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PLANO DE AULA

I – IDENTIFICAÇÃO

II – OBJETIVOS
 Geral:
 Ler e interpretar poemas e contos, bem como produzir um artigo de opinião com
base nas reflexões.
 Específicos:
 Ouvir e debater a música “Parque Industrial”, de Tom Zé;
 Ler poemas do livro “poesia marginal”, bem como os contos “a dança com o
anjo”, de Lygia Fagundes Telles, e “aqueles dois”, de Caio Fernando Abreu;
 Analisar as temáticas dos poemas e dos contos;
 Investigar o gênero poema e conto;
 Debater acerca do pós-modernismo e questões como Feminismo e Queer.
 Discutir sobre contexto histórico contemporâneo e o pós-modernismo;
 Conversar sobre a distinção poema/poesia;
 Produzir um artigo de opinião.

III – CONTEÚDO

 Gênero textual – Poema, conto e artigo de opinião;


 Intertextualidade;
 Feminismo;
 Questões de Gênero e sexualidade;
 Pós-modernismo;

IV – HABILIDADES

 Escuta;
 Leitura;
 Oralidade;
 Escrita.

V – CRONOLOGIA

 Quatro semanas (12 aulas)

VI – PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

1. A primeira aula será destinada a uma dinâmica de apresentação e conversação


sobre como se realizarão as aulas. Após, será feita a motivação com a música
“Parque Industrial”, de Tom Zé. Discutir a letra:
 Qual a temática central da música?
 Questões da melodia, junção entre instrumentos eruditos e sons do cotidiano.
 A música traz alguma crítica, a quê e por quê?
Posteriormente, na segunda aula, entrar-se-á na introdução e por meio das
discussões feitas sobre a música, começará a se fazer relação entre essas questões do
sentimento de desconforto, de fragmentação da identidade, de incertezas e a
literatura contemporânea, evocando o conhecimento que eles já têm do modernismo
brasileiro. Para então realizar a leitura dos poemas da poesia marginal (ANEXO 2) e
discutir as temáticas, bem como as questões formais (métrica, rima, linguagem
coloquial).

2. A leitura do conto “a dança com o anjo” (ANEXO 5) será realizada na terceira


aula, bem como a discussão sobre o conto, tratando de pontos como feminismo,
intertextualidade, realidade versus fantasia, fluxo de consciência e a relação
disso com o pós-modernismo/literatura contemporânea.

3. A quarta e a quinta aula serão destinadas para a leitura do conto “aqueles dois”
(ANEXO 4). E discutir a partir do conto questões como: homofobia,
homossexualidade, teoria queer, narrativa de minorias e a relação disso com o
pós-modernismo/literatura contemporânea, bem como sua relação com o conto
de Lygia Fagundes Telles e Poesia marginal.

4. Posteriormente, será explicado o gênero artigo de opinião e sua estrutura,


demonstrando com exemplo do artigo em anexo (ANEXO 6). Será, também,
realizada a associação entre este gênero e o tipo de texto solicitado pelo ENEM.
Ler e discutir o texto “alunos travestis conquistam o direito de usar nome social”
(ANEXO 3) para contribuir com a escrita do artigo.

5. As próximas duas aulas serão destinadas para escrever o artigo com base nas
discussões de sala de aula e nos textos lidos, escrever um artigo de opinião sobre
o tema: “Homo/lesbo/transfobia e os direitos LGBT no Brasil, como superar o
preconceito?”

6. Nesta aula, será trabalhado as questões gramaticais que os alunos mais


demonstraram problema. Ou seja, a aula será organizada com mais exatidão
após o diagnóstico.
7. Devolução da primeira versão do artigo e disponibilização das duas aulas para a
reescrita do artigo.

8. Última aula, entrega da correção da versão final do artigo; dinâmica de


encerramento e feedback.

VII – AVALIAÇÃO
O processo avaliativo se dará de modo processual durante a leitura e as
discussões, bem como por meio dos textos por eles produzidos.
VIII – REFERÊNCIAS

ABREU, C. F. Aqueles dois. In: _______. Morangos Mofados. São Paulo: Brasiliense,
1982.

CESAR, Ana Cristina (Et al.). Poesia marginal. São Paulo: Ática, 2006. 104 p.

COSSON, Rildo. Letramento literário: teoria e prática. São Paulo: Contexto, 2006.


139 p.

EAGLETON, Terry. Depois da teoria: Um olhar sobre os estudos culturais e o pós-


modernismo. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2014.

EAGLETON, Terry. Ilusões do pós-modernismo. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 10.ed. Rio de Janeiro:


DP&A, 2005.

HUTCHEON, Linda. Poética do pós-modernismo: história, teoria, ficção. Rio de


Janeiro: Imago, 1991.

JAMESON, Fredric. Pós-modernismo e a sociedade de consumo. In: ______. A virada


cultural: reflexões sobre o pós-modernismo. Rio de Janeiro: Civilização brasileira,
2006. p. 15 – 44.

LOPES, Denilson. O homem que amava rapazes e outros ensaios. Rio de Janeiro:
Aeroplano, 2002. 264p.

LYOTARD, Jean François. O pós-moderno. Rio de Janeiro: José Olympio, 1986.

PAZ, Octavio. O arco e a lira. São Paulo: Cosac Naify, 2012. 352 p.

TELLES, Lygia Fagundes. A dança com o anjo. In: _______. Invenção e memória.
São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p. 25-30.

ZAPPONE, Mirian Hisae Yaegashi; BELINATO, Wagner Vonder. A INFÂMIA


D’AQUELES DOIS: MÍMESE CINEMATOGRÁFICA NA NARRATIVA DE CAIO
FERNANDO ABREU. Revista Educação e Linguagens, Campo Mourão, v. 4, n. 7,
p.115-126, jul./dez. 2015. Semestral. Disponível em:
<http://www.fecilcam.br/revista/index.php/educacaoelinguagens/article/viewFile/
844/495>. Acesso em: 18 set. 2016.

