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OS LIVROS DA FUVEST

DOIS IRMÃOS
MILTON HATOUM

Análise da obra, seleção de textos e questionário


MARIA DE LOURDES DA CONCEIÇÃO CUNHA
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DOIS IRMÃOS
DOIS IRMÃOS – MILTON HATOUM

OBRAS DA FUVEST

1. BIOGRAFIA DO AUTOR

Milton Hatoum nasceu em Manaus em 19 de agosto de 1952. Filho


de pai e avós maternos libaneses, os quais pouco falavam português, sendo
a avó cristã maronita, educada em uma escola de freiras em Beirute, onde
só se rezava em francês. O avô Mamede, um contador de histórias, muito
influenciou Hatoum no interesse pelas narrativas orais, principalmente as
libanesas, que povoaram a imaginação do autor.
Aos quinze anos, Hatoum mudou-se de Manaus para Brasília, no
período do auge do regime militar. Na capital, estudou no Colégio de Aplicação
da UnB, uma escola de perfil politizado e vitimizado pela atmosfera opressiva
da época. Nos anos de 1970, o autor transferiu-se para São Paulo, onde se
diplomou em arquitetura pela USP. No final da mesma década, Hatoum
mudou-se para Madri para estudar, transferindo-se logo depois para
Barcelona, onde exerceu a tarefa de professor de Português e trabalhou na
tradução de romances de Jorge Amado para o Espanhol.
Em 1981, o autor viajou para Paris, onde iniciou o doutoramento
na Universidade de Paris III (Sorbonne Nouvelle) e começou a esboçar seu
primeiro romance. Em 1984, interrompeu o doutorado e retornou a Manaus.
Seu primeiro romance, Relato de um certo Oriente, ganhador do
Prêmio Jabuti, conferido pela Câmara Brasileira do Livro, foi lançado em
1989, ganhou forte destaque na crítica literária e, rapidamente, editado na
França, Alemanha, Espanha, Inglaterra, Estados Unidos e Líbano.
Dois Irmãos, segunda obra de Hatoum, foi eleito o melhor romance
brasileiro no período 1990-2005, em pesquisa feita pelos jornais Correio
Braziliense e O Estado de Minas e Cinzas do Norte, e proporcionou ao autor
diversos prêmios, como a Ordem do Mérito Cultural, Elo Ministério da
Cultura, Jabuti, Bravo!, APCA e Portugal Telecom.
No ano de 2008, Milton Hatoum publicou Órfãos do Eldorado,
livro escrito sob encomenda que, segundo o autor, foi e será a única obra
escrita para atender a um pedido. Ela também recebeu o Prêmio Jabuti em

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MILTON HATOUM

2009 na categoria romance.


Nas obras Relato de um certo Oriente e Dois Irmãos, Hatoum
inseriu as vivências experimentadas no seio de sua família como filho de
imigrantes libaneses. O autor escreveu também um livro de contos, A
Cidade Ilhada, e uma coletânea de crônicas, publicadas em jornais e
revistas, intitulada Um Solitário à Espreita.

2. RESUMO DO ENREDO DE DOIS IRMÃOS

Zana teve de deixar tudo: o bairro portuário de


Manaus, a rua em declive sombreada por
mangueiras centenárias, o lugar que para ela
era quase tão vital quanto a Biblos de sua
infância: a pequena cidade no Líbano que ela
recordava em voz alta, vagando pelos aposentos
empoeirados até se perder no quintal, onde a
copa da velha seringueira sombreava as
palmeiras e o pomar cultivados por mais de
meio século.1 (Dois Irmãos, 2017, p. 9)

Assim começa, com uma espécie de prefácio, o romance Dois


Irmãos, de Milton Hatoum: Zana, internada em um hospital, recordou seu
passado ao lado do pai, marido e filhos, desejando (até morrer) que os
gêmeos, Yaqub e Omar, voltassem a se falar.
No primeiro capítulo, Yaqub regressa do Líbano, para onde foi aos 13
anos, às vésperas da Segunda Guerra Mundial, tendo sido, dessa maneira,
separado do gêmeo Omar, o filho preferido de Zana. Na chegada a Manaus,
Yaqub se emocionou ao rever a paisagem de sua infância e refletiu sobre
como ele e o irmão gêmeo eram diferentes nos desafios: Yaqub era medroso,
enquanto Omar, o aventureiro.

Yaqub recorda também o dia do baile dos jovens em que ele queria
ter ficado até a meia-noite, uma vez que a sobrinha dos Reinoso, Lívia, “a
meninona loira” (Dois Irmãos, 2017, p. 21), estaria presente nesse horário

1
Todas as passagens do romance Dois Irmãos foram extraídas da edição de bolso
da Companhia das Letras de 2017.
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ao evento. Ao vê-la, ele pensou em se aproximar dela, mas Zana ordenou-lhe
que levasse a irmã mais nova, Rânia, para a casa e voltasse posteriormente.
No retorno para o baile, Yaqub viu Lívia e Omar dançando num ritmo
diferente do típico das festas carnavalescas, o que o fez odiar a festa.
O gêmeo mais velho não entendia o porquê de a mãe proteger o irmão
caçula e, muito menos, compreendia o motivo de ter sido mandado para o
Líbano dois meses após o baile de Carnaval.
No retorno a Manaus, ao chegar em casa, já um homem feito, Yaqub
foi recebido efusivamente pela irmã Rânia e, então, caminhou até o quintal
para abraçar Domingas, como se ela fosse sua mãe e não a empregada da
casa.
A vizinhança veio ver Yaqub, que foi beijado por Sultana, Talib, suas
duas filhas, e Estelita Reinoso. Já era quase meia-noite, quando Omar entrou
na sala, dirigiu-se até a mãe, que o recebeu como se ele fosse o filho ausente,
abraçou-a e, sem nenhuma vontade, estendeu a mão para cumprimentar
Yaqub.
Domingas contou ao narrador a história da cicatriz que era a única
diferença física entre Yaqub e Omar: no último sábado de cada mês, no
porão da casa dos Reinoso, havia uma sessão de cinema em que a garotada
vestia a melhor roupa para o evento. Nessas ocasiões, Lívia dispensava mais
atenção a Yaqub, despertando o ciúme de Omar.
Numa dessas sessões, Yaqub reservou uma cadeira para Lívia sentar-
se ao lado dele. Repentinamente ocorreu uma pane no gerador e, ao ser
aberta a janela para entrar claridade, Omar viu os lábios de Lívia no rosto
de Yaqub. Imediatamente cadeiras foram atiradas ao chão, uma garrafa de
vidro estilhaçada e estocada no rosto de Yaqub por Omar.
Depois da briga entre os gêmeos, para que fosse contida a possível
violência entre os irmãos, Yaqub foi enviado ao Líbano e, agora, regressando
cinco anos depois para Manaus, já era um homem alto, que falava mal a
Língua Portuguesa, mas tinha grande facilidade com a Matemática.
Pouco tempo depois de ter voltado a Manaus, Yaqub comunicou a
família de que iria para São Paulo, onde estudaria na escola Politécnica.
Enquanto ele se dedicava aos estudos, Omar faltava às aulas na
escola, aproveitando a vida de maneira audaciosa e irresponsável pelas
madrugadas festivas de Manaus, comportamento que incomodava o pai
Halim.

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Omar foi expulso do colégio por ter desferido um soco no professor
de Matemática, mestre querido de Yaqub. Zana tentou evitar a expulsão,
mas o diretor não cedeu aos argumentos dela em favor de Omar.
Para o narrador, a partida de Yaqub para o Líbano fora vantajosa, pois
ficara com suas roupas velhas, as quais lhe serviriam depois de alguns anos.
No segundo capítulo, o narrador relata que Galib, pai de Zana,
inaugurou o restaurante Biblos, por volta de 1914, ponto de encontro de
imigrantes libaneses, sírios e judeus marroquinos. Abbas indicou o Biblos
para Halim, que passou a ser frequentador assíduo do local pelo
encantamento que tinha por Zana. Como Halim levava peixes para Galib, o
dono do restaurante não lhe cobrava o almoço.
Certa vez, quando Halim estava procurando por um chapéu feminino
para dar de presente à Zana, Abbas sugeriu-lhe que a presenteasse com um
gazal escrito por ele composto de quinze dísticos escritos em árabe. Halim
colocou os versos num envelope e, no dia seguinte, fingiu esquecê-lo no
restaurante. Uma semana depois, ao voltar ao Biblos, Halim recebeu de
Galib o envelope que ele tinha “esquecido” sobre a mesa.
Abbas disse a Halim que a timidez não conquistava ninguém e,
dando-lhe duas garrafas de vinho, sugeriu que ele voltasse ao Biblos e se
declarasse à Zana. Na manhã de sábado, Halim entrou no Biblos
embriagado, dirigiu-se à Zana e declamou-lhe os gazais. Dois meses depois,
eles se casaram.
Halim era um romântico tardio, apaixonado por Zana, a qual decidiu
casar-se com ele, mesmo com as cristãs maronitas de Manaus se opondo a
ela ter um muçulmano como marido. No entanto, Zana só seguia sua própria
vontade e, determinada, casou-se com Halim, enquanto Galib afastava as
beatas para que deixassem sua filha em paz.
Nessa ocasião, Zana fez uma exigência a Halim em frente ao pai:
deveriam se casar no altar de Nossa Senhora do Líbano, com a presença das
maronitas e católicas de Manaus. Halim satisfez-se por ter vencido as
oposições sociais em relação ao seu casamento, que foi feliz e de intensa
atividade sexual, principalmente na rede, durante muito tempo.
Certa vez, Zana sugeriu ao pai que viajasse para o Líbano para rever
os parentes. Ele partiu para Biblos2 e lá morreu na casa perto do mar. Zana,

2
Biblos (βύβλος) é o nome grego da cidade portuária fenícia de Gubla (ou Gebal).
Era conhecida pelos antigos egípcios como Kbn e, mais tarde, Kpn. Embora continue

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ao saber da morte do pai, trancou-se por duas semanas no quarto. Após o
período de luto, ela notificou ao marido o desejo de ter três filhos. Os
gêmeos não nasceram logo depois da morte do avô, pois Halim queria
aproveitar a vida com Zana sem a interferência de filhos.
No terceiro capítulo, o narrador conta que Yaqub enviava para a
família uma carta no final de cada mês e Zana e Halim convidavam os
vizinhos para a leitura da missiva. Nela, Yaqub contava que, em São Paulo,
tinha uma vida atribulada, o que levava Zana a temer que ele não voltasse
mais a Manaus.
Os pais mandavam dinheiro para Yaqub viver em São Paulo, mas ele
devolvia todo o valor, dizendo que não precisava de nada deles. Enquanto
ele se dedicava para ser um engenheiro, Omar continuava com sua vida
folgada e repleta de aventuras.
Zana sugeriu a Halim que vendessem o restaurante e abrissem um
comércio na rua dos bares, onde o movimento de fregueses era maior. Por
ocasião da inauguração da loja, uma freira, “irmãzinha de Jesus”, ofereceu
ao casal uma órfã batizada e alfabetizada para trabalhar na casa de Zana e
Halim.
Era Domingas, que cresceu nos fundos da casa e passou a fazer as
tarefas do lar. Dois anos após a chegada dela, nasceram Yaqub e Omar. Em
decorrência de o Caçula ter adoecido logo nos primeiros meses de vida, ele
foi cercado pelo zelo excessivo da mãe, enquanto Domingas cuidava de
Yaqub como se fosse sua mãe postiça.
Halim, que perdeu a paz logo que os filhos começaram a andar, não
se conformava com a ideia de ter sua privacidade e prazeres ao lado de Zana
roubados pelo excesso de mimo que a mãe dedicava a Omar.
O narrador revela que não conhecia suas origens, mas, alguns anos
depois, desconfiou de que um dos gêmeos era seu pai. Certa vez, ele e
Domingas foram passear e, nessa ocasião, ela contou ao narrador algumas
passagens de sua vida antes do orfanato, a perda do pai e a orfandade que a
levou para o convívio com as freiras. Uma tempestade fez esse passeio ser
uma tormenta para Domingas e o filho, sendo essa a única viagem que
fizeram juntos.
a ser denominada de Biblos pelos investigadores (sobretudo em referência a épocas
passadas), a cidade é agora conhecida pelo nome árabe Jubayl. Situa-se na
costa mediterrânica do Líbano, a 42 quilômetros de Beirute e é um local de muito
interesse de arqueólogos.

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Omar chegava das noitadas, acordava Zana e Domingas, que,
juntamente com seu filho, o narrador da história, iam ajudar o Caçula
embriagado. O narrador se incomodava muito com o que vivia na casa
libanesa e, algumas vezes, pensara em fugir, mas não o fizera porque não
queria deixar a mãe sozinha.
Yaqub morava em São Paulo já há seis anos, enquanto Omar
continuava sua vida alucinada. Uma noite, o Caçula chegou em casa com
uma moça do cortiço, fizeram uma festinha a dois e, de manhã, Halim, ao
se levantar, viu o filho e a moça nus dormindo no sofá. Enfurecido, o pai
ergueu Omar pelos cabelos, deu-lhe uma bofetada, acorrentou-o à maçaneta
do cofre de aço e desapareceu por dois dias.
Mas foi o episódio da mulher prateada que fez Zana mandar Omar
para São Paulo. Nessa altura, Yaqub já estava casado e não revelava o nome
da esposa aos familiares, o que irritava a mãe, pois, para ela, um filho casado
era um filho perdido ou sequestrado.
No aniversário de Zana, Omar encheu a casa com flores e bilhetinhos
amorosos para a mãe. O comportamento do Caçula despertava, na irmã,
Rânia, uma forte paixão por ele, que costumava fazer-lhe cócegas nos
quadris e tatear-lhe o vão entre suas pernas, fazendo-a suar e fugir para o
quarto.
Ainda muito jovem, Rânia aderiu à vida reclusa e solitária de seu
quarto fechado. Contudo, nas festas de aniversário de Zana, Rânia sempre
deixava esperançoso algum pretendente que estivesse no evento, aceitando
convites para dançar, mas, logo depois, interrompia a dança para jogar-se
nos braços do Caçula. A intimidade entre os irmãos revoltava qualquer
pretendente, que saía da festa irritado.
Havia rumores de que Omar estava envolvido com uma mulher mais
velha do que ele, notícia que deixou Zana impaciente. Foi justamente no
aniversário de Zana que Omar apresentou a namorada para a mãe, a qual
sempre afastava todas as mulheres do filho. Nessa ocasião, no entanto, a
mulher, chamada Dália, que Omar trouxe à casa, atraiu mais olhares na festa
do que Rânia. As filhas de Talib, como sempre, surgiram na festa dançando,
mas também tiveram o brilho ofuscado por Dália.
A mulher prateada (Dália), que Omar trouxe para casa, despertou o
fascínio de todos os presentes à festa. Após a dança, Zana chamou Dália
para ajudá-la a limpar a mesa e, segurando-a pelo braço com força,

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cochichou algo em seu ouvido, o que fez a mulher prateada ir embora,
dizendo em voz alta: “Vamos ver, vamos ver” (Dois Irmãos, 2017, p. 77).
Omar, desesperado, saiu correndo atrás de Dália.
Zana fez de tudo para convencer Yaqub a hospedar o irmão em São
Paulo, mas ele não permitiu que Omar dormisse em sua casa. O Caçula,
descobrindo o plano da mãe de enviá-lo para São Paulo, tentou reaproximar
Dália de Zana, mas ela mandou o narrador entregar dinheiro para a mulher
prateada, a qual desapareceu com a família.
Omar viajou para São Paulo enfurecido e revoltado. Durante seis
meses, a casa de Halim ficou em paz. O Caçula escrevia aos pais contando
que estudava muito e madrugava para ir à escola. No feriado de 15 de
novembro, Yaqub viajou com a esposa para Santos.
Na volta do feriado, ele foi ao colégio onde o Caçula estudava e, lá,
informaram-no de que Omar deixara de frequentar a escola após o 15 de
novembro. Na pensão, onde Omar residia em São Paulo, Yaqub soube que
o irmão também abandonara o quarto com apenas uma mala vazia e algumas
roupas dependuradas, além de um mapa dos Estados Unidos. Em dezembro,
Omar enviou o primeiro cartão postal:

(...) o Caçula enviou o primeiro cartão-postal


de Miami; depois enviou outros, de Tampa,
Mobile e Nova Orleans, contando suas farras e
peripécias em cada cidade. Yaqub rasgara todos
os postais menos um, que entregou ao pai:
“Queridos mano e cunhada, Louisiana é a
América em estado bruto e mesmo brutal, e o
Mississippi é o Amazonas desta paragem. Por
que não dão uma voltinha por aqui? Mesmo
selvagem, Louisiana é mais civilizada que vocês
dois juntos. Se vierem, tratem de pintar o cabelo
de loiro, assim vão ser superiores em tudo.
Mano, a tua mulher, que já foi bonita, pode
rejuvenescer com o cabelo dourado. E tu podes
enriquecer muito, aqui na América. Abraços do
mano e cunhado Omar”. (Dois Irmãos, 2017, p.
91)

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No quinto capítulo, o narrador conta que Yaqub veio visitar a família
pela primeira vez depois que partira para São Paulo, ocasião em que ele
revelou a verdade sobre Omar aos pais.
O narrador considera que, se Yaqub fosse seu pai, ele seria filho de
um homem quase perfeito, o que não ocorreria se o pai dele fosse Omar. Ao
reencontrar Yaqub, o narrador recebeu dele algum carinho, e, logo depois,
viu sua mãe de mãos dadas com o gêmeo de São Paulo.
Zana perguntou a Yaqub se a esposa não tinha vindo com ele, pois ela
queria conhecer a nora. Yaqub disse à mãe que Omar lhe daria uma nora
tão exemplar quanto ele. À noite ele revelou ao pai o motivo do
desaparecimento de Omar:

“Durante cem dias o teu filho foi disciplinado


como não tinha sido em quase trinta anos, mas
foram cem dias de farsa”, disse Yaqub ao pai.
“Ele roubou meu passaporte e viajou para os
Estados Unidos. O passaporte, uma gravata de
seda e duas camisas de linho irlandês!”
Yaqub teve certeza disso quando recebeu o
primeiro cartão postal. Já tinha expulsado a
empregada, porque ela levara Omar para o
apartamento quando ele e a esposa estavam em
Santos no feriado de 15 de novembro. A
empregada havia confessado quase tudo: Omar
a levara para passear no Trianon e no Jardim
da Luz; tinham almoçado no Brás e nos
restaurantes do centro. Dois folgadões! Tudo
isso com o dinheiro que vocês mandavam, disse
Yaqub, irado. Depois Yaqub se lembrou dos dois
volumes velhos e empoeirados de cálculo
integral e diferencial, livros que comprara por
uma pechincha num sebo da rua Aurora. Abriu
os livros com o pressentimento de que fora
aviltado. Rangia os dentes, as mãos trêmulas
mal conseguiam folhear o primeiro volume,
onde tinham sido enfiadas várias cédulas de um

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dólar; no outro volume guardara as notas de
vinte. Folheou os dois livros, página por página,
depois chacoalhou-os, e caíram cédulas de um
dólar. O patife! Muito bem, que o pulha levasse
o passaporte, a gravata de seda, as camisas de
linho, mas dinheiro... “Deixou a mixaria, deixou
o que ele é. Esse é o teu filho. Um harami,
ladrão!” (Dois Irmãos, 2017, p. 91, 92)

Yaqub não iria sossegar enquanto não se vingasse do irmão,


principalmente porque estava ainda mais enfurecido com Omar por ele ter
entrado em seu apartamento, vasculhado tudo, descoberto que Lívia havia
se casado com Yaqub e feito desenhos obscenos nas fotografias do
casamento do irmão.
Rânia quis modernizar a loja do pai, mas não havia dinheiro para
reformar a casa ou a loja. Yaqub, então, generosamente financiou ambas as
obras.
Omar envolveu-se com outra mulher: a Pau-Mulato, uma bela
rubiácea com quem ele passou a se encontrar às escondidas da mãe. Houve
uma mudança de comportamento do Caçula: amanhecia em casa, sem
ressaca, e tornara-se um homem trabalhador, que acordava cedo e dirigia-
se a um banco estrangeiro para o dia de trabalho.
O Caçula levou para casa um inglês, chamado Wyckham, o qual se
dizia gerente do banco onde Omar trabalhava. No entanto, Zana descobriu
que o inglês era um contrabandista do qual Omar era seu braço direito.
Zana colocou Zanuri para seguir Omar. O delator profissional
entregou a ela um relatório, no qual revelava que o Caçula passava as noites
com o carro, um oldsmobile conversível, prateado e com bancos azuis, em
frente a uma casa pobre, moradia de uma mulher alta e massuda. Ambos
passavam a noite dentro do carro divertindo-se sexualmente.
Como uma estrategista, Zana passou a presentear Omar, dando-lhe
roupas bonitas para ele ir “mais lindo nas tuas noites da Cachoeirinha” (Dois
Irmãos, 2017, p. 108). Omar, percebendo que a mãe havia descoberto seu
relacionamento com a Pau-Mulato, arrumou suas coisas e saiu de casa:
“A senhora tem o outro filho, que só dá gosto e
tem bom posto. Agora é a minha vez de viver...

