de
RV, suas ações e o contexto percebido são semelhantes (ou idênticos) à interpretação
que faz da realidade física, atômica e concreta (Figura 3).
Figura 3: Usuário vestindo dispositivo HMD para acessar o ambiente de RV

Fonte: Zilles Borba e Zuffo (2016a)


243
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

Uma vez que os dispositivos de RV possuem a capacidade de estimular nossos


sentidos, especialmente, através de mecanismos de comunicação audiovisual (visão
e audição) e interativo-hápticos (tato, cinestesia e propriocepção), é fundamental
termos em conta que, nestas mídias, as narrativas dependem inteiramente da
relação usuário-dispositivo-ambiente virtual. Esta tríade rege a agência usuário-
realidade virtual, uma vez que os dispositivos são mediadores fundamentais destas
tecnoexperiências (Figura 4).

Figura 4: Relação entre usuário, dispositivo e ambiente virtual

Fonte: Zilles Borba e Zuffo (2016a)


Independentemente de exibir cenários que simulem espaços reais ou representem
espaços imaginários, Zilles Borba e Zuffo (2016b) explicam que a noção de
deslocamento para o mundo da imagem é o grande diferencial da RV em relação às
outras mídias, daí o nome ambientes imersivos. Contudo, é necessário fazer uma
diferenciação entre imersão e presença. Em termos técnicos, Slater e Wilbur (1997),
Slater et al. (2013, 2017) ou Skarbez (2017) explicam que a sensação psicológica
de passagem do físico para o virtual deve ser compreendida como uma noção de
presença estimulada por equipamentos imersivos. Isto significa que a presença, à
semelhança das sensações produzidas no leitor de uma obra literária, refere-se à
condição psicológica de pensarmos ou imaginarmos que habitamos determinado
espaço. Enquanto a imersão se refere exclusivamente aos nossos receptores sensoriais
estimulados artificialmente pela máquina7 (estereoscopia da imagem tridimensional,
som em profundidade espacial, luvas de feedbacks hápticos, aromas borrifados no
ambiente, e por aí afora). Num resumo, presença é um processo de mentalização
carregado de subjetividade (penso, logo existo no virtual), enquanto imersão é um
processo sensorial carregado de objetividade (sinto, logo existo no virtual) (ZILLES
BORBA; ZUFFO, 2015).
Ao pensarmos nas formas de estimular a imersão do usuário no cenário virtual
e, consequentemente, criar uma noção de presença naquele ambiente, baseados
em teorias de imersão de Burdea (2003), Zilles Borba e Zuffo (2015) propõem
244
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

um esquema com três pilares que sustentam as experiências imersivas em RV:


interatividade, realismo e envolvimento (Figura 5). A interatividade indica como
o indivíduo dialoga com a interface digital. Assim, quanto mais próximas de uma
operação natural forem suas interações, mais imersiva será sua experiência de
interatividade (caminhar, correr, pular, pegar, falar, etc.) (FRIEDBERG, 2006). O
realismo indica a capacidade de um ambiente virtual em apresentar cenários,
objetos, avatares, atividades e sonoridades com semelhança estética e funcional às
suas versões originais (formas, cores, texturas, escalas, proporções, ruídos, sons,
vozes, etc.) (STEINICKE, 2016). Por exemplo, na versão virtual de uma cidade, um
cenário 3D (ruas, prédios, carros, pessoas, etc.) gera mais realismo do que uma
interface web (ícones, pastas, botões, menus). Por sua vez, o envolvimento indica
a produção de uma ampla noção do espaço (percepção espacial em 360° para
além da tela plana em frente ao usuário). Nesta categoria também se enquadra a
capacidade da experiência em manter ativa a transferência de atenção do usuário.
Isto depende da qualidade do enredo (estratégias de storytelling e/ou gamification)
e do real interesse afetivo do usuário no assunto explorado (preferências, gostos,
memórias, etc.) (THOM, 2008).
Figura 5: Pilares que sustentam as experiências em ambientes imersivos

Fonte: Zilles Borba; Zuffo (2015)

4. Narrativas do corpo inteiro: sinto, logo existo no virtual

Conforme vimos nas sessões anteriores, ao sentirmos partes ou todo nosso


corpo – narrativas do corpo inteiro – explorando naturalmente o ambiente virtual,
temos a noção de habitar o contexto artificial. Mas, ao mesmo tempo em que estes
mecanismos estimulam a ideia de transposição do corpo para outra realidade, eles
produzem uma espécie de conflito perceptivo na interpretação que fazemos desta
nova realidade. Afinal, nossa razão não é tão facilmente enganada.
Este conflito perceptivo coloca em causa a forma como compreendemos –

245
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

enquanto usuários – os ambientes digitais. Afinal, perdemos a certeza dicotômica


entre real e virtual, verdade e mentira ou, ainda, físico e digital (Figura 6).

Figura 6: Conflito perceptivo entre os sentidos e a razão em cenários imersivos

Fonte: Zilles Borba (2014a)

A imagem anterior ilustra que o corpo do usuário pode ser parcial ou totalmente
estimulado por dispositivos, criando a sensação de que habita outra realidade
(sinto, logo existo no virtual). Estes mecanismos de interação humano-máquina, que
estimulam a experiência sensorial, estão diretamente associados ao realismo e à
interatividade na tríade de imersão em ambientes virtuais. Ou seja, às narrativas
estéticas e funcionais do ambiente.
Vale lembrar que, segundo Slater et al. (2009), os equipamentos e dispositivos de
interação humano-máquina não estimulam diretamente a experiência mental (penso,
logo não existo no virtual). Caso para dizer que, mesmo que, por vezes, a pessoa
acredite habitar a RV, por vezes. ela também recorda-se de que se trata de uma
simulação tecnológica com a qual se propôs a interagir. Neste sentido, as propriedades
de envolvimento da tríade de imersão têm importância na construção de narrativas
que deem plausibilidade à noção de presença no ambiente virtual (SKARBEZ, 2017).
Por exemplo, o interesse pessoal do usuário no enredo da experiência ou, ainda, a
estratégia de storytelling através de uma narrativa de gamificação que prenda a atenção
são algumas formas de aumentar o envolvimento da pessoa com a experiência. Este
pilar se afasta dos aspectos de realismo e de interatividade, justamente, porque não
geram estímulos sensoriais (imersão), mas criam inputs psicológicos que despertem
emoções (presença) como, por exemplo: interesse afetivo, familiarização, memória de
experiências passadas, gostos, preferências, etc. (DAVIDOFF, 2001).
Agora, independentemente da resolução interpretativa que o usuário tem da sua
experiência com os ambientes comunicacionais em plataformas virtuais imersivas, o
processo de significação que se constrói na busca da consciência daquilo que se está
vivenciando é iniciado no momento em que veste/usa algum dispositivo tecnológico
246
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

que lhe permita sentir, perceber e interpretar narrativas em RV. Isto é, acreditamos
que as narrativas imersivas – imagem, 3D, texto, som, vibrações, calor, aromas, etc.
– surgem como impulsos sensoriais que só se tornam estímulos se forem captados
pelos órgãos receptores do usuário (olhos, ouvidos, pele, etc.).
Partindo do princípio de Ferreira (2007), de que o processo de midiatização é
influenciado pelas relações e intersecções entre dispositivos, processos sociais e processos
comunicacionais, parece-nos ser fundamental considerar que, para refletir sobre as
narrativas contemporâneas alocadas em plataformas pós-web, nomeadamente em
ambientes de RV, sempre será necessário compreender como o usuário sente, percebe e
interpreta o contexto narrativo. E, conforme vimos, estas interpretações são carregadas de
subjetividade. Isto significa que, independentemente do estímulo gerado pelas narrativas
multissensoriais (este sempre é padronizado, pois trata-se de um processo objetivo), a
resolução interpretativa que temos das tecnoexperiências terá sempre particularidades
intrínsecas às memórias, afinidades e vivências de cada pessoa.
A seguir apresentamos três situações em que o sujeito é incentivado a crer que está
imerso e/ou presente no contexto virtual: narrativas visuais, narrativas audiovisuais
e narrativas hápticas.

4.1 Narrativas visuais (paradigma ocularcêntrico)

A grande maioria das experiências com ambientes de RV está sustentada no


paradigma ocularcêntrico. Isto é, as imagens são projetadas com elevado realismo
gráfico e estimulam o processo de estereoscopia na percepção visual, o que garante
a visualização de espaços e objetos com semelhanças estéticas ao que o usuário
vê no mundo real como, por exemplo: formas, escalas, profundidades, perspectivas,
texturas, cores, luzes e sombras (ZILLES BORBA, 2014b).
Os mais recentes óculos de RV – Oculus Rift, HTC Vive ou Samsung GearVR – são
exemplos de dispositivos que permitem às narrativas visuais revelarem conteúdos/
objetos que fazem verdadeiras miméticas de suas versões reais. Com estes
equipamentos, ao visualizar um cenário 3D realístico, temos uma noção visual de
que tudo é realmente verdadeiro.
Um exemplo de experiência em RV que faz apenas o uso de narrativas visuais é o
projeto de ciberarqueologia da Universidade de São Paulo (Figura 7). Para explorar o
ambiente de RV que simula o sítio arqueológico de Itapeva, no interior do Estado de São
Paulo, vestimos um modelo avançado de óculos de realidade virtual – o Oculus Rift8.
Devido a sua capacidade de processamento em tempo real de imagens tridimensionais
com elevada taxa de frames por segundo9, a qualidade gráfica do cenário assemelha-se às
animações arrojadas dos filmes hollywoodianos e, consequentemente, toda a experiência
de percepção visual é idêntica àquela que vivenciamos no espaço real, nomeadamente
no que se refere à visualização de formas, escalas, cores, texturas, luzes e sombras dos
elementos que compõem a paisagem eletrônica (ZILLES BORBA, 2014b).
Apesar da navegação no cenário estar limitada a um circuito pré-definido
automatizado, a possibilidade de contemplar zonas da atividade arqueológica como se
lá estivéssemos permite que a versão virtual de Itapeva seja uma experiência imersiva.
247
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

Inicialmente, o objetivo do projeto foi possibilitar que arqueólogos continuassem a


estudar, a partir de laboratório da universidade, as marcas e pinturas rupestres das
paredes do sítio arqueológico sem a necessidade de se deslocar até o local original.
Entretanto, a possibilidade de visualizar as atividades dos arqueólogos e os objetos
encontrados (carvão, ossos, pedras, etc.), a partir da perspectiva da primeira pessoa,
permitiu que este ambiente comunicacional se estendesse à sala de aula na graduação
de Arqueologia da USP. Afinal, mais importante do que encurtar a distância, a RV
funcionou como uma ferramenta pedagógica para práticas empíricas, na qual mais de
40 alunos exploram remotamente um espaço efêmero e de difícil acesso numa forma
simples, interativa e, especialmente, não destrutiva (ZILLES BORBA et al., 2017). Caso
para dizer que as aulas se tornaram mais atrativas, pois, mais do que falar ou mostrar
como funciona a atividade arqueológica, o professor tem um instrumento que permite
colocar o aluno em campo (virtual).

Figura 7: Experiência tridimensional realística do sítio arqueológico de Itapeva

Fonte: Zilles Borba et al. (2017)

4.2 Narrativas audiovisuais (paradigma ocularcêntrico e sonoro)

Se a primeira geração de dispositivos de RV centrou-se em desenvolver experiências


com elevada qualidade óptica para a visualização de imagens 3D processadas em
tempo real, hoje, existe uma tendência em criar ambientes que sejam audiovisuais. Isto
é, somada à qualidade da imagem tridimensional gerada por computação gráfica ou
filmagens em alta resolução com câmeras 360°, desenvolvedores têm apostado em
inserir efeitos e trilhas sonoras que aumentam o grau de realismo e, consequentemente,
a imersão no contexto virtual. Para tal, mais do que simplesmente colocar sons no
ambiente, elementos de áudio são mapeados nos eixos X, Y e Z, a fim de serem alocados
exatamente no local que corresponde a origem do estímulo sonoro.
Segundo Slater et al. (2017), a emissão de ruídos em profundidade no espaço
virtual produz uma sensação de espacialidade muito mais ampla do que em modelos
mono ou estéreo, justamente, porque complementa o comportamento físico dos
objetos, espaços ou avatares. A produção de áudio em ambientes imersivos deve ser
encarada com a mesma seriedade e detalhamento que a imagem. Porém, a verdade
é que hoje isso ainda não é uma realidade.

248
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
Atualmente, alguns dispositivos de RV já possuem os instrumentos necessários para
oferecer experiências audiovisuais de qualidade. É o caso do Oculus Rift que, além de possuir
um visor para projeção de imagens tridimensionais estereoscópicas de alta qualidade,
possui fones de ouvido embutidos na estrutura do dispositivo de acesso a RV.
Aqui, é interessante sublinhar que os equipamentos mais complexos para captação
de áudio natural são preocupações do produtor de conteúdos e não do usuário final.
Ou seja, para criar a espacialização do som, o produtor do ambiente virtual deve usar
microfones binaurais, a fim de simular o posicionamento dos ouvidos do usuário na
cena e, assim, simular qualquer tipo de bloqueio ou elemento que interfira na origem do
som até a sua jornada ao receptor sensorial do sujeito (SLATER et al., 2017).
Um exemplo de narrativa audiovisual bem integrada é a experiência do jogo The Bow,
que está entre as demonstrações gratuitas do HMD da Oculus. Nela, o usuário deve usar
um arco e flecha para eliminar robôs que correm em sua direção. Seu diferencial está
no mapeamento do som ao redor do cenário. Os passos dos inimigos são percebidos
de acordo com a sua distância (próximo ou distante) e localização (direita, esquerda,
frente, trás), o que permite ao indivíduo perceber a aproximação do perigo (Figura 8).

Figura 8: Espacialização do som permite que o sujeito perceba


a direção dos ataques inimigos

Fonte: http://www.oculus.com

4.3. Narrativas hápticas (paradigma corporal)

Segundo Friedberg (2006), um dos principais diferenciais da RV em relação às


demais mídias, incluindo os computadores pessoais e consoles de jogos digitais, está
na sua capacidade de proporcionar interações naturais ao usuário. Isto significa que,
independentemente da complexidade das ações e interações a serem realizadas para
manipular o conteúdo nas interfaces digitais, ao usuário é dispensado o uso de dispositivos
de comandos metafóricos como, por exemplo: teclado, mouse, joysticks e gamepads.
Através de sensores que captam seu posicionamento, gestos e movimentos, os
ambientes de RV permitem que o próprio corpo do usuário seja o dispositivo de controle e
249
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

navegação no cenário virtual. E, de fato, isto gera uma oportunidade para criar narrativas
imersivas que estimulam todo o conhecimento motor e cognitivo que faz parte do repertório
de conhecimento do sujeito no mundo real (CABRAL et al., 2016).
Porém, os equipamentos hápticos podem fazer muito mais do que captar a posição,
gestos e movimentos do usuário no mundo real para transpô-los ao mundo virtual.
Eles podem ser utilizados para gerar vibrações e feedbacks de tato em objetos ou,
ainda, emitir frio ou calor para simular temperaturas de ambientes ou objetos. Neste
sentido, abre-se um leque de oportunidades para a criação de narrativas em mídias
digitais que nunca foram possíveis em outras mídias. Afinal, mais do que oferecer
uma imagem tridimensional com som mapeado no cenário, com estes dispositivos
hápticos o sujeito pode sentir as texturas, temperaturas ou peso dos objetos virtuais,
criando uma elevada noção de que seu corpo habita o cenário virtual ou, no sentido
contrário, de que os objetos virtuais projetados por imagens computacionais são reais.
Diversas são as aplicabilidades para os dispositivos hápticos em ambientes de RV.
Na Medicina, por exemplo, a possibilidade do estudante fazer operações a pacientes
virtuais e sentir o feedback de força necessária a projetar para realizar cortes em
diferentes órgãos permite que nos primeiros anos da faculdade o estudante já tenha a
percepção de toque, texturas e particularidades para realizar operações num pulmão,
intestino, fígado ou coração, sem a necessidade de uso de cadáveres para realizar
este treinamento. Noutra perspectiva, com o projeto VR Thor – Virtual Reality Training
with Hostick Operations of Risk10, Cabral et al. (2016) utilizam recursos hápticos
para complementar a experiência narrativa do operador de cabos de alta tensão em
ambiente de RV. Nesta experiência, além de visualizar um espaço urbano com postes
e cabos de alta tensão precisando de manutenção, o usuário possui um bastão para
realizar as ações de manutenção com movimentos reais que são projetados em tempo
real no mundo virtual. Também, para criar realismo e envolvimento com a experiência,
em vez de levar uma descarga elétrica de alta tensão, que levaria a morte do operador
no mundo real, quando o usuário faz algum procedimento errado, o bastão treme
para que ele sinta que falhou na sua missão (Figura 9).

Figura 9: movimentos naturais do usuário são transpostos


para o ambiente virtual através de sensores

Fonte: Cabral et al. (2016)


250
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

5. Considerações finais

As tecnomediações em RV levantam questões disruptivas que confrontam


todas as relações que tínhamos estabelecido, até então, em nossas interações
humano-máquina com os ambientes digitais. Claramente, existe uma corrente de
desenvolvedores e pesquisadores que acreditam na consolidação de ações mais
naturais para o humano ao lidar com ambientes comunicacionais suportados por
lógicas computacionais. Nesse sentido, consideramos pertinente (urgente) que
cientistas da comunicação comecem a olhar atentamente para as consequências
sociais, semióticas e técnicas oriundas das relações do usuário com os ambientes
imersivos e multissensoriais (a midiatização aplicada na RV). Afinal, as narrativas em
contexto cibernéticos tornar-se-ão tão complexas quanto as narrativas da vida física
como ela é – o repertório do sistema cognitivo humano será transposto para realizar
as ações no virtual ou o sistema cognitivo humano será alterado devido às novas
tecnomediações imersivas em ambientes de RV?
É fato que as narrativas do corpo inteiro ainda dão seus primeiros passos. Contudo,
como demostrou-se neste ensaio, se a primeira geração de ambientes de RV focou-
se em elementos da percepção visual, a segunda geração centra-se no corpo inteiro
do sujeito. Estas relações estão cada vez mais estreitas, não apenas na visualização
3D, mas no tocar, pegar, manipular, sentir a pressão, as texturas, as temperaturas ou
o peso dos objetos. Inclusive, já é possível vestir uma roupa com sensores hápticos
para enviar (e receber/sentir) abraços virtuais.
No prisma da midiatização, este fenômeno está, por hora, dependente de
dispositivos que fazem a tecnomediação dos impulsos sensoriais – da máquina no
usuário – criando, assim, a ilusão perfeita de que o mesmo habita outro lugar que
não a sua própria realidade. Isso é fascinante e preocupante ao mesmo tempo. Afinal,
se sentimos e interpretamos o virtual como a pura realidade, teremos, além de um
paralelo para habitar, um cruzamento, uma hibridização de espaços, atividades e
vidas que se confundem entre fluídos físicos e fluxos comunicacionais.

Notas

1 Necessidade + capacidade = avanço tecnológico.


2 Revolução Agrícola, Revolução da Escrita, Revolução Científica, Revolução
Industrial, Revolução Elétrica, etc.
3 Command line interface (CLI)
4 Graphic User Interface (GUI)
5 Tradução livre: janelas, ícones, mouse e cursor.
6 Natural to the User Interface (NUI)
7 Visão, audição, tato, propriocepção, cinestesia, etc.

251
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

8 https://www.oculus.com
9 Segundo Kirner e Siscoutto (2007), em 2007, a taxa de atualização mínima
para gerar experiências confortáveis e que não gerem enjoo ou mal-estar do usuário
ao vestir os óculos de realidade virtual – modelos head-mounted display (HMD) –
é de 10 a 20 quadros por segundo. Hoje, manuais de boas práticas dos principais
desenvolvedores – Oculus e HTC – recomendam que esta taxa seja de 90 quadros.
10 www.cavernadigital.org.br

Referências

ACCIOLY, M. Isto é simulação: a estratégia do efeito de real. Rio de Janeiro: Editora


e-Papers, 2010.
BAUDRILLARD, J. Simulacra and Simulation. Ann Arbo: The University of Michigan
Press, 1994.
BURDEA, G. Virtual Reality Technology. Nova Iorque: Wiley & Sons, 2003.
CABRAL, M. et al. VR Thor: Virtual Reality Training with Hotstick on Operations Risks.
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254
A narrativa jornalística como
mecanismo de “transcriação”

Maurício Guilherme Silva Jr.

