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MATERIAL EXTRA — Literatura

3ª série — 3º Trimestre — Dois Irmãos (Milton Hatoum)


Professor Brotas

Dois irmãos (2000) – Milton Hatoum próprio desenrolar do romance que se relaciona aos destinos dos
personagens”. (PERRONE-MOISÉS)
EPÍGRAFE: poema “Liquidação” (livro Boitempo) Enquanto narrador do romance, ele tem uma presença que é
ausente. Isso se coloca como um paradoxo que é a chave para a
A casa foi vendida com todas as lembranças compreensão de sua narrativa: ao mesmo tempo em que é o
todos os móveis todos os pesadelos epicentro do romance, o portador do discurso e aquele que narra os
todos os pecados cometidos ou em via de cometer acontecimentos de toda a família, Nael se deixa entrever muito
a casa foi vendida com seu bater de portas pouco nas linhas do romance. Estava perto o suficiente dos fatos
seu vento encanado sua vista do mundo para poder narrá-los posteriormente, mas estava longe o bastante
seus imponderáveis [...] para não participar da vida familiar. Isso se deve à sua condição
(Drummond) periférica dentro da família, diante do seu não reconhecimento como
parte dela.
Publicado no ano de 2000, o romance Dois irmãos contribuiu para
consolidar o nome de Milton Hatoum como um dos mais expressivos → A questão da origem, do pertencimento e da identidade:
da literatura brasileira contemporânea. O livro é narrado na forma de
flashbacks e se inicia pelo prólogo, com Zana no leito de morte - Halim é privado de seu lugar, o leito conjugal e sua mulher, pelo
perguntando se os filhos já haviam feito as pazes. Seu início Caçula; assiste à destruição da Cidade Flutuante e no fim da vida
cronológico se dá em 1914 (Galib, pai de Zana, tinha um tampouco sente-se confortável em sua casa ou loja: ele andarilha.
restaurante) e segue até meados da década de 1970. O romance vai Zana passa a vida buscando o lugar de paz em sua família: a
tecendo a história da família de libaneses em um período de reconciliação dos gêmeos jamais acontecida; depois convive com
decadência da cidade de Manaus, que já não colhia mais os louros fantasmas e é até obrigada a abandonar sua casa. Rânia foi
da belle époque da borracha, convivendo com as agruras deixadas impedida por sua mãe de amar o único homem que amou e desde
por ela e pelo seu crescimento desenfreado, culminando com a então instituiu seu quarto, a loja, e depois seu bangalô como seus
implantação da Zona Franca. Uma cidade, pois, em plena lugares artificiais; entretanto, dependeu sempre da presença de
transformação, situada à periferia da periferia do capital, distante do Yaqub e Omar para a consolidação definitiva desses lugares; no
projeto modernizador que se instaurava no Brasil, especialmente na final do romance, esperou sempre e inutilmente a volta de Omar.
região sudeste. A decadência de Manaus não é apenas física, Domingas foi arrancada de seu lugar, levada ao orfanato e depois à
demonstrada pelo fim dos igarapés e da Cidade Flutuante, mas casa de Halim e Zana, onde jamais reconheceu-se plenamente,
também mostra, através do romance de Hatoum, como seus periférica em seu quartinho.
personagens lidam com essa contingência que é da cidade, mas
também de cada um deles. - Já Yaqub e Omar, apesar de simbolizarem em si e individualmente
a mesma fragmentação e disputa pelos amores da mãe, de Rânia,
Narrado em primeira pessoa, os detalhes dessa trajetória familiar Domingas e Lívia, representam, enquanto casal gemelar, o duplo e a
vão sendo contados por alguém que esteve muito próximo do que oscilação entre opostos antagônicos – rivalidades e rancores,
aconteceu. O narrador Nael, cujo nome é revelado apenas no nono memória e esquecimento, vingança e “perdão”.
capítulo do romance, é filho de Domingas, uma índia que trabalhava
como empregada na casa. Ela e o menino viviam no quarto dos  Yaqub: calculista, prático e frio – engenheiro
fundos e é justamente de lá que ele vê muitos dos acontecimentos Traumas: ter sido relegado ao segundo plano, no amor
do romance: viu Halim lamentar a atenção desmesurada de Zana ao materno, cicatriz na face esquerda (provocada por Omar),
filho Omar; viu a partida de Yaqub e sua ascensão social em São ter sido mandado para o Líbano, aos 13 anos.