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Eu e a minha mulher, longe da senhora...”


Ergueu a cabeça e gritou para o pai: “Longe do
senhor também, longe dessa casa... de todos.
Não venham atrás de mim, não adianta...”.
Saiu gritando como um alucinado, sem se
despedir de Rânia nem de Domingas. Era capaz
de bater, de quebrar tudo se alguém o impedisse
de partir. Ninguém dormiu naquela noite. Zana
não parava de se lamentar; culpava-se, depois
acusava Halim: “Nunca foste um pai para ele,
nunca. Ele fugiu por causa do teu egoísmo...
Isso mesmo, egoísmo”. Subia e descia a escada,
atarantada, exigindo a minha presença, a de
Domingas. Não sabia o que pedir, o que dizer a
nós dois. Esperávamos, sonolentos, a tarefa.
Mas ela não se decidia e perguntava: “O que
acham disso? Meu filho perdido por uma
mulher qualquer! O que vocês acham? E Rânia,
por que não desce? Em vez de me ajudar, fica
mofando naquele quarto”. Enfim, ordenou: que
eu tirasse a filha da cama. Rânia abriu a porta,
o rosto mal-humorado. Não estava dormindo, o
quarto dela todo iluminado. As duas rezaram,
fizeram promessas, acenderam velas.
Acenderam tudo: as lâmpadas, os olhos, a alma.
O tempo passava e ele não voltava para casa.
Soltara-se de vez? Tinha asas, era impulsivo,
mas faltou-lhe força para voar alto e perder-se
livremente no imenso céu do desejo. (Dois
Irmãos, 2017, p. 109)

No sexto capítulo, iniciou-se a busca de Zana pelo filho caçula.


Halim também procurou por Omar, acompanhado do amigo Cid Tannus,
percorrendo todos os lugares da cidade. Numa dessas ocasiões, Halim pediu
ao narrador que o acompanhasse numa procura incessante por Omar,
passando por ilhas, lagos e rios de Manaus. Durante meses a procura pelo

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Caçula foi infrutífera.
Rânia administrava a loja vendendo mercadorias da moda que
vinham de São Paulo, controlando cada centavo gasto. Contrariada, ela
cedeu à compra excessiva de peixe pescado por Adamor, o Perna de Sapo,
um farejador que descobriu em pouco tempo o paradeiro de Omar: Ele
estava morando num barquinho de aluguel, juntamente com a mulher Pau
Mulato, pescando tudo o que podiam para vender. Omar rapara os cabelos
e deixara a barba crescer, além de ter os braços arranhados e seu corpo
bronzeado de tanto sol.
O Caçula foi resgatado e levado de volta para casa e, num acesso de
fúria, pegou a corrente do pai, arremessou-a contra o espelho, destruiu
cadeiras e molduras, rasgou os retratos de Yaqub, praguejou contra Halim,
xingou a mãe e a irmã, mas não se dirigiu ao narrador, que torcia para que
ele o tocasse para poder dar-lhe uma pancada.
Zana aproximou-se de Omar dizendo-lhe não admitir que ele se
envolvesse com uma mulher qualquer:

(...) “Isso mesmo, uma qualquer! Uma charmuta, uma


puta! Que ela passe o resto da vida mofando naquele
barco imundo, mas não com o meu filho. Uma
contrabandista! Falsária... Agiota... Gastei uma fortuna
para descobrir os detalhes. O contrabando, as meninas
que ela aliciava para o Quelé, aquele inglês de araque...
O esconderijo de vocês na Cachoeirinha... As orgias... A
patifaria... a sujeira toda! Eu não ia permitir... nunca!
Ouviste bem? Nunca!” Ela abaixou a voz e sussurrou,
dócil, tristonha: “Tens tudo aqui em casa, meu amor”.
Começou a soluçar, a chorar. Pegou nas mãos dele,
penteou-lhe a barba grisalha com os dedos, alisou-lhe a
careca feridenta. Os dois, abraçados, foram para o
alpendre; ela franziu a testa ao ver sua própria imagem
distorcida em mil fragmentos no espelho estilhaçado.
Perdeu o espelho precioso, mas ainda assim suspirava de
felicidade porque o filho estava ali, queimado por dentro,
mas agora só dela. Fez um sinal para que eu e Domingas
limpássemos a sala. (Dois Irmãos, 2017, p. 130)

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Omar ficou vários dias sem sair de seu quarto e voltou a ser mimado
pela mãe. Rânia teve que ceder dinheiro para os caprichos do irmão, que a
agarrava no colo e sussurrava palavras em seu ouvido, as quais a faziam se
derreter toda.
Depois do envolvimento com a Pau-Mulato, Omar jamais se entregou
a outra mulher da mesma maneira. Voltou à vida de farras e às bebedeiras
noturnas, deixando o pai cada vez mais revoltado com o seu
comportamento. Halim foi entristecendo e, em seus últimos anos de vida,
passava a maior parte do tempo sozinho, no pequeno depósito da loja, mas
ainda se emocionava com Zana e dizia-lhe palavras de amor.
No sétimo capítulo, na primeira semana de janeiro de 1964, Antenor
Laval, o professor do colégio, foi até a casa de Omar para pedir-lhe que
participasse de uma leitura de poesia. O Caçula voltou para casa na
madrugada do dia seguinte e pediu dinheiro à irmã, que se recusou a dá-lo,
pois a quantia era muito maior do que ele costumava solicitar.
O narrador estranhou que Laval não o tivesse convidado para a leitura
de poesias. Em fins de março, o professor reapareceu muito abatido e não
voltou mais à escola, até que, em uma manhã de abril, ele foi preso e morto
por soldados do regime militar.
Vários alunos prestaram homenagem a Laval no coreto da praça,
lendo seus poemas, sendo o último leitor Omar. Enquanto isso,Yaqub voltou
para Manaus e, ao chegar em casa, quis que Domingas lhe fizesse
companhia na rede. Repentinamente, o Caçula ficou febril e recebeu os
cuidados exagerados da mãe, enquanto o narrador, que também adoecera,
recebia a atenção do avô Halim, da mãe Domingas e de Yaqub.
Depois de recuperado, o narrador e Yaqub passearam por Manaus,
que estava lotada de soldados. Após a partida de Yaqub para São Paulo,
Omar começou a se exercitar como jardineiro, catando frutas podres do
quintal, varrendo as folhas, cheirando flores e cavando a terra.
Rânia pediu ao narrador que fosse ajudá-la com umas caixas de
mercadorias na loja. Os dois trabalhavam arduamente, quando, ao se abaixar
para abrir uma caixa, Rânia deixou os seios aparecerem, despertando desejo
no narrador. Ambos pararam as tarefas e se envolveram fisicamente na
escuridão da loja.
Depois do momento sexual intenso, eles conversaram um pouco e
Rânia contou ao narrador que sua festa de aniversário de quinze anos fora
cancelada repentinamente e apenas ela e a mãe sabiam o motivo:
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DOIS IRMÃOS

“Zana conhecia o meu namorado, o homem que


eu amava... Eu queria viver com ele. Minha mãe
implicou, se enfezou, dizia que a filha dela não
ia conviver com um homem daquela laia... não
ia permitir que ele fosse à minha festa. Me
ameaçou, ia fazer um escândalo se me visse com
ele... ‘Com tantos advogados e médicos
interessados em ti, e escolhes um pé-rapado...’
Meu pai ainda tentou me ajudar, fez de tudo,
implorou para que Zana cedesse, aceitasse, mas
não adiantou. Ela era mais forte, enfeitiçou meu
pai até o fim. Desprezei todos aqueles
pretendentes... alguns até hoje aparecem aqui,
fingem que querem comprar e acabam
comprando as porcarias encalhadas... os
restos... tudo o que eu não vendo durante o ano.
Agora é esse o meu mundo... sou dona de tudo
isso”, ela disse, olhando as paredes da loja.
Permanecemos em silêncio, na penumbra; com
a luz fraca do depósito, mal dava para ver o
rosto dela. Ela me pediu que fosse embora,
queria ficar sozinha, talvez dormisse na loja.
Eram mais de duas da madrugada, e eu sabia
que não ia pegar no sono. Só pensava em Rânia,
na voz dela, na beleza que vi de perto, muito
perto, como ninguém talvez tivesse visto. (Dois
Irmãos, 2017, p. 155, 156)

Enquanto o narrador ficava em seu quarto lendo e estudando, o


Caçula trabalhava no jardim, carregando sacos de folhas mortas. Halim
comentou que Omar se esforçava no trabalho só para não sair de perto da
mãe:

Um dia, a mãe se envergonhou de uma cena. É


que as duas filhas de Talib, Zahia e Nahda,

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MILTON HATOUM
entraram de supetão na casa e logo começaram
a rir. Riam e cobriam o rosto com as mãos,
nervosas. Nós ouvimos o riso e o tilintar das
pulseiras de ouro que chacoalhavam no braço
das moças. A mãe apareceu na sala, e, antes de
perguntar a razão do riso, olhou para o quintal:
o filho, nu, enlaçava o tronco da seringueira, e,
com uma lentidão artística, arranhava-lhe o
tronco. Queria extrair leite daquela árvore
secular? Ao ver a mãe espiá-lo, ele se afastou
da árvore, pôs as mãos entre as pernas, apalpou
a virilha. Começou a gemer, fazendo uma careta
medonha. Zahia e Nahda pararam de rir,
arregalaram os olhos. Recuaram. Ele uivava,
berrava como um desgraçado, apertando as
coxas com as mãos. Zana gritou por Domingas,
as duas se acercaram do tronco, minha mãe
logo percebeu o motivo dos berros. Sofria, o
Caçula. Arreganhava-se para mijar, mordia os
lábios e tornava a arranhar o tronco da
seringueira. “Está com o ramêmi ensopado de
pus”, disse Domingas. Zana se espantou: “O
que é isso? Estás louca?”. Minha mãe balançou
a cabeça: “A senhora não sabe... Não é a
primeira vez que ele pega essa doença”. Zana
não acreditou. À noite, o sonso do jardineiro
escapava pela cerca dos fundos... Dessa vez
tinha sido forte, uma gonorreia galopante, como
se dizia. As duas levaram o Caçula para o
banheiro, fizeram um curativo, enrolaram o
ramêmi de Omar com gaze. Ele teve que ir ao
médico, e aguentou umas duas agulhadas na
bunda. Voltava da farmácia caminhando de
banda, como um papagaio. Em casa, o
tratamento não era mais ameno. Zana esperava
Halim sair, Domingas fervia água com folhas de

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DOIS IRMÃOS
crajiru e o Caçula ficava de cócoras ao lado da
bacia, recebendo o tratamento da mãe. Ele
apertava a virilha, se contorcia, trincava os
dentes, derramava a infusão, queria fugir. Zana
pegava uma toalha limpa e recomeçava a
aplicação. No fim, ele se sentia aliviado. Nós
sabíamos quando ele mijava por causa dos
urros que soltava durante a noite. Era um
escândalo. “Quem fez isso contigo?”, quis
saber Zana. Ele não falou.” (Dois Irmãos, 2017,
p. 156, 157)

Halim, triste e cansado, passou a perambular pela cidade, falando


sozinho e perguntando por Yaqub. Zana mandava o narrador ir atrás do
marido:
Numa tarde que ele escapara logo depois da
sesta eu o encontrei na beira do rio Negro.
Estava ao lado do compadre Pocu, cercado de
pescadores, peixeiros, barqueiros e mascates.
Assistiam, atônitos, à demolição da Cidade
Flutuante. (Dois Irmãos, 2017, p. 158, 159)

Apenas na manhã da véspera do Natal de 1968, a busca por Halim foi


inútil. A ceia de Natal fora silenciosa e triste. Zana não tocou na comida, pois
preferiu esperar mais um pouco pelo retorno do marido que nunca deixava
a família nessa data. De madrugada o grito de Zana acordou a todos: Halim
estava sentado no sofá cinza calado para sempre.
No oitavo capítulo, o narrador revelou que Omar não suportou ver o
pai morto e, num ataque de histeria, dirigiu-se ao finado de maneira
afrontosa:
Começou a gritar, criança incendiada de ódio ou de
algum sentimento parecido com o ódio. Gritava, fora de
si: “Ele não vai acorrentar o filho dele? Não vai passar
a mão no rosto suado? Por que ele não se mexe e fala
comigo? Vai ficar aí, com esse olhar de peixe morto?”.
Gritos na madrugada. Os gritos do Caçula. O choro de

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MILTON HATOUM
Rânia, de Domingas. Zana cobria o rosto com as mãos;
ela estava sentada no chão, no meio de cacos do alguidar,
perto de Halim, talvez sem entender como tinha
acontecido. Ninguém, naquela noite, viu o velho entrar
na sala. Ele devia ter chegado no meio da madrugada,
avançando com passos imperceptíveis de velho ferido que
foge de tudo e de todos para morrer. Omar nos
surpreendeu com seu gesto irado, o dedo em riste
apontado para o rosto de Halim, para os olhos quase
fechados, sem vida, do pai cabisbaixo. Rânia ficou
paralisada: não sabia o que fazer, não pôde impedir o
irmão de gritar, de pegar no queixo do pai e erguer-lhe a
cabeça. O viúvo Talib chegou a tempo de evitar um
confronto entre o filho vivo e o pai morto. Já amanhecia
quando Talib e as duas filhas irromperam na sala e
apartaram Omar do pai. O Caçula reagiu, esperneando,
gritando, e eu não suportei vê-lo tão corajoso diante do
finado Halim. Fiz um gesto para Talib e suas filhas,
expulsei o Caçula da sala e arrastei-o até o quintal. Ele
se enfureceu, pegou um terçado, me ameaçou. Gritei mais
alto do que ele: que me enfrentasse de uma vez, que me
esquartejasse, o covarde. O terçado tremia-lhe na mão
direita, enquanto eu repetia várias vezes: “Covarde...”.
Ele calou, empunhando o facão que usava para brincar
de jardineiro. Tinha coragem de olhar para mim, e o
olhar dele só aumentava a minha raiva. Ele recuou, ficou
acocorado debaixo da velha seringueira, o rosto
espantado voltado para a porta da sala, de onde
Domingas nos observava. Ela me chamou, me abraçou e
pediu que eu voltasse para a sala. (Dois Irmãos, 2017, p.
162, 163)

Zana, inconsolável com a perda do marido, começou a repreender o


Caçula, comportamento que surpreendeu o filho querido. Após alguns dias,
Rânia chamou Omar para trabalhar na loja com ela, mas ele riu da proposta
e retornou à sua vida de noitadas por Manaus.

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DOIS IRMÃOS
Em um sábado, o Caçula chegou em casa na companhia de Rochiram,
um indiano que trabalhava na construção civil e estava procurando um
terreno para construir um hotel. Zana, inicialmente, não gostou do visitante
e Domingas desconfiou do comportamento dele.
Zana pediu ao narrador que datilografasse uma carta dela para Yaqub,
na qual pedia perdão por tê-lo mandado para o Líbano e afirmava seu desejo
de ver os filhos reconciliados, trabalhando na construção do
empreendimento do indiano. Algum tempo depois, chegou a resposta de
Yaqub:
Era uma carta com poucas linhas. Ele não
aceitou nem recusou qualquer perdão. Escreveu
que o atrito entre ele e Omar era um assunto dos
dois, e acrescentou: “Oxalá seja resolvido com
civilidade; se houver violência, será uma cena
bíblica”. Mas ele se interessou pela construção
do hotel, ignorando a participação do irmão.
Terminou a carta com um abraço, sem adjetivo
ou aumentativo. A mãe leu em voz alta essa
palavra e murmurou: “Eu peço perdão e ele se
despede com um abraço”. (Dois Irmãos, 2017,
p. 171)

Omar esbanjava dinheiro em bebidas e presentes com a quantia que


havia ganhado da comissão pela venda do terreno ao indiano. Yaqub voltou
a Manaus, hospedando-se, dessa vez, em um hotel simples. Após alguns
dias de sua chegada, ele visitou a casa da mãe.
Ao ver Domingas, Yaqub convidou-a para se sentar com ele na rede,
quando, subitamente, o Caçula surgiu, socando o rosto do irmão e dando-
lhe uma surra em meio a xingamentos de traidor e covarde. Os dois foram
separados pelo narrador e pelos vizinhos. Omar, vendo-se cercado, retirou-
se da casa.
No hospital, Yaqub foi socorrido e tratado. Seu rosto estava inchado,
dois ou três dedos da mão esquerda fraturados. Rochiram veio até a loja
para conversar com Rânia e apresentar uma proposta para encerrar o
problema que teve com os irmãos gêmeos dela:

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MILTON HATOUM
Rochiram exigia uma fortuna em troca do que
havia pagado a Yaqub pela execução dos
projetos de engenharia e, a Omar, pela comissão
do terreno. Além disso, perdera muito tempo
com esse negócio. Ameaçou-a com um processo,
escreveu que já conhecia pessoas influentes, “as
mais poderosas da cidade”. Rânia pediu um
prazo: “Alguns meses para arrumarmos a nossa
vida”.
Contou à mãe a exigência de Rochiram. Disse
que faria tudo para evitar um processo de Yaqub
contra Omar. (Dois Irmãos, 2017, p. 177)

No nono capítulo, revela-se a identidade do narrador: Nael, o mesmo


nome do pai de Halim. Domingas convidou o filho para passearem na praça
da matriz:

(...) “Quando tu nasceste”, ela disse, “seu


Halim me ajudou, não quis me tirar da casa...
Me prometeu que ias estudar. Tu eras neto dele,
não ia te deixar na rua. Ele foi ao teu batismo,
só ele me acompanhou. E ainda me pediu para
escolher teu nome. Nael, ele me disse, o nome
do pai dele. Eu achava um nome estranho, mas
ele queria muito, eu deixei... Seu Halim. Parece
que a vida se entortou também para ele... Eu
sentia que o velho gostava muito de ti. Acho que
gostava até dos filhos. Mas reclamava do Omar,
dizia que o filho tinha sufocado a Zana.” Senti
suas mãos no meu braço; estavam suadas, frias.
Ela me enlaçou, beijou meu rosto e abaixou a
cabeça. Murmurou que gostava tanto de
Yaqub... Desde o tempo em que brincavam,
passeavam. Omar ficava enciumado quando via
os dois juntos, no quarto, logo que o irmão
voltou do Líbano. “Com o Omar eu não

