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OS LIVROS DA FUVEST
DOIS IRMÃOS
MILTON HATOUM
DOIS IRMÃOS
DOIS IRMÃOS – MILTON HATOUM
OBRAS DA FUVEST
1. BIOGRAFIA DO AUTOR
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Yaqub recorda também o dia do baile dos jovens em que ele queria
ter ficado até a meia-noite, uma vez que a sobrinha dos Reinoso, Lívia, “a
meninona loira” (Dois Irmãos, 2017, p. 21), estaria presente nesse horário
1
Todas as passagens do romance Dois Irmãos foram extraídas da edição de bolso
da Companhia das Letras de 2017.
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ao evento. Ao vê-la, ele pensou em se aproximar dela, mas Zana ordenou-lhe
que levasse a irmã mais nova, Rânia, para a casa e voltasse posteriormente.
No retorno para o baile, Yaqub viu Lívia e Omar dançando num ritmo
diferente do típico das festas carnavalescas, o que o fez odiar a festa.
O gêmeo mais velho não entendia o porquê de a mãe proteger o irmão
caçula e, muito menos, compreendia o motivo de ter sido mandado para o
Líbano dois meses após o baile de Carnaval.
No retorno a Manaus, ao chegar em casa, já um homem feito, Yaqub
foi recebido efusivamente pela irmã Rânia e, então, caminhou até o quintal
para abraçar Domingas, como se ela fosse sua mãe e não a empregada da
casa.
A vizinhança veio ver Yaqub, que foi beijado por Sultana, Talib, suas
duas filhas, e Estelita Reinoso. Já era quase meia-noite, quando Omar entrou
na sala, dirigiu-se até a mãe, que o recebeu como se ele fosse o filho ausente,
abraçou-a e, sem nenhuma vontade, estendeu a mão para cumprimentar
Yaqub.
Domingas contou ao narrador a história da cicatriz que era a única
diferença física entre Yaqub e Omar: no último sábado de cada mês, no
porão da casa dos Reinoso, havia uma sessão de cinema em que a garotada
vestia a melhor roupa para o evento. Nessas ocasiões, Lívia dispensava mais
atenção a Yaqub, despertando o ciúme de Omar.
Numa dessas sessões, Yaqub reservou uma cadeira para Lívia sentar-
se ao lado dele. Repentinamente ocorreu uma pane no gerador e, ao ser
aberta a janela para entrar claridade, Omar viu os lábios de Lívia no rosto
de Yaqub. Imediatamente cadeiras foram atiradas ao chão, uma garrafa de
vidro estilhaçada e estocada no rosto de Yaqub por Omar.
Depois da briga entre os gêmeos, para que fosse contida a possível
violência entre os irmãos, Yaqub foi enviado ao Líbano e, agora, regressando
cinco anos depois para Manaus, já era um homem alto, que falava mal a
Língua Portuguesa, mas tinha grande facilidade com a Matemática.
Pouco tempo depois de ter voltado a Manaus, Yaqub comunicou a
família de que iria para São Paulo, onde estudaria na escola Politécnica.
Enquanto ele se dedicava aos estudos, Omar faltava às aulas na
escola, aproveitando a vida de maneira audaciosa e irresponsável pelas
madrugadas festivas de Manaus, comportamento que incomodava o pai
Halim.
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Omar foi expulso do colégio por ter desferido um soco no professor
de Matemática, mestre querido de Yaqub. Zana tentou evitar a expulsão,
mas o diretor não cedeu aos argumentos dela em favor de Omar.
Para o narrador, a partida de Yaqub para o Líbano fora vantajosa, pois
ficara com suas roupas velhas, as quais lhe serviriam depois de alguns anos.
No segundo capítulo, o narrador relata que Galib, pai de Zana,
inaugurou o restaurante Biblos, por volta de 1914, ponto de encontro de
imigrantes libaneses, sírios e judeus marroquinos. Abbas indicou o Biblos
para Halim, que passou a ser frequentador assíduo do local pelo
encantamento que tinha por Zana. Como Halim levava peixes para Galib, o
dono do restaurante não lhe cobrava o almoço.
Certa vez, quando Halim estava procurando por um chapéu feminino
para dar de presente à Zana, Abbas sugeriu-lhe que a presenteasse com um
gazal escrito por ele composto de quinze dísticos escritos em árabe. Halim
colocou os versos num envelope e, no dia seguinte, fingiu esquecê-lo no
restaurante. Uma semana depois, ao voltar ao Biblos, Halim recebeu de
Galib o envelope que ele tinha “esquecido” sobre a mesa.
Abbas disse a Halim que a timidez não conquistava ninguém e,
dando-lhe duas garrafas de vinho, sugeriu que ele voltasse ao Biblos e se
declarasse à Zana. Na manhã de sábado, Halim entrou no Biblos
embriagado, dirigiu-se à Zana e declamou-lhe os gazais. Dois meses depois,
eles se casaram.
Halim era um romântico tardio, apaixonado por Zana, a qual decidiu
casar-se com ele, mesmo com as cristãs maronitas de Manaus se opondo a
ela ter um muçulmano como marido. No entanto, Zana só seguia sua própria
vontade e, determinada, casou-se com Halim, enquanto Galib afastava as
beatas para que deixassem sua filha em paz.
Nessa ocasião, Zana fez uma exigência a Halim em frente ao pai:
deveriam se casar no altar de Nossa Senhora do Líbano, com a presença das
maronitas e católicas de Manaus. Halim satisfez-se por ter vencido as
oposições sociais em relação ao seu casamento, que foi feliz e de intensa
atividade sexual, principalmente na rede, durante muito tempo.
Certa vez, Zana sugeriu ao pai que viajasse para o Líbano para rever
os parentes. Ele partiu para Biblos2 e lá morreu na casa perto do mar. Zana,
2
Biblos (βύβλος) é o nome grego da cidade portuária fenícia de Gubla (ou Gebal).
Era conhecida pelos antigos egípcios como Kbn e, mais tarde, Kpn. Embora continue
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ao saber da morte do pai, trancou-se por duas semanas no quarto. Após o
período de luto, ela notificou ao marido o desejo de ter três filhos. Os
gêmeos não nasceram logo depois da morte do avô, pois Halim queria
aproveitar a vida com Zana sem a interferência de filhos.
No terceiro capítulo, o narrador conta que Yaqub enviava para a
família uma carta no final de cada mês e Zana e Halim convidavam os
vizinhos para a leitura da missiva. Nela, Yaqub contava que, em São Paulo,
tinha uma vida atribulada, o que levava Zana a temer que ele não voltasse
mais a Manaus.
Os pais mandavam dinheiro para Yaqub viver em São Paulo, mas ele
devolvia todo o valor, dizendo que não precisava de nada deles. Enquanto
ele se dedicava para ser um engenheiro, Omar continuava com sua vida
folgada e repleta de aventuras.
Zana sugeriu a Halim que vendessem o restaurante e abrissem um
comércio na rua dos bares, onde o movimento de fregueses era maior. Por
ocasião da inauguração da loja, uma freira, “irmãzinha de Jesus”, ofereceu
ao casal uma órfã batizada e alfabetizada para trabalhar na casa de Zana e
Halim.
Era Domingas, que cresceu nos fundos da casa e passou a fazer as
tarefas do lar. Dois anos após a chegada dela, nasceram Yaqub e Omar. Em
decorrência de o Caçula ter adoecido logo nos primeiros meses de vida, ele
foi cercado pelo zelo excessivo da mãe, enquanto Domingas cuidava de
Yaqub como se fosse sua mãe postiça.
Halim, que perdeu a paz logo que os filhos começaram a andar, não
se conformava com a ideia de ter sua privacidade e prazeres ao lado de Zana
roubados pelo excesso de mimo que a mãe dedicava a Omar.
O narrador revela que não conhecia suas origens, mas, alguns anos
depois, desconfiou de que um dos gêmeos era seu pai. Certa vez, ele e
Domingas foram passear e, nessa ocasião, ela contou ao narrador algumas
passagens de sua vida antes do orfanato, a perda do pai e a orfandade que a
levou para o convívio com as freiras. Uma tempestade fez esse passeio ser
uma tormenta para Domingas e o filho, sendo essa a única viagem que
fizeram juntos.
a ser denominada de Biblos pelos investigadores (sobretudo em referência a épocas
passadas), a cidade é agora conhecida pelo nome árabe Jubayl. Situa-se na
costa mediterrânica do Líbano, a 42 quilômetros de Beirute e é um local de muito
interesse de arqueólogos.
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Omar chegava das noitadas, acordava Zana e Domingas, que,
juntamente com seu filho, o narrador da história, iam ajudar o Caçula
embriagado. O narrador se incomodava muito com o que vivia na casa
libanesa e, algumas vezes, pensara em fugir, mas não o fizera porque não
queria deixar a mãe sozinha.
Yaqub morava em São Paulo já há seis anos, enquanto Omar
continuava sua vida alucinada. Uma noite, o Caçula chegou em casa com
uma moça do cortiço, fizeram uma festinha a dois e, de manhã, Halim, ao
se levantar, viu o filho e a moça nus dormindo no sofá. Enfurecido, o pai
ergueu Omar pelos cabelos, deu-lhe uma bofetada, acorrentou-o à maçaneta
do cofre de aço e desapareceu por dois dias.
Mas foi o episódio da mulher prateada que fez Zana mandar Omar
para São Paulo. Nessa altura, Yaqub já estava casado e não revelava o nome
da esposa aos familiares, o que irritava a mãe, pois, para ela, um filho casado
era um filho perdido ou sequestrado.
No aniversário de Zana, Omar encheu a casa com flores e bilhetinhos
amorosos para a mãe. O comportamento do Caçula despertava, na irmã,
Rânia, uma forte paixão por ele, que costumava fazer-lhe cócegas nos
quadris e tatear-lhe o vão entre suas pernas, fazendo-a suar e fugir para o
quarto.