IX – ANEXOS

Anexo 1: Música para motivação

Parque Industrial
Por Tom Zé
Retocai o céu de anil
Bandeirolas no cordão
Grande festa em toda a nação.
Despertai com orações
O avanço industrial
Vem trazer nossa redenção.

Tem garotas-propaganda
Aeromoças e ternura no cartaz,
Basta olhar na parede,
Minha alegria
Num instante se refaz

Pois temos o sorriso engarrafado


Já vem pronto e tabelado
É somente requentar
E usar,
É somente requentar
E usar,
Porque é made, made, made, made in Brazil.
Porque é made, made, made, made in Brazil.

Retocai o céu de anil


Bandeirolas no cordão
Grande festa em toda a nação.
Despertai com orações
O avanço industrial
Vem trazer nossa redenção.

A revista moralista
Traz uma lista dos pecados da vedete
E tem jornal popular que
Nunca se espreme
Porque pode derramar.

É um banco de sangue encadernado


Já vem pronto e tabelado,
É somente folhear e usar,
É somente folhear e usar.

Anexo 2: Poesia Marginal

TENHO UMA FOLHA BRANCA


Tenho uma folha branca
e limpa à minha espera:
mudo convite

tenho uma cama branca


e limpa à minha espera:
mudo convite:

tenho uma vida branca


e limpa à minha espera:
(Ana Cristina Cesar, p. 33)

Happy end
O meu amor e eu
nascemos um para o outro

agora só falta quem nos apresente


(Cacaso, p. 16)

Álgebra elementar

Perder um amor é muito duro, perder dois é


bem menos
(Cacaso, p. 26)

Meu filho
Vamos viver a era do centauro
metade cavalo
metade também
(Francisco Alvim, p. 51)
Ortodoxia
Chego a entender
o Stálin
para fazer a reforma agrária
teve que matar
10 milhões de camponeses
Tratamento, que tratamento?
Desculpe o racismo mas
terapia de crioulo é trabalho
(Francisco Alvim, p. 53)

ACORDEI BEMOL
tudo estava sustenido

sol fazia
só não fazia sentido
(Paulo Leminski, p. 73)
Ele

Inteligente?
Não sei. Depende
do ponto de vista.
Há, como se sabe,
três tipos de inteligência:
a humana, a animal e a militar
(nessa ordem).
A dele é do último tipo.
Quando rubrica um papel põe dia e hora e os papéis
caminham em ordem unida.
(Francisco Alvim, p. 54)

Anexo 3: Notícia

Alunos travestis podem usar nome social nas escolas de São Paulo
Alunos travestis conquistam direito de usar nome social

Alunos travestis e transexuais das redes de ensino pública e particular do Estado de São
Paulo passaram a ter o direito de serem chamados pelo nome social nas escolas. A ação
inclusiva pretende diminuir preconceitos e discriminações e evitar que este público
abandone os estudos. A medida, aprovada por unanimidade pelo CEE (Conselho
Estadual da Educação) nesta semana, será publicada no Diário Oficial nos próximos
dias.

O diretor do núcleo de inclusão da Secretaria da Educação do Estado, Sérgio Cardoso,


explica que, apesar de professores e funcionários já tratarem, informalmente, os
estudantes travestis e transexuais pelo nome que escolheram, este direito não era
assegurado. “É uma reivindicação dos movimentos LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais,
Travestis, Transexuais e Transgêneros) que passa a ser atendida em forma de
reconhecimento e respeito”, diz.

Com a mudança, Cardoso espera que o grupo formado por estudantes nestas condições
permaneça no processo educacional com mais qualidade. “Não temos dados que
indiquem a quantidade de alunos travestis e transexuais, mas sabemos que, infelizmente,
trata-se de público que em geral abandona a escola no ciclo normal de ensino e só
retoma os estudos na EJA (Educação de Jovens e Adultos) por não se sentir incluído”,
destaca.

Cardoso ressalta que o nome social não é o que popularmente as pessoas consideram
‘nome de guerra’ ou ‘vulgo’, e sim o escolhido pelos alunos que têm desejo de viver e
ser aceito como sendo do sexo oposto para ser substituir o de batismo. Por questões
legais, no entanto, o nome civil, aquele que está no RG do estudante, continuará a ser
utilizado em documentos externos, como transferência e histórico escolar.

O CEE é um órgão consultivo que estabelece regras para todas as escolas das redes
estadual, municipal e particular, desde a Educação Infantil, até os ensinos Médio e
Técnico. Com isso, alunos que desejarem ter o nome social incluído nas listas de
chamada e diários de classe terão de solicitar por escrito na secretaria escolar. Já os que
têm menos de 18 anos precisarão enviar requerimento preenchido pelos pais.

Medida é comemorada por LGBTs

A redutora de danos Thayla, 32 anos, comemora o fim do constrangimento que


estudantes com identidade de gênero diferentes do convencional passam ao ser
chamados pelo nome civil. Travesti há 12 anos, a moradora de Diadema considera a
mudança uma forma de respeito. “É muito ruim ser uma figura feminina e ser chamada
pelo nome de batismo (no seu caso, Roberto Deodoro)”, destaca.

Para Thayla, a ação não significa o fim do preconceito. “Ainda enfrentamos muita
discriminação e o que mais me deixa chateada é ser alvo de piadinhas. Temos
dificuldade para encontrar emprego e ainda observamos que tem gente que não senta do
nosso lado no ônibus”, revela.

O presidente da ONG ABCDS (Ação Brotar Pela Cidadania e Diversidade Sexual),


Marcelo Gil, considera que o poder público vem evoluindo no que diz respeito a
garantia de direitos do público LGBT. “Já temos a garantia de fazer readequação sexual
no SUS (Sistema Único de Saúde) e, agora, conquistamos direitos também nas salas de
aula. Isso certamente traz vários benefícios ao cidadão”, observa.

