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COLEÇÃO

CEO


Sem Regras
Aretha V. Guedes

Sem Alternativa
C. Caraciolo

Sem Volta
Carol Moura




Ficha técnica
Copyright 2018 Aretha V. Guedes, Carol Moura e C. Caraciolo — Botando
Banca! & Editora Livros Prontos

Todos os direitos reservados.


Título: Coleção CEO
Autoras: Aretha V. Guedes, Carol Moura e C. Caraciolo
Revisão: Clara Taveira e Raphael Pellegrini (Capitu Já Leu)
Capa: Willian Nascimento
Diagramação e-book: Daniella Moreno e Capitu Já Leu



Sumário
Botando Banca
SEM REGRAS
Sinopse
Prólogo
Capítulo 1 — Leandro
Capítulo 2 — Senhor Pendleton
Capítulo 3 — Proposta
Capítulo 4 — Dante
Capítulo 5 — Dimitri
Capítulo 6 — Croissette
Capítulo 7 — Festival
Capítulo 8 — Sem regras
Capítulo 9 — Outro dia
Capítulo 10 — Entre amigos
Capítulo 11 — Despedida
Capítulo 12 — Paris
Capítulo 13 — Descoberta
Capítulo 14 — Realidade
Capítulo 15 — O plano
Capítulo 16 — Discursos
Capítulo 17 — Surpresas
Epílogo
Sobre a autora
SEM ALTERNATIVA
Dedicatória
Sinopse
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Epílogo
Agradecimentos
Sobre a autora
SEM VOLTA
Sinopse
Prólogo
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Epílogo
Agradecimentos
Sobre a autora
Botando Banca

Romances rápidos, leves e divertidos, que fazem o tempo passar sem


você sentir. Essa é a proposta do Botando Banca: trazer ao mercado histórias que
tenham as características dos antigos romances de banca de jornal.
Desejamos que esse romance tenha produzido em você as mesmas
sensações que sentimos quando lemos uma história leve de amor!



SEM REGRAS

Aretha V. Guedes


Sinopse

Rica, linda e poderosa.



Cinthia Grimaldi, a CEO de uma das maiores agências de modelo, tem
tudo em suas mãos, inclusive os homens. Para ela, não passam de um
entretenimento descartável. Até surgir uma proposta que abalará sua vida,
fazendo-a perder o controle.

Dimitri Duskin é um ator em ascensão. Classificado como garoto
problema pelas revistas de fofoca, precisa mostrar o melhor comportamento no
Festival de Cinema de Cannes. Assim, ele concorda em participar do esquema
entre seu empresário e a poderosa CEO. O que o bad boy favorito do país não
imagina é que sua acompanhante de excelente reputação pode ser tão selvagem
quanto ele.

Quando o prazer e os negócios estão em jogo, não há regras. Vencer é o
único objetivo.


Versão estendida do conto erótico No Rules – Não Há Regras no Prazer.



Prólogo

Teste do sofá.
Já ouviu falar? É uma expressão usada para definir aquelas pessoas que
trocam sexo por benefícios. Se Teste do Sofá fosse um termo presente no
dicionário, haveria uma foto minha ao lado da definição.
Aos vinte e nove anos, herdei a beleza de minha mãe e a sagacidade para
os negócios do meu pai. De ambos, fiquei com a promiscuidade e o dinheiro.
Naquele momento, meu corpo nu balançava para cima e para baixo.
Joguei meus longos cabelos negros para trás e deslizei a mão pelo pescoço, colo
e seios, apertando meus mamilos e arfando em excitação. O homem loiro e de
corpo escultural embaixo de mim se inclinou e abocanhou o seio esquerdo. Sua
língua brincalhona me enlouquecia de prazer.
Eu era capaz de imaginar o que se passava na cabeça do rapaz, ele
provavelmente não acreditava na sorte que tinha. Afinal, uma ex-miss quis
transar com ele.
Eu quis transar com ele.
Meus seios fartos balançavam enquanto eu gemia e cavalgava. Mas logo
em seguida, Bernardo me colocou de quatro no sofá de veludo vermelho e,
segurando meus cabelos com força, me penetrou por trás.
Uma. Duas. Três vezes.
Eu rebolava e pedia por mais. Bernardo atendia. Meu desejo era uma
ordem. Quando gozei, mordendo a almofada que custava mais caro do que um
salário mínimo, o jovem rapaz logo me seguiu. Enquanto Bernardo ainda tentava
recuperar o fôlego, me levantei e fui até a toalete, onde me arrumei e vesti um
terno de alta costura. Aproveitei para retocar a maquiagem e ajeitar os cabelos,
trazendo de volta a aparência de antes do prazer.
No reflexo do espelho de moldura dourada, eu me vi impecável depois de
uma foda nota oito. Ótimo. Não seria bom para os negócios se a CEO da maior
agência do país fosse flagrada em um teste do sofá com um candidato a modelo,
por isso, precisava estar impecável como antes.
Voltei para o escritório e encontrei o rapaz ainda descartando a camisinha
no cesto de lixo ao lado da minha mesa. Minha vontade era de revirar os olhos,
afinal um modelo que demorava mais de cinco minutos para colocar uma roupa
não serviria para a passarela.
Suspirando, sentei em minha imponente cadeira preta e cruzei as pernas
por baixo da antiga mesa de mogno do meu pai. Voltei a folhear o portfólio do
candidato: bonito, alto, fotogênico, boa educação e sabia inglês básico. Sexo
razoável que culminou em um sorriso presunçoso e uma demora eterna para se
vestir. Hum... Ele iria para a lista de espera.
— Seu portfólio foi impressionante. Você será o primeiro da minha lista,
assim que surgir uma vaga — menti com um sorriso convincente no rosto.
— Muito obrigado, senhorita Grimaldi — ele se aproximou para me
beijar, porém desistiu quando percebeu minha expressão séria. Bernardo
estendeu o braço para um aperto de mãos e foi enfático: — E não se preocupe,
nossa pequena aventura ficará só entre nós.
Levantei-me, ficando mais alta que ele graças aos meus saltos, e avisei
calmamente, sem nenhum traço de humor:
— Claro que não, senhor Fontes. Porque se uma palavra sobre o nosso
pequeno interlúdio sair dessas quatro paredes, você nunca mais conseguirá um
emprego nesta cidade — inclinei-me, espalmando as mãos na mesa. — E eu não
estou me referindo apenas à carreira de modelo.
Assustado, o homem saiu da sala, e eu retornei à minha cadeira com um
sorriso de vitória no rosto. Aquilo foi mais divertido do que o orgasmo.
Eu definitivamente adorava testes do sofá.