1. Do “dizer o mundo” sob novas conformações

A engenharia responsável pela estruturação dos processos de elaboração


jornalística – calcada em mecanismos de observação, apuração, decodificação,
conformação e edição do que venha a ser qualificado como “acontecimento” –
implica a necessidade de ressignificações discursivas as mais diversas, relativas
a estratégias de (re)encenação de conteúdos, vetores ideológicos, ideias e
princípios.
A transfiguração simbólica de informações e conhecimentos, extraídos de fontes
diretas e/ou indiretas (entrevista, documentação, imersão, observação etc.), em
narrativas jornalísticas dialógicas, amparadas em linguagem(ns) e formato(s) mais
próximo(s) à(s) experiência(s) daquele a quem se destinam (leitor, ouvinte, espectador,
usuário), apresenta-se como fértil campo de análise.
Trata-se, afinal, da possibilidade de teorização em torno dos princípios
editoriais desenvolvidos por jornalistas, profissionais imbuídos da elaboração de
narrativas capazes de problematizar/decodificar/descrever o(s) movimento(s) do
mundo. Para tal, recorreu-se, aqui, a definições e teorias vinculadas não apenas
aos “territórios” epistemológicos da Comunicação Social e do Jornalismo, mas,
também, aos campos de apreciação da Literatura e dos Estudos Linguísticos.
O referido procedimento metodológico pretende, tão somente, a ampliação da
complexidade do olhar acerca dos mecanismos de transformação de acontecimentos
em narrativas jornalísticas. Daí, também, a referência, no título deste ensaio, ao
conceito de “transcriação”, termo cunhado e teorizado pelo escritor Haroldo de
Campos, em diversos livros e artigos – mas, ressalte-se, com preocupações relativas
à teorização das técnicas de tradução na seara literária.
Ao propor o emprego do conceito de transcriação para análise do processo de
construção de narrativas jornalísticas, pretende-se, aqui, desenvolver a ideia de que os
procedimentos de transfiguração do acontecimento em notícia também se alimentam
da recriação de discursos, com o intuito de dilatar a capacidade de compreensão e
reflexão do público, no que tange a nuances, dubiedades e dilemas do mundo na
contemporaneidade.
Para além das proposições de Haroldo de Campos, o presente ensaio ampara-se
em ponderações de Jacques Rancière, acerca do “espectador emancipado”, assim
como no conceito de “transleitura”, do crítico e poeta José Paulo Paes (1995), e em
escritos do filósofo Paul Ricoeur (2011) sobre o ofício da tradução.

255
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

2. Tradução e transcriação haroldianas

Ao longo de sua trajetória intelectual, Haroldo de Campos (1929-2003) dedicou-


-se à problematização dos mecanismos de tradução poética. Também se notabilizou
como “artesão” das letras, capaz de transfigurar, à língua portuguesa, alguns dos
mais importantes textos da literatura mundial. Para além de tais ofícios, o crítico,
professor e escritor elaborou, em artigos e ensaios1, a estrutura basilar de sua parti-
cularíssima “teoria da tradução”.
No que se refere ao desenvolvimento do termo “transcriação” – segundo Santa-
ella (2005), engendrado como forma de discutir o princípio de “tradução criadora”
–, o autor dedicou-se a trabalhos relacionados à Semiologia2. Em suas problematiza-
ções, porém, afora esclarecimentos técnicos acerca do mecanismo da tradução inter-
-semiótica, Campos (2015) aborda a urgência da compreensão da prática tradutória
– na poesia, principalmente – como “empresa de natureza estética, análoga à própria
criação” (TÁPIA, 2015, p. 12).
O autor, na verdade, negava mecanismos tradutórios simplificados entre línguas
de “chegada” e “partida”. No ver de Campos (apud TÁPIA, 2015, p. 12), obtém-se,
pela tradução

em outra língua, uma outra informação estética, autônoma, mas ambas [...]
ligadas entre si por uma relação de isomorfia: serão diferentes enquanto
linguagem, mas, como os corpos isomorfos, cristalizar-se-ão dentro de um
mesmo sistema.

Em tal sistema, porém, não há técnica única, apta a orientar os tradutores de modo
generalizado: ao ser traduzidas, as (novas) narrativas necessitarão de “transcriações” em
paisagens específicas. Há de se ressaltar, ainda, que Campos (2015) valorizava a dialética
entre elementos macro e microestéticos. No caso da tradução de textos literários, o
investimento em soluções dialéticas poderia resultar em algo para além de mera “réplica
aproximativa”. Daí, segundo Santaella (2005, p. 222), o grande paradoxo em Campos
(2015): o próprio fato de a tradução literal ser impossível faz com que haja necessidade
de recorrer à recriação – ou, em outros termos, à “transcriação”.

3. Emancipação intelectual

Em elucubração de vasta abrangência epistemológica, Rancière (2012) investe


em reflexões acerca da natureza dos espectadores – especialmente, em espetáculos
teatrais. Apesar de tal especificidade temática, as discussões do escritor francês
servem de embasamento a análises mais amplas, referentes às distinções entre
“emancipação intelectual” e “instrução pública” – o que, em última instância, diz
respeito à investigação quanto ao posicionamento do espectador “no cerne da
discussão sobre as relações entre arte e política” (RANCIÈRE, 2012, p. 8).
Ao discutir o olhar como ação contrária ao conhecer e ao agir – posto que tal
ato pode se manter isento diante de aparências, de maneira a, solenemente, ignorar
processos –, o autor problematiza outra importante distinção, destarte, entre
256
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

espectadores ativos e passivos: “É preciso um teatro sem espectadores, em que os


assistentes aprendam em vez de ser seduzidos por imagens, no qual eles se tornem
participantes ativos em vez de serem voyeurs passivos” (RANCIÈRE, 2012, p. 9).
Em outros termos, o pensador fala de espectadores capazes de, permanentemente,
inquirir o mundo que os cerca:

O espectador deve ser retirado da posição de observador que examina cal-


mamente o espetáculo que lhe é oferecido. Deve ser desapossado desse
controle ilusório, arrastado para o círculo mágico da ação teatral, onde troca-
rá o privilégio de observador racional pelo do ser na posse de suas energias
vitais integrais. (RANCIÈRE, 2012, p. 10).

Tais predicados levariam o espectador, enfim, à “emancipação intelectual”, o que


lhe permitirá selecionar, comparar e interpretar o mundo dos homens e dos símbolos,
de maneira a relacionar “o que vê com muitas outras coisas que viu em outras cenas,
em outros tipos de lugares” (RANCIÈRE, 2012, p. 11). Desse modo, poderá compor

seu próprio poema com os elementos do poema que tem diante de si. Parti-
cipa da performance refazendo-a à sua maneira, furtando-se, por exemplo, à
energia vital que esta supostamente deve transmitir para transformá-la em
pura imagem e associar essa pura imagem a uma história que leu ou sonhou,
viveu ou inventou. Assim, são ao mesmo tempo espectadores distantes e in-
térpretes ativos do espetáculo que lhes é proposto. (RANCIÈRE, 2012, p. 11).

Neste ensaio, as discussões em torno da natureza dos espectadores dizem respeito


aos efeitos pretendidos pela narrativa jornalística baseada no dialogismo. Afinal, a cons-
trução do discurso não se restringe, obviamente, ao conteúdo transmitido: tão relevante
quanto a essência do que se pretende transmitir é a força advinda de interações com-
plexas, entre “composições jornalísticas” (nascidas de processos transcriadores) e lei-
tores/usuários/ouvintes/telespectadores etc. devidamente dispostos ao diálogo crítico.
Importante destacar a necessidade de, na sequência, aproximar as visões de
Rancière (2012) – em torno da ideia de espectador emancipado – aos conceitos de
“transleitura/transleitor”, vocábulos cunhados pelo poeta e crítico literário José Paulo
Paes – e também destinados a problematizar a intricada natureza dos consumidores
de informações, imagens, símbolos, tradições etc. Por fim, faz-se necessária a inves-
tigação dos ideais de “tradução” em Ricoeur (2001).

4. Dos dilemas da tradução à labiríntica transleitura

Conforme ressaltado, ao mergulho conceitual em definições de Campos (2015)


e Rancière (2012), seguem-se deliberações acerca dos princípios de “tradução” e
“transleituras”, respectivamente, segundo Paul Ricoeur (1913-2005) e José Paulo
Paes (1926-1998).
Na acepção do pensador francês “sobre a tradução”3, tal ofício resulta da aceita-
ção de uma perda. Ricoeur (2001) abandona, assim, a tradição teórica responsável
por louvar a necessidade de desprezar tudo aquilo que se revelasse negativo ao ato
257
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

de traduzir. Em outras palavras, trata-se da ideia de que há expressões intraduzíveis,


linguística ou culturalmente.
Para Ricoeur (2001), em primeiro lugar, é preciso assumir a importância – recrea-
tiva ou transcriadora, na acepção de Campos (2015) – do “luto” gerado por impossi-
bilidades linguísticas, semióticas ou culturais. Trata-se, em suma, da

coragem de assumir a problemática bem conhecida da fidelidade e da trai-


ção: voto/suspeita. Mas de qual tradução perfeita fala essa renúncia, esse
trabalho do luto? Lacoue-Labarthe e Jean-luc Nancy conceberam uma ver-
são da tradução perfeita válida para os românticos alemães sob o título de
Absoluto literário. (RICOEUR, 2011, p. 28).

O autor recusa, pois, o princípio de que seria possível uma espécie de “tradução
perfeita”, elaborada a partir de uma “racionalidade totalmente desprovida de impo-
sições culturais e de limitações comunitárias” (RICOEUR, 2011, p. 28-29). O ato de
traduzir implica, pois, perdas e impossibilidades, resultantes do exercício de transpo-
sição entre territórios narrativos.
Ricoeur (2011) cria, assim, o ideal de “hospitalidade linguística”, com fins a delinear
a gratificação experimentada pelo tradutor, devido ao “horizonte razoável do desejo de
traduzir”. O autor busca destacar que o “prazer de habitar a língua do outro é compen-
sado pelo prazer de receber em casa, na acolhida de sua própria morada, a palavra do
estrangeiro” (RICOEUR, 2011, p. 30). Como cerne de sua análise, Ricoeur substitui a
dicotomia “traduzível X intraduzível” pela ideia de “fidelidade X traição”.
No que tange ao ambiente conceitual das narrativas jornalísticas, a necessária inte-
pretação criativa de conteúdos e significados extraídos a partir das fontes exige procedi-
mentos específicos, por parte de repórteres, editores etc., para que se possa “traduzir”
“estrangeiridades” – concepções originais do acontecimento a ser transcriado – e, simul-
taneamente, fomentar diálogos complexos com leitores/ouvintes/usuários.
Eis o momento de promover a aproximação entre os pensamentos de Campos,
Rancière, Ricoeur e José Paulo Paes (1926-1998), criador do neologismo transleitura,
termo capaz de sintetizar o labiríntico processo de interpretação de textos literários
por parte de leitores: “O prefixo trans- visa simplesmente, no caso, a acentuar que a
leitura de uma obra literária é um ato de imersão e de distanciamento a um só tempo.
Tal duplicidade do ato de leitura responde, simetricamente, à duplicidade do ato de
criação literária” (PAES, 1995, p. 5).
Destaque-se, pois, que “transleitura” congrega a concepção de que os livros integram
um complexo sistema, “formado teoricamente por todas as obras literárias jamais
escritas e por todas as interpretações ou comentários críticos que vêm suscitando”
(PAES, 1995, p. 5). Conforme ressalta o crítico, o processo de leitura configura um

corredor de ecos, em que uma voz responde à outra e vai-se formando aquele
coro de vozes isoladas de certo modo se articulando. É aquela ideia baudelariana
das correspondências, só que transposta do plano da criação poética para o
plano da análise crítica. Quando você lê um livro, ele traz à sua lembrança os
outros livros que você leu. É uma espécie de tentativa de close reading com far
reading, de misturar o microscópio com o telescópio. (PAES, 1995, p. D4).
258
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

Segundo o autor, leituras diversas – não apenas de peças literárias, mas, também,
do mundo da vida – requerem sensibilidade às “instigações extratextuais” do texto:

Se alguma pretensão [as transleituras do livro] alimentam, só pode ser a de


eventualmente estimular nos leitores o mesmo gosto do autor delas pelo jogo
de ideias e pela associação da leitura de momento com o cabedal de leituras já
feitas, por mais caprichosa ou disparatada que tal associação possa parecer.
É graças a esse tipo de jogo associativo que o ato de leitura, sem abdicar em
nenhum momento da sua condição de ato de prazer, alcança ser ao mesmo
tempo um ato de progressivo enriquecimento espiritual. (PAES, 1995, p. 6).

Para a análise aqui pretendida, o conceito de “transleitura” almeja a problemati-


zação dos processos de reconfiguração (transcriação) do acontecimento em notícia:
infere-se que os atuais prosumidores4 de narrativas jornalísticas atuem como translei-
tores, de maneira a relacionar – consciente ou inconscientemente –, na mais frugal das
leituras, outros tantos textos, imagens, experiências e significados já absorvidos.

5. Transcriação e (trans)experiência

A disseminação e o consumo de bens simbólicos estão diretamente relacionados a


uma série de transfigurações do “sistema cultural” das sociedades modernas. Thomp-
son (1998) revela que, mais do que a mutação de crenças e valores, “o uso dos meios
de comunicação transforma a organização espacial e temporal da vida social, criando
novas formas de ação e interação, e novas maneiras de exercer o poder, que não está
mais ligado ao compartilhamento local comum” (THOMPSON, 1998, p.15).
As novas estruturas paradigmáticas do complexo sistema sociocultural dizem res-
peito ao desenvolvimento tecnológico dos meios de produção simbólica, com ênfase
nos mecanismos jornalísticos de elaboração e distribuição de informações. Ao longo
dos séculos XIX e XX, junto à ampliação da Indústria Cultural, os princípios e métodos
de escolha, construção e disseminação de mensagens noticiosas intervieram, de al-
gum modo, segundo Thompson (1990).
Com o aprimoramento das tecnologias e o desenvolvimento de novas ferramen-
tas e linguagens – do “virtual” ao “cibercultural”; do “convergente” (crossmedia) ao
“transmidiático” (transmedia storytelling) –, tornou-se ainda mais rica e complexa a
lógica de conformação de acontecimentos do mundo da vida em narrativas jornalís-
ticas. A atual praxis da profissão, pois, implica o desenvolvimento de mecanismos
transcriadores, capazes de promover o ajustamento entre linguagem, forma e neces-
sidades do(s) público(s) transleitor(es).
Ao pensar na perspectiva das práticas jornalísticas na contemporaneidade, é pre-
ciso buscar parâmetros – acadêmicos e estratégicos; teóricos e práticos; éticos e téc-
nicos – condizentes com os atuais desafios experimentados e/ou observados pelos
profissionais do setor. Trata-se de desafios multifacetados, expressos, para além do
uso das tecnologias e suas multipotencialidades, nas demandas do sofisticado públi-
co que hoje se interessa por informações jornalísticas.
Em linhas gerais, conforme ressaltado acima, está-se falando de indivíduos não
259
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

só com domínio técnico das ferramentas de transmissão, mas, também, aptos a agir,
simultaneamente, como consumidores e produtores de bens simbólicos. Em síntese,
isso revela que, daqui em diante, os jornalistas precisarão conviver com amplo volu-
me de conteúdo – assaz credível – elaborado e disseminado, em rede, por centenas
de milhões de pessoas ao redor do mundo.
Desse modo, se, por um lado, o domínio da praxis jornalística requer, hoje, o co-
nhecimento de múltiplas ferramentas de transmissão de informações, por outro, há
que se levar em conta uma nova (e complexa) miríade de desafios ético-profissionais
– o que inclui, por parte de empresas/instituições de Jornalismo, o investimento, por
exemplo, em propostas educomunicacionais.
Em tal cenário, pensar o engendramento da narrativa jornalística como processo
transcriador é imaginar modos de traduzir/recriar discursos do mundo da vida (cul-
turais, científicos, políticos, religiosos, esportivos, comportamentais etc.) – a partir
dos múltiplos processos de produção –, com vistas à conformação de um “discurso
outro”, capaz de acionar, nos sujeitos em situação de diálogo, uma série de mecanis-
mos de transleitura.
Destaque-se a importância, neste sentido, de também pensar o “fazer jornalístico”
com base na(s) experiência(s) do leitor/espectador/usuário a quem são ofertadas
as narrativas. Trata-se de espectadores – emancipados ou não, segundo a carga
conceitual atribuída ao adjetivo por Jacques Rancière – bastante heterogêneos, posto
que indivíduos instáveis e “munidos” de (trans)experiências diversas sobre o tempo,
o universo, a existência.
Em tal cenário, os mecanismos de transleitura – propostos por Paes (1995),
no território das investigações literárias – apresenta-se como adaptável a certas
pressuposições e necessidades da prática jornalística. Afinal, ao buscar novos
modos de dizer o mundo, os jornalistas precisarão compreender que a conformação
de seu discurso não se dissocia das múltiplas “experiências vividas” por leitores/
espectadores/usuários (público-fim das narrativas) e, também, por suas fontes de
informação e conhecimento.
Já em consonância aos estudos de Campos (2015) e Ricoeur (2011), faz-se
importante admitir a intraduzibilidade do mundo da vida, senão pela construção
(transcriadora) da realidade: a narrativa jornalística, portanto, reveste-se de
impossibilidades e perdas – no caso, referentes à “tradução” de discursos (culturais,
sociais, políticos etc.) –, para, então, fazer-se inteligível e dialogável em relação
a indivíduos com (trans)experiências – que, por sua vez, hão de interpretar as
informações jornalísticas de maneira completamente distinta, devido a seu particular
“corredor de ecos” vivencial.
Com foco nas especificidades teóricas e práticas do Jornalismo, chega-se, pois, à
questão central aqui delineada: de que modo os processos de observação, apuração,
decodificação, conformação e edição jornalísticos acabam por se tornar capazes
de produzir narrativas socialmente dialógicas? A resposta se situa, justamente, no
ideal de produção jornalística como atividade ligada à (trans)criação de discursos, de
maneira a problematizar os múltiplos significados do mundo da vida.
Em outras palavras: de que modo estimular coberturas jornalísticas, referentes a
260
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

noticiabilidades e temáticas as mais diversas, para que as narrativas sejam capazes


de estimular a emancipação intelectual de espectadores heterogêneos? Segundo
o que aqui se propõe, tal desafio passa pela recriação de padrões tradicionais de
formatação da informação, com o investimento na transcriação de realidades.
Em outros termos, trata-se da recriação de acontecimentos por meio de narrativas
jornalísticas, ao mesmo tempo, com vasta potencialidade de transleitura e repletas
de equivalências presumidas e capazes de aproximar, do transleitor (sujeito em
“[permanente] desejo de apropriação”), o “discurso do outro” – qual seja: a fonte, a
vítima, o gênio, o documento, a cena, a celebridade, o anônimo, o especialista etc., ou
“o estrangeiro em estrangeiridade”, segundo Ricoeur (2011).
Infere-se, pois, que, ao investir em novas maneiras de transcriar – com vistas
a “dizer o mundo” de modo complexo, e não ingenuamente para “traduzi-lo” –, o
jornalista torna-se capaz de vivenciar a “hospitalidade linguística” nascida do luto
gerado com a própria impossibilidade da tradução “absoluta/perfeita” de discursos
os mais diversos.

