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O narrador Consideracies sobre a obra de Nikolai Leskov 1 Par mais famitiar que seja seu nome, o narrador no esta de fato presente entre nés, em sua atualidade viva. Ele € algo de distante, e que se distancia ainda mais. Descrever um Leskov* como narrador no significa trazé-lo mais perto de ns, ¢ sim, pelo contrario, aumentar a distancia que nos se- para dele. Vistos de uma'certa distancia, os tragos grandes e simples que caracterizam o narrador se destacam nele, Ou melhor, esses tragos aparecem, como um rosto humano ou um corpo de animal aparecem num rochedo, para um observador localizado numa distancia apropriada ¢ num Angulo favoré- vel. Uma experiéncia quase cotidiana nos impde a exigéncia dessa distancia e desse Angulo de observagio. E a experiéncia de que a arte de narrar esté em vias de extin¢Zo. Sd cada vez mais raras as pessoas que sabem narrar devidamente. Quando (*) Nikolai Leskor nasceu em 1831 na provincia de Orjole morreu em 1885, ‘em S, Petersburgo. Por seus interessese simpatias pelos amponeses, tem ceria afi- ‘nidades com Tolstol, e por sua orlentacto eligiosa, com Dostoievski. Mas os textos menos duradouros de sua obra sho eratamente aqueles em que tai tendincias assumem uma expressto dogmatica¢ doutrinéria — os primeiros romances. A signi- ‘eagto de Leskoyestéem suas narrativas, que pertencem a uma fase posterior. Desde ‘fim da guerra houve vérias tentativar de difendir eases narratives nos pales de lingua alert. Além das pequenas coletineas publicadas pelas editcras Musarion & Georg Maller, devemos mencionar, com especial destaque, a seleglo em nove yor umes da editoraC. H. Beck. 198 WALTER BENJAMIN se pede num grupo que alguém narre alguma coisa, o emba- rago se generaliza. £ como se estivéssemos privados de uma faculdade que nos parecia segura ¢ inaliendvel: a faculdade de intercambiar experiéncias. ‘Uma das causas desse fendmeno & dbvia: as agdes da experiéncia estio em baixa, tudo indica que continuarao caindo até que seu valor desapareca de todo. Basta olharmos um jornal para percebermos que seu nivel est mais baixo que munca, e que da noite para o dia néo somente a imagem do mundo exterior mas também a do mundo ético sofreram transformagdes que antes no julgariamos possfveis. Com a guerra mundial tornou-se manifesto um processo que con- tinua até hoje. No final da guerra, observou-se que os comba- tentes voltavam mudos do campo de batalha nao mais ricos, ¢ sim mais pobres em experiéncia comunicdvel. E 0 que se di- fundiu dez anos depois, na enxurrada de livros sobre a guerra, nada tinha em comum com uma experiéncia transmitida de boca em boca. Nao havia nada de anormal nisso. Porque nunca houve experiéncias mais radicalmente desmoralizadas que a experiéncia estratégica pela guerra de trincheiras, a experiéncia econdmica pela inflacdo, a experiéncia do corpo pela guerra de material e a experiéncia ética pelos goyer- nantes. Uma geraco que ainda fora & escola num bonde pu- xado por cavalos se encontrou ao ar livre numa paisagem em que nada permacera inalterado, exceto as nuvens; ¢ debaixo delas, num campo de forgas de torrentes e explos6es, o fragil e minisculo corpo humano. 2 A experiéncia que passa de pessoa a pessoa é a fonte a que recorreram todos os narradores. E, entre as narrativas escritas, as melhores so as que menos se distinguem das his- torias orais contadas pelos inimeros narradores andnimos. Entre estes, existem dois grupos, que se interpenetram de miltiplas maneiras. A figura do narrador s6 se torna plena- mente tangivel se temos presentes esses dois grupos. “Quem viaja tem muito que contar”, diz 0 povo, ¢ com isso imagina 0 narrador como alguém que vem de longe. Mas também escu- tamos com prazer 0 homem que ganhou honestamente sua vida sem sair do seu pafs e que conhece suas historias e tra- MAGIA E TECNICA, ARTE E POLITICA 19 digdes. Se quisermos concretizar esses dois grupos através dos seus representantes arcaicos, podemos dizer que um € exem- Plificado pelo camponés sedentério, e outro pelo marinheiro comerciante, Na realidade, esses dois estilos de vida produ- ziram de certo modo suas respectivas familias de narradores. ‘Cada uma delas conservou, no decorrer dos séculos, suas ca- racteristicas prOprias. Assim, entre os autores alemies mo- dernos, Hebel e Gotthelf pertencem a primeira familia, ¢ Sielsfield e Gerstiicker A segunda. No entanto essas duas fa- milias, como jé se disse, constituem apenas tipos fundamen- tais. A extensio real do reino narrativo, em todo o seu aleance histérico, s6 pode ser compreendido se levarmos em conta a interpenetracdo desses dois tipos arcaicos. O sistema corpora- tivo medieval contribuiu especialmente para essa interpene- trago. O mestre sedentario e os aprendizes migrantes tra- balhayam juntos na mesma oficina; cada mestre tinha sido um aprendiz ambulante antes de se fixar em sua patria ou no estrangeiro. Se os camponeses € os marujos foram os pri- meiros mestres da arte de narrar, foram os artifices que a aperfeigoaram, No sistema corporativo associava-se o saber das terras distantes, trazidos para casa pelos migrantes, com 0 saber do passado, recolhido pelo trabalhador sedentrio, 3 Leskov est A vontade tanto na distdncia espacial como na distancia temporal. Pertencia a Igreja Ortodoxa grega e tinha um genuino interesse religioso. Mas sua hostilidade pela burocracia eclesidstica nao era menos genuina. Como suas relag&es com o funcionalismo leigo n&o eram melhores, os cargos oficiais que exerceu nao foram de longa duragao. O emprego de agente russo de uma firma inglesa, que ocupou durante muito tempo, foi provavelmente, de todos os em- Pregos possiveis, o mais «til para sua produgdo literdria. A servigo dessa firma, viajou pela Rissia, e essas viagens enti: queceram tanto a sua experiéncia do mundo como seus conhe- cimentos sobre as condigdes russas. Desse modo teve ocasiio de conhecer 0 funcionamento das seitas rurais, 0 que deixou tracos em suas narrativas. Nos contos lendarios russos, Leskov encontrou aliados em seu combate contra a burocracia orto- 200 WALTER BENJAMIN doxa, Escreveu uma série de contos dese género, cujo perso- nagem central é 0 justo, raramente um asceta, em geral um homem simples e ativo, que se transforma em santo com a maior naturalidade. A exaltagio mistica é alheia a Leskov. Embora ocasionalmente se interessasse pelo maravilhoso, em questdes de piedade preferia uma atitude solidamente na- tural. Seu ideal € 0 homem que aceita o mundo sem se prender demasiadamente a ele. Seu comportamento em questdes tem- porais correspondia a essa atitude. E coerente com tal com- portamento que ele tenha comecado tarde a escrever, ou seja, com 29 anos, depois de suas viagens comerciais. Seu primeiro texto impresso se intitulava: “Por que so os livros caros em Kiev?". Seus contos foram precedidos por uma série de es- critos sobre a classe operaria, sobre 0 alcoolismo, sobre os médicos da policia e sobre os vendedores desempregados. 