Ainda muito jovem, Rânia aderiu à vida reclusa e solitária de seu
quarto fechado. Contudo, nas festas de aniversário de Zana, Rânia sempre
deixava esperançoso algum pretendente que estivesse no evento, aceitando
convites para dançar, mas, logo depois, interrompia a dança para jogar-se
nos braços do Caçula. A intimidade entre os irmãos revoltava qualquer
pretendente, que saía da festa irritado.
Havia rumores de que Omar estava envolvido com uma mulher mais
velha do que ele, notícia que deixou Zana impaciente. Foi justamente no
aniversário de Zana que Omar apresentou a namorada para a mãe, a qual
sempre afastava todas as mulheres do filho. Nessa ocasião, no entanto, a
mulher, chamada Dália, que Omar trouxe à casa, atraiu mais olhares na festa
do que Rânia. As filhas de Talib, como sempre, surgiram na festa dançando,
mas também tiveram o brilho ofuscado por Dália.
A mulher prateada (Dália), que Omar trouxe para casa, despertou o
fascínio de todos os presentes à festa. Após a dança, Zana chamou Dália
para ajudá-la a limpar a mesa e, segurando-a pelo braço com força,
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cochichou algo em seu ouvido, o que fez a mulher prateada ir embora,
dizendo em voz alta: “Vamos ver, vamos ver” (Dois Irmãos, 2017, p. 77).
Omar, desesperado, saiu correndo atrás de Dália.
Zana fez de tudo para convencer Yaqub a hospedar o irmão em São
Paulo, mas ele não permitiu que Omar dormisse em sua casa. O Caçula,
descobrindo o plano da mãe de enviá-lo para São Paulo, tentou reaproximar
Dália de Zana, mas ela mandou o narrador entregar dinheiro para a mulher
prateada, a qual desapareceu com a família.
Omar viajou para São Paulo enfurecido e revoltado. Durante seis
meses, a casa de Halim ficou em paz. O Caçula escrevia aos pais contando
que estudava muito e madrugava para ir à escola. No feriado de 15 de
novembro, Yaqub viajou com a esposa para Santos.
Na volta do feriado, ele foi ao colégio onde o Caçula estudava e, lá,
informaram-no de que Omar deixara de frequentar a escola após o 15 de
novembro. Na pensão, onde Omar residia em São Paulo, Yaqub soube que
o irmão também abandonara o quarto com apenas uma mala vazia e algumas
roupas dependuradas, além de um mapa dos Estados Unidos. Em dezembro,
Omar enviou o primeiro cartão postal:
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No quinto capítulo, o narrador conta que Yaqub veio visitar a família
pela primeira vez depois que partira para São Paulo, ocasião em que ele
revelou a verdade sobre Omar aos pais.
O narrador considera que, se Yaqub fosse seu pai, ele seria filho de
um homem quase perfeito, o que não ocorreria se o pai dele fosse Omar. Ao
reencontrar Yaqub, o narrador recebeu dele algum carinho, e, logo depois,
viu sua mãe de mãos dadas com o gêmeo de São Paulo.
Zana perguntou a Yaqub se a esposa não tinha vindo com ele, pois ela
queria conhecer a nora. Yaqub disse à mãe que Omar lhe daria uma nora
tão exemplar quanto ele. À noite ele revelou ao pai o motivo do
desaparecimento de Omar:
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dólar; no outro volume guardara as notas de
vinte. Folheou os dois livros, página por página,
depois chacoalhou-os, e caíram cédulas de um
dólar. O patife! Muito bem, que o pulha levasse
o passaporte, a gravata de seda, as camisas de
linho, mas dinheiro... “Deixou a mixaria, deixou
o que ele é. Esse é o teu filho. Um harami,
ladrão!” (Dois Irmãos, 2017, p. 91, 92)
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Caçula foi infrutífera.
Rânia administrava a loja vendendo mercadorias da moda que
vinham de São Paulo, controlando cada centavo gasto. Contrariada, ela
cedeu à compra excessiva de peixe pescado por Adamor, o Perna de Sapo,
um farejador que descobriu em pouco tempo o paradeiro de Omar: Ele
estava morando num barquinho de aluguel, juntamente com a mulher Pau
Mulato, pescando tudo o que podiam para vender. Omar rapara os cabelos
e deixara a barba crescer, além de ter os braços arranhados e seu corpo
bronzeado de tanto sol.
O Caçula foi resgatado e levado de volta para casa e, num acesso de
fúria, pegou a corrente do pai, arremessou-a contra o espelho, destruiu
cadeiras e molduras, rasgou os retratos de Yaqub, praguejou contra Halim,
xingou a mãe e a irmã, mas não se dirigiu ao narrador, que torcia para que
ele o tocasse para poder dar-lhe uma pancada.
Zana aproximou-se de Omar dizendo-lhe não admitir que ele se
envolvesse com uma mulher qualquer:
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Omar ficou vários dias sem sair de seu quarto e voltou a ser mimado
pela mãe. Rânia teve que ceder dinheiro para os caprichos do irmão, que a
agarrava no colo e sussurrava palavras em seu ouvido, as quais a faziam se
derreter toda.
Depois do envolvimento com a Pau-Mulato, Omar jamais se entregou
a outra mulher da mesma maneira. Voltou à vida de farras e às bebedeiras
noturnas, deixando o pai cada vez mais revoltado com o seu
comportamento. Halim foi entristecendo e, em seus últimos anos de vida,
passava a maior parte do tempo sozinho, no pequeno depósito da loja, mas
ainda se emocionava com Zana e dizia-lhe palavras de amor.
No sétimo capítulo, na primeira semana de janeiro de 1964, Antenor
Laval, o professor do colégio, foi até a casa de Omar para pedir-lhe que
participasse de uma leitura de poesia. O Caçula voltou para casa na
madrugada do dia seguinte e pediu dinheiro à irmã, que se recusou a dá-lo,
pois a quantia era muito maior do que ele costumava solicitar.
O narrador estranhou que Laval não o tivesse convidado para a leitura
de poesias. Em fins de março, o professor reapareceu muito abatido e não
voltou mais à escola, até que, em uma manhã de abril, ele foi preso e morto
por soldados do regime militar.
Vários alunos prestaram homenagem a Laval no coreto da praça,
lendo seus poemas, sendo o último leitor Omar. Enquanto isso,Yaqub voltou
para Manaus e, ao chegar em casa, quis que Domingas lhe fizesse
companhia na rede. Repentinamente, o Caçula ficou febril e recebeu os
cuidados exagerados da mãe, enquanto o narrador, que também adoecera,
recebia a atenção do avô Halim, da mãe Domingas e de Yaqub.
Depois de recuperado, o narrador e Yaqub passearam por Manaus,
que estava lotada de soldados. Após a partida de Yaqub para São Paulo,
Omar começou a se exercitar como jardineiro, catando frutas podres do
quintal, varrendo as folhas, cheirando flores e cavando a terra.
Rânia pediu ao narrador que fosse ajudá-la com umas caixas de
mercadorias na loja. Os dois trabalhavam arduamente, quando, ao se abaixar
para abrir uma caixa, Rânia deixou os seios aparecerem, despertando desejo
no narrador. Ambos pararam as tarefas e se envolveram fisicamente na
escuridão da loja.
Depois do momento sexual intenso, eles conversaram um pouco e
Rânia contou ao narrador que sua festa de aniversário de quinze anos fora
cancelada repentinamente e apenas ela e a mãe sabiam o motivo:
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entraram de supetão na casa e logo começaram
a rir. Riam e cobriam o rosto com as mãos,
nervosas. Nós ouvimos o riso e o tilintar das
pulseiras de ouro que chacoalhavam no braço
das moças. A mãe apareceu na sala, e, antes de
perguntar a razão do riso, olhou para o quintal:
o filho, nu, enlaçava o tronco da seringueira, e,
com uma lentidão artística, arranhava-lhe o
tronco. Queria extrair leite daquela árvore
secular? Ao ver a mãe espiá-lo, ele se afastou
da árvore, pôs as mãos entre as pernas, apalpou
a virilha. Começou a gemer, fazendo uma careta
medonha. Zahia e Nahda pararam de rir,
arregalaram os olhos. Recuaram. Ele uivava,
berrava como um desgraçado, apertando as
coxas com as mãos. Zana gritou por Domingas,
as duas se acercaram do tronco, minha mãe
logo percebeu o motivo dos berros. Sofria, o
Caçula. Arreganhava-se para mijar, mordia os
lábios e tornava a arranhar o tronco da
seringueira. “Está com o ramêmi ensopado de
pus”, disse Domingas. Zana se espantou: “O
que é isso? Estás louca?”. Minha mãe balançou
a cabeça: “A senhora não sabe... Não é a
primeira vez que ele pega essa doença”. Zana
não acreditou. À noite, o sonso do jardineiro
escapava pela cerca dos fundos... Dessa vez
tinha sido forte, uma gonorreia galopante, como
se dizia. As duas levaram o Caçula para o
banheiro, fizeram um curativo, enrolaram o
ramêmi de Omar com gaze. Ele teve que ir ao
médico, e aguentou umas duas agulhadas na
bunda. Voltava da farmácia caminhando de
banda, como um papagaio. Em casa, o
tratamento não era mais ameno. Zana esperava
Halim sair, Domingas fervia água com folhas de
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crajiru e o Caçula ficava de cócoras ao lado da
bacia, recebendo o tratamento da mãe. Ele
apertava a virilha, se contorcia, trincava os
dentes, derramava a infusão, queria fugir. Zana
pegava uma toalha limpa e recomeçava a
aplicação. No fim, ele se sentia aliviado. Nós
sabíamos quando ele mijava por causa dos
urros que soltava durante a noite. Era um
escândalo. “Quem fez isso contigo?”, quis
saber Zana. Ele não falou.” (Dois Irmãos, 2017,
p. 156, 157)
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Rânia, de Domingas. Zana cobria o rosto com as mãos;
ela estava sentada no chão, no meio de cacos do alguidar,
perto de Halim, talvez sem entender como tinha
acontecido. Ninguém, naquela noite, viu o velho entrar
na sala. Ele devia ter chegado no meio da madrugada,
avançando com passos imperceptíveis de velho ferido que
foge de tudo e de todos para morrer. Omar nos
surpreendeu com seu gesto irado, o dedo em riste
apontado para o rosto de Halim, para os olhos quase
fechados, sem vida, do pai cabisbaixo. Rânia ficou
paralisada: não sabia o que fazer, não pôde impedir o
irmão de gritar, de pegar no queixo do pai e erguer-lhe a
cabeça. O viúvo Talib chegou a tempo de evitar um
confronto entre o filho vivo e o pai morto. Já amanhecia
quando Talib e as duas filhas irromperam na sala e
apartaram Omar do pai. O Caçula reagiu, esperneando,
gritando, e eu não suportei vê-lo tão corajoso diante do
finado Halim. Fiz um gesto para Talib e suas filhas,
expulsei o Caçula da sala e arrastei-o até o quintal. Ele
se enfureceu, pegou um terçado, me ameaçou. Gritei mais
alto do que ele: que me enfrentasse de uma vez, que me
esquartejasse, o covarde. O terçado tremia-lhe na mão
direita, enquanto eu repetia várias vezes: “Covarde...”.
