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04/10/2021 20:27 A imaginação esquerdista

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A imaginação esquerdista
Olavo de Carvalho

O Globo, 05 de julho de 2003

“Neurose é uma mentira esquecida na qual você ainda acredita.”

(J. A. C. Müller)

O crítico português Fernando Cristóvão é autor do melhor estudo que se escreveu sobre a arte
narrativa de Graciliano Ramos. Ele agora nos dá, com “O Romance Político Brasileiro
Contemporâneo” (Coimbra, Almedina, 2003), uma chave indispensável para elucidar o fenônemo
do unanimismo socialista, que se apossou deste país justamente quando a falácia do socialismo já
tinha se tornado coisa evidente para toda a humanidade alfabetizada.

Esse fenômeno revela uma tal alienação, um tal descompasso entre a consciência nacional e a
realidade, que não é de estranhar venha antes do exterior que daqui mesmo a ajuda para
compreendê-lo.

O que concluo um tanto livremente do estudo de Cristóvão é que, em proporções alarmantes, o


romance brasileiro desde 1964 deixou de ser expressão da vida nacional para reduzir-se a depósito
das lamúrias de um grupo político que, frustrado nas suas ambições de poder, se fechou num
solipsismo carregado de rancor e autopiedade, passando a enxergar o drama de um país na escala
miúda de seus padecimentos gremiais.

“A Hora dos Ruminantes”, de José J. Veiga, expôs em 1964 a visão medonha de uma sociedade
integralmente subjugada, um totalitarismo maquinal que, àquela altura, se parecia menos com o
autoritarismo ralo do marechal Castelo Branco do que com o Estado cubano, que a própria KGB
considerava o mais perfeito engenho de controle político jamais concebido, e no qual, com auto-
ironia involuntária, iam buscar abrigo e ajuda os descontentes com o novo regime. Poderosa
alegoria do totalitarismo em geral, “A Hora dos Ruminantes” pouco refletia da realidade brasileira,
mas tudo da imaginação esquerdista.

Com “Quarup” de Antônio Callado, de 1967, o romance tornava-se instrumento de intervenção no


debate interno da esquerda em favor da luta armada. Mas a luta armada, como só seus entusiastas
não previram, resultou no endurecimento da repressão e no descrédito da esquerda, em humilhante
contraste com os sucessos econômicos do regime, cuja popularidade encerrava os intelectuais
esquerdistas num isolamento ainda mais propício às alucinações.

Alucinatório já é o ambiente de “A Festa” de Ivan Ângelo, no qual o ressentimento político dos


vencidos desanda em anarquia “carnavalista”, que teorias em moda vendiam como instrumento de
“libertação”, mas que só serviu para fomentar a anomia geral, culminando no advento do império
do narcotráfico que, este sim, oprime toda a sociedade e não apenas um grupo.

Em “Zero” de Inácio de Loyola Brandão (1976), a anomia infectava a ordem mesma da narrativa,
requentando o experimentalismo vanguardista dos anos 20 para depreciar como reacionarismo
opressivo a idéia de uma realidade inteligível, à qual o autor opunha o lema de “escrever com o
baixo-ventre” — um baile funk literário que antecipava, aliás mui inteligivelmente, a funkização
geral da sociedade.

Se a intelectualidade esquerdista fosse capaz de medir as conseqüências de suas palavras, seu


arrependimento não teria fim. Mas ela é como um ladrão que não sente vergonha de roubar, apenas
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de deixar-se prender. A mentira básica da sua visão egocêntrica da sociedade brasileira jamais é
posta em questão. Tudo o que se discute é o fracasso prático, a dificuldade de chegar ao poder. No
fundo, o único pecado, segundo essa visão do mundo, é não ter poder.
Em “Bar Don Juan”, de 1971, Antônio Callado converte-se de apologista da guerrilha em
carpideira do seu fracasso. Mas a autocrítica não vai ao fundo do problema: esgota-se em
lamentações de erros estratégicos e táticos.

Autopiedade grupal confundida com tragédia nacional também não falta em “O Amor de Pedro por
João” de Tabajara Ruas, no qual guerrilheiros exilados, escondidos numa embaixada em Santiago,
acompanham pelo rádio o bombardeio do Palácio de La Moneda — o fim de sua última esperança
de cubanização do continente.

Ao fracasso prático veio acrescentar-se a lenta e irreversível corrosão dos ideais. Nos anos 80, já
ninguém podia acreditar que algum regime socialista no mundo fosse, substancialmente, mais
humano que a nossa vacilante ditadura. Nem poderia pensar seriamente que a celebração da
anarquia viesse a ter outro resultado senão a entrega do país à bandidagem — um resultado que, no
fundo todos desejavam, pois coincidia com as especulações de Herbert Marcuse sobre o potencial
revolucionário da marginalidade e do crime. Mas, num processo neurótico bem conhecido, quanto
mais funda a obstinação no erro tanto mais histrionicamente enfáticos os pretextos verbais em que
sua mentira originária se camufla, até à total substituição do senso da realidade por uma retórica de
comício.

A vitória completa da estereotipagem vem com A Região Submersa, do mesmo Tabajara Ruas, no
qual o general-presidente Humberto I (quanta sutileza!), morto em acidente de aviação, se revela
por fim um robô comandado à distância pelos americanos. Falar em “literatura”, aí, já seria
hiperbólico. O Brasil estava maduro para aplaudir a incultura como uma forma superior de
sabedoria, ungida pelos profetas, consagrada pelas urnas e ornamentada de diplomas “honoris
causa”.

Não é preciso dizer que processo análogo se observou no teatro, no cinema e na poesia.

A redução narcisística da visão da sociedade brasileira às discussões internas de um grupo, o apego


da intelectualidade esquerdista aos seus mitos autobeatificantes, a recusa de um exame sério das
conseqüências sociais de suas próprias ações, levaram à autodestruição da inteligência, sacrificada
no altar de ambições políticas escoradas numa autoridade moral tanto mais declinante quanto mais
pretensiosa.

Hoje o que resta da “cultura brasileira” é assunto de marqueteiros e cabos eleitorais. Os próprios
intelectuais esquerdistas sentem-se talvez um pouco mal nesse ambiente, mas não reconhecem nele
a criação sua que ele, indiscutivelmente, é. E por que haveriam de condená-lo, se ele foi a condição
prévia para sua ascensão ao poder e a revanche — enfim! — sobre tantas humilhações?

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