Paulo; viu Omar permanecer em Manaus, com suas bebedeiras,
contrabandos e mulheres; viu sua mãe sofrer, silenciosamente, dia  Omar: baderneiro, mimado, ocioso e mau aluno
após dia, humilhações e sentir saudades de sua terra natal. Nael é “Na parede viu uma fotografia: ele e o irmão sentados no
um filho bastardo e não reconhecido pela família de libaneses. tronco de uma árvore que cruzava um igarapé; ambos
Sempre foi tratado como filho da empregada, mas era também filho riam: o Caçula, com escárnio, os braços soltos no ar;
de um dos gêmeos. Yaqub, um riso contido, as mãos agarradas no tronco e o
olhar apreensivo nas águas escuras” (HATOUM).
“Ao longo do romance, muitas lacunas vão sendo preenchidas, pois
a estrutura da narrativa se baseia numa relação de segredo e * Essa fotografia sintetiza a diferença de personalidade entre os
anúncio, sendo que os três segredos contidos na construção do irmãos Omar e Yaqub. Enquanto o primeiro expressa coragem,
romance se constituem como eixos centrais. O primeiro deles é a desprendimento e movimento dos braços soltos, Yaqub expressa
identidade do narrador; o segundo segredo diz respeito à origem medo, contenção e imobilidade. Tais comportamentos são indícios
paterna de Nael, levado com ambiguidade até o fim; e o terceiro é o dos trajetos opostos que os irmãos iriam percorrer ao longo da vida.

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“Duelo? Melhor chamar de rivalidade, alguma coisa que não deu
* Não há maniqueísmo na relação entre os irmãos. → alegoria da certo entre os gêmeos ou entre nós e eles”, revelou-me Halim,
gangorra (oscilação nunca resolvida) mirando a seringueira centenária do quintal.” (HATOUM)

* Por ter nascido menor e frágil, o Caçula recebeu mais atenção de → Nael (narrador-personagem): a síntese da problemática sobre a
Zana, enquanto o outro ficava com Domingas: “Com Yaqub foi mais questão da origem e da identidade:
forte: amor de mãe postiça, incompleto, impossível. Zana se
refestelava no convívio com o outro, levava-o para toda parte”. A Eu não sabia nada de mim, como vim ao mundo, de onde tinha
disputa entre os meninos já existia e tinha explodido no golpe de vindo. A origem: as origens. Meu passado, de alguma forma
Omar no rosto de Yaqub, pelo que Halim quis mandá-los ao Líbano. palpitando na vida dos meus antepassados, nada disso eu sabia.
No entanto, a mãe reincidiu em sua preferência por Omar e fê-lo Minha infância, sem nenhum sinal da origem. É como esquecer uma
ficar, sem supor que recalcava a rivalidade entre os meninos: “Quis criança dentro de um barco num rio deserto, até que uma das
mandar os gêmeos para o Líbano, eles iam conhecer outro país, margens a acolhe. Anos depois, desconfiei: um dos gêmeos era
falar outra língua... Era o que eu mais queria... Falei isso para a meu pai. Domingas disfarçava quando eu tocava no assunto;
Zana, ela ficou doente, me disse que o Omar ia se perder longe deixava-me cheio de dúvida, talvez pensando que um dia eu
dela. Não deu certo... nem para o que foi nem para o outro que ficou pudesse descobrir a verdade. Eu sofria com o silêncio dela; nos
aqui.” (HATOUM) nossos passeios, quando me acompanhava até o aviário da Matriz
ou a beira do rio, começava uma frase mas logo interrompia e me
* Intertextualidade bíblica: Abel e Caim; Esaú e Jacó olhava, aflita, vencida por uma fraqueza que coíbe a sinceridade.
Muitas vezes ela ensaiou, mas titubeava, hesitava e acabava não
* Intertextualidade literária: Esaú e Jacó (Machado de Assis) dizendo. Quando eu fazia a pergunta, seu olhar logo me silenciava,
e eram olhos tristes.