Ele calou, empunhando o facão que usava para brincar
de jardineiro. Tinha coragem de olhar para mim, e o
olhar dele só aumentava a minha raiva. Ele recuou, ficou
acocorado debaixo da velha seringueira, o rosto
espantado voltado para a porta da sala, de onde
Domingas nos observava. Ela me chamou, me abraçou e
pediu que eu voltasse para a sala. (Dois Irmãos, 2017, p.
162, 163)
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Em um sábado, o Caçula chegou em casa na companhia de Rochiram,
um indiano que trabalhava na construção civil e estava procurando um
terreno para construir um hotel. Zana, inicialmente, não gostou do visitante
e Domingas desconfiou do comportamento dele.
Zana pediu ao narrador que datilografasse uma carta dela para Yaqub,
na qual pedia perdão por tê-lo mandado para o Líbano e afirmava seu desejo
de ver os filhos reconciliados, trabalhando na construção do
empreendimento do indiano. Algum tempo depois, chegou a resposta de
Yaqub:
Era uma carta com poucas linhas. Ele não
aceitou nem recusou qualquer perdão. Escreveu
que o atrito entre ele e Omar era um assunto dos
dois, e acrescentou: “Oxalá seja resolvido com
civilidade; se houver violência, será uma cena
bíblica”. Mas ele se interessou pela construção
do hotel, ignorando a participação do irmão.
Terminou a carta com um abraço, sem adjetivo
ou aumentativo. A mãe leu em voz alta essa
palavra e murmurou: “Eu peço perdão e ele se
despede com um abraço”. (Dois Irmãos, 2017,
p. 171)
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Rochiram exigia uma fortuna em troca do que
havia pagado a Yaqub pela execução dos
projetos de engenharia e, a Omar, pela comissão
do terreno. Além disso, perdera muito tempo
com esse negócio. Ameaçou-a com um processo,
escreveu que já conhecia pessoas influentes, “as
mais poderosas da cidade”. Rânia pediu um
prazo: “Alguns meses para arrumarmos a nossa
vida”.
Contou à mãe a exigência de Rochiram. Disse
que faria tudo para evitar um processo de Yaqub
contra Omar. (Dois Irmãos, 2017, p. 177)
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queria... Uma noite ele entrou no meu quarto,
fazendo aquela algazarra, bêbado,
abrutalhado... Ele me agarrou com força de
homem. Nunca me pediu perdão.” (Dois Irmãos,
2017, p. 180)
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do bulício no centro de Manaus. (Dois Irmãos,
2017, p. 184, 185)
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quando ela dizia isso. Eles me vigiavam,
percebiam a minha presença? Talvez não se
incomodassem, nem tivessem vergonha. Deviam
rir de mim. Filho de ninguém! Zana esqueceu a
Domingas rebelde e evocou a outra, a
empregada e cozinheira de muitos anos, a
cúmplice no momento das orações, a mulher
minha mãe. (Dois Irmãos, 2017, p. 186, 187)
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Omar fora ao hospital para espancar o irmão. De lá ele foi expulso e fugiu,
passando a viver escondido em pousadas e pensões, uma vez que o irmão
mais velho empreendera uma verdadeira caçada policial a Omar.
Rânia começou a receber diversas cobranças dos gastos que o Caçula
realizava em suas farras. Ela não podia mais pagar todas as dívidas de Omar,
pois sabia que deveria poupar dinheiro para o que viria posteriormente.
No último capítulo, Nael relata que Rânia, durante a hora de almoço,
saía da loja a procura de Omar. Numa tarde de abril, ela o avistou magro,
amarelo, cabeludo e barbudo, mas não conseguiu se aproximar dele.
Repentinamente, tiros foram disparados e pessoas correram em fuga. Eram
soldados que empreendiam uma caçada a Omar, o qual foi preso, enquanto
Rânia discutia com os policiais e era repelida brutalmente por eles.
Omar foi condenado a dois anos e meio de detenção, sendo um
agravante à sentença sua amizade com Laval. Rânia escreveu a Yaqub,
recriminando-o pela perseguição empreendida ao Caçula e dizendo-lhe que
a vingança era muito mais patética do que o perdão. Yaqub manteve-se em
silêncio.
Omar foi liberado do presídio antes de completar a pena. Rânia tentou
se aproximar dele, mas ele fugia de todos. Nael, o narrador, chegou a ver
Omar mais uma vez:
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curto-circuito na Casa Rochiram. O bazar
indiano tornara-se um breu na tarde sombria,
coberta de nuvens baixas e pesadas. Entrei no
meu quarto, este mesmo quarto nos fundos da
casa de outrora. Trouxera para perto de mim o
bestiário esculpido por minha mãe. Era tudo o
que restara dela, do trabalho que lhe dava
prazer: os únicos gestos que lhe devolviam
durante a noite a dignidade que ela perdia
durante o dia. Assim pensava ao observar e
manusear esses bichinhos de pau-rainha, que
antes me pareciam apenas miniaturas imitadas
da natureza. Agora meu olhar os vê como seres
estranhos.
Eu tinha começado a reunir, pela primeira vez,
os escritos de Antenor Laval, e a anotar minhas
conversas com Halim. Passei parte da tarde
com as palavras do poeta inédito e a voz do
amante de Zana. Ia de um para o outro, e essa
alternância — o jogo de lembranças e
esquecimentos — me dava prazer.
O toró que cobria Manaus, trégua na quentura
do equador, me aliviava. Frutas e folhas
boiavam nas poças que cercavam a porta do
meu quarto. Nos fundos, o capim crescera, e a
cerca de pau podre, cheia de buracos, não era
mais uma fronteira com o cortiço. Desde a
partida de Zana eu havia deixado ao furor do
sol e da chuva o pouco que restara das árvores
e trepadeiras. Zelar por essa natureza
significava uma submissão ao passado, a um
tempo que morria dentro de mim.
Ainda chovia, com trovoadas, quando Omar
invadiu o meu refúgio. Aproximou-se do meu
quarto devagar, um vulto. Avançou mais um
pouco e estacou bem perto da velha seringueira,
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MILTON HATOUM
diminuído pela grandeza da árvore. Não pude
ver com nitidez o seu rosto. Ele ergueu a cabeça
para a copa que cobria o quintal. Depois virou
o corpo, olhou para trás: não havia mais
alpendre, a rede vermelha não o esperava. Um
muro alto e sólido separava o meu canto da
Casa Rochiram. Ele ousou e veio avançando, os
pés descalços no aguaçal. Um homem de
meia-idade, o Caçula. E já quase velho. Ele me
encarou. Eu esperei. Queria que ele confessasse
a desonra, a humilhação. Uma palavra bastava,
uma só. O perdão.
Omar titubeou. Olhou para mim, emudecido.
Assim ficou por um tempo, o olhar cortando a
chuva e a janela, para além de qualquer ângulo
ou ponto fixo. Era um olhar à deriva. Depois
recuou lentamente, deu as costas e foi embora.
(Dois irmãos, 2017, p. 196 a 198)
172
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DOIS IRMÃOS
Ao longo de doze capítulos, a voz do narrador, um homem solitário
e refugiado na escrita de sua obra, nostalgicamente, recompõe, depois de
trinta anos, cenas de uma infância vivida em uma casa à qual ele, na verdade,
não pertencia oficialmente, colocado à margem da família de Halim,
vivendo no quartinho dos fundos, juntamente com a mãe indígena
Domingas, a qual esconde, aparentemente, um segredo.
Adiar a escrita por trinta anos pode indicar que o distanciamento dos
fatos altere ou modifique os entendimentos que Nael constrói da realidade
que viveu, e a compreensão do passado fique comprometida, principalmente
porque o Nael menino é muito diferente do Nael narrador adulto, o qual já
teve experiências ao longo da vida, além de ser um professor que tem
habilidades com a escrita e a criatividade.
No entanto, algo não se altera nessas décadas: Nael ainda é o morador
do mesmo quartinho dos fundos da extinta casa libanesa, portanto, sua
condição de excluído, de pária social, que tenta resgatar o tempo passado,
para encontrar o equilíbrio sonhado, se mantém, o que pode ser detectado
em algumas das frequentes digressões presentes no livro.
Assim, Nael é um narrador memorialista que tem a pretensa intenção
de relatar uma versão mais ampla dos acontecimentos, mas, na verdade,
mais importante do que contar a história da família libanesa, ele deseja
construir-se como sujeito, buscando, na identificação de quem era seu pai,
a sua identidade e o encontro de si mesmo. No entanto, para descobrir sua
origem, o narrador precisa partir da história da rivalidade dos gêmeos, Yaqub
e Omar, dois polos narrativos que representam, alternadamente, o bem e o
mal.