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DOIS IRMÃOS
queria... Uma noite ele entrou no meu quarto,
fazendo aquela algazarra, bêbado,
abrutalhado... Ele me agarrou com força de
homem. Nunca me pediu perdão.” (Dois Irmãos,
2017, p. 180)

A esta altura, Zana já misturava as lembranças do passado com os


acontecimentos do presente, recuperando mentalmente a imagem do pai
falecido, a morte do marido e ausência do filho caçula. Estava arrependida
de ter escrito a carta a Yaqub, a quem, agora, chamava de intratável. O filho
mais velho tornara-se o irmão perverso.
Certa vez, o Nael, o narrador, ao chegar em casa não encontrou a mãe
na cozinha. Ao procurá-la pelo imóvel, deparou-se com ela enrolada na rede
de Omar e já sem vida. Domingas, a pedido do narrador, foi enterrada no
jazigo da família ao lado de Halim.
No décimo capítulo, a casa libanesa encontra-se vazia e envelhecida.
Rânia havia comprado um bangalô no Norte de Manaus e queria que a mãe
fosse morar com ela. Zana recusava-se, dizendo que nem morta deixaria a
sua casa:
Foi nessa época que Zana levou a primeira
queda e teve que engessar o braço e a clavícula
esquerda. Mesmo engessada, ela estendia a
roupa de Halim no varal, punha os sapatos dele
no piso do alpendre, o suspensório e a bengala
no sofá cinzento. Fazia isso nos dias
ensolarados, ao entardecer recolhia tudo e
sentava à mesa, no lado direito da cabeceira
onde o filho almoçava. À noite, ela chamava
Domingas, eu me assustava, ia correndo até a
sala e a encontrava de pé, perto do oratório, o
terço pendurado na mão direita.
Rânia não suportava mais ver a mãe conviver
com fantasmas. Ficava entalada só de pensar
na ameaça de Rochiram e desconfiava que cedo
ou tarde teria de vender a casa para pagar a
dívida. Queria morar longe dali, longe também

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MILTON HATOUM
do bulício no centro de Manaus. (Dois Irmãos,
2017, p. 184, 185)

Restavam na casa apenas o narrador e Zana, que perguntava,


insistentemente, se Omar não iria voltar:

Aos poucos, Zana me contou coisas que talvez


poucos soubessem: o nome dela de batismo em
Biblos era Zeina. No Brasil, ainda criança, ela
aprendeu português e mudou de nome. Eu soube
mais de Galib e Halim, e também de minha mãe.
Domingas mudou muito depois que engravidou.
Passava horas compenetrada. “Só vendo...
bastante com ela mesma, até que Halim, de
mansinho, abria a porta do quarto e
perguntava: ‘em que estás pensando?’, ‘Hã?
Eu?’. Tua mãe respondia assim, assustada... Ela
amolava uma faquinha e pegava um pedaço de
pau para fazer aqueles bichinhos. Halim me
dizia: ‘Essa cunhantã... Por Deus, alguma coisa
aconteceu com ela...’. Como a tua mãe deu
trabalho no orfanato! Era rebelde, queria voltar
para aquela aldeia, no rio dela... Ia crescer
sozinha, lá no fim do mundo? Então a irmã
Damasceno me ofereceu a pequena, eu aceitei.
Coitado do Halim! Não queria ninguém aqui,
nem sombras na casa. Vivia dizendo: ‘Deve ser
penoso criar o filho dos outros, um filho de
ninguém’. Quando tu nasceste, eu perguntei: E
agora, nós vamos aturar mais um filho de
ninguém? Halim se aborreceu, disse que tu eras
alguém, filho da casa...”
Ela falava aos pedaços, e ela mesma fazia as
perguntas: “No tapete? Se namoramos no
tapete onde ele rezava? Ora, mil vezes... Tu não
espiavas a gente, rapaz?”. Eu me arrepiava

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DOIS IRMÃOS
quando ela dizia isso. Eles me vigiavam,
percebiam a minha presença? Talvez não se
incomodassem, nem tivessem vergonha. Deviam
rir de mim. Filho de ninguém! Zana esqueceu a
Domingas rebelde e evocou a outra, a
empregada e cozinheira de muitos anos, a
cúmplice no momento das orações, a mulher
minha mãe. (Dois Irmãos, 2017, p. 186, 187)

Rochiram propôs a Rânia a troca da dívida dos gêmeos pela propriedade


da casa, acrescentando que Yaqub estava de acordo com essa negociação.
Alguns dias depois, a mudança de Zana para o bangalô de Rânia foi inevitável.
Nael passou a morar sozinho na casa. Certa vez, Rânia pediu ao
narrador que tomasse conta de Zana. Durante a tarefa, ele se distraiu e,
quando olhou para o quintal da casa, Zana estava dependurando as roupas
do marido no varal, arejando o seu quarto e suplicando a Deus que Omar
voltasse. Ela seguiu até o galinheiro e, logo depois, foi encontrada pelo
narrador deitada no chão, coberta com as roupas de Halim. Zana foi retirada
da casa em meio a gritos, dizendo que não sairia dali e não venderia a sua
casa, pois o filho iria voltar:

Depois eu soube da hemorragia interna, e ainda


a visitei numa clínica no bairro de Rânia. Ela
me reconheceu, ficou me olhando. Então soprou
nomes e palavras em árabe que eu conhecia: a
vida, Halim, meus filhos, Omar. Notei no seu
rosto o esforço, a força para murmurar uma
frase em português, como se a partir daquele
momento apenas a língua materna fosse
sobreviver. Mas quando Zana procurou minhas
mãos, conseguiu balbuciar: Nael... querido...
(Dois Irmãos, 2017, p. 189)
No décimo primeiro capítulo, Zana morre e a casa é transformada em
uma loja de quinquilharias do indiano. Na passagem lateral da casa, um
quarto fora reservado como moradia para Nael a pedido de Yaqub.
Rânia ficou sabendo de que, no dia da última briga entre os gêmeos,

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MILTON HATOUM
Omar fora ao hospital para espancar o irmão. De lá ele foi expulso e fugiu,
passando a viver escondido em pousadas e pensões, uma vez que o irmão
mais velho empreendera uma verdadeira caçada policial a Omar.
Rânia começou a receber diversas cobranças dos gastos que o Caçula
realizava em suas farras. Ela não podia mais pagar todas as dívidas de Omar,
pois sabia que deveria poupar dinheiro para o que viria posteriormente.
No último capítulo, Nael relata que Rânia, durante a hora de almoço,
saía da loja a procura de Omar. Numa tarde de abril, ela o avistou magro,
amarelo, cabeludo e barbudo, mas não conseguiu se aproximar dele.
Repentinamente, tiros foram disparados e pessoas correram em fuga. Eram
soldados que empreendiam uma caçada a Omar, o qual foi preso, enquanto
Rânia discutia com os policiais e era repelida brutalmente por eles.
Omar foi condenado a dois anos e meio de detenção, sendo um
agravante à sentença sua amizade com Laval. Rânia escreveu a Yaqub,
recriminando-o pela perseguição empreendida ao Caçula e dizendo-lhe que
a vingança era muito mais patética do que o perdão. Yaqub manteve-se em
silêncio.
Omar foi liberado do presídio antes de completar a pena. Rânia tentou
se aproximar dele, mas ele fugia de todos. Nael, o narrador, chegou a ver
Omar mais uma vez:

Naquela época, quando Omar saiu do presídio,


eu ainda o vi num fim de tarde. Foi o nosso
último encontro.
O aguaceiro era tão intenso que a cidade fechou
suas portas e janelas bem antes do anoitecer.
Lembro-me de que estava ansioso naquela tarde
de meio-céu. Eu acabara de dar minha primeira
aula no liceu onde havia estudado e vim a pé
para cá, sob a chuva, observando as valetas que
dragavam o lixo, os leprosos amontoados,
encolhidos debaixo dos oitizeiros. Olhava com
assombro e tristeza a cidade que se mutilava e
crescia ao mesmo tempo, afastada do porto e do
rio, irreconciliável com o seu passado.
Um relâmpago havia provocado um

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DOIS IRMÃOS
curto-circuito na Casa Rochiram. O bazar
indiano tornara-se um breu na tarde sombria,
coberta de nuvens baixas e pesadas. Entrei no
meu quarto, este mesmo quarto nos fundos da
casa de outrora. Trouxera para perto de mim o
bestiário esculpido por minha mãe. Era tudo o
que restara dela, do trabalho que lhe dava
prazer: os únicos gestos que lhe devolviam
durante a noite a dignidade que ela perdia
durante o dia. Assim pensava ao observar e
manusear esses bichinhos de pau-rainha, que
antes me pareciam apenas miniaturas imitadas
da natureza. Agora meu olhar os vê como seres
estranhos.
Eu tinha começado a reunir, pela primeira vez,
os escritos de Antenor Laval, e a anotar minhas
conversas com Halim. Passei parte da tarde
com as palavras do poeta inédito e a voz do
amante de Zana. Ia de um para o outro, e essa
alternância — o jogo de lembranças e
esquecimentos — me dava prazer.
O toró que cobria Manaus, trégua na quentura
do equador, me aliviava. Frutas e folhas
boiavam nas poças que cercavam a porta do
meu quarto. Nos fundos, o capim crescera, e a
cerca de pau podre, cheia de buracos, não era
mais uma fronteira com o cortiço. Desde a
partida de Zana eu havia deixado ao furor do
sol e da chuva o pouco que restara das árvores
e trepadeiras. Zelar por essa natureza
significava uma submissão ao passado, a um
tempo que morria dentro de mim.
Ainda chovia, com trovoadas, quando Omar
invadiu o meu refúgio. Aproximou-se do meu
quarto devagar, um vulto. Avançou mais um
pouco e estacou bem perto da velha seringueira,

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MILTON HATOUM
diminuído pela grandeza da árvore. Não pude
ver com nitidez o seu rosto. Ele ergueu a cabeça
para a copa que cobria o quintal. Depois virou
o corpo, olhou para trás: não havia mais
alpendre, a rede vermelha não o esperava. Um
muro alto e sólido separava o meu canto da
Casa Rochiram. Ele ousou e veio avançando, os
pés descalços no aguaçal. Um homem de
meia-idade, o Caçula. E já quase velho. Ele me
encarou. Eu esperei. Queria que ele confessasse
a desonra, a humilhação. Uma palavra bastava,
uma só. O perdão.
Omar titubeou. Olhou para mim, emudecido.
Assim ficou por um tempo, o olhar cortando a
chuva e a janela, para além de qualquer ângulo
ou ponto fixo. Era um olhar à deriva. Depois
recuou lentamente, deu as costas e foi embora.
(Dois irmãos, 2017, p. 196 a 198)

3. ANÁLISE DA OBRA DOIS IRMÃOS

“Só o tempo transforma nossos sentimentos em palavras mais verdadeiras,


disse Halim durante uma conversa.” (Dois Irmãos, 2017, p. 183)

3.1 NAEL – O NARRADOR E A MEMÓRIA

Nael, o narrador de Dois irmãos, vale-se da escrita da história de


família de Halim para encontrar sua própria identidade, restaurando, por
meio da memória, os acontecimentos que presenciou e, principalmente, os
que lhe foram contados por Halim, Domingas e Zana.
A narrativa se caracteriza pelo relato fragmentado, em que o narrador
rompe a linearidade cronológica, valendo-se da memória que tem,
principalmente dos fatos relatados nas sinuosas conversas com Halim.

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DOIS IRMÃOS
Ao longo de doze capítulos, a voz do narrador, um homem solitário
e refugiado na escrita de sua obra, nostalgicamente, recompõe, depois de
trinta anos, cenas de uma infância vivida em uma casa à qual ele, na verdade,
não pertencia oficialmente, colocado à margem da família de Halim,
vivendo no quartinho dos fundos, juntamente com a mãe indígena
Domingas, a qual esconde, aparentemente, um segredo.
Adiar a escrita por trinta anos pode indicar que o distanciamento dos
fatos altere ou modifique os entendimentos que Nael constrói da realidade
que viveu, e a compreensão do passado fique comprometida, principalmente
porque o Nael menino é muito diferente do Nael narrador adulto, o qual já
teve experiências ao longo da vida, além de ser um professor que tem
habilidades com a escrita e a criatividade.
No entanto, algo não se altera nessas décadas: Nael ainda é o morador
do mesmo quartinho dos fundos da extinta casa libanesa, portanto, sua
condição de excluído, de pária social, que tenta resgatar o tempo passado,
para encontrar o equilíbrio sonhado, se mantém, o que pode ser detectado
em algumas das frequentes digressões presentes no livro.
Assim, Nael é um narrador memorialista que tem a pretensa intenção
de relatar uma versão mais ampla dos acontecimentos, mas, na verdade,
mais importante do que contar a história da família libanesa, ele deseja
construir-se como sujeito, buscando, na identificação de quem era seu pai,
a sua identidade e o encontro de si mesmo. No entanto, para descobrir sua
origem, o narrador precisa partir da história da rivalidade dos gêmeos, Yaqub
e Omar, dois polos narrativos que representam, alternadamente, o bem e o
mal.
Além de narrador, Nael é também personagem dessa história, pois
ele, no seu papel de ajudante da casa, participa, silenciosamente, de tudo o
que acontece, ouve e vê os atritos familiares, até começar a perceber que um
dos gêmeos poderia ser seu pai. De certa maneira, Nael prefere Yaqub como
pai, mas a dúvida permanece e ele teme que seu pai seja Omar.
Considerando-se que Nael reconstrói a história em um tempo muito
posterior ao momento em que sucederam os acontecimentos e, além disso,
é parte interessada no que narra, o relato torna-se parcial e motivo para
duvidarmos se tudo o que ele conta está vinculado à fidelidade dos fatos ou
manchado pelas sombras da memória e da parte interessada do narrador.
Assim, mais do que o desejo de contar a história da família libanesa

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MILTON HATOUM
em Manaus, Nael vale-se da escrita para reviver e revirar o passado e suas
experiências traumáticas. Ele, o filho bastardo de um dos dois irmãos,
emprega uma linguagem representativa da dor do abandono, da rejeição, da
marginalização espacial e social, das cicatrizes que tem na alma pelo
convívio com formas diversas de violência traumatizante:

Naquela época, tentei, em vão, escrever outras


linhas. Mas as palavras parecem esperar a
morte e o esquecimento; permanecem
soterradas, petrificadas, em estado latente, para
depois, em lenta combustão, acenderem em nós
o desejo de contar passagens que o tempo
dissipou. E o tempo, que nos faz esquecer,
também é cúmplice delas. (Dois Irmãos, 2017,
p. 183)

Nael é o narrador-protagonista que manipula não só uma visão parcial


dos fatos, a partir de seus próprios pensamentos, sentimentos e percepções,
como também da reunião de outras vozes narrativas fragmentadas ao longo
do livro, numa espécie de caleidoscópio narrativo, que compõem os dados
que ele obteve para gerar seu relato.
Esse narrador ensimesmado constrói seu texto a partir da memória,
uma justificativa factível para que o comando do relato não obedeça ao
tempo cronológico linear. Assim, por meio de flashbacks frequentes, as
histórias da família em ruína, da cidade de Manaus, da transformação dos
espaços, das mudanças do cotidiano, do espaço amazonense entrelaçado
com a cultura libanesa e a de outros imigrantes, das alterações sociais
provocadas pelo avanço da industrialização nos anos 60 no Brasil e do
regime militar vão sendo o motor da narrativa.
Nael estrutura sua narrativa em partes meio desconexas que vão se
agrupando na mente do leitor que as ordena, aparentando uma certa
confusão mental do narrador, triste e inseguro, mas que, na verdade, traz ao
livro uma verossimilhança com o que ocorre com a memória de qualquer
indivíduo: lembrar dos fatos em ordem de importância, independentemente
da cronologia deles.

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DOIS IRMÃOS
É por meio dessa recuperação mental que Nael desenvolve diversas
interrogações diretas, mas seguidas de respostas iniciadas por conectivos
de dúvida, ou expressões que marcam um narrador ainda titubeante:

Eu fui incumbido de vasculhar o centro da


cidade; entrei nas barracas espalhadas no porto
da praça dos Remédios, nos pequenos
restaurantes encafuados no alto dos barrancos,
nos botecos do labirinto da Cidade Flutuante,
onde ele costumava papear com um compadre.
Ninguém o avistara, e mesmo se eu o tivesse
encontrado, não teria dito nada. Na extremidade
do porto da Escadaria, amarrado a uma canoa,
latia um cachorro, e babava, o vira-lata, de
tanta agonia; dessa vez eu ri de verdade, pois a
visão do cachorro amarrado me remetia ao
cativo de cara inflada. Toda valentia é
vulnerável. Halim, tão sereno, sabia disso?
Bateu firme no rosto do filho e foi embora. Só
voltou para casa dois dias depois. Durante as
duas noites de cativeiro, ouvíamos os urros de
Omar, o ruído dos pontapés inúteis no cofre
maciço, o tilintar grave das argolas de ferro.
Bastava um maçarico para libertá-lo, mas
ninguém pensou nisso, muito menos eu, que
desconhecia a existência dos maçaricos e só
pensava, vagamente, em vingança. Mas vingar-
me de quem? (Dois Irmãos, 2017, p. 68, 69)

Nael também se apresenta, em alguns momentos, como um narrador


onisciente, com acesso livre aos pensamentos e sentimentos de outras
personagens, compondo sua história a partir dos fragmentos da sua memória
das vivências de outras personagens, como Halim, Domingas e Zana.
O narrador faz das palavras dos outros as suas palavras, aplicando,
dessa maneira, mais um filtro à realidade de diversos fatos, dos quais Nael
não foi testemunha, o que ocorre, logicamente, apenas após o seu nascimento,

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MILTON HATOUM
ou melhor, a partir da possibilidade de ele ter percepções em relação aos
acontecimentos que vivencia e que resultarão em uma reflexão silenciosa.
As lembranças de Nael vinculam-se ao espaço solitário do quartinho
dos fundos, onde ele sempre viveu e, talvez, já adulto, permaneça nesse
espaço por não querer abandonar o passado. Assim, a primeira cena do
romance, que podemos considerar como o prefácio da obra, também está
relacionada ao passado. Nela, percebemos a amargura de Nael e a
inexistência de afeto familiar entre ele e Zana, matriarca da casa, com quem
Nael é impiedoso ao se recusar a olhar para a avó à beira da morte.
A narrativa inicia-se pela morte de Zana, que desencadeia as
reminiscências de Nael sobre o ódio, leit motiv do romance, e que será
revivido pelas memórias do narrador, o qual nunca se conforma em ter sido
tratado com indiferença humilhante, principalmente por parte de Zana:

“Sei que um dia ele vai voltar”, Zana me dizia


sem olhar para mim, talvez sem sentir a minha
presença, o rosto que fora tão belo agora
sombrio, abatido. (Dois Irmãos, 2017, p. 9)
[...]
Na velhice que poderia ter sido menos
melancólica, ela repetiu isso várias vezes a
Domingas, sua escrava fiel, e a mim, sem me
olhar, sem se importar com a minha presença.
Na verdade, para Zana eu só existia como rastro
dos filhos dela. (Dois Irmãos, 2017, p. 28)