Fonte: <http://www.dgabc.com.br/Noticia/526955/alunos-travestis-conquistam-direito-
de-usar-nome-social?referencia=ultimas-editoria>

Anexo 4: Conto Caio Fernando Abreu

Aqueles dois
(História de aparente mediocridade e repressão)
Caio Fernando Abreu

Para Rofran Fernandes:


"I announce adhesiveness,
I say it shall be limitless,
unloosen il.
I say you shall yet find the
friend youwere looking for."
(Walt Whitman: So Long!)
A verdade é que não havia mais ninguém em volta. Meses depois, não no começo, um
deles diria que a repartição era como "um deserto de almas". O outro concordou
sorrindo, orgulhoso, sabendo-se excluído. E longamente, entre cervejas, trocaram então
ácidos comentários sobre as mulheres mal-amadas e vorazes, os papos de futebol, amigo
secreto, lista de presente, bookmaker, bicho, endereço de cartomante, clips no relógio de
ponto, vezenquando salgadinhos no fim do expediente, champanha nacional em copo de
plástico. Num deserto de almas também desertas, uma alma especial reconhece de
imediato a outra — talvez por isso, quem sabe? Mas nenhum se perguntou.

Não chegaram a usar palavras como "especial", "diferente" ou qualquer coisa assim.
Apesar de, sem efusões, terem se reconhecido no primeiro segundo do primeiro minuto.
Acontece porém que não tinham preparo algum para dar nome às emoções, nem mesmo
para tentar entendê-las. Não que fossem muito jovens, incultos demais ou mesmo um
pouco burros. Raul tinha um ano mais que trinta; Saul, um menos. Mas as diferenças
entre eles não se limitavam a esse tempo, a essas letras. Raul vinha de um casamento
fracassado, três anos e nenhum filho. Saul, de um noivado tão interminável que
terminara um dia, e um curso frustrado de Arquitetura. Talvez por isso, desenhava. Só
rostos, com enormes olhos sem íris nem pupilas. Raul ouvia música e, às vezes, de
porre, pegava o violão e cantava, principalmente velhos boleros em espanhol. E cinema,
os dois gostavam.

Passaram no mesmo concurso para a mesma firma, mas não se encontraram durante os
testes. Foram apresentados no primeiro dia de trabalho de cada um. Disseram prazer,
Raul, prazer, Saul, depois como é mesmo o seu nome? sorrindo divertidos da
coincidência. Mas discretos, porque eram novos na firma e a gente, afinal, nunca sabe
onde está pisando. Tentaram afastar-se quase imediatamente, deliberando limitarem-se a
um cotidiano oi, tudo bem ou, no máximo, às sextas, um cordial bom fim de semana,
então. Mas desde o princípio alguma coisa — fados, astros, sinas, quem saberá?
conspirava contra (ou a favor, por que não?) aqueles dois.

Suas mesas ficavam lado a lado. Nove horas diárias, com intervalo de uma para o
almoço. E perdidos no meio daquilo que Raul (ou teria sido Saul?) chamaria, meses
depois, exatamente de "um deserto de almas", para não sentirem tanto frio, tanta sede,
ou simplesmente por serem humanos, sem querer justificá-los — ou, ao contrário,
justificando-os plena e profundamente, enfim: que mais restava àqueles dois senão,
pouco a pouco, se aproximarem, se conhecerem, se misturarem? Pois foi o que
aconteceu. Tão lentamente que mal perceberam.

II

Eram dois moços sozinhos. Raul tinha vindo do norte, Saul tinha vindo do sul. Naquela
cidade, todos vinham do norte, do sul, do centro, do leste — e com isso quero dizer que
esse detalhe não os tornaria especialmente diferentes. Mas no deserto em volta, todos os
outros tinham referenciais, uma mulher, um tio, uma mãe, um amante. Eles não tinham
ninguém naquela cidade — de certa forma, também em nenhuma outra —, a não ser a si
próprios. Diria também que não tinham nada, mas não seria inteiramente verdadeiro.

Além do violão, Raul tinha um telefone alugado, um toca-discos com rádio e um sabiá
na gaiola, chamado Carlos Gardel. Saul, uma televisão colorida com imagem fantasma,
cadernos de desenho, vidros de tinta nanquim e um livro com reproduções de Van
Gogh. Na parede do quarto de pensão, uma outra reprodução de Van Gogh: aquele
quarto com a cadeira de palhinha parecendo torta, a cama estreita, as tábuas do
assoalho, colocado na parede em frente à cama. Deitado, Saul tinha às vezes a
impressão de que o quadro era um espelho refletindo, quase fotograficamente, o próprio
quarto, ausente apenas ele mesmo. Quase sempre, era nessas ocasiões que desenhava.

Eram dois moços bonitos também, todos achavam. As mulheres da repartição, casadas,
solteiras, ficaram nervosas quando eles surgiram, tão altos e altivos, comentou, olhos
arregalados, uma das secretárias. Ao contrário dos outros homens, alguns até mais
jovens, nenhum tinha barriga ou aquela postura desalentada de quem carimba ou
datilografa papéis oito horas por dia.

Moreno de barba forte azulando o rosto, Raul era um pouco mais definido, com sua voz
de baixo profundo, tão adequada aos boleros amargos que gostava de cantar. Tinham a
mesma altura, o mesmo porte, mas Saul parecia um pouco menor, mais frágil, talvez
pelos cabelos claros, cheios de caracóis miúdos, olhos assustadiços, azul desmaiado.
Eram bonitos juntos, diziam as moças. Um doce de olhar. Sem terem exatamente
consciência disso, quando juntos os dois aprumavam ainda mais o porte e, por assim
dizer, quase cintilavam, o bonito de dentro de um estimulando o bonito de fora do outro,
e vice-versa. Como se houvesse entre aqueles dois, uma estranha e secreta harmonia.