4 senso pratico é uma das caracteristicas de muitos nar- radores natos. Mais tipicamente que em Leskov, encontramos esse atributo num Gotthelf, que d4 conselhos de agronomia a seus camponeses, num Nodier, que se preocupa com os pe- rigos da iluminagao a gs, num Hebel, que transmite a seus leitores pequenas informagées cientificas em seu Schatzke tlein (Caixa de tesouros). Tudo isso esclarece a natureza da verdadeira narrativa, Ela tem sempre em si, 4s vezes de forma latente, uma dimensao utilitéria. Essa utilidade pode consistir seja num ensinamento moral, seja numa sugestao pratica, seja num provérbio ou numa norma de vida — de qualquer ma- neira, o narrador € um homem que sabe dar conselhos. Mas, se “dar conselhos” parece hoje algo de antiquado, € porque as experiéncias esto deixando de ser comunicdveis. Em conse- qiéncia, ndo podemos dar conselhos nem a nés mesmos nem. aos outros, Aconselhar é menos responder a uma pergunta que fazer uma sugestdo sobre a continuacdo de uma historia que estd sendo narrada. Para obter essa sugesto, é necessirio primeiro saber narrar a hist6ria (sem contar que um homem sé éreceptivo a um conselho na medida em que verbaliza a sua si- tuagao). O consetho tecido na substancia viva da existéncia tem. um nome: sabedoria, A arte de narrar esti definhando porque MAGIA E TECNICA, ARTE E POLITICA 201 a sabedoria — 0 lado épico da verdade — esta em extingiio. Porém esse proceso vem de longe. Nada seria mais tolo que ver nele um “sintoma de decadéncia” ou uma caracteristica “moderna”. Na realidade, esse processo, que expulsa gra- dualmente a narrativa da esfera do discurso vivo e ao mesmo tempo dé uma nova beleza ao que est desaparecendo, tem se desenvolvido concomitantemente com toda uma evolugio se- cular das forgas produtivas. 5 primeiro indicio da evolugao que vai culminar na morte da narrativa € 0 surgimento do romance no inicio do periodo moderno, O que separa 0 romance da narrativa (e da epopéia no sentido estrito) € que ele esté essencialmente vinculado ao livro. A difusio do romance s6 se torna possivel com a in- vengao da imprensa. A tradigio oral, patrimdnio da poesia épica, tem uma natureza fundamentalmente distinta da que caracteriza o romance, O que distingue o romance de todas as outras formas de prosa — contos de fada, lendas ¢ mesmo novelas — & que ele nem procede da tradicio oral nem a alimenta, Ele se distingue, especialmente, da narrativa. O narrador retira da experiéncia o que ele conta: sua propria experiéncia ou a relatada pelos outros. E incorpora as coisas narradas a experiéncia dos seus ouvintes. O romancista se- srega-se. A origem do romance é 0 individuo isolado, que nao pode mais falar exemplarmente sobre suas preocupacdes mais importantes e que nao recebe conselhos nem sabe dé-los. Es- rever um romance significa, na descri¢do de uma vida hu- mana, levar 0 incomensurdvel a seus tiltimos limites. Na ri- queza dessa vida e na descrigo dessa riqueza, 0 romance anuncia a.profunda perplexidade de quem a vive. O primeiro grande livro do género, Dom Quixote, mostra como a gran- deza de alma, a coragem € a generosidade de um dos mais nobres heréis da literatura sio totalmente refratarias a0 con- selho € ndo contém a menor centelha de sabedoria. Quando mance algum ensinamento — talvez o melhor exemplo seja Wilhelm Meisters Wanderjahre (Os anos de peregrinacao de Wilhelm Meister) —, essas tentativas resultaram sempre na 202 WALTER BENJAMIN transformacio da propria forma romanesca. O romance de formagio (Bindungsroman), por outro lado, nao se afasta absolutamente da estrutura fundamental do romance. Ao in- tegrar o processo da vida social na vida de uma pessoa, ele justifica de modo extremamente frégil as leis que determinam tal processo. A legitimacdo dessas leis nada tem a ver com sua realidade. No romance de formacdo, € essa insuficiéncia que esta na base da agao. 6 Devemos imaginar a transformagdo das formas épicas segundo ritmos compardveis aos que presidiram a transfor- magio da crosta terrestre no decorrer dos milénios. Poucas formas de comunicagio humana evoluiram mais lentamente e se extinguiram mais lentamente. O romance, cujos primérdios remontam a Antiguidade, precisou de centenas de anos para encontrar, na burguesia ascendente, os elementos favordveis a seu florescimento. Quando esses elementos surgiram, a narra- tiva comegou pouco a pouco a tornar-se arcaica; sem divida, ela se apropriou, de méltiplas formas, do novo contetido, mas no foi determinada verdadeiramente por ele. Por outro lado, verificamos que com a consolidac&o da burguesia — da qual a imprensa, no alto capitalismo, € um dos instrumentos mais importantes — destacou-se uma forma de comunicacao que, por mais antigas que fossem suas origens, munca havia in- fluenciado decisivamente a forma épica. Agora ela exerce essa influéncia. Ela é tio estranha 4 narrativa como 0 ro- mance, mas é mais ameacadora e, de resto, provoca uma crise no proprio romance. Essa nova forma de comunicagio é a in- formagao. Villemessant, o fundador do Figaro, caracterizou a es- s€ncia da informacdo com uma formula famosa. “Para meus leitores”, costumaya dizer, “o inc€ndio num s6tio do Quartier Latin é mais importante que uma revolucdo em Madri.” Essa fOrmula lapidar mostra claramente que 0 saber que vem de Jonge encontra hoje menos ouvintes que a informacio sobre acontecimentos préximos. O saber, que vinha de longe — do longe espacial das terras estranhas, ou do longe temporal contido na tradi¢ao —, dispunha de uma autoridade que era MAGIA E TECNICA, ARTE E POLITICA 203 vlida mesmo que no fosse controlével pela experiéncia. Mas a informagao aspira a uma verificagio imediata. Antes de mais nada, ela precisa ser compreensivel “em si e para si. Muitas vezes nao é mais exata que os relatos antigos. Porém, enquanto esses relatos recorriam freqientemente ao miracu- loso, € indispensavel que a informacio seja plausivel. Nissoela incompativel com o espfrito da narrativa, Se a arte da narra- tiva € hoje rara, a difusio da informagao é decisivamente res- ponsdvel por esse declinio. Cada manha recebemos noticias de todo o mundo. E, no entanto, somos pobres em hist6rias surpreendentes, A razio é que 0s fatos j4 nos chegam acompanhados de explicagdes. Em outras palavras: quase nada do que acontece esta a servico da narrativa, e quase tudo est a servico da informacdo. Metade da arte narrativa est& em evitar explicagdes. Nisso Leskov é magistral. (Pensemos em textos como A fraude, ou A éguia branca.) O extraordinério ¢ 0 miraculoso so narrados com a maior exatidao, mas 0 contexto psicologico da agdo nao é imposto ao leitor. Ele ¢ livre para interpretar a historia como quiser, ¢ com isso 0 episédio narrado atinge uma amplitude que nio existe na informagao. 