Capítulo 1 — Leandro

Lambi os lábios de forma quase inconsciente, salivando com a visão da


mais pura perfeição divina: a figura masculina. Eu acreditava piamente que o
homem foi posto no mundo para satisfazer a mulher, qual outro propósito eles
teriam? Para minha sorte, eu não precisava me contentar apenas com um quando
poderia ter vários.
Com o torso demarcado pelos músculos, da mais pura cor de cacau e de
aparência cremosa, Leandro — um dos meus modelos mais promissores —
sorriu para a câmera, levando o chocolate de sabor perfeito aos lábios. Além de
modelo, Leandro também era um ótimo ator. Ou isso, ou o gosto do doce era tão
bom quanto a aparência, já que o modelo fechou os olhos e fez um som de
“humm” enquanto mastigava com prazer.
Aquela cena, somada à minha imaginação fértil, me fez suspirar. Se
estivesse ao meu alcance, eu o morderia, saborearia e me esbaldaria. E eu não
estava falando apenas do chocolate envolto por aquelas belíssimas mãos.
— Cinthia! — Lúcia, amiga de longa data, estalou os dedos na minha
frente. — Come logo um pedaço, meu chocolate vai derreter só com esse seu
olhar matador.
Peguei o doce da mão dela, verificando a marca. Reconheci a embalagem
vermelha e dourada, com o desenho de uma pequena onda de leite no entorno da
marca e alguns arabescos, era do nosso contratante. Eu não costumava aparecer
nos estúdios de gravação, porém quando pegávamos um contrato grande, como o
da maior fabricante de produtos lácteos do país, gostava de acompanhar o
desempenho dos modelos de perto.
Antes de ser a CEO da empresa, fui muitas coisas. Dentre elas, coach dos
modelos: ensinava como deveriam se portar em frente às câmeras, como
descobrir os melhores ângulos e como caminhar na passarela sem perder graça e
elegância. E uma das regras principais que sempre ensinei era não consumir
nenhum produto do cliente contratante, a menos que fosse solicitado.
— Você roubou chocolate do set de filmagem? — perguntei, incrédula.
Ela deu de ombros e apontou para o canto esquerdo, onde umas cinco
caixas estavam largadas no chão:
— Eles não vão notar.
— Mas eu vou, e os modelos também — ralhei com ela. — Você tem que
dar o exemplo, Luci. Sabe como são as regras, as minhas regras.
Lúcia revirou os olhos de modo teatral e voltou a colocar a bomba de
açúcar e cacau perto da minha boca. Ela era uma das únicas, dentro da ML
Agência e Produções, que eu permitia não me obedecer imediatamente. Ela e a
maior acionista da empresa, Martina Lins, também conhecida como mamãe. A
minha, para ser exata.
Como não comi o doce oferecido, ela o colocou na boca e mordeu,
soltando um gemido mais intenso que o de Leandro. Mas nem aquele gesto me
faria mergulhar naquela bomba de sacarose com aroma e cor de cacau artificiais.
Desde nova, era adepta às novidades tanto da moda, como de cosméticos e
saúde, e minha criação sempre foi regrada. Alimentação saudável e exercícios
regulares, além da dança, moldaram com maestria meu corpo desde quando era
modelo mirim.
Mas meu empenho não se resumia apenas ao corpo: aulas de etiqueta, de
línguas, de oratória, política e literatura treinavam minha mente. Mamãe
desejava criar uma estrela, e por mais que meu pai quisesse me proteger da
futilidade do showbiz, eu fui para o mundo. Era uma arma letal: linda e de
pensamento rápido. Não estou sendo esnobe, é apenas a constatação de um fato.
Sabia das minhas qualidades e as explorava bem.
Toda essa preparação e poder teve seu lado negativo, entretanto. Era a
velha história da pobre menina rica: cercada de bajuladores, porém quase sem
amigos verdadeiros. Adorada pelos homens, mas sem paciência com a
imaturidade dos que tinham a minha idade. Por esses e por tantos outros
motivos, escolhi apenas um caminho: encontros casuais e intensos e poucas
amigas em quem pudesse confiar. E Luci era uma delas.
Lúcia era uma jovem encantadora e muito despreparada quando nos
conhecemos. Ficamos amigas durante as gravações de uma propaganda de
perfume, tínhamos apenas quinze anos e éramos verdadeiros polos opostos:
enquanto eu estava à vontade com as câmeras, Lúcia ainda escondia os
resquícios de timidez, o que aumentava o apelo de sua beleza bucólica, com
cabelos loiros e grandes olhos azuis.
Nós nos complementávamos, uma com trejeitos singelos, e a outra, uma
verdadeira fera. Claro que a inocência da menina loira não durou muito no
mundo da moda. Tampouco durou minha carreira de modelo. Logo me tornei o
braço direito da minha mãe, e Lúcia, meus pés e mãos, como gerente geral da
empresa. Uma não funcionava sem a outra.
Luci interrompeu meu devaneio, tentando me oferecer o último pedaço
da barra açucarada.
— Não posso, estou em uma nova dieta — rejeitei o doce.
Dando de ombros, Lúcia apenas terminou o chocolate sem culpa alguma.
Ela sabia de seus privilégios em relação as minhas regras e que mais tarde iria
para a academia e faria o triplo de esteira para compensar.
— Qual?
Ela lambeu os dedos, e eu voltei minha atenção para o modelo no set, que
eu desejava lamber muito mais do que qualquer outra coisa naquele lugar.
— Low carb e TPM Sugar, só posso comer um doce e somente nos dias
de pré-menstruais — respondi. — É a novidade entre as estrelas.
Lúcia jogou os cabelos para trás e riu, ela sabia que não era uma má
ideia, assim só comeríamos chocolate uma vez por mês. Não que ela precisasse
fazer dietas mirabolantes, era daquelas pessoas que podiam comer de tudo e não
engordavam. Enquanto eu transformava meu corpo a base de atividade física e
alimentação balanceada, minha amiga mantinha o mesmo formato mignon de
quase dez anos atrás — quando a conheci — sem muito esforço.
— Como foi com Bernardo? — perguntou sobre o modelo testado pela
manhã.
