“Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de sonhos intranquilos, encontrou-
se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso”. E após uma descrição anatômica de costas encouraçadas, um ventre recortado por nervuras arqueadas, e numerosas patinhas finas – em meio à qual o personagem se pergunta “O que aconteceu comigo?” – determina o narrador: “Não era um sonho”. Ao nos depararmos com a clássica abertura de A metamorfose, seja pela riqueza de detalhes com que a imagem é apresentada ou pelo choque compartilhado entre leitor e personagem de ver alguém acordar subitamente transformado num inseto, a sensação é a de estarmos vendo a cena se desenrolar diante de nossos olhos como num filme, de modo que experimentamos o enredo no presente, mesmo narrado no passado. Em A lógica da criação literária, Kate Hamburger afirma que numa narrativa épica, o uso do pretérito não tem uma função temporal gramatical e que durante a leitura, o tempo verbal se dissolve, de modo que os acontecimentos ocorridos na vida presente dos personagens podem ser contados no passado sem afetar a experiência do leitor. Ao nos depararmos com o pobre Gregor Samsa transformado num inseto monstruoso, pouco importa que os verbos estejam no passado (“acordou de sonhos intranquilos”, “encontrou-se em sua cama”, “não era um sonho”), pois para o leitor, a cena está acontecendo agora. Fazendo um teste rápido, vemos que substituindo o pretérito pelo presente, de fato não há alteração de sentido: “Quando certa manhã Gregor Samsa acorda de sonhos intranquilos, encontra-se em sua casa metamorfoseado num inseto monstruoso [...] ‘O que aconteceu comigo?’, pensa. [...] Não é um sonho”. Fazendo o caminho contrário, Hamburger afirma que podemos substituir, em qualquer contexto ficcional, o presente pelo pretérito, sem notar modificação alguma na experiência de leitura; e determina que, deste modo, o uso do presente não se justifica – ao que ela recomenda o pretérito como o tempo verbal mais adequado para o gênero épico. Saltando do clássico para o contemporâneo, vejamos agora a abertura de A nota amarela, de Gustavo Melo Czekster, e façamos o teste comparando (a) o trecho original do romance, com os verbos no presente, e (b) o mesmo trecho deslocado para o pretérito. (a) Jacqueline está fazendo de novo: prometeu para a mãe que ia parar [...] É um som desagradável, e, para evitá-lo, ela tenta ao máximo não irritar a mãe, mas estalar os dedos já se tornou um hábito. [...] De qualquer forma, precisa parar de estalar os dedos, não porque isso pode lhe machucar, mas porque os sons provenientes dos seus ossos não são nada elegantes. (p. 19) (b) Jacqueline estava fazendo de novo: prometera para a mãe que ia parar [...] Era um som desagradável, e, para evitá-lo, ela tentava ao máximo não irritar a mãe, mas estalar os dedos já se tornara um hábito. [...] De qualquer forma, precisava parar de estalar os dedos, não porque isso poderia lhe machucar, mas porque os sons provenientes dos seus ossos não eram nada elegantes.
Numa análise rápida, parece que, de fato, não há alterações significativas na
experiência de leitura, mas então como explicar por que tantos autores se veem atraídos – frequentemente de forma inconsciente – pelo uso do presente em suas narrativas? A questão tem potencial suficiente para produzir um longo estudo, de modo que este breve ensaio não passa de um esboço – feito muito mais de impressões do que de certezas – para apresentar algumas justificativas possíveis e, ousando contrariar as afirmações de Hamburger, defender o uso do presente enquanto um recurso narrativo coerente com os dias atuais. Nossa primeira hipótese é a de que o uso do presente nas narrativas de ficção serve como um artifício capaz de acentuar o caráter dramático do que está sendo narrado, especialmente em se tratando de construção de cenas. Visto que num texto dramático as ações ocorrem ao mesmo tempo em que são representadas, parece razoável afirmar que o gênero dramático é, por natureza, um gênero do presente; e o que propomos aqui é que ao utilizar este tempo verbal em uma narrativa, o autor espera – conscientemente ou não – tornar mais vívido o que está contando, como se neste momento estivesse fazendo um convite ao leitor para se sentar numa sala de teatro e assistir à história mais de perto. Dizer que “Jacqueline está estalando os dedos” ou que “Jacqueline estava estalando os dedos” pode, sim, nos passar a mesma informação a nível de conteúdo semântico, mas parece- nos que ao optar pela primeira, o autor reitera, pelo uso da forma gramatical, a presença de Jacqueline, “colando-nos” a ela e acentuando a imprevisibilidade dos acontecimentos futuros – o que acaba por afetar o ritmo da leitura e, arriscamos dizer, até mesmo o grau de proximidade que sentimos por ela. Em outras palavras, não nos parece que a substituição do presente pelo passado resulte num texto capaz de provocar a mesma experiência de leitura; o sentido pode ser o mesmo, mas o efeito, não. Basta observar como manejam a linguagem os contadores de “causos” da tradição popular para se ter uma ideia mais clara do ponto de vista que buscamos defender aqui. Qualquer bom contador de “causos” sabe intuitivamente qual é a hora exata de fazer ajustes no tempo verbal para alcançar um efeito mais dramático. É dizer que “Pedro saiu de casa enfurecido, praguejando contra Deus e o mundo, subiu a rua a passos largos, batendo os pés, aproximou-se do bar onde tinham lhe dito que seu inimigo o esperava e então... quem ele encontra?”. Tornando o verbo presente, quem conta a história sabe que a mera quebra, por si só, já causa um efeito não desprezível de acentuação do suspense e de maior vivacidade à cena. Some-se a isso o fato de que as fronteiras entre os gêneros literários têm se tornado a cada dia mais difusas e que as narrativas literárias têm se relacionado a cada vez mais com outras formas de mídia visuais derivadas do drama (como a televisão, o cinema, as histórias em quadrinhos etc.), nas quais o tempo da narrativa é o tempo do agora, e parece-nos justo afirmar que o uso do presente encontra razões suficientes para assegurar sua legitimidade. Dando continuidade à discussão, propomos uma segunda hipótese para validar a pertinência do uso deste tempo verbal, pensando agora nas narrativas contadas em primeira pessoa: neste caso, o uso do presente parece ter um efeito bastante particular, que é o de acentuar as confusões e lacunas de percepção do eu-personagem em relação ao que lhe ocorre. Numa narrativa contada em primeira pessoa no pretérito, o tempo verbal nos remete à rememoração e, portanto, a um processo de raciocínio lógico que busca resgatar experiências e organizá-las de forma narrável (mesmo quando o personagem assume seus lapsos, omissões, equívocos ou dúvidas). Em outras palavras: o personagem teve algum tempo para pensar no que lhe aconteceu – o que não ocorre quando a história é contada no presente. Neste caso, sem o distanciamento e a consequente aquisição de uma nova perspectiva sobre o ocorrido, as palavras do personagem sobre suas experiências se tornam ainda mais contestáveis, afinal há sempre algo que nos escapa no momento em que vivenciamos um acontecimento. Além disso, há nessa forma de registro (primeira pessoa no presente) uma espécie de ansiedade que nos parece afetar consideravelmente o ritmo de leitura e o modo como nós, leitores, nos relacionamos com os personagens. Ao contar não o que lhe aconteceu, mas o que está lhe acontecendo, o personagem parece nos revelar um anseio quase obsessivo por registrar suas experiências da forma como as vivencia naquele instante, assumindo a sua não-organização – no sentido de algo como uma pré-organização. Deste modo, se o efeito pretendido pelo autor é o de uma desorientação, uma agitação, ou a apresentação de um enredo assumidamente lacunar e inconstante, o uso do presente pode contribuir para potencializá-lo. Por fim, extrapolando a discussão para um campo de análise um pouco mais amplo, propomos que o uso do presente nas narrativas tem encontrado muitos adeptos na contemporaneidade em função de um reflexo dos nossos tempos. Na era das redes sociais, em que é preciso contar histórias em quinze segundos – que dentro de vinte e quatro horas terão sido apagadas como se nunca tivessem existido – o presente parece imperar sobre os demais marcos temporais: o passado é obsoleto e o futuro não existe. Tudo o que não possui a atualidade do instante se torna enfadonho, e em meio à essa cultura da urgência e do agora, a literatura se vê afetada não apenas no que diz respeito ao conteúdo das narrativas, mas também no que tange à própria lógica de uso da linguagem. Mas esse é um assunto que daria material para um novo ensaio, de modo que, por hora, encerraremos nosso estudo, assumindo que ainda há muito a ser investigado em relação ao tema e que as hipóteses aqui apresentadas partem muito mais de sensações causadas pela leitura e a escrita de textos nos quais a narrativa se desenrola no presente, do que de uma pesquisa apurada, com uma metodologia coerente e referenciais teóricos sólidos. Acreditamos, sim, que o uso do presente nas narrativas causa efeitos diferentes daqueles provocados pelo pretérito, mas como explicar o fenômeno (caso sua existência seja aceita, é claro), isso é o que ainda buscamos; e enquanto não tivermos encontrado respostas possíveis, resta-nos justificar a distinção não pela lógica, mas pelos sentidos, afirmando simplesmente que durante a leitura, a sensação é outra. E porque a literatura é capaz de dizer, por si só, mais do que a teoria literária pretende dizer a seu respeito, finalizamos este ensaio com mais um trecho de A nota amarela, deixando ao leitor a proposta de formular suas próprias impressões a partir do seguinte questionamento: será que a experiência de leitura de um texto como este seria a mesma se a narrativa fosse contada no pretérito?
Esforço-me para manter a concentração nas notas do Concerto, entregando-me
com intensidade a cada mínimo movimento, como se eles pudessem reconstituir a minha calma de espírito, agora em frangalhos. A nota amarela insiste de maneira enérgica, e dessa vez não existem mais seduções e promessas, só a força bruta tentando se enfiar entre meus dedos para esboçar o som maldito, mas eu resisto, apesar de sentir a boca seca – por favor, não posso vomitar agora, dai- me forças – e dor no pescoço. [...] A nota amarela ainda está à espreita, aguardando algum momento de fraqueza, e resisto à tentação de acariciar os dedos que sabem exatamente qual o caminho que devem realizar para fazer surgir a nota da criação do universo, mas eu não posso, pois chegar perto da Criação de tudo é descobrir que o Universo nasceu de um urro descomunal, de uma dor infinda que se repete e propaga dentro de cada mínima criatura (p. 103- 104).