III

Cruzavam-se, silenciosos mas cordiais, junto à garrafa térmica do cafezinho,


comentando o tempo ou a chatice do trabalho, depois voltavam às suas mesas. Muito de
vez em quando, um pedia um cigarro ao outro, e quase sempre trocavam frases como
tanta vontade de parar, mas nunca tentei, ou já tentei tanto, agora desisti. Durou tempo,
aquilo. E teria durado muito mais, porque serem assim fechados, quase remotos, era um
jeito que traziam de longe. Do norte, do sul.

Até um dia em que Saul chegou atrasado e, respondendo a um vago que que houve,
contou que tinha ficado até tarde assistindo a um velho filme na televisão. Por educação,
ou cumprindo um ritual, ou apenas para que o outro não se sentisse mal chegando quase
às onze, apressado, barba por fazer, Raul deteve os dedos sobre o teclado da máquina e
perguntou: que filme? Infâmia, Saul contou baixo, Audrey Hepburn, Shirley MacLayne,
um filme muito antigo, ninguém conhece. Raul olhou-o devagar, e mais atento, como
ninguém conhece? eu conheço e gosto muito. Abalado, convidou Saul para um café e,
no que restava daquela manhã muito fria de junho, o prédio feio mais que nunca
parecendo uma prisão ou uma clínica psiquiátrica, falaram sem parar sobre o filme.

Outros filmes viriam, nos dias seguintes, e tão naturalmente como se de alguma forma
fosse inevitável, também vieram histórias pessoais, passados, alguns sonhos, pequenas
esperança e sobretudo queixas. Daquela firma, daquela vida, daquele nó, confessaram
uma tarde cinza de sexta, apertado no fundo do peito. Durante aquele fim de semana
obscuramente desejaram, pela primeira vez, um em sua quitinete, outro na pensão, que o
sábado e o domingo caminhassem depressa para dobrar a curva da meia-noite e
novamente desaguar na manhã de segunda-feira quando, outra vez, se encontrariam
para: um café. Assim foi, e contaram um que tinha bebido além da conta, outro que
dormira quase o tempo todo. De muitas coisas falaram aqueles dois nessa manhã, menos
da falta que sequer sabiam claramente ter sentido.

Atentas, as moças em volta providenciavam esticadas aos bares depois do expediente,


gafieiras, discotecas, festinhas na casa de uma, na casa de outra. A princípio esquivos,
acabaram cedendo, mas quase sempre enfiavam-se pelos cantos e sacadas para contar
suas histórias intermináveis. Uma noite, Raul pegou o violão e cantou Tú Me
Acostumbraste. Nessa mesma festa, Saul bebeu demais e vomitou no banheiro. No
caminho até os táxis separados, Raul falou pela primeira vez no casamento desfeito.
Passo incerto, Saul contou do noivado antigo. E concordaram, bêbados, que estavam
ambos cansados de todas as mulheres do mundo, suas tramas complicadas, suas
exigências mesquinhas. Que gostavam de estar assim, agora, sós, donos de suas próprias
vidas. Embora, isso não disseram, não soubessem o que fazer com elas.

Dia seguinte, de ressaca, Saul não foi trabalhar nem telefonou. Inquieto, Raul vagou o
dia inteiro pelos corredores subitamente desertos, gelados, cantando baixinho Tú Me
Acostumbraste, entre inúmeros cafés e meio maço de cigarros a mais que o habitual.

IV

Os fins de semana tornaram-se tão longos que um dia, no meio de um papo qualquer,
Raul deu a Saul o número de seu telefone, alguma coisa que você precisar, se ficar
doente, a gente nunca sabe. Domingo depois do almoço, Saul telefonou só para saber o
que o outro estava fazendo, e visitou-o, e jantaram juntos a comidinha mineira que a
empregada deixara pronta sábado. Foi dessa vez que, ácidos e unidos, falaram no tal
deserto, nas tais almas. Há quase seis meses se conheciam. Saul deu-se bem com Carlos
Gardel, que ensaiou um canto tímido ao cair da noite. Mas quem cantou foi
Raul: Perfídia, La Barca e, a pedido de Saul, outra vez, duas vezes, Tú Me
Acostumbraste. Saul gostava principalmente daquele pedacinho assim sutilllegaste a mí
como una tentación llenando de inquietud mi corazón. Jogaram algumas partidas de
buraco e, por volta das nove, Saul se foi.

Na segunda, não trocaram uma palavra sobre o dia anterior. Mas falaram mais que
nunca, e muitas vezes foram ao café. As moças em volta espiavam, às vezes
cochichando sem que eles percebessem. Nessa semana, pela primeira vez almoçaram
juntos na pensão de Saul, que quis subir ao quarto para mostrar os desenhos, visitas
proibidas à noite, mas faltavam cinco para as duas e o relógio de ponto era implacável.
Saíam e voltavam juntos, desde então, geralmente muito alegres. Pouco tempo depois,
com pretexto de assistir a Vagas Estrelas da Ursa na televisão de Saul, Raul entrou
escondido na pensão, uma garrafa de conhaque no bolso interno do paletó. Sentados no
chão, costas apoiadas na cama estreita, quase não prestaram atenção no filme. Não
paravam de falar. Cantarolando Io Che Non Vivo, Raul viu os desenhos, olhando
longamente a reprodução de Van Gogh, depois perguntou como Saul conseguia viver
naquele quartinho tão pequeno. Parecia sinceramente preocupado. Não é triste?
perguntou. Saul sorriu forte: a gente acostuma.