6. Considerações finais

Para além das ações básicas da prática jornalística (delineamento de pauta,


angulação, apuração e escrita), transcriar o “discurso do outro” (fontes diversas), em
“discurso outro” – capaz de estimular mecanismos de transleitura, e, ao mesmo tempo,
instigar, esclarecer, entregar e promover as bases para interpretações (pessoais) acerca
do mundo da vida –, é ato que se situa no terreno da investigação sociocultural.
Trata-se, afinal, da permanente invenção de modos de diálogo, por meio do
“discurso outro” (a narrativa jornalística transcriada), com a sociedade. Narrar de modo
transcriativo, pois, diz respeito à possibilidade de “estabelecer um encadeamento e
uma direção, investir o sujeito de papéis e criar personagens, indicar uma solução”
(LEAL, 2006, p. 21).
Em outros termos, transcriar, jornalisticamente, também diz respeito à possibilidade
de investir, por meio da articulação entre texto, som, imagem etc., na construção de
narrativas capazes de informar, enunciar, entreter e/ou interpretar, e, simultaneamente,
de aprimorar o debate em torno de questões prementes ao mundo contemporâneo.
Para que haja transcriação, porém, é preciso identificar, na narrativa jornalística, a
busca por mecanismos capazes de estimular a emancipação intelectual do espectador.
A proposta jornalística transcriada não apenas apresenta/descreve/cria o fenômeno
acontecimental (a realidade noticiável/reportável/interpretável), mas, principalmente,
edifica um “discurso outro” capaz de configurar (trans)experiências dialógicas com seu
público – conclamado, então, a olhar o mundo da vida não somente em função de sua
aparência imediata. A referida “narrativa jornalística transcriada” incita o observador
ativo, de maneira a atraí-lo à intepretação de processos – e não apenas ao consumo
rasteiro de signos sem profundidade e contextualização social, cultural, política etc.
Trata-se, outrossim, de narrativas polissêmicas, capazes de dissecar o “discurso do
outro”, e, ao mesmo tempo, de entrelaçá-lo a “experiências vividas” – no caso, tanto

261
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
de entrevistados (fontes primárias) quanto de (trans)leitores (público-alvo da iniciativa
jornalística). Fala-se, pois, de narrativas que “podem aparecer no cotidiano, contadas
pelos seres humanos, ajudando-os a viver e agrupando-os, distinguindo-os, marcando
seus lugares e possibilitando a criação de comunidades” (LEAL, 2006, p. 21).
Daí o desafio central das narrativas jornalísticas, nascidas do processo de transcriação:
inventar – ou reinventar, encenar etc. – formas mais democráticas e interativas de “dizer
o mundo”. Para tal, parte-se, em primeiro lugar, do pressuposto de que o público, mesmo
que leigo em relação a uma série de temáticas, detenha experiências (categoricamente)
próprias – o que o tornará, de modos vários, disposto à instauração de diálogos com o
“discurso outro” (conforme ressaltado, a “narrativa jornalística transcriada”).
Por isso, aliás, o investimento de inúmeros grupos jornalísticos – no Brasil e no
exterior – em ampla experimentação de linguagens, formatos e princípios editoriais.
Muitos deles pretendem a (trans)criação – contextualizada – de “discursos do outro” a
seus públicos. Sob o ponto de vista da ampliação do criticismo dos transleitores, quanto
às questões do mundo, o ofício da transcriação jornalística revela-se ético por natureza,
pois que, para além de ações básicas da prática cotidiana dos profissionais da área –
delineamento de pauta, angulação, apuração, edição, escrita etc. –, será preciso (re)
inventar modos de ampliação do diálogo entre a narrativa transcriada e a sociedade.
Em tal panorama, almeja-se, portanto, a existência de iniciativas jornalísticas
– passíveis, aliás, de verificação empírica em pesquisas futuras – centradas em
narrativas transcriadas capazes de, concomitantemente, informar e instigar o debate
(emancipado) em torno de questões caras à contemporaneidade.

Notas

1 Campos dedicou-se de muitas maneiras à temática, de abordagens gerais, a


exemplo de “Da tradução como criação e como crítica”, “Tradução: fantasia e fingimen-
to” e “Texto literário e tradução”, a nuances específicas, como em “Para além do princí-
pio da saudade: a teoria benjaminiana da tradução” e “Tradução, ideologia e história”.
2 “Tradução e reconfiguração: o tradutor como transfingidor”; “Da transcriação:
poética e semiótica da operação tradutora”; “Tradição, transcriação e transcultura-
ção: o ponto de vista do ex-cêntrico”; e “Tradução/Transcriação/Transculturação”.
3 Tais aspas fazem referência ao livro Sobre a tradução (UFMG, 2011), que reúne os
textos “Desafio e felicidade da tradução”, “O paradigma da tradução” e “Uma passagem”.
4 Referência a termo cunhado por Alvin Toffler, no livro A terceira onda, em teoria acer-
ca dos novos consumidores de informação, que, agora, também atuam como produtores.

Referências

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Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

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263
A televisão e a polinarrativa do jornalismo audiovisual

Vânia Torres Costa (Unama)


Alda Cristina Costa (UFPA)
Célia Trindade Amorim (UFPA)

Diálogos entre TV, cinema e imagens em movimento

Como a televisão narra? Como conta suas histórias? E, mais especificamente,


como o jornalismo, que se ancora em fatos reais, propõe narrativas e roteirizações
que envolvem a audiência, ao produzir sentidos sobre o mundo? Nesse contexto
de diversos questionamentos que circundam a narrativa em suas múltiplas faces,
aceitamos o desafio proposto pela Renami – Rede de Pesquisa Narrativas Midiáticas
Contemporâneas – de compartilhar nossas experiências a partir de pesquisas e
reflexões sobre as produções televisivas brasileiras. Somos pesquisadoras em busca
de compreensões sobre o jornalismo televisivo, a partir da problematização de seus
discursos como narrativas desafiadoras do ponto de vista analítico: como observar
imagens em movimento?
Nesse sentido, apresentamos, neste ensaio, um olhar sobre o telejornal a partir
de suas aproximações com o cinema, uma vez que, mesmo por tessituras, diálogos
e práticas sociais diferenciadas, essas narrativas são mediadoras de interações e
experiências com o (tele) espectador por meio do audiovisual.
Entre a tela grande e a tela pequena, há divergentes técnicas de produção e criação
e, consequentemente, estratégias de sentido diferenciadas, assim como nos modos
de apropriação da audiência, que saltam do ‘escurinho’ e das salas de exibição para
o sofá da sala, para a rua, o carro, o celular. No entanto, tais ambivalências não nos
impedem de dialogar com autores que estão propondo amiúde um olhar sobre as
peculiaridades das encenações audiovisuais e sobre o modo como operacionalizam,
a cada take e em seus ordenamentos, um certo olhar sobre os sujeitos e o mundo.
Tanto a televisão quanto o cinema, mesmo por caminhos diferenciados, necessitam
utilizar o que denominamos de polinarrativa, pois recorrem ao uso da imagem em
movimento, dos sujeitos em cena, da voz, do texto verbal, de sons e recursos cênicos
e visuais. Para entender a natureza da TV, partimos do telejornal e de seus modos
de dizer, que utilizam efeitos de realidade, por meio de aparatos técnicos, que vão da
captura de imagens e entrevistas à edição e exibição. É o que Zumthor (2007) chama
de ‘performance mediatizada tecnicamente’, a qual pressupõe uma recepção coletiva,
que se faz pela audição e visão. Essa performance, considerada pelo autor como
linguagem e ‘texto em presença’, constitui-se em aspecto relevante na polinarrativa
televisiva, envolvendo telespectador e fatos.
Com Stam (1985), abordamos a televisão como herdeira de duas lógicas discursivas
distintas e, em alguns sentidos, contraditórias: a fílmica e a jornalística. O noticiário é
tomado também como uma ficção, uma vez que simula a representação de intrigas:
264
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

produz histórias, organiza o tempo e convoca o telespectador como coadjuvante que,


mesmo invisível na cena, parece estar ali o tempo todo.
A narrativa produz o tom da conversa, o texto é coloquial e o bate-papo é simulado
por meio do ‘olho no olho’ entre repórter e telespectador, em nome da invisibilidade
da câmera. Trata-se da “pretendida ‘transparência’ da imagem em movimento,
especialmente na transmissão direta, o espectador pode ‘assistir’, teoricamente
como testemunha e sem mediação alguma”, afirma Fecé (1998, p. 32). O jornalista
atesta a verdade como testemunha e, além dele, os sujeitos citados e narrados são
convocados a se expor e a opinar como especialistas ou personagens, prontos a
compor a narrativa roteirizada pelo autor.
 Tomamos as produções televisivas seguindo Ricoeur (1994, p. 98), para quem
a narrativa, em sua estrutura (intriga), é uma representação simbólica do mundo da
vida, presentificada em uma “simples sucessão de agoras abstratos”. O jornalismo
toma como diferencial sua ancoragem no presente, no processo de atualização
contínua e ininterrupta dos fatos, narrando no presente e inserindo passado e futuro
em um eterno agora. Essa condição é permanentemente enfatizada como o ‘novo’,
que diferencia o jornalismo broadcasting das demais narrativas menos pretensiosas
com relação à concorrência.
Ao identificarmos a TV enquanto polinarrativa, entendemos que suas enunciações
apontam para especificidades de ações narradas e articuladas em sign­os, regras
e códigos culturais, conformando-se a partir das unidades discursivas (BAKHTIN,
2000). Diante disso, constatamos a relevância de observar, como imagem, texto e
som vão se amalgamando e se constituindo para dizer ‘um a um’ e a seu modo o que
o outro não diz. Nessa perspectiva, lembramo-nos de Barthes (1984): ‘a imagem diz e
o texto legenda’. Além disso, há coisas que só serão grafadas pelas imagens, por suas
repetições, e jamais serão ditas verbalmente. Assim, buscamos compreender como
a realidade se enuncia nas e pelas imagens em movimento no audiovisual televisivo,
em um modo muito especial e contemporâneo de narrar.
­­­­­
O audiovisual: entre cinema e televisão

No processo de reflexão acerca do audiovisual, somos levados a pensar em imagens


mediadas por aparelhos tecnológicos que se abrem para múltiplas possibilidades de
interpretações. Inspiramo-nos na concepção bakhtiniana de que a expressão artística
sempre mistura as palavras do próprio artista com as palavras de outrem, ou seja,
há um sistema de signos e de significação que se retroalimenta nas relações e/ou
experiências verbo-sonoro-imagético-visuais.
Essa é a primeira perspectiva que abordamos sobre a questão. Não tomamos
apenas som e imagem em movimento, mas todo o enunciado criado na construção
narrativa audiovisual e sua intertextualidade, ou as várias vozes presentes na
construção do texto. Nesse sentido, estabelecemos diálogo com Bakhtin (2000, p.
297), o qual considera “[...] cada enunciado pleno de ecos e ressonâncias de outros
enunciados com os quais está ligado pela identidade da esfera de comunicação
discursiva”. Dessa forma, um texto não existe sem o outro, ele é um diálogo entre
265
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

duas ou mais vozes, entre dois ou mais discursos.


Optamos por pensar sobre a televisão e o telejornalismo com uma matriz que não
tem uma fonte única, mas um ‘dialogismo’ de inspiração bakhtiniana, de infinitas e
abertas possibilidades, com uma diversidade de vozes presentes na comunicação.
Nessa perspectiva de interpretação, trazemos Stam (2003, p. 56), que pensa o
filme como uma mídia multimodal e toma suas construções para além das palavras
escritas e faladas, “mas também com performance teatral, música, efeitos especiais
e imagens fotográficas em movimento e explica a improbabilidade de fidelidade
literal”. Para ele, todas as formas de texto são, na verdade, intersecções de outras
faces textuais. O cinema, então, é concebido como uma linguagem, não apenas em
um sentido metafórico, mas também como um “conjunto de mensagens formuladas
com base em um determinado material de expressão, [...] um discurso ou prática
significante caracterizado por codificações e procedimentos ordenatórios específicos
(STAM, 2003, p. 132).
Retomamos uma discussão da segunda metade do século passado sobre essas
duas mídias, em busca de reflexões analíticas que permitam alcançar a intertextualidade
produzida no telejornalismo. A partir das proposições de Cristian Metz, Stam (1985, p.
75) observa que o “espectador do cinema se identifica, antes de mais nada, com seu
próprio ato de olhar, com ele próprio enquanto puro ato de percepção (enquanto alerta,
atento); enquanto condição de possibilidade do percebido e, daí, enquanto uma espécie
de sujeito transcendental, anterior a qualquer ver”.
Essa interação entre espectador e filme será utilizada por Stam (1985) para
compreender o prazer do telejornal, não importando o quanto as notícias possam
ser “más”, ou o quanto possam ofender nossas sensibilidades individuais ou
nossas predileções ideológicas. O telespectador ainda sente prazer em assistir ao
telejornal, devido às possibilidades construídas na relação entre mídia, informação
e telespectador.
Nessa perspectiva apontada pelo autor, tomamos o audiovisual televisivo como
uma construção polifônica, já que esse audiovisual se vale de vários recursos para
dar sentido aos seus enunciados e enunciações, além disso, também se oferta com
o verbal, com implicações do extraverbal, uma vez que este não existe sem aquele,
segundo Bakhtin, pois os interlocutores compartilham universos, conhecimentos,
pressupostos e sentimentos de um dado contexto, seja uma imagem, seja uma
palavra, seja um som.
Assim, entre cinema e televisão, há a realidade e as construções de possibilidades
narradas pelas duas mídias. O ato de filmar no cinema, conforme nos indicam Bazin
(1991) e Metz (1972), na medida em que é uma atividade humana, supõe uma
subjetividade, uma interpretação da realidade. A ‘realidade’ não se faz no filme, mas
na consciência do espectador e do cineasta, do sujeito. Portanto, toda imagem desvela
uma realidade preexistente capturada pela câmera, reflexões que serão retomadas por
Fecé (1998), ao discutir realismo e efeitos de realidade e a relação entre cinema e TV.
As discussões de Fecé (1998, p. 38) estabelecem-se nas diferenças entre imagem
e visual, sendo este último “a verificação ótica de um funcionamento puramente
técnico”. Segundo ele, o cinema não funcionaria completamente sobre a evidência
266
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

da imagem, considerando-se que parte das ‘ações’ está fora do alcance da vista do
espectador, ou seja, está em um espaço imaginário (chamado de contracampo e fora
do campo), “um espaço inesperado, um espaço ao mesmo tempo presente (na mente
do espectador) e ausente (da imagem)” (FECÉ, 1998, p. 39).
Por isso, no cinema, a imagem seria imperfeita e insuficiente, deixando, na nossa
concepção, ao espectador a possibilidade do preenchimento e da interpretação.
Já na televisão, segundo Fecé (1998, p. 39), não existiria o contracampo, somente
imagens que seduzem o espectador por sua pseudo-evidência: “a televisão mostra
o como das coisas, mas dificilmente o porquê; sacrifica o universal ao particular, as
ideias abstratas a uma realidade reduzida ao visível”. A realidade existe porque é
visível, porque é ‘evidenciada’ ou captada pelas imagens da TV, porque é visibilidade
imediata, com perspectiva de presente a-histórico e de atualidade. Portanto, o objetivo
da visibilidade não é o conhecimento, mas o reconhecimento. Nesse sentido, para
reconhecer um fato, ele precisa ser visível.
Diferentemente do cinema, na TV a imagem perde a complexidade e se aproxima
do clichê. Como nos diz Fecé (1998, p. 32), diante do filme mais ‘realista’, o espectador
sabe que está vendo um filme, sabe que entre o representado e sua representação
existe uma mediação, um ponto de vista. Já no discurso televisivo, principalmente
nas transmissões diretas, essa mediação é ocultada: o representado é percebido
de modo imediato, e o telespectador é testemunha do acontecimento. Para o autor,
de modo diferente do cinema, o espectador não acredita estar diante da verdade da
representação da TV, mas sim diante da ‘verdade’ do representado.
Em Bazin (1991, p. 10), também encontramos uma ‘vocação realista’ do
cinema, “não propriamente como uma veiculação de uma visão fechada e correta
do mundo, mas como uma forma de olhar que desconfia da retórica (montagem) e
da argumentação excessiva, buscando a voz dos próprios fenômenos e situações”.
O realismo da produção de imagem, segundo o autor, requer um estilo, implica uma
escolha, aspectos que também concebemos como relevantes na representação
televisiva da realidade. O cinema é a arte do encontro com o real, diz o pesquisador,
ainda que os ‘efeitos de realidade’ sejam diferentes.
Deleuze (1985) vem somar a essas discussões sobre a teoria da imagem, do
movimento e do tempo, ou então, sobre a ‘imagem-movimento’ e ‘imagem-tempo’,
marcando a separação entre o cinema clássico e o moderno. Suas reflexões, baseadas
em grande parte em Bergson, e suas teses sobre o movimento ampliam as análises
sobre os interstícios entre as imagens, ou a ligação entre os cortes de imagem, em
que, segundo Deleuze (1985), o pensamento se movimenta.
De acordo com o pensamento deleuziano, entre um plano e outro há uma conexão
com o pensamento: aquilo que está fora, não presente, o intervalo, é a potência
sígnica do cinema. Assim, o regime da ‘imagem-movimento’ se ancora num efeito de
verdade. Por outro lado, a ‘imagem-tempo’ não pressupõe uma verdade existente, mas
a capacidade de lançar novos signos, novas formas de pensar e entender o mundo.
Para ele, no cinema, o movimento é percebido por meio da montagem, instrumento
de domínio do tempo sobre o movimento.
O autor dialoga com o cinema como um instrumento filosófico, gerador de conceitos
267
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

que traduzem o pensamento em termos audiovisuais, não em linguagem, mas em


blocos de movimento e duração. Suas reflexões são baseadas nos modos como o
pensamento em movimento encontra a imagem em movimento. No pensamento
deleuziano, o cinema é um campo de conhecimento que atua de forma conjunta com
outros domínios do pensamento, tais como filosofia, literatura ou artes plásticas.
A imagem-movimento é o objeto, “a própria coisa apreendida no movimento como
função contínua” (DELEUZE, 2007, p. 40).
Para Deleuze (2007, p. 36-37), a imagem não cessa de cair em estado do lugar
comum, uma vez que ela se insere nos encadeamentos sensoriomotores que organiza
e induz, considerando que nunca percebemos tudo o que há na imagem, mas, afirma o
filósofo, “ela está feita para isso”. O cinema torna-se um dispositivo capaz de produzir
rupturas da ordem simbólica dominante e transformar o próprio conhecimento. Ou
então, de acordo com Haas (2010, s/p), o cinema “marca-se temporalmente pela
produção e lançamento de seus produtos audiovisuais e se caracteriza, assim, pela
construção de representações simbólicas do estado de coisas do mundo”.
Por outro lado, a televisão também se utiliza dessas representações e provoca
estímulos, como um fluxo contínuo do tempo, a partir das informações que produz
para a sociedade. Machado (2000, p. 33), um dos maiores estudiosos da televisão no
Brasil, afirma que é preciso pensar com as imagens, “mas também com as palavras e
os sons, pois o discurso das imagens não é exclusivista, e sim integrador e multimídia”.
Para o autor, “a imagem é uma forma de construção do pensamento tão sofisticada
que sem ela provavelmente não teria sido possível o desenvolvimento de ciências
como a biologia, a geografia, a geometria, a astronomia e a medicina”.
Para avançar no diálogo sobre o audiovisual televisivo, convocamos, também,
os estudos de Jost (2004), que, desde a década de 1980, realiza pesquisas sobre a
semiologia audiovisual, para entender tanto o cinema como a televisão. Esse autor utiliza
a denominação ‘comunicação televisual’, a partir da qual desenvolve a perspectiva
de promessa na crença do telespectador em relação ao que é veiculado pela TV, com
estabelecimento do vínculo com a audiência por meio de gêneros televisivos.
Nesse processo, ele reconhece que os ‘mundos televisivos’ se articulam em
diferentes registros – o real, a ficção e o jogo – e têm no ‘ao vivo’ uma de suas principais
formas de expressão. Do mesmo modo, parte da compreensão de que, na análise da
televisão, os gêneros televisivos podem ser interpretados em função de três mundos: o
mundo real, o mundo fictício e o mundo lúdico. Para Jost (2004, p. 20), é pelo gênero
que a TV atua sobre o telespectador no interior de um quadro semântico. Dessa forma,
o gênero contribui no direcionamento da interpretação por parte do telespectador.
Outra perspectiva alinhada, em certa medida, com Jost (2004) é a da pesquisadora
Chambat-Houillon (2012), cujas ideias são apresentadas no texto “Os limites da
reflexividade nos discursos jornalísticos na televisão”. A autora posiciona-se dizendo
que a televisão não funciona como o cinema, e demarca, como característica
diferencial, os laços tecidos com o público. Segundo ela, duas noções fundamentais
distinguem a televisão do cinema: a natureza programada da transmissão e a crença
na transmissão ao vivo. Suas reflexões são tomadas a partir de uma abordagem
pragmática, em que prevalece a intenção comunicativa contra uma abordagem

268
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

imanente e estrutural do conteúdo cinematográfico.


