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A imaginação esquerdista
Olavo de Carvalho
(J. A. C. Müller)
O crítico português Fernando Cristóvão é autor do melhor estudo que se escreveu sobre a arte
narrativa de Graciliano Ramos. Ele agora nos dá, com “O Romance Político Brasileiro
Contemporâneo” (Coimbra, Almedina, 2003), uma chave indispensável para elucidar o fenônemo
do unanimismo socialista, que se apossou deste país justamente quando a falácia do socialismo já
tinha se tornado coisa evidente para toda a humanidade alfabetizada.
Esse fenômeno revela uma tal alienação, um tal descompasso entre a consciência nacional e a
realidade, que não é de estranhar venha antes do exterior que daqui mesmo a ajuda para
compreendê-lo.
“A Hora dos Ruminantes”, de José J. Veiga, expôs em 1964 a visão medonha de uma sociedade
integralmente subjugada, um totalitarismo maquinal que, àquela altura, se parecia menos com o
autoritarismo ralo do marechal Castelo Branco do que com o Estado cubano, que a própria KGB
considerava o mais perfeito engenho de controle político jamais concebido, e no qual, com auto-
ironia involuntária, iam buscar abrigo e ajuda os descontentes com o novo regime. Poderosa
alegoria do totalitarismo em geral, “A Hora dos Ruminantes” pouco refletia da realidade brasileira,
mas tudo da imaginação esquerdista.
Em “Zero” de Inácio de Loyola Brandão (1976), a anomia infectava a ordem mesma da narrativa,
requentando o experimentalismo vanguardista dos anos 20 para depreciar como reacionarismo
opressivo a idéia de uma realidade inteligível, à qual o autor opunha o lema de “escrever com o
baixo-ventre” — um baile funk literário que antecipava, aliás mui inteligivelmente, a funkização
geral da sociedade.
Autopiedade grupal confundida com tragédia nacional também não falta em “O Amor de Pedro por
João” de Tabajara Ruas, no qual guerrilheiros exilados, escondidos numa embaixada em Santiago,
acompanham pelo rádio o bombardeio do Palácio de La Moneda — o fim de sua última esperança
de cubanização do continente.
Ao fracasso prático veio acrescentar-se a lenta e irreversível corrosão dos ideais. Nos anos 80, já
ninguém podia acreditar que algum regime socialista no mundo fosse, substancialmente, mais
humano que a nossa vacilante ditadura. Nem poderia pensar seriamente que a celebração da
anarquia viesse a ter outro resultado senão a entrega do país à bandidagem — um resultado que, no
fundo todos desejavam, pois coincidia com as especulações de Herbert Marcuse sobre o potencial
revolucionário da marginalidade e do crime. Mas, num processo neurótico bem conhecido, quanto
mais funda a obstinação no erro tanto mais histrionicamente enfáticos os pretextos verbais em que
sua mentira originária se camufla, até à total substituição do senso da realidade por uma retórica de
comício.
A vitória completa da estereotipagem vem com A Região Submersa, do mesmo Tabajara Ruas, no
qual o general-presidente Humberto I (quanta sutileza!), morto em acidente de aviação, se revela
por fim um robô comandado à distância pelos americanos. Falar em “literatura”, aí, já seria
hiperbólico. O Brasil estava maduro para aplaudir a incultura como uma forma superior de
sabedoria, ungida pelos profetas, consagrada pelas urnas e ornamentada de diplomas “honoris
causa”.
Não é preciso dizer que processo análogo se observou no teatro, no cinema e na poesia.
Hoje o que resta da “cultura brasileira” é assunto de marqueteiros e cabos eleitorais. Os próprios
intelectuais esquerdistas sentem-se talvez um pouco mal nesse ambiente, mas não reconhecem nele
a criação sua que ele, indiscutivelmente, é. E por que haveriam de condená-lo, se ele foi a condição
prévia para sua ascensão ao poder e a revanche — enfim! — sobre tantas humilhações?
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