Além de narrador, Nael é também personagem dessa história, pois
ele, no seu papel de ajudante da casa, participa, silenciosamente, de tudo o
que acontece, ouve e vê os atritos familiares, até começar a perceber que um
dos gêmeos poderia ser seu pai. De certa maneira, Nael prefere Yaqub como
pai, mas a dúvida permanece e ele teme que seu pai seja Omar.
Considerando-se que Nael reconstrói a história em um tempo muito
posterior ao momento em que sucederam os acontecimentos e, além disso,
é parte interessada no que narra, o relato torna-se parcial e motivo para
duvidarmos se tudo o que ele conta está vinculado à fidelidade dos fatos ou
manchado pelas sombras da memória e da parte interessada do narrador.
Assim, mais do que o desejo de contar a história da família libanesa
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MILTON HATOUM
em Manaus, Nael vale-se da escrita para reviver e revirar o passado e suas
experiências traumáticas. Ele, o filho bastardo de um dos dois irmãos,
emprega uma linguagem representativa da dor do abandono, da rejeição, da
marginalização espacial e social, das cicatrizes que tem na alma pelo
convívio com formas diversas de violência traumatizante:
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DOIS IRMÃOS
É por meio dessa recuperação mental que Nael desenvolve diversas
interrogações diretas, mas seguidas de respostas iniciadas por conectivos
de dúvida, ou expressões que marcam um narrador ainda titubeante:
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MILTON HATOUM
ou melhor, a partir da possibilidade de ele ter percepções em relação aos
acontecimentos que vivencia e que resultarão em uma reflexão silenciosa.
As lembranças de Nael vinculam-se ao espaço solitário do quartinho
dos fundos, onde ele sempre viveu e, talvez, já adulto, permaneça nesse
espaço por não querer abandonar o passado. Assim, a primeira cena do
romance, que podemos considerar como o prefácio da obra, também está
relacionada ao passado. Nela, percebemos a amargura de Nael e a
inexistência de afeto familiar entre ele e Zana, matriarca da casa, com quem
Nael é impiedoso ao se recusar a olhar para a avó à beira da morte.
A narrativa inicia-se pela morte de Zana, que desencadeia as
reminiscências de Nael sobre o ódio, leit motiv do romance, e que será
revivido pelas memórias do narrador, o qual nunca se conforma em ter sido
tratado com indiferença humilhante, principalmente por parte de Zana:
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DOIS IRMÃOS
de cativeiro, ou até mesmo de uma senzala, em que os tratamentos
dispensados eram cruéis:
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MILTON HATOUM
roupas suadas e gosmentas das religiosas.
Domingas não aguentava mais. Um dia a irmã
Damasceno ordenou: que tomasse um banho de
verdade, lavasse a cabeça com sabão de coco,
cortasse as unhas dos pés e das mãos. Tinha que
ficar limpa e cheirosa! (Dois Irmãos, 2017, p.
55, 56)
DOIS IRMÃOS
indígena, é por meio desse passeio que Nael consegue perceber a
importância da origem familiar e, portanto, parte para a busca incessante
do encontro de sua identidade.
Ser filho de uma cunhatã expressa, por um lado, a negação de Nael
de sua origem, já que reforça nele a condição de vítima da sociedade
segregacionista, e, por outro lado, a origem árabe lhe pesa a perspectiva de
bastardo.
Há um momento em que as duas origens de Nael se aproximam:
quando Domingas morre, ele pede que a mãe seja sepultada ao lado do avô
Halim. O imigrante libanês e a mãe indígena, ambos distantes de suas terras
natais, ficam próximos no momento que iguala todo ser humano: a morte.
O nome Nael lhe foi dado como uma homenagem ao pai de Halim,
portanto bisavô do narrador. De acordo com Safa Jubran, professora da
Universidade de São Paulo no Departamento de Letras Orientais, o nome
Nael vincula-se ao verbo naala, que significa obter ou pegar, verbos que
podem ser associados ao desejo do narrador de obter respostas para “pegar”
sua origem paterna.
Embora Nael seja alvo de preconceitos sociais e raciais, além de
carregar o trauma de não ter sido reconhecido pelo pai, ele se revela
incansável na busca de respostas para o silêncio de Domingas quanto a quem
seria seu pai: Omar, o mimado e farrista, que ignorou, desprezou e maltratou
Nael, ou Yaqub, o gêmeo engenheiro, bem-sucedido, que tratava o narrador
com carinho, mas era incapaz de perdoar?
Independentemente de Nael não descobrir qual dos gêmeos seria seu
pai, percebe-se que ele renuncia à elucidação do mistério da origem de sua
identidade, ao perceber que tanto Omar quanto Yaqub pautaram suas vidas
em ódio, rancor e vingança, sendo gêmeos idênticos em luta constante pela
conquista do mesmo espaço no coração da mãe, Zana, e também no de
Lívia.
Além disso, destaque-se a possibilidade de Nael ser fruto de um
estupro, uma vez que Omar invadiu o quarto de Domingas e a tomou
sexualmente à força, talvez motivado pelos ciúmes que tinha da intimidade
dela com Yaqub. Justamente essas intimidades que a mãe tem com Yaqub,
e o tratamento que ele dispensa ao narrador, também levam a uma suspeita
de que ele pudesse ser o pai de Nael. E por que não seria Halim seu pai, já
que dá atenção, carinho e faz conidência a Nael?
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MILTON HATOUM
Deixemos essa suspeita sobre Halim de lado e nos fixemos no que
Nael desconfia: um dos gêmeos é seu pai. O narrador apresenta alguns
traços que podem ser vinculados aos dois gêmeos. Yaqub presenteia Nael
com livros, estimulando-o na busca pelo conhecimento, mas é na mesma
escola de Omar, o “Galinheiro dos vândalos”, que o narrador tem contato
com a importância da literatura, por meio do professor Laval, amigo de
Omar; a relação de Yaqub com Domingas tem um resquício incestuoso, uma
vez que ela praticamente o criou, tal qual a relação entre Omar e Zana e o
afeto incestuoso que Nael também nutre por sua tia Rânia.
Assim, desconsiderando-se outras aproximações que podem ser
estabelecidas entre Nael e os gêmeos, percebe-se o reflexo de Omar e Yaqub
na formação do narrador, o qual finda por se libertar da expectativa de
descobrir qual deles seria seu pai, ao perceber que não poderia se espelhar
no comportamento de qualquer um deles, uma vez que não é um
desequilibrado violento como Omar, nem o homem de postura
aparentemente ilibada, que age pelas costas do irmão e da família, como é
Yaqub.
Resta a Nael o afeto de Halim, o qual desabafava suas amarguras com
o neto e nele sente confiança para fazê-lo. Essa relação de cumplicidade
que o narrador tem com o avô é inexistente nas demais personagens do
romance.
Para um neto bastardo, não reconhecido como da família, que vive na
fronteira entre a casa e o quartinho dos fundos, essa intimidade lhe dá uma
certeza: fosse quem fosse seu pai, Nael era um membro excluído da família
por sua origem duvidosa. Restava-lhe o desabafo por meio da escrita, a qual,
indiretamente, foi estimulada por Halim quando lhe presenteou com uma
caneta tinteiro, como se dissesse para o narrador, no futuro, registrar o
passado perdido no tempo: “O futuro, essa falácia que persiste” (Dois
Irmãos, 2017, 196).
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DOIS IRMÃOS
Em Dois irmãos, a chegada da família libanesa ocorre no início do
século XX, por volta de 1914, ocasião em que Galib inaugurou o restaurante
Biblos, e se prolonga até pouco tempo depois do golpe militar em 1964.
Desde a fase da borracha até a implantação da Zona Franca de
Manaus, o desenvolvimento da capital manauara colaborou paradoxalmente
com as diferenças socioeconômicas da população amazonense, que, em
grande parte, migrou do interior para a capital em busca de uma espécie de
ouro perdido.
Manaus encontrava-se repleta de trabalhadores esperançosos:
indígenas, seringueiros, caboclos, imigrantes de todos os espaços,
principalmente os sírio-libaneses, em busca de melhores condições de vida,
todos colaborando para a constituição de um painel multicultural na capital
amazonense.
Os sírios e os libaneses, por exemplo, instalam-se em Manaus,
fugindo da perseguição religiosa e do empobrecimento, trazendo para a
cidade uma ampliação da diversidade cultural, incluindo perspectivas
históricas, literárias, religiosas, musicais e gastronômicas no local. Depois
de se instalarem em quartos das vilas do centro da cidade, os mascates
libaneses mudaram-se para as proximidades do Mercado Central, onde
abriram armarinhos, lojas de tapeçarias, tecidos e rendas em prédios que
serviam tanto para o comércio quanto para a moradia.
Em Dois Irmãos, assim que Galib inaugura o restaurante, no andar
térreo da mesma edificação onde morava, o Biblos passa a ser uma espécie
de ponto de encontro de imigrantes e moradores locais:
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MILTON HATOUM
gasosa, vinho. O pai conversava em português
com os clientes do restaurante: mascates,
comandantes de embarcação, regatões,
trabalhadores do Manaus Harbour. Desde a
inauguração, o Biblos foi um ponto de encontro
de imigrantes libaneses, sírios e judeus
marroquinos que moravam na praça Nossa
Senhora dos Remédios e nos quarteirões que a
rodeavam. Falavam português misturado com
árabe, francês e espanhol, e dessa algaravia
surgiam histórias que se cruzavam, vidas em
trânsito, um vaivém de vozes que contavam um
pouco de tudo: um naufrágio, a febre negra num
povoado do rio Purus, uma trapaça, um incesto,
lembranças remotas e o mais recente: uma dor
ainda viva, uma paixão ainda acesa, a perda
coberta de luto, a esperança de que os caloteiros
saldassem as dívidas. Comiam, bebiam,
fumavam, e as vozes prolongavam o ritual,
adiando a sesta. (Dois Irmãos, 2017, p. 36)
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DOIS IRMÃOS
Halim e Zana ou dos Reinoso em Dois Irmãos), os cabarés, o cinema, e o
Teatro Amazonas. No entanto, a exclusão social já se fazia notar.