Para a autora, na televisão, obedece-se a uma grade de programação que leva
em conta “a combinação de programas uns com os outros de maneira sintagmática
durante o dia ou a noite, mas também decide suas relações possíveis com o público
disponível diante de seu aparelho em um momento preciso” (CHAMBAT-HOUILLON,
2012, p. 235), formando um “fluxo temporal contínuo regulado pelo canal que permite
à diversidade dos públicos aderir ou não àquilo que é transmitido”.
Ao apontar as diferenças que distanciam o cinema da televisão, a pesquisadora
francesa ressalta que as duas mídias têm um apego ao real, mas a televisão oferta
uma programação diária que articula, em um mesmo fluxo, os discursos ficcionais aos
discursos referenciais. Segundo a estudiosa, é quase impensável que os programas
de televisão possam falar de outra coisa que não seja o real, independente de seu
caráter informacional, ficcional ou de entretenimento; desse modo, eles visam, de
uma forma ou de outra, à realidade.
A televisão é caracterizada por Chambat-Houillon (2012, p. 238-239) como um
sistema de apresentação, uma vez que ela torna presente, “tanto em sentido temporal
de presentificação como em seu sentido espacial de estabelecer, para audiências
remotas, através de uma transmissão ao vivo, a realização de um fato”. Já o cinema
se situaria no que foi, no passado. A televisão, em sua concepção, estabeleceria as
condições de mediação da realidade, permitindo, assim, que o telespectador perceba
a realidade, não como uma representação, mas como uma construção fiel e autêntica.

O telejornalismo contemporâneo como instituição social

Apropriamo-nos do conceito de telejornalismo como instituição social, tomado


emprestado de Gomes (2008, p. 52), a partir dos termos de Raymond Williams1. O
telejornalismo é preconizado como “uma construção social, no sentido de que se
desenvolve numa formação econômica, social, cultural particular e cumpre funções
fundamentais nessa formação”, tornando a informação publicamente disponível.
É importante demarcar que as instituições sociais remontam à ordem social e à
própria origem da sociedade. O homem ordena o que poderia ser um caos social, por meio
da institucionalização das ações. Essa institucionalização representa uma economia de
escolhas do dia a dia (BERGER; LUCKMANN, 2012), orienta as ações humanas e, por fim,
organiza a vida em sociedade, visto que indica aos homens como proceder no cotidiano,
nos seus afazeres, e mostra quais suas funções e responsabilidades.
Instituir e institucionalizar são processos inatos ao homem, um ser tão social, que
seu próprio cérebro completa sua formação em sociedade, anos após o nascimento
(DURAND, 1998). Desde a hominização (FLUSSER, 2014), fenômeno segundo o qual
o homem se descobre diferente dos demais animais, refletindo sobre sua própria
existência no mundo da vida, ele está atribuindo funções aos objetos que o cercam e
papéis sociais às pessoas que o cercam. Essas atribuições se revestem de simbolismo
e são sancionadas pela sociedade ao longo de seu processo histórico de formação,
de modo que suas origens só possam ser remontadas dentro do tecido simbólico que
dá coerência a essa sociedade.
269
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

Nessa concepção do institucional, entendemos a função do jornalismo e a relação


estabelecida com os indivíduos. Como definido por Benetti e Hagen (2010, p. 124), o
jornalismo é um gênero discursivo que possui características singulares, “que podem ser
aprendidas e reconhecidas pelos diversos atores sociais” e, como discurso que é, “só
existe na relação entre sujeitos, e se estabelece em um contrato de comunicação”.
Considerando que a realidade é objeto genérico do discurso jornalístico, Chambat-
Houillon (2012) afirma que o telejornalismo se apresenta como um discurso factual,
tematizando acontecimentos do real. Para a autora, “não é a realidade completa
e complexa que é o centro de interesse dos jornalistas, mas a realidade enquanto
concebida como atualidade” (CHAMBAT-HOUILLON, 2012, p. 245). Assim, a atualidade
será o modo de inteligibilidade da realidade criada pelos jornalistas.

O telejornal como narrativa

O telejornalismo, enquanto narrativa, conta histórias diárias a partir de fatos que


se desencadeiam ao longo do dia. Com imagens em movimento, associadas ao som
e ao texto verbal, a TV leva até o telespectador os acontecimentos (SODRÉ, 2009),
ordenados segundo uma sequência predeterminada e hierarquizada em um modo de
exibição formatado a partir de um lugar e um tempo definidos dentro de uma grade de
programação, o que Chambat-Houillon (2012, p. 235) chama de “co-texto televisivo”.
Assim, segundo essa autora, cada programa é inserido em um antes e um depois
narrativo, “um fluxo temporal contínuo regulado pelo canal que permite à diversidade
dos públicos aderir ou não àquilo que é transmitido” (CHAMBAT-HOUILLON, 2012, p.
235). A programação diária é conformada em uma agenda de exibição, que não deve
mudar, para criar o hábito no cotidiano do público, que passa a ser monitorado por níveis
de interesse, faixa etária, gostos e perfis, gerados pelos institutos de pesquisa de opinião.
Do mesmo modo, Luhmnan (2005) indica alguns ‘seletores’ de notícias, que
funcionam como condições para os processos de noticiabilidade: a novidade dos
temas, os conflitos, as quantidades, as relevâncias locais, as transgressões à norma, a
atualidade. Todos esses seletores são sustentados por vozes opinativas convocadas a
falar como entrevistados, personagens ou especialistas. Toda a credibilidade do discurso
jornalístico repousa sobre a citação. No entanto, na televisão essas vozes têm de ter
‘cara’, têm de aparecer na cena, necessitam ser representadas enquanto existência
concreta. Mesmo quando não querem ou não podem se identificar, elas devem estar
em cena, seja de costas, disfarçadas, em contraluz, seja com a voz alterada.
Os telejornais exibidos em rede, objeto de nossas pesquisas, seguem uma agenda
nacional de exibição, conformando horários locais em todo o território brasileiro.
Os diversos tipos de materiais que compõem o telejornal podem ser observados
separadamente, como produtos discursivos que constituem narrativas, tais como
reportagens, entradas ao vivo, entrevistas, comentários, dentre outros gêneros
textuais, ou podemos analisar as emissões diárias inteiras dos telejornais enquanto
produto exibido ao vivo e intercalado por blocos comerciais. Em nosso caso, estamos
refletindo sobre essa última materialidade, situação em que algumas questões nos
atravessam: como analisar essas imagens ‘escorregadias’, em movimento? Como

270
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

observá-las em sua materialidade audiovisual (frames)?


A partir do diálogo com Stam (1985), entendemos que o noticiário, enquanto
narrativa, assemelha-se à ficção, ao propor uma trama de intrigas geradoras de
histórias, que convoca o telespectador a interagir com os jornalistas e sujeitos
entrevistados. Esses, aliados às cenas ‘reais’, compõem os elos de factibilidade
acionados para ofertar a credibilidade do jornalismo. O pesquisador diz que “as
histórias, enquanto elemento constitutivo da vida humana, são agradáveis porque
trazem o consolo da forma ao fluxo da experiência humana” (STAM, 1985, p. 07).
Os efeitos de verdade são dados a ver, são explicitados ao longo das narrativas,
para que não haja dúvida na audiência: “os efeitos de realidade e a transmissão
direta contribuíram para criar a ilusão de um mundo transparente, ao qual podemos
aceder diretamente, graças à tecnologia” (FECÉ, 1998, p. 11).
O repórter mostra, aponta, chama a atenção para um detalhe, aparece e assina a
matéria no lugar onde os fatos estão ocorrendo, sempre que possível, para contar o
que vê, ou melhor, para aparecer como testemunha in loco, apta a reportar os fatos.
A comentarista do tempo mostra o mapa. O apresentador aponta para as matérias
(produzidas previamente), entradas ao vivo e comentaristas, que são seus elos
com a verdade do mundo lá fora. As imagens relativas ao assunto tratado também
aparecem como cenário temático (selos) do telejornal a cada mudança de assunto.
Outro ponto de contato com o mundo lá fora são os jornalistas trabalhando ao fundo,
representando a rotina da apuração e da redação jornalística como processo e relação
de trabalho de pessoas comuns que se deslocam ‘naturalmente’ no cenário.
Os repórteres são posicionados, na maioria das vezes, de frente para a câmera, com o
propósito de explicar e esclarecer a audiência. O que o telespectador vê é consequência
de um enquadramento primeiro, definido ainda no momento de captação das imagens
pelo cinegrafista, seguido de uma seleção de trechos (edição) dos depoimentos, que,
no caso de uma reportagem, serão recortes de vozes dentro de uma matéria.
Há um longo processo de produção das notícias na TV, o que Coutinho e Mata
(2012) chamam de ‘dramaturgia do telejornalismo’: “as ações se desenrolam na
medida em que nos são dados a conhecer os personagens e ainda outros elementos
daquela estória, tais como cenário, contextos, referências temporais” (COUTINHO;
MATA, 2012, p. 379)2, no entanto, o bate-papo entre jornalistas e audiência propõe
uma certa invisibilidade da câmera.
Consoante às ideias de Sodré (2001, p. 21), “o essencial da televisão é a maneira como
ela organiza e como se organiza. O essencial dela é o código, a sua própria forma, essa
aderência sensorial a que ela convida as pessoas”. Nesse diapasão, são as gratificações,
apontadas por Stam (1985), que permitem ao telespectador o dom da ubiquidade. E mais
que isso: permitem ver ao vivo e, muitas vezes, ver com mais detalhes e variedades de
ângulos e enquadramentos do que os que estão na própria cena.
Sodré (2001) aponta uma ‘ideologia da transparência absoluta’, que busca
singularidades com as práticas cotidianas, nas quais os sujeitos estão inseridos
socialmente. A narrativa vai surgindo diante da audiência como se fosse improvisada,
com sua aparente naturalidade, como se ele próprio – telespectador – estivesse ali,
naquele lugar, vendo e ouvindo ‘tudo’, como testemunha, como se não houvesse
271
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

mediação (FECÉ, 1998).


O acontecimento se pauta na ‘temporalidade do aqui e agora’. Sodré (2009, p.
94) ressalta que o tempo é o verdadeiro vetor da enunciação, porque é algo que se
compõe, que tem duração variada, de acordo com as escolhas e decisões tomadas
pelos jornalistas. “Todo e qualquer fato tornado acontecimento pelo jornalismo implica
uma pontuação rítmica, e pouco importa se o acontecimento se deu no passado ou no
presente contínuo”, o que Ricoeur (1994) chama de ‘agoras abstratos’.
Os telejornais são, historicamente, transmissões ao vivo, são associados a uma
determinada hora do dia, a uma audiência específica. Os apresentadores, comentaristas,
a redação e os entrevistados de estúdio, de um lado, estão aptos a acionar de imediato
o chamado das ruas, os ágeis repórteres, as microcâmeras, os celulares, as câmeras
públicas, tudo como se fora ao vivo. Trata-se da exibição de uma determinada ação
no exato momento em que ela acontece, ou melhor, no exato momento em que tudo
deve estar pronto para acontecer assim que o jornal entrar no ar. Há um aqui e agora
característicos da TV, movidos pelas condições de seu dispositivo: a narrativa está em
movimento e ocorre em um determinado tempo de exibição.
Segundo Sodré (2009, p. 46), “a ideologia do campo profissional procura sempre
fazer passar a ideia de que a verdade do jornalismo pertence ao enunciado, ao
invés da enunciação”. Desse modo, a verdade é ofertada como um discurso pronto
(audiovisual), um pressuposto dos fatos que busca silenciar a enunciação enquanto
movimento, prática que se constrói no tempo e no espaço, em contextos específicos,
e que mobiliza os recursos da língua e do dispositivo pelo falante. A visibilidade
imediata, o ‘como’ as coisas aparecem é preponderante. O porquê é invisibilizado e
o presente passa a se configurar, segundo Fecé (1998, p.10), “[...] como um conjunto
de temas que substituem outros temas, de personagens, de dados e de fatos que
adquirem relevância por sobre o seu interesse objetivo [...] sem relação alguma com
o devenir histórico”, ou seja, o interesse reside em sua ‘atualidade’.
A linguagem é concebida como histórica, cultural e social, logo, os fatos devem ser
contextualizados não apenas linguisticamente, mas levando-se em conta os outros
elementos externos que compõem e constituem esse enunciado, que, junto com as
particularidades da enunciação, configuram, necessariamente, o processo interativo,
o verbal e o não verbal que integram a situação e, ao mesmo tempo, fazem parte de
um contexto histórico maior.
A tessitura do telejornal enquanto narrativa segue um roteiro, que se inicia com
o apresentador, o qual chama a matéria (VT) que vem logo a seguir. Há um forte
controle sobre a produção, tanto sobre o produto jornalístico, como sobre sua exibição
e interação com o telespectador. A audiência é convocada a se identificar com os
clichês de uma determinada sociedade, com as centralidades dos discursos e com os
‘outros’ das periferias e margens.
Na narrativa jornalística, afirma Sodré (2009, p. 170-171), os elementos são
construídos levando-se em consideração os seguintes aspectos: primeiro, o contexto
retórico e suas convenções linguísticas ou textuais presentes no fato; segundo, “o
contexto sociossemiótico das variáveis sócio-históricas (hábitos, cultura corporativa,
etc.) que fazem do texto uma prática social, portanto uma intervenção capaz de
272
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

influenciar e modificar relações sociais concretas”.


Assim, o acontecimento é maior que o fato, é sua projeção, uma síntese entre o
antes e o depois. “O acontecimento é uma modalidade clara e visível de tratamento
do fato, portanto, é uma construção ou uma produção de real” (SODRÉ, 2009, p.
37). Nessa construção, lembramos Flusser (2014, p. 129), quando afirma que,
“em vez de reconhecer o mundo na imagem, começo a reconhecer a imagem no
mundo. Em vez de me orientar no mundo objetivo com ajuda da imagem, começo
a me orientar na imagem com a ajuda do mundo objetivo”.
Pensando o jornalismo e a mediação de suas narrativas com o social, amparamo-
nos em Ricoeur (1994), que concebe a vida como um “tecido de histórias narradas”,
ou a narrativa como uma tarefa contínua de configuração do mundo. Para o filósofo,
na tessitura da intriga, há a relação entre tempo e narrativa. Nessa construção, chama
ao diálogo as perspectivas teóricas de Santo Agostinho e Aristóteles, de modo que o
primeiro se detém na tentativa de compreensão do tempo, enquanto o segundo se
propõe a esmiuçar como ocorre a configuração da intriga. A preocupação com o tempo
deve-se ao fato de a narrativa só ser possível quando há uma construção temporal,
não existindo narrativa sem tempo, isto é, “o tempo torna-se tempo humano na medida
em que é articulado de um modo narrativo, e a narrativa atinge o seu pleno significado
quando se torna uma condição da existência temporal” (RICOEUR, 1994, p. 85).
Na análise dos materiais, imagem, texto e som não podem ser tomados
separadamente, porque não são apresentados desse modo, mas devem ser analisados
como elos de uma corrente que não se desprendem e se conectam continuamente.
Há que se observar o papel de cada um, os ditos e os não ditos (DUCROT, 1987), o
que a imagem mostra sem dizer verbalmente, e o que o texto diz ao mostrar, como
entram as vozes dos personagens, a voz off do repórter, do apresentador e em que
situações entram em cena (COSTA, 2011). Barthes (1990) ressalta que o texto conota
a imagem, promovendo uma ‘naturalização cultural’. A mensagem linguística (texto)
nomeia a icônica, fixa a cadeia flutuante de significados. A palavra, que responde à
interpretação e também a orienta, tem um valor repressivo. O código de conotação,
para Barthes (1990), é histórico, cultural. Está relacionado ao saber do leitor.
A imagem é exibida enquanto texto e som, os quais, de modo didático, são usados
para nomear e explicitar uma determinada informação, que não é única, mas que
sucede e antecede uma outra, em um contínuo e sucessivo movimento. O texto
necessita ser coloquial, graças à instantaneidade da apropriação pelo telespectador,
que deve compreender de imediato. Acerca desse ponto, Fecé (1998) traz algumas
considerações importantes sobre o papel da imagem no audiovisual: ela é pura
presença, afirmação. Não admite a negação. Ela é um presente particularizante.
Quando o telespectador vê o que está na tela, a câmera se torna invisível. É ele que vê
ou deixa de ver. É ele que escolhe o que ver naquele frame, instante. É sua percepção
e interpretação que são acionadas. Trata-se de um jogo de luz e sombra, presente-
ausente. O que a TV mostra a cada take (tomada) é a concretização daquilo que não
mostra naquele exato momento, tudo o que está nas costas do cinegrafista, o que ele
e sua câmera não veem e não registram.

273
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

A polinarrativa do telejornalismo

A televisão não é mais a mesma. Essa mídia foi reconfigurada a partir das demandas
das novas tecnologias digitais. Sofreu remodelações em sua estrutura física, assim
como nas suas narrativas. Desde seu nascimento, nos idos dos anos de 1940, a
televisão representou uma revolução no ‘mundo da comunicação’, possibilitou aos
indivíduos o uso concomitante dos sentidos humanos: ouvir, ver, falar e se mover,
ampliando as experiências para o sonhar, o pensar, o significar e o interpretar, indo do
mais simples ao mais complexo da comunicação e da compreensão humana. Com a
imagem em movimento, os indivíduos foram lançados ao mundo e, do mesmo modo,
o mundo adentrou nossas casas. Aparentemente, tornamo-nos controladores do real,
pois a imagem possibilitou ‘ver’ tudo em qualquer canto do planeta.
É nessa perspectiva de pensar a realidade e sua captura pelo jornalismo de TV que
temos nos lançado ao desafio de pensar um método, não sem antes amadurecer as
questões epistemológicas do audiovisual, que dê conta de analisar o real produzido
pelo audiovisual televisivo. Daí indagamos: como a televisão narra? Como conta suas
histórias? E, mais especificamente, como o jornalismo, que se ancora em fatos reais,
propõe narrativas e roteirizações que envolvem a audiência, ao produzir sentidos
sobre o mundo?
Como bem nos lembra Bouissac (1995, p. 65-66), “as tecnologias da comunicação
criaram tanto entusiasmo intelectual como ansiedade ontológica, e levantaram uma
série de conceitos e abordagens teóricas, que surgem com o objetivo de compreensão
e controle dessa nova situação”.
E é Bakhtin quem nos ajuda a ‘modelar’ algumas construções para compreender aquilo
que denominamos de polinarrativa jornalística televisiva, a partir de seu dialogismo, e da
“interminável permutação de textualidade, ao invés da ‘fidelidade’ de um texto posterior a
um modelo anterior”, pensamentos apontados por Stam (2006, p. 21) sobre Bakhtin, na
sua discussão sobre adaptações de filmes a partir de romances.
Na busca por encontrar uma linguagem alternativa às análises fílmicas que têm
como propostas as adaptações, Stam (2006, p. 27) empreende uma tessitura, levando
em conta o conceito de dialogismo de Bakhtin e a definição de intertextualidade de
Genette, pensando em termos de uma prática intertextual, como um amplo arquivo
de termos e conceitos para dar conta da mutação de formas entre mídias, ou seja,
de uma “adaptação enquanto leitura, re-escrita, crítica, tradução, transmutação,
metamorfose, recriação, transvocalização, ressuscitação, transfiguração, efetivação,
transmodalização, significação, performance, dialogização”.
Portanto, é a partir dessas perspectivas em direção ao dialogismo e à
intertextualidade que propomos a polinarrativa do telejornalismo, uma mistura que é
enquadrada, emoldurada, encenada, que fala com e pelas imagens, presentificando
o real e o telespectador. O ‘poli’ dessa narrativa teria como base duas categorias
apresentadas e discutidas por Bakhtin: a polifonia e o dialogismo.
Para Bakhtin, a polifonia é parte relevante da enunciação, pois, em um mesmo
texto, ocorrem diferentes vozes que se expressam, além disso, todo discurso é formado
por diversos discursos. Ao selecionar o telejornalismo como objeto de análise, o
274
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

pesquisador deve observar os vários discursos que compõem a polinarrativa, não


como elementos únicos, mas discursos que se interpenetram e se complementam
nessa narrativa, entre eles: os textos em caracteres, a narração em off, a trilha sonora,
o cenário, as imagens em movimento, os apresentadores, os entrevistados, a voz e a
visualidade.
Portanto, as narrativas não se apropriam apenas da familiaridade com a trama
conceitual que existe no mundo da vida, o mundo prefigurado, conforme nos indica o
pensamento ricoeuriano, elas se utilizam de traços discursivos que as caracterizam
como narrativa. Se não fosse dessa forma, não se constituiriam como tal, mas apenas
em uma sequência de frases. Tal estrutura enquadra a narrativa na ordem sintagmática,
a qual prevê uma relação de sentido entre fins, agentes, meios e circunstâncias, que
fazem parte da ação e que atuam em uma ordem; caso essa ordem seja alterada,
toda a narrativa se altera ou perde o sentido.
Para Bakhtin, cada enunciado particular é individual, mas cada campo de utilização
da língua (aqui inserimos o jornalismo) elabora seus tipos relativamente estáveis de
enunciados, denominados por Bakhtin de gêneros do discurso:

A riqueza e a diversidade dos gêneros do discurso são infinitas porque são


inesgotáveis as possibilidades da multifacetada atividade humana e porque
em cada campo dessa atividade vem sendo elaborado todo um repertório de
gêneros do discurso, que cresce e se diferencia à medida que tal campo se
desenvolve e ganha complexidade (BAKHTIN, 2000, p. 279).