7 Leskov freqiientou a escola dos Antigos. O primeiro nar- rador grego foi Herédoto. No capitulo XIV do terceiro livro de suas Histérias encontramos um relato muito instrutivo, Seu tema é Psammenit. Quando o rei egipcio Psammenit foi der- rotado ¢ reduzido ao cativeiro pelo rei persa Cambises, este resolveu humilhar seu cativo. Deu ordens para que Psam- menit fosse posto na rua em que passaria 0 cortejo triunfal dos persas. Organizou esse cortejo de modo que o prisioneiro pudesse ver sua filha degradada a condigao de criada, indo ao Pogo com um jarro, para buscar 4gua. Enquanto todos os egipcios se lamentavam com esse espetéculo, Psammenit ficou silencioso e imével, com 0s olhos no chio; e, quando logo em seguida viu seu filho, caminhando no cortejo para ser execu- tado, continuou imével. Mas, quando viu um dos ‘seus servi dores, um velho miserdvel, na fila dos cativos, golpeou a ca- 204 WALTER BENIAMIN beca com 0s punhos ¢ mostrou os sinais do mais profundo desespero. Essa hist6ria nos ensina o que é a verdadeira narrativa. A informagao s6 tem valor no momento-em que é nova. Ela s6 vive nesse momento, precisa entregar-se inteiramente a ele ¢ sem perda de tempo tem que se explicar nele. Muito diferente €a narrativa. Ela nao se entrega. Ela conserva suas forcas depois de muito tempo ainda € capaz de se desenvolver. As- sim, Montaigne alude & historia do rei egfpicio e pergunti porque ele s6 se lamenta quando reconhece o seu servidor? Sua Fesposta é que ele “‘jé estava tdo cheio de tristeza, que uma gota a mais bastaria para derrubar as comportas". E a expli- ‘eagiio de Montaigne. Mas poderiamos também dizer: “O des: tino da familia real ndo afeta o rei, porque 0 seu proprio destino”. Ou: “‘muitas coisas que nao nos afetam na vida nos afetam no palco, ¢ para 0 rei o criado era apenas um ator”, Ou: “‘as grandes dores so contidas, ¢ s6 irrompem quando ocorre uma distensio. O espeticulo do servidor foi essa dis- tensio”. Herédoto nao explica nada. Seu relato é dos mais secos. Por isso, essa histéria do antigo Egito ainda ¢ capaz, depois de milénios, de suscitar espanto e reflexdo. Ela se asse- melha a essas sementes de trigo que durante milhares de anos ficaram fechadas hermeticamente nas camaras das pirAmides que conservam até hoje suas forcas germinativas. Nada facilita mais a memorizacdo das narrativas que aquela s6bria conciséo que as salva da anélise psicolégica. ‘Quanto maior a naturalidade com que o narrador renuncia as sutilezas psicolégicas, mais facilmente a historia se gravaré na. meméria do ouvinte, mais completamente ela se assimilard a sua propria experiéncia ¢ mais irresistivelmente ele cedera A inclinagao de reconté-la um dia. Esse processo de assimilagiio se di em camadas muito profundas e exige um estado de distensao que se torna cada vez mais raro. Se 0 sono € 0 ponto mais alto da distensao fisica, 0 tédio € 0 ponto mais alto da distensio psiquica. O tédio € 0 passaro de sonho que choca os ‘ovos da experiéncia. O menor sussuro nas folhagens 0 assusta. Seus ninhos — as atividades intimamente associadas ao tédio MAGIA E TECNICA, ARTE E POLITICA os — j se extinguiram na cidade e esto em vias de extin¢ao no campo. Com isso, desaparece o dom de ouvir, e desaparece a comunidade dos ouvintes. Contar historias sempre foi a arte de conté-las de novo, ¢ ela se perde quando as historias nio so mais conservadas. Ela se perde porque ninguém mais fia ou tece enquanto ouve a histéria. Quanto mais o ouvinte se ‘esquece de si mesmo, mais profundamente se grava nele 0 que & ouvido. Quando o ritmo do trabalho se apodera dele, ele escuta as histérias de tal maneira que adquire espontanea- mente o dom de narré-las. Assim se teceu a rede em que esta guardado o dom narrativo. E assim essa rede se desfaz hoje por todos os lados, depois de ter sido tecida, hé milénios, em torno das mais antigas formas de trabalho manual. 9 A narrativa, que durante tanto tempo floresceu num meio de arteso — no campo, no mar e na cidade —, é ela prépria, num certo sentido, uma forma artesanal de comu- nicagio. Ela nfo esta interessada em transmitir 0 “puro em- si” da coisa narrada como uma informagao ou um relatério. Fla mergulha a coisa na vida do narradot para em seguida re- tird-la dele. Assim se imprime na narrativa 2 marca do nar- rador, comoa mio do oleiro na argila do vaso. Os narradores gostam de comecar sua histéria com uma descricao das cir- cinstncias em que foram informados dos fatos que vaio contar a seguir, a menos que prefiram atribuir essa historia a uma experiéncia autobiografica. Leskov comega A fraude com uma descrigio de uma viagem de trem, na qual ouviu de um com- panheiro de viagem os epis6dios que vai narrar; ou pensa no enterro de Dostoievski, no qual travou conhecimento com a heroina de A propésito da Sonata de Kreuzer; ou evoca uma reunidio num circulo de leitura, no qual soube dos fatos rela- tados em Homens interessantes. Assim, seus vestigios estio presentes de muitas maneiras nas coisas narradas, seja na qualidade de quem as viveu, seja na qualidade de quem as relata. (© proprio Leskov considerava essa arte artesanal — a narrativa — como um oficio manual. “A literatura”, diz ele em uma carta, “‘ndo é para mim uma arte, mas um trabalho 06 WALTER BENJAMIN manual.” Nao admira que ele tenha se sentido ligado ao tra- batho manual ¢ estranho a técnica industrial. Tolstoi, que tinha afinidades com essa atitude, alude de passagem a esse elemento central do talento narrativo de Leskov, quando diz que ele foi o primeiro “a apontar a insuficiéneia do progresso econémico... E estranho que Dostoievski seja to lido... Em compensagio, néo compreendo por que nao se 1é Leskov. Ele € um escritor fiel @ verdade". No malicioso e petulante A pulga de ago, intermedidrio entre a lenda e a farsa, Leskov exalta, nos ourives de Tula, o trabatho artesanal. Sua obra- prima, a pulga de aco, chega aos olhos de Pedro, o Grande ¢ 0 convence de que os russos ndo precisam envergonhar-se dos ingleses. ___ Talvez ninguém tenha descrito methor que Paul Valéry a imagem espiritual dese mundo de artifices, do qual provém 0 narrador, Falando das coisas perfeitas que se encontram na natureza, pérolas imaculadas, vinhos encorpados e maduros, criaturas realmente completas, ele as descreve como “o pro- duto precioso de uma longa cadeia de causas semelhantes entre si”. O actimulo dessas causas sé teria limites temporais quando fosse