Com o início da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), em
decorrência de um acordo entre Getúlio Vargas e Franklin Roosevelt, o
Brasil se comprometeu com auxílio aos países aliados, Estados Unidos,
Inglaterra e França, com o fornecimento de, no mínimo, 5.000 toneladas de
borracha anuais, a fim de se substituir a produção da Malásia, a essa altura
sob o domínio japonês.
O empobrecimento econômico manauara, então, se registrava nas
carroças e nos raros automóveis que circulavam na cidade, que sofria com
falta de eletricidade, alimentos que escasseavam e prática comercial, que se
dava a partir de trocas de produtos. Assim, o mercado norte-americano
passou a ser indispensável para a economia de Manaus, como destaca
Milton Hatoum em Dois Irmãos:
MILTON HATOUM
A “Paris dos trópicos”, ou “Paris das selvas”, inicia seu declínio, pois
a riqueza decorrente da extração do látex diminui, e, consequentemente,
grande parte do capital estrangeiro e dos barões da borracha começa a
desaparecer. Eis Manaus empobrecida e com a economia estagnada.
Um dos símbolos dessa decadência manauara é a Cidade Flutuante,
composta de ribeirinhos que viam Manaus repleta de grandes dificuldades
no campo de trabalho, na alimentação de acesso escasso e nas submoradias.
Formada por casas de palafitas, barracas e palhoças, os habitantes da Cidade
Flutuante dependiam das águas do rio e dos igarapés para sobreviverem. A
decadência da belle époque manauara exigiu uma forte mudança no modo
de vida até então estabilizado pelo Ciclo da Borracha.
Desta forma se configurava Manaus, até a derrocada do ciclo da
borracha que abala profundamente sua economia e os costumes locais, como
relata Mello (1984, p. 27):
Entre 1950 e o início dos anos de 1960, Manaus vive uma fase de
economia estagnada, ficando à deriva governamental, crise que fez empresas
falirem, a fome se instalar e a saída pelo porto se intensificar. Por outro
lado, a cultura no país experimentava transformações com sistemas de rádio,
a chegada da televisão, o cinema hollywoodiano, os musicais e os bailes de
carnaval.
Por outro lado, Manaus era mais um aglomerado urbano, com cerca
de 100 mil habitantes, do que uma cidade grande e desenvolvida como já o
era São Paulo, sendo o crescimento desordenado de ambas as cidades um
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DOIS IRMÃOS
dos causadores das condições de vida desigual. Nael, o narrador de Dois
Irmãos, por exemplo, é consciente de ser um excluído nessa sociedade, pois
lhe fora reservado um lugar secundário nela, representado pelo quartinho
dos fundos da casa libanesa onde residia:
MILTON HATOUM
manifestações em contrário à nova forma de governo brasileiro encontram
alguns ativistas em prol da liberdade, sendo, na obra Dois Irmãos, o
professor Laval um símbolo do inconformismo com o estado limitador da
censura imposta aos brasileiros.
A chegada dos militares a Manaus alterou drasticamente o cenário da
cidade, transformando-a num local repleto de repressão e medo:
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DOIS IRMÃOS
militares era intensa e a atividade de imigrantes estrangeiros, descontrolada.
A violência e a destruição eram constantes e a população assistia a tudo
desolada:
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MILTON HATOUM
Os tempos de riqueza, proporcionados pelo Ciclo da Borracha, estão
representados na casa dos Reinosos, chamada pelo narrador de palácio em
decorrência da ostentação e do luxo, que se transforma, depois, na
representação da elite decadente de Manaus.
A reforma da loja de Halim, por exemplo, registra a nova identidade
de Manaus, já que Rânia passa a comercializar produtos modernos no lugar
das mercadorias antigas que o pai amava, numa espécie de descaracterização
da loja que representa a decadência familiar pela perda de suas origens e o
consequente crescimento dos confrontos que conduzem ao desmoronamento
da Casa, agora em seu sentido de Família.
A chegada do indiano Rochiram simboliza a entrada do capitalismo
selvagem em Manaus e a conversão dos valores importantes das amizades
sinceras e da honestidade em peças de um jogo de interesses inescrupulosos
e egoístas do investidor sem limites. Assim como o falso inglês Wyckhan,
um contrabandista, Rochiram representa a política econômica de
exploração, dominação e injustiça do sistema econômico capitalista, que
desconstrói as relações sociais e afetivas.
Desse modo, Manaus não é só o espaço geográfico em que o enredo
de Dois irmãos circula, mas se torna uma personagem que movimenta a
vida de todas as camadas sociais manauaras, influenciando a vida das
personagens e, também, sendo influenciada pelos movimentos delas.
A chegada da industrialização e a transformação de uma Manaus
plural antiga em uma desordenada capital trazem o questionamento em
relação ao atraso e ao progresso da realidade do Norte do Brasil, que, se
comparado ao Sul do país, representado pelo progresso da cidade de São
Paulo e pela construção de Brasília, construída com o esforço árduo de
brasileiros trabalhadores, registram o descaso com as reais necessidades de
Manaus: uma cidade empobrecida e sem a devida importância no cenário
nacional.
Enquanto em Brasília o progresso era galopante,
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dissolvia-se no mormaço amazônico. Estávamos
longe da era industrial e mais longe ainda do
nosso passado grandioso. Zana, que na
juventude aproveitara os resquícios desse
passado, agora se irritava com a geladeira a
querosene, com o fogareiro, com o jipe mais
velho de Manaus, que circulava aos sacolejos e
fumegava. (Dois Irmãos, 2017, p. 96)
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MILTON HATOUM
depois servir de refeição, no canto do urumutum, na tentativa de alívio da
coceira de Omar decorrente da doença venérea, no espaço de refúgio do
Caçula e na derrocada da família, da qual toda riqueza é extraída, restando,
no entanto, apenas a velha seringueira rodeada pelas quinquilharias da Loja
Rochiram.
A árvore secular, muito além de ser um referencial da natureza
amazônica, é símbolo de enraizamento da família de Halim em Manaus e
estende-se a São Paulo, para que Yaqub não se esqueça de suas origens,
mesmo tendo escolhido viver no espaço urbano.
Tanto a transformação da casa libanesa, de arquitetura elegante e
tradicional, na loja indiana, com suas vitrines exibindo produtos vindos de
Miami e do Panamá, quanto a destruição da Cidade Flutuante representam
a devastação e a imposição dos valores ditos modernos a Manaus, uma
cidade edificada por seringueiros e indígenas, em meio à construção de
conjuntos populacionais para os trabalhadores de baixíssima renda, com
precário saneamento básico, rodeada por maus odores e de crescimento
desorganizado.
O caminhar de Nael por Manaus é o instrumento de que se vale
Milton Hatoum para ilustrar a cidade, numa espécie de mapeamento
geográfico local, cercada pelas águas do Rio Negro presente na maioria das
lembranças de Nael, Domingas e Halim, que remetem ao rio de Heráclito,
metáfora da passagem de um tempo que não volta mais, tal como a água
que corre e não regressa.
Durante a viagem de barco no rio Negro, que Nael faz com a mãe, ela
vincula a contemplação da paisagem com suas memórias do passado, tal
qual faz Halim, que também se vale das águas para resgatar suas lembranças
e relatá-las ao narrador. A imagem da água é um referencial para a trajetória
da família, simbolizando a vida positiva inicial em terras amazônicas até o
desmoronamento dos laços que uniam, de certo modo, todos os que viviam
ao redor da casa libanesa.
Também está a água associada à história de Manaus, desde o registro
do cheiro desagradável da Cidade Flutuante, em contraste à beleza
exuberante dos rios e da floresta amazônica, até a paisagem lodosa da zona
portuária com árvores apodrecendo (tal qual a podridão imposta àqueles
que estão à margem da sociedade manauara elitizada), e a invasão militar em
meio a um terrível aguaceiro que cai sobre a cidade manauara.
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Assim, há, na obra Dois Irmãos, de Milton Hatoum, duas Manaus: a
real, passando por diversas mudanças de ordem econômica, social e política,
e a imaginária, fruto das leituras subjetivas que o narrador faz desse espaço.
Além disso, podemos vincular a capital manauara à casa da família de
Halim: ambas vão de tempos de glória ao declínio, das tradições culturais
nativas às alterações impostas pelo mundo capitalista. Dois espaços e uma
mesma sina.
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privacidade e prazer. Anos depois, iriam
roubar-lhe a serenidade e o bom humor. Ele
advertia a esposa sobre o excesso de mimo com
o Caçula, a criança delicada que por pouco não
morrera de pneumonia. (Dois Irmãos, 2017, p.
53)
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estudos, enigmático aos olhos do narrador, inteligente, de atitudes
comedidas e secretas. Desde a infância, Yaqub é ofuscado pelo
comportamento impetuoso e ousado do irmão Omar, o Caçula, idêntico
fisicamente, mas díspar, até certo ponto, de Yaqub.
Preterido pela mãe em favor de Omar, Yaqub é solitário e silencioso
como o pai Halim, comportamentos intensificados após ele ter sido enviado
ao Líbano pelos pais, numa tentativa de se evitarem maiores conflitos entre
os gêmeos depois do episódio que resultou na cicatriz no rosto de Yaqub,
provocada por uma garrafada que Omar lhe deu num acesso de ciúmes ao
ver Lívia dando um beijo no rosto do irmão.
Ao retornar do Líbano, aos dezoito anos de idade, Yaqub é um
estranho para o pai e um rude para a mãe. Além disso, a separação de Omar
por cinco anos se encarregou de aumentar mais a rivalidade entre os gêmeos,
contrariando as expectativas de Halim e Zana.
Yaqub é uma releitura às avessas do mito de Ulisses, ou Odisseu, do
poema épico Odisseia, o qual se distanciou por dez anos de Ítaca e, ao voltar,
encontrou Penépole, sua esposa, aguardando fiel e obstinadamente o seu
retorno, o que não ocorre com Yaqub, que, de certa forma, continua sendo
o rejeitado pela mãe e sem identificação com um lugar para onde voltar.