“A intimidade com os filhos, isso o Halim nunca teve. Uma parte de
sua história, a valentia de uma vida, nada disso ele contou aos → Intensificação dos conflitos:
gêmeos. Ele me fazia revelações em dias esparsos, aos pedaços,
“como retalhos de um tecido”. Ouvi esses “retalhos”, e o tecido, que “Gandaiava como nunca, e certa noite entrou em casa com uma
era vistoso e forte, foi se desfibrando até esgarçar.” (HATOUM) → caloura, uma moça do cortiço da rua dos fundos, irmã do Calisto.
memória e esquecimento Fizeram uma festinha a dois: dançaram em redor do altar, fumaram
narguilé e beberam à vontade. De manhãzinha, do alto da escada,
“Os filhos haviam se intrometido na vida de Halim, e ele nunca se Halim sentiu o cheiro de pupunha cozida e jaca; viu garrafas de arak
conformou com isso. No entanto, eram filhos, e conviveu com eles, e roupas espalhadas no assoalho, caroços e casca de frutas sobre a
contavalhes histórias, cuidava deles em momentos esparsos. Bíblia aberta no tapete em frente ao altar, e viu o filho e a moça, nus,
Levava-os para pescar no lago do Puraquecoara, e remavam no dormindo no sofá cinzento. O pai desceu lentamente, a moça
paraná do Cambixe, onde Halim conhecia criadores de gado, donos despertou, assustada, envergonhada, e Halim, no meio da escada,
de fazendolas. Foi o que se poderia chamar de pai, só que um pai esperou que ela se vestisse e fosse embora. Depois se aproximou
consciente de que os filhos tinham lhe roubado um bom pedaço de do filho, que fingia dormir, ergueu-o pelo cabelo, arrastou-o até a
privacidade e prazer. Anos depois, iriam roubar-lhe a serenidade e o borda da mesa e então eu vi o Omar, já homem feito, levar uma
bom humor. Ele advertia a esposa sobre o excesso de mimo com o bofetada, uma só, a mãozorra do pai girando e caindo pesada como
Caçula, a criança delicada que por pouco não morrera de um remo no rosto do filho. Todos os pedidos que Halim lhe fizera em
pneumonia.” vão, todas as palavras rudes estavam concentradas naquele tabefe.
Foi um estalo de martelada em pau oco. Que mão! E que pontaria!
→ Domingas chega à casa de Zana alfabetizada e batizada, para
trabalhar como empregada (“escrava fiel”) – depois de 2 anos, os O valentão, o notívago, o conquistador de putas estatelado sobre o
gêmeos nascem. tapete. O Caçula não se levantou. O pai o acorrentou na maçaneta
do cofre de aço, sentou-se uns minutos no sofá cinzento, tomou
→ Em 1950, Yaqub vai para São Paulo – Nael tinha 4 anos. fôlego e saiu de casa. Sumiu por dois dias. Zana não pôde interferir,
não teve tempo de socorrer o filho. Ela esbravejou, gritou, sentiu-se
→ Yaqub se casa com Lívia, antiga vizinha da adolescência, a qual mal ao ver o filho acorrentado, apoiado ao cofre enferrujado, a face
era disputada entre os gêmeos – o casamento acontece em São esbofeteada em alto-relevo. No meu íntimo, aquele tabefe soava
Paulo, sem a presença da família. como parte de uma vingança. (...) Mas vingar-me de quem?”
(HATOUM)
“A solidão e o frio não o incomodavam; comentava os estudos, a
perturbação da metrópole, a seriedade e a devoção das pessoas ao → Omar é enviado, pela família, para morar em São Paulo – ele
trabalho. De vez em quando, ao atravessar a praça da República, invade a casa do irmão, na ausência de Yaqub, degrada suas
parava para contemplar a imensa seringueira. Gostou de ver a fotografias e rouba seu passaporte (viagem para os Estados
árvore amazônica no centro de São Paulo, mas nunca mais a Unidos).
mencionou. (...)