atingida a perfeigdo. “Antigamente o homem imitava essa paciéncia”, prossegue Valéry. “Iluminuras, mar- fins profundamente entalhados; pedras duras, perfeitamen- te polidas ¢ claramente gravadas; lacas e pinturas obtidas pela superposigiio de uma quantidade de camadas finas ¢ transhicidas... — todas essas produgdes de uma indistria tenaz ¢ virtuosistica cessaram, e j& passou o tempo em que 0 tempo nio contava. O homem de hoje nao cultiva o que nao pode ser abreviado.” Com efeito, o homem conseguiu abreviar até a narrativa. Assistimos em nossos dias a0 nascimento da short story, que se emancipou da tradicao oral ¢ nao mais permite essa lenta superposicao de camadas finas € transhicidas, que representa a melhor imagem do processo pelo qual a narrativa perfeita vem A luz do dia, como coroa- mento das varias camadas constitufdas pelas narragées suces- sivas. MAGIA E TECNICA, ARTE E POLITICA 207 10 Valéry conclui suas reflexdes com as seguintes palavras: “‘dir-se-ia que 0 enfraquecimento nos espiritos da idéia de eternidade coincide com uma aversio cada vez maior ao tra- balho prolongado”. A idéia da eternidade sempre teve na morte sua fonte mais rica. Se essa idéia esté se atrofiando, temos que concluir que o rosto da morte deve ter assumido outro aspecto. Essa transformacdo é a mesma que reduziu a comunicabilidade da experiéncia 4 medida que a arte de narrar se extinguia. No decorrer dos iiltimos séculos, pode-se observar que a idéia da morte vem perdendo, na consciéncia coletiva, sua onipresenga e sua forga de evocagaio. Esse processo se acelera em suas ditimas etapas. Durante o século XIX, a sociedade burguesa produziu, com as instituicdes higiénicas ¢ sociais, privadas e péblicas, um efeito colateral que inconscientemen- te talvez tivesse sido seu objetivo principal: permitir aos ho- mens evitarem o espeticulo da morte. Morrer era antes um epis6dio piblico na vida do individuo, e seu cardter era alta- mente exemplar: recordem-se as imagens da Idade Média, nas quais 0 leito de morte se transforma num trono em direg%o ao qual se precipita 0 povo, através das portas escancaradas. ‘Hoje, a morte é cada vez mais expulsa do universo dos vivos. Antes no havia uma s6 casa e quase nenhum quarto em que no tivesse morrido alguém. (A Idade Média conhecia a con- trapartida espacial daquele sentimento temporal expresso num rel6gio solar de Ibiza: ultima multis.) Hoje, os burgueses vivem em espacos depurados de qualquer morte e, quando chegar sua hora, serdo depositados por seus herdeiros em sa- nat6rios ¢ hospitais. Ora, € no momento da morte que o saber a sabedoria do homem e sobretudo sua existéncia vivida — € € dessa substincia que sao feitas as historias — assumem pela primeira vez uma forma transmissivel. Assim como no interior do agonizante desfilam intimeras imagens — visdes de si mesmo, nas quais ele se havia encontrado sem se dar conta disso —, assim o inesquecivel aflora de repente em seus gestos e olhares, conferindo a tudo o que the diz respeito aquela autoridade que mesmo um pobre-diabo possui ao morrer, 28 WALTER BENJAMIN para 0s vivos em seu redor. Na origem da narrativa est autoridade. i A morte € a sangdo de tudo 0 que o narrador pode contar. E da morte que ele deriva sua autoridade. Em outras p: lavras: suas historias remetem & hist6ria natural. Esse fené- meno ¢ ilustrado exemplarmente numa das mais belas narra- tivas do incomparével Johann Peter Hebel. Ela faz parte do Schatzkiistlein des rheinischen Hausfreunde (Caixa de te- souros do amigo renano das familias) e chama-se Unver- hofftes Wiedersehen (Reencontro inesperado). A hist6ria co- mega com o noivado de um jovem aprendiz. que trabalha nas minas de Falun. Na véspera do casamento, o rapaz morre em um acidente, no fundo da sua galeria subterranea. Sua noiva se mantém fiel além da morte ¢ vive 0 suficiente para reconhe- cer um dia, j4 extremamente velha, o cadfver do noivo, en- contrado em sua galeria perdida e preservado da decomposi- Ho pelo vitriolo ferroso. A ancia morre pouco depois. Ora, Hebel precisava mostrar palpavelmente o longo tempo decor- tido desde o inicio da historia, e sua solugdo foi a seguinte: “Entrementes, a cidade de Lisboa foi destruida por um terre- moto, e a guerra dos Sete Anos terminou, e 0 imperador Fran- cisco 1 morreu, ¢ a ordem dos jesuitas foi dissolvida, e a Po- lonia foi retalhada, ¢ a imperatriz Maria Teresa morreu, e Struensee foi executado, a América se tornou independente, e a poténcia combinada da Franga e da Espanha no péde con- quistar Gibraltar. Os turcos prenderam o general Stein na grota dos veteranos, na Hungria, e o imperador José morreu também. O rei Gustavo da Suécia tomou a Finlandia dos russos, e a Revolug&o Francesa e as grandes guerras come- garam, e 0 rei Leopoldo II faleceu também. Napoledo con- quistou a Prissia, e os ingleses bombardearam Copenhague, ¢ os camponeses semeavam e ceifavam. O moleiro moeu, ¢ os ferreiros forjaram, e os mineiros cavaram a procura de filées metAlicos, em suas oficinas subterrfineas. Mas, quando no ano de 1809 os mineiros de Falun...”. Jamais outro narrador conseguiu inscrever tio profundamente sua historia na his- t6ria natural como Hebel com essa cronologia. Leia-se com MAGIA E TECNICA, ARTE E POLITICA ccd atenc&o: a morte reaparece nela téo regularmente como o esqueleto, com sua foice, nos cortejos que-desfilam ao meio- dia nos relogios das catedrais. 12 Cada vez que se pretende estudar uma certa forma épica € necessério investigar a relac&o entre essa forma ea historio- grafia. Podemos ir mais longe perguntar se a historiografid ndo representa uma zona de indiferenciacao criadora com re- lagao a todas as formas épicas. Nesse caso, a historia escrita se relacionaria com as formas épicas como a luz branca com as cores do ¢spectro. Como quer que seja, entre todas as formas épicas a cronica é aquela cuja incluso na luz pura ¢ incolor da historia eserita é mais incontestével. E, no amplo espectro da crénica, todas as maneiras com que uma historia pode ser narrada se estratificam como se fossem variagdes da mesma cor. O cronista é 0 narrador da hist6ria. Pense-se no trecho de Hebel, citado acima, cujo tom é claramente o da cronica, ¢ notar-se-4 facilmente a diferenca entre quem escreve a his- toria, 0 historiador, e quem a narra, o cronista. O historiador € obrigado a explicar de uma ou outra maneira os episddios com que lida, e ndo pode absolutamente contentar-se em re- present4-los como modelos da histéria do mundo. E exata- mente o que faz 0 cronista, especialmente através dos seus representantes classicos, os cronistas medievais, precursores da historiografia moderna. Na base de sua historiografia esta © plano da salvago, de origem divina, indevassavel em