O dialogismo assim, em seu sentido amplo, é central para a interpretação do


audiovisual televisivo, uma vez que incorpora diversas vozes, que vão do contexto
histórico-político-social-cultural, dos donos das empresas de comunicação, dos
profissionais que fazem o jornalismo, dos especialistas que são convocados para
falar sobre determinados assuntos, dos indivíduos que dão seus depoimentos sobre
o cotidiano diário e dos telespectadores que se fazem presentes nas construções
narrativas jornalísticas. Há que se considerar como relevante o caráter polissêmico do
audiovisual, no qual essas diversas vozes são produzidas e ordenadas narrativamente
em uma tessitura única, que se oferta como transparente para ocultar o caráter
multiforme da polinarrativa.
Constatamos assim, que a análise do audiovisual televisivo comporta uma das
grandes investigações do campo da comunicação, concernente ao real ou à realidade,
seja na sua construção, seja na representação social, considerando que, de uma
perspectiva ainda estrita, essas imagens em movimento das transmissões diretas se
enunciam na mediação entre indivíduos e fatos. As imagens e os sons, após editados e
ofertados em uma sequência narrativa, são recortes do mundo encenado, produzidos
para aparecer na televisão e aparecer bem, no sentido de se tornar atraente e factível.
A montagem, tal qual no cinema, é consequência de escolhas de imagens (‘reais’) em
movimento, associadas a sons, textualidades e visualidades que se complementam como
produção de sentido, mas que se ofertam enquanto discursos únicos, indissociáveis
nos acontecimentos que ocultam as múltiplas performances da polinarrativa.

275
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
Notas

1 WILLIAMS, Raymond. The technology and the society. In: WILLIAMS, Raymond.
Television technology and cultural form. London: Routledge, 1997. p. 9-31.
2 Nessa discussão, Coutinho e Mata (2012, p. 375) apontam também um novo
lugar do jornalista de TV na narrativa: “antes narrador ou personagem periférico,
agora sujeito de – e sujeito a – uma narração de protagonismo. O repórter passaria,
nesse sentido, a também falar de si, estratégia de aproximação e construção da
credibilidade”. A busca é por um público jovem, que vem desviando para a internet,
pelo improviso e pela redução da formalidade.

Referências

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Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

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ZUMTHOR, Paul. Perfomance, recepção, leitura. Tradução Jerusa Pires Ferreira e
Suely Fenerich. São Paulo: Cosac Naify, 2007.

277
Narrativa jornalística acessível por meio
do recurso da audiodescrição1

Daiana Stockey Carpes2

1. Introdução

Quando percebemos o quão gratificante é proporcionar acesso àqueles que não


o têm e como as pesquisas ainda estão, de certa forma, incipientes nesta área,
propomo-nos a querer saber mais, ampliar cada vez mais nosso conhecimento,
acumular experiência e, principalmente, divulgar para ainda mais pessoas o potencial
inclusivo da audiodescrição, de forma especial, no campo do jornalismo.
Assim, o processo de inclusão de pessoas com deficiência é um dos grandes
desafios da sociedade atual. A questão da acessibilidade não é apenas um direito, mas
a exigência de uma realidade. Percebe-se que, cada vez mais, há uma preocupação
em promover o acesso à informação àqueles que possuem deficiência, seja ela visual,
auditiva, física, cognitiva ou motora. Entretanto, há um longo caminho a ser percorrido
para que efetivamente se tenha uma acessibilidade plena.
No campo da comunicação, mais precisamente do jornalismo, a informação dá
liberdade e autonomia a quem a possui. Porém, para aqueles que possuem deficiência
visual, as informações contidas nos suportes impressos acabam sendo inacessíveis.
Então, a audiodescrição no jornalismo impresso, nos moldes que esta pesquisa
propõe, pode ser uma forma de promover o acesso dos cegos a este meio. Por esse
viés, a audiodescrição do jornal impresso é considerada um recurso de acessibilidade
comunicacional; pesquisá-la é algo urgente, sob muitos aspectos.

2. Audiodescrição: a imagem que se transforma em palavras

No Brasil, de acordo com o último Censo (IBGE, 2010), realizado pelo Instituto Brasileiro
de Geografia e Estatística, 506,3 mil pessoas afirmaram ser cegas. Sendo que 35,8 milhões
de pessoas declaram ter alguma dificuldade para enxergar, mesmo com o uso de óculos
ou lentes de contato. Para atender esse público, no processo comunicacional, o recurso da
audiodescrição é primordial para ampliar o entendimento dos cegos.
A audiodescrição traduz as imagens, as expressões faciais e corporais, os
sentimentos e as emoções, os cenários, as paisagens, os figurinos, os efeitos
especiais, as mudanças de tempo e espaço em palavras. Enfim, o recurso possibilita
que qualquer informação visual relevante seja repassada aos cegos por meio de sons.
Assim, o cego, possui condições de entender e de chegar a suas próprias conclusões
acerca da obra audiodescrita.
Esse recurso, conforme explica Tavares (2013, p. 11), também pode ser aplicado
em imagens – estáticas ou em movimento, em eventos com ou sem deslocamento do
público – em sons e que permitem a uma pessoa cega ou com baixa visão compreender

278
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

o que está contido no visual. Para que a audiodescrição cumpra o seu objetivo, ela deve
ser breve e concisa, evitando afirmações com significados semelhantes ou óbvios.
As vantagens desse recurso não se limitam apenas aos cegos, mas se estendem às
pessoas idosas, com deficiência intelectual, disléxicas3, com síndrome de Down e para
todos aqueles com dificuldades de compreensão de leitura e de textos com imagens.
Os veículos de comunicação usam e abusam das imagens para ilustrar suas
reportagens. Fotografias, gráficos, vídeos e ilustrações são alguns exemplos de
materiais encontrados diariamente em jornais impressos e nos portais noticiosos.
Logo, a qualidade das informações recebidas pelo público cego está diretamente
ligada à acessibilidade promovida por quem disponibiliza o conteúdo jornalístico.
Por esse viés, jornais de grande repercussão no país estão proporcionando
recursos de acessibilidade para que todos tenham acesso aos conteúdos publicados.
Em 2014, a TV Folha4 exibiu a primeira reportagem com audiodescrição e legendas,
tendo como personagem o radialista Alberto Pereira, que conta a história do cão-guia
Simon, que estava próximo de se aposentar. A repórter, Melina Cardoso, idealista
do projeto, explicou que a ideia era colocar em prática os seus estudos, além de
proporcionar às pessoas com deficiência o direito de ter acesso a notícias de forma
clara, principalmente os vídeos da TV Folha, que são tão visuais e cheios de informação.
Em seu artigo sobre audiodescrição em charges do jornal Folha de São Paulo,
Cardoso (2016) destaca que quando os cegos não percebem a falta que as imagens
significam é importante alerta para os veículos de comunicação que esquecem o
público cego. “A falta de acesso aos conteúdos imagéticos, além de contrariar a lei
e desrespeitar o leitor, o desmotiva a buscar informações nos veículos que têm essa
lacuna” (CARDOSO, 2016, p. 45).

3. Hora de contar histórias

Narrar, segundo Motta (2013, p. 71), “é relatar eventos de interesse humano


enunciados em um suceder temporal encaminhado a um desfecho”. Para o autor, narrar
implica narratividade, uma sucessão de estados de transformação responsável pelo
sentido. Ou seja, é expor os processos de mudança, de alteração e de sucessão inter-
relacionados. Com a narrativa, Motta sugere que os acontecimentos são colocados em
perspectiva, que irá unir os pontos, ordenar os antecedentes e os consequentes, além
de relacionar as coisas, criar o passado, o presente e o futuro, encaixar significados
parciais em sucessões de tempo, explicações e significações estáveis.
Assim, as narrativas são manifestações que acompanham o homem desde sua
origem e está presente em todos os tempos, em todos os lugares, em todas as
sociedades. Da mesma forma, o ato de narrar está na literatura e no jornalismo. Para
essa pesquisa, abordaremos o campo comunicacional das narrativas.
Ricoeur (1994, p. 21) analisa que toda narrativa responde à questão por quê? Ao
mesmo tempo em que responde à questão referente ao que aconteceu, diz por que
isso aconteceu. Seguir uma história, conforme o autor, é um processo difícil, penoso,
que pode ser interrompido ou bloqueado. “Quem narra, narra o que viu, o que viveu,
o que testemunhou, mas também o que imaginou, o que sonhou, o que desejou”
279
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

(LEITE, 2000, p. 6). Motta (2013, p. 74), salienta que “narrar não é apenas contar
ingenuamente uma história”; é, portanto, uma atitude argumentativa, um dispositivo
de linguagem persuasivo, sedutor e envolvente.
A evolução das formas narrativas é estruturada por Motta (2007, p. 265-266) em
três partes:

A primeira corresponde à história antiga da narrativa, compreendendo os


tempos primordiais e a formação do período clássico greco-latino. A segunda
parte realiza a passagem do núcleo clássico para a Idade Média e tem
o seu ponto culminante no período do pós-Renascimento, com o início da
formação do romance. Completado o círculo de invenção e amadurecimento
do gênero, a terceira parte considera o Modernismo do século XX como
um período de reinvenção, em que a ficção empreende um movimento de
retorno, dialogando com obras prototípicas da tradição.

Convém, primeiramente, aplicar a divisão dos três tipos de oralidade, lembrada


por Zumthor (1993, p. 18-19), que corresponde a três situações de cultura:
1º Tipo: Oralidade primária e secundária – quando não comporta nenhum contato
com a escritura5. Esse tipo de oralidade é encontrado nas sociedades que não possuem
o sistema de simbolização gráfica, ou nos grupos isolados e analfabetos.
2º Tipo: Oralidade mista – quando a influência do escrito permanece externa,
parcial e atrasada. Esse tipo de oralidade procede da existência de uma cultura
“escrita” (no sentido de “possuidora de uma escritura”).
3º Tipo: Oralidade segunda, quando se recompõe com base na escritura em um
meio onde esta tende a esgotar os valores da voz no uso e no imaginário. Ou seja,
procede de uma cultura “letrada” (na qual toda expressão é marcada mais ou menos
pela presença da escritura).
Essa subdivisão não é cronológica, mesmo que no geral, seja possível que a
importância da oralidade tenha aumentado a partir do século XIII.
Percebe-se a transição das narrativas orais e escritas. Em um primeiro momento,
temos a forte presença da narrativa oralizada, sem o contato da escritura, marcado então
pela oralidade primária. Seguido das narrativas escritas, ou seja, a oralidade segunda,
resultado da forte presença da escrita, com a publicação do Unicom impresso.
Assim, Zumthor (1993, p. 160) comporta ao texto escrito um duplo efeito de
comunicação: um causado pelas polivalências geradas pela formalização poética e outro,
pelo afastamento de tempos e de contextos entre o momento em que é produzida a
mensagem e aquele em que esta é recebida. Contudo, o texto oralizado e o escrito não
podem diferir da linguística organizada de ambos. O ouvinte da mensagem segue o fio da
narração, sendo que, muitas vezes não é possível retornar6, diferentemente do impresso.
Por meio da narrativa comunicacional, há a narrativa jornalística. Sodré e Ferrari
(1986, p. 11) exemplificam esse fenômeno: “Quando o jornal diário noticia um fato
qualquer, como um atropelamento, já traz aí em germe, uma narrativa7”.
A força da narrativa jornalística, segundo Motta (2004, p. 11) está na compreensão
do jornalismo como uma forma de “domar o tempo, de mediar a relação entre um mundo
temporal e ético (ou intratemporal) pré-figurado e um mundo refigurado pelo ato de leitura”.
280
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

Diferente da histórica e da literária, conforme aponta Motta (2004, p. 23), a


narrativa jornalística, possui um caráter singular, além de sua configuração moral e
ainda que utilize predominantemente o pretérito perfeito ou imperfeito em seu discurso,
diz respeito ao presente. “O jornalista narra continuamente a história do presente
imediato, uma história fugidia, inacabada, aberta, mas, uma história” (MOTTA, 2004,
p. 23). As narrativas jornalísticas estão escritas no presente. Esse tipo de narrativa se
caracteriza pela maneira de contar o mundo, de tornar os acontecimentos conhecidos
e atualizar a sociedade a respeito deles, além de possuir entre suas funções, a de
registro histórico ao narrar os fatos no mundo.
Se todo texto jornalístico é uma forma narrativa, então, a audiodescrição deste
produto também é uma narrativa. Quando um texto jornalístico impresso recebe o
recurso da audiodescrição, a distância entre o leitor/ouvinte cego e a informação
veiculada é minimizada, de forma que será possível a esses sujeitos ter conhecimento
do que foi publicado no periódico. Conforme Mascarenhas (2013, p. 56) a
audiodescrição possui natureza narrativa, uma vez que compreende a descrição de
uma sucessão de fatos visuais .

4. Jornal-laboratório: vivenciando a teoria na prática

Para que os cursos de Comunicação Social habilitação Jornalismo sejam validados


pelo Ministério da Educação (MEC), é necessário que a instituição ofereça um jornal-
laboratorial, ou seja, um jornal produzido pelos próprios acadêmicos, com a supervisão
de um professor, com o objetivo de aplicar na prática, o que foi ensinado na teoria. O
jornal-laboratório prepara o acadêmico para o exercício profissional, sem se submeter
com os condicionamentos exigidos no mercado. Ou seja, no espaço laboratorial é,
mais do que nunca, permitido e exigido que se ouse, que se experimente, que se vá
além do exercício de sala de aula, que tente superá-lo, transformá-lo e inová-lo.
Durante o VII Encontro de Jornalismo Regional, realizado em 1982, sobre órgãos
laboratoriais impressos, na Faculdade de Comunicação de Santos, chegou-se ao
seguinte conceito para jornal-laboratório:

[...] é um veículo que deve ser feito a partir de um conjunto de técnicas


específicas para um público também específico, com base em pesquisas
sistemáticas em todos os âmbitos, o que inclui a experimentação constante
de novas formas de linguagem, conteúdo e apresentação gráfica.
Eventualmente seu público pode ser interno, desde que não tenha caráter
institucional. (LOPES, 1989, p. 50).

O jornal-laboratório, conforme Silva Filho (2012, p. 30), é um meio de comunicação


feito por alunos do curso de jornalismo sob a supervisão e orientação de professores,
capazes de contribuir de forma eficaz para a formação do futuro profissional. Neste
sentido, Melo (1985, p. 121) salienta o papel importante dos órgãos laboratoriais no
processo de aprendizagem:

281
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

Eu acho que eles são o espaço através do qual o ensino de jornalismo adquire
a sua própria vivacidade. Mas nós não podemos manter órgãos laboratoriais
independentes das atividades de transmissão de conhecimento, nas
próprias disciplinas de natureza profissional. Eu só entendo a existência de
órgãos laboratoriais, em qualquer curso de jornalismo, na medida que eles
estejam a serviço da teoria, eles estejam para permitir a aplicação prática de
conhecimentos sedimentados e muitas vezes para negar a própria teoria, para
produzir um conhecimento novo. Sem essa orientação, parece-me que esses
laboratórios podem se tornar verdadeiros equívocos.

Outro aspecto para tornar-se jornalista, apontado por Moraes Júnior (2013, p.
69), é conter na sua formação os valores de cidadania e de sociedade. “As práticas
laboratoriais ultrapassaram a noção de ensaio experimental para se tornarem uma
iniciativa factível de serviço comunitário e produção midiática alternativa” (FERREIRA,
2011, p. 158). A partir disso, percebe-se que a prática laboratorial audiodescrita,
analisada nesta dissertação, também assume os valores de cidadania e de sociedade,
proposta por Moraes Júnior (2013), além de prestar um serviço comunitário, como
aconselha Ferreira (2011).

Formar jornalistas sem que lhes desperte o interesse pela crítica dos
padrões vigentes na sociedade e sem que lhes ofereça oportunidades
de testar tais modelos em laboratórios e de criar alternativas inovadoras,
sempre foi motivo de frustração generalizada na área desde a década de
1950. (FERREIRA, 2011, p. 158).

Sugere-se que as práticas inclusivas laboratoriais sejam estabelecidas a partir


da inserção de novas linguagens por docentes capacitados, com o objetivo de que os
acadêmicos se sintam atraídos pelo ensino, sendo capazes de aprender e refletir sobre
o que está sendo ensinado. Assim, o diálogo entre professor e aluno juntamente com as
demandas do mercado torna possível a implantação das práticas inclusivas laboratoriais.

5. Metodologia da pesquisa

Este estudo foi realizado em um ambiente de observação direta, onde se


desenvolveram as experiências da produção laboratorial pelos acadêmicos do curso
de Jornalismo da Unisc. A convivência entre graduandos e a pesquisadora possibilitou
a interação das atividades de sala de aula, como a ajuda para o desenvolvimento do
roteiro e das locuções da audiodescrição do Unicom. Além disso, foi possível observar
e registrar os encontros com o grupo, resultando em interpretações detalhadas das
situações vivenciadas e analisadas a partir da revisão bibliográfica, realizada nos
capítulos anteriores.
O grupo de acadêmicos responsável pelo jornal audiodescrito é composto por
voluntários do projeto, matriculados na disciplina de Produção em Mídia Impressa. A
proposta de realizar um jornal acessível foi uma sugestão do professor da disciplina,
Demétrio de Azeredo Soster, sendo a decisão final, da turma. Os encontros com
os acadêmicos e a pesquisadora, Daiana Stockey Carpes, não seguiram uma
282
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

periodicidade. Ao todo foram cinco encontros presenciais, nos dias 25 de maio,


1º, 14, 15 e 22 de junho, os quais foram fundamentais para explicar o conceito de
audiodescrição, escutar e discutir alguns produtos audiodescritos e acompanhar a
elaboração do roteiro e as gravações dos áudios. Tais encontros foram realizados
em horário oposto às aulas. Também foi criado um grupo fechado no Facebook que
permitiu uma interação maior com os alunos, sendo um canal de comunicação
extremamente importante para sanar dúvidas, divulgar notícias e projetos da área e
também para acompanhar o desenvolvimento do projeto.
Buscou-se compreender, por meio de uma pesquisa qualitativa, e de investigação
bibliográfica, a temática da audiodescrição, das narrativas e do jornalismo-laboratorial,
que permitiu apontar o que já foi produzido na área, no qual interferiu diretamente
na produção desta pesquisa. Ao final, fez-se uso da etnografia, da observação
participante e da teoria do newsmaking, sob uma perspectiva teórico-metodológico,
para compreender os processos da produção do jornal audiodescrito.
Para a produção do Unicom, há dois momentos distintos. O primeiro se refere
à produção do jornal impresso. O segundo momento é de fato a produção do jornal
audiodescrito, no qual um grupo de acadêmicos analisa quais matérias serão
audiodescritas, a escolha das vozes mais adequadas para as narrações, as gravações
e por fim, a edição dos áudios. E é neste segundo momento, quando alguns alunos da
turma começam a pensar no material audiodescrito, que se insere a segunda etapa
do percurso metodológico.