Nael discorre a respeito de uma família destruída, revivendo seus


pesadelos, e de outras personagens, buscando, por meio de experiências
externas, construir sua própria história para constituir a sua identidade.
Consciente de que um dos gêmeos era seu pai, o narrador tem clara
sua condição de bastardo e agregado da família libanesa. Nael é filho da
indígena Domingas, a qual, ainda menina, foi trazida por uma freira
“Irmãzinha de Jesus”, até Zana, em troca de alguns donativos e dinheiro.
A mãe de Nael era uma cunhantã, doada de um orfanato para,
eufemisticamente, ajudar Zana nos trabalhos da casa libanesa. Ao se
recordar do orfanato de sua mãe, o narrador descreve-o como uma espécie

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de cativeiro, ou até mesmo de uma senzala, em que os tratamentos
dispensados eram cruéis:

As noites que ela dormiu no orfanato, as


orações que tinha de decorar, e ai de quem se
esquecesse de uma reza, do nome de uma santa.
Uns dois anos ali, aprendendo a ler e a escrever,
rezando de manhãzinha e ao anoitecer,
limpando os banheiros e o refeitório, costurando
e bordando para as quermesses das missões. As
noites eram mais tristes, as internas não podiam
se aproximar das janelas, tinham de ficar
caladas, deitadas na escuridão; às oito a irmã
Damasceno abria a porta, atravessava o
dormitório, rondava as camas, parava perto de
cada menina. O corpo da religiosa crescia, uma
palmatória balançava na mão dela. Irmã
Damasceno era alta, carrancuda, toda de preto,
amedrontava a todos. Domingas fechava os
olhos e fingia dormir, e se lembrava do pai e do
irmão. Chorava quando se lembrava do pai, dos
bichinhos de madeira que fazia para ela, das
cantigas que cantava para os filhos. E chorava
de raiva. Nunca mais ia ver o irmão, nunca pôde
voltar para Jurubaxi. As freiras não deixavam,
ninguém podia sair do orfanato. As irmãs
vigiavam o tempo todo. Espiava as alunas da
Escola Normal passeando na praça, livres, em
bandos... namorando. Dava vontade de fugir.
Duas internas, as mais velhas, conseguiram
escapar de madrugada: pularam o muro dos
fundos, caíram no beco Simón Bolívar e
sumiram no matagal. Foram corajosas.
Domingas também pensou em fugir, mas as
irmãs perceberam, Deus vai castigar, diziam. O
fedor dos banheiros, o cheiro de creolina, das

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MILTON HATOUM
roupas suadas e gosmentas das religiosas.
Domingas não aguentava mais. Um dia a irmã
Damasceno ordenou: que tomasse um banho de
verdade, lavasse a cabeça com sabão de coco,
cortasse as unhas dos pés e das mãos. Tinha que
ficar limpa e cheirosa! (Dois Irmãos, 2017, p.
55, 56)

Assim, Nael é filho da empregada da casa de Halim e Zana,


imigrantes árabes e pais dos gêmeos Omar e Yaqub, mas ele não sente sua
identidade vinculada à tradição indígena e, muito menos, à influência
libanesa. Pesa-lhe se sentir apenas como mais um empregado de Zana,
menino de recados dela, atormentado por ordens e tarefas que lhe são
impostas.
Por outro lado, Nael é o agregado da família, situação que lhe permite
transitar pela casa, ouvir segredos, bisbilhotar intimidades que comporão
sua narrativa. Desse modo, é mister para Nael libertar-se das humilhações
das quais é, direta ou indiretamente, vítima, e o caminho para alcançar êxito
é a dedicação aos estudos, tal qual o fez Yaqub.
A configuração da família libanesa, nesse sentido, corresponde ao
perfil familiar brasileiro da época, do qual a estrutura escravocrata dos
séculos passados ainda se fazia presente, disfarçada na simulação da
agregação e do favor.
No entanto, essa condição de subalterno estimula a resistência do
narrador, que emprega a literatura como instrumento de combate, dando voz
aos rebaixados pela sociedade, como Domingas, os peixeiros e os populares
de Manaus. Desse modo, Nael é solidário aos marginalizados sociais, pois
ele também experimenta o sentimento de exclusão, já que não encontra suas
raízes identitárias árabes ou indígenas.
Sua miscigenação, que pode ser associada a uma forma de
representação do homem brasileiro híbrido, equilibra-se, portanto, entre o
referencial materno indígena e o paterno libanês. Destaque-se que Milton
Hatoum distancia-se dos estereótipos indígenas românticos ao trazer
Domingas para a vida de agregada da família de Halim, mas reforça o
vínculo dela com as raízes e as tradições de sua tribo.
Embora durante uma viagem que o narrador faz com a mãe para
conhecer as origens dela, ele não se identifique como fruto da cultura
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indígena, é por meio desse passeio que Nael consegue perceber a
importância da origem familiar e, portanto, parte para a busca incessante
do encontro de sua identidade.
Ser filho de uma cunhatã expressa, por um lado, a negação de Nael
de sua origem, já que reforça nele a condição de vítima da sociedade
segregacionista, e, por outro lado, a origem árabe lhe pesa a perspectiva de
bastardo.
Há um momento em que as duas origens de Nael se aproximam:
quando Domingas morre, ele pede que a mãe seja sepultada ao lado do avô
Halim. O imigrante libanês e a mãe indígena, ambos distantes de suas terras
natais, ficam próximos no momento que iguala todo ser humano: a morte.
O nome Nael lhe foi dado como uma homenagem ao pai de Halim,
portanto bisavô do narrador. De acordo com Safa Jubran, professora da
Universidade de São Paulo no Departamento de Letras Orientais, o nome
Nael vincula-se ao verbo naala, que significa obter ou pegar, verbos que
podem ser associados ao desejo do narrador de obter respostas para “pegar”
sua origem paterna.
Embora Nael seja alvo de preconceitos sociais e raciais, além de
carregar o trauma de não ter sido reconhecido pelo pai, ele se revela
incansável na busca de respostas para o silêncio de Domingas quanto a quem
seria seu pai: Omar, o mimado e farrista, que ignorou, desprezou e maltratou
Nael, ou Yaqub, o gêmeo engenheiro, bem-sucedido, que tratava o narrador
com carinho, mas era incapaz de perdoar?
Independentemente de Nael não descobrir qual dos gêmeos seria seu
pai, percebe-se que ele renuncia à elucidação do mistério da origem de sua
identidade, ao perceber que tanto Omar quanto Yaqub pautaram suas vidas
em ódio, rancor e vingança, sendo gêmeos idênticos em luta constante pela
conquista do mesmo espaço no coração da mãe, Zana, e também no de
Lívia.
Além disso, destaque-se a possibilidade de Nael ser fruto de um
estupro, uma vez que Omar invadiu o quarto de Domingas e a tomou
sexualmente à força, talvez motivado pelos ciúmes que tinha da intimidade
dela com Yaqub. Justamente essas intimidades que a mãe tem com Yaqub,
e o tratamento que ele dispensa ao narrador, também levam a uma suspeita
de que ele pudesse ser o pai de Nael. E por que não seria Halim seu pai, já
que dá atenção, carinho e faz conidência a Nael?

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MILTON HATOUM
Deixemos essa suspeita sobre Halim de lado e nos fixemos no que
Nael desconfia: um dos gêmeos é seu pai. O narrador apresenta alguns
traços que podem ser vinculados aos dois gêmeos. Yaqub presenteia Nael
com livros, estimulando-o na busca pelo conhecimento, mas é na mesma
escola de Omar, o “Galinheiro dos vândalos”, que o narrador tem contato
com a importância da literatura, por meio do professor Laval, amigo de
Omar; a relação de Yaqub com Domingas tem um resquício incestuoso, uma
vez que ela praticamente o criou, tal qual a relação entre Omar e Zana e o
afeto incestuoso que Nael também nutre por sua tia Rânia.
Assim, desconsiderando-se outras aproximações que podem ser
estabelecidas entre Nael e os gêmeos, percebe-se o reflexo de Omar e Yaqub
na formação do narrador, o qual finda por se libertar da expectativa de
descobrir qual deles seria seu pai, ao perceber que não poderia se espelhar
no comportamento de qualquer um deles, uma vez que não é um
desequilibrado violento como Omar, nem o homem de postura
aparentemente ilibada, que age pelas costas do irmão e da família, como é
Yaqub.
Resta a Nael o afeto de Halim, o qual desabafava suas amarguras com
o neto e nele sente confiança para fazê-lo. Essa relação de cumplicidade
que o narrador tem com o avô é inexistente nas demais personagens do
romance.
Para um neto bastardo, não reconhecido como da família, que vive na
fronteira entre a casa e o quartinho dos fundos, essa intimidade lhe dá uma
certeza: fosse quem fosse seu pai, Nael era um membro excluído da família
por sua origem duvidosa. Restava-lhe o desabafo por meio da escrita, a qual,
indiretamente, foi estimulada por Halim quando lhe presenteou com uma
caneta tinteiro, como se dissesse para o narrador, no futuro, registrar o
passado perdido no tempo: “O futuro, essa falácia que persiste” (Dois
Irmãos, 2017, 196).

3.2 ESPAÇO E TEMPO

O período histórico do enredo do romance Dois irmãos percorre o


final do Ciclo da Borracha, a Segunda Guerra Mundial, a tomada da cidade
de Manaus pelo regime militar, com o Golpe de 1964, e o vislumbre com a
criação da Zona Franca de Manaus, em 1967.

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Em Dois irmãos, a chegada da família libanesa ocorre no início do
século XX, por volta de 1914, ocasião em que Galib inaugurou o restaurante
Biblos, e se prolonga até pouco tempo depois do golpe militar em 1964.
Desde a fase da borracha até a implantação da Zona Franca de
Manaus, o desenvolvimento da capital manauara colaborou paradoxalmente
com as diferenças socioeconômicas da população amazonense, que, em
grande parte, migrou do interior para a capital em busca de uma espécie de
ouro perdido.
Manaus encontrava-se repleta de trabalhadores esperançosos:
indígenas, seringueiros, caboclos, imigrantes de todos os espaços,
principalmente os sírio-libaneses, em busca de melhores condições de vida,
todos colaborando para a constituição de um painel multicultural na capital
amazonense.
Os sírios e os libaneses, por exemplo, instalam-se em Manaus,
fugindo da perseguição religiosa e do empobrecimento, trazendo para a
cidade uma ampliação da diversidade cultural, incluindo perspectivas
históricas, literárias, religiosas, musicais e gastronômicas no local. Depois
de se instalarem em quartos das vilas do centro da cidade, os mascates
libaneses mudaram-se para as proximidades do Mercado Central, onde
abriram armarinhos, lojas de tapeçarias, tecidos e rendas em prédios que
serviam tanto para o comércio quanto para a moradia.
Em Dois Irmãos, assim que Galib inaugura o restaurante, no andar
térreo da mesma edificação onde morava, o Biblos passa a ser uma espécie
de ponto de encontro de imigrantes e moradores locais:

Ele mesmo, o viúvo Galib, cozinhava, ajudava


a servir e cultivava a horta, cobrindo-a com um
véu de tule para evitar o sol abrasador. No
Mercado Municipal, escolhia uma pescada, um
tucunaré ou um matrinxã, recheava-o com
farofa e azeitonas, assava-o no forno de lenha e
servia-o com molho de gergelim. Entrava na
sala do restaurante com a bandeja equilibrada
na palma da mão esquerda; a outra mão
enlaçava a cintura de sua filha Zana. Iam de
mesa em mesa e Zana oferecia guaraná, água

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MILTON HATOUM
gasosa, vinho. O pai conversava em português
com os clientes do restaurante: mascates,
comandantes de embarcação, regatões,
trabalhadores do Manaus Harbour. Desde a
inauguração, o Biblos foi um ponto de encontro
de imigrantes libaneses, sírios e judeus
marroquinos que moravam na praça Nossa
Senhora dos Remédios e nos quarteirões que a
rodeavam. Falavam português misturado com
árabe, francês e espanhol, e dessa algaravia
surgiam histórias que se cruzavam, vidas em
trânsito, um vaivém de vozes que contavam um
pouco de tudo: um naufrágio, a febre negra num
povoado do rio Purus, uma trapaça, um incesto,
lembranças remotas e o mais recente: uma dor
ainda viva, uma paixão ainda acesa, a perda
coberta de luto, a esperança de que os caloteiros
saldassem as dívidas. Comiam, bebiam,
fumavam, e as vozes prolongavam o ritual,
adiando a sesta. (Dois Irmãos, 2017, p. 36)

De acordo com Sombra (1996, p. 91), a paisagem urbana de Manaus


alterava-se, e a cidade distanciava-se de suas características indígenas,
aterrando os igarapés para a construção de avenidas, sobrados, palacetes,
belos hotéis, o pomposo Teatro Amazonas, o Porto Flutuante de Manaus, a
Alfândega, a Igreja Nossa Senhora dos Remédios, a biblioteca pública, o
Palácio Rio Negro, o Colégio Amazonense D. Pedro II.
Muitos arquitetos, urbanistas e paisagistas iniciaram a execução de
um novo plano visual para a cidade, influenciados pela arquitetura europeia,
entre os estilos neoclássico e art nouveau. No meio da selva, Manaus
ganhava luz elétrica, sistema telefônico, ruas, calçadas, galerias fluviais,
tratamento de água e esgoto, bondes elétricos, avenidas e praças urbanizadas
e o primeiro porto flutuante brasileiro.
Culturalmente, os hábitos também sofriam alterações, e os bens de
consumo e a forma de sociabilidade se modificavam, espelhando os saraus
europeus em família (semelhantes às reuniões que ocorriam na casa de

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Halim e Zana ou dos Reinoso em Dois Irmãos), os cabarés, o cinema, e o
Teatro Amazonas. No entanto, a exclusão social já se fazia notar.
Com o início da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), em
decorrência de um acordo entre Getúlio Vargas e Franklin Roosevelt, o
Brasil se comprometeu com auxílio aos países aliados, Estados Unidos,
Inglaterra e França, com o fornecimento de, no mínimo, 5.000 toneladas de
borracha anuais, a fim de se substituir a produção da Malásia, a essa altura
sob o domínio japonês.
O empobrecimento econômico manauara, então, se registrava nas
carroças e nos raros automóveis que circulavam na cidade, que sofria com
falta de eletricidade, alimentos que escasseavam e prática comercial, que se
dava a partir de trocas de produtos. Assim, o mercado norte-americano
passou a ser indispensável para a economia de Manaus, como destaca
Milton Hatoum em Dois Irmãos:

(...) Fora assim durante os anos da guerra:


Manaus às escuras, seus moradores
acotovelando-se diante dos açougues e
empórios, disputando um naco de carne, um
pacote de arroz, feijão, sal ou café. Havia
racionamento de energia, e um ovo valia ouro.
Zana e Domingas acordavam de madrugada, a
empregada esperava o carvoeiro, a patroa ia ao
Mercado Adolpho Lisboa e depois as duas
passavam a ferro, preparavam a massa do pão,
cozinhavam. Quando tinha sorte, Halim
comprava carne enlatada e farinha de trigo que
os aviões norte-americanos traziam para a
Amazônia. Às vezes, trocava víveres por tecido
encalhado: morim ou algodão esgarçado, renda
encardida, essas coisas. (Dois irmãos, 2017, p.
18)

No entanto, Manaus começa a enfrentar problemas com o término da


Segunda Guerra Mundial, e os programas para o desenvolvimento da
Amazônia precisavam alterar a exclusividade extrativista da borracha para
o desenvolvimento das indústrias e da mineração.
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MILTON HATOUM
A “Paris dos trópicos”, ou “Paris das selvas”, inicia seu declínio, pois
a riqueza decorrente da extração do látex diminui, e, consequentemente,
grande parte do capital estrangeiro e dos barões da borracha começa a
desaparecer. Eis Manaus empobrecida e com a economia estagnada.
Um dos símbolos dessa decadência manauara é a Cidade Flutuante,
composta de ribeirinhos que viam Manaus repleta de grandes dificuldades
no campo de trabalho, na alimentação de acesso escasso e nas submoradias.
Formada por casas de palafitas, barracas e palhoças, os habitantes da Cidade
Flutuante dependiam das águas do rio e dos igarapés para sobreviverem. A
decadência da belle époque manauara exigiu uma forte mudança no modo
de vida até então estabilizado pelo Ciclo da Borracha.
Desta forma se configurava Manaus, até a derrocada do ciclo da
borracha que abala profundamente sua economia e os costumes locais, como
relata Mello (1984, p. 27):

Era o fim da grande vida. Do dia para a noite,


se foram acabando o luxo, as ostentações, os
esbanjamentos e as opulências sustentadas pelo
trabalho praticamente escravo do caboclo
seringueiro lá nas brenhas da selva. Cessou
bruscamente a construção dos grandes
sobrados portugueses, dos palacetes
afrancesados, dos edifícios públicos suntuosos.
Não se mandou mais buscar mármores e
azulejos na Europa, ninguém acendia mais
charutos com cédulas estrangeiras.

Entre 1950 e o início dos anos de 1960, Manaus vive uma fase de
economia estagnada, ficando à deriva governamental, crise que fez empresas
falirem, a fome se instalar e a saída pelo porto se intensificar. Por outro
lado, a cultura no país experimentava transformações com sistemas de rádio,
a chegada da televisão, o cinema hollywoodiano, os musicais e os bailes de
carnaval.
Por outro lado, Manaus era mais um aglomerado urbano, com cerca
de 100 mil habitantes, do que uma cidade grande e desenvolvida como já o
era São Paulo, sendo o crescimento desordenado de ambas as cidades um

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dos causadores das condições de vida desigual. Nael, o narrador de Dois
Irmãos, por exemplo, é consciente de ser um excluído nessa sociedade, pois
lhe fora reservado um lugar secundário nela, representado pelo quartinho
dos fundos da casa libanesa onde residia:

Depois da nossa viagem de barco Halim sugeriu


que eu ocupasse o outro quartinho dos fundos.
Disse a Domingas que eu já passara da idade
de dormir com a mãe no mesmo quarto, que ela
devia se desgarrar um pouco de mim. Eu mesmo
ajudei a limpar e a pintar o quartinho. Desde
então, foi o meu abrigo, o lugar que me pertence
neste quintal. Agora só escutava o eco da
canção que minha mãe cantava nas noites de
insônia. Às vezes, quando eu estava estudando
debruçado sobre uma mesinha, via o rosto de
Domingas no vão da janela, o cabelo liso, de
cobre, sobre os ombros morenos, os olhos
dirigidos para mim, como se me pedisse para
dormir com ela, na mesma rede, nós dois
abraçados. Quando eu saía à noite pela cerca
dos fundos, ela me esperava, alerta, tal uma
sentinela preocupada com alguma ameaça
noturna. Ela temia que o meu destino confluísse
para o de Omar, como dois rios indômitos e
turbulentos: águas sem nenhum remanso. (Dois
Irmãos, 2017, p. 23, 24)

O final da década de 1950, no Brasil, marca-se pela euforia de


crescimento estimulada, principalmente por Juscelino Kubitschek e seu
Plano Nacional de Desenvolvimento, Cinquenta anos em cinco, com o
propósito de alavancar o país ao patamar de nação desenvolvida. Mas, em
Manaus a situação era diferente: modernizada tardiamente a cidade sofria
com a falta de políticas públicas nacionais e sobrevivia à sombra das
grandezas naturais do rio e da floresta.
Em abril de 1964, Manaus conhece o medo e o clima de horror do
regime militar, que impõe uma nova ordem política ao país. As
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MILTON HATOUM
manifestações em contrário à nova forma de governo brasileiro encontram
alguns ativistas em prol da liberdade, sendo, na obra Dois Irmãos, o
professor Laval um símbolo do inconformismo com o estado limitador da
censura imposta aos brasileiros.
A chegada dos militares a Manaus alterou drasticamente o cenário da
cidade, transformando-a num local repleto de repressão e medo:

Ele sabia que Manaus se tornara uma cidade


ocupada. As escolas e os cinemas tinham sido
fechados, lanchas da Marinha patrulhavam a
baía do Negro, e as estações de rádio
transmitiam comunicados do Comando Militar
da Amazônia. Rânia teve que fechar a loja
porque a greve dos portuários terminara num
confronto com a polícia do Exército. Halim me
aconselhou a não mencionar o nome de Laval
fora de casa. Outros nomes foram emudecidos.
A tarja preta que cobria uma parte da fachada
do liceu fora arrancada e as portas do prédio
permaneceram trancadas por várias semanas.
(Dois Irmãos, 2017, p. 149).

