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DOI: 10.36482/1809-5267.ARBP2020v72s1p.18-32
RESUMO
ABSTRACT
The text raises the debate about the constitution of psychology in Brazil, pointing
to its bases imported from countries with realities quite different from those found
here, in social and economic as well as historical, cultural and racial aspects. Psy-
chology since 1962 has been based on models that rarely take into account the
context in which it finds itself: a country that lays its foundations on slavery, prej-
udice, violence, the 20 years of a truculent military dictatorship, exclusion, mass
incarceration and the extermination of indigenous and black populations, murders
of homosexuals and transsexuals. In the current scenario, which intensifies aspects
always present here and dismantles the strategies of their confrontation, it is urgent
to rethink the practices and psychological knowledge producers and breeders of
colonial subjectivities, in times that, paraphrasing Hannah Arendt, announce them-
selves as dark, but at the same time challenge psychology, especially clinical, to
awaken from their sleep and enchanted dreams.
RESUMEN
A psicologia foi regulamentada como profissão no Brasil em 1962, bem antes da pro-
fissão de historiador, somente estabelecida em 1976. A distância de 14 anos não se
dá por acaso. Por muitos anos essa profissão de cuidado estaria entorpecida ao que
acontecesse à sua volta, tal como a população do país que a receberia bem antes e
mais amigavelmente que aos historiadores.
Produto importado da Europa e dos EUA, a psicologia brasileira falava a língua das
elites e da classe média que ia se consolidando no país. Voltava-se a um público
que poderia pagar por seus serviços, menos ocupado com a sobrevivência e com
mais tempo para elucubrar e elaborar entre duas a cinco vezes por semana sobre
suas inquietações, sonhos, conflitos e anseios. O mundo psíquico seria anali-
sado visando à elaboração, com evidente distanciamento do que acontecia lá fora
(Coimbra, 1995; Ferreira, 2004). A psicologia no Brasil não surge para pobres,
pretos, indígenas, gays, deficientes, trabalhadores, loucos; não cuida dos margi-
nalizados de todos os matizes e não consegue, na maior parte das vezes, com eles
dialogar. Cursos, formações e serviços privados e caros só estariam acessíveis a
quem pudesse pagar e falasse a mesma língua de quem o atendesse. O profis-
sional de psicologia estaria alinhado com a manutenção dos privilégios de raça,
classe e gênero.
A psicologia clínica tornou-se alvo preferencial das críticas no meio acadêmico nos
anos de 1980, 1990 e 2000 e teve de se desabituar do glamour das décadas de 1960
e 1970, quando foi a protagonista.
A partir do momento em que este modelo vai sendo desconstruído, surge a proble-
matização da formação do psicólogo brasileiro, empreendida por diferentes autores
(Ferreira, 2004; Coimbra, 1995; Baptista, 2000). Com a eclosão de movimentos
Não é raro ouvir a expressão “clínica social” pronunciada com o sentido de clínica
ofertada às chamadas “populações carentes”, como oportunidade de atendimento
psicológico por valores mais baixos do que os usualmente cobrados em sessões psi-
coterápicas de consultórios privados. O “social”, neste caso, se definiria pelo preço da
sessão, sem implicar qualquer modificação no modelo de atendimento. E, podemos
acrescentar, sem qualquer alteração no olhar sobre questões historicamente invisí-
veis, aos saberes e práticas psi em nosso contexto.
Muitos psis foram acordados ao longo dos anos de 1980 e 1990, quando chegam ao
Brasil referenciais, sobretudo franceses, que desconstruíam a autoridade da psica-
nálise, do analista e do especialista, desvendando seus aspectos psicologizantes de
efeitos perigosos. Os chamados filósofos da diferença: Foucault, Deleuze e Guat-
tari, começam a ser lidos nos cursos de psicologia, notadamente nas universidades
públicas, e revolucionam a forma de pensar subjetividade, ciências humanas, espe-
cialismos e práticas de cuidado. Chegam a vir ao Brasil, como acontece com Fou-
cault (1999) nas conferências da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
(PUC-RJ) sobre “A verdade e as formas jurídicas”, proferidas entre 21 e 25 de maio
de 1973.