seus designios, e com isso desde 0 inicio se libertaram do Onus da explicagao verificavel. Ela é substituida pela exegese, que nao se preocupa com 0 encadeamento exato de fatos determina: dos, mas com a maneira de sua inserc&o no fluxo insondavel das coisas. ‘Nao importa se esse fluxo se inscreve na histéria sagrada ou se tem cardter natural. No narrador, o cronista conservou- se, transformado e por assim dizer secularizado. Entre eles, Leskov & aquele cuja obra demonstra mais claramente esse fendmeno. Tanto o cronista, vinculado a historia sagrada, como 0 narrador, vinculado @ histéria profana, participam igualmente da natureza dessa obra a tal ponto que, em muitas 210 WALTER BENJAMIN de suas narrativas, dificil decidir se o fundo sobre o qual elas se destacam é a trama dourada de uma concepcao religiosa da hist6ria ou a trama colorida de uma concepgio profana. Pen- se-se, por exemplo, no conto A alexandrita, que coloca o leitor nos velhos tempos em que ‘‘as pedras nas entrarthas da terra ¢ os planetas nas esferas celestes se preocupavam ainda com 0 destino do homem, ao contrério dos dias de hoje, em que tanto no céu como na terra tudo se tornou indiferente & sorte dos seres humanos, e em que nenhuma voz, venha de onde vier, hes dirige a palavra ou Ihes obedece. Os planetas recém- descobertos nao desempenham mais nenhum papel no hords- copo, e existem intimeras pedras novas, todas medidas e pe- sadas e com seu peso especifico e sua densidade exatamente caleulados; mas els nfo|nos anunciam nade ndo tm ne- u ara nés. O tempo jé passou conversavam com os homens". rod om que cas "omo se v8, 6 dificil aracterizar inequivocamente das coisas, como Leskoro itustra nessa narrati, E determi, nado pela hist6ria sagrada ou pela historia natural? Sé se sabe ue, enquanto tal, o curso das coisas escapa a qualquer cate- goria verdadeiramente historica. Jé se foi a época, diz Leskov, em que o homem podia sentir-se em harmonia com a natu- reza. Schiller chamava essa época o tempo da literatura in- génua. O narrador mantém sua fidelidade a essa época, e seu olhar nio se desvia do rel6gio diante do qual desfila a pro- cissdo das criaturas, na qual a morte tem seu lugar, ou a frente do cortejo, ou como retardatéria miseravel. 13 ___ Nao se percebeu devidamente até agora ingénua entre 0 ouvinte e o narrador € dominada pole i teresse em conservar 0 que foi narrado. Para o ouvinte im- Parcial, o importante é assegurar a possibilidade da repro- dugdo. A meméria 6 a mais épica de todas as faculdades. So- mente uma meméria abrangente permite & poesia épica apro- priar-se do curso das coisas, por um lado, e resignar-se, por outro lado, com o desaparecimento dessas coisas, com 0 poder da morte. Nao admira que para um personagem de Leskov, um simples homem do povo, o czar, o centro do mundo ¢ em MAGIA E TECNICA, ARTE E POLITICA a torno do qual gravita toda a hist6ria, disponha de uma me- méria excepcional. “Nosso imperador e toda a sua familia tém com efeito uma surpreendente meméria. Mnemosyne, a deusa da reminiscéncia, era para os gre- ‘gos a musa da poesia épica. Esse nome chama a ateng%o para uma decisiva guinada histérica. Se o registro escrito do que foi transmitido pela reminiscéncia — a historiografia — repre- senta uma zona de indiferenciagao criadora com relacio as varias formas épicas (como a grande prosa representa uma zona de indiferenciagao criadora com relago as diversas for- mas métricas), sua forma mais antiga, a epopéia propria- mente dita, contém em si, por uma espécie de indiferenciagéo, a narrativa e 0 romance. Quando no decorrer dos séculos 0 romance comecou a emergir do seio da epopéia, ficou evidente que nele a musa épica — a reminiscéncia — aparecia sob outra forma que na narrativa. ‘A reminiscéncia funda a cadeia da tradicao, que trans- mite os acontecimentos de geracdo em geragao. Ela correspon- de A musa épica no sentido mais amplo. Ela inclui todas as va- riedades da forma épica. Entre elas, encontra-se em primeiro lugar a encarnada pelo narrador. Ela tece a rede que em filtima instancia todas as hist6rias constituem entre si. Uma se articula na outra, como demonstraram todos os outros nar- radores, principalmente os orientais. Em cada um deles vive uma Scherazade, que imagina uma nova histéria em cada passagem da hist6ria que esta contando. Tal € a meméria épica e a musa da narragdo. Mas a esta musa deve se opor outra, a musa do romance que habita a epopéia, ainda indi- ferenciada da musa da narrativa. Porém ela j4 pode ser pres- sentida na poesia épica. Assim, por exemplo, nas invocagdes solenes das Musas, que abrem os poemas homéricos. O que se prenuncia nessas passagens ¢ a memoria perpetuadora do ro- mancista, em contraste com a breve meméria do narrador. A primeira € consagrada a um her6i, uma peregrinagio, um combate; a segunda, a muitos fatos difusos. Em outras pa- layras, a rememoracdo, musa do romance, surge ao lado da meméria, musa da narrativa, depois que a desagregagio da poesia épica apagou a unidade de sua origem comum na re- miniscéncia. 2m WALTER BENJAMIN 14 Como disse Pascal, ninguém morre tao pobre que nao deixe alguma coisa atrés de si. Em todo oaso, ele deixa remi- niscéncia, embora nem sempre elas encontrem um herdeiro. © romancista recebe a sucesso quase sempre com uma pro- funda melancolia. Pois, assim como se diz. num romance de Arnold Bennet que uma pessoa que acabara de morrer “‘niio tinha de fato vivido”, 0 mesmo costuma acontecer com as somas que o romancista recebe de heranca. Georg Lukées viu com grande lucidez esse fendmeno. Para ele, o romance 6 “a forma do desenraizamento transcendental”. Ao mesmo tem- po, o romance, segundo Lukécs, é a tinica forma que inclui tempo entre os seus principios constitutivos. “O tempo”, diz a Teoria do romance, “'s6 pode ser constitutive quando cessa a ligacdo com a patria transcendental... Somente o romance... separa o sentido e a vida, e, portanto, o essencial e o temporal; podemos quase dizer que toda a ago interna do romance nao € sendo a luta contra o poder do tempo... Desse combate, emergem as experiéncias temporais autenticamente épicas: a esperanca ¢ a reminiscéncia... Somente no romance... ocorre uma reminiscéncia criadora, que atinge seu objeto e o trans- forma... O sujeito s6 pode ultrapassar o dualismo da interio- ridade e da exterioridade quando percebe a unidade de toda a sua vida... na corrente vital do seu passado, resumida na re- miniscéncia... A visto capaz de perceber essa unidade € a apreensdo divinatéria e intuitiva do sentido da vida, inatin- gidoe, portanto, inexprimivel.” Com , “0 sentido da vida” é 0 centro em torno do qual se movimenta o romance. Mas essa questo ndo é outra coisa que a expresso da perplexidade