Aos domingos, agora, Saul sempre telefonava. E vinha. Almoçavam ou jantavam,


bebiam, fumavam, falavam o tempo todo. Enquanto Raul cantava — vezenquando El
Día Que Me Quieras, vezenquando Noche de Ronda —, Saul fazia carinhos lentos na
cabecinha de Carlos Gardel, pousado no seu dedo indicador. Às vezes olhavam-se. E
sempre sorriam. Uma noite, porque chovia, Saul acabou dormindo no sofá. Dia
seguinte, chegaram juntos à repartição, cabelos molhados do chuveiro. As moças não
falaram com eles. Os funcionários barrigudos e desalentados trocaram alguns olhares
que os dois não saberiam compreender, se percebessem. Mas nada perceberam, nem os
olhares nem duas ou três piadas. Quando faltavam dez minutos para as seis, saíram
juntos, altos e altivos, para assistir ao último filme de Jane Fonda.

Quando começava a primavera, Saul fez aniversário. Porque achava seu amigo muito
solitário, ou por outra razão assim, Raul deu a ele a gaiola com Carlos Gardel. No
começo do verão, foi a vez de Raul fazer aniversário. E porque estava sem dinheiro,
porque seu amigo não tinha nada nas paredes da quitinete, Saul deu a ele a reprodução
de Van Gogh. Mas entre esses dois aniversários, aconteceu alguma coisa.

No norte, quando começava dezembro, a mãe de Raul morreu e ele precisou passar uma
semana fora. Desorientado, Saul vagava pelos corredores da firma esperando um
telefonema que não vinha, tentando em vão concentrar-se nos despachos, processos,
protocolos. Á noite, em seu quarto, ligava a televisão gastando tempo em novelas vadias
ou desenhando olhos cada vez mais enormes, enquanto acariciava Carlos Gardel. Bebeu
bastante, nessa semana. E teve um sonho: caminhava entre as pessoas da repartição,
todas de preto, acusadoras. À exceção de Raul, todo de branco, abrindo os braços para
ele. Abraçados fortemente, e tão próximos que um podia sentir o cheiro do outro.
Acordou pensando mas ele é que devia estar de luto.

Raul voltou sem luto. Numa sexta de tardezinha, telefonou para a repartição pedindo a
Saul que fosse vê-lo. A voz de baixo profundo parecia ainda mais baixa, mais profunda.
Saul foi. Raul tinha deixado a barba crescer. Estranhamente, ao invés de parecer mais
velho ou mais duro, tinha um rosto quase de menino. Beberam muito nessa noite. Raul
falou longamente da mãe — eu podia ter sido mais legal com ela, disse, e não cantou.
Quando Saul estava indo embora, começou a chorar. Sem saber ao certo o que fazia,
Saul estendeu a mão e, quando percebeu, seus dedos tinham tocado a barba crescida de
Raul. Sem tempo para compreenderem, abraçaram-se fortemente. E tão próximos que
um podia sentir o cheiro do outro: o de Raul, flor murcha, gaveta fechada; o de Saul,
colônia de barba, talco. Durou muito tempo. A mão de Saul tocava a barba de Raul, que
passava os dedos pelos caracóis miúdos do cabelo do outro. Não diziam nada. No
silêncio era possível ouvir uma torneira pingando longe. Tanto tempo durou que,
quando Saul levou a mão ao cinzeiro, o cigarro era apenas uma longa cinza que ele
esmagou sem compreender.

Afastaram-se, então. Raul disse qualquer coisa como eu não tenho mais ninguém no
mundo, e Saul outra coisa qualquer como você tem a mim agora, e para sempre.
Usavam palavras grandes — ninguém, mundo, sempre — e apertavam-se as duas mãos
ao mesmo tempo, olhando-se nos olhos injetados de fumo e álcool. Embora fosse sexta
e não precisassem ir à repartição na manhã seguinte, Saul despediu-se. Caminhou
durante horas pelas ruas desertas, cheias apenas de gatos e putas. Em casa; acariciou
Carlos Gardel até que os dois dormissem. Mas um pouco antes, sem saber por quê,
começou a chorar sentindo-se só e pobre e feio e infeliz e confuso e abandonado e
bêbado e triste, triste, triste. Pensou em ligar para Raul, mas não tinha fichas e era muito
tarde.
Depois, chegou o Natal, o Ano-Novo que passaram juntos, recusando convites dos
colegas de repartição. Raul deu a Saul uma reprodução do Nascimento de Vênus, que
ele colocou na parede exatamente onde estivera o quarto de Van Gogh. Saul deu a Raul
um disco chamado Os Grandes Sucessos de Dalva de Oliveira. O que mais ouviram foi
Nossas Vidas, prestando atenção no pedacinho que dizia até nossos beijos parecem
beijos de quem nunca amou.

Foi na noite de trinta e um, aberta a champanhe na quitinete de Raul, que Saul ergueu a
taça e brindou à nossa amizade que nunca nunca vai terminar. Beberam até quase cair.
Na hora de deitar, trocando a roupa no banheiro, muito bêbado, Saul falou que ia dormir
nu. Raul olhou para ele e disse você tem um corpo bonito. Você também, disse Saul, e
baixou os olhos. Deitaram ambos nus, um na cama atrás do guarda-roupa, outro no sofá.
Quase a noite inteira, um conseguia ver a brasa acesa do cigarro do outro, furando o
escuro feito um demônio de olhos incendiados. Pela manhã, Saul foi embora sem se
despedir para que Raul não percebesse suas fundas olheiras.

Quando janeiro começou, quase na época de tirarem férias — e tinham planejado,


juntos, quem sabe Parati, Ouro Preto, Porto Seguro — ficaram surpresos naquela manhã
em que o chefe de seção os chamou, perto do meio-dia. Fazia muito calor. Suarento, o
chefe foi direto ao assunto. Tinha recebido algumas cartas anônimas. Recusou-se a
mostrá-las. Pálidos, ouviram expressões como "relação anormal e ostensiva",
"desavergonhada aberração", "comportamento doentio", "psicologia deformada",
sempre assinadas por Um Atento Guardião da Moral. Saul baixou os olhos desmaiados,
mas Raul colocou-se em pé. Parecia muito alto quando, com uma das mãos apoiadas no
ombro do amigo e a outra erguendo-se atrevida no ar, conseguiu ainda dizer a palavra
nunca, antes que o chefe, entre coisas como a-reputação-de-nossa-firma, declarasse frio:
os senhores estão despedidos.