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“O silêncio de Halim. Eu já desconfiava do que ele mais temia. O “Numa tarde que ele escapara logo depois da sesta eu o encontrei
engenheiro se engrandecia, endinheirado. E o outro gêmeo não na beira do rio Negro. Estava ao lado do compadre Pocu, cercado
precisava de dinheiro para ser o que era, para fazer o que fez. de pescadores, peixeiros, barqueiros e mascates. Assistiam,
atônitos, à demolição da Cidade Flutuante. Os moradores xingavam
“E como fez! Aqueles cinco ou seis anos: o tempo entre a fuga de os demolidores, não queriam morar longe do pequeno porto, longe
Omar e a visita de Yaqub a Manaus. Só depois soubemos que do rio. Halim balançava a cabeça, revoltado, vendo todas aquelas
Yaqub havia prosperado, aspirando, talvez, a um lugar no vértice. casinhas serem derrubadas. Erguia a bengala e soltava uns
Ele mudara de endereço, e o novo bairro paulistano onde morava palavrões, gritava “Por que estão fazendo isso? Não vamos deixar,
dizia muito. O bairro e o apartamento, porque agora as fotografias não vamos”, mas os policiais impediam a entrada no bairro. Ele ficou
enviadas por Yaqub revelavam interiores tão imponentes que os engasgado, e começou a chorar quando viu as tabernas e o seu bar
corpos diminuíam, tendiam a desaparecer. predileto, A Sereia do Rio, serem desmantelados a golpes de
machado. Chorou muito enquanto arrancavam os tabiques,
(...) cortavam as amarras dos troncos flutuantes, golpeavam brutalmente
os finos pilares de madeira. Os telhados desabavam, caibros e ripas
Halim nunca quis ter mais que o necessário para comer, e comer caíam na água e se distanciavam da margem do Negro. Tudo se
bem. Não se azucrinava com as goteiras nem com os morcegos desfez num só dia, o bairro todo desapareceu. Os troncos ficaram
que, aninhados no forro, sob as telhas quebradas, faziam voos flutuando, até serem engolidos pela noite.” (HATOUM)
rasantes nas muitas noites sem luz. Noites de blecaute no norte,
enquanto a nova capital do país estava sendo inaugurada. A euforia, → Halim morre, em casa.
que vinha de um Brasil tão distante, chegava a Manaus como um
sopro amornado. E o futuro, ou a ideia de um futuro promissor, → Omar faz amizade com Rochiram, um “empreendedor” indiano
dissolvia-se no mormaço amazônico. Estávamos longe da era que pretendia construir um hotel.
industrial e mais longe ainda do nosso passado grandioso. Zana,
que na juventude aproveitara os resquícios desse passado, agora se → Yaqub entra no plano como engenheiro e Omar agride
irritava com a geladeira a querosene, com o fogareiro, com o jipe violentamente o irmão, desaparecendo na sequência. – o projeto é
mais velho de Manaus, que circulava aos sacolejos e fumegava. arruinado.
(crescimento desordenado e sem infraestrutura de Manaus)
→ Domingas morre na rede e Nael permanece ao seu lado:
Nessa época, Rânia quis modernizar a loja, decorá-la, variar as
mercadorias. Halim fez um gesto de fadiga, talvez indiferença. Não “Pedi a Rânia para que minha mãe fosse enterrada no jazigo da
tinham dinheiro para reformar a casa nem a loja, muito menos os família, ao lado de Halim. Ela concordou, pagou tudo sem reclamar,
dois quartos dos fundos, onde eu e minha mãe dormíamos. E, e eu nunca soube quanta cumplicidade havia num ato tão generoso.
quando menos esperávamos, o pequeno deus agiu sobre nossa Minha mãe e meu avô, lado a lado, debaixo da terra, haviam
vida. Yaqub agiu e foi generoso. Anos depois, no momento mais encontrado um destino comum. Eles que vieram de tão longe para
trágico da vida dele, eu retribuiria, talvez sem querer, essa morrer aqui. Hoje, tanto tempo depois, ainda visito o túmulo dos
generosidade que de algum modo mudou minha vida. Ele não era dois.” (HATOUM)
desatento para o mundo; ao contrário, observava tudo, e isso eu fui
percebendo aos poucos.” (HATOUM) → Rochiram “pega” a casa como pagamento pela dívida dos dois
irmãos.
→ Omar foge de casa; depois de um tempo, é encontrado.