Dei de ombros e fiz um som de muxoxo com a boca antes de explicar:
— Muito mediano para os nossos padrões — eu a encarei com malícia.
— E não estou me referindo apenas ao currículo.
Ela esboçou um sorriso, contudo fechou a boca em uma linha fina.
— Me preocupo, sabe? Se você fosse homem, as pessoas poderiam até
julgar o teste do sofá, mas no final achariam normal. Como você é mulher…
— Eu deveria ser pura e delicada? — questionei. — Não me importo. De
qualquer forma, ninguém mais sabe. O que faço na minha privacidade só
interessa a mim — franzi o cenho para ela. — Mas por que essa pergunta? Você
também faz o mesmo que eu.
Lúcia retorceu a embalagem do chocolate nas mãos, encarando o chão.
— Sei lá, às vezes tenho um peso na consciência.
Sorri, enxergando os resquícios da tímida garota na mulher adulta que ela
havia se tornado. Aquilo sempre fez parte de Lúcia.
Leandro, o modelo negro de pele perfeitamente uniforme, passou por nós
apenas de calça jeans. Eu e Lúcia o encaramos da cabeça raspada aos pés
descalços, demorando no abdome trincado e nos ombros largos. Um contrarregra
borrifou água no tórax nu do modelo, fazendo-nos suspirar.
E nos deixar molhadas em partes muito específicas do corpo.
— Daquele tipo de delícia precisa ser evitada nessa dieta? — Lúcia
questionou com ar de riso, já sabendo a resposta.
Lembrei-me de quando entrevistei o rapaz para ser agenciado pela ML
Produções. Ele era tão lindo, com peitoral másculo e olhos cor de mel e
penetrantes, que fiquei em dúvida se tinha em mãos o book fotográfico de um
modelo ou uma G Magazine. Senti seu sex appeal mesmo através da foto.
Imediatamente, mostrei o book para Lúcia, e ela concordou comigo:
precisávamos ter aquele cara na agência. Seu rosto e corpo eram perfeitos para
os quatro ramos da indústria: modelo de passarela, de propaganda televisiva, de
eventos e de revista. Como nós abrangíamos todos esses campos, tê-lo conosco
seria ideal.
Leandro foi um marco: o primeiro modelo homem escolhido
pessoalmente por mim a ter um grande reconhecimento nacional. A ML Agência
e Produções começou como uma pequena agência fundada pela minha mãe com
o dinheiro do meu pai. Era composta somente de alguns funcionários, ela e as
amigas, porém, desde que comecei a trabalhar aqui, aos dezesseis anos, fui
crescendo dentro da empresa — não apenas por ser filha da dona, mas pelo meu
esforço pessoal — e procurando modos de nos elevar a outros patamares.
Nós nos tornamos referência, levando modelos brasileiros em eventos
por todo o país e para o exterior. De agentes, passamos a produtoras, com dois
andares inteiros de nossa sede dedicados a salas de publicidade e propaganda.
Criamos um catálogo com nossos melhores modelos, os tornando
exclusivos da agência. Leandro, por exemplo, era um de nossos escolhidos.
Quando marquei a entrevista com o rapaz sete anos mais novo do que eu, não
tive intenção alguma de o seduzir. Afinal, eu o contrataria com ou sem orgasmo
prévio. Não poderia arriscar ofender e perdê-lo para outra agência.
Eu verdadeiramente não tinha essa intenção.
Porém, era uma tarde de verão, o sol — apesar da película climatizadora
— batia no escritório através da parede de vidro temperado, me possibilitando
enxergar o mar infindo de prédios e construções menores se estendendo além do
horizonte. Era um belo dia, e eu tinha um belo modelo na minha frente.
Eu não sabia se o ar-condicionado havia quebrado ou se o calor vinha de
mim, mas lambi os lábios, que ficaram instantaneamente secos, e os olhos de
Leandro não desviaram do movimento feito pela minha língua. Ele não deveria
me provocar, eu estava tentando arduamente ser uma boa garota.
Só havia um problema: ser má era muito mais divertido.
Ofereci uma bebida para celebrar o contrato, e entre uma e outra dose de
champanhe, me vi pressionada contra a janela, com meu vestido levantado até a
cintura e o homem me penetrando por trás com vigor. Os seios arrepiados contra
o vidro quente e a cidade pequenina lá embaixo.
Sorte minha que estávamos na cobertura do prédio mais alto da rua e o
vidro não era transparente, impedindo a visão de quem estivesse do lado de fora.
Não que estivesse pensando no sistema de segurança da minha sala quando ele
me segurou pelos cabelos e puxou meu corpo para perto para morder o meu
pescoço. Também não pensei na marca que precisaria ser coberta com
maquiagem por dois dias...
— Ei — Lúcia estalou de novo os dedos na frente do meu rosto. — Não
preciso perguntar, já sei no que estava pensando.
Ela riu tanto, que o diretor de filmagem a olhou de cara feia.
Luci poderia ter todo o peso na consciência que quisesse, ela também
aproveitava de doses regulares de modelos gostosos. Sua vida sexual não era tão
agitada quanto a minha, mas também estava longe de ser uma santa.
Balancei a cabeça, recuperando o fôlego perdido com a lembrança. Eu
podia sentir o calor do olhar de Leandro do outro lado do set. Era como se ele
soubesse qual instante eu estivera revivendo segundos atrás.
— Daquele tipo ali, minha amiga, a gente se esbalda. Eu vou para o
escritório, diga ao Leandro para ir me ver quando acabar por aqui. Precisamos
discutir sua participação na São Paulo Fashion Week — ordenei, já saindo do
set.
Por um momento, Lúcia franziu o cenho, lembrando que faltavam meses
para a seleção da Fashion Week. Depois, sorriu e meneou a cabeça, sabendo
como eu funcionava.
Eu era uma pessoa controladora, comandava a empresa com punho de
ferro. Ao mesmo tempo, adorava perder o controle e me entregar dentro do local
de trabalho. Era como uma catarse, um modo de liberar o estresse acumulado.
Uma maneira de perder e manter o controle. Como um ímã, dois polos opostos
em um único ser com um grande poder de atração.