Embora a repressão fosse a ordem do dia no país, a economia de


Manaus começava a apresentar melhoras, e a chegada da Zona Franca, em
1967, abriu cerca de 40.000 postos de emprego para suprir a necessidade de
mão de obra das indústrias de montagem e acabamento, alterando espaços
ocupados anteriormente por belos sobrados, agora transformados em centros
comerciais, como aconteceu com a casa da família de Halim, que deu lugar
para a Casa Rochiram, que vendia produtos importados.
As empresas se localizaram em espaços urbanizados com a assessoria
do governo do Amazonas para a instalação no chamado Distrito Industrial.
Como as indústrias não dependiam do extrativismo, a mão de obra barata
dos nativos e imigrantes era suficiente para o sucesso da Zona Franca.
Com a industrialização, os bairros antigos foram destruídos, muitas
transformações mudaram o perfil manauara, a miserabilidade indígena, de
seus descendentes e dos trabalhadores portuários foi crescente, a rigidez dos

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DOIS IRMÃOS
militares era intensa e a atividade de imigrantes estrangeiros, descontrolada.
A violência e a destruição eram constantes e a população assistia a tudo
desolada:

(...) Assistiam, atônitos, à demolição da Cidade


Flutuante. Os moradores xingavam os
demolidores, não queriam morar longe do
pequeno porto, longe do rio. Halim balançava a
cabeça, revoltado, vendo todas aquelas casinhas
serem derrubadas. Erguia a bengala e soltava
uns palavrões, gritava “Por que estão fazendo
isso? Não vamos deixar, não vamos”, mas os
policiais impediam a entrada no bairro. Ele
ficou engasgado, e começou a chorar quando
viu as tabernas e o seu bar predileto, A Sereia do
Rio, serem desmantelados a golpes de machado.
Chorou muito enquanto arrancavam os
tabiques, cortavam as amarras dos troncos
flutuantes, golpeavam brutalmente os finos
pilares de madeira. Os telhados desabavam,
caibros e ripas caíam na água e se distanciavam
da margem do Negro. Tudo se desfez num só dia,
o bairro todo desapareceu. Os troncos ficaram
flutuando, até serem engolidos pela noite. (Dois
Irmãos, 2017, p. 158, 159)

Dois irmãos registra uma parte da história de Manaus, a memória


coletiva da cidade, sua cultura híbrida e as relações interculturais entre as
religiões, gastronomia, línguas e valores, convivendo com os avanços da
modernidade e das alterações políticas, sociais e econômicas.
A transição da cidade, de seus dias de glória e de estabilidade
econômica para o declínio e destruição de valores naturais, é metaforizada
na casa libanesa de Halim. Enquanto Manaus é o macroespaço da narrativa,
a casa é um microespaço, em que se refletem os conflitos e os valores
manauaras entrelaçados à influência libanesa, numa mesma trajetória do
apogeu à modernização da história manauense.

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MILTON HATOUM
Os tempos de riqueza, proporcionados pelo Ciclo da Borracha, estão
representados na casa dos Reinosos, chamada pelo narrador de palácio em
decorrência da ostentação e do luxo, que se transforma, depois, na
representação da elite decadente de Manaus.
A reforma da loja de Halim, por exemplo, registra a nova identidade
de Manaus, já que Rânia passa a comercializar produtos modernos no lugar
das mercadorias antigas que o pai amava, numa espécie de descaracterização
da loja que representa a decadência familiar pela perda de suas origens e o
consequente crescimento dos confrontos que conduzem ao desmoronamento
da Casa, agora em seu sentido de Família.
A chegada do indiano Rochiram simboliza a entrada do capitalismo
selvagem em Manaus e a conversão dos valores importantes das amizades
sinceras e da honestidade em peças de um jogo de interesses inescrupulosos
e egoístas do investidor sem limites. Assim como o falso inglês Wyckhan,
um contrabandista, Rochiram representa a política econômica de
exploração, dominação e injustiça do sistema econômico capitalista, que
desconstrói as relações sociais e afetivas.
Desse modo, Manaus não é só o espaço geográfico em que o enredo
de Dois irmãos circula, mas se torna uma personagem que movimenta a
vida de todas as camadas sociais manauaras, influenciando a vida das
personagens e, também, sendo influenciada pelos movimentos delas.
A chegada da industrialização e a transformação de uma Manaus
plural antiga em uma desordenada capital trazem o questionamento em
relação ao atraso e ao progresso da realidade do Norte do Brasil, que, se
comparado ao Sul do país, representado pelo progresso da cidade de São
Paulo e pela construção de Brasília, construída com o esforço árduo de
brasileiros trabalhadores, registram o descaso com as reais necessidades de
Manaus: uma cidade empobrecida e sem a devida importância no cenário
nacional.
Enquanto em Brasília o progresso era galopante,

Noites de blecaute no norte, enquanto a nova


capital do país estava sendo inaugurada. A
euforia, que vinha de um Brasil tão distante,
chegava a Manaus como um sopro amornado.
E o futuro, ou a ideia de um futuro promissor,

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DOIS IRMÃOS
dissolvia-se no mormaço amazônico. Estávamos
longe da era industrial e mais longe ainda do
nosso passado grandioso. Zana, que na
juventude aproveitara os resquícios desse
passado, agora se irritava com a geladeira a
querosene, com o fogareiro, com o jipe mais
velho de Manaus, que circulava aos sacolejos e
fumegava. (Dois Irmãos, 2017, p. 96)

Em Dois Irmãos, Manaus, desintegrada do vertiginoso progresso de


São Paulo e Brasília, torna-se um cenário de ruínas e da passagem do tempo.
Assim, Yaqub, ao se mudar para São Paulo, foge do atraso e do passado,
enquanto Omar permanece no espaço amazônico que vai sendo devastado,
tal como a vida do Caçula.
Omar mantém por toda sua vida uma rotina de desleixo,
irresponsabilidade e algazarras, sem perspectiva de evolução ou crescimento
reais, pois vive na dependência dos pais, assim como Manaus,
originalmente, um espaço de riquezas, não consegue independer-se do
domínio que lhe é imposto.
Já Yaqub, deslumbrado com a ideia de futuro promissor por meio dos
estudos, muda-se para a grande metrópole paulistana e rende-se ao mundo
capitalista frenético. Em suas cartas, o gêmeo mais velho descreve a cidade
de São Paulo como o espaço da prosperidade e, desse modo, parece defender
o ritmo acelerado de mudanças em Manaus, com a implantação do projeto
de industrialização e, até mesmo, parece nutrir uma certa simpatia ao regime
militar, divergindo do pai Halim, arruinado ao assistir às mutilações
impostas à capital amazônica.
Mas, mesmo distante de sua terra de origem, Yaqub encontra na
capital paulista um elemento que o vincula a Manaus: uma seringueira
semelhante à do seu quintal, em que Omar subia destemido. O olhar para a
árvore estabelece em Yaqub um estranhamento com a metrópole, ao mesmo
tempo que o familiariza com ela.
A imagem da seringueira amazônica percorre praticamente todo o
livro Dois Irmãos: na infância dos gêmeos, no lugar em que Halim plantava
suas ervas do Oriente, no leito de que ela servia para momentos amorosos
do casal libanês, no sacrifício do carneiro que era nela dependurado para

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MILTON HATOUM
depois servir de refeição, no canto do urumutum, na tentativa de alívio da
coceira de Omar decorrente da doença venérea, no espaço de refúgio do
Caçula e na derrocada da família, da qual toda riqueza é extraída, restando,
no entanto, apenas a velha seringueira rodeada pelas quinquilharias da Loja
Rochiram.
A árvore secular, muito além de ser um referencial da natureza
amazônica, é símbolo de enraizamento da família de Halim em Manaus e
estende-se a São Paulo, para que Yaqub não se esqueça de suas origens,
mesmo tendo escolhido viver no espaço urbano.
Tanto a transformação da casa libanesa, de arquitetura elegante e
tradicional, na loja indiana, com suas vitrines exibindo produtos vindos de
Miami e do Panamá, quanto a destruição da Cidade Flutuante representam
a devastação e a imposição dos valores ditos modernos a Manaus, uma
cidade edificada por seringueiros e indígenas, em meio à construção de
conjuntos populacionais para os trabalhadores de baixíssima renda, com
precário saneamento básico, rodeada por maus odores e de crescimento
desorganizado.
O caminhar de Nael por Manaus é o instrumento de que se vale
Milton Hatoum para ilustrar a cidade, numa espécie de mapeamento
geográfico local, cercada pelas águas do Rio Negro presente na maioria das
lembranças de Nael, Domingas e Halim, que remetem ao rio de Heráclito,
metáfora da passagem de um tempo que não volta mais, tal como a água
que corre e não regressa.
Durante a viagem de barco no rio Negro, que Nael faz com a mãe, ela
vincula a contemplação da paisagem com suas memórias do passado, tal
qual faz Halim, que também se vale das águas para resgatar suas lembranças
e relatá-las ao narrador. A imagem da água é um referencial para a trajetória
da família, simbolizando a vida positiva inicial em terras amazônicas até o
desmoronamento dos laços que uniam, de certo modo, todos os que viviam
ao redor da casa libanesa.
Também está a água associada à história de Manaus, desde o registro
do cheiro desagradável da Cidade Flutuante, em contraste à beleza
exuberante dos rios e da floresta amazônica, até a paisagem lodosa da zona
portuária com árvores apodrecendo (tal qual a podridão imposta àqueles
que estão à margem da sociedade manauara elitizada), e a invasão militar em
meio a um terrível aguaceiro que cai sobre a cidade manauara.

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DOIS IRMÃOS
Assim, há, na obra Dois Irmãos, de Milton Hatoum, duas Manaus: a
real, passando por diversas mudanças de ordem econômica, social e política,
e a imaginária, fruto das leituras subjetivas que o narrador faz desse espaço.
Além disso, podemos vincular a capital manauara à casa da família de
Halim: ambas vão de tempos de glória ao declínio, das tradições culturais
nativas às alterações impostas pelo mundo capitalista. Dois espaços e uma
mesma sina.

3.3 OS HOMENS EM DOIS IRMÃOS

Halim é marido de Zana e pai de Yaqub, Omar e Rânia. Ele é


responsável pela manutenção da história da família de imigrantes libaneses,
sendo suas lembranças registradas pelo narrador Nael. Homem apaixonado
pela esposa, suas emoções representam por extensão os sentimentos dos
imigrantes deslocados de suas terras natais.
Admirador de música e poesia, Halim fora mascate pelas ruas de
Manaus até casar-se com Zana, filha de Galib, proprietário do restaurante
Biblos, que, após a morte do pai, converte-se na loja e residência da família
libanesa.
Halim, homem simples, de ambições reduzidas e sem a firmeza típica
do tradicional libanês chefe patriarcal da família, era apaixonado por Zana
e não desejava filhos para que eles não tirassem a esposa de seu convívio
inseparável, mas, por exigência dela, o casal acaba tendo três crianças: os
gêmeos Yaqub e Omar e Rânia:

Os filhos haviam se intrometido na vida de


Halim, e ele nunca se conformou com isso. No
entanto, eram filhos, e conviveu com eles,
contava-lhes histórias, cuidava deles em
momentos esparsos. Levava-os para pescar no
lago do Puraquecoara, e remavam no paraná
do Cambixe, onde Halim conhecia criadores de
gado, donos de fazendolas. Foi o que se poderia
chamar de pai, só que um pai consciente de que
os filhos tinham-lhe roubado um bom pedaço de

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privacidade e prazer. Anos depois, iriam
roubar-lhe a serenidade e o bom humor. Ele
advertia a esposa sobre o excesso de mimo com
o Caçula, a criança delicada que por pouco não
morrera de pneumonia. (Dois Irmãos, 2017, p.
53)

Como o Caçula apresentou problemas de saúde ainda muito pequeno,


Zana passou a se dedicar aos cuidados dele, o que acabou se convertendo em
um relacionamento moldado na posse e no ciúmes de ambas as partes, o
que Halim não compreendia, mas se conformava, como romântico tardio e
paciente que era e, por isso, fora capaz de abdicar de qualquer coisa pelo
profundo amor que sentia por Zana, a real comandante da casa.
Halim passa a ver Omar como uma espécie de ladrão que furtava dele
a atenção de Zana. Não bastando os excessivos zelos da mãe pelo Caçula,
o comportamento inconsequente e mimado dele irritava imensamente o pai,
intensificando-se a rivalidade entre ambos.
As decepções vividas em casa eram atenuadas pelos longos e
solitários passeios de Halim pela orla portuária de Manaus, sempre parando
em alguma taberna para tomar algo e petiscar, com pescadores, carroceiros,
carregadores. Halim é um errante, que se ausenta de casa frequentemente em
busca das memórias passadas de sua terra natal e de uma identidade alterada
pela imposição do domínio afetivo que Omar tem da mãe.
É o afeto que tem por Nael que, de certo modo, supre as deficiências
sentimentais de Halim. Com o neto bastardo, ele desabafa e passeia,
rememorando o passado, suas tormentas e lamentações. Dessa maneira, o
narrador tem acesso às informações mais preciosas da vida da família
libanesa e das histórias envolvendo Yaqub, Omar, Galib, Cid Tannus e outras
personagens. O que Halim não conta acaba sendo preenchido na narrativa
por informações que o narrador obtém por meio de Domingas e Zana, ou
pela própria imaginação que lhe permite criar alguns fatos.
Halim é um “contador de casos”, reais ou imaginados, oral, que acaba
estimulando Nael a ser o contador de histórias por meio da escrita, que, de
certa maneira, foi indicada a ele quando o avô o presenteou com uma caneta
tinteiro.
Já Yaqub, o gêmeo mais velho, é um homem sério, dedicado aos

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estudos, enigmático aos olhos do narrador, inteligente, de atitudes
comedidas e secretas. Desde a infância, Yaqub é ofuscado pelo
comportamento impetuoso e ousado do irmão Omar, o Caçula, idêntico
fisicamente, mas díspar, até certo ponto, de Yaqub.
Preterido pela mãe em favor de Omar, Yaqub é solitário e silencioso
como o pai Halim, comportamentos intensificados após ele ter sido enviado
ao Líbano pelos pais, numa tentativa de se evitarem maiores conflitos entre
os gêmeos depois do episódio que resultou na cicatriz no rosto de Yaqub,
provocada por uma garrafada que Omar lhe deu num acesso de ciúmes ao
ver Lívia dando um beijo no rosto do irmão.
Ao retornar do Líbano, aos dezoito anos de idade, Yaqub é um
estranho para o pai e um rude para a mãe. Além disso, a separação de Omar
por cinco anos se encarregou de aumentar mais a rivalidade entre os gêmeos,
contrariando as expectativas de Halim e Zana.
Yaqub é uma releitura às avessas do mito de Ulisses, ou Odisseu, do
poema épico Odisseia, o qual se distanciou por dez anos de Ítaca e, ao voltar,
encontrou Penépole, sua esposa, aguardando fiel e obstinadamente o seu
retorno, o que não ocorre com Yaqub, que, de certa forma, continua sendo
o rejeitado pela mãe e sem identificação com um lugar para onde voltar.
A história de Yaqub e Omar também pode ser vinculada à parábola
bíblica do Filho Pródigo (Lucas 15:11-32), que conta a história de um pai e
dois filhos. Em certa ocasião, o filho mais novo solicitou ao pai que lhe
desse sua parte na herança, partindo para terras distantes, onde gastou todos
seus bens em atividades pecaminosas e inconsequentes, sem nenhuma
preocupação com o futuro. O dinheiro findou e o filho mais novo passou a
viver como um mendigo. Desesperado e arrependido, ele voltou à casa do
pai e foi recebido por ele com festa, já que o filho retornara ao lar. No
entanto, o irmão mais velho não aceitou a volta do pródigo por ter sido
desleal à família, ao contrário dele.
Em Dois Irmãos, o filho expatriado é Yaqub, o mais velho, ao
contrário da parábola bíblica, mas é Omar, o mais novo, que se mantém em
Manaus e gasta o dinheiro da família na esbórnia, sem nenhum sinal de
arrependimento pelo que faz. Além disso, no retorno de Yaqub, há uma
rápida recepção para ele na casa libanesa, mas o destaque da festa é Omar,
o qual não é visto pela mãe como o filho pródigo, denominação que, para
ela, seria mais pertinente a Yaqub.