→ Rânia se muda para um bangalô e, na sequência, leva a mãe.
“Assim eu via o velho Halim: um náufrago agarrado a um tronco,
longe das margens do rio, arrastado pela correnteza para o remanso → Zana morre em uma clínica.
do fim. Fingia estar alheio a tudo? Às vezes dissimulava um apagar
súbito, de quem vaga, aéreo, sobre as coisas deste mundo. Não → Omar vai preso, pois tinha tentado agredir Yaqub, novamente, no
dava ouvidos a ninguém, fazia-se de surdo, mas retinha uma ponta hospital em que este havia sido internado.
de ânimo. Nunca deixou de entornar uns bons goles de arak. Bebia,
suava, lambia os beiços e espreitava os gestos de Zana, se derretia → A única parte da casa a não ser vendida foi o quartinho do fundo,
para ela, balbuciava palavras de amor. E ainda teve tempo para que ficou para Nael, na escritura, por ação de Yaqub.
testemunhar alguns acontecimentos importantes na nossa vida.”
(HATOUM) “Ainda chovia, com trovoadas, quando Omar invadiu o meu refúgio.
Aproximou-se do meu quarto devagar, um vulto. Avançou mais um
→ Golpe de 1964: Manaus é tomada pelos militares. pouco e estacou bem perto da velha seringueira, diminuído pela
grandeza da árvore. Não pude ver com nitidez o seu rosto. Ele
→ Nael tem uma noite de amor com Rânia, na loja; esse contato ergueu a cabeça para a copa que cobria o quintal. Depois virou o
físico nunca mais é repetido. corpo, olhou para trás: não havia mais alpendre, a rede vermelha
→ O bairro da Cidade Flutuante é destruído: não o esperava. Um muro alto e sólido separava o meu canto da
Casa Rochiram. Ele ousou e veio avançando, os pés descalços no
aguaçal. Um homem de meia-idade, o Caçula. E já quase velho. Ele
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me encarou. Eu esperei. Queria que ele confessasse a desonra, a permanente de bailarinos que se apresenta em uma
humilhação. Uma palavra bastava, uma só. O perdão. companhia. De fato, são muitos os seus pontos comuns: o
cenário mineiro, a força poética das palavras, as reflexões
sobre a existência humana, os episódios de violência,
Omar titubeou. Olhou para mim, emudecido. Assim ficou por um protagonistas colocados em momentos decisivos de suas
tempo, o olhar cortando a chuva e a janela, para além de qualquer vidas.
ângulo ou ponto fixo. Era um olhar à deriva. Depois recuou
lentamente, deu as costas e foi embora.” (HATOUM) • Isso justifica a insistência de Guimarães Rosa para que
“Campo Geral” fosse sempre a primeira narrativa da série
→ Tempestade: caos e turbulência que atravessam a narrativa. – ele via, ali, os motivos que seriam desenvolvidos nas
estórias posteriores, e essa circunstância, para ele,
explicava o título escolhido: “Como lugar, como cenário,
→ Memória individual e coletiva: degradação da família, da casa e jamais se diz um campo geral ou o campo geral, este
de Manaus – forte relação entre as personagens e os espaços campo geral; no singular, a expressão não existe. Só no
narrativos. plural: ‘os gerais’, ‘os campos gerais’. Usando, então, o
singular, eu desviei o sentido para o simbólico: o de plano
“O aguaceiro era tão intenso que a cidade fechou suas portas e geral (do livro)”.
janelas bem antes do anoitecer. Lembro-me de que estava ansioso
• Denominar “Campo Geral” de poema significa sugerir uma
naquela tarde de meio-céu. Eu acabara de dar minha primeira aula leitura que vá além dos sentidos imediatos de palavras e
no liceu onde havia estudado e vim a pé para cá, sob a chuva, de episódios, e que busque descobrir os seus significados
observando as valetas que dragavam o lixo, os leprosos mais secretos. A leitura exige um leitor que esteja disposto
amontoados, encolhidos debaixo dos oitizeiros. Olhava com a encarar esse desafio.