Capítulo 2 — Senhor Pendleton

“Cinthia Grimaldi, um nome a ser lembrado. Filha de Martina Lins,


dona do ML Agência e Produções, e de Nathaniel Grimaldi, magnata norte-
americano, foi Miss Mirim aos três anos. A senhorita Grimaldi começou a
carreira de modelo ainda na barriga da mãe e, desde então, nunca parou,
fazendo, inclusive, participações especiais no cinema. Mostrando-se versátil,
começou a atuar fora das passarelas, montando desfiles e sessões fotográficas
para campanhas publicitárias.
Hoje, aos vinte e nove anos, está no comando da ML e é responsável pelo
agenciamento de mais de mil modelos. Cinthia não é apenas um rostinho bonito:
além de inteligente e de comandar seu negócio com punho de ferro, foi nomeada
a terceira mulher abaixo de trinta anos mais rica do Brasil.”

— Júlia! — irritada, berrei para a secretária pelo ramal do telefone. —
Chame Lúcia aqui agora.
Eu não estava chateada com a reportagem em si, mas com a foto utilizada
para ilustrá-la. Reconhecia o colar de pérolas na imagem, era muito especial. Foi
o último presente da minha querida avó, ganhei dias antes de ela morrer de um
infarto fulminante.
Só usava o colar uma vez por ano, especificamente no dia do meu
aniversário, e depois voltava a guardar no cofre de joias em meu quarto. A foto
de rosto na reportagem me mostrava com o colar e o penteado usado no último
outubro, em uma festa privada em meu loft, exclusiva para amigos seletos.
— Ela saiu, senhorita Grimaldi — a jovem mulher disse com incerteza,
sem saber se estava em apuros comigo ou não.
Porra! Odiava quando algo saía do controle daquele modo. Poderia
parecer bobagem para um observador qualquer, era apenas uma foto minha
sorrindo. Nada polêmico ou revelador. Contudo, como CEO de uma agência e
ocasional modelo, a imagem era o meu material de trabalho, e eu não queria
fotos de um momento íntimo com meus amigos e família nos jornais.
Uma das coisas que as figuras públicas mais prezavam era a privacidade.
E uma pessoa com a vida como a minha, que adorava escapar pela tangente das
regras de bom costume e moças direitas, precisava proteger a intimidade com
unhas e dentes.
Teria que descobrir quem sairia de meu círculo íntimo de amizades ou
qual das empresas contratadas seria cortada da lista de confiáveis, já que foram
os únicos presentes naquele momento. O vazamento não poderia ter acontecido
quando revelei as fotos, afinal a ML tinha o próprio laboratório de revelação de
fotos, no andar do setor gráfico, e eles jamais liberariam imagens minhas sem a
prévia autorização.
— Ok, avise quando ela chegar e consiga a lista de convidados e
funcionários presentes em meu último aniversário, incluindo seguranças, garçons
e todo o pessoal do buffet.
— Sim, senhorita.
— Obrigada.
A eficiente secretária desligou para iniciar a busca pelos dados
solicitados. Júlia gostava do emprego e era bem remunerada, portanto nunca fez
corpo mole. Muitas pessoas me achavam uma megera, mas eu discordava, era
apenas intolerante com preguiçosos e fofoqueiros. Esperava de meus
funcionários a mesma dedicação que eu tinha, e Júlia cumpria perfeitamente
minhas expectativas.
Por trás da minha mesa de mogno, um móvel resistente para aguentar
todo tipo de negócio, havia uma extensão menor e mais rebaixada, com um
monitor. Na tela plana, podia ver as câmeras de segurança do prédio inteiro.
Geralmente, deixava-a mostrando as imagens do lado exterior ao meu escritório.
Nela, vi minha secretária pesquisar o solicitado. Balancei a cabeça para
os lados, ao vê-la de ombros curvados, cabelos negros em um rabo de cavalo e
mordiscando a unha. Não adiantava reclamar sobre a postura de Júlia, a garota
continuava a se curvar em frente ao computador! Em poucos anos, teria dores
crônicas! Eu precisava comprar um apoio para as suas costas ou substituir a
cadeira, então anotei um lembrete na agenda eletrônica.
Ela era uma garota maravilhosa, filha da antiga secretária, a quem eu
tinha imenso carinho. Prometi que cuidaria dela no começo e agora que via
como era dedicada e trabalhadora, o fazia não somente por gostar de sua mãe,
mas também dela.
Falando em mães...
Avistei através do monitor uma exuberante mulher de meia-idade
andando pelos corredores como se fosse dona do lugar. O que era, de fato. Ao
lado dela, um senhor de terno e olhar astuto observava cada detalhe por onde
passava, desde as paredes brancas aos caros vasos decorativos com flores e
plantas do mais delicado perfume.
Imediatamente, os dedos de Júlia trabalharam rápido. Com velocidade
quase sobre-humana, ela abriu o caixa de mensagens e digitou: sua mãe está
aqui e ela veio acompanhada do senhor Pendleton.
Eu sabia o conteúdo da mensagem porque o meu celular apitou um
segundo depois. Agradeci pelo aviso, apesar de ter sido desnecessário. Eu tinha
visto a aproximação e já estava respirando fundo, me preparando mentalmente
para o encontro.
Minha mãe era uma dicotomia de sagacidade e ingenuidade. Por mais
que Martina entendesse do mundo da moda, não compreendia bem o dos
negócios. Mamãe achava que as pessoas seriam boas com ela só porque era a
famosa e influente Martina Lins.
Eu discordava, achava que se aproveitavam do seu bom coração.
O senhor Pendleton, por exemplo, era um desses aproveitadores. Um
empresário do ramo de cinema e televisão, astuto e de poucos escrúpulos. Ele
usava dos mais diversos métodos para conseguir clientes e levá-los ao topo,
desde os legais até os mais duvidosos.
Sendo bem honesta, na verdade, ele tinha o meu respeito, desde que não
aparecesse em meu escritório, ainda mais acompanhado de minha mãe.
— Mande-os entrar, por favor — autorizei a contragosto pelo
intercomunicador.
Levantei-me, alisando as dobras do vestido, e coloquei o sorriso falso de
miss no rosto. A senhora Martina Lins entrou com toda pompa, dando-me um
grande abraço e um beijo afetuoso na bochecha direita.
Mamãe era estonteante, não importava a idade que tivesse. Alta, loira e
de uma simetria facial tão perfeita, que parecia ter sido esculpida à mão.
Ela nunca amou muito o marido, foi mais um casamento por
conveniência. Ele era rico, e ela, uma modelo em ascensão. Ambos viajavam
muito, ela como modelo, ele como empreendedor. Mamãe sabia que papai
possuía amantes, mas também tinha os seus, e todos estavam bem com isso.
De todas os bens que Martina conseguira com o seu casamento, uma vez
me dissera que eu era o mais precioso e faria de tudo para me ver no topo do
mundo.
Até se associar com o Pendleton.
— Olá, mamãe! Como a senhora está? — respondi o afeto com outro
beijo.
— Bem, obrigada. Você lembra do senhor Pendleton, não é? — estendeu
o braço para ele.
Meu sorriso caloroso foi de uma atuação digna do Oscar.
— Claro, como poderia esquecer?
Satisfeita com a resposta, ela deu um tapinha de leve nas minhas costas,
como se eu ainda tivesse doze anos.
— Ótimo, o acompanhei até aqui porque ele possui uma proposta
fantástica para você. Eu já aprovei, Pendleton passará os detalhes. Espero os dois
para um lanche da tarde em minha sala daqui a uma hora, combinado?
— Claro — nós dois respondemos em uníssono.
Depois que ela foi embora, o sorriso plastificado nos meus lábios morreu:
— Não sei quem você pretende roubar de mim, mas eu não vou permitir.
Ele colocou a mão em cima do coração de forma afetada e sentou-se na
cadeira com a classe dos lordes ingleses, o que ele, realmente, era. Inglês, quero
dizer, não lorde. Quando mais jovem, Pendleton era belo, apesar de nunca ter
sido tão bem-sucedido no ramo do cinema quanto os seus clientes. Ele atuou
como coadjuvante em um filme memorável e chegou a ser indicado a alguns
prêmios importantes. Não venceu nenhum, mas isso lhe abriu as portas para
enriquecer nos bastidores do entretenimento.
— Você pensa tão pouco de mim, Cinthia? — ele questionou com uma
sobrancelha levantada. — Eu poderia estar apenas visitando uma velha amiga.
Seu sorriso inocente não convenceu. Nos últimos três anos, Pendleton já
havia roubado mais de dez contratados da ML Agência e Produções com a
promessa de uma carreira de sucesso no cinema. Aquele era o sonho da maioria
dos artistas, eu não tinha como competir.
Por enquanto.
— Nós não somos amigos, e eu tampouco sou velha. Não abrirei mão de
nenhum contratado tão perto da São Paulo Fashion Week.
Imitei sua expressão de sobrancelha levantada diante do olhar predatório
do homem. Ele passou a mão pelos cabelos loiro-avermelhados salpicados de
cinza e sorriu com conhecimento. Se estivéssemos jogando pôquer, teria
reconhecido o meu blefe.
— Primeiro, não tente me enganar, ainda faltam meses para a Fashion
Week — Pendleton pontuou com os dedos. — Segundo, eu não quero roubar um
dos seus clientes... Eu quero roubar você.