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Em Dois irmãos, de Milton Hatoum, o gêmeos continuam, por toda
a vida, disputando o espaço de privilégio no coração da mãe e, frente à
impossibilidade de solução desse impasse, Yaqub, um estrangeiro em seu
próprio lar, decide ir para São Paulo, onde estuda e conquista uma sólida
carreira profissional na engenharia, fruto de sua grande habilidade com a
Matemática.
No entanto, a ida de Yaqub para São Paulo representa não só o
interesse dele pela modernização em troca do provincianismo manauara,
mas, também, sua rejeição de participar do núcleo familiar dominado por
Omar e, ainda, a possibilidade de vingança dele de provar para a família
sua capacidade de independência e sucesso econômico e profissional:

Um outro Yaqub, usando a máscara do que


havia de mais moderno no outro lado do Brasil.
Ele se sofisticava, preparando-se para dar o
bote: minhoca que se quer serpente, algo assim.
Conseguiu. Deslizou em silêncio sob a
folhagem. Por fora, era realmente outro. Por
dentro, um mistério e tanto: um ser calado que
nunca pensava em voz alta. (Dois Irmãos, 2017,
p. 45)

Yaqub enviava, frequentemente, presentes para a família numa


demonstração do carinho que tinha para com os seus, preocupado com uma
melhor qualidade de vida deles, mas, por outro lado, a meu ver mais
importante, era uma forma de ele exibir sua prosperidade, comprovando ser
superior a Omar, o filho querido de Zana.
Na verdade, o ressentimento vivido por Yaqub nunca será resolvido
por ele, principalmente se considerarmos o espírito vingativo do gêmeo mais
velho direcionado, principalmente, a Omar, mas também à família e,
principalmente a Omar, quando moderniza, juntamente com Rânia, o
comércio de Halim, destruindo anos de dedicação do pai ao trabalho que
amava, e ao negociar a casa da família libanesa com Rochiram, o indiano
inescrupuloso.
A garrafada que Omar deu no rosto do irmão na adolescência
provocou mais do que a cicatriz física no rosto de Yaqub: deixou-lhe na

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face esquerda uma marca que cresceu na alma do gêmeo mais velho,
transformando-o em um homem capaz de fazer qualquer coisa para se
vingar de Omar e de Zana.
O Caçula é apresentado por meio das avaliações feitas por outras
personagens e pelo olhar de Nael que, embora preferisse ser filho de Yaqub,
acredita muito em que Omar seja seu pai em decorrência de ele ter
violentado sexualmente Domingas.
Enquanto Yaqub posa de farda e impressiona a todos no desfile de
Sete de Setembro, Omar é quase um ogro, selvagem sempre deitado na rede,
importunando sexualmente as mulheres da casa e aventurando-se com
outras na rua e nas festinhas manauaras:

Já Omar era presente demais: seu corpo estava


ali, dormindo no alpendre. O corpo participava
de um jogo entre a inércia da ressaca e a euforia
da farra noturna. Durante a manhã, ele se
esquecia do mundo, era um ser imóvel,
embrulhado na rede. No começo da tarde, rugia,
faminto, bon vivant em tempo de penúria. Era, na
aparência, indiferente ao êxito do irmão. Não
participava da leitura das cartas, ignorava o
oficial da reserva e futuro politécnico. No
entanto, mangava das fotografias expostas na
sala. “Um lesão com pinta de importante”, ele
dizia, e com uma voz tão parecida com a do
irmão que Domingas, assustada, procurava na
sala um Yaqub de carne e osso. A mesma voz, a
mesma inflexão. Na minha mente, a imagem de
Yaqub era desenhada pelo corpo e pela voz de
Omar. Neste habitavam os gêmeos, porque Omar
sempre esteve por ali, expandindo sua presença
na casa para apagar a existência de Yaqub.
Quando Rânia beijava as fotos do irmão ausente,
Omar fazia umas macacadas, se exibia, era um
contorcionista tentando atrair a atenção da irmã.
Mas a lembrança de Yaqub triunfava. As

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fotografias emitiam sinais fortes, poderosos de
presença. Yaqub sabia disso? Sempre com a
expressão altaneira, o cabelo penteado, o paletó
impecável, as sobrancelhas grossas e arqueadas,
e um sorriso sem vontade, difícil de compreender.
O duelo entre os gêmeos era uma centelha que
prometia explodir. (Dois Irmãos, 2017, p. 46)

De comportamento agressivo, Omar é retratado como o corajoso,


desafiador de perigos, chamando os “curumins” para a briga, atacando o
professor Bolislau, desferindo a garrafa quebrada no irmão, enfrentando o
regime militar na defesa do professor Laval.
Mas suas principais audácias foram levar Dália para casa e envolver-
se com a Pau-Mulato, desafiando a mãe, a qual não admitia que o Omar (e
também Yaqub, tanto que ele se casa às escondidas da família,
principalmente por ter escolhido para esposa Lívia, o estopim da discórdia
entre os gêmeos, mas não a única responsável por ele) saísse de casa para
morar com uma mulher.
O Caçula impetuoso, no final da narrativa, encontra-se sozinho e
silencioso, abandonando-se ao destino que ele buscou e para o qual não
estava definitivamente preparado por causa dos mimos e proteções que a
mãe lhe oferecia. Com Zana morta, Omar torna-se um homem sem rumo e
volta a ser uma criança fragilizada como o fora ao nascer.
Embora ele peque intensamente com seu comportamento
inconsequente, e também vingativo em relação ao irmão Yaqub, cabem aqui
dois ligeiros questionamentos sem resposta única: Há realmente diferenças
comportamentais definidas entre os dois irmãos vingativos que se odeiam?
Qual dos gêmeos é o vilão da história? Mais uma ambiguidade que marca
a narrativa de Milton Hatoum ao lado da que parece ser o dínamo do livro:
quem é o pai de Nael?

3.4 AS MULHERES EM DOIS IRMÃOS


Na cultura árabe, o mando familiar centra-se na figura de um pai e,
no caso da ausência dele, de um irmão mais velho, homens provedores da
casa a quem se deve obediência e respeito. Assim, as mulheres,
normalmente, têm suas vidas sob a dominação masculina, à qual são

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resignadas, conforme é determinado pelo livro sagrado da religião islâmica,
o Alcorão.
No entanto, no romance Dois Irmãos, encontramos uma ruptura dessa
tradição na casa do libanês Halim: Zana, a matriarca da família, é quem
detém todo o poder de mando sobre tudo e todos à sua volta, invertendo as
tradições árabes no que concerne ao papel social feminino.

Órfã de mãe, Zana saiu do Líbano ainda criança e veio com o pai,
Galib, para Manaus, onde as perspectivas de vida melhor eram intensas.
Embora a vida de Zana, num ambiente distante de sua terra natal, seja difícil
e dolorosa, ela é uma mulher forte: a decisão de se casar com Halim foi
dela, enfrentando até a oposição das maronitas; a quantidade de filhos que
teria, talvez para recuperar o sentido de sua vida depois da morte do pai,
partiu dela, mesmo com a recusa de Halim, que não queria filhos; o controle
da casa e de sua movimentação passava pelo comando das mãos de Zana;
a intensa atividade sexual com Halim tinha as diretrizes da esposa; a escolha
de Yaqub para ir sozinho para o Líbano teve dela grande participação; a
solteirice de Omar coube à determinação da mãe dominadora:

Halim torcia para que uma dessas mulheres


levasse o filho (Omar) para bem longe de casa,
ou que uma das filhas de Talib, sobretudo Zahia,
a mais formosa, sensual e perspicaz, laçasse o
Caçula. Mas ele intuía que Zana era mais forte,
mais audaciosa, mais poderosa. (Dois Irmãos,
2017, p. 74)

A voz de Zana é ouvida e respeitada (ou obedecida) por todos à sua


volta, à exceção, de certo modo, de Yaqub. Mulher calculista, curiosa, às
vezes melancólica, e apaixonada pelo filho Caçula, num relacionamento
que beira o incesto, Zana desespera-se algumas vezes ao longo da narrativa
como, por exemplo, por ocasião da morte de seu pai, o que a faz assumir um
comportamento próximo ao da viuvez.
A relação entre Zana e o pai remete ao mito de Electra, o qual se
vincula ao amor incestuoso entre filha e pai, mas, também, de maneira
invertida, podemos associar ao comportamento que Zana tem com o filho

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Omar, já que ultrapassa o limite de amor maternal, ao tornar-se, além de
possessivo, um afeto repleto de sensualidade de ambas as partes.
Destaque-se que os homens da família libanesa marcam-se pelo
estigma da dependência da matriarca, e essa fragilidade é mais notória no
comportamento de Omar, o qual não consegue se libertar dos mimos da
mãe, embora chegue a tentar por duas vezes ao se envolver com Dália e
Pau-Mulato.
Halim também é aprisionado pelos encantos e desempenhos sexuais
da esposa, por isso suporta ser comandado pela mulher. O único que
demonstra uma certa libertação de Zana é Yaqub, no entanto, se
observarmos mais profundamente, detectamos nele a necessidade de ser
amado pela mãe, que, embora idolatre e orgulhe-se do filho doutor, pretere-
o em favor do Caçula. Até mesmo o neto bastardo, Nael, tem por ela algum
encantamento, mas é consciente de que ela o usa como um faz-tudo da casa,
já que é filho de Domingas. Todos os homens de Zana parecem hipnotizados
pelo domínio dela.
Com as desavenças intransponíveis entre Yaqub e Omar, o
comportamento irregular do Caçula, o desejo de vingança do gêmeo mais
velho, a morte de Halim e o despejo de sua amada casa, Zana desencadeia
um forte processo de melancolia e solidão, vendo seu clã familiar
desmoronar, situação da qual ela é uma das principais responsáveis.
De certa forma, a maneira autoritária e dominadora de Zana se reflete,
em grau menos acentuado, no relacionamento dela com Rânia, a real caçula
dos três irmãos. Sensual e arredia, bonita e ocultadora de seus encantos
físicos, Rânia, mulher de olhos amendoados, era desejada por homens, aos
quais ela não dispensava atenção, mas lhes acendia delírios sensuais, como
ocorre também com o sobrinho Nael, com quem ela chega a se relacionar
sexualmente uma vez.
Embora entre ela e o narrador exista o elo familiar, Rânia parece
recusar esse vínculo, como também rejeita a possibilidade de um
envolvimento amoroso sério com Nael pelo mesmo motivo que se afastava
de todos os homens que por ela se interessavam: nutria um forte amor
platônico e incestuoso pelos irmãos gêmeos.
Fica notória a preferência que Rânia tem por Omar, embora as
carícias que Yaqub lhe fazia provocassem nela um forte estonteamento
físico, quase animalesco:

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DOIS IRMÃOS
(...) Ela mimava os gêmeos e se deixava
acariciar por eles, como naquela manhã em que
Yaqub a recebeu no colo. As pernas dela,
morenas e rijas, roçavam as do irmão; ela
acariciava-lhe o rosto com a ponta dos dedos, e
Yaqub, embevecido, ficava menos sisudo. Como
ela se tornava sensual na presença do irmão!
Com esse ou com outro, formava um par
promissor. Nos quatro dias de visita ela se
empetecou como nunca, e parecia que toda a
sua sensualidade, represada por tanto tempo,
jorrava de uma só vez sobre o irmão visitante.
Rânia, não a mãe, ganhou os melhores presentes
dele: um colar de pérolas e um bracelete de
prata, que ela nunca usou na nossa frente. Ainda
chovia muito quando a vi subir a escada, de
mãos dadas com Yaqub; entraram no quarto
dela, alguém fechou a porta e nesse momento
minha imaginação correu solta. Só desceram
para comer. (Dois Irmãos, 2017, p. 87)

A imaginação de Nael também viaja livremente quando pensa no


forte desejo que sentia pela tia, tendo a mesma vontade aparente de tê-la
sexualmente como parece ocorrer com Omar e Yaqub, num quase quarteto
amoroso incestuoso.
Sendo uma personagem secundária na trama de Milton Hatoum,
Rânia, além de sua sensualidade, tem forte habilidade para o comércio,
revelando a herança que recebeu do pai, Halim, ao fazer os negócios
prosperarem. Ela, assim como Zana, se considerarmos o papel da mulher na
sociedade árabe, estão na contramão do comum, fugindo da passividade
feminina e tomando as rédeas do comando comercial, no caso da filha, e
doméstico, no caso da mãe.
Por outro lado, a dedicação de Rânia ao trabalho funciona como uma
válvula de escape para sua forte frustração amorosa desencadeada pela mãe.
Quando Rânia se apaixonou, Zana destruiu a possibilidade de ela ser feliz
amorosamente, proibindo a filha de se envolver com um rapaz de baixo

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poder aquisitivo. No entanto, sabedores que somos do espírito dominador e,
de certo modo, egoísta de Zana, fica-nos sugerido que a mãe repete com
Rânia o que também fez com Omar e tentou com Yaqub: manter todos os
filhos sob seu teto e poder.
Assim, Rânia não se interessou por mais nenhum homem, seja por
causa do trauma de não poder casar com quem desdejava, seja porque não
encontrava em seus pretendentes o espelhamento dos gêmeos. Como forma
de compensação, ela dedicou-se aos negócios, realizando na loja do pai o
que se esperava ser feito por Omar, uma vez que Yaqub tomara rumo para
a engenharia.
Zana fez com Rânia o que não permitiu que lhe fizessem: dominar e
controlar suas ações. Exercer o domínio é característica marcante da mãe
libanesa e, não satisfeita em regular os membros de sua família, Zana
também rege a vida de Domingas.
Indígena órfã, retirada de sua terra por religiosas que a moldaram
para servir às famílias de Manaus, e agregada da família de Halim,
Domingas é uma das peças fundamentais para Nael compor sua narrativa e
tentar construir sua identidade, uma vez que é da mãe que poderia sair a
resposta de quem era o pai dele, mas

Domingas disfarçava quando eu tocava no


assunto; deixava-me cheio de dúvida, talvez
pensando que um dia eu pudesse descobrir a
verdade. Eu sofria com o silêncio dela; nos
nossos passeios, quando me acompanhava até
o aviário da Matriz ou a beira do rio, começava
uma frase mas logo interrompia e me olhava,
aflita, vencida por uma fraqueza que coíbe a
sinceridade. Muitas vezes ela ensaiou, mas
titubeava, hesitava e acabava não dizendo.
Quando eu fazia a pergunta, seu olhar logo me
silenciava, e eram olhos tristes. (Dois Irmãos,
2017, p. 54)

Domingas era uma indígena com características próximas a de uma


escrava liberta, já que não era remunerada pelos seus serviços e nem tinha

200
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DOIS IRMÃOS
dias de folga. No Norte do Brasil, muitos indígenas ou descendentes
destribalizados eram comumente incorporados às casas de famílias, o que
ainda hoje é comum em alguns lugares.
O reflexo do processo de colonização, portanto, ainda se faz presente
na sociedade brasileira. No caso do romance Dois Irmãos, Zana
representaria o colonizador poderoso e soberano e Domingas, a colonizada
que absorve, por exemplo, os valores religiosos da patroa, com a qual
identifica algumas semelhanças, pois ambas têm devoção a seus filhos,
partilham os cuidados e o amor aos gêmeos, participam de rituais religiosos
em conjunto e sofrem por causa do desterro e da saudade do tempo passado.
O indígena, no Brasil, considerado de maneira preconceituosa como
selvagem e bárbaro, tinha um papel relevante em algumas tarefas, como as
do tratamento e exploração da terra e do serviço doméstico.
A situação de empregada doméstica, sem nenhuma regalia, faz com
que Domingas testemunhe os acontecimentos ocorridos na casa de Halim,
com quem ela tem uma relação de cumplicidade e vice-versa, já que ambos
mantêm, até o desfecho da obra, o segredo de quem seria o pai do narrador,
além de as duas personagens serem testemunhas dos fatos que compõem a
narrativa de Nael.
Domingas, em sua condição de empregada, marginalizada, alvo de
preconceitos e obediente à aculturação europeia, tem livre acesso à casa
libanesa e, mesmo sendo vítima de exclusão social, como grande parte dos
indígenas brasileiros também o são, sabe de informações elucidativas no
que concerne à realidade familiar de Halim e Zana, acompanhando-os desde
a prosperidade até o declínio do clã libanês.
A mãe de Nael, ao ser levada para o orfanato ainda criança, tem suas
crenças alteradas, absorve o batismo e a alfabetização, que não a libertam
da exclusão, mas a obrigam a uma dedicação e desprendimento pessoal em
relação à família de Zana até a morte, sem nunca reivindicar algo para si.
Num condicionamento inconsciente das alterações que lhe foram
provocadas, Domingas, fruto da sociedade patriarcal e machista, em certa
ocasião, faz uma viagem com o filho Nael, mas, durante o passeio, também
não se sente confortável, já que não se identifica mais como filha da selva.
A cultura indígena, entretanto, não deixa de fazer parte do dia a dia
de Domingas. Por exemplo, em uma das vezes que Omar desaparece de
casa, ela sugere

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MILTON HATOUM
(...) Posso preparar um olho de boto? A senhora
pendura o olho no pescoço e aí o Caçula vem
beijar a senhora... com muito amor”. Zana não
sabia o que dizer? Ela se aproximou de minha
mãe e virou a cabeça para o oratório. As duas,
juntas, ainda disputavam a beleza de outros
tempos. A índia e a levantina, lado a lado: a
expressão solene dos rostos, o fervor que
cruzara oceanos e rios para palpitar ali naquela
sala — tanta devoção para que ele voltasse, são
e salvo, sobretudo sozinho, para o quarto que
seria sempre só dele. (Dois Irmãos, 2017, p.
111)

Em um outro momento da narrativa, Domingas vale-se dos


conhecimentos indígenas para tratar o filho adoentado:

Nos últimos dias que ficou em Manaus Yaqub


me visitou várias vezes. Sentava num tamborete,
passava a mão no meu braço e na minha testa,
dizia que eu tinha um pouco de febre. Ainda me
lembro do seu rosto preocupado, da voz que
queria chamar um médico, ele pagaria tudo.
Domingas não aceitou, ela confiava no bálsamo
de copaíba, nas ervas medicinais. Passei alguns
dias deitado, e me alegrou saber que Halim dera
mais atenção ao neto bastardo que ao filho
legítimo. Ele sequer pisou na soleira da porta
do Caçula. No meu quarto entrou várias vezes,
e numa delas me deu uma caneta-tinteiro, toda
prateada, presente dos meus dezoito anos. (Dois
Irmãos, 2017, p. 150, 151)

O narrador, Nael, embora não se considere um indígena, pois não se


vê ligado à cultura da mãe, respeita, no entanto, os valores da cultura
familiar. Ele observa com carinho, por exemplo, as pequenas esculturas

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DOIS IRMÃOS
feitas por Domingas com representações de pássaros e serpentes, metáforas
da liberdade e do perigo, respectivamente, no imaginário da indígena.
Domingas, mesmo aparentemente integrada à realidade que lhe fora
imposta, com o afastamento dela de sua cultura, credo e identidade indígena,
não despreza seus valores originais, vivos, internamente, e vinculados ao
desejo de liberdade:

Quando chovia sem força de temporal,


Domingas entrava no meu quarto e eu a ajudava
a tirar a casca de um pedaço de tronco de
muirapiranga, que depois ela esculpiria com
habilidade e paciência. Ela, que tinha medo de
trocar uma lâmpada, podia transformar um pau
tosco num pequenino papa-açaí de peito
encarnado.
[...]
Os bichinhos esculpidos em muirapiranga
estavam arrumados na prateleira. Lustrados,
luziam ali os pássaros e as serpentes. O
bestiário de minha mãe: miniaturas que as mãos
dela haviam forjado durante noites e noites à luz
de um aladim. As asas finas de um saracuá, o
pássaro mais belo, empoleirado num galho de
verdade, enterrado numa bacia de latão. Asas
bem abertas, peito esguio, bico para o alto, ave
que deseja voar. Toda a fibra e o ímpeto da
minha mãe tinham servido os outros. Guardou
até o fim aquelas palavras, mas não morreu com
o segredo que tanto me exasperava. Eu olhava o
rosto de minha mãe e me lembrava da
brutalidade do Caçula. (Dois Irmãos, 2017, p.
97, 182)

Domingas vive privada de sua liberdade, saudosa, em certa medida,


de seu contato com a natureza, sendo vítima de preconceitos, como se pode
perceber na fala de Estelita Reinoso:

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MILTON HATOUM

Seu casarão era um luxo, as salas cheias de


tapetes persas, cadeiras e espelhos franceses;
os copos e taças cintilavam a cristaleira, tudo
devia ser limpo cem vezes por dia. O pêndulo
dourado brilhava, mas o relógio silenciara
havia muito tempo. Para entrar na cozinha dos
Reinoso eu tinha que tirar as sandálias, era a
norma. Na casa moravam empregadas de quem
Estelita falava horrores para Zana. Eram umas
desastradas, desmazeladas, não serviam para
nada! Não valia a pena educar aquelas
cabocas, estavam todas perdidas, eram inúteis!
O Calisto, um curumim meio parrudo do cortiço
dos fundos, cuidava dos animais dos Reinoso,
sobretudo dos macacos, que guinchavam e
saltitavam nos imensos cubos de arame do
quintal. Eram divertidos, dóceis, faziam
gracejos para as visitas e não davam tanto
trabalho. Os macacos amestrados eram o
tesouro vivo de Estelita. Com toda a tropa de
serventes à sua disposição, aquela parasita era
a vizinha que mais me atazanava. Parece que
fazia de propósito. “Zana”, dizia com uma voz
melosa e falsa, “o teu menino pode apanhar
uma talha de leite para mim?” Eu saía para
buscar o leite e tinha vontade de mijar e cuspir
na talha. Às vezes, depois do almoço, quando
me sentava para fazer uma tarefa da escola,
escutava os estalidos do salto alto de Estelita
ressoando no assoalho de casa. As marteladas
dos passos acordavam todo mundo. (Dois
Irmãos, 2017, p. 61)

A mais gritante e inaceitável violência, no entanto, da qual Domingas é


vítima, é o estupro que sofre de Omar, reflexo da mentalidade escravocrata,

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DOIS IRMÃOS
machista e desrespeitosa em relação à mulher, presa por estigmas de
dominação e cooptação.
A atitude agressiva de Omar em relação à Domingas pode ser
considerada (mas não aceita como normal) decorrente de motivos como o
caráter doentio do Caçula, que acredita poder ser e fazer o que quiser, livre
de qualquer possibilidade de punição; do viés machista de dominação da
mulher que, impossibilitada de reagir em decorrência de sua condição de
agregada e dependente da família, se cala frente à violência; ou, ainda, uma
forma de revanchismo de Omar em relação ao irmão Yaqub, com o qual
Domingas tem uma relação afetiva mais intensa do que com o Caçula,
embora ela gostasse de ambos os gêmeos.
Domingas passou sua vida inteira servindo aos outros, mantida sob
o controle deles, sem reivindicar nada para si própria, e, assim como viveu
em silêncio, também acabou morrendo silenciosamente.