A história de Yaqub e Omar também pode ser vinculada à parábola
bíblica do Filho Pródigo (Lucas 15:11-32), que conta a história de um pai e
dois filhos. Em certa ocasião, o filho mais novo solicitou ao pai que lhe
desse sua parte na herança, partindo para terras distantes, onde gastou todos
seus bens em atividades pecaminosas e inconsequentes, sem nenhuma
preocupação com o futuro. O dinheiro findou e o filho mais novo passou a
viver como um mendigo. Desesperado e arrependido, ele voltou à casa do
pai e foi recebido por ele com festa, já que o filho retornara ao lar. No
entanto, o irmão mais velho não aceitou a volta do pródigo por ter sido
desleal à família, ao contrário dele.
Em Dois Irmãos, o filho expatriado é Yaqub, o mais velho, ao
contrário da parábola bíblica, mas é Omar, o mais novo, que se mantém em
Manaus e gasta o dinheiro da família na esbórnia, sem nenhum sinal de
arrependimento pelo que faz. Além disso, no retorno de Yaqub, há uma
rápida recepção para ele na casa libanesa, mas o destaque da festa é Omar,
o qual não é visto pela mãe como o filho pródigo, denominação que, para
ela, seria mais pertinente a Yaqub.
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Em Dois irmãos, de Milton Hatoum, o gêmeos continuam, por toda
a vida, disputando o espaço de privilégio no coração da mãe e, frente à
impossibilidade de solução desse impasse, Yaqub, um estrangeiro em seu
próprio lar, decide ir para São Paulo, onde estuda e conquista uma sólida
carreira profissional na engenharia, fruto de sua grande habilidade com a
Matemática.
No entanto, a ida de Yaqub para São Paulo representa não só o
interesse dele pela modernização em troca do provincianismo manauara,
mas, também, sua rejeição de participar do núcleo familiar dominado por
Omar e, ainda, a possibilidade de vingança dele de provar para a família
sua capacidade de independência e sucesso econômico e profissional:
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face esquerda uma marca que cresceu na alma do gêmeo mais velho,
transformando-o em um homem capaz de fazer qualquer coisa para se
vingar de Omar e de Zana.
O Caçula é apresentado por meio das avaliações feitas por outras
personagens e pelo olhar de Nael que, embora preferisse ser filho de Yaqub,
acredita muito em que Omar seja seu pai em decorrência de ele ter
violentado sexualmente Domingas.
Enquanto Yaqub posa de farda e impressiona a todos no desfile de
Sete de Setembro, Omar é quase um ogro, selvagem sempre deitado na rede,
importunando sexualmente as mulheres da casa e aventurando-se com
outras na rua e nas festinhas manauaras:
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MILTON HATOUM
fotografias emitiam sinais fortes, poderosos de
presença. Yaqub sabia disso? Sempre com a
expressão altaneira, o cabelo penteado, o paletó
impecável, as sobrancelhas grossas e arqueadas,
e um sorriso sem vontade, difícil de compreender.
O duelo entre os gêmeos era uma centelha que
prometia explodir. (Dois Irmãos, 2017, p. 46)
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DOIS IRMÃOS
resignadas, conforme é determinado pelo livro sagrado da religião islâmica,
o Alcorão.
No entanto, no romance Dois Irmãos, encontramos uma ruptura dessa
tradição na casa do libanês Halim: Zana, a matriarca da família, é quem
detém todo o poder de mando sobre tudo e todos à sua volta, invertendo as
tradições árabes no que concerne ao papel social feminino.
Órfã de mãe, Zana saiu do Líbano ainda criança e veio com o pai,
Galib, para Manaus, onde as perspectivas de vida melhor eram intensas.
Embora a vida de Zana, num ambiente distante de sua terra natal, seja difícil
e dolorosa, ela é uma mulher forte: a decisão de se casar com Halim foi
dela, enfrentando até a oposição das maronitas; a quantidade de filhos que
teria, talvez para recuperar o sentido de sua vida depois da morte do pai,
partiu dela, mesmo com a recusa de Halim, que não queria filhos; o controle
da casa e de sua movimentação passava pelo comando das mãos de Zana;
a intensa atividade sexual com Halim tinha as diretrizes da esposa; a escolha
de Yaqub para ir sozinho para o Líbano teve dela grande participação; a
solteirice de Omar coube à determinação da mãe dominadora:
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MILTON HATOUM
Omar, já que ultrapassa o limite de amor maternal, ao tornar-se, além de
possessivo, um afeto repleto de sensualidade de ambas as partes.
Destaque-se que os homens da família libanesa marcam-se pelo
estigma da dependência da matriarca, e essa fragilidade é mais notória no
comportamento de Omar, o qual não consegue se libertar dos mimos da
mãe, embora chegue a tentar por duas vezes ao se envolver com Dália e
Pau-Mulato.
Halim também é aprisionado pelos encantos e desempenhos sexuais
da esposa, por isso suporta ser comandado pela mulher. O único que
demonstra uma certa libertação de Zana é Yaqub, no entanto, se
observarmos mais profundamente, detectamos nele a necessidade de ser
amado pela mãe, que, embora idolatre e orgulhe-se do filho doutor, pretere-
o em favor do Caçula. Até mesmo o neto bastardo, Nael, tem por ela algum
encantamento, mas é consciente de que ela o usa como um faz-tudo da casa,
já que é filho de Domingas. Todos os homens de Zana parecem hipnotizados
pelo domínio dela.
Com as desavenças intransponíveis entre Yaqub e Omar, o
comportamento irregular do Caçula, o desejo de vingança do gêmeo mais
velho, a morte de Halim e o despejo de sua amada casa, Zana desencadeia
um forte processo de melancolia e solidão, vendo seu clã familiar
desmoronar, situação da qual ela é uma das principais responsáveis.
De certa forma, a maneira autoritária e dominadora de Zana se reflete,
em grau menos acentuado, no relacionamento dela com Rânia, a real caçula
dos três irmãos. Sensual e arredia, bonita e ocultadora de seus encantos
físicos, Rânia, mulher de olhos amendoados, era desejada por homens, aos
quais ela não dispensava atenção, mas lhes acendia delírios sensuais, como
ocorre também com o sobrinho Nael, com quem ela chega a se relacionar
sexualmente uma vez.
Embora entre ela e o narrador exista o elo familiar, Rânia parece
recusar esse vínculo, como também rejeita a possibilidade de um
envolvimento amoroso sério com Nael pelo mesmo motivo que se afastava
de todos os homens que por ela se interessavam: nutria um forte amor
platônico e incestuoso pelos irmãos gêmeos.
Fica notória a preferência que Rânia tem por Omar, embora as
carícias que Yaqub lhe fazia provocassem nela um forte estonteamento
físico, quase animalesco:
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DOIS IRMÃOS
(...) Ela mimava os gêmeos e se deixava
acariciar por eles, como naquela manhã em que
Yaqub a recebeu no colo. As pernas dela,
morenas e rijas, roçavam as do irmão; ela
acariciava-lhe o rosto com a ponta dos dedos, e
Yaqub, embevecido, ficava menos sisudo. Como
ela se tornava sensual na presença do irmão!
Com esse ou com outro, formava um par
promissor. Nos quatro dias de visita ela se
empetecou como nunca, e parecia que toda a
sua sensualidade, represada por tanto tempo,
jorrava de uma só vez sobre o irmão visitante.
Rânia, não a mãe, ganhou os melhores presentes
dele: um colar de pérolas e um bracelete de
prata, que ela nunca usou na nossa frente. Ainda
chovia muito quando a vi subir a escada, de
mãos dadas com Yaqub; entraram no quarto
dela, alguém fechou a porta e nesse momento
minha imaginação correu solta. Só desceram
para comer. (Dois Irmãos, 2017, p. 87)
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poder aquisitivo. No entanto, sabedores que somos do espírito dominador e,
de certo modo, egoísta de Zana, fica-nos sugerido que a mãe repete com
Rânia o que também fez com Omar e tentou com Yaqub: manter todos os
filhos sob seu teto e poder.
Assim, Rânia não se interessou por mais nenhum homem, seja por
causa do trauma de não poder casar com quem desdejava, seja porque não
encontrava em seus pretendentes o espelhamento dos gêmeos. Como forma
de compensação, ela dedicou-se aos negócios, realizando na loja do pai o
que se esperava ser feito por Omar, uma vez que Yaqub tomara rumo para
a engenharia.
Zana fez com Rânia o que não permitiu que lhe fizessem: dominar e
controlar suas ações. Exercer o domínio é característica marcante da mãe
libanesa e, não satisfeita em regular os membros de sua família, Zana
também rege a vida de Domingas.
Indígena órfã, retirada de sua terra por religiosas que a moldaram
para servir às famílias de Manaus, e agregada da família de Halim,
Domingas é uma das peças fundamentais para Nael compor sua narrativa e
tentar construir sua identidade, uma vez que é da mãe que poderia sair a
resposta de quem era o pai dele, mas
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dias de folga. No Norte do Brasil, muitos indígenas ou descendentes
destribalizados eram comumente incorporados às casas de famílias, o que
ainda hoje é comum em alguns lugares.
O reflexo do processo de colonização, portanto, ainda se faz presente
na sociedade brasileira. No caso do romance Dois Irmãos, Zana
representaria o colonizador poderoso e soberano e Domingas, a colonizada
que absorve, por exemplo, os valores religiosos da patroa, com a qual
identifica algumas semelhanças, pois ambas têm devoção a seus filhos,
partilham os cuidados e o amor aos gêmeos, participam de rituais religiosos
em conjunto e sofrem por causa do desterro e da saudade do tempo passado.
O indígena, no Brasil, considerado de maneira preconceituosa como
selvagem e bárbaro, tinha um papel relevante em algumas tarefas, como as
do tratamento e exploração da terra e do serviço doméstico.
A situação de empregada doméstica, sem nenhuma regalia, faz com
que Domingas testemunhe os acontecimentos ocorridos na casa de Halim,
com quem ela tem uma relação de cumplicidade e vice-versa, já que ambos
mantêm, até o desfecho da obra, o segredo de quem seria o pai do narrador,
além de as duas personagens serem testemunhas dos fatos que compõem a
narrativa de Nael.