Esvaziaram lentamente cada um a sua gaveta, a sala deserta na hora do almoço, sem se
olharem nos olhos. O sol de verão escaldava o tampo de metal das mesas. Raul guardou
no grande envelope pardo um par de olhos enormes, sem íris nem pupilas, presente de
Saul, que guardou no seu grande envelope pardo, com algumas manchas de café, a letra
de Tú Me Acostumbraste, escrita à mão por Raul numa tarde qualquer de agosto.
Desceram juntos pelo elevador, em silêncio.

Mas quando saíram pela porta daquele prédio grande e antigo, parecido com uma clínica
ou uma penitenciária, vistos de cima pelos colegas todos postos na janela, a camisa
branca de um, a azul do outro, estavam ainda mais altos e mais altivos. Demoraram
alguns minutos na frente do edifício. Depois apanharam o mesmo táxi, Raul abrindo a
porta para que Saul entrasse. Ai-ai, alguém gritou da janela. Mas eles não ouviram. O
táxi já tinha dobrado a esquina.

Pelas tardes poeirentas daquele resto de janeiro, quando o sol parecia a gema de um
enorme ovo frito no azul sem nuvens no céu, ninguém mais conseguiu trabalhar em paz
na repartição. Quase todos ali dentro tinham a nítida sensação de que seriam infelizes
para sempre. E foram.