3.5 O IMIGRANTE, O DESTERRO E A FÉ


A Amazônia de Milton Hatoum não se limita apenas à paisagem
natural exuberante que é de conhecimento mundial, mas se estende a
representações regionais em que conflitos universais podem ser
identificados. É nesse regionalismo universal amazônico que se encontra
Halim e Zana, imigrantes libaneses, incorporando valores da cultura local,
mas os mesclando com as tradições de suas origens associadas a saudades,
memórias e experiências do tempo da Segunda Guerra Mundial até o regime
militar brasileiro.
Por meio das narrativas orais de Halim, Nael viaja no tempo
resgatando o mosaico de aventuras relatadas pelo avô, o qual, como
imigrante que é, vive caminhando de um lado para outro dentro dos limites
de Manaus, como se desejasse fugir para um não-lugar.
Halim é um exilado errante solitário, que anda pelas ruas manauaras
tentando suprir os sentimentos de solidão, de não pertencimento e de
desintegração de sua identidade distante de sua terra natal, constatando, por
meio de um olhar pessimista, sua ruína e, também, a de Manaus. Ele é um
exilado de sua pátria, Língua, cultura, religião e identidade vivendo no
Amazonas.
Como havia um acordo diplomático entre o Brasil e o Líbano,
firmado por Dom Pedro II, a chegada de imigrantes desse país ao Amazonas

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MILTON HATOUM
passou a ser frequente, desencadeando diversos avanços na região.
A vinda da família libanesa para o Brasil, como já mencionado,
ocorre na década de 1910 e está vinculada a questões de ordem
político-econômica e de controle autoritário do governo turco-otomano,
tributando impostos de diversas espécies no Líbano e perseguindo cristãos,
aos quais era imposto o serviço militar obrigatório, um outro motivo da
impulsão imigratória do país.
Zana é exemplo dessa fuga da perseguição religiosa praticada pelo
Islamismo, uma vez que ela era praticante católica maronita3 num país em
que o preconceito religioso é comum. No entanto, a intolerância religiosa
velada também ganha espaço na sociedade amazonense:

As cristãs maronitas de Manaus, velhas e


moças, não aceitavam a ideia de ver Zana
casar-se com um muçulmano. Ficavam de
vigília na calçada do Biblos, encomendavam
novenas para que ela não se casasse com
Halim. Diziam a Deus e o mundo fuxicos assim:
que ele era um mascate, um teque-teque
qualquer, um rude, um maometano das
montanhas do sul do Líbano que se vestia como
um pé-rapado e matraqueava nas ruas e praças
de Manaus. Galib reagiu, enxotou as beatas:
que deixassem sua filha em paz, aquela ladainha
prejudicava o movimento do Biblos. (Dois
Irmãos, 2017, p. 40)

Galib, pai de Zana, veio para o Brasil e instalou-se em Manaus,


abrindo o restaurante Biblos, em que servia pratos mesclados por alimentos
da região manauara aos da gastronomia libanesa, forte representação, na
obra Dois Irmãos, do intercâmbio de culturas que marca Manaus.
Semelhante mescla pode ser percebida nas orações católicas feitas
por Zana juntamente com Domingas, outra exilada de suas terras, que
acompanha a patroa na fé, registrando-se, assim, na casa libanesa, a mistura

3
Maronita é o indivíduo que professa o Cristianismo de rito oriental afiliado à Igreja
Católica Romana, presente sobretudo no Líbano e na Síria.
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DOIS IRMÃOS
de credos e culturas, como se ela fosse uma Manaus multicultural em
miniatura.
Esse lar libanês é um dos pontos mais representativos da importância
do universo familiar em Dois Irmãos, a ponto de ele já se encontrar presente
desde a epígrafe do livro, composta pelos versos do poema “Liquidação”,
de Carlos Drummond de Andrade, em que elementos constitutivos da
narrativa (destacados entre parênteses) se encontram presentes:

A casa foi vendida com todas as lembranças (de


Halim, Zana e Domingas)
Todos os móveis todos os pesadelos (as
rivalidades entre os gêmeos)
Todos os pecados cometidos ou em via de
cometer 4
A casa foi vendida com seu bater de portas
(fechada para ser transformada numa loja de
quinquilharias)
Com seu vento encanado sua vista do mundo
Seus imponderáveis [...]

Podemos observar que os versos do poema Liquidação antecipam a


destruição do lar libanês e de todos os seus valores, com os quais Nael não
se identifica, bem como com os referenciais amazônicos, aproximando o
narrador à representação de um exilado em sua própria terra. Sua condição
de mestiço e bastardo, vivendo às margens da sociedade, faz com que

4
Em Dois Irmãos, podemos encontrar situações que envolvem todos os Sete
Pecados Capitais, que são: a soberba, definida como orgulho excessivo,
característico de Yaqub e Omar; a avareza, também chamada de ganância, apego
incontrolável aos bens materiais e ao dinheiro, tal como ocorre com Yaqub; a inveja
é a tristeza pelo bem de outra pessoa, sendo o invejoso aquele que se sente mal
pelas conquistas alheias, como Omar sente por Yaqub e vice-versa; ira, raiva ou fúria
é uma manifestação intensa de indignação que pode levar a agressões verbais ou
físicas, comportamento comum nos gêmeos; a luxúria, lascívia ou libertinagem é
o pecado associado aos desejos sexuais, que são intensos entre Halim e Zana, Omar
e Pau-Mulato, Yaqub e Domingas, Rânia e os gêmeos e Nael; a gula é o pecado
associado ao desejo de comer e beber de maneira exagerada, para além das
necessidades, indicada pela fartura de comidas na casa libanesa; a preguiça é a falta
de vontade ou de interesse em atividades que exijam algum esforço, seja físico ou
intelectual, traço peculiar a Omar.

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MILTON HATOUM
acumule à falta de identidade, por não saber quem é seu pai, a perda de
reconhecimento social e religioso.
Um dos exilados mais perturbados da narrativa parece ser Yaqub. Sua
experiência dos anos em que viveu, forçosamente, no Líbano foi omitida
na obra, pois Yaqub se recusava a contar como fora sua vida no país de
origem de seus pais, como se a não rememoração fosse um artifício para o
apagamento do trauma do exílio familiar.
Yaqub, sem cometer nenhum delito, foi condenado à cicatriz do
exílio numa aldeia no Líbano e, dessa experiência, resulta uma espécie de
perda de sua identidade, que se pode comprovar, por exemplo, na
dificuldade que ele tem com a Língua Portuguesa e na alteração drástica de
sua personalidade.
Assim, desenraizado, Yaqub, tal como Nael, vive a agonia da
identidade perdida, o que desencadeia nele a necessidade de um novo exílio
na cidade de São Paulo.
Destaque-se que o fluxo migratório manauara não está representado
no livro apenas pelos membros da família libanesa. O crescimento da cidade
trouxe novos estrangeiros, como coreanos, chineses e indianos, cuja
representação se dá pela figura de Rochiram, homem que vivia de maneira
quase nômade, buscando riqueza em espaços diversos.
Imigrantes e migrantes de todas as origens territoriais e econômicas
compõem a formação de Manaus e de sua projeção de modernidade e
lucratividade. Todos, no entanto, de certa maneira acabam perdendo suas
identidades em prol da construção de uma nova vida em terras longínquas.

3.6 RIVALIDADE E VIOLÊNCIA

Dois Irmãos é uma narrativa sobre a rivalidade entre os gêmeos


Yaqub e Omar, desafeto que se torna real a partir do momento em que eles
se apaixonam pela mesma menina, Lívia, e pelo ciúme despertado no irmão
mais velho pelo tratamento preferencial que a mãe dá ao Caçula.
As rivalidades entre irmãos são representadas na Bíblia, no livro de
Gênesis, nos mitos de “Caim e Abel” e de “Esaú e Jacó” (Yaqub é a
transcrição de Jacó em árabe), referenciais presentes na obra de Milton
Hatoum:

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DOIS IRMÃOS
O seu grande sonho era ver os filhos
reconciliados. Ela só pensava nisso, e desde a
morte de Halim acordava no meio da noite,
assustada. Quem ia entender a falta que Halim
lhe fazia? A dor que ele deixou. Não queria
morrer vendo os gêmeos se odiarem como dois
inimigos. Não era mãe de Caim e Abel. (Dois
Irmãos, 2017, p. 170)

As disputas entre os gêmeos Yaqub e Omar vinculam-se à


necessidade que ambos têm de poder, posse, exclusividade, superioridade e
destaque. Assim, vencer passa a ser a meta de cada um dos irmãos e, para
isso, a violência entre eles se instala numa conturbada e destruidora relação
familiar.
Yaqub vale-se, nessa guerra fraternal, de suas capacidades
intelectuais, acobertando seu instinto ambicioso, vingativo, alicerçado em
aparatos legais, em um comportamento introspectivo, enquanto Omar, o
desequilibrado dos irmãos, tem conduta animalesca, revidando as atitudes
de Yaqub a partir das agressões físicas.
Se considerarmos que os dois são gêmeos idênticos, Yaqub se vê em
Omar e vice-versa, o que metaforizaria as atitudes violentas e a rejeição de
Omar por ele próprio e de Yaqub por si mesmo, já que as personagens são
duplos de uma mesma imagem.
Saliente-se que o duplo está presente em Dois Irmãos no título do
romance; na composição do narrador, que vive entre a cultura libanesa e a
indígena, sem se identificar totalmente com nenhuma delas; na perspectiva
religiosa de Domingas e no reflexo de Manaus em miniatura no lar de Halim
em crise.
A violência na casa libanesa, no entanto, não se resume à rivalidade
entre os gêmeos. Halim, cansado de ser um exilado em seu próprio lar, e
abandonando sua paciência comparada ao do mito bíblico de Jó, chega a
acorrentar Omar ao cofre por alguns dias, após tê-lo encontrado nu com
uma mulher no sofá.
Esse momento, na narrativa, questiona o viés patriarcal, do qual
Halim se ressentia, uma vez que Zana dava as ordens em casa, representando
a sensação de incapacidade e derrota do marido na criação dos filhos, que

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nunca foram de seu desejo.
Uma outra forma de violência, apresentada na obra, é a exercida pelo
poder autoritário do Estado na imposição de normas por meio do regime
militar. Em abril de 1964, o professor Antenor Laval é morto na praça de
Manaus, em decorrência de sua ideologia militante e sua representação de
resistência à ditadura, luta apreciada por Omar e Nael, o qual recebe
influência para ser professor e escritor do contato com Laval.
Poeta e professor, Laval é um divulgador da literatura de boa
qualidade e modelo inspirador para muitos estudantes do colégio Liceu Rui
Barbosa. Além do convívio entre professor e aluno dentro dos muros da
escola, havia também encontros entre eles em bares e ruas manauaras, quase
compondo uma “Sociedade dos poetas mortos” amazonense.
No entanto, o professor tem fama de militante de esquerda, inclusive
pela história que circulava sobre ele e sua passagem por Moscou aludindo
à Revolução Russa, de 1917, ocasião em que o partido bolchevique, liderado
por Vladimir Lênin, levou operários e camponeses à revolta, que pôs fim à
monarquia, originando o primeiro país socialista do mundo, a União
Soviética:

Só um zum-zum corria nos corredores do liceu,


dois dedos de mexerico da vida alheia, dele,
Laval. Um: que fora militante vermelho, dos
mais afoitos, chefe dos chefes, com passagem
por Moscou. Ele não negava, tampouco
aprovava. Calava quando a curiosidade se
alastrava em alaridos. O outro rumor, bem mais
triste. Diz que havia muito tempo o jovem
advogado Laval vivia com uma moça do
interior. Líder e orador nato, ele fora convocado
para uma reunião secreta, no Rio. Levou a
amante e voltou a Manaus sozinho. Falou-se de
traição e abandono. Versões desiguais, palavras
desencontradas e afins... Conjeturas. O que se
sabe é que, desde então, Laval internou-se no
subsolo de uma casa à margem do Igarapé de
Manaus. Várias vezes foi encontrado no canto

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DOIS IRMÃOS
da caverna, quieto e emudecido, o rosto
cadavérico, a barba espessa que ele conservaria
até a imolação. Não era greve de fome nem
inapetência. Talvez desespero. Seus poemas,
cheios de palavras raras, insinuavam noites
aflitas, mundos soterrados, vidas sem saída ou
escape. Às sextas-feiras distribuía-os aos
alunos, pensando que ninguém os leria,
pensando sempre no pior. Lá no íntimo era um
pessimista, um desencantado, e tentava
compensar esse desencanto por meio da
aparência, com seu jeito de dândi. Refutava o
rótulo de poeta, mas não se incomodava quando
o chamavam de excêntrico ou afetado. Não sei
qual dos dois atributos o definia melhor.
Nenhum, talvez. Mas foi um mestre. (Dois
Irmãos, 2017, p. 144, 145)

Embora não fosse efetivamente um líder revolucionário, o


comportamento de professor de francês e de literatura clássica francesa de
Laval, com discurso ampliador da capacidade de reflexão dos estudantes,
incomodou os militares instalados em Manaus.
Assim, acusado de liderar uma manifestação contra o regime, Laval
foi espancado em via pública, de forma violenta para intimidar qualquer
outro revoltoso, e morto. Logo depois, alguns estudantes concentraram-se
na mesma da praça, protestando contra a morte do professor e reivindicando
melhorias para a cidade e para a população. Dentre eles estavam Omar e
Nael. Seriam eles pai e filho, já que concebiam as mesmas ideologias?

3.7 POLIFONIA E INTERTEXTUALIDADE


Mikhail Bakthin (2005, p. 04) esclarece que a polifonia é uma
“multiplicidade de vozes e consciências independentes e imiscíveis”, que se
misturam ao discurso do enunciador, sendo distintas ideologicamente do
discurso autoral.
É por meio desse entrecruzamento de vozes que Nael compõe sua
narrativa moldada, principalmente, pelo viés da memória fragmentada de

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MILTON HATOUM
Halim, Domingas, Zana, Yaqub e Rânia, muitas vezes substituindo-se a voz
do narrador pelas vozes dessas personagens “sub-narradoras”:

Eu gostava de ouvir as histórias. Hoje, a voz me


chega aos ouvidos como sons da memória
ardente. Às vezes ele se distraía e falava em
árabe. Eu sorria, fazendo-lhe um gesto de
incompreensão: “É bonito, mas não sei o que o
senhor está dizendo”. Ele dava um tapinha na
testa, murmurava: “É a velhice, a gente não
escolhe a língua na velhice. Mas tu podes
aprender umas palavrinhas, querido.”
A intimidade com os filhos, isso Halim nunca
teve. Uma parte de sua história, a valentia de
uma vida, nada disso ele contou aos gêmeos. Ele
me fazia revelações em dias esparsos, aos
pedaços, “como retalhos de um tecido”. Ouvi
esses “retalhos”, e o tecido, que era vistoso e
forte, foi se desfibrando até esgarçar. (Dois
Irmãos, 2017, p. 39)

Nael não compreende muitas palavras empregadas em árabe por


Halim, o qual mantém sua Língua materna quando conversa com familiares,
misturando-a com a Língua Portuguesa, em sua variedade amazônica, ao se
comunicar com outras pessoas, assim como também o faz Zana. O
bilinguismo, portanto, é constante em Dois Irmãos, mas a Língua Francesa
também permeia a obra nos comércios locais, como a loja Rouaix, ou nas
aulas de francês na escola:

No Liceu, que não era totalmente desprezível,


reinava a liberdade de gestos ousados, a
liberdade que faz estremecer convenções e
normas. A escória de Manaus o frequentava, e
eu me deixei arrastar pela torrente dos
insensatos. Ninguém ali era “très raisonnable”,
como dizia o mestre de francês, ele mesmo um

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DOIS IRMÃOS
excêntrico, um dândi deslocado na província,
recitador de simbolistas, palhaço da sua própria
excentricidade. Não ensinava a gramática,
apenas recitava, barítono, as iluminações e as
verdes neves de seu adorado simbolista francês.
(Dois Irmãos, 2017, p. 28)

A Língua Espanhola aparece nas conversas entre Rochiram e Rânia


e os termos indígenas também se fazem presentes no romance de Milton
Hatoum. Desse modo, Nael, embora não domine nenhum outro idioma além
do Português, vai criando seu discurso com essa mescla de Língua e de
léxicos religiosos católicos, muçulmanos e indígenas, empregando tanto a
norma culta quanto o coloquialismo em sua composição literária.
A multiplicidade de vozes conduz o leitor a olhares diferentes e,
também, a narrativas, que vão se encaixando à principal, a fim de ilustrar ou
complementar situações. Muitas dessas histórias, sejam elas de Nael, Halim,
Zana, Rânia, Domingas, dentre outros, vinculam-se a outros textos literários
já existentes, compondo uma releitura, denominada intertextualidade, e
dialogando, principalmente, com os temas do ciúme, da inveja e da ira.
Uma das obras de tradição árabe mais conhecida é As mil e uma
noites, em que as histórias vão sendo contadas dentro de outras histórias,
com o propósito de se adiar o desfecho, tal qual em Dois Irmãos, em que não
há término se considerarmos que a rivalidade entre Yaqub e Omar continua
mesmo após a morte dos pais.
Outra relação intertextual da obra de Milton Hatoum é com a Bíblia:
a rivalidade entre irmãos nos mitos de Caim e Abel e de Esaú e Jacó.
No primeiro livro do Pentateuco5, o Gênesis, Caim e Abel, filhos de
Adão e Eva, eram irmãos de comportamentos extremamente diferentes,
sendo o primeiro agricultor e o segundo, pastor de ovelhas. Caim ofereceu
a Deus os frutos de sua primeira colheita e Abel, as primeiras ovelhas que
nasceram do seu rebanho, o que agradou mais ao Senhor, por considerar
uma oferta mais sincera e justa do que a de Caim, o que fez com que ele,
motivado por inveja e ciúme, preparasse uma emboscada, na qual o irmão
Abel morre.

