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Cultura.Sul 06.03.

2015 11

Da minha biblioteca

Milton Hatoum – Dois Irmãos


fotos: d.r.

Adriana Nogueira
Classicista
Professora da Univ. do Algarve
adriana.nogueira.cultura.sul@gmail.com

Até há pouco tempo nunca


tinha lido nada de Milton Ha-
toum. Mas, emprestado por uma
amiga, li Dois Irmãos e pergun-
tei-me por que razão não tinha
ouvido falar dele antes. Às vezes
ando distraída e deixo passar
várias informações literárias em
revistas, jornais e rádio (televisão
não tenho). Deve ter sido numa
dessas alturas que o seu nome
foi falado, até porque as notí-
cias das suas vitórias de prémios
literários foram difundidas no
nosso país. sinal da origem. Era como es-
Tendo passado por diversas Dois irmãos, de Milton Hatoum, narra uma história de ódio familiar quecer uma criança dentro
profissões (arquiteto, professor de um barco num rio deser-
de literatura, cronista), Milton diversas personagens, principal- que este quer marcar em relação não foram páreo para Zana, a entender, neste caso mais to, até que uma das margens
Hatoum não é um desconhecido mente Halim e a índia Domingas ao gémeo, de quem não poderia nem de longe ameaçavam o claramente: quando o Caçula o acolhe. Anos depois, des-
em Portugal e muito menos no que, vimos a saber, é sua mãe. ser, interiormente, mais distinto: amor da mãe. Nem chegavam queria dinheiro, ia-lho pedir. confiei: um dos gémeos era
Brasil. Por cá, a sua obra (quatro Tudo nos é revelado aos poucos, ele é bom aluno, outro é expul- a duelar, não foi preciso. Além Ela rabujava, mas «Ele ouvia a meu pai» (p.54).
romances e um livro de contos) como se o narrador (cujo nome, so da escola, este é calado, outro disso, não tinham nome, quer ladainha e começava a acari-
está publicada na Cotovia (Relato Nael, só sabemos quase no fim) expansivo, este é independente dizer, o Caçula só as chama- ciar a irmã: um beijo nas mãos Halim
de um certo Oriente – 1999; Dois nos fosse contando à medida e outro dependente. Mas, apesar va de queridinha ou princesa, um afago no pescoço, uma
irmãos – 2000; Cinzas do norte – que se vai lembrando, recuando de todos os defeitos apontados a para deleite da rainha-mãe, lambida no lóbulo de cada Sobre um livro chamado
2005 e os contos A cidade ilhada e avançando no relato. Omar, também vemos nele uma jamais destronada. Mas a mu- orelha. Enlaçava-a, carregava- Dois irmãos, pouco aqui es-
– 2009) e na Teorema (Órfãos do vítima, um prisioneiro do amor lher daquela noite tinha um -a no colo, olhando para ela crevo sobre eles. Pode parecer
El Dourado – 2009). No Brasil, to- Caim e Abel das mulheres da família. nome: Dália. (…) Só ela atraía como um conquistador cheio estranho, mas faço-o inten-
dos os romances foram premia- os olhares (…) e nós – aturdidos de desejo. As palavras que ado- cionalmente, para não tirar à
dos: três deles com o prestigiado Na cultura ocidental, desa- As mulheres de Omar com os giros sensuais daquele raria ouvir de um homem ela leitura o prazer da descoberta.
prémio Jabuti de Literatura e um, venças entre dois irmãos fazem- corpo que nos desviou da noite ouviu de Omar, ‘o irmão que Por isso, escolhi, para fechar
Cinzas do norte, com o importan- -nos pensar em Caim e Abel. O título do livro remete para –, nós invejávamos o Caçula, o nunca ficou longe de ti, que este texto, escrever algumas
te Prémio Portugal Telecom de De alguma maneira, estes dois as personagens que motivam a gémeo disputado. Mas Omar nunca te abandonou, mana’, palavras sobre o pai, a única
Literatura. gémeos da história, Yaqub e história, os gémeos, mas tam- cometia o erro de trair a mu- ele sussurrava. Rânia se derre- pessoa que vai transmitindo
Dois irmãos é um livro peque- Omar, filhos de Halim e Zana, bém se poderia chamar Amor lher que nunca o havia traído» tia, sensual e manhosa, e a voz algum equilíbrio e sensatez,
no, mas muito intenso. Depois apesar de pertencentes a uma de mãe, visto que a personagem (p.76). Mais do que a questão dela, mais pausada, ia cedendo com desejos e anseios sim-
de terminarmos a leitura ainda cultura diferente (a libanesa, já mais forte é a de Zana. Apesar que separa os dois irmãos, este um pouquinho, até balbuciar, ples, que tudo o que sempre
ficamos com as personagens e contaminada com a brasileira), de tentar esconder e não ad- é o maior drama desta história: concordar: Está bem, mano, te quis na vida foi amar a sua
os seus dramas de vida na nossa também têm ciúmes um do ou- mitir a sua preferência por um uma mãe que não consegue li- dou uma mesadinha, assim tu mulher, viver tranquilamente
memória. Passado em Manaus, tro e competem, não pelo amor dos filhos, estabelece com o bertar o filho, que não o deixa te divertes por aí» (p.133). (sem filhos, o que não foi pos-
acompanha a história da famí- de Deus, mas pelo amor das mais novo, o Caçula (Omar), crescer, com um amor asfixian- A outra mulher da casa é sível), conviver com os amigos
lia de Zana e Halim, um casal de mulheres da sua vida. Essa dis- uma relação de tal modo do- te e destruidor. Domingas, que nunca saiu e aproveitar sossegadamen-
libaneses emigrados no Brasil. puta que sempre existiu entre entia que, não fosse a paixão Além da mãe, Omar tem de da casa que a acolheu, qua- te os bons momentos que a
A ação acompanha décadas da os dois extremou-se depois do que tem pelo marido ser ma- lidar também com o amor de se criança, como criada, es- existência pode proporcio-
família (os gémeos teriam nas- afastamento de Yaqub, por uns nifesta, dir-se-ia quase incestu- Rânia, a irmã mais nova, que tabelecendo uma relação nar. Não sendo este um livro
cido em 1925), principalmente anos, para o Líbano, também osa. Com o seu amor sufoca-o, não encontra nenhum com- de lealdade inquestionada. feliz, esta personagem é a que
do período que medeia a Segun- por causa de uma mulher. Ciu- dificultando-lhe a relação com panheiro que consiga compe- O narrador vem a descobrir conseguiu viver mais perto da
da Guerra até à ditadura militar, mento, e apenas com 13 anos, a restante família e, principal- tir com os irmãos, por quem que seu filho é neto de Zana felicidade. Só que a «vida vai
pelo olhar de uma personagem Omar rasga-lhe a cara. Essa cica- mente, com outras mulheres: nutre um amor infinito. Tam- e Halim: «Eu não sabia nada andando em linha reta, de re-
secundária, que sabe de muitas triz, que Yaqub nunca ocultou, «Todas foram vítimas de Zana. bém esse amor doentio, sem de mim, como vim ao mun- pente dá uma cambalhota, a
destas histórias em segunda é um traço distintivo, também Todas, menos duas (…). As ou- o ser efetivamente, parece in- do, de onde tinha vindo (…). linha dá um nó sem ponta. Foi
mão, através das conversas com simbólico, da diferença exterior tras, assanhadas e oferecidas, cestuoso, como o narrador dá Minha infância, sem nenhum assim…» (p.135).

“CERÂMICAS DE ALCOUTIM” “CORPO RESTRITO”


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