Anexo 5: Conto Lygia Fagundes Telles


A dança com o anjo
Lygia Fagundes Telles
Agora eu precisava convencer minha mãe que resistia bravamente: Mas filha, que festa
é essa?! Seus colegas são uns desmiolados, e se a coisa acabar em bebedeira, desordem?
E quem vai te levar e depois te trazer?
A Segunda Guerra Mundial estava quase no fim, o planeta enfermo sangrando e uma
frase muito na moda nestes trópicos, O preço da paz é a eterna vigilância! Ora, se a paz
(com toda a ênfase no ponto de exclamação) já estava mesmo perdida, o importante
agora era não perder a virgindade e disso cuidava a minha atenta mãe: o mito da
castidade ainda na plenitude, nem o mais leve sinal da bandeira feminista hasteada
nestas palmeiras. E o nosso sabiá não sabia da pílula, não sabia de nada. O anunciado
mercado de trabalho para O segundo sexo (que Simone de Beauvoir ainda nem tinha
inventado) estava apenas na teoria, a solução era mesmo casar. E lembro agora de uma
vizinha da minha mãe cerrando os olhos sofredores: Tenho cinco punhais cravados no
peito, as minhas cinco filhas solteiras!
Nesta altura, com a minha irmã mais velha já casada, minha mãe tinha apenas um
punhal, este aqui.
- É um jantar sério, homenagem ao nosso professor, um velhinho. Acho que ainda vai
ser o nosso paraninfo, preciso aumentar a nota nessa matéria, entendeu agora, mãe?
Ela fixou em mim o olhar dramático. Eu passava o esmalte nas unhas, Rosa Antigo, era
essa a cor.
- Mas hoje é 11 de agosto, menina, não é dia de pindura lá na Faculdade?
- Mas é a única noite que o professor tinha livre! A escolha foi dele, não foi nossa,
querida. E a boate é familiar, eu já disse, fica no Largo de Santa Cecília, ao lado da
igreja. A Cida vem me buscar, o ônibus passa lá na porta e depois a gente volta com o
irmão dela que tem carro.
Minha mãe sentou-se entrelaçou as mãos em cima da mesa. Voltou para o teto o olhar
sem sossego e então pensei na imagem da Nossa Senhora das Dores com o seu manto
roxo.
- O rádio deu há pouco notícias alarmantes. E se justo hoje tiver um ataque aéreo?
Fechei o vidrinho de esmalte e fiquei soprando as unhas e pensando que a guerra
doméstica era ainda mais difícil do que a outra. Voltei a lembrar que o Eixo estava
quase derrotado, mais um pouco e ia acabar aquela agonia, mas por que iam agora
atacar este aliado aqui no cu de judas?! Não falei no cu de judas (uma expressão do tio
Garibaldi) mas nas botas: Aqui onde Judas perdeu as botas? E vai ver, as meias... Minha
mãe deu um nó nas pontas do xale azul-noite, o inverno continuava? Continuava. Tentei
fazer graça, O Führer parece que está furioso, acho que é o fim. Ela levantou-se num
silêncio digno. Recorri ao argumento decisivo, como podia me casar sem participar
dessas festinhas?
- Está bem, filha. E que Deus te acompanhe - murmurou fazendo o gesto de fatal
resignação. Quando abriu o piano me pareceu menos tensa, ia tocar o seu Chopin.
A mesa da boate na cobertura já estava repleta quando chegamos com algum atraso, O
ônibus demorou demais! desculpou-se a Cida e ninguém ouviu a desculpa porque
fornos recebidas pelos colegas (engravatados) com uma ardente salva de palmas.
Procurei pelo professor mas a cadeira com a vistosa guirlanda de flores ainda estava
vazia. E o professor? perguntei e não tive resposta, todos falavam alto e ao mesmo
tempo enquanto o uísque e o vinho eram servidos com fartura nas bandejas.
Fiquei impressionada com o luxo das acetinadas paredes brancas e pequenos lustres
imitando castiçais com laçarotes para criar a intimidade aconchegante de uma caixa de
bombons. E a orquestra tocando os sucessos de Tommy Dorsey para os pares que
deslizavam na pista redonda, You'll never know! ... gemia o cantor negro com a boca
colada ao microfone.
Fiquei sentimental e ainda assim meio desconfiada, quem vai pagar isto? Achei o vinho
tinto muito ácido, gostava era das sangrias que o meu pai preparava, ah! era fácil:
encomendei ao garçom um filé com batatas e ainda um copo, açúcar e gelo, qual era o
apóstolo que também
gostava de sangria? Sem o gelo, lembrei e fiquei olhando para o meu colega pedindo
lagosta, ele disse lagosta? Procurei passar para a Cida as minhas apreensões mas ela
estava no extremo da mesa e não entendeu meus acenos interrogativos, bebia toda
animada e às minhas dúvidas respondeu levantando o copo, Viva!
Paciência, resolvi atirando-me ao pãozinho quente que atochei com manteiga, fazer o
quê?! Relaxar e comer e respirar o ar cálido da noite que se oferecia nas grandes janelas
abertas para o céu. Tomei com prazer a sangria e fiquei olhando em êxtase para o
enorme filé esfumaçante e com todos os acompanhamentos que o garçom deixou na
minha frente. Estava delirando ou uma segunda orquestra tocava agora aquela maravilha
que eu cantarolava no chuveiro, Blue Moon! You saw me standing alone...
Abri o nécessaire: durante o dia eu usava a espaçosa bolsa de couro cru assim a tiracolo,
no estilo dos feirantes, mas reservava para a noite a discreta minibolsa preta e sem alça
no feitio de um missal. Quando fui retocar o batom, refletida no espelho apareceu a cara
iluminada de um moço que veio por de trás e chegou com o queixo até o meu ombro,
vamos dançar?
Voltei-me. Quem era agora aquele menino de cabelos encaracolados, quase louros e
olhos tão azuis - mas não era mesmo uma beleza de colega? Que eu não conhecia. Mas
qual é a sua turma?, quis perguntar e continuei em silêncio, quando me emocionava, não
conseguia falar. Alto e esguio de terno azul-marinho e gravata vermelha, ele me pareceu
elegante mas discreto. E tímido, sim, apesar do convite repentino. Levantei-me.
- Venha com a bolsa - ele pediu com naturalidade. Obedeci sem entender, por que levar
o nécessaire? Eu dançava mal mas ele me conduzia com tanta firmeza que fiquei
flexível, leve - mas quem era ele? Afastei-me um pouco para vê-lo e achei-o parecido
com os heróis dos livros da minha adolescência, as pestanas longas, a fronte pura. E
aquelas mãos de estátua. Mas de que turma seria? fiquei me perguntando e como se
adivinhasse o meu pensamento, ele justificou-se: frequentava pouco a Faculdade, não
tinha amigos, era um tipo solitário. Trabalhava com o pai num escritório e sua paixão
verdadeira era a música, tocava violino.
- Violino? - estranhei enquanto me deixava levar, ah! Eu ficaria dançando assim até o
fim dos tempos, Não pare nunca! tive vontade de pedir quando passei perto da
orquestra.
E de repente tudo foi se precipitando com tamanha rapidez que fiquei meio atordoada:
vi a Cida que vinha conversando com um colega, estava rindo mas o olhar míope me
pareceu aflito, Cida! eu chamei. E ela continuou andando e não me viu nem me escutou.
Mas o que está acontecendo? perguntei quando descobri que agora seguíamos dançando
fora da pista, na direção dos elevadores.
- Isto é um pindura, minha querida, e vai acabar muito mal, ele segredou em meio a um
rodopio. Suavemente foi me impelindo para o elevador que se abriu. – Entre depressa –
ordenou num tom despreocupado. – Tome um táxi lá embaixo e agora vai.
Apertei-lhe a mão tentando retê-lo, E a Cida, e você?... Ele foi se desprendendo e se
afastando aos poucos: Ela já sabe e está segura, fique tranquila. E eu me arrumo, boa
noite, vai!
O elevador já descia quando me lembrei, táxi? Mas eu só tinha para o ônibus... Ouvi
então sua voz já remota mas singularmente próxima, O dinheiro está na bolsa! Cheguei
na calçada e parei porque me senti de repente banhada de luz. Olhei para o céu
coruscante de estrelas. Então ouvi as sirenes aflitas dos carros da polícia chegando com
estardalhaço. Entrei toda encolhida no táxi e apertando o falso missal que nem precisei
abrir porque sabia que a exata quantia da corrida já estava ali.
Na manhã seguinte encontrei a Cida me esperando impaciente na porta da Faculdade.
Foi logo ao meu encontro:
- Você já soube? Ih, fugi pela escada de incêndio mas antes te procurei adoidada, onde
você se meteu, menina, onde?!
- Mas eu estava ali mesmo, dançando na pista, vi você passar e chamei, chamei e você
não me ouviu, coisa mais esquisita! - disse e apertei-lhe o braço. - Dancei com um
colega lindo que
nunca vi antes, não, você também não conhece - acrescentei e fiquei olhando para o
pátio. – Me tirou e saímos dançando, nunca vi esse menino antes...
- Vamos mais depressa que já estamos atrasadas, a aula! - ela avisou baixando o olhar
aturdido. Puxou-me pela manga do pulôver: - Sei que bebi mas não foi tanto assim,
repito que não te vi dançando com ninguém, com ninguém! Como conseguiu ficar
invisível? Sei que você desapareceu da boate, desapareceu da festa perguntei e nada
você fez puf! e sumiu completamente, que loucura! - resmungou e olhou o relógio de
pulso: - Ih! temos que correr, vem depressa! Mas o que está procurando agora? O seu
par?!
Empurrei-a para junto da coluna e contei-lhe na maior emoção o meu encontro com o
desconhecido: Ele não parecia real, Cida, pelo amor de Deus! acredite em mim, foi
demais misterioso, acrescentei e consegui detê-la pelo braço porque ela já ia indo
adiante: Tive agora a revelação, acho que ele era um Anjo! Ele era um Anjo e por isso
você não me viu, desaparecemos juntos! Ele me guardou e me protegeu, sem abrir o
meu nécessaire, ouviu isso? deixou lá dentro o dinheiro para o táxi. Apareceu e
desapareceu para sempre, ah! um mancebo tão belo, nas histórias antigas eles eram
chamados de mancebos, lembra? Disse que tocava violino...
- Amarrei um pileque e quem pirou foi você - ela resmungou apertando o maçarote de
apostilas debaixo do braço. Desatou a rir cravando em mim o olhar míope: - Você falou
em violino? Pois fique sabendo que é esse o instrumento preferido do Anjo Decaído,
aquele! - disse engrossando a voz e espetando com a mão livre dois dedos na testa.
Aporta da sala de aula já estava fechada. Ela alisou a gola da blusa. Inclinou-se para
cochichar:
- Meu pessoal estava dormindo quando cheguei, uma sorte. E com você, algum
interrogatório? Ajeitei a alça da bolsa no ombro e passei o pente no cabelo.
- A dúvida da minha mãe é saber se por acaso um Anjo pode casar. Pode?
Abafamos o riso na palma da mão e em seguida fizemos uma cara austera. Abri a porta.