5
O Pentateuco são os primeiros cinco livros da Bíblia: Gênesis, Êxodo, Levítico,
Números e Deuteronômio.

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MILTON HATOUM
No caso de Yaqub e Omar, ambos tentam conquistar a atenção
materna, desencadeando entre eles uma forte e violenta rivalidade, que,
embora não culmine com a morte de nenhum dos gêmeos, destrói a
harmonia familiar.
No mito de Esaú e Jacó, também em Gênesis, Isaac pediu a Deus o
milagre de que a esposa Rebeca concebesse um filho, uma vez que ela era
estéril. Após algum tempo, ela engravidou de gêmeos, os quais, desde o
ventre, já rivalizavam. Deus disse à Rebeca que ela gerava o princípio de
dois povos, sendo que um de seus filhos seria mais forte do que o outro.
O primeiro a nascer era uma criança ruiva e com o corpo coberto de
pelos e, por isso, foi chamado Esaú, cujo nome significa “coberto de pelos”.
Logo a seguir, nasceu o caçula, segurando o irmão pelo calcanhar, o que fez
com que seu nome fosse Jacó, que significa “aquele que segura pelo
calcanhar”.
Esaú, por sua vez, tornou-se um homem com habilidade para a caça,
o que o tornava mais querido pelo pai, enquanto Rebeca amava Jacó,
situação que desencadeou uma intensa rivalidade entre os gêmeos.
Dois Irmãos retoma a passagem bíblica no que concerne à rivalidade
entre os gêmeos, mas inverte a ordem dos nascimentos, uma vez que Yaqub,
cujo nome em árabe significa Jacó, nasce primeiro do que Omar, o qual é o
peludinho de Zana.
Na história bíblica, os filhos são separados após a traição de Jacó, tal
qual em Dois Irmãos, se considerarmos o flerte de Yaqub com Lívia uma
traição a Omar, o qual estava interessado na menina Lívia. Rebeca, no mito
bíblico, passa a priorizar o afeto a Jacó, como Zana faz com o Caçula, que,
na obra de Hatoum, é Omar.
O episódio de Esaú e Jacó também é retomado no romance
homônimo de Machado de Assis, sendo, por extensão, a obra machadiana
vinculada intertextualmente a Dois Irmãos, de Milton Hatoum.
Em “Esaú e Jacó”, Machado de Assis apresenta Pedro e Paulo,
gêmeos rivais ab ovo, que, ao longo da vida, tornam-se inimigos nas esferas
ideológicas, políticas e amorosas, tal qual Esaú e Jacó, Yaqub e Omar. No
entanto, enquanto na Bíblia os irmãos se reconciliam, os gêmeos da ficção
machadiana e hatouniana continuam inimigos por toda a vida.
Outra similaridade entre o mito bíblico e Dois Irmãos é a preferência
materna pelos filhos caçulas, o que não ocorre em Machado de Assis, pois

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DOIS IRMÃOS
a mãe de Pedro e Paulo, Natividade, trata os gêmeos da mesma maneira.
Destaque-se que, nos três casos, a figura materna é o motor da discórdia
fraternal.
Outras intertextualidades bíblicas se fazem presentes na obra de
Milton Hatoum, como a já citada parábola do “Filho Pródigo” e uma alusão
a Moisés, salvo do rio Nilo e criado por uma princesa egípcia, quando Nael
fala sobre sua origem:

Meu passado, de alguma forma palpitando na


vida dos meus antepassados, nada disso eu
sabia. Minha infância, sem nenhum sinal da
origem. É como esquecer uma criança dentro de
um barco num rio deserto, até que uma das
margens a acolhe. (Dois Irmãos, 2017, p. 54)

Certamente, há outras intertextualidades trabalhadas na obra Dois


Irmãos, vínculos que podem ser feitos entre as características de Yaqub e
Omar com a mitologia pagã greco-latina, como Apolo e Dionísio, opostos
e complementares um do outro, como os gêmeos de Milton Hatoum, ou
com diversos outros textos da grandiosa literatura universal.

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MILTON HATOUM
4. EXERCÍCIOS PROPOSTOS

1. (UFAM) – A respeito do personagem Adamor, o Perna-de-Sapo, do


romance Dois Irmãos, de Milton Hatoum, fazem-se as seguintes
afirmativas:
I. Em 1943 descobriu os restos de um avião Catalina que desaparecera
nas florestas do Purus e salvou da morte o aviador Binford.
II. Descobriu, a pedido de Zana, o paradeiro de Omar, que fugira de casa
com uma mulher chamada Pau-Mulato e se escondera num barquinho
atrás do Mercado Adolpho Lisboa.
III. Antes de se tornar coveiro, era um peixeiro que vendia de porta em
porta e sofria com as implicâncias da índia Domingas.
IV. Ao sair de Lábrea com uma das pernas paralisada, veio para Manaus,
onde passou a morar em condições humilhantes numa palafita.

Estão corretas:
a) Apenas II e IV.
b) I, II e IV.
c Apenas I e III.
d) II, III e IV.
e) Todas as afirmativas.

2. (UFAM) – Ainda sobre o romance, é correto afirmar, a propósito do


enredo:

a) Para ajudar Halim a conquistar Zana, Abbas escreveu um gazal com


quinze dísticos, que o pretendente fingiu esquecer na mesa do
restaurante Biblos, de propriedade do viúvo Galib, pai da moça.
b) Tal como em Esaú de Jacó, de Machado de Assis, observamos o tema
dos gêmeos, que foi, porém, tratado de forma diferente, uma vez que
os dois irmãos não são inimigos.
c) Domingas, a mãe de Nael, após ter ficado órfã, veio do Alto Rio
Negro trazida por Halim, que nessa época trabalhava como regatão.
d) A antiga casa de Halim e Zana foi vendida para uma multinacional,
após a instalação da Zona Franca, e Nael e Rânia, sua tia, se mudaram
para um conjunto habitacional moderno.

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DOIS IRMÃOS
e) Uma das pretendentes a casar com Yaqub se chamava Dália, a Mulher
Prateada, que, no entanto, não foi capaz de enfrentar o ciúme
possessivo que Zana sentia em relação ao filho.

3. (UFSJ) – A relação de Rânia com Omar e Yaqub, no romance Dois


Irmãos, de Milton Hatoum, é descrita pelo narrador como:
a) erotizada
b) cruel
c) pudica
d) fraterna

5. RESPOSTAS DOS EXERCÍCIOS PROPOSTOS

1) Reunindo-se todas as informações das afirmativas, teremos um breve


resumo da vida da personagem Adamor, o Perna-de-Sapo.
Resposta: E

2) Halim, para conquistar Zana, valeu-se de um gazel, ou gazal,


composto pelo amigo Abbas. Gazal é um poema lírico, de forma fixa,
composto em dísticos e de temática amorosa ou mística.
Resposta: A

3) De acordo com a narrativa, é perceptível que Rânia, irmã de Omar e


de Yaqub, tem um afeto pelos gêmeos que supera a afeição fraternal.
Resposta: A

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MILTON HATOUM
6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Margens da cultura. 1 ed. São Paulo: Boitempo, 2004.
AGUIAR, A. T de. O mito do duplo nas obras Esaú e Jacó e Dois irmãos.
In: Acta Científica, Engenheiro Coelho, v. 21, n. 1, p. 11-24, jan/abr 2012.
ALBUQUERQUE, G. Um autor, várias vozes: identidade, alteridade e
poder na narrativa de Milton Hatoum. In: Estudos de literatura brasileira
contemporânea. Brasília, jul/dez, 2006.
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Imprensa Oficial, 1996.
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Trad. Aurora Fornoni Bernadini et al. São Paulo: Hucitec/Annablume, 2002.
_____. Problemas da poética de Dostoiévski. Trad. Paulo Bezerra. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2005.
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Faculdade de Letras, Universidade Federal de Minas Gerais, 2004) p. 137.
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DOIS IRMÃOS
e no vestibular: uma discussão teórico-metodológica. Tese (Doutorado em
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para um certo relato. São Paulo: Ateliê Editorial, 2006.
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narrativo e retórica em Relato de um certo oriente e Dois irmãos, de Milton
Hatoum. São Paulo: Nankin, 2004.
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espaço amazônico em romances de Dalcío Jurandir e Milton Hatoum. Tese
de doutorado. USP: Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas-
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MILTON HATOUM
7. APÊNDICES

Biorritmo Ribeirinho
Milton Hatoum, autor do livro “Dois Irmãos”, privilegiou Manaus na
narrativa para “quitar dívida”

Escritor manauara leva o rio dentro de si


Heloísa Helena Lupinacci

“Calmo como uma mangueira”. Assim o escritor Milton Hatoum


é descrito por quem o conhece. Tão calmo que ficou 11 anos sem publicar
um livro, intervalo entre o lançamento de “Relato de um Certo Oriente”
(1989) e “Dois Irmãos” (2000), escrito e reescrito sete vezes.
Filho de libaneses, nasceu em 1952 em Manaus. Aos 16 anos, foi
para Brasília, de lá, para São Paulo. Aqui, se formou arquiteto em 1977. Foi
para Espanha e para a França. Voltou para Manaus e quinze anos depois,
em 1999, para São Paulo, de onde fala sobre a vida manauara para a Folha.

Folha – O que acontece com um manauara que vem para São Paulo?
Milton Hatoum – Entra sem pressa para selva paulistana e aprende a gostar
dela. Mas, de vez em quando, sonha com a imensidão e os remansos do rio
Negro. Uma singularidade de Manaus é ser metrópole no meio da floresta
e à margem desse belo afluente do Amazonas. Em São Paulo eu sinto falta
do horizonte, da vegetação... Às vezes fico imaginando aquele rio... O diabo
é que, para onde vou, levo esse rio dentro de mim. Quando vou a certos
lugares de São Paulo, tenho a sensação de estar em bairros de Manaus. No
meu imaginário, as cidades brasileiras se misturam o tempo todo.

Folha – Como o rio dita a vida lá?


Hatoum – Euclides da Cunha notou que na Amazônia “o rio é a estrada para
toda a terra”. O velho Manaus Harbour liga Manaus à região amazônica. O
rio possibilita uma intensa relação cultural e econômica entre a cidade e o
interior. Além disso, moradores e comerciantes navegam nos igarapés que
cortam a cidade. A paisagem urbana é anfíbia. Mas desde a implantação da
Zona Franca [1967], a cidade cresceu sem planejamento, e os igarapés estão
poluídos.

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Folha – Que lugares devem ser visitados em Manaus?
Hatoum – Gosto muito do mercado municipal de Adolpho Lisboa, do porto
da Escadaria e do centro antigo, a área em redor da praça Pedro II até a ilha
de São Vicente. A sede do Inpa [Instituto Nacional de Pesquisas
Amazônicas], projetada por Severiano Porto, é uma aula de arquitetura e
deveria ser modelo para habitação popular. Além do teatro Amazonas, da
Ponta Negra e dos lugares mais visitados, vale a pena pegar uma catraia no
porto da Escadaria e navegar pelo igarapê do Educandos. Se der tempo, um
passeio pelo arquipélago das Anavilhanas é o máximo. Sugiro também subir
o rio Negro até Barcelos, a primeira capital da Província. Ou então um
passeio pelo rio Urubu e pelo lago Tupira, perto de Silves. Isso sem falar de
Manacapuru e seus lagos. É uma viagem sem fim.

Folha – Certa vez, você disse “Vejo conflito em tudo [em Manaus]”. Um
visitante atento percebe isso?
Hatoum – Ele logo percebe que a população e a cidade herdaram muita
coisa das culturas indígena e europeia. Manaus é o nome de uma tribo que
foi dizimada. A Zona Franca é irreversível. A periferia é uma favela
gigantesca, o desmatamento foi brutal. A ironia mais trágica é que em muitos
bairros pobres falta água, numa cidade banhada pelo maior rio do mundo.
Em 1976, um prefeito-coronel destruiu a praça Nove de Novembro, um
logradouro histórico, pois a notícia da Independência só chegou a Manaus
no dia 9 de novembro. Destruiu praças e monumentos, cortou árvores
centenárias, fez o diabo em nome do “progresso”. O atual prefeito encheu
a cidade de palmeiras, só que de palmeiras importadas! Há centenas de
palmáceas amazônicas... Não é de enlouquecer?

Folha – Por que Manaus é tão presente no livro “Dois Irmãos”?


Hatoum – No meu primeiro livro [Relato de um Certo Oriente], o espaço
da cidade não aparece muito. O relato é uma viagem interior, com lances de
uma memória inventada. Quando escrevi “Dois Irmãos”, estava possuído
pela cidade. Foi inevitável, porque passei quinze anos lá. Aí juntei os dramas
de uma família com o “progresso decadente” da Manaus moderna. A gente
escreve sobre algo que nos toca profundamente. Eu tinha uma dívida afetiva
e moral com a minha cidade, e eu tentei quitá-la escrevendo um romance.
É pouco, mas é tudo o que puder fazer, com muita paixão, dor e também
alegria.

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LUPINACCI, Heloísa H. Escritor manauara leva o rio dentro de si. Folha
de S. Paulo, Turismo. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/
turismo/fz0906200316.htm. Acesso em: 30 jun. 2023.

MUSA – MUSEU IMAGINÁRIO: A SÉRIE DE


ENTREVISTAS DO MUSA

Que características você ressaltaria dessa arquitetura (de Manaus)?


Primeiro, acho que a combinação inteligente da alvenaria, do tijolo de argila,
com a madeira. A solução que o Severiano encontrou para a circulação do
ar; a proteção solar também é inteligente; os beirais; as placas de proteção
solar; a implantação dos edifícios em uma área arborizada... Eu acho que há
ali um desenho inteligente e sensível que responde aos imperativos do clima
e isso é importante. Além disso, tem um lado visual e estético que é bem
interessante a meu ver. Se você comparar isso aos projetos de habitação
popular, vai ver como esses arquitetos ou desenhistas ou engenheiros
conseguem projetar de uma maneira burra e cruel. Porque a arquitetura,
quando é burra e malfeita, é também cruel porque age diretamente na vida
das pessoas. Não é como uma pintura, que, se você não gostar, passa adiante
ou não olha mais; ou como um livro, que se, você não gostar, fecha e isso
não te faz mal. A arquitetura não. O atributo da arquitetura não é apenas a
visão, é a própria vida, você habita o espaço projetado, dorme lá, come lá,
conversa, convive, se relaciona nesse espaço. Então, esses projetos de
habitação popular são, para mim, uma espécie de tara arquitetônica. Diria
quase que são projetos fascistas, sem que esse arquiteto saiba, eu não sei se
ele sabe.

E você comentou que um pouco dessa sua revolta você coloca nos livros.
Meus livros, sobretudo Dois irmãos e Cinzas do Norte, narram essa
destruição de Manaus. São romances amargos, como todo romance. O
romance não é uma receita de bem-viver, isso é autoajuda. No Dois irmãos,
Manaus é quase uma personagem. Você pode imaginar que haja até
implicações ideológicas. Não que o romance contenha uma mensagem
explícita, porque eu também acho isso muito frágil – romance-denúncia,
arte-denúncia, eu não acredito em nada disso. Acho que a arte não responde
a nada, ela faz perguntas, insinua coisas, te convida a refletir sobre teu

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tempo, sobre você mesmo. Mas o Cinzas do Norte, que é um romance mais
ambicioso, não fala apenas de Manaus, tem um pano de fundo histórico da
ditadura, tem a relação com o Rio de Janeiro, com a Europa, tem essa ânsia
do personagem. É uma espécie de despedida também de uma cidade, de um
mundo, que não existe mais.

Como é seu processo de construir um livro?


Eu geralmente só começo a escrever quando tenho a estrutura mais ou
menos armada na minha cabeça. Preciso estruturar os conflitos, saber, mais
ou menos, quem são os personagens e qual a relação entre eles, saber como
se dá a passagem do tempo. Porque o romance fala sobre a passagem do
tempo, o romance é uma narrativa sobre o tempo. A partir daí então eu
começo a escrever. Geralmente escrevo a primeira página, o começo e o
fim. Preciso saber como começa e como termina. Porque o grande problema,
o mistério, é essa ponte, é como se dá esse arco que vai da primeira página
à última. O romance é a arte da paciência, como a pesquisa. Na pesquisa
você não pode ter pressa. As pesquisas duram anos, porque dependem da
observação, do empírico, dos testes, de coisas comprovadas ou não. Você
está fazendo uma pesquisa com o objetivo X e no fim alcança o objetivo Z.
Não é muito diferente na literatura. Você começa a escrever um romance e
no meio do caminho a coisa vai mudando, sai do seu controle, personagens
secundários se tornam importantes, protagonistas se tornam secundários, os
conflitos assumem outras proporções. Acho que tudo isso é imprevisível
como a vida.

Você frequentemente menciona que não reconhece mais Manaus. O que


mudou? Foi a estrutura física apenas ou algo mais sutil?
Manaus, nos últimos 30 ou 40 anos, talvez tenha sido a cidade menos
preservada e mais destruída do Brasil. Isso por várias razões: pela falta de
planejamento; pela ignorância dos administradores; pela falta de visão dos
administradores – visão urbana, histórica; falta de sensibilidade cultural e
também uma falta de amor pela cidade. Esse é um dos lados que gerou essa
transformação negativa. Outras coisas são a especulação imobiliária, que é
totalmente selvagem, e a falta de critérios para construir, implantar zonas
comerciais, residenciais. A cidade tem que ser pensada, refletida, não pode
ser jogada, não pode crescer de forma aleatória. O que eu acho é que a

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intervenção urbana e arquitetônica [em Manaus] é muito burra. Optaram
pela verticalização de uma cidade em que venta pouco, onde há espaço para
uma expansão horizontal, onde uma arquitetura horizontal é mais propícia
ao clima. Quer dizer, optou-se por uma espécie de cópia, de “macaquiação”,
de São Paulo, que por sua vez é uma cópia muito precária de Miami, vamos
dizer assim. E do Rio de Janeiro também. O Rio ainda tem uma coisa dos
anos 50 e 60 que é interessante, que tem a ver com a escala urbana, com a
paisagem, com os morros e montanhas, com o relevo e com o mar. No caso
de Manaus, você pode notar que os edifícios não são avarandados, não tem
proteção solar, não são pensados em função do clima. Eu não falo nem da
opção estética, que é horrorosa na maioria das vezes. Poucos arquitetos
entenderam essa cidade, um deles foi Severiano Porto [1930-]. Por isso, o
rosto da cidade se tornou um pouco monstruoso, as praças estão sufocadas,
não há mais uma relação orgânica entre a natureza e o urbano, algo que
havia na minha infância e juventude. Foram criados pouquíssimos novos
parques – o parque do Bilhar, o Jefferson Peres, mas é muito pouco para
uma cidade que não é arborizada, que não tem calçadas. O transporte urbano
é o pior do Brasil, talvez um dos piores da América do Sul. A habitação
popular é uma espécie de canil, e isso eu falo nos meus romances, no Cinzas
do Norte. A implantação de conjuntos habitacionais é totalmente irracional,
arranca-se a floresta e é como se as pessoas não necessitassem de sombra.
Então, é de uma burrice, de uma ignorância, estarrecedora. Isso tudo me
entristece. Não sei se me entristece, acho que me revolta, mais do que me
entristece.

Como manauara pensa a cidade?


Acho que o manauara não tem nem condições de pensar. O povo, do jeito
que vive, dessa forma bruta que vive, não tem condições de refletir sobre a
cidade. Ele sabe que sofre, que mora no inferno – a maior parte da população
mora em um inferno, porque a periferia de Manaus é um retrato do que há
de mais terrível. Há muito sofrimento, você passa horas dentro de um ônibus
morrendo de calor, os igarapés estão poluídos, quando chove há enchente,
quando não chove o calor é brutal. Acho que esse livro do Gautherot mostra
que a arquitetura da palafita era uma arquitetura sábia. A arquitetura do Inpa
[Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia] é sábia, o projeto
arquitetônico dos edifícios faz parte de uma reflexão sobre a região.

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DOIS IRMÃOS
Musa. Museu imaginário: a série de entrevistas do musa. In: Pereira, Claudia
M. de S. O processo de constituição do livro Dois Irmãos: uma análise da
paratopia criadora de Milton Hatoum. Disponível em:
h t t p s : / / r e p o s i t o r i o u f s c a r. b r / b i t s t r e a m / h a n d l e / u f s c a r / 8 9 1 0 /
DissCMSP.pdf?sequence=1&isAllowed=y.Acesso em: 24 jul. 2023.

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MILTON HATOUM

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