Capítulo 3 — Proposta

Em todos os anos trabalhando na ML, aquele era o maior absurdo que eu


já tinha ouvido!
— O quê? — perguntei, sem entender qual era a nova jogada do
inescrupuloso homem. Eu era fluente em diversos idiomas, mas, mesmo assim,
não consegui compreender o que Pendleton quis dizer no bom e velho português
— Isso é alguma piada?
— Você já deveria saber que eu nunca brinco, senhorita Grimaldi.
Ele abriu a pasta de couro em suas mãos, tirou um conjunto de papéis e
jogou-os em cima da mesa. Recortes de jornais de entretenimento e revistas
sensacionalistas. Todos com notícias diversas sobre Dante Gutierrez, o
queridinho das novelas brasileiras, e Dimitri Duskin, o ator russo que veio morar
em São Paulo há alguns anos e fez muito sucesso como policial em um filme
nacional.
Alguns mostravam escândalos como abuso de festas, álcool, mulheres,
destruição de um quarto de hotel e até suspeita de consumo de drogas. Outros
falavam sobre como ambos estavam com a carreira em ascensão.
Eles fizeram um filme juntos e tiveram reconhecimento internacional,
estavam concorrendo à Palma de Ouro no Festival de Cinema de Cannes. O mais
velho, com trinta e cinco anos, Dimitri, também concorria ao prêmio de melhor
ator. Ambos eram clientes de Pendleton.
— Parabéns — disse com sinceridade. — É um feito e tanto. Agora você
não estará mentindo quando prometer que é capaz de conseguir reconhecimento
internacional a um dos seus clientes em potencial.
Pendleton passou a mão na boca, escondendo o sorriso que despontava
diante da minha petulância.
— Você tem uma língua afiada e é muito mais audaciosa do que a sua
mãe. Prevejo um futuro promissor para ti no mundo cruel do entretenimento,
mas precisa pensar além das quatro paredes deste escritório — ele me lançou um
olhar lascivo e analisou a parte de mim que conseguia enxergar do outro lado da
mesa. — Eu adoraria ensiná-la muito mais do que apenas negócios — diante do
meu engasgo, seu sorriso aumentou. — Porém, não sou bem quisto. Se não
posso tê-la como parceira na cama, a terei como de negócios.
Eu o encarei em silêncio, minha mente presa ainda à não tão sutil
proposta em seu pequeno discurso. Imaginei o peito peludo e suado — e outras
partes — de alguém que eu não suportava tocando em mim. E imaginei se suas
jovens contratadas também faziam testes do sofá.
Um arrepio passou pelo meu corpo, e pela primeira vez, senti um certo
asco pelas minhas ações. Eu, entretanto, fiz sexo com aqueles que igualmente
me desejavam e deram abertura. Já com Pendleton, não teria tanta certeza disso.
— O que exatamente você quer de mim? — questionei, ansiosa para dar
aquela inesperada reunião como encerrada.
— Dante e Dimitri irão para Cannes — Pendleton apontou para a foto
dos belos atores. — Eles se envolveram em alguns escândalos, e isso não é bom.
Devem ser conhecidos pela arte, não pelo mau comportamento no início de suas
carreiras. O mundo inteiro estará assistindo ao Festival, precisam estar na
companhia de mulheres respeitáveis e que impressionem o público.
Apoiei os cotovelos na mesa e esfreguei a testa, cansada daquela
conversa. Era uma proposta sem sentido! Boa companhia não apagava mau
comportamento público. Entretanto, era uma tática que provavelmente
funcionaria: usar um affair para desviar a atenção da mídia.
— E você acha que uma dessas mulheres seria eu?
O empresário sorriu e apontou para a revista que eu lera momentos antes,
aquela que apresentava uma pequena biografia e exaltava as minhas conquistas.
— Não acho, tenho certeza — ele, por fim, disse.
— Por que eu daria meu prestígio ao seu atorzinho? — fiz questão de não
deixar o tom irônico de fora.
— Porque você deseja o que todo filho quer, ser maior do que seus pais
— ele se levantou e caminhou até a parede de vidro por trás da minha mesa.
Pendleton observou as pessoas andando na rua, parecendo formiguinhas. —
Você nasceu no topo, garota. Não teve o mesmo trabalho árduo do resto dos
mortais, porém existe algo mais difícil do que chegar ao topo: manter-se nele.
Eu também me levantei, encarando-o através do reflexo do vidro:
— Ser filha de quem sou facilitou minha vida, fez com que eu tivesse as
conexões certas para chegar na posição que estou agora. No entanto, não pense
que foi fácil. Eu mal nasci e já era modelo. No lugar de parquinhos, ia para
sessões fotográficas. Conheci o mundo todo, sim, mas com regras de peso,
medidas, roupas, horas dormidas e etiqueta. Meu corpo era da indústria da moda,
eu era uma marca, não uma pessoa. Essa empresa é da minha mãe, mas a
fundação dela foi feita com o meu suor e minhas lágrimas também — pontuei
cada palavra com raiva.
Independentemente do glamour que envolvesse a minha profissão,
comecei a trabalhar mesmo antes de entender o que trabalho significava. Antes,
eu me ressentia com minha mãe e pela criação que tive, mas depois passei a
entender que, de outro modo, talvez eu tivesse me tornado apenas mais uma
socialite mimada que só sabia gastar o dinheiro dos pais.
Pendleton me observava com satisfação. Provavelmente, acreditava que
era preciso aquele tipo de paixão para mover o mundo ou alguma baboseira
motivacional dessas.
— E é por isto que você vai concordar em me ajudar. É o seu suor aqui,
Cinthia. Esta empresa é sua também. Eu adoro sua mãe, ela ama elevar o nome
da empresa em festas e eventos, mas nunca teve paciência para burocracia. Não
duvido nada que se aposente logo, e aí? A ML será apenas sua. Saia dessas
quatro paredes, volte a conquistar as pessoas, lembre ao mundo quem Cinthia
Grimaldi é.
Revirei os olhos, era um belo discurso, mas não o suficiente para que
caísse na dele e o ajudasse só pela bondade do meu coração. Tola, nunca fui.
E tampouco possuía um coração caridoso.
— Eu quero exclusividade das campanhas publicitárias e eventos de
passarela dos dois pelos próximos cinco anos. Se alguma empresa quiser
contratá-los para propagandas, deve ser intermediado por mim, apenas com meu
aval — disse meus termos.
O experiente empresário riu da minha audácia. Se o filme ganhasse a
Palma de Ouro, seria cotado para o Oscar, e os rapazes passariam a ser mais
solicitados do que já eram. Eu ficaria com uma boa comissão de seus cachês.
— Você sabe que é impossível! Ficaria limitado caso só pudesse fazer
propagandas através de sua produtora! — ele falou, agora exasperado.
— Você espera que eu finja ser a namoradinha de um dos seus garotos
problema na frente do mundo inteiro. Para iludir a mídia, fazê-lo parecer um
grande partido, e não apenas um menino do subúrbio que deu sorte, mas se
afundou na bebida e nas prostitutas. Se vou atuar em seu pequeno esquema, vai
precisar me dar mais do que “lembre ao mundo quem Cinthia Grimaldi é” — fiz
aspas com as mãos.
Eu não assumia um namoro havia... Tentei me lembrar, mas não
consegui. Apesar de aparecer com um ou outro affair em eventos, nunca assumi
um relacionamento na vida. A manutenção de um relacionamento a longo prazo
parecia uma grande perda de tempo. No final, a paixão sempre acabava, e todos
se tornavam traidores.
Ele cruzou os braços, a camaradagem desaparecendo de suas feições
enrugadas.
— Não é assim que as coisas funcionam.
Foi a minha vez de sorrir. Eu adorava negociar, ainda mais quando
possuía todas as vantagens:
— Sei quem sou e sei que eu conseguiria facilmente um modo de fazer o
meu rosto voltar para todas as primeiras páginas. Lembre-se, é você quem
precisa de mim, não o contrário. Concorde, ou arrume outra garota que seja ex-
miss, agente de modelos, filha de magnata, profissional bem-sucedida, CEO de
uma das maiores produtoras do país, nunca envolvida em um escândalo na
mídia, que não te cobre um valor absurdo para participar desse pequeno esquema
e que não venderá essa informação para quem oferecer mais grana.
Pendleton voltou a sentar, pernas cruzadas e olhar contemplativo para o
céu azul repleto de nuvens brancas do lado de fora da janela. Podia sentir a raiva
fluindo dele, suas mãos tensas no encosto da cadeira. Quando enfim falou, foi
sem me encarar:
— Não sei o porquê, mas ainda me impressiono com você. Poucas jovens
teriam esse nível de raciocínio rápido. Muitas aceitariam a proposta sem pensar
duas vezes, apenas para estar perto das grandes celebridades internacionais
presentes naquele evento.
Dispensei o comentário com a mão. Podia estar longe das passarelas
desde que me tornei CEO da ML, mas eu fui uma celebridade internacional e já
estive muito perto de algumas. Inclusive, me relacionei com alguns atores,
cantores, modelos e um produtor de cinema que se casara, um tempo depois,
com a ex-namorada, uma atriz famosa. Todos de curta duração e bem longe das
lentes de qualquer fotógrafo.
— Muitas jovens garotas não precisam comandar uma empresa
milionária e nem o sustento da família dos funcionários depende delas —
preenchi o silêncio constrangedor com a verdade. Eu vivia sob pressão, se
houvesse algum problema com a ML, não era a única a ser prejudicada.
Pendleton cerrou os punhos com mais força e bateu no apoio de braço
acolchoado da cadeira. Eu quase ri de seu pequeno ataque de criança mimada.
Ele parecia indignado ao balançar a cabeça para os lados.
— Você vai ganhar muito mais do que um milhão se eu concordar em te
dar a exclusividade deles. Acha que sou idiota? As ações da ML Produções vão
triplicar!
Andei até o aparador de vidro do lado direito da sala e coloquei uma dose
de uísque em um copo, o líquido âmbar deslizando contra o vidro. Ofereci uma
ao convidado, mas ele rejeitou. Tomei meu tempo, saboreando por um momento
a bebida antes de a engolir.
— Ainda bem que eu tenho quarenta porcento das ações e sou a única
herdeira dos outros sessenta, não é?
A mandíbula pontuda de Pendleton estava cerrada, a boca fechada em
uma linha fina. Seria um transtorno fazer as propagandas sempre com a mesma
produtora. Daquele dia em diante, eu manteria um olho mais atento a ele: pela
raiva emanando do seu ser, Pendleton planejava formas de reverter minha
exigência.
No entanto, não havia uma. Ou ele aceitava, ou dava o fora do meu
escritório.
— Eu vou conversar com meus advogados e analisar se seu pedido é
possível — disse a contragosto.
— Ótimo — sentei-me na cadeira com toda a minha graça de miss,
peguei um cartão branco com letras negras da gaveta oculta embaixo da mesa e
entreguei ao empresário. — Mande-os entrar em contato com os meus para
discutirem o contrato. Tenha uma boa tarde, senhor Pendleton — ele começou a
se levantar quando eu falei: — Por favor, avise à minha mãe que estou indisposta
para o chá.
Conversar com Pendleton por meia hora era mais do que eu estava
disposta a aguentar, e tomar chá com o diabo não parecia uma boa forma de
passar o resto da tarde. Eu tinha trabalho a fazer.
— É uma pena, eu adoraria comer com você — pelo seu olhar sugestivo,
ele pensara em tirar o “com” da frase. — Até Cannes, senhorita Grimaldi.
— É o que veremos... — respondi com autoridade.
Se era para fingir ser a namorada de um atorzinho em ascensão mundial,
que fosse para levar a empresa ao próximo patamar.