Nestas, Foucault mostrou que as análises sobre o homem e as práticas de cuidado que
surgiram no século XIX eram análises e práticas judiciárias. O estudo do homem seria
inquérito e exame; o cuidado com a vida, disciplina. Logo de início Foucault alerta
de que tudo o que diria nas conferências era inexato, falso, errôneo e não poderia
ser de outra forma. Quer justamente mostrar que, o que se afirma como verdade,
nada mais é do que forma jurídica. As verdades sobre o sujeito, sobre o inconsciente
ou do inconsciente, são produções históricas de efeitos políticos de gestão da vida.
Chama a atenção sobre as práticas sociais que engendram “domínios de saber que
não somente fazem aparecer novos objetos, novos conceitos, novas técnicas, mas
também fazem nascer formas totalmente novas de sujeitos e de sujeitos de conheci-
mento. O próprio sujeito de conhecimento tem uma história, a relação do sujeito com
o objeto, ou, mais claramente, a própria verdade tem uma história” (p. 8). Ora, a
psicologia que havia nascido como análise do sujeito do conhecimento perde, assim,
sua base metafísica, o que considerava ser seu fundamento e seu objeto. Formou-se,
no século XIX, um saber do homem – a individualidade, o indivíduo normal ou anor-
mal –, saber que nasceu de práticas sociais de controle e vigilância. Esse saber não
se impôs a um sujeito de conhecimento, mas fez nascer um tipo novo de sujeito de
conhecimento. E, podemos acrescentar, fez nascer o sujeito psicológico.
Contudo, o que não tínhamos nos dado conta é de este ente psicológico inventado
como natural, desconstruído por Foucault e por comentadores da psicologia, era tam-
Nota-se que o olhar para o social e para a produção dos modos de subjetivação
identitários foi um passo importante da psicologia brasileira. Todavia, manteve uma
concepção do social sem cor, sem gênero, em uma clínica contextualizada, mas não
atenta a questões específicas vividas pela maior parte da população.
Nada de beijo com final feliz: a psicologia é despertada de seus sonhos e de suas pes-
quisas perfumaria pelo susto do abalo violento de seus alicerces mais caros. A partir
daí, e ao longo dos anos 80, começa a descer de sua torre encantada. Mas, ainda
ficaria no meio do caminho, acreditando ter feito o suficiente ao criticar a constitui-
ção desse sujeito psicológico e as práticas psi relacionadas ao poder, à psicologização
de questões políticas e à disciplinarização de corpos e condutas. Todavia, continuou
sem levar em consideração a violência do racismo sob o mito da democracia racial,
da homo e transfobia no país que mais mata essa população, da violência de gênero
que é o machismo em toda a parte, do capacitismo e da criminalização da pobreza.
Vivemos hoje uma segunda onda deste despertar, passados trinta ou quarenta anos.
Quando vozes silenciadas há séculos começaram a se fazer ouvir e a falar em seu
próprio nome, com os seus termos e da sua realidade, uma nova e forte onda silen-
ciadora e repressora surge, não só na política e nas redes sociais, mas também na
Academia. A elite do atraso exigirá sempre a exclusividade de lugares, acessos e
privilégios que considera direitos inatos, merecidos, conquistados e exclusivos.
A lista é infinita. Barbie e Ken são apoiados ferozmente pela classe média, que almeja
também esquiar um dia e que enfeita o seu natal com flocos de neve.
Como, então, falar em psicologia, sofrimento e clínica sem levar em conta o modo
como vive a maioria da população e sem olhar com desconfiança estes modos de
ser e de pensar? Sem considerar as desigualdades, as relações raciais, a não aces-
sibilidade para pessoas portadoras de deficiência, a violência no corpo executado
da vereadora mais votada do Rio de Janeiro? Quantas vidas e quantas mortes esse
corpo estirado no asfalto representa?
Em Brasília percebi como os próprios brasileiros viam o Brasil. Era com aquele mesmo
olhar imperial que eu tentara evitar. Parecia uma sociedade que nunca se cansara de
colonizar-se a si própria. E de encarar sua população e seu território como passíveis de
O mito do homem cordial tornou-se outro grande desmentido por aqui, embora como
interpretação equivocada da expressão de Holanda (2015) em “Raízes do Brasil”.
A cordialidade, de cordis, coração, nunca foi um elogio e sim uma crítica e uma
denúncia do modo de constituição subjetiva e institucional do brasileiro: afeto e troca
de favores no lugar do direito garantido institucionalmente. Proximidade rápida e fácil
que resguarda, todavia, rígidas hierarquias na pergunta: “você sabe com quem está
falando?”. Se paga menos à empregada doméstica por mais horas de trabalho por-
que ela é “como se fosse da família”. A cordialidade é um problema grave, não uma
vantagem. É uma tentativa de privatizar na forma do compadrio relações que são
ou deveriam ser institucionais e públicas. Não deveria importar se se gosta ou não
de alguém para reconhecer, respeitar e garantir seus direitos. Na base dos afetos e
do coração, muita violência é cometida. A contrapartida do afeto cordial é a ruptura
do pacto ético-político-institucional. Dar um jeitinho, quebrar um galho, fazer do
espaço público e das instituições a sua casa, sustentam a ultrapassagem dos limites
e, consequentemente, a violência, a invasão e o excesso. O acordo do silêncio em
torno dessas práticas e seus efeitos é letal. O mal-entendido com relação à categoria
cunhada por Holanda (2015) é um exemplo clássico do desmentido.
que elas/eles querem tomar o que seria do senhor branco, quando o que acontece é
justamente o contrário. Assim, numa interpretação perversa, aquelas/es que estão
sendo espoliadas/os e exploradas/as pelo colonizador se transformam naquelas/as
que querem tomar a posse de outro. Assim, o colonizador afirma sobre a/o Outra/o
aquilo que se recusa a reconhecer em si próprio.
1
A autora considera de maneira crítica no início do livro o uso do termo sujeito em português, que
desconsidera diferenças de gênero reduzindo-se ao gênero masculino. Em inglês, subject não tem
gênero. Não havendo em português a sujeita, o que faria incorrer em um erro ortográfico, Kilomba
mostra o quão grave é que uma identidade não exista na própria língua, ou seja, identificada como
erro. Por isso a autora ressalta a importância de novas terminologias, pois isso revela o problema das
relações de poder e violência na língua portuguesa. Assim utiliza o termo sujeito sempre em itálico ao
longo do texto (Kilomba, 2019).
Ferenczi recolocou a ênfase em situações concretas de vida que são violentas e pro-
duzem o trauma. Este é sempre relacional, nunca apenas intrapsíquico. A violência
traumática é mais grave quando é, em seguida, desmentida. O desmentido não é
somente verbal, não é apenas dizer que não aconteceu. É um modo de relação ou cui-
dado com o que aconteceu que torna invisível e coloca no campo da impossibilidade
o acontecido. O desmentido realiza a transição de uma experiência dolorosa para um
“não foi nada”, “não foi tão grave assim”, “não exagere”, “não vi nada demais”.
Por isso, para Ferenczi, a cena clínica deveria ser tratada como cena política e o trau-
mático como violência produzida no campo relacional e social.
Assim para Ferenczi, o primeiro tempo do trauma não seria em si mesmo necessaria-
mente desestruturante, pois o encontro com o outro poderia proporcionar o suporte
suficiente para elaborar a violação sofrida. O reconhecimento seria já um modo de
cuidado com o afeto intolerável no mundo aberto pela concretização da ameaça que
produziu uma fratura no mundo familiar e seguro. Mas quando aquele que testemu-
nha é desautorizado em sua “tentativa de produzir uma versão própria para aquilo
que foi vivido como injúria”, a ferida se aprofunda. O desafio, nesta perspectiva, no
trato com os traumas relacionais, é o de constituir uma língua própria e apropriada
para enunciar aquilo que é da ordem do irrepresentável e do inaudível.
O historiador britânico Paul Gilroy listou o que chamou de cinco defesas pelas quais
passamos para sermos capazes de ouvir e reconhecer o próprio racismo e branqui-
tude, que não estão relacionados somente à cor da pele, porém, são modos identi-
tários que usam a cor como justificativa para atribuir natureza e status, para dizer
quem pode e quem não pode falar em seu próprio nome. Mas, também poderiam
as cinco etapas ser o caminho de admissão, reconhecimento e reparação do capa-
citismo, do sexismo, da homofobia, da transfobia, do ódio e desprezo aos pobres,
ao interno penal, que nos constituem e transpassam (Kilomba, 2019).
2
No dia 25 de maio de 2020, um homem negro de 40 anos, George Floyd, foi assassinado em público
por um policial branco em Minneapolis. Floyd foi sufocado até a morte. O crime foi filmado e a reação
somou-se ao movimento mundial Blacks Lives Matter fundado em 2013 nos EUA após a absolvição de
George Zimmerman que matou a tiros o adolescente negro Trayvon Martin.
3
https://g1.globo.com/mundo/noticia/2020/05/27/caso-george-floyd-morte-de-homem-negro-film
ado-com-policial-branco-com-joelhos-em-seu-pescoco-causa-indignacao-nos-eua.ghtml
4
A Lei nº 12.711/2012, sancionada em agosto deste ano, garante a reserva de 50% das matrículas por
curso e turno nas 59 Universidades Federais e 38 Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia
a alunos/as oriundos/as integralmente do ensino médio público, em cursos regulares ou da Educação
de Jovens e Adultos. Os demais 50% das vagas permanecem para ampla concorrência.
Considerações finais
Já não é sem tempo de parar de negar que, se todos nós corremos riscos e temos
problemas com a violência endêmica, são os grupos das estatísticas citadas mais
acima que enfrentam cotidianamente situações inimagináveis e em gradações que
vão desde o olhar de suspeita do segurança de shopping – ele também explorado e
discriminado em outros contextos –, passando pelas revistas frequentes da polícia,
a pressão do tráfico e da milícia, até a tortura e o assassinato, forma definitiva de
apagá-los, silenciá-los e de recusar a sua existência. Esse apagamento é alimen-
tado pelo epistemicídio acadêmico, pelo desinteresse das políticas de educação,
saúde, emprego e moradia que insistem em negar as especificidades das relações
étnico-raciais no Brasil. Não reconhecer as dissimetrias é um exemplo do desmen-
tido. Sempre que se tenta enunciar isto alguém interrompe para dizer: “ah, mas…”.
Há sempre um “mas”.
O Brasil, apesar desses números, teve a sua imagem fixada como um país de povo
alegre, festivo, sensual, informal, acolhedor, democrático, que não se deixa abater
apesar das dificuldades. Que tudo suporta com um sorriso no rosto, sem reclamar e
sem se revoltar. Uma coletividade pacífica e submissa. Não é que esses ingredientes
estejam ausentes, ao contrário. Contudo, se tomarmos por base as estatísticas por
um lado e as lutas e resistências por outro, notamos que a alegria está longe de ser
a atmosfera predominante por aqui. O clima está muito mais para o de desproteção,
conflito, perplexidade e… luta.
sombrios […] não só não são novos, como não constituem uma raridade na história
[…]” (p. 9). Os perfis por ela trazidos nas páginas dos ensaios, nove ao todo, dentre
estes os de Rosa Luxemburgo, Walter Benjamin, Karl Jaspers e Martin Heidegger,
são para mostrar:
Que mesmo no tempo mais sombrio temos o direito de esperar alguma iluminação, e que
tal iluminação pode bem provir, menos das teorias e conceitos, e mais da luz incerta, bru-
xuleante e frequentemente fraca que alguns homens e mulheres nas suas vidas e obras,
farão brilhar em quase todas as circunstâncias e irradiarão pelo tempo que lhes foi dado
na Terra, essa convicção constitui o pano de fundo implícito contra o qual se delinearam
esses perfis (Arendt, 2008, p. 9).
É fato que a psicologia brasileira que acordou não consegue mais voltar atrás. Precisa
rever-se, repensar sua formação, suas práticas, os autores e autoras com os quais
trabalha metodologias, precisa escutar e aprender, abalando o entorpecimento de
suas produções. Ainda que o medo da perda de território faça com que se avolumem
resistências e violências contra “o que não é espelho”.
Referências
Arendt, H. (2008) Homens em tempos sombrios. São Paulo, SP: Companhia das Letras.
Holanda, S. B. (2015). Raízes do Brasil. São Paulo, SP: Companhia das Letras.
Ferreira, J. L., Neto (2004). A formação do psicólogo: Clínica, social e mercado. São
Paulo, SP: Escuta.
Moser, B. (2016). Autoimperialismo: Três ensaios sobre o Brasil. São Paulo, SP: Crítica.
Souza, J. (2017). A elite do atraso: Da escravidão à lava jato. Rio de Janeiro, RJ: Leya.