6. Análise: a produção da informação acessível

A análise foi precedida de uma descrição dos encontros com o grupo. Optou-se,
como estratégia metodológica, dividir a análise por datas conforme os encontros
que foram realizados virtualmente, ou seja, via redes sociais – pelo Facebook, e os
presencialmente, com os acadêmicos para a produção do jornal audiodescrito.
Logo no início do primeiro semestre de 2016, quando começaram as tratativas do jornal
audiodescrito pela turma de Produção em Mídia Impressa, o professor Demétrio inseriu a
criação deste produto em um projeto de extensão na Unisc, que deu origem ao e-book Manual
de audiodescrição para produtos jornalísticos laboratoriais impressos (Catarse, 2016). O
projeto permitiu que este grupo de acadêmicos, responsável pelo Unicom audiodescrito,
desenvolvessem, por meio da prática laboratorial, atividades inclusivas, qualificando sua
formação e incentivando a democratização do acesso aos meios de comunicação social.
Além da produção do Unicom audiodescrito, surge o manual, no mesmo ambiente de sala
de aula, a fim de orientar as práticas jornalísticas inclusivas.

7. Considerações interpretativas

São visíveis as mudanças e transformações que o jornalismo sofreu nos últimos


anos, principalmente com o desenvolvimento da tecnologia e com a chegada da
internet. Com isso, novos meios e novas formas de “contar” as notícias são criados
para atingir um número cada vez maior de pessoas. Já não basta simplesmente
283
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

noticiar os fatos: é preciso garantir que todos tenham o mesmo acesso à informação.
A mídia precisa ser reeducada para incluir as pessoas com deficiência no que tange
a divulgação de notícias. E pensar na inserção deste tema, desde a formação dos
jornalistas, faz toda a diferença na qualificação deste profissional do ponto de vista
humano, mas, também, para instrumentalizá-los a uma prática acessível que requer
conhecimento técnico.
Diante de tudo isso, foi possível pensar em um conceito para aquele jornalismo
que se preocupa com a acessibilidade, entendido aqui como jornalismo acessível, no
qual há uma adaptação do seu conteúdo original, com o objetivo de incluir as pessoas
com deficiência para ter acesso à informação. O jornalismo acessível rompe as
barreiras tradicionais da informação e procurará mecanismos e tecnologias para que
todos tenham acesso à mesma informação. A regra aqui é incluir. Como meios para
promover a inclusão no jornalismo, pode-se citar a Libras para produtos audiovisuais,
a audiodescrição para conteúdos imagéticos, sites com formatos acessíveis e textos
alternativos para imagens na web.
Os processos de audiodescrição jornalísticos levam a novas práticas do jornalismo
e demandam adaptações na sua estrutura narrativa e nas estratégias de diálogo que
estabelece com seu público, principalmente aqueles que possuem cegueira. Auxiliar
na composição de uma narrativa mais atraente, acessível e de fácil compreensão
para sujeitos com deficiência visual é dever do comunicador, que tem no seu papel
fornecer o conteúdo compreensível a todos os públicos. Comunicar por meio do som,
uma vez que é realizada a audiodescrição do impresso, envolve entender inúmeros
elementos que dialogam no processo de construção da informação do impresso para
o áudio, entre eles, a técnica da audiodescrição, e da transmissão de emoções e
sensações do público que se quer atingir. E é a partir destes elementos que se forma
a narrativa acessível aos cegos e, consequentemente, consolida-se a comunicação,
efetivando o processo de inclusão.
Além disso, identifica-se uma convergência do jornal-laboratório. Ou seja, o produto
original (Unicom Impresso) foi traduzido para o áudio, por meio da audiodescrição, e
foi inserido na web, sendo divulgado e inserido nas redes sociais e também nos sites
Hipermídia e SoundCloud.
Trabalhar com a interdisciplinaridade, aliada às questões da acessibilidade, como
a audiodescrição, reflete nas qualidades e aptidões que este futuro jornalista poderá
oferecer no mercado de trabalho, conforme já salientado. Além disso, aqueles alunos
que fazem uso das técnicas da audiodescrição em produtos jornalísticos exercitam
as habilidades de atenção, de descrição cuidadosa e minuciosa de cada página,
analisando cada detalhe do conteúdo imagético.
A força desta pesquisa está em promover um jornal-laboratório acessível aos cegos
e, em decorrência disto, tornar a formação de jornalistas mais inclusiva e cidadã. A
pesquisa também se justifica por estar em movimento de ascensão à acessibilidade
comunicacional, tanto em pesquisas científicas, como acadêmicas. Diante destas
observações, aponta-se uma necessidade de constante revisão das práticas jornalísticas
e comunicacionais, buscando o aprimoramento e a inovação, em prol da inclusão.
Logo, pode-se incluir o Unicom audiodescrito como um meio de comunicação acessível,
284
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

respeitando o Estatuto da Pessoa com Deficiência e o Código de Ética dos Jornalistas


Brasileiros, que consta: todo cidadão tem direito à informação, abrangendo o direito de
informar, de ser informado e de ter acesso à informação.

Notas

1 Artigo fruto da pesquisa de dissertação do mestrado.


2 Graduada em Comunicação Social - Jornalismo, pela Universidade de
Santa Cruz do Sul (UNISC) e mestre em Letras (UNISC). Autora do site www.
jornalismoemaudiodescricao.com.br, que ficou em segundo lugar no concurso
nacional de acessibilidade na web (Todos@Web), em 2014. É organizadora do e-book
Audiodescrição: práticas e reflexões (2016) e autora, juntamente com Demétrio
de Azeredo Soster, do livro Manual de Audiodescrição para produtos jornalísticos
laboratoriais impressos (2016)
3 A dislexia é um transtorno na área da leitura, escrita e soletração, que pode
também ser acompanhado de outras dificuldades, como por exemplo, na distinção
entre esquerda e direita, na percepção de dimensões (distâncias, espaços, tamanhos
e valores), na realização de operações aritméticas (discalculia) e no funcionamento da
memória de curta duração. A dislexia costuma ser identificada nas salas de aula durante
a alfabetização, sendo comum provocar uma defasagem inicial de aprendizado.
4 Matéria divulgada pelo Portal da Imprensa – Jornalismo e Comunicação na Web.
Disponível em: <http://www.portalimprensa.com.br/noticias/brasil/68024/acessibilid
ade+nao+e+privilegio+e +direito+diz+jornalista+sobre+audiodescricao+na+tv+folha>.
5 O sentido do termo escritura não é uniforme, podendo referir-se a técnicas,
atitudes e condutas diversas, conforme os tempos, os lugares e os contextos eventuais
(ZUMTHOR, 1993, p. 99).6 Nota-se que o autor utiliza-se dos poemas oralizados para
explicar a distinção do oral para o escrito. Para essa pesquisa, entendemos que a
mensagem oralizada pode ser retornada à medida que o áudio encontra-se na internet,
exemplo disso, são as edições do Unicom Audiodescritos, publicadas na rede.
6 Nota-se que o autor utiliza-se dos poemas oralizados para explicar a distinção
do oral para o escrito. Para essa pesquisa, entendemos que a mensagem oralizada
pode ser retornada à medida que o áudio encontra-se na internet, exemplo disso, são
as edições do Unicom Audiodescritos, publicadas na rede.
7 Outras formas de jornalismo, como a reportagem, a crônica, o novo jornalismo,
o romance-reportagem têm uma identidade maior com a literatura e fazem maiores
concessões poéticas. Buscam outro tipo de relação pragmática com o leitor, diferente
do jornalismo factual. Nesses casos, a identificação narrativa é mais fácil e imediata.

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288
A midiatização das narrativas de bicicleta

Demétrio de Azeredo Soster

1. Primeiros movimentos

Este artigo parte do pressuposto, no rastro de uma tradição narrativa inaugurada


por jornalistas-aventureiros como Jack London, Jon Krakauer, entre outros, que, nos
dias que seguem, a midiatização afeta processualmente as narrativas de viagens, em
particular as que são realizadas de bicicleta; que se enquadram, portanto, na categoria
cicloturismo e às quais nos referiremos, doravante, como “narrativas de bicicleta”.
Narrativas de viagens são relatos ficcionais, não-ficcionais e mistos (MARTINEZ, 2012)
realizados com o objetivo de descrever viagens com os mais diferentes fins (aventura,
autoconhecimento, pesquisa etc.). Por cicloturismo compreenderemos o turismo que é
realizado tendo a bicicleta como meio de transporte (CAVALLARI, 2012). “Narrativas de
bicicleta” são, neste sentido, os relatos, textuais, imagéticos ou sonoros, estruturados a
partir de viagens de bicicleta, portanto fáticos, com fins turísticos ou de entretenimento.
A midiatização das narrativas de bicicleta pode ser percebida, por exemplo,
quando um cicloturista, ao se preparar para uma viagem, preocupa-se tanto com
os equipamentos que levará em sua cicloviagem como com o que irá utilizar para
registrar seu percurso e aventuras vividas. Dito de outro modo, tão importante
quanto a aventura é o registro da mesma e sua divulgação, como faziam os primeiros
jornalistas-aventureiros, mas com uma diferença: dispositivos como sites, blogs, redes
sociais, tecnologias móveis e outros reconfiguram toda uma ecologia comunicacional,
reduzindo em muito o tempo do vivido, seu registro e difusão.
É, dizer, por outras palavras, que a midiatização das narrativas de bicicleta, na
perspectiva que estamos propondo observar, ganha relevo diferenciado quando
considerada em sua relação com a internet, em particular a web1. Tem-se, aqui, quem
sabe, uma substancial complexificação na forma de acesso dos atores àquilo que
Verón (2013) chamou de “discursividade midiática”. É o que se observa, por exemplo,
quando um relato do que deveria ser apenas uma cicloviagem de bicicleta traz consigo
marcas que sugerem que ele foi pensando para “circular” na web, interferindo em
toda a estrutura discursiva dos enunciados.
Partimos do pressuposto de que isso ocorre porque a midiatização reconfigura este
modelo de narrativa a partir de um complexo “trabalho discursivo de midiatização”
(FAUSTO NETO, 2012), midiatizando-o. A midiatização será aqui compreendida como
a) movimento em que a tecnologia é intercalada entre o sujeito e a ação que realiza,
mas, também, b) como uma mudança na forma como a sociedade dialoga com ela
mesma (BRAGA, 2012). Estudar as múltiplas semioses que se estabelecem nesta
processualidade implica admitir, portanto, desde agora, que:
1) estamos diante de um problema de circulação; ou seja, de sentidos que
emergem da geração de diferenças entre gramáticas de produção e reconhecimento

289
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

(VERÓN, 2004, p. 53) –


e
2) que estas diferenças podem ser identificadas pelo viés de marcas não
homogêneas (VERÓN, 1980; 2004) distribuídas na superfície dos objetos analisados
na forma de operações linguísticas, à revelia de seu formato (texto, imagem, imagem
em movimento etc.).
Importante salientar que nossa perspectiva se insere naquilo que Onfray (2015)
categorizou como uma teoria da viagem, que alcançamos pelo viés das narrativas. “Todos
os viajantes narram suas peregrinações em cartas, cadernos, relatos” (ONFRAY, 2015,
p. 31), ainda que estes recortes sejam pouco diante da realidade. “Entre a ausência de
vestígios e seu excesso, a fixação dos instantes fortes e raros transforma o tempo longo
do acontecimento num tempo curto e denso: o do advento estético” (ONFRAY, 2015, p.
53). Observar este tempo que se transforma em objeto estético, sem desconsiderar o
lugar de análise, exige, por outro ângulo, um olhar antes de etnólogo que de turista, nas
palavras de Augé (2010, p. 74): “O que difere verdadeiramente o etnólogo do turista é,
sobretudo, seu método: a observação sistemática, solitária e prolongada”.
Em relação ao objeto de nosso interesse, as bicicletas e o cicloturismo, trata-se de
fenômeno relativamente recente. Cavallari (2012), por exemplo, pontua que a bicicleta
foi inventada na aurora do século 19, mais especificamente em 1817, na Alemanha,
pelo barão Karl von Drais – chamava-se, o invento, inicialmente, laufmaschine, ou
máquina de correr. Estamos falando de uma estrutura de madeira de 22 quilos, sem
pedais, que, mais tarde, quando de sua patente, seria chamada de “velocípede”; mas,
popularmente, draisienne, em referência ao seu inventor.
Schetino (2010), por sua vez, afirma que foram os irmãos franceses Pierre e
Ernest Michaux, em 1861, quem aperfeiçoaram a invenção, fixando nela, junto às
rodas dianteiras, pedais. O nome bicyclette foi dado pela empresa inglesa Tangent
and Conventry Tricicle Company, em 1880. A máquina inovava, e ainda estamos
dialogando com Schetino (2010), à medida que sua tração era feita por correntes
acionadas pelos pedais, e não mais por estes estando fixos na roda dianteira.
Se considerarmos, ainda de acordo com Cavallari (2012), que, em 12 de junho
de 1817, quando do primeiro invento, Drais pedalou 13 quilômetros na cidade de
Mannhein, pode-se pensar, quem sabe, que foi o primeiro “ciclopasseio”. Um pouco
mais tarde, a mesma fonte lembra que o jornal The Times, da Inglaterra, publica
reportagem contando aquela que seria a primeira cicloviagem, ainda que esta
nomenclatura não existisse à época: 84,8 quilômetros do Centro de Londres até
Brighton, feito realizado por John Mayall, Charles Spencer e Rowley Turner.
Muitas outras cicloviagens viriam a ocorrer desde então. Em nível de Brasil, Schetino
(2010) salienta que a bicicleta, como uma ideia de modernidade, cumpriu importante
papel na transição dos séculos 19 para o 20, à medida que passou a representar uma
prática esportiva, portanto cultural, ligada à modernidade, desde então amplamente
difundida na França, país que servia de modelo ao Brasil neste aspecto. Não se tem,
no entanto, salvo relatos dando conta de seu uso para passeios breves ou esportivos,
nenhum registro mais consistente das primeiras cicloviagens por estes lados.

290
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

Dito isso, e para dar conta de nosso propósito metodologicamente, iniciaremos


observando o que compreendemos por circulação midiática. A visada é importante
para que possamos compreender, mais adiante, como se estabelecem os sentidos que
emergem da geração de diferenças entre gramáticas de produção e reconhecimento
nas narrativas de bicicleta. O próximo passo será a análise de alguns modelos de
narrativas; neles, das operações linguísticas deixadas em suas superfícies como
indicativos da presença de camadas mais profundas de significação. Ou seja, da
forma como a midiatização afeta as narrativas de bicicleta, midiatizando-as.

2. Um problema de circulação

Uma estratégia possível para compreendermos como a processualidade da


midiatização afeta as narrativas de bicicleta é assumirmos, desde agora, que estamos
diante de um problema de circulação. Ou seja, de reconfigurações que se estabelecem
no âmbito dos dispositivos midiáticos – livros, sites, redes sociais etc. – quando se
veem atravessados por circuitos múltiplos. Defendemos que, quando isso ocorre, criam-
se zonas intermediárias de circulação (ZIC’s), ou, simplesmente zonas de contato,
ambiências intermediárias (FAUSTO NETO, 2010) em que as gramáticas de produção
e reconhecimento são tensionadas. Ou, em palavras mais simples, ainda, onde se
complexificam os papéis de emissão e recepção e onde os jornalistas-aventureiros
podem interferir processualmente em suas narrativas graças às transformações que se
verificam na geografia do sistema em que se inserem.
É preciso, portanto, delimitar o que entendemos por circulação. Conforme discorremos
em outro momento (SOSTER, 2016), e sem nos alongarmos mais que o necessário no
assunto, pensar a circulação nos moldes que estamos propondo, sistêmicos, é distinto
de fazê-lo em uma perspectiva jornalística. No primeiro caso, estamos diante de um
“espaço gerador de potencialidades” (FAUSTO NETO, 2010); no segundo, do percurso
existente entre uma instância e outra de determinados processos produtivos.
Ou seja, a circulação jornalística diz respeito à forma como as informações se
deslocam quando são veiculadas em dispositivos jornalísticos (ZAGO, 2012; MACHADO,
2008; RABAÇA; BARBOSA, 1995), independente de sua natureza, até alcançarem
a quem se destinam. “Não há dúvida que não se pode pensar o jornalismo sem a
circulação, assim como não se pode resumir esta instância à forma como as informações
de natureza jornalística transitam” (SOSTER, 2016, p. 9), resumindo-se a circulação a
uma espécie de “zona automática” (FAUSTO NETO, 2010).
Se pensarmos, portanto, a circulação como espaço de potencialidade, ainda
no diálogo com Fausto Neto (2010), podemos, quem sabe, observá-la, antes, como
dispositivo que meio ou mesmo mensagem. É o que Ferreira (2013, p. 147) vai
chamar de “um lugar de inscrição” capaz de se transformar ele próprio em “operador
de novas condições de produção”.
Isso posto, ao pensarmos a circulação, o que temos, então, mais que intervalo, ou
lugar de passagem, é um espaço de possibilidades, nas palavras de Braga (2012);
ou, ainda, “(...) instância em que processos de enunciação, portanto de sentidos, têm
lugar” (SOSTER, 2016, p. 11), em decorrência de sua natureza complexa, não linear.
291
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

3. Circuitos Informacionais

Vejamos, agora, o que são circuitos informacionais. A delimitação é necessária,


uma vez mais, porque são os atravessamentos e interposições provocados pela
presença de circuitos informacionais na relação entre 1) dispositivos e sistema; 2)
dispositivos, meio e sistemas; e, finalmente, 3) dispositivos, meio, sistemas e demais
sistemas que nos permitirão compreender, mais adiante, como se estabelecem as
zonas intermediárias de circulação. E, com elas, as afetações que a processualidade
da midiatização provoca nas narrativas de bicicleta, objeto de nossa reflexão.
Pensar em uma sociedade assentada antes em fluxos informacionais que na
perspectiva de campo, sem, evidentemente, excluí-lo do cenário analítico, tem a ver
com considerarmos que, com a midiatização, “(...) os campos sociais, que antes podiam
interagir com outros campos segundo processos marcados por suas próprias lógicas e
por negociações mais ou menos específicas de fronteiras, são atravessados por circuitos
diversos” (BRAGA, 2012, p. 15). Estes atravessamentos não apenas interferem em todos
os setores da sociedade (dispositivos, sistemas e meio) como reconfiguram gramáticas:

O fato de que os circuitos em desenvolvimento tenham a tendência assinalada


– de “atravessar” os campos sociais estabelecidos – mesmo quando o ponto
de origem de um circuito é um desses campos (...), leva a uma espécie de
“recontextualização”. As referências habituais se encontram deslocadas ou
complementadas por referências menos habituais – fazendo com que os
próprios circuitos em desenvolvimento elaborem e explicitem os contextos
requeridos para atribuição de sentidos aos produtos e falas que circulam.
(BRAGA, 2012, p. 49).

Essa recontextualização a que se refere Braga (2012) pode ser percebida, no


objeto analisado, a partir da verificação de marcas linguísticas deixadas ao longo da
produção discursiva. Ou seja, pela interferência da circulação na linguagem, que se
daria por duas operações, a saber:

(...) a primeira trata-se da exteriorização do dizível em forma, na condição


de textos presos a lógicas e gramáticas. E a segunda, que se constitui numa
operação que se dá em um âmbito de determinado processo circulatório,
quando põe em marcha a atividade significante da qual emergem as regras
através das quais a linguagem se transforma em atividade geradora de
discursividade. (FAUSTO NETO, 2013, p. 50).

Observemos, agora, graficamente, como se dá a formação das zonas intermediárias


de circulação, as ZICs. Isso para que tenhamos condições de, finalmente, refletir sobre
a maneira por meio da qual a midiatização afeta as narrativas de bicicleta.

4. Zonas intermediárias
No gráfico abaixo, as ZICs são representadas pelos círculos em azul gradiente,
pontilhados. Observe-se que elas se formam tanto nos

292
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

1) atravessamentos e interposições que se verificam nas operações internas


dos dispositivos (livros, jornais, revistas, sites etc.) a partir da presença, neles, de
circuitos informacionais,
como,
2) no sistema como um todo (círculo central).
Isso se dá dessa forma porque os sistemas são formados, como dito, pelos
dispositivos, e não podem ser pensados sem estes, mas os dispositivos não resumem,
em essência, o sistema como um todo (BERTALANFY, 2013), ainda que o sistema não
exista sem eles, de tal maneira que pensar em um implica necessariamente levar o
outro em consideração, relacionalmente.
Também importa observar que, no exemplo, os sites, redes sociais, jornais,
rádios, revistas, editoras e televisões que integram o sistema midiático em seus
aspectos organizacional ou institucional são representados pelos círculos azuis.
São dispositivos à medida que instituem interações que considerem, a um tempo,
aspectos tecnológicos (as máquinas, por exemplo), relações sociais (as redações;
mas, também, as interações que se dão entre estas e os leitores/audiouvintes) e,
finalmente, um sistema de representações (os códigos utilizados nos processos de
enunciação, à revelia de sua natureza) (FERREIRA, 2006, 2013, 2016).
As setas em vermelho representam os circuitos múltiplos que atravessam tanto
dispositivos como sistemas, interferindo no que é da ordem de um como de outro. As
setas em azul, por fim, marcam os diálogos correferenciais, uma das características do
jornalismo midiatizado2 (SOSTER, 2009). Graficamente, então, temos o seguinte cenário:

Gráfico 1 – A formação das ZICs

Fonte: Elaboração do autor

293
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

O gráfico acima é importante porque, não obstante carregar consigo todas as


limitações inerentes à representação imagética de um fenômeno complexo e de
contornos pouco visíveis, portanto, permite-nos compreender um pouco melhor como
se formam processualmente as ZICs e como elas interferem tanto no sistema como
em seus dispositivos. As ZICs se tornam visíveis, por assim dizer, quando informações
que circulam pela internet “invadem” os dispositivos e acabam por interferir na
processualidade destes. Não se trata de um movimento de autorreferência ou
mesmo acoplamento estrutural, portanto sistêmicos, provocados, em essência,
pela irritação, mas de atravessamentos não autorizados que acabam interferindo
na estrutura interna dos dispositivos e do sistema como um todo.
O gráfico 2, ao particularizar a criação da ZIC no âmbito do dispositivo,
permite-nos observar melhor como isso se dá. O círculo azul é o dispositivo
tanto em seus aspectos organizacionais como em instituições. No caso de um
site, por exemplo, é o site em si, e o que representa, mas, também, os processos
produtivos que permitam que ele seja reconhecido, ao fim, como tal. As setas
vermelhas, por sua vez, são os circuitos informacionais. Eles podem ser tanto
uma informação que é postada em uma rede social e que “viraliza” como algo
que é dito em uma entrevista que, por um motivo outro, foi repercutida por
alguém via twitter, ou facebook, por exemplo. Importa observar que, ao fazê-lo,
como dissemos, interfere da dinâmica operacional interna do dispositivo, o que
é visível por meio de marcas textuais.
Gráfico 2 – Formação das ZICs no interior do dispositivo

Fonte: Elaboração do autor


É chegado, agora, o momento de observarmos a perspectiva a partir daquelas
que estamos chamando de narrativas de bicicleta.

5. Narrativas de bicicleta

Um primeiro exemplo de como a processualidade da midiatização afeta as


narrativas de bicicleta pode ser observado por meio do projeto “Turismo pé-de-

294
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

chinelo: porque pobre também precisa viajar”, mantido pelos cicloturistas Luíd
e Stefane Monsores, da Vassouras, Rio de Janeiro. O projeto nasceu3 da vontade
de se aventurarem, mas foi determinado em termos de forma – cicloturismo –
tanto pelos custos baixos de uma viagem de bicicleta como por relatos lidos em
sites cicloturísticos:

Já tínhamos a vontade de compartilhar um pouco de nossas viagens baixa-


renda há algum tempo, mas essa ideia nasceu oficialmente no nosso
coração quando estávamos planejando uma viagem de moto por alguns
estados do Brasil. Depois de pesquisar muito sobre dicas de como viajar
barato, acabamos caindo em uns sites superinteressantes de uns doidos,
pessoas um pouco fora do comum, que viajavam de bicicleta, chegando a
sair do país, do continente e até mesmo a dar a volta ao mundo em cima do
pedal (what???). As ótimas leituras das aventuras desses ciclo-viajantes e
somando ao fato de gasolina e pedágios estarem cada vez mais caros, o
que acaba sendo um grande problema, nos fizeram então adiar a viagem
de motoca e despertaram em nós a lembrança de um antigo sonho, que
era o de sair pedalando por aí.

Por meio dos relatos sistemáticos que realizavam em seus blog e redes sociais
(facebook, instagram e youtube, principalmente), Luíd e Stefane não apenas
descreveram seus preparativos às cicloviagens como publicizaram os mesmos até a
realização. Inseriram, dessa maneira, o que era para ser simples viagem de bicicleta
na discursividade midiática, midiatizando suas próprias narrativas. As imagens 1 e 2,
abaixo, ilustram o que estamos afirmando:

Imagem 1 – Preparativos à viagem

Fonte: http://turismopedechinelo.blogspot.com.br

295
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

Imagem 2 – Apresentando canal no youtube e objetivo da viagem

Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=-laGsGgPPJY

À medida que o projeto “Turismo pé-de-chinelo: (...)” evoluía, foi se concentrando,


gradativamente, na produção de vídeos para o youtube. A identidade visual –
nome, logomarca etc. – permaneceram os mesmos, mas a linguagem passou a ser
exclusivamente audiovisual. É o que demonstra o vídeo abaixo, no Uruguai.

Imagem 4 – Prioridade para o youtube

Fonte: Youtube

A presença de circuitos informacionais reconfigurando as narrativas pode ser


notada, por exemplo, em janeiro de 2017, quando uma informação veiculada
inicialmente pelo facebook não apenas se interpôs no filme que viria a ser veiculado
aquele dia como reconfigurou seu conteúdo. O objetivo do dia era visitar, na ordem,
o Jardim Japonês, o planetário e os bosques de Palermo, mas a meta ficou em
segundo plano.
Na Imagem 5, Luíd e Stefane relatam, do interior de uma casa onde estavam
hospedados na Argentina, que um post4 veiculado no facebook por um cicloturista

296
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

desde o Brasil, sobre a importância de se ter onde dormir durante cicloviagens, havia
servido de mote para o comentário do dia.
Os cicloviajantes fazem referência, no vídeo5, ao texto do facebook, leem seu
conteúdo, tecem comentários a respeito da importância de serviços de hospedagem
como o Warmshower6 e, finalmente o mostram o post na tela, como podemos
observar nas imagens 6 e 7, ficando o que estava previsto para aquele dia, como
dissemos, em segundo plano.

Imagem 5 – narrativas reconfiguradas

Fonte: Youtube

Imagem 6 – Post de cicloturista no Facebook

Fonte: Facebook

297
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

Imagem 7 – Imagem do facebook no youtube

Fonte: Youtube

À medida que a cicloviagem se aproximava de seu final, já em território argentino,


as narrativas de Luíd e Stefane começaram a mudar de tom. Ou seja, ao invés
de descrever, de forma autorreferencial, o que estavam vivendo em seu dia a dia,
como fizeram até então, o objetivo passou a ser a produção de conteúdos para o
dispositivo youtube.
Isso pode ser constatado quando gravam um vídeo dizendo que aderiram a um
site de financiamento coletivo77 (Imagem 3) para viabilizar financeiramente a próxima
viagem e, ato contínuo, dizem textualmente, nas imagens e no texto de apoio, que a
ideia, agora, é, antes, fazer filmes que viajar.

Imagem 3 – Financiamento Coletivo

Fonte: Apoia.se

O excerto em que explicitam seus novos propósitos (o grifo é nosso):

298
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

Nosso objetivo é mostrar a vida de uma forma mais leve, e assim, incentivar
as pessoas a serem felizes. Queremos levar entretenimento e diversão
para as famílias de forma simples e descontraída e futuramente conseguir
independência financeira, para que assim possamos dedicar a maior
parte do nosso tempo de trabalho para produzir conteúdo para vocês no
canal do youtube8. 

Se lembrarmos do início da aventura, descrita no blog do projeto, a ideia inicial,


inspirada pelo relato de outros cicloturistas, era “sair por aí” de forma autossuficiente
e com baixo custo. Três meses depois, transformou-se em produção de conteúdo para
a internet, via youtube.
Um segundo exemplo de como a processualidade da midiatização afeta as
narrativas de bicicleta, midiatizando-as, pode ser observado no projeto “Mochila &
Bike9”, de Aldo Lammel. Trata-se, o projeto, de uma volta ao mundo que Lammel,
um publicitário gaúcho da cidade de Charqueadas, especializado em comunicação
digital – autodefinido, em seu site, como “produtor audiovisual, aventureiro, roteirista,
escritor, cicloativista e músico”, está realizando de bicicleta ao redor do mundo desde
janeiro de 2015. O “Mochila & Bike” nasce, igualmente, da vontade do escritor-viajante
de viajar pelo mundo de bicicleta, mas, também, de relatar suas aventuras, o que faz
por meio das mais diferentes plataformas: youtube10, facebook11, livro digital12, site13,
twitter14, instagran15, vlog16 etc.
A diferença, comparada com o exemplo anterior, é que o projeto “Mochila & Bike”
nasce midiatizado. Ou seja, foi concebido, desde o início, como uma cicloviagem que
seria registrada tendo a internet como plataforma-base. O projeto foi desenvolvido
durante 15 meses, período em que Lammel cuidou de registrar seus movimentos e
publicizá-los à medida que se realizavam, conforme demonstra a Imagem 4:

Imagem 4 – Desligamento do emprego

Fonte: Youtube

Nela, um mês depois de ter tomado a decisão de realizar uma cicloviagem pelo
mundo, Lammel grava um vídeo no youtube dizendo que se desligara do emprego;
mais adiante, que terminara seu relacionamento.

299
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

A Imagem 5 registra todo o roteiro e programa da cicloviagem:


Imagem 5 – Site com etapas da viagem

Fonte: Site Mochila & Bike

Além de informações sobre a viagem, o site fornece um serviço de geolocalização


– Swarm APP17 em que torna possível saber a localização exata no momento em que
se acessa o site. No momento em que este artigo estava sendo escrito, por exemplo,
Lammel se encontrava na República Tcheca, conforme demonstra a Imagem 6:

Imagem 6 – Geolocalização via APP

Fonte: Site Mochila & Bike

À medida que a viagem avançava, aos relatos em filme identificados pela tag
“Manual”, Lammel compartilha, via youtube, o que chama de “suas experiências para
executar tarefas, conseguir algo ou vencer desafios em prol de uma viagem mais
econômica, longa, cultural e divertida”18. É o que se observa na Imagem 7.

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Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas
Imagem 7: Dialogando via youtube

Fonte: Youtube

Na Imagem 8, em La Paz, na Bolívia, Lammel afirma, aos 5’34 de gravação, que é


a primeira vez que fará um relato de improviso, sem edição.

Imagem 8 – Relatos não planejados

Fonte: Youtube

Com o passar do tempo, os movimentos voltam-se com cada vez mais frequência
para inserção da cicloviagem à discursividade midiática por meio da oferta de novas
tecnologias. Ou seja, passam a oferecer novas formas de acesso aos que com ele
dialogam. É o que se observa, por exemplo, quando, em sua página no facebook19,
anuncia a criação de um aplicativo (APP):

É OFICIAL - AGORA TEMOS NOSSO PRÓPRIO APP! Agora você pode acompanhar
todos os conteúdos da volta ao mundo de uma forma muito mais rápida pelo
celular: vlog, websérie, diário, manual, roteiro, estatísticas e nossas redes sociais  
Vale lembrar que tudo aqui é independente e ainda não colocamos nosso app
na Google Play por ser caro para nós (U$25/anual), mas ainda assim você pode
baixar direto do nosso site e instalar com segurança. Versão para iPhone e iPad,
em breve. 
Baixe o App: http://mochilaebike.org20
301
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

Ou, ainda, quando promove pesquisa21 (Imagem 9) para saber quantos cicloturistas,
ao redor do mundo, estão viajando tendo como inspiração sua experiência:

Imagem 9 – Interatividade

Fonte: Google docs

Um último exemplo, antes de passarmos às considerações interpretativas, ilustra


como a narrativa de viagem protagonizada por Lammel tanto condiciona como está
condicionada às inferências da discursividade midiática. No post realizado em sua
página do facebook22 dia 26 de maio de 2016, o cicloviajante informa aos que estão
lhe acompanhando que ficará em silêncio por alguns dias porque quer estar a sós
com sua namorada, Verônica, uma garota que conheceu durante sua passagem
pelo Leste europeu e por quem se apaixonou.

Tudo o que peço a quem me acompanha desde 2015 quando pus meu
apartamento pra alugar e fui pra estrada e a quem passará a me fazer
companhia desde agora, peço que respeite meu momento de estar quietinho
em Praga com a minha flor antes de termos de dizer adeus um para o outro
pra seguirmos sonhos em direções opostas por vivermos momentos de
vida tão diferentes. A vida não é preto no branco como regras escritas
num manual para amadores, as histórias são complexas e com infinitas
perspectivas. Usufrua de tudo o que compartilho no Youtube, Facebook
e em meus livros gratuitos no Medium (grifo nosso) que te prometo que
vc encontrará novas possibilidades bem diante dos teus olhos, sem mágica
ou romantismo em excesso.

302
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

Imagem 10 – Em Praga, com a namorada

Fonte: Arquivo pessoal

Passemos agora às considerações interpretativas.

6. Considerações interpretativas

Pensar as narrativas de bicicleta a partir das reflexões aqui propostas implica


considerar a midiatização, nas palavras de Gomes (2017), como chave de compreensão
e interpretação hermenêutica da realidade. “A sociedade percebe e se percebe a
partir do fenômeno da mídia, agora alargado para além dos dispositivos tecnológicos
tradicionais. Por isso, é possível falar da mídia como um locus de compreensão da
sociedade” (GOMES, 2017, p. 78). Ou, por outras palavras, que estamos diante de
um fenômeno que reflete, em essência, o tempo de mundo em que estamos vivendo,
e onde não se pode pensar a ação do homem sem considerar, na visada, a relação
deste com o aparato tecnológico que o cerca, compreendida a relação como processo
interacional de referência.
Ocorre que este alargamento a que Gomes (2017) se refere, conforme já apontamos
em outros momentos (SOSTER, 2009), tensiona substancialmente noções secularmente
instituídas, como a de campo, solicitando novas gramáticas interpretativas aos
fenômenos que se apresentam. É o que se verifica, por exemplo, quando, à discursividade
midiática, agentes “não autorizados” interferem nas gramáticas de produção (emissão)
e reconhecimento (recepção) do sistema midiático, sem, no entanto, ocuparem lugares
institucionais. Integram-se, dessa forma, àquilo que Ingold (2011) vai chamar, ainda
que em outro contexto, de “malha”, em oposição à metáfora de “rede”, largamente
utilizada nas discussões de matizes acentuadamente socioevolutivos.
A diferença entre “malha” e “rede”, não obstante de a origem de ambos ser próxima,
é que “malha” remete antes a um caminho percorrido, enquanto que “rede” a uma forma
303
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

de transporte. No primeiro caso, é o que emerge do percurso, o que se transforma, o que


se constrói: “Cada fio é um modo de vida, e cada nó um lugar” (INGOLD, 2011, p. 224).
No segundo, espécie de mapa composto por pontos interconectados.

A chave para esta distinção é o reconhecimento de que as linhas da malha


não são conectoras. Elas são o caminho ao longo dos quais a vida é vivida. E
é na ligação de linhas, não na conexão de pontos, que a malha é constituída.
(INGOLD, 2011, p. 224).

Vale lembrar que, até há bem pouco tempo, quando da sociedade dos meios, os
dispositivos que compunham o sistema midiático – rádios, televisões, jornais etc. – eram
os grandes artífices, do ponto de vista axiomático, da composição disso que Silverstone
(2002) chamou, em outro momento, de tessitura da experiência. Um tempo de “meios
e mediações”, na categorização seminal de Barbero (2009). À medida que a sociedade
se complexifica pela processualidade da midiatização – e a internet ocupa um lugar
central nesta discussão, as condições de acesso, no diálogo com Verón (2013), mudam
substancialmente, reconfigurando toda uma ecologia comunicacional.
É o que os exemplos analisados neste artigo buscaram demonstrar. Ou seja,
mesmo que ambos estejam inseridos em uma lógica discursiva antiga – as narrativas
de viagem, e que estas se vinculem seminalmente a um determinado formato de
jornalismo, a geografia do ambiente em que seus autores se inserem dispensa
mediações. Melhor dizendo, dispositivos como tablets, smartphones e computadores,
aliados às facilidades de acesso à rede e à usabilidade do sistema, não tornam mais
imperativa a presença de uma organização, ou mesmo instituição, e seus agentes,
para a oferta de sentidos, ainda que sigam existindo.
Com isso, Luíd e Stefane Monsores, Aldo Lammel, e tantos outros cicloturistas passam
a tecer, por meio de seus relatos, não a rede, mas a malha da discursividade midiática,
transformando e sendo transformado neste percurso. “À medida que os dispositivos da
web permitem aos usuários produzirem conteúdos, e tendo em conta, também, que os
usuários têm controle do switch entre o privado e o público, podemos ter uma ideia da
complexidade e das mudanças em curso23” (VERON, 2013, p. 282). Compreender o que
estas transformações representam, portanto, é o desafio que nos apresenta.

Notas
1 Web como de world wide web, ou, ainda, www.
2 As demais características são autorreferência, descentralização, dialogia e
atorização.
3 Disponível em: http://turismopedechinelo.blogspot.com.br/2015/08/turismo-
pe-de-chinelo.html#more
4 Disponível em: [https://www.facebook.com/dsoster.jor/
posts/10155201953529260] Acesso em: 15 jul. 2017.

304
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

5 Disponível em: [https://www.youtube.com/watch?v=lemHD-


c8dis&feature=youtu.be]. Acesso em: [15 de junho de 2017]
6 https://br.warmshowers.org/
7 https://www.apoia.se/tpc
8 Disponível em: [https://www.apoia.se/tpc] Acesso em: 15 jul. 2017.
9 http://mochilaebike.org/
10 https://www.youtube.com/channel/UCjK_6o4JAwe7Ecx7Rl26kqA
11 https://www.facebook.com/avlammel?ref=br_rs
12 https://medium.com/mochilaebike-fotos/livro-de-fotografias-7c475fd25e36
13 http://mochilaebike.org/sobre.php
14 http://twitter.com/aldolammel
15 http://instagram.com/aldolammel
16 https://www.youtube.com/playlist?list=PLseCxrn4VPolnJ9FLq42peGW5BSBOC6oW
17 https://www.swarmapp.com/
18 Disponível em: [https://www.youtube.com/watch?v=I4nXN_P9xKs] Acesso em:
[17 de julho de 2017] 19 https://www.facebook.com/avlammel?ref=br_rs
19 https://www.facebook.com/avlammel?ref=br_rs
20 Disponível em: [https://www.facebook.com/avlammel/
posts/10213514437518750] Acesso em: [17 de julho de 2017]
21 https://docs.google.com/forms/d/e/1FAIpQLSct21X8ALNJRIST25N_3GB0us
v5Gln9hs3ro-g7iWPTec1sgw/viewform
22 https://www.facebook.com/avlammel
23 No original: “En la medida que el dispositivo de la Red permite a los usuários
producir contenidos, y teniendo em cuenta, además, que por primera vez los usuarios
tienen el control de un switch entre lo privado e lo público, podemos empezar a
hacermos uma idea de la complejidad y la profundidad e los cambios em curso”.
(VERON, 2013, p. 282).