do leitor quando mer- gulha na descrigao dessa vida. Num caso, “‘o sentido da vida”, € no outro, “a moral da histéria” — essas duas palavras de ordem distinguem entre si o romance e a narrativa, permi- tindo-nos compreender 0 estatuto hist6rico completamente diferente de uma e outra forma. Se o modelo mais antigo do romance é Dom Quixote, 0 mais recente talvez seja A edu- cacao sentimental. As iltimas palavras deste romance mos- tram como o sentido do periodo burgués no inicio do seu de- clinio se depositou como um sedimento no copo da vida. Fré- déric e Deslauriers, amigos de juventude, recordam-se de sua MAGIA E TECNICA, ARTE E POLITICA a3 mocidade e lembram um pequeno epis6dio: uma vez, en- traram no bordel de sua cidade natal, furtiva e timidamente, € limitaram-se a oferecer 4 dona da casa um ramo de flores, que tinham cothido no jardim. “Falava-se ainda dessa historia trés anos depois. Eles a contaram prolixamente, um completando as lembrangas do outro, e quando terminaram Frédéric ex- clamou: — Foi o que nos aconteceu de melhor! — Sim, talvez. Foi o que nos aconteceu de melhor! disse Deslauriers." Com essa descoberta, 0 romance chega a seu fim, e este é mais Tigoroso que em qualquer narrativa. Com efeito, numa nar- rativa a pergunta — e 0 que aconteceu depois? — é plena- mente justificada. O romance, ao contrério, nao pode dar um nico passo além daquele limite em que, escrevendo na parte inferior da pagina a palavra fim, convida o leitor a refletir sobre o sentido de uma vida. 15 Quem escuta uma histéria esté em companhia do nar- rador; mesmo quem a 1é partilha dessa companhia. Mas 0 leitor de um romance é solitario, Mais solitério que qualquer outro leitor (pois mesmo quem 1é um poema est disposto a declamé-lo em voz alta para um ouvinte ocasional). Nessa so- liddo, 0 leitor do romance se apodera ciosamente da matéria de sua leitura. Quer transformé-la em coisa sua, devoré-la, de certo modo. Sim, ele destréi, devora a substancia lida, como 0 fogo devora lenha na lareira. A tensio que atravessa 0 To- mance se assemelha muito a corrente de ar que alimenta € reanimaachama, interesse ardente do leitor se nutre de um material seco. O que significa isto? “Um homem que morre com trinta e cinco anos”, disse certa vez Moritz Heimann, “é em cada momento de sua vida um homem que morre com trinta e cinco anos.” Nada mais duvidoso. Mas apenas porque 0 autor se ‘engana na dimensdo do tempo. A verdade contida na frase ¢ a seguinte: um homem que morre aos trinta ¢ cinco anos apa- recera sempre, na rememoracdo, em cada momento de sua vida, como um homem que morre com trinta e cinco anos. Em outras palavras: a frase, que nao tem nenhum sentido com relagio a vida real, torna-se incontestével com relagdio & aa WALTER BENJAMIN vida lembrada. Impossivel descrever melhor a esséncia dos personagens do romance. A frase diz que 0 “sentido” da sua vida somente se revela a partir de sua morte. Porém 0 leitor do romance procura realmente homens nos quais possa ler “o sentido da vida”. Ele precisa, portanto, estar seguro de an- temdo, de um modo ou outro, de que participara de sua morte, Se necessario, a morte no sentido figurado: o fim do romance. Mas de preferéncia a morte verdadeira. Como esses ersonagens anunciam que a morte jé esta a sua espera, uma morte determinada, num lugar determinado? E dessa questo que se alimenta o interesse absorvente do leitor. Em conseqiiéncia, o romance nio € significativo por des- crever pedagogicamente um destino alheio, mas porque esse destino alheio, gragas 4 chama que o consome, pode dar-nos 0 calor que nao podemos encontrar em nosso préprio destino. O que seduz 0 leitor no romance é a esperanga de aquecer sua vida gelada com a morte descrita no livro. 16 Segundo Gorki, “Leskov ¢ 0 escritor... mais profunda- mente enraizado no povo, e o mais inteiramente livre de fluéncias estrangeiras”. O grande narrador tem sempre suas raizes no povo, principalmente nas camadas artesanais. Con- tudo, assim como essas camadas abrangem o estrato cam- ponés, maritimo e urbano, nos mUltiplos estégios do seu de- senyolvimento econémico e técnico, assim também se estrati- ficam de miltiplas maneiras os conceitos em que 0 acervo de experiéncias dessas camadas se manifesta para nés. (Para nao falar da contribui¢o nada desprezivel dos comerciantes 20 desenvolvimento da arte narrativa, nao tanto no sentido de aumentarem seu contedido didatico, mas no de refinarem as astticias destinadas a prender a atengdo dos ouvintes. Os co- merciantes deixaram marcas profundas no ciclo narrativo de As mil e uma noites.) Em suma, independentemente do papel elementar que a narrativa desempenha no patriménio da hu- manidade, s4o miltiplos os conceitos através dos quais seus frutos podem ser colhidos. O que em Leskov pode ser inter- pretado numa perspectiva religiosa, parece em Hebel ajustar- se espontaneamente as categorias pedag6gicas do Tluminismo, MAGIA E TECNICA, ARTE E POLITICA 2s surge em Poe como tradig&o hermética ¢ encontra um dltimo asilo, em Kipling, no circulo dos marinheiros ¢ soldados co- Ioniais britanicos. Comum a todos os grandes narradores é a facilidade com que se movem para cima e para baixo nos degraus de sua experiéncia, como numa escada. Uma escada que chega até o centro da terra e que se perde nas nuvens — € a imagem de uma experiéncia coletiva, para a qual mesmo 0 mais profundo choque da experiéncia individual, a morte, nao representa nem um escandalo um impedimento. “E se ndo morreram, vivem até hoje”, diz 0 conto de fadas. Ele é ainda hoje o primeiro conselheiro das criangas, porque foi o primeiro da humanidade, e sobrevive, secreta- mente, na narrativa. O primeiro narrador verdadeiro € € continua sendo o narrador de contos de fadas. Esse conto sabia dar um bom conselho, quando ele era dificil de obter, & oferecer sua ajuda, em caso de emergéncia. Era a emergéncia provocada pelo mito. O conto de fadas nos revela as primeiras medidas tomadas pela humanidade para libertar-se do pesa- delo mitico. O personagem do “tolo” nos mostra como a hu- manidade se fez de ‘‘tola” para proteger-se do mito; 0 perso- nagem do irmio cagula mostra-nos como aumentam as possi- bilidades do homem quando ele se afasta da pré-historia mi- tica; 0 personagem do rapaz que saiu de casa para aprender a ter medo mostra que as coisas que tememos podem ser devas- sadas; 0 personagem “‘tinteligente” mostra que as perguntas feitas pelo mito so to simples quanto as feitas pela esfinge; 0 personagem do animal que socorre uma crianga mostra que a natureza prefere associar-se ao homem que ao mito. O conto de fadas ensinou hé muitos séculos 4 humanidade, e continua ensinando hoje as criangas, que o mais aconselhivel € en- frentar as forgas do mundo mitico com astiicia e arrogincia. (Assim, 0 conto de fadas dialetiza a coragem (Mut) desdo- brando-a em dois polos: de um lado Untermut, isto ¢, asticia, e de outro Ubermut, isto é, arrogancia.) O feitico libertador do conto de fadas nJo poe em cena a natureza como uma entidade mitica, mas indica a sua cumplicidade com o homem liberado. O adulto sé percebe essa cumplicidade ocasional- mente, isto é, quando esté feliz; para a crianga, cla aparece pela primeira vez no conto de fadas e provoca nela uma sen- sagdo de felicidade. 