Capítulo 4 — Dante

Cannes, dois meses depois.



Desci do avião e respirei fundo, sentindo prazer com o clima ameno do
sul da França. A Europa era a minha segunda casa, morei em Veneza por um ano
e em Londres por dois, com direito a MBA em Cambrigde. Se eu tivesse tempo,
visitaria minha antiga universidade para rever os professores e alguns colegas
que passaram a trabalhar lá.
Tirei os fones de ouvido e os guardei na bolsa enquanto esperava minha
bagagem. Tudo parecia tão limpo e asséptico, as pessoas, felizes, sorriam uma
com as outras. Como se houvesse uma magia em pisar nestas terras estrangeiras
e o cansaço da viagem transoceânica desaparecesse completamente.
Suspirei, chateada ao resgatar a mala prateada que tinha quase o meu
peso. Eu odiava me sentir assim, como uma criança pirracenta. Porém, nem
mesmo a beleza de Cannes me faria esquecer que estava ali a negócios, não por
prazer, indo contra a decisão de aposentar a carreira de modelo.
Ok, eu não estava como modelo, mas era próximo o bastante. “Será bom
para os negócios, você está no comando da ML Agência e Produções, precisa
voltar a ser conhecida internacionalmente”, repeti baixinho o pequeno mantra
da minha mãe.
Na verdade, eu já era conhecida, mas quando o assunto era fama,
dinheiro e conexões, aprendi com mamãe o lema de “quanto mais, melhor”.
Pendleton tinha certa razão ao dizer que eu precisava sair das quatro paredes do
meu escritório. Não importa qual fosse o ramo do entretenimento, o artista que
não é visto é esquecido.
A proposta aprovada pelos advogados era boa demais. Seria um passo
para a ML expandir ainda mais o seu leque de atuação, principalmente no
cenário internacional. Eu sabia de todas as vantagens. Ainda assim, odiava me
sentir como uma boneca preparada para servir macho.
Arrastei a mala de rodinhas pelo corredor de porcelanato cinza. Decidi
permanecer com a mente aberta, eram apenas alguns dias, não seria tão difícil
manter a farsa de namorada-troféu até o fim do festival.
Um homem alto e forte, em um quepe e terno cinza, segurava uma placa
com o nome Cinthia Grimaldi escrito. Eu me aproximei e falei com cautela, meu
francês um pouco enferrujado:
— Bonjour, je suis Cinthia.
— Bom dia, eu sou Marcos — amistoso, o homem sorriu com ar
apologético. — Me perdoe, mas só falo português.
— Que pena, eu esperava treinar o meu francês — pisquei um olho para
ele.
Marcos me encarou sem sorrir, parecia haver algo mais em seu olhar. Um
calafrio percorreu minha coluna e, por um momento, cogitei chamar um táxi.
Porém, ele se inclinou, fazendo uma pequena saudação e sorriu:
— Me perdoe, senhorita. Tenho certeza que haverá diversas pessoas para
a mademoiselle treinar. Estão aguardando no hotel, podemos ir?
Balancei a cabeça, distraída. O momento estranho passou, era apenas
fruto da minha mente cansada após a viagem. E agora que ele sorriu, o achei
muito interessante... Ombros largos escondidos em um terno justo e cabelo
cortado bem rente. Seu rosto seria harmonioso se não fosse pelo nariz aquilino,
deixando-o com uma beleza exótica, única. Talvez eu pudesse treinar diversos
tipos de “beijos franceses” nele quando estivesse entediada.
Marcos pegou as malas que eu carregava e se dirigiu até a saída comigo
em seu encalço.
Cannes era uma cidade turística, e em maio, dias antes do famoso
Festival de Cinema, ficava lotada. Pela janela do carro, observei o belo mar
Mediterrâneo de águas com uma profunda cor azul. Apesar da quantidade de
turistas caminhando na rua e do sol brilhante no céu límpido, ninguém se atrevia
a entrar no mar.
Finalmente tiro férias e venho para uma cidade costeira com o mar mais
frio que o castelo da princesa Elza. Maravilha!
— Merda! — exclamei ao lembrar que mamãe me convencera a entrar
naquela furada.
O jovem motorista me observou pelo espelho retrovisor.
— A senhorita deseja algo? — Marcos perguntou.
Encostei a testa na janela fria. Lúcia tinha razão quando disse que eu
estava muito estressada e precisava relaxar.
— Nada, obrigada.
Uma semana na Europa faria bem para mim.