Referências

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BERTALANFFY, Ludwig von. Teoria geral dos sistemas. Rio de Janeiro: Vozes, 2013.
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JACKS, N. Mediatização & midiatização. Salvador: EDUFBA; Brasília: Compós, 2012.

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Janeiro: Vozes, 2015.
LUHMANN, Niklas. Introdução à teoria dos sistemas. Rio de Janeiro: Vozes, 2009.
MACHADO, Elias. Sistemas de circulação no ciberjornalismo. Eco-Pós, Rio de Janeiro,
v. 11, n. 2, p. 21-37, 2008.
MARTIN-BARBERTO, Jesús. Dos meios às mediações: comunicação, cultura e
hegemonia. Rio de Janeiro: Editora da UFRj, 2009.
MARTINEZ, Monica. Narrativas de viagem: escritos autorais que transcendem o
tempo e o espaço. Intercom – RBCC. São Paulo, v. 35, n. 1, p. 34-52, jan./jun. 2012.
ONFRAY, Michel. Teoria da viagem – poética da geografia. Porto Alegre: L&PM, 2015.
SCHETINO, André Maia. Pedalando na modernidade: a bicicleta e o ciclismo na
transição do século XIX para o XX. Rio de Janeiro: Apicuri, 2010.
SILVESTONE, Roger. Por que estudar a mídia? São Paulo: Loyola, 2002.
SOSTER, Demétrio Azeredo. A literatura, o sistema midiático e a emergência do quarto
narrador. Signo, Santa Cruz do Sul, v. 1, p. 154-161, 2016.
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Comunicação – Doutorado) - Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, 2009.
VERÓN, Eliseo. Teoria da midiatização: uma perspectiva semioantropológica e

306
Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas

algumas de suas consequências. Revista Matrizes, São Paulo, v.8, n.1, p. 13-10, jan/
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ZAGO, Gabriela da Silva. Circulação jornalística potencializada: o twitter como espaço
para filtro e comentário de notícias por interagentes. C&S, São Bernardo do Campo, v.
34, n. 1, p. 249-271, jul./dez. 2012.

307
SOBRE OS AUTORES

I - PERSPECTIVAS REFLEXIVAS

Heitor Costa Lima da Rocha é jornalista pela Universidade Católica de Pernambuco


(1983), mestre em Ciência Política (1989) e doutor em Sociologia (2004) pela
Universidade Federal de Pernambuco, com Estágio Sênior Pós-Doutoral (CAPES) na
Universidade da Beira Interior Covilhã/Portugal (2015). E-mail: hclrocha@gmail.com
Karolina Calado é jornalista e doutoranda do Programa de Pós-graduação em
Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco, onde desenvolve pesquisa
sobre a influência do financiamento coletivo na construção de narrativas jornalísticas
plurais. E-mail: karolinacalado@gmail.com
Luiz Henrique Zart é jornalista, graduado pela Universidade do Planalto Catarinense
(Uniplac). Integrante da Rede de Pesquisa Narrativas Midiáticas Contemporâneas
(Renami), vinculada à Associação Brasileira de Pesquisadores em Jornalismo (SBPJor).
E-mail: luizhenriquezart@hotmail.com. 
Mirian Redin de Quadros é jornalista pela Universidade Regional do Noroeste do
Estado do Rio Grande do Sul (Unijuí). Mestra e Doutoranda em Comunicação pelo
Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Santa
Maria (UFSM). E-mail: mirianrq@gmail.com.
Lara Nasi é Jornalista pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande
do Sul (Unijuí). Mestra em Ciências da Comunicação pelo Programa de Pós-Graduação
em Comunicação da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), Doutoranda em
Comunicação pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal
de Santa Maria (UFSM), docente do curso de graduação em Jornalismo na Universidade
Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (Unijuí). nasi.lara@gmail.com
Juliana Motta é Jornalista pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Mestra e
Doutoranda em Comunicação pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação da
Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). ju.motta17@gmail.com.
Eduardo Luiz Correia é doutor em jornalismo pela Universidade Federal de Brasília
(UnB) e mestre pela Escola de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade de
São Paulo. Professor dos cursos de jornalismo no Centro Universitário FiamFaam e
Universidade Municipal de São Caetano do Sul (USCS).
Marta Regina Maia é professora do curso de Jornalismo e do Programa de Pós-
Graduação em comunicação pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), pela
Linha 1 – “Práticas comunicacionais e tempo social”. Doutorado em Comunicação
pela Universidade de São Paulo e Pós-doutorado em Comunicação pela Universidade
Federal de Minas Gerais. Líder do Grupo de Pesquisa “Jornalismo, Narrativas e
Práticas Comunicacionais” (JorNal/CNPq). Uma das coordenadoras da Rede de
Pesquisa Narrativas Midiáticas Contemporâneas (Renami). Orientadora de Projetos
de pesquisa sobre narrativas jornalísticas. E-mail: marta@martamaia.pro.br
Michele da Silva Tavares Jornalista. Especialista em Comunicação Digital (Fanese).
Mestre em Comunicação e Cultura Contemporâneas (UFBA). Doutora em Comunica-
ção Social (UFMG). Professora do Curso de Jornalismo da Universidade Federal de
Ouro Preto (UFOP). Coordenadora do Projeto de Pesquisa “A Moda em Revista: Uma
308
Análise Sobre a Cultura Visual e a Representação de Gênero nas Revistas Segmenta-
das Femininas”. Líder do Grupo de Pesquisa “Jornalismo, Narrativas e Práticas Comu-
nicacionais” (JorNal CNPq)”. E-mail: micheletavaresjor@yahoo.com.br
Mateus Yuri Passos é Pesquisador pós-doutoral no Programa de Pós-Graduação
em Comunicação da Faculdade Cásper Líbero com bolsa CAPES. Doutor em Teoria
e História Literária pela Universidade Estadual de Campinas com período sanduíche
na Ludwig-Maximilians-Universität München. Editor adjunto da Revista Comunicação
Midiática. Contato: mateus.passos@gmail.com
Jaqueline Lemos é professora na Universidade São Judas e Coordenadora dos Cursos
de Comunicação na mesma instituição. Doutora em Ciências da Comunicação pela ECA/
USP. Integrante da Rede Nacional de Pesquisa sobre Narrativas Midiáticas (RENAMI),
ligada à SBPJor. E-mails: prof.jaquelemos@usjt.br ou jaquelemos@uol.com.br
Luiz G. Motta é jornalista, mestre em jornalismo pela Indiana University (USA), doutor
em comunicação pela University of Wisconsin (USA), com estágio de pós-doutorado
na Universitat Autònoma de Barcelona (Espanha). Professor-titular da Universidade de
Brasília (UnB), professor-visitante da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC),
pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico.
Orientou mais de 50 dissertações de mestrado e teses de doutorado, publicou inúmeros
artigos, livros e capítulos de livros. Foi expert internacional da Fundação Frederick Ebert
(Alemanha), professor do Centro Internacional de Estudios Superiores de Periodismo
para América Latina (Equador), consultor do UNICEF (Moçambique, Africa). Foi Secretário
de Estado (Distrito Federal) e Secretário Nacional de Cultura (MINC).

II – VISADAS APLICADAS

Francisco Aquinei Timóteo Queirós é doutorando do Programa de Pós-Graduação em


Ciências da Comunicação, na linha de pesquisa Linguagem e Práticas Jornalísticas,
na Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos). É autor do livro (e-book) Rasgos
literários na prosa jornalística: o Novo Jornalismo em Radical Chique e em A Sangue
Frio (2016), um dos organizadores do livro (e-book) Luz, Câmera, Palavras! (2013) e
do livro Pesquisa em comunicação: registros, olhares e narrativas (2015). Bolsista
Prodoutoral (Capes). aquinei@gmail.com
Cida Golin é jornalista, doutora em Letras, professora do curso de Jornalismo e do
curso de Museologia da UFRGS, professora do PPGCOM da UFRGS e pesquisadora do
CNPq. cidagolin@gmail.com.
Maria Rita Horn é jornalista pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS),
mestra pelo PPGCOM/UFRGS e editora no jornal Zero Hora de Porto Alegre. mariarita.
horn@gmail.com.
Yara Medeiros é jornalista e professora do curso de Jornalismo da área de Imagem
e Estética da Universidade Federal do Maranhão, em Imperatriz. Cursa doutorado
na Universidade Federal de Pernambuco (2017-2019) e dedica-se aos estudos das
narrativas visuais da grande reportagem no Brasil.
Ana Beatriz Magno é doutora em Comunicação Social pela Universidade de Brasília,
a jornalista Ana Beatriz Magno construiu sua trajetória entre Redações e a Academia.
309
Conquistou prêmios jornalísticos nacionais e internacionais, como o Esso de Reportagem
(2008), o Embratel (2007) e o Nuevo Periodismo (2005), a maioria deles com matérias
sobre educação, saúde, infância, direitos humanos, violência urbana, corrupção política
e meio ambiente. Passou pelas redações do Jornal de Brasília, Revista Istoé, Correio
Braziliense e O Dia. Sua Tese de doutoramento analisa a obra jornalística de Ernest
Hemingway e Gabriel García Márquez, a partir de perspectiva que compreende a
reportagem como uma forma narrativa de conhecimento. Em novembro de 2015, o
trabalho venceu o prêmio Adelmo Genro Filho de melhor tese de doutorado do país,
premiação concedida pela Associação Brasileira de Pesquisadores em Jornalismo
(SBPJOR). Em março de 2015, a jornalista retornou às redações, após convite para
integrar equipe do jornal O DIA, onde trabalhou como editora assistente de Rio e de
Política. Ainda entre 2015 e 2017, a jornalista publicou vários trabalhos para a Revista
Veja. Atualmente, coordena a Comunicação da ADUFRJ (Associação dos Professores da
UFRJ), onde desenvolve um trabalho que procura resignifcar o papel do jornalismo e da
reportagem na narrativa dos movimentos sociais. anabiamagno14@gmail.com

III – NARRATIVAS DO EU

Rodrigo Bartz é professor e Mestre em letras. Integrante do Grupo de Estudos sobre


Narrativas Literárias e Comunicacionais GENALIM (CNPQ) e da Rede Nacional de Pesquisa
sobre Narrativas Midiáticas (RENAMI), ligada à SBPJor. Email: rodrigobartzm@hotmail.com
Victor Lemes Cruzeiro é mestrando na Universidade de Brasília (UnB), desde 2016, na
linha de Imagem Som e Escrita. Integrante do Grupo de Pesquisa em Comunicação e
Estéticas Com Versações, e da Rede Nacional de Pesquisa sobre Narrativas Midiáticas
(RENAMI). E-mail: victorlcruzeiro@gmail.com
Monica Martinez é docente do Programa de Pós-graduação em Comunicação e
Cultura da Universidade de Sorocaba (Uniso), onde é líder do Grupo de Pesquisa em
Narrativas Midiáticas (NAMI). É diretora científica da SBPJor (Associação Brasileira
de Pesquisadores em Jornalismo), atuando como colíder da Rede de Narrativas
Midiáticas Contemporâneas. É autora de “Jornalismo Literário: Tradição e Inovação
(Insular, 2016). E-mail: monica.martinez@prof.uniso.br.
Mara Rovida Martini é docente do Programa de Pós-graduação em Comunicação e
Cultura da Universidade de Sorocaba (Uniso), doutora em Ciências da Comunicação
(ECA-USP), mestre em Comunicação Social (FCL) e jornalista. É autora de “Jornalismo
em trânsito – o diálogo social solidário no espaço urbano” (Edufscar, 2015). E-mail:
mara.rovida@prof.uniso.br.
Fabiano Ormaneze é jornalista pela PUC-Campinas, mestre em Divulgação Científica e
Cultural pelo LabJor/IEL, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Doutorando
em Linguística pelo IEL/Unicamp. Professor da PUC-Campinas desde 2008. Desde a
especialização em Jornalismo Literário pela Academia Brasileira de Jornalismo Literário
(ABJL), concluída em 2006, dedica-se à pesquisa na área de narrativa e discurso, tema
também de livros e artigos, entre eles “Do Jornalismo Literário ao Científico: biografia,
discurso e representação (2015, editora Pontes). E-mail: ormaneze@yahoo.com.br.
Alexandre Zarate Maciel professor adjunto do curso de Jornalismo da Universidade
Federal do Maranhão (UFMA), campus de Imperatriz (MA). Até fevereiro de 2018 irá
310
defender sua tese de doutorado no programa de Comunicação da Universidade Federal
de Pernambuco (UFPE). Mestre em Ciências da Informação pela UnB e graduado em
Jornalismo pela UFMS, pesquisa o universo do livro-reportagem desde 2003. E-mail:
alexandremaciel2@gmail.com
Ana Cláudia de Almeida Pfaffenseller é Jornalista, graduada em Comunicação Social
- habilitação em Jornalismo pela Universidade de Santa Cruz do Sul - UNISC (2006),
pós-graduada  lato sensu em Gestão Universitária pela UNISC (2014) e Mestre em
Letras pela UNISC (2016). É Ouvidora Geral da Universidade de Santa Cruz do Sul e
atua também como professora do Centro de Educação Profissional da UNISC. Tem
experiência laboral em Comunicação Organizacional, Assessoria de Comunicação e
Televisão. Na área acadêmica enfoca estudos sobre Narrativas com ênfase em Novas
Mídias e na TeoriaAutopoiética, bem como sobre Comunicação Corporativa, Ouvidoria/
Ombudsman, Mediação, Democracia e Direito do Cidadão. E-mail: aalmeida@unisc.br
Fabiana Piccinin é jornalista, graduada em Comunicação Social - Jornalismo pela
Universidade Federal de Santa Maria (1992), licenciada em Letras-Inglês pela
Universidade de Santa Cruz do Sul (2015) e doutora pelo Programa de Pós Graduação
Em Comunicação da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2007). É
professora Adjunta da Universidade de Santa Cruz do Sul, onde atua como professora
do Departamento de Comunicação Social e professora e pesquisadora do Programa
de Mestrado e Doutorado em Letras da Unisc. Atualmente é Coordenadora de Pós
Graduação Stricto Sensu da Universidade de Santa Cruz do Sul. Integra os grupos de
pesquisa Grupo de Estudos de Narrativas Literárias e Midiáticas (GENALIM - CNPQ)
e o Grupo Intersintitucional de Pesquisa em Telejornalismo (GIP - Tele). fabi@unisc.br
Nize Maria Campos Pellanda é graduada em em História (UFRGS), com mestrado em
História da Cultura (PUCRS), doutorado em Educação (UFRGS), doutorado-sanduiche
na M.U. (OHIO-USA). Realizou estágio de Pós-doutoramento na Universidade do
Minho (PORTUGAL). É docente e pesquisadora do Departamento de Educação e dos
Programas de Pós-Graduação - MESTRADO e DOUTORADO- em Educação e Letras
(UNISC). É coordenadora do GAIA (Grupo de Ações e Intervenções Autopoiéticas/
CNPQ). Os temas predominantes das pesquisas são epistemologia da complexidade,
acoplamento tecnológico, sofrimento, autonarrativas. É Bolsista Produtividade DT
do CNPq.

IV – OUTROS OLHARES

Eduardo Zilles Borba é professor-assistente, pesquisador e pós-doutorando no


Departamento de Engenharia Eletrônica da Escola Politécnica da Universidade de
São Paulo (USP). Junto ao Centro Interdisciplinar em Tecnologias Interativas (CITI-
USP) realiza pesquisas sobre realidade virtual e aumentada, narrativas eletrônicas
emergentes e simbiose humano-máquina com apoio do CNPq, FAPESP e parceiros
empresariais (Boeing, Fiat, Petrobrás). É Doutor e Mestre em Comunicação pela
Universidade Fernando Pessoa (Portugal); Pós-graduado em Publicidade pela ESPM;
e Graduado em Jornalismo pela Unisinos. Também, é professor-convidado no PPG em
Indústria Criativa da Universidade Feevale e nos cursos de Pedagogia, Publicidade
e Relações Públicas das Faculdades Integradas de Taquara (Faccat). Em 2014, sua
pesquisa sobre realidade virtual foi selecionada pelo Programa Atração de Jovens
311
Talentos do CNPq, uma iniciativa que repatria cérebros brasileiros que desenvolvem
pesquisa de excelência no exterior. (email: ezb@lsi.usp.br)
Maurício Guilherme Silva Jr. é graduado em Jornalismo (1999), pela Universidade
Federal de Minas Gerais (UFMG), é mestre e doutor em Estudos Literários (2004/2012),
também pela UFMG. Pós-doutor pelo Programa de Pós-graduação em Comunicação Social
da UFMG, é professor dos cursos de Jornalismo e Moda no Centro Universitário de Belo
Horizonte (UniBH). Integra, ainda, o Programa de Comunicação Científica e Tecnológica
(PCCT) da Fundação de Amparo à Pesquisa no Estado de Minas Gerais (Fapemig) – por
meio do qual é editor-chefe da revista Minas faz Ciência –, assim como os grupos de
pesquisa Educomuni, do UniBH, SBPJor Narrativas, formado por diversas instituições,
Narrativas Midiáticas (Nami), da Universidade de Sorocaba, NERCOPC, da UFMG, e a
Rede de Pesquisa Narrativas Midiáticas Contemporâneas (Renami).
Alda Cristina Silva da Costa é professora do Programa de Pós-Graduação Comunicação,
Cultura e Amazônia e da Faculdade de Comunicação, naUniversidade Federal do
Pará. Pós-doutoranda em Comunicação, Linguagens e Cultura, pela Universidade da
Amazônia (PPGCLC/UNAMA). Doutora em Ciências Sociais/UFPA; Mestre em Sociologia;
Coordenadora dos Projetos e do Grupo de Pesquisa Mídia e Violência: percepções e
representações na Amazônia (UFPA/CNPq) e Narrativas Contemporâneas na Amazônia
Paraense (NARRAMAZÔNIA/UFPA/UNAMA). E-mail:aldacristinacosta@gmail.com
Célia Regina Trindade das Chagas Amorim é mestre (2002) e Doutora em Comunicação
e Semiótica, pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2008). Professora
da Faculdade de Comunicação e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação,
Cultura e Amazônia (PPGCOM); coordenadora do Grupo de Pesquisa e do Projeto Mídias
Alternativas na Amazônia (CNPq-UFPa). E-mail:celia.trindade.amorim@gmail.com
 Vânia Maria Torres  Costa é doutora em Comunicação pela Univ. Fed. Fluminense (UFF),
mestre em Planej. do Desenvolvimento pelo Núcleo de Altos Estudos Amazônicos (NAEA)
–Univ. Fed. do Pará (UFPA). Professora do Progr. de Pós-Graduação em Comunicação,
Linguagens e Cultura (PPGCLC) da Univ. da Amazônia(Unama).Coordena os projetos
Narramazônia – Narrativas Contemporâneas na Amazônia Paraense (Unama/UFPA) e
Academia do Peixe Frito (Unama). E-mail: vaniatorrescosta@gmail.com
Daiana Stockey Carpes é Jornalista, mestre em Letras – Universidade de Santa Cruz do
Sul e pós-graduanda em Audiodescrição – Universidade Estadual do Ceará.
Demétrio de Azeredo Soster é Pós-doutor pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos
(Unisinos, 2016). Possui graduação em Jornalismo (Unisinos, 1990), mestrado em
Comunicação e Informação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs,
2003) e doutorado em Ciências da Comunicação pela (Unisinos, 2009). É pesquisador
e professor do Programa de Pós-graduação em Letras – Mestrado e Doutorado e do
Departamento de Comunicação da Unisc. Coordena a Rede de Pesquisa Narrativas
Midiáticas Contemporâneas da SBPJor. Integra os grupos de pesquisa vinculados ao
CNPq «Midiatização das práticas sociais», «Grupo de estudos sobre narrativas literárias
e midiáticas» (Genalim) e «Estudos e Produção Multimídia». É editor da revista Rizoma:
midiatização, cultura, narrativas - qualis B2 - e diretor-editorial da Editora Catarse Ltda.

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