Anexo 6: Artigo de opinião - Feminismo: qual o lugar do homem nisso?

Feminismo: qual o lugar do homem nisso?


Por Diego Ferraz
A discussão acerca do feminismo não surgiu agora, vem de muito tempo.
Entretanto, com acontecimentos recentes — como o aumento da exposição na mídia de
casos de estupro, bem como maior movimentação das mulheres em movimentos
político-ideológicos feministas (a exemplo a marcha das vadias) —, o termo tem estado
em pauta não só em ambientes como as universidades e os jornais, como também nas
redes sociais.
Mesmo com ampla difusão do termo é comum ver pessoas, inclusive
mulheres, serem contra o movimento. Isso, principalmente, por falta de conhecimento e
distinção entre feminismo e femismo. Femismo seria um movimento que defende a
superioridade feminina diante do masculino, já o feminismo prevê que há uma
disparidade muito grande entre o feminino e o masculino, assim, luta pela equidade de
direitos.
Além do desconhecimento, a questão religiosa tem imposto um
posicionamento que impede as discussões e os avanços. O mais interessante é observar
que parcela das pastoras que são contra o feminismo, trabalham, estudam e, por vezes,
têm mais destaque que os seus maridos. Por exemplo, a pastora Ana Paula Valadão (a
bela, recatada e do lar que mais viaja pelo Brasil e mundo) nome conhecido por
religiosos e não religiosos, agora, pergunte-se: qual o nome do marido dela? Bem, com
exceção da Igreja Batista da Lagoinha e meia dúzia de “crentes”, a grande maioria não
saberá responder, pois Ana é mais conhecida/famosa do que seu marido. E, certamente,
isso se deve a muitas conquistas feitas por feministas que hoje ela rechaça.
Enfim, dizer que as mulheres precisam conhecer e assumir um
posicionamento feminista beira o óbvio. Mas e qual o posicionamento assumido pelos
homens? (Agora, abro mão da impessoalidade para falar de meu lugar de homem para
homens e as mulheres me corrijam se estiver equivocado).
Por algum tempo, eu me declarava feminista, até que fui ler um pouco mais
sobre o assunto e descobri a questão do protagonismo, ou seja, um homem cisgênero 1 se
dizer feminista e lutar por direito para as mulheres acarretaria no resultado de um direito
conquistado por homens, isso retira o protagonismo das mulheres em sua luta. Desse
modo, o termo mais adequado seria pró feminista, isto é, o homem que apoia a causa,
mas que compreende que embora veja o machismo presente na sociedade, não é, de
fato, vítima deste.

1
Cisgênero - termo utilizado para se referir às pessoas cujo gênero é o mesmo que o designado em seu
nascimento.
A questão, contudo, não é tão simples. Bia Pagliarini Bagagli defende que
os homens devem se posicionar como feministas, pois ao nos declararmos pró
feministas isentamo-nos do movimento e passamos a ser uma exterioridade. Alguém
que acompanha de fora (de seu lugar de privilégios) e apoia somente sem nada realizar
de fato para a mudança do cenário social atual.
A nomenclatura utilizada é, diante disso, o que menos importa. O
significativo serão as atitudes, por nós, tomadas frente ao machismo latente em espaços
por vezes ocupados por homens e que as mulheres não têm acesso para se manifestar.
Por exemplo, em rodas de amigos, repudiar comentários a mulheres como gostosa e
similares. Nas partidas de futebol rechaçar todo e qualquer comentário ou piada
machista, porque não é só humor, e sim, a reafirmação de uma atitude social
preconceituosa que serve de embasamento até mesmo para crimes.
Em suma, o lugar do homem no movimento feminista é compreender que
embora não sofra tanto com o machismo2, ele também deve exercer seu papel para
mudar a sociedade. Primeiramente, devemos alterar nossos próprios comportamentos
machistas e, posteriormente, manifestarmo-nos contra o machismo em espaços
essencialmente machistas aos quais, por vezes, mulheres não têm voz para combater o
preconceito. Isto é, independente da nomenclatura utilizada o importante é
compreendermos que o protagonismo dessa luta é das mulheres, mas nós homens não
podemos nos isentar de levantar a bandeira e rompermos com nossos próprios
preconceitos que são, muitas vezes, velados.

2
Digo tanto, pois há questões machistas que implicam ao homem, por exemplo, tamanho do pênis, ter de
ficar com várias mulheres para se afirmar homem e etc.

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