Domingas, em sua condição de empregada, marginalizada, alvo de
preconceitos e obediente à aculturação europeia, tem livre acesso à casa
libanesa e, mesmo sendo vítima de exclusão social, como grande parte dos
indígenas brasileiros também o são, sabe de informações elucidativas no
que concerne à realidade familiar de Halim e Zana, acompanhando-os desde
a prosperidade até o declínio do clã libanês.
A mãe de Nael, ao ser levada para o orfanato ainda criança, tem suas
crenças alteradas, absorve o batismo e a alfabetização, que não a libertam
da exclusão, mas a obrigam a uma dedicação e desprendimento pessoal em
relação à família de Zana até a morte, sem nunca reivindicar algo para si.
Num condicionamento inconsciente das alterações que lhe foram
provocadas, Domingas, fruto da sociedade patriarcal e machista, em certa
ocasião, faz uma viagem com o filho Nael, mas, durante o passeio, também
não se sente confortável, já que não se identifica mais como filha da selva.
A cultura indígena, entretanto, não deixa de fazer parte do dia a dia
de Domingas. Por exemplo, em uma das vezes que Omar desaparece de
casa, ela sugere
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(...) Posso preparar um olho de boto? A senhora
pendura o olho no pescoço e aí o Caçula vem
beijar a senhora... com muito amor”. Zana não
sabia o que dizer? Ela se aproximou de minha
mãe e virou a cabeça para o oratório. As duas,
juntas, ainda disputavam a beleza de outros
tempos. A índia e a levantina, lado a lado: a
expressão solene dos rostos, o fervor que
cruzara oceanos e rios para palpitar ali naquela
sala — tanta devoção para que ele voltasse, são
e salvo, sobretudo sozinho, para o quarto que
seria sempre só dele. (Dois Irmãos, 2017, p.
111)
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feitas por Domingas com representações de pássaros e serpentes, metáforas
da liberdade e do perigo, respectivamente, no imaginário da indígena.
Domingas, mesmo aparentemente integrada à realidade que lhe fora
imposta, com o afastamento dela de sua cultura, credo e identidade indígena,
não despreza seus valores originais, vivos, internamente, e vinculados ao
desejo de liberdade:
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machista e desrespeitosa em relação à mulher, presa por estigmas de
dominação e cooptação.
A atitude agressiva de Omar em relação à Domingas pode ser
considerada (mas não aceita como normal) decorrente de motivos como o
caráter doentio do Caçula, que acredita poder ser e fazer o que quiser, livre
de qualquer possibilidade de punição; do viés machista de dominação da
mulher que, impossibilitada de reagir em decorrência de sua condição de
agregada e dependente da família, se cala frente à violência; ou, ainda, uma
forma de revanchismo de Omar em relação ao irmão Yaqub, com o qual
Domingas tem uma relação afetiva mais intensa do que com o Caçula,
embora ela gostasse de ambos os gêmeos.
Domingas passou sua vida inteira servindo aos outros, mantida sob
o controle deles, sem reivindicar nada para si própria, e, assim como viveu
em silêncio, também acabou morrendo silenciosamente.
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passou a ser frequente, desencadeando diversos avanços na região.
A vinda da família libanesa para o Brasil, como já mencionado,
ocorre na década de 1910 e está vinculada a questões de ordem
político-econômica e de controle autoritário do governo turco-otomano,
tributando impostos de diversas espécies no Líbano e perseguindo cristãos,
aos quais era imposto o serviço militar obrigatório, um outro motivo da
impulsão imigratória do país.
Zana é exemplo dessa fuga da perseguição religiosa praticada pelo
Islamismo, uma vez que ela era praticante católica maronita3 num país em
que o preconceito religioso é comum. No entanto, a intolerância religiosa
velada também ganha espaço na sociedade amazonense:
3
Maronita é o indivíduo que professa o Cristianismo de rito oriental afiliado à Igreja
Católica Romana, presente sobretudo no Líbano e na Síria.
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de credos e culturas, como se ela fosse uma Manaus multicultural em
miniatura.
Esse lar libanês é um dos pontos mais representativos da importância
do universo familiar em Dois Irmãos, a ponto de ele já se encontrar presente
desde a epígrafe do livro, composta pelos versos do poema “Liquidação”,
de Carlos Drummond de Andrade, em que elementos constitutivos da
narrativa (destacados entre parênteses) se encontram presentes:
4
Em Dois Irmãos, podemos encontrar situações que envolvem todos os Sete
Pecados Capitais, que são: a soberba, definida como orgulho excessivo,
característico de Yaqub e Omar; a avareza, também chamada de ganância, apego
incontrolável aos bens materiais e ao dinheiro, tal como ocorre com Yaqub; a inveja
é a tristeza pelo bem de outra pessoa, sendo o invejoso aquele que se sente mal
pelas conquistas alheias, como Omar sente por Yaqub e vice-versa; ira, raiva ou fúria
é uma manifestação intensa de indignação que pode levar a agressões verbais ou
físicas, comportamento comum nos gêmeos; a luxúria, lascívia ou libertinagem é
o pecado associado aos desejos sexuais, que são intensos entre Halim e Zana, Omar
e Pau-Mulato, Yaqub e Domingas, Rânia e os gêmeos e Nael; a gula é o pecado
associado ao desejo de comer e beber de maneira exagerada, para além das
necessidades, indicada pela fartura de comidas na casa libanesa; a preguiça é a falta
de vontade ou de interesse em atividades que exijam algum esforço, seja físico ou
intelectual, traço peculiar a Omar.
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acumule à falta de identidade, por não saber quem é seu pai, a perda de
reconhecimento social e religioso.
Um dos exilados mais perturbados da narrativa parece ser Yaqub. Sua
experiência dos anos em que viveu, forçosamente, no Líbano foi omitida
na obra, pois Yaqub se recusava a contar como fora sua vida no país de
origem de seus pais, como se a não rememoração fosse um artifício para o
apagamento do trauma do exílio familiar.
Yaqub, sem cometer nenhum delito, foi condenado à cicatriz do
exílio numa aldeia no Líbano e, dessa experiência, resulta uma espécie de
perda de sua identidade, que se pode comprovar, por exemplo, na
dificuldade que ele tem com a Língua Portuguesa e na alteração drástica de
sua personalidade.
Assim, desenraizado, Yaqub, tal como Nael, vive a agonia da
identidade perdida, o que desencadeia nele a necessidade de um novo exílio
na cidade de São Paulo.
Destaque-se que o fluxo migratório manauara não está representado
no livro apenas pelos membros da família libanesa. O crescimento da cidade
trouxe novos estrangeiros, como coreanos, chineses e indianos, cuja
representação se dá pela figura de Rochiram, homem que vivia de maneira
quase nômade, buscando riqueza em espaços diversos.
Imigrantes e migrantes de todas as origens territoriais e econômicas
compõem a formação de Manaus e de sua projeção de modernidade e
lucratividade. Todos, no entanto, de certa maneira acabam perdendo suas
identidades em prol da construção de uma nova vida em terras longínquas.
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O seu grande sonho era ver os filhos
reconciliados. Ela só pensava nisso, e desde a
morte de Halim acordava no meio da noite,
assustada. Quem ia entender a falta que Halim
lhe fazia? A dor que ele deixou. Não queria
morrer vendo os gêmeos se odiarem como dois
inimigos. Não era mãe de Caim e Abel. (Dois
Irmãos, 2017, p. 170)
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nunca foram de seu desejo.
Uma outra forma de violência, apresentada na obra, é a exercida pelo
poder autoritário do Estado na imposição de normas por meio do regime
militar. Em abril de 1964, o professor Antenor Laval é morto na praça de
Manaus, em decorrência de sua ideologia militante e sua representação de
resistência à ditadura, luta apreciada por Omar e Nael, o qual recebe
influência para ser professor e escritor do contato com Laval.
Poeta e professor, Laval é um divulgador da literatura de boa
qualidade e modelo inspirador para muitos estudantes do colégio Liceu Rui
Barbosa. Além do convívio entre professor e aluno dentro dos muros da
escola, havia também encontros entre eles em bares e ruas manauaras, quase
compondo uma “Sociedade dos poetas mortos” amazonense.
No entanto, o professor tem fama de militante de esquerda, inclusive
pela história que circulava sobre ele e sua passagem por Moscou aludindo
à Revolução Russa, de 1917, ocasião em que o partido bolchevique, liderado
por Vladimir Lênin, levou operários e camponeses à revolta, que pôs fim à
monarquia, originando o primeiro país socialista do mundo, a União
Soviética:
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da caverna, quieto e emudecido, o rosto
cadavérico, a barba espessa que ele conservaria
até a imolação. Não era greve de fome nem
inapetência. Talvez desespero. Seus poemas,
cheios de palavras raras, insinuavam noites
aflitas, mundos soterrados, vidas sem saída ou
escape. Às sextas-feiras distribuía-os aos
alunos, pensando que ninguém os leria,
pensando sempre no pior. Lá no íntimo era um
pessimista, um desencantado, e tentava
compensar esse desencanto por meio da
aparência, com seu jeito de dândi. Refutava o
rótulo de poeta, mas não se incomodava quando
o chamavam de excêntrico ou afetado. Não sei
qual dos dois atributos o definia melhor.
Nenhum, talvez. Mas foi um mestre. (Dois
Irmãos, 2017, p. 144, 145)
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Halim, Domingas, Zana, Yaqub e Rânia, muitas vezes substituindo-se a voz
do narrador pelas vozes dessas personagens “sub-narradoras”:
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excêntrico, um dândi deslocado na província,
recitador de simbolistas, palhaço da sua própria
excentricidade. Não ensinava a gramática,
apenas recitava, barítono, as iluminações e as
verdes neves de seu adorado simbolista francês.