216 WALTER BENJAMIN 17 Poucos narradores tiveram uma afinidade téo profunda pelo espirito do conto de fadas como Leskov. Essas tendéncias foram favorecidas pelos dogmas da Igreja Ortodoxa grega. Nesses dogmas, como se sabe, a especulagao de Origenes, re- jeitada pela Igreja de Roma, sobre a apocatastasis, a admis- so de todas as almas ao Paraiso, desempenha um papel signi- ficativo. Leskov foi muito influenciado por Origenes. Tinha a inteng&o de traduzir sua obra Dos primeiros principios. No espfrito das crencas populares russas, interpretou a ressurrei- ‘do menos como uma transfigura¢o que como um desencan- tamento, num sentido semelhante ao do conto de fada. Essa interpretago de Origenes é o fundamento da narrativa O pe- regrino encantado. Essa hist6ria, como tantas outras de Les- kov, € um hfbrido de contos de fadas e lenda, semelhante ao hibrido de contos de fadas e saga, descrito por Ernst Bloch numa passagem em que retoma a sua maneira nossa distingao entre mito e conto de fadas. Segundo Bloch, “nessa mescla de conto de fadas e saga 0 elemento mitico é figurado, no sentido de que age de forma estatica e cativante, mas nunca fora do homem. Miticos, nesse sentido, séo certos personagens de saga, de tipo taoista, sobretudo os muito arcaicos, como 0 casal Filemon e Baucis: salvos, como nos contos de fada, em- bora em repouso, como na natureza. Existe certamente uma Telago desse tipo no taofsmo muito menos pronunciado de Gotthelf; ele priva ocasionalmente a saga do encantamento local, salva a luz da vida, auz propria a vida humana, que arde serenamente, por fora e por dentro”. “‘Salvos, como nos contos de fadas”, sao os seres a frente do cortejo humano de Leskov: os justos. Pavlin, Figura, 0 cabeleireiro, 0 domador de ursos, a sentinela prestimosa — todos eles, encarnando a sabedoria, a bondade e 0 consolo do mundo, circundam 0 narrador. E incontestével que so todos derivagdes da imago materna. Segundo a descricio de Leskov, “ela era t&io bon- dosa que nao podia fazer mal a ninguém, nem mesmo aos animais. Nao comia nem peixe nem carne, tal sua compaixiio por todas as criaturas vivas. De vez em quando, meu pai cos- tumava censuré-la... Mas ela respondia: eu mesma criei esses animaizinhos, eles sio como meus filhos. Nao posso comer meus préprios filhos! Mesmo na casa dos vizinhos ela se abs- MAGIA E TECNICA, ARTE E POLITICA aT tinha de carne, dizendo: eu vi esses animais vivos; sao meus conhecidos. Nao posso comer meus conhecidos”. O justo é 0 porta-voz da criatura ¢ ao mesmo tempo sua mais alta encarnagio. Ele tem em Leskov tracos maternais, que as vezes atingem o plano mitico (pondo em perigo, assim, a pureza da sua condicto de conto de fadas). Caracteristico, nesse sentido, é 0 personagem central da narrativa Kotin, 0 provedor e Platénida, Esse personagem, um camponés cha- mado Pisonski, hermatrodita. Durante doze anos, a mae 0 ‘educou como menina, Seu lado masculino e o feminino ama- durecem simultaneamente e seu hermafroditismo transforma- “ do Homem-Deus”. * or aor ve neste simbolo 0 ponto mais alto da cee mesmo tempo uma ponte entre o mundo terreno pra- terreno. Porque essas poderosas figuras masculinas, tetaticas e maternais, sempre retomadas pela imaginacdo de Les! or foram arrancadas, no apogeu de sua forga, cseravidto do instinto sexual, Mas nem por isso encarnam um ideal a ‘tico; a castidade desses justos tem um cardter tio pouco in vidual que ela se transforma na antftese elementar da luxtiria desenfreada, representada na Lady Macbeth de Mzensk. Sea distancia entre Pavlin e essa mulher de comerciante repr senta a amplitude do mundo das criaturas, na hierarquia seus personagens Leskov sondou também a profundidade desse mundo. 18 hierarquia do mundo das criaturas, que culmina na figure do justo, desce por miltiplos estratos até os abismos do inanimado. Convém ter em mente, a esse respeito, uma cir- cunst&ncia especial. Para Leskov, esse mundo se exprime menos através da voz humana que através do que ele chama, num dos seus contos mais significativos, “A voz da atureza. ‘Seu personagem central é um pequeno funcionario, Filip Fili- povitch, que usa todos os méios a seu dispor para. hospedarem sua casa um marechal-de-campo, que passa por sua cidade. ‘Seu desejo ¢ atendido. O héspede, a principio admirado, coma insisténcia do funcion4rio, com o tempo julga reconhecer alguém que havia encontrado antes. Quem? No consegue 28 WALTER BENTAMIN Jembrar-se. O mais estranho é que o dono da casa nada faz para revelar sua identidade, Em vez disso, ele consola seu ilustre héspede, dia apés dia, dizendo que “‘a voz da natureza” nao deixard de se fazer ouvir um dia. As coisas continuam assim, até que o héspede, no momento de continuar sua viagem, dé ao funcionério a permisséo, por este solicitada, de fazer ouvir “‘a voz da natureza”. A mulher do anfitriao se afasta. “Ela voltou com uma corneta de caga, de cobre polido, ¢ entregou-a a scu marido. Ele pegou a corneta, colocou-a na boca ¢ sofreu uma verdadeira metamorfcse. Mal enchera a boca, produzindo um som forte como um trovio, o marechal- de-campo gritou: — Para! J4 sei, irmfo, agora te reconhecol Es 0 misico do regimento de cagadores, que como recom- pensa por sua honestidade enviei para vigiar um intendente corrupto. — E verdade, Exceléncia, respondeu o dono da casa. Eu no queria recordar esse fato a Vossa Exceléncia, ¢ sim deixar que a voz. da natureza falasse.”” A profundidade dessa hist6ria, escondida atras de sua estupidez aparente, dé uma idéia do extraordindrio humor de Leskov. Esse humor reaparece na mesma histéria de modo ainda mais discreto. Sabemos que o pequeno funcionério fora en- viado “como recompensa por sua honestidade... para vigiar um intendente corrupto”. Essas palavras esto no final, na cena do reconhecimento. Porém no comego da histéria lemos. © seguinte sobre o dono da casa: “os habitantes do lugar co- nheciam o homem e sabiam que nio tinha uma. Posigio de destaque, pois nao era nem alto funcionério do Estado nem militar, mas apenas um pequeno fiscal no modesto servigo de intendéncia, onde, juntamente com os Tatos, roia os biscoitos © as botas do Estado, chegando com o tempo a roer para si uma