O hotel definitivamente compensou o mar congelante. O Five Seas Hotel
Cannes traduzia o luxo e a elegância francesa. Senti-me como uma verdadeira
monarca ao entrar na Penthouse e ver sua decoração sofisticada em branco e
dourado.
A cama convidativa me chamava para um descanso após as horas de
viagem e a comida em cima da mesa tinha um aroma inebriante, mas foi o
terraço privativo que roubou minha atenção: uma visão panorâmica de toda a
cidade e vista privilegiada da famosa rua Croissette.
Ótimo! Não esperava menos. Uma coisa eu não podia negar, um homem
como Pendleton sabia ser eficiente na hora de reservar acomodações. Fechei os
olhos, apreciando o vento frio tocar em minha pele.
— Fez boa viagem? — uma voz me chamou e quebrou o encanto.
Virei-me para encontrar um homem belo e de sorriso doce. Seus cabelos
castanhos, quase loiros, caíam lisos na altura da orelha e os olhos azuis eram tão
límpidos, que brilhavam como o céu azul. Tão lindo pessoalmente quanto nas
fotos, o reconheci como Dante Gutierrez, o galã de novela.
Ele e Dimitri eram a sensação do momento, não apenas pelo talento nas
telonas, mas também pela beleza e carisma. Eu o conferi dos pés à cabeça,
conseguia entender o porquê.
— Ótima, obrigada — voltei para dentro da suíte, onde era mais quente.
— É você quem eu vou acompanhar?
Pendleton afirmara que eu deveria fingir ser a namorada de um dos seus
contratados durante o Festival de Cinema de Cannes, contudo não especificou de
quem.
Não perguntei, não me importava muito quem seria o meu par. Dante e
Dimitri, com suas belezas óbvias e sex appeal, eram o sinônimo do tanto faz. E
vendo-o de perto, sabia que não iria me opor a acompanhá-lo em outros lugares,
alguns mais íntimos.
Dante não escondeu o olhar lascivo ao analisar meu corpo, sua
apreciação era palpável. E, ao contrário do de Pendleton, seu desejo me atraiu.
Não fez nenhum gracejo, entretanto, apenas apontou para a mesa repleta com a
melhor comida que o hotel tinha a oferecer e pediu para que me sentasse.
— Não sou eu, infelizmente. Vou explicar durante o café da manhã, tudo
bem?
Intrigada, concordei e me sentei. Havia algo suspeito ali e minha
curiosidade foi atiçada. No mundo do entretenimento, conhecer um bom segredo
geralmente era vantajoso.
Crucial.
Servi-me de um croissant que desmanchou na boca, de tão macio. Sentia
como se estivesse no céu gourmet.
— O evento de hoje é de suma importância para que nós tenhamos
reconhecimento mundial. Somos grandes no Brasil, porém queremos conquistar
o mundo. A imagem faz parte do pacote, e ser indicado para melhor ator neste
prêmio deu uma visibilidade imensa. Eu não estou falando mal do meu colega de
trabalho, mas preciso que você entenda a real situação — Dante falou em um
fôlego só e colocou um pouco de café em uma xícara de porcelana.
Tive vontade de dispensar todo o papo de reconhecimento mundial, já
estava cansada daquilo. No entanto, com seu pequeno discurso, compreendi duas
coisas: Dante era tão ambicioso quanto Pendleton, e Dimitri, o sexy ator e ex-
modelo russo, seria o meu acompanhante. Seu rosto de deus grego e fama de bad
boy pareciam ser chamarizes para problemas e fãs enlouquecidas.
Fiz um som baixo de muxoxo com a boca, era uma pena que ele não
fosse agenciado da ML Produções.
— Eu devo domar o seu amigo? — tomei um gole do suco de laranja
fresco.
Dante ficou calado por um momento, observando meus lábios antes de
continuar:
— Dimitri precisa ter mais tato com a imprensa, e não podemos lidar
com escândalos em Cannes. Temos que limpar a imagem dele, e você é perfeita
para o papel. Uma mulher famosa, linda, culta e capaz de comandar com pulso
firme — ele piscou um olho, já sabendo da minha fama de mandona. — Você
nos ajudaria a mantê-lo na linha durante o evento? Nada de mulheres e nada de
excesso de bebida.
Devolvi a taça de cristal para a mesa e me recostei na cadeira de vime
com almofadas brancas em estilo praiano, batendo minhas unhas contra o apoio.
— Ou seja, eu serei a babá dele?
Nos últimos sessenta dias, não parava de me questionar sobre como me
convenceram a me prestar àquele papel. Dinheiro, fama e poder. A tríade do
capitalismo.
Fui sincera com o rapaz:
— Eu ainda não acredito que me trouxeram até Cannes para cuidar de
marmanjo. E você? — levantei uma sobrancelha e questionei com malícia. —
Quem vai te manter na linha?
Dante sorriu, me fazendo notar que havia algo predatório em suas feições
cuidadosamente controladas.
— Eu vi o contrato, sei por que você veio. Sabe, antes de te conhecer,
não entendia a cisma de Pendleton contigo. Ele colocou na cabeça que era
perfeita para o papel de namorada do Dimitri. Agora que te conheço, compreendi
— ele se levantou, circulando a mesa. Ao se colocar atrás de mim, apoiou-se na
cadeira e se inclinou, eu podia sentir o hálito quente pelo café tocando a pele da
minha orelha. — Você exala poder e confiança, ao mesmo tempo que tem um
sorriso maroto, misturado com carisma e sedução. É bela e intrigante.
Irresistível. Deve estar tão acostumada a ter os homens aos seus pés... — ele se
afastou, voltando ao lugar de origem como se nada tivesse ocorrido. —
Respondendo à sua pergunta, estarei com Alessandra Nogueira, conhece? Ela é
uma amiga de longa data.
Uau.
Adoraria tê-lo sob meus pés naquele exato momento, meu salto agulha
contra seu peito enquanto ele se inclinava para beijar o meu scarpin e...
Espera!
Ele disse Alessandra Nogueira? Puta merda! Então foi aqui que a Alê se
meteu?
Em vez de aproveitar as férias merecidas e descansar, ela estava em
eventos de gala! Bom, pelo menos eu teria um rosto conhecido por perto.
Observei o homem bebericando seu café, de volta ao seu personagem de
bom moço. Duvidava que Dante e Alê, duas pessoas completamente sensuais,
ficassem apenas na base da amizade. Não disse nada, no entanto. Eu não
perguntava sobre a vida sexual dos outros e não admitia que ninguém
perguntasse sobre a minha.
— Conheço, ela é uma grande amiga — reencontrei minha voz. — Mas
você provavelmente já sabe disso.
Dante parecia aliviado ao confirmar que não haveria competição
feminina entre nós duas e se levantou:
— Perfeito, ela está duas portas à direita, se quiser vê-la. Preciso ir,
Dimitri está na piscina e não deve demorar a subir. Pode ficar à vontade
enquanto ele não chega.