assombro e tristeza a cidade que se mutilava e crescia ao mesmo
tempo, afastada do porto e do rio, irreconciliável com o seu • O menino Miguilim, de 8 anos de idade, vivia com sua
família em um lugar chamado Mutúm, no interior de Minas
passado.” (HATOUM) Gerais. Morava com o pai, Bero, a mãe, Nhanina, e os
irmãos Drelina, Chica, Dito e Tomezinho (os dois últimos
mais novos que ele), além de outros dois parentes
Nael sempre desconfiou que um dos gêmeos era seu pai, mas esse próximos: uma velha tia de Nhanina, que todos chamavam
segredo não é revelado ao leitor. Domingas conta que teve um de Vovó Izidra, e o Tio Terêz, irmão de Bero. As
empregadas eram Rosa e Maria Pretinha. E, em uma
pequeno relacionamento com Yaqub, na juventude, e também que, dependência ligada à casa, vivia Mãitina, uma velha negra,
certa vez, Omar violentou-a: “Com Omar eu não queria...Uma noite antiga escrava, sempre às voltas com seus rituais de
ele entrou no meu quarto, fazendo aquela algazarra, bêbado, origem africana. O lugar onde moravam pertencia a um
abrutalhado... Ele me agarrou com força de homem. Nunca me fazendeiro, Sô Sintra, que sequer aparece na estória. Bero
pediu perdão.” (HATOUM). Pode se tratar de uma estratégia dividia o serviço com dois vaqueiros, Salúz e Jé. Miguilim
narrativa, ou seja, Nael não mencionou o nome de seu verdadeiro tinha ainda um irmão, o mais velho de todos, Liovaldo, que
vivia longe dali, com o tio materno, Osmundo. A casa era
pai para que o leitor se entremeasse pelos mesmos caminhos ocupada também por inúmeros animais de estimação.
duvidosos que ele, fazendo com que sua história se tornasse mais
verossímil. Afora isso, há um elemento importante no que tange à • Uma das manifestações do rito de passagem, em “Campo
relação de Nael com os gêmeos: o fato de não ter mencionado o Geral”, é simbolizada pela transição de Miguilim da miopia
nome de nenhum deles como seu pai significa que nenhum deles para os “vidros altos da manhã”, imagem que se refere às
agiu como tal. Essa dúvida acerca de sua paternidade gerou uma lentes dos óculos que ele experimenta.
lacuna que jamais foi preenchida: “O que Halim havia desejado com • Ora, a miopia igualmente representa uma revolta contra a
tanto ardor, os dois irmãos realizaram: nenhum teve filhos. Alguns visão pragmática do mundo dos adultos, isto é, na
dos nossos desejos só se cumprem no outro, os pesadelos contramão do utilitarismo e do olhar que só enxerga o
pertencem a nós mesmos.” (HATOUM). produtivo e o lucrativo, propõe-se a visão do insignificante,
do imperceptível, do desimportante – “olhar poético”
Nael, portanto, é um narrador à margem que não sabe de suas
origens, vê com impotência o sofrimento da mãe e vê os gêmeos • O nome Mutúm, onde vive Miguilim, é pleno de
significados. A expressão deriva do latim mutus, que
arruinarem a vida de todos naquela família. Ao narrar aquela significa “mudo, silencioso”, o que combina muito com o
história, que é sua e de cada um deles, pela primeira vez é Nael isolamento do lugar e com a tendência do protagonista à
quem detém a voz, é ele quem fala por aqueles que não estão lá introspecção.
para contar o que ocorreu. Seu olhar é fronteiriço em parte por
causa do sentimento de exclusão – social e familiar – e também
porque nunca soube a identidade verdadeira de seu pai, sendo essa • Além disso, a palavra MUTUM incorpora graficamente
esse isolamento, na medida em que é um palíndromo, isto
dúvida uma das molas propulsoras do romance. é, uma expressão que pode ser lida da esquerda para a
(Vera Helena Ceccarello, UNICAMP) direita ou vice-versa. Ou seja, a palavra se volta para si
mesma, ensimesmando-se, como Miguilim. Mas, se, de
- Corpo de Baile (1956) – novelas um lado, é reafirmação dessa separação do mundo, de
outro, é convite para refazer o percurso da leitura: terminar
• O título do conjunto sugere uma ligação entre as de ler e começar tudo de novo.
narrativas: a expressão “Corpo de Baile” define o grupo
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