bela casinha de madeira”. Manifesta-se assim, como se ve, a simpatia tradicional dg narrador pelos patifes e ma- landros. Toda a literatura burlesca partilha essa simpatia, que seencontra mesmo nas culminancias da arte: os companheiros mais figis de Hebel sto 0 Zumdelfrieder, 0 Zundelheiner ¢ Dieter o ruivo. Noentanto, também para Hebel o justo desem- penha o papel principal no theatrum mundi. Mas, como ninguém esté a altura desse papel, ele passa de uns para outros. Ora € 0 vagabundo, ora 0 judeu avarento, ora o im- becil, que entram em cena para representar esse Papel. A peca varia segundo as circunstncias, é uma improvisacéo moral. MAGIA E TECNICA, ARTE E POLITICA 219 wuista. Ele nio se solidariza, por nenhum prego, Reon prinetpio, mas no rejeita nenhum, porque cada tum deles pode se tornar um instrumento dos justos. Compare- titude com a de Leskov. ““Tenho: consciénci ia”, escreve Sicem A propo de Sonata de Rrewer, "de ave minhas idéias se baseiam muito mais numa concepgdo pratica . do que na filosofia abstrata ou numa moral elevada, mas jé me habituei a pensar assim.” De resto, as catéstrofes morais ue ocorrem no universo de Leskov se relacionam com os in Gidentes morais que ocorrem no universo de Hebel como 8 vasta e silenciosa torrente do Volgs se relacions com 9 Tee ° tagarela titante faz girar 0 moinho. ti narra- tivas Wiatoneas de Leskor existem ter? quais as pasos struidoras como a ira de Aquiles ou 0 Hagen, iE Surpreendente verificar como 0 mundo pode ser sombrio para esse autor e com que majestade 9 mal pods om: punhar o seu cetro. Obviamente, Leskow conheoet estat ine espirit ito proximos de uma ito em que estava muito pi ice ee mistica, e esse € talvez um dos seus poucos pont com Dostoievski. AAs naturezas elementares dos seus Contes dos velhos tempos vao até o fim em sua paixto impiety "i ‘Mas esse fim 6 justamente 0 ponto em que, para os > mais profunda abjeciio se converte em santidade. 19 Quanto mais baixo Leskor sce na hierargua das cria- turas, mais sua concepg4o das coisas se aproxima oe cismo. Aliés, como veremos, hi indicios de que essa caract Hstica 6 propria da natureza do narrador. Contudo poucos ousaram mergulher nas profundezas da naturezainanimada, tas obras, na literatura narrativa recente, 1 Suis yor do narradorandnimo, anor qulguer esr, fessoe de modo to audivel como na historia de Leskov, at eee ates Mas part 0 ma ‘mais infimo : i at a tad hb consegue vshumbrat nessa pedra semiprecioss,o propo, uma profeia natural do mundo mineral ¢ inanimado dirigids ao mundo hist6rico, na qual ele proprio vive. Esse mun ™ WALTER BENJAMIN Alexandre II. O narrador — ou antes, 0 homem a quem ele transmite o seu saber — é um lapidador chamado Wenzel, que levou sua arte 4 mais alta perfei¢io. Podemos aproxim’. lo dos ourives de Tula e dizer que, segundo Leskov, 0 artifice Perfeito tem acesso aos arcanos mais secretos do mundo cria- do. Ele € a encarna¢&o do homem piedoso. Leskov diz 0 se- guinte desse lapidador: “Ele segurou de repente a minha mao, ha qual estava o anel com a alexandrita, que como se sabe emite um brilho rubro quando exposta a uma iluminacdo ar- tificial, ¢ gritou: — Olhe, ei-la aqui, a pedra russa, profé- tica... O siberiana astuta! Ela sempre foi verde como a espe- Tanga ¢ somente a noite assume uma cor de sangue. Ela sem- Pre foi assim, desde a origem do mundo, mas escondeu-se por muito tempo e ficou enterrada na terra, e s6 consentiu em ser encontrada no dia da maioridade do czar Alexandre, quando um grande feiticeiro visitou a Sibéria para aché-la, a pedra, um migico... — Que tolices o Sr. est& dizendo! interrompi-o, Nao foi nenhum magico que achou essa pedra, foi um sfbio chamado Nordenskjdld! — Um magico! digo-the eu, um ma- gico, gritou Wenzel em voz alta, Veja, que pedra! Ela contém manhis verdes e noites sangrentas... Esse 6 0 destino, o des tino do nobre czar Alexandre! Assim dizendo, o velho Wenzel voltou-se para a parede, apoiou-se nos cotovelos... e comecou asolugar”, Para esclarecer o significado dessa importante narrativa, nao ha melhor comentario que o trecho seguinte de Valéry, escrito num contexto completamente diferente. “A observacio do artista pode atingir uma profundidade quase mistica. Os objetos iluminados perdem os seus nomes: sombras e clari- dades formam sistemas ¢ problemas particulares que nao de- pendem de nenhuma ciéncia, que n&o aludem a nenhuma pratica, mas que recebem toda sua existéncia e todo o seu valor de certas afinidades singulares entre a alma, o olho e a mao de uma pessoa nascida para surpreender tais afinidades em si mesmo, e para as produzir. A alma, 0 olho ¢ @ mao esto assim inscritos no mesmo campo, Interagindo, eles definem uma pratica. Essa pratica deixou de nos ser familiar. O papel da mao no trabalho pro- dutivo tornou-se mais modesto, e o lugar que ela ocupava durante a narraco est agora vazio. (Pois a narrag&o, em seu aspecto sensivel, ndo é de modo algum o produto exclusive da MAGIA E TECNICA, ARTE E POLITICA ma voz. Na verdadeira narragio, a mio intervém decisivamente, com seus gestos, aprendidos na experiéncia do trabalho, que sustentam de cem maneiras 0 fluxo do que é dito.) A antiga coordenagao da alma, do olhar e da mao, que transparece nas palavras de Valéry, é tipica do artesdo, e é ela que encon- tramos sempre, onde quer que a arte de narrar seja praticada. Podemos ir mais longe e perguntar se a relagdo entre o nar- rador e sua matéria — a'vida humana — nao seria ela propria uma relagio artesanal. Nao seria sua tarefa trabalhar a ma- téria-prima da experiéncia — a sua e a dos outros — transfor- mando-a num produto sélido, util e Gnico? Talvez se tenha uma nog&o mais clara desse processo através do proyérbio, concebido como uma espécie de ideograma de uma narrativa. Podemos dizer que os provérbios sao ruinas de antigas narra- tivas, nas quais a moral da hist6ria abraca um acontecimento, como a hera abraca um muro. ‘Assim definido, o narrador figura entre os mestres e os sabios. Ele sabe dar conselhos: nao para alguns casos, como 0 provérbio, mas para muitos casos, como 0 sibio. Pois pode recorrer ao acervo de toda uma vida (uma vida que nfo inclui apenas a propria experéncia, mas em grande parte a expe- riéncia alheia. O narrador assimila a sua substancia mais in- tima aquilo que sabe por ouvir dizer). Seu dom é poder contar sua vida; sua dignidade 6 conté-la inteira. O narrador é 0 hhomem que poderia deixar a luz tnue de sua narraciio con- sumir completamente a mecha de sua vida. Dai a atmosfera incomparavel que circunda o narrador, em Leskov como em Hauff, em Poe como em Stenvenson. O narrador € a figura na qual o justo se encontraconsigo mesmo. 1936

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