Capítulo 5 — Dimitri

“Pode ficar à vontade enquanto ele não chega”, martelei esse


pensamento em minha cabeça. Dante saiu sem perceber o meu semblante nada
amigável. Não acreditava que dividiria o quarto com Dimitri! Eles não tinham
dinheiro para pagar suítes separadas? Não seria problema, então, eu pagaria do
próprio bolso!
Para mim, dinheiro era a solução, nunca o problema.
Peguei o telefone, pronta para solicitar outra acomodação, quando me
lembrei como aquilo soaria estranho para os funcionários da recepção. Que
namorada amorosa pediria um novo quarto minutos depois de chegar de viagem?
Recoloquei o telefone no gancho com um baque.
Sem ter certeza do que fazer, joguei-me na cama para realizar outra
ligação. Daquela vez, para mamãe. Queria avisar que chegara bem e tirar
algumas dúvidas. A ligação tocou várias vezes, e ninguém respondeu. Quando
estava prestes a desligar, ouvi a voz conhecida, porém ofegante, do outro lado da
linha:
— Como foi a viagem?
— Boa — olhei para a cidade através da porta aberta da varanda. —
Cannes é linda, mesmo a praia estando fria demais para aproveitar.
Enfatizei a última frase, ignorando a respiração levemente pesada de
mamãe, o que fez Dona Martina rir. Ela sabia que o Mediterrâneo ficava gelado
em maio e que eu adorava o mar, porém aquilo não diminuía o encanto da cidade
pitoresca.
Comecei a bombardeá-la com perguntas sobre a ML Produções, queria
ter certeza que ela estava seguindo o calendário deixado com todas as atividades
para o sábado. Havia um desfile e três propagandas agendadas para a semana
seguinte. Eles não poderiam parar porque eu viajei. Por mais que Lúcia e o
restante da equipe fosse competente, a empresa só funcionava bem com o meu
olhar atento. Porque além de ser uma pessoa resolutiva, eu tinha o poder de
decisão e a força para impor agilidade às tarefas.
Enquanto eu continuava a perguntar, mamãe permanecia ofegante. Fechei
os olhos e coloquei a mão na cabeça, desconfiando do que precisamente ela
estava fazendo. Não aguentando mais a situação, sussurrei baixinho:
— Me diga que a senhora não está transando enquanto conversa comigo!
Podia imaginá-la revirando os olhos não apenas por causa dos meus
questionamentos, mas também pelo que o segurança fazia entre suas pernas.
Fabrício era um moreno alto, tatuado e forte, que parecia um tanque de
músculos. Seu currículo como guarda-costas garantiu seu emprego, porém o que
realmente impressionou a patroa foram as habilidades orais.
Eu sabia disso porque havia feito uma visita surpresa para a minha mãe
uns meses antes.
Quem teve a surpresa fui eu, obviamente.
— Claro que não! — ela foi enfática. — Estou pedalando.
Eu não acreditava, mas não queria insistir. Às vezes, a ignorância era
uma benção.
— Já foi ao escritório hoje? Os papéis do desfile no Rio precisam ser
assinados — insisti, sabendo que sem estar lá para manter a ordem, ela poderia
esquecer. — Lembre-se que Lúcia não pode assinar e...
— Pare com isso! — o grito repentino me fez sentar na cama de uma vez.
— Cinthia, pelo amor de Deus, lembre-se que eu comecei a empresa e sobrevivi
aos anos como modelo, tenho certeza que consigo me virar durante um dia —
ela disse, exasperada. — Relaxe, você está na França, com atores famosos e
acompanhando um homem lindo. Considere isso um presente e seja feliz!
Assenti e me despedi, resolvendo seguir seu conselho. Afastei mais a
cortina branca da varanda, permitindo que o vento frio de maio entrasse pela
janela. Respirei fundo, enchendo os pulmões de ar antes de liberar a tensão em
um expiro forte.
Não era do meu feitio largar tudo e simplesmente curtir, mas a ML
Agência e Produções sobreviveria a um ou dois dias sem mim.
Andei pela Penthouse, observando o suntuoso lugar. Minha curiosidade
estava aguçada, abri cada uma das portas sem me preocupar se as coisas naquele
quarto pertenciam a um estranho ou não. Se Dimitri não queria ninguém
mexendo em seus pertences, que reservasse duas suítes ao invés de uma.
Uma das portas dava para um closet impressionante. O lado direito
estava repleto de roupas masculinas, em sua maioria cores sóbrias e escuras. Do
lado esquerdo, as roupas deveriam ser para mim. Vestidos, saias, calças e blusas
de alta costura. Tolos! Quem Pendleton pensava que eu era? Como se precisasse
de um estranho para definir que roupas eu usaria!
Abri a mala e escolhi um conjunto de calça jeans, blusa Versace e botas
de cano longo que me manteriam linda e confortável. Depois da manhã
cansativa, tudo que precisava era de um bom banho.
Na última porta, encontrei um banheiro grande, todo trabalhado em
mármore e detalhes banhados a ouro. Aquilo me fez sorrir de alegria: me senti
em casa. Detestava ficar em lugares apertados que envolvessem qualquer tipo de
água. Tinha claustrofobia desde criança, quando me tranquei por engano em um
provador de roupas pequeno após um desfile em um navio de luxo, em alto mar.
Nunca esqueci a sensação de estar à deriva no escuro e do medo que senti.
Liguei a hidromassagem da banheira, que se iluminou, alternando as
cores azul, vermelho, roxo e amarelo. Um banho de espuma com cromoterapia!
Cannes melhorava a cada segundo. Submergi meu corpo na água morna e senti
todas as tensões se esvaírem. Agora que estava relaxando, só precisava lembrar
dos princípios básicos:
Primeiro: estava ali por um favor, eles precisavam de mim;
Segundo: não era obrigada a nada;
Terceiro: não era...
Toda a linha de raciocínio sumiu e um branco completo se apoderou de
minha mente no momento em que Dimitri entrou no banheiro. Ele vestia apenas
uma sunga, e gotas de água deslizavam por sua pele.
Só. Uma. Sunga.
Engoli em seco, tentando me concentrar. “Foco!”, pensei. Estava focada,
sim... na barriga tanquinho do eminente ator. Dimitri não me viu, ele encarava o
espelho e secava seus cabelos pretos com uma toalha. Sua bunda praticamente
implorava para ser apertada.
Babar por aquele homem não era uma escolha, era uma obrigação.
Desde a última visita de Leandro ao meu escritório, não fazia sexo com
ninguém. Estava ocupada, organizando os detalhes para a viagem. Quase dois
meses sem transar era o meu novo recorde. Deveria ganhar um prêmio pela
castidade.
Entreabri a boca e lambi os lábios, observando os músculos salientes das
costas de meu acompanhante de “férias”. Ele se virou para jogar a toalha no
cesto e se deparou com uma mulher desconhecida na banheira: eu.
— Porra! — Dimitri gritou. — Que susto, garota, como você passou
pelos seguranças?
Eu me afundei mais nas bolhas, escondendo meu corpo nu. A minha voz
austera, entretanto, contrastou com a atitude aparentemente tímida:
— “Garota”? Você acabou de me chamar de garota? Eu não passei pelos
seguranças, vim porque Pendleton me implorou! Sou Cinthia!
Pela sua expressão, Dimitri reconheceu o nome e um meio sorriso
sarcástico despontou em sua boca. Ele sabia que não era uma fã qualquer, era a
sua “babá”.
E se o flash de raiva que passou pelo seu semblante era alguma
indicação, ele provavelmente achava que não precisava da minha ajuda e
tampouco pretendia facilitar a minha vida.
Dimitri tirou a sunga molhada e jogou com displicência no cesto da
lavanderia. Meus olhos se arregalaram com a falta de pudor dele, ainda que fