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Resumo: Neste artigo, apresentamos os primeiros resultados das discussões realizadas pelo
Coletivo Moda e Decolonialidade: Encruzilhadas do Sul Global (CoMoDe). A proposta é avaliar o
campo da Moda brasileiro e criticar as abordagens realizadas sobre as práticas e a sua produção de
saberes tendo em vista as leituras críticas pós-coloniais, decoloniais e do feminismo negro. A partir
da metáfora da costura, são apresentados dois conceitos formulados pelo grupo: retrocesso social
em moda e rasgo em moda. Ambos representam as proposições metodológicas que pautam a
atuação do coletivo.
Introdução
2 O Coletivo e este artigo vinculam-se ao Grupo de Pesquisa do CNPq DiHCI - Direitos Humanos, Cultura e Identidade, linha
de pesquisa Raça, Gênero e Opressão por meio do Instituto Federal do Rio de Janeiro. A pesquisa também dialoga com o
NEABI e o NUGEDS do Campus Belford Roxo.
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O ponto central que nos interessa para as reflexões que se seguem - qual
seja, a colonização - dialoga com o tema fundamental de discussão dos autores que
Ballestrin (2013) e outros denominam “tríade francesa”: Frantz Fanon, Aimé Césaire
e Albert Memmi. Três autores de língua francesa, originários de territórios
colonizados pela França. Trata-se de uma coincidência talvez não tão ocasional,
mas o fato é que as perversidades próprias a todo processo colonial tiveram, na
versão francesa, especificidades que estimularam uma crítica intelectual ao sistema
colonial que desde meados do século XX vem remodelando as reflexões sobre as
sociedades e suas relações em nível mundial.
A consciência dos efeitos da colonização sobre as mentes e corpos dos
povos colonizados, assim como da perversidade do processo colonial e da
manutenção de suas práticas e ideologia ainda atualmente nos territórios já
independentes das ex-colônias - aquilo que foi posteriormente denominado pelos
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Desta maneira, enfrentar o aparato colonial envolve uma luta contra todos os
conceitos eurocêntricos que legitimam as opressões experimentadas ao redor do
mundo pelas sociedades que foram não apenas racializadas, como também
generificadas. Enfrentar o aparato colonial significa deslegitimar todo o conjunto
formado pelas colonialidades do poder, saber e ser que se erigiram durante o
processo colonial e que, como apontam Aníbal Quijano e outros, não se encerrou
com as descolonizações.
A partir deste ponto, é inevitável perguntar: o que todo este conjunto de
conceitos tem a ver com a moda? É possível falar em descolonização quando se
trata sobre este tema? Para os autores deste artigo, a moda não apenas precisa ser
descolonizada, como também é ela parte do aparato colonial de dominação dos
povos não-brancos e das mulheres.
Conhecendo estes pressupostos, é fundamental trazer dois elementos
centrais para esta discussão:
I. que a colonialidade do saber (Lander, 2005) - em linhas gerais, o
conjunto epistemológico desenvolvido pelo branco colonizador (seus
conceitos, métodos, abordagens), incluindo seu aparato de
autorização e desautorização de saberes - se estrutura em torno de
uma lógica de oposição binária e hierárquica que opõe diametralmente
elementos opostos em pólos contrários e desiguais, sendo sempre um
pólo superior ao outro cuja base se estrutura na ideia de opressão de
um destes pólos;
II. que grande parte do saber produzido para e sobre as sociedades
colonizadas - o que inclui os saberes produtivos, ou seja, as técnicas e
práticas tecnológicas que utilizamos no desenvolvimento dos produtos,
assim como a ideia de quem está autorizado para produzir o quê 6 -
está infectado por esta colonialidade, o que inclui o saber produzido
pelos próprios colonos sobre si. Neste sentido, é possível encontrar
categorias e reflexões sobre as colônias realizadas por locais que
utilizam os conceitos europeus e que, mesmo de maneira não
deliberada, reproduzem e reforçam a colonialidade até os dias atuais:
Refletir sobre a moda envolve, para este Coletivo, analisar o impacto dos
conceitos coloniais/modernos de raça, gênero e classe, ainda que não de maneira
isolada dos demais campos da vida social, neste setor. Este processo de
reavaliação a partir destas chaves conceituais que avaliam os esquemas de
opressão social aplicados à moda é denominado, por este Coletivo, como
retrocesso social em moda.
A utilização da palavra retrocesso não é aleatória. Para aqueles que lidam
com o dia a dia produtivo da produção de vestuário, é conhecida o movimento de
costura aplicado nas roupas em que, uma vez realizada a costura sobre o tecido, a
mesma é retrocedida por cima da primeira costura com novos pontos e,
posteriormente, segue para frente mais uma vez. O objetivo de tal procedimento é
reforçar a costura no ponto em que se aplica o processo. Com a utilização da noção
de retrocesso não desejamos ressaltar os aspectos comumente associados a tal
conceito, qual seja, o de atraso. A ideia é exatamente considerar aquilo que foi
formulado até o momento atual no que se refere às práticas e teorias sobre o campo
da moda, isto é, voltar atrás sobre os conceitos a fim de submetê-los à análise para,
no momento seguinte, darmos sequência a uma nova reflexão que se sobreponha
às primeiras. Assim, não negamos a importância do que foi desenvolvido até aqui,
mas ressaltamos a urgente necessidade de reavaliação das mesmas. Retroceder
para nós, como o ponto sugere, representa reforçar e tornar mais consistente as
costuras de sentido que se realizam sobre a moda.
Consideramos ainda que, em alguns momentos, será mesmo necessário
uma ruptura conceitual a fim de avaliar em que medida reproduzimos a lógica
colonial em nossas práticas produtivas, de ensino e pesquisa e romper com tais
abordagens. Aqui, trata-se de se aproximar ainda mais do que os autores do grupo
modernidade/colonialidade denominaram giro decolonial. Neste caso, apresentamos
o conceito de rasgo em moda. Diferente do processo de corte, em que um tecido é,
com a utilização de um instrumento como a tesoura, dividido em duas ou mais
partes, quando rasgamos um tecido, rompemos, de maneira bruta e muitas vezes
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7 Aqui utilizamos no plural, de modo a ressaltar que a moda são as várias relações com o
vestuário.
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8 Aqui estamos discutindo - em diálogo com Quijano (2005) - sobre a lógica racial de divisão
do trabalho. Para este autor, a modernidade/colonialidade dividiu os tipos de trabalho que podem ser
realizados pelos indivíduos a partir da lógica racial: assim, os trabalhos intelectuais, a tecnologia e
demais atividades que utilizam a mente são valorizadas, bem pagas e devem ser desenvolvidas
pelos brancos, pois estes são naturalmente superiores. Os trabalhos manuais, que exigem força e o
corpo de modo mais amplo, são desvalorizados e devem ser realizados pelos indivíduos racializados.
Há ainda um conjunto de atividades permitidas aos sujeitos mestiços, os colonos semi-brancos.
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Com efeito, o preço a ser pago foi e continua sendo pesado. O sistema
contra o qual lutamos relegou à inexistência saberes científicos, estéticas e
categorias inteiras de seres humanos. Este mundo europeu nunca
conseguiu ser hegemônico, mas ele se apropriou, sem hesitar e sem se
envergonhar, de saberes, estéticas, técnicas e filosofias de povos que ele
subjugava e cuja civilização ele negava. Nosso combate se posiciona
claramente contra a política do roubo justificado, legitimado e praticado sob
os auspícios ainda vivos de uma missão civilizatória. Sem negar as
complexidades e as contradições dos séculos de colonialismo europeu, ou
aquilo que escapou às suas técnicas de vigilância; sem ocultar também as
técnicas de empréstimo ou de desvio utilizadas por colonizados/as, ainda
nos falta um conhecimento aprofundado das trocas (culturais,
técnicas e científicas) Sul-Sul. Em grande parte, essa falta se deve às
políticas de financiamento da pesquisa. Trata-se de uma luta por justiça
epistêmica, isto é, uma justiça que reivindica a igualdade entre os saberes e
contesta a ordem do saber imposto pelo Ocidente. Os feminismos de
política decolonial se inscrevem no amplo movimento de
reapropriação científica e filosófica que revisa a narrativa europeia do
mundo. Eles contestam a economia-ideologia da falta, essa ideologia
ocidental-patriarcal que transformou mulheres, negros/as, povos indígenas,
povos da Ásia e da África em seres inferiores marcados pela ausência de
razão, de beleza ou de um espírito naturalmente apto à descoberta
científica e técnica. Essa ideologia forneceu o fundamento das políticas de
desenvolvimento que, grosso modo, dizem: “Vocês são subdesenvolvidos,
mas podem se tornar desenvolvidos, desde que adotem nossas
tecnologias, nossos modos de resolver os problemas sociais e econômicos.
Vocês devem imitar nossas democracias, o melhor dos sistemas, pois não
sabem o que é liberdade, respeito pelas leis, separação de poderes”. Essa
ideologia alimenta o feminismo civilizatório que, por sua vez, basicamente
afirma: “Vocês não possuem liberdade, não conhecem os direitos que têm.
Nós vamos ajudá-los a atingir o nível adequado de desenvolvimento”.
(VERGÈS, 2020: p. 27/8 - grifos nossos).
Lendo este tipo de anúncio, é muito difícil não perguntar onde está a história
das costureiras escravizadas? Suas filhas e netas, mulheres negras libertas, deram
continuidade a estas profissões: a avó de uma das autoras deste artigo foi lavadeira
e passadeira durante toda a vida. Seria apenas uma coincidência ou trata-se, como
no caso das empregadas domésticas, de resquícios da escravidão? Assim, é
necessário, por exemplo, que tenhamos uma história da moda que enderece às
escravizadas o lugar de criadoras das modas no período colonial, sejam elas
copiadas ou não, assim como outras análises que tragam a relação do vestuário no
período colonial e moderno a partir de outros olhares. Enquanto não discutirmos em
sala de aula e não tivermos pesquisas sistemáticas sobre o papel das mulheres
escravizadas na história do vestuário brasileiro, ou das mulheres negras nas
indústrias de produção de vestuário no Brasil, por exemplo, entendemos que
estaremos reproduzindo uma lógica que oprime mulheres racializadas.
Ressaltamos, por exemplo, pesquisas como a de Luis Prado (2019) que investiga o
desenvolvimento da indústria têxtil no Brasil desde o século XIX e relata a
introdução de maquinário, tecidos, cortes e moldes, cuja dinâmica marca roupas
padronizadas para os negros escravizados. Importante também ressaltar Gilda de
Mello e Souza (2001) que mediante a sua pesquisa pioneira nos estudos de moda
no século dezenove, denota as estratificações sociais, enquanto de um lado
burgueses em sobrados cultivando e valorizando estéticas europeias, negros
escravizados circulando joias e produzindo roupas, em uma outra ponta, “rudes
fazendeiros ricos [moviam-se] dentro do maior desconforto, dormindo em catres e
redes, habitando casas nuas, com roupas guardadas nos baús ou suspensas em
cordas” (118).
Neste sentido, as noções de retrocesso social em moda e de rasgo em moda
se propõem a refletir sobre como os conceitos coloniais/modernos de raça, gênero,
classe e outros participam na produção e reprodução - em nossas práticas
produtivas, de ensino e de pesquisa -, da lógica moderno/colonial. Assim, o que
propomos é uma reformulação das epistemologias aplicadas à reflexão e produção
sobre a moda que, dentre outros, se pautem em:
● Diálogos com o local e o Sul Global;
● Horizontalização da produção de saber criativo, dos sentidos e dos
significados. Desta forma, os saberes e inovações das costureiras e
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Considerações Finais
Neste artigo, buscamos trazer algumas das reflexões iniciais e perguntas que
estão sendo desenvolvidas pelo Coletivo Moda e Decolonialidade: Encruzilhadas do
Sul Global (CoMoDe). Trata-se de um trabalho de apresentar as leituras que estão
sendo realizadas por este grupo e de trazer, mais do que respostas, provocações a
todos aqueles que produzem e refletem sobre o campo da moda.
Com este trabalho, buscamos instigar, especialmente, os estudantes e
demais intelectuais do campo da moda a produzir pesquisas - ou divulgar, caso eles
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