(Dois Irmãos, 2017, p. 28)
5
O Pentateuco são os primeiros cinco livros da Bíblia: Gênesis, Êxodo, Levítico,
Números e Deuteronômio.
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No caso de Yaqub e Omar, ambos tentam conquistar a atenção
materna, desencadeando entre eles uma forte e violenta rivalidade, que,
embora não culmine com a morte de nenhum dos gêmeos, destrói a
harmonia familiar.
No mito de Esaú e Jacó, também em Gênesis, Isaac pediu a Deus o
milagre de que a esposa Rebeca concebesse um filho, uma vez que ela era
estéril. Após algum tempo, ela engravidou de gêmeos, os quais, desde o
ventre, já rivalizavam. Deus disse à Rebeca que ela gerava o princípio de
dois povos, sendo que um de seus filhos seria mais forte do que o outro.
O primeiro a nascer era uma criança ruiva e com o corpo coberto de
pelos e, por isso, foi chamado Esaú, cujo nome significa “coberto de pelos”.
Logo a seguir, nasceu o caçula, segurando o irmão pelo calcanhar, o que fez
com que seu nome fosse Jacó, que significa “aquele que segura pelo
calcanhar”.
Esaú, por sua vez, tornou-se um homem com habilidade para a caça,
o que o tornava mais querido pelo pai, enquanto Rebeca amava Jacó,
situação que desencadeou uma intensa rivalidade entre os gêmeos.
Dois Irmãos retoma a passagem bíblica no que concerne à rivalidade
entre os gêmeos, mas inverte a ordem dos nascimentos, uma vez que Yaqub,
cujo nome em árabe significa Jacó, nasce primeiro do que Omar, o qual é o
peludinho de Zana.
Na história bíblica, os filhos são separados após a traição de Jacó, tal
qual em Dois Irmãos, se considerarmos o flerte de Yaqub com Lívia uma
traição a Omar, o qual estava interessado na menina Lívia. Rebeca, no mito
bíblico, passa a priorizar o afeto a Jacó, como Zana faz com o Caçula, que,
na obra de Hatoum, é Omar.
O episódio de Esaú e Jacó também é retomado no romance
homônimo de Machado de Assis, sendo, por extensão, a obra machadiana
vinculada intertextualmente a Dois Irmãos, de Milton Hatoum.
Em “Esaú e Jacó”, Machado de Assis apresenta Pedro e Paulo,
gêmeos rivais ab ovo, que, ao longo da vida, tornam-se inimigos nas esferas
ideológicas, políticas e amorosas, tal qual Esaú e Jacó, Yaqub e Omar. No
entanto, enquanto na Bíblia os irmãos se reconciliam, os gêmeos da ficção
machadiana e hatouniana continuam inimigos por toda a vida.
Outra similaridade entre o mito bíblico e Dois Irmãos é a preferência
materna pelos filhos caçulas, o que não ocorre em Machado de Assis, pois
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a mãe de Pedro e Paulo, Natividade, trata os gêmeos da mesma maneira.
Destaque-se que, nos três casos, a figura materna é o motor da discórdia
fraternal.
Outras intertextualidades bíblicas se fazem presentes na obra de
Milton Hatoum, como a já citada parábola do “Filho Pródigo” e uma alusão
a Moisés, salvo do rio Nilo e criado por uma princesa egípcia, quando Nael
fala sobre sua origem:
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4. EXERCÍCIOS PROPOSTOS
Estão corretas:
a) Apenas II e IV.
b) I, II e IV.
c Apenas I e III.
d) II, III e IV.
e) Todas as afirmativas.
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e) Uma das pretendentes a casar com Yaqub se chamava Dália, a Mulher
Prateada, que, no entanto, não foi capaz de enfrentar o ciúme
possessivo que Zana sentia em relação ao filho.
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6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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DOIS IRMÃOS
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MILTON HATOUM
7. APÊNDICES
Biorritmo Ribeirinho
Milton Hatoum, autor do livro “Dois Irmãos”, privilegiou Manaus na
narrativa para “quitar dívida”
Folha – O que acontece com um manauara que vem para São Paulo?
Milton Hatoum – Entra sem pressa para selva paulistana e aprende a gostar
dela. Mas, de vez em quando, sonha com a imensidão e os remansos do rio
Negro. Uma singularidade de Manaus é ser metrópole no meio da floresta
e à margem desse belo afluente do Amazonas. Em São Paulo eu sinto falta
do horizonte, da vegetação... Às vezes fico imaginando aquele rio... O diabo
é que, para onde vou, levo esse rio dentro de mim. Quando vou a certos
lugares de São Paulo, tenho a sensação de estar em bairros de Manaus. No
meu imaginário, as cidades brasileiras se misturam o tempo todo.
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Folha – Que lugares devem ser visitados em Manaus?
Hatoum – Gosto muito do mercado municipal de Adolpho Lisboa, do porto
da Escadaria e do centro antigo, a área em redor da praça Pedro II até a ilha
de São Vicente. A sede do Inpa [Instituto Nacional de Pesquisas
Amazônicas], projetada por Severiano Porto, é uma aula de arquitetura e
deveria ser modelo para habitação popular. Além do teatro Amazonas, da
Ponta Negra e dos lugares mais visitados, vale a pena pegar uma catraia no
porto da Escadaria e navegar pelo igarapê do Educandos. Se der tempo, um
passeio pelo arquipélago das Anavilhanas é o máximo. Sugiro também subir
o rio Negro até Barcelos, a primeira capital da Província. Ou então um
passeio pelo rio Urubu e pelo lago Tupira, perto de Silves. Isso sem falar de
Manacapuru e seus lagos. É uma viagem sem fim.
Folha – Certa vez, você disse “Vejo conflito em tudo [em Manaus]”. Um
visitante atento percebe isso?
Hatoum – Ele logo percebe que a população e a cidade herdaram muita
coisa das culturas indígena e europeia. Manaus é o nome de uma tribo que
foi dizimada. A Zona Franca é irreversível. A periferia é uma favela
gigantesca, o desmatamento foi brutal. A ironia mais trágica é que em muitos
bairros pobres falta água, numa cidade banhada pelo maior rio do mundo.
Em 1976, um prefeito-coronel destruiu a praça Nove de Novembro, um
logradouro histórico, pois a notícia da Independência só chegou a Manaus
no dia 9 de novembro. Destruiu praças e monumentos, cortou árvores
centenárias, fez o diabo em nome do “progresso”. O atual prefeito encheu
a cidade de palmeiras, só que de palmeiras importadas! Há centenas de
palmáceas amazônicas... Não é de enlouquecer?
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MILTON HATOUM
LUPINACCI, Heloísa H. Escritor manauara leva o rio dentro de si. Folha
de S. Paulo, Turismo. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/
turismo/fz0906200316.htm. Acesso em: 30 jun. 2023.
E você comentou que um pouco dessa sua revolta você coloca nos livros.
Meus livros, sobretudo Dois irmãos e Cinzas do Norte, narram essa
destruição de Manaus. São romances amargos, como todo romance. O
romance não é uma receita de bem-viver, isso é autoajuda. No Dois irmãos,
Manaus é quase uma personagem. Você pode imaginar que haja até
implicações ideológicas. Não que o romance contenha uma mensagem
explícita, porque eu também acho isso muito frágil – romance-denúncia,
arte-denúncia, eu não acredito em nada disso. Acho que a arte não responde
a nada, ela faz perguntas, insinua coisas, te convida a refletir sobre teu
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tempo, sobre você mesmo. Mas o Cinzas do Norte, que é um romance mais
ambicioso, não fala apenas de Manaus, tem um pano de fundo histórico da
ditadura, tem a relação com o Rio de Janeiro, com a Europa, tem essa ânsia
do personagem. É uma espécie de despedida também de uma cidade, de um
mundo, que não existe mais.
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intervenção urbana e arquitetônica [em Manaus] é muito burra. Optaram
pela verticalização de uma cidade em que venta pouco, onde há espaço para
uma expansão horizontal, onde uma arquitetura horizontal é mais propícia
ao clima. Quer dizer, optou-se por uma espécie de cópia, de “macaquiação”,
de São Paulo, que por sua vez é uma cópia muito precária de Miami, vamos
dizer assim. E do Rio de Janeiro também. O Rio ainda tem uma coisa dos
anos 50 e 60 que é interessante, que tem a ver com a escala urbana, com a
paisagem, com os morros e montanhas, com o relevo e com o mar. No caso
de Manaus, você pode notar que os edifícios não são avarandados, não tem
proteção solar, não são pensados em função do clima. Eu não falo nem da
opção estética, que é horrorosa na maioria das vezes. Poucos arquitetos
entenderam essa cidade, um deles foi Severiano Porto [1930-]. Por isso, o
rosto da cidade se tornou um pouco monstruoso, as praças estão sufocadas,
não há mais uma relação orgânica entre a natureza e o urbano, algo que
havia na minha infância e juventude. Foram criados pouquíssimos novos
parques – o parque do Bilhar, o Jefferson Peres, mas é muito pouco para
uma cidade que não é arborizada, que não tem calçadas. O transporte urbano
é o pior do Brasil, talvez um dos piores da América do Sul. A habitação
popular é uma espécie de canil, e isso eu falo nos meus romances, no Cinzas
do Norte. A implantação de conjuntos habitacionais é totalmente irracional,
arranca-se a floresta e é como se as pessoas não necessitassem de sombra.
Então, é de uma burrice, de uma ignorância, estarrecedora. Isso tudo me
entristece. Não sei se me entristece, acho que me revolta, mais do que me
entristece.
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DOIS IRMÃOS
Musa. Museu imaginário: a série de entrevistas do musa. In: Pereira, Claudia
M. de S. O processo de constituição do livro Dois Irmãos: uma análise da
paratopia criadora de Milton Hatoum. Disponível em:
h t t p s : / / r e p o s i t o r i o u f s c a r. b r / b i t s t r e a m / h a n d l e / u f s c a r / 8 9 1 0 /
DissCMSP.pdf?sequence=1&isAllowed=y.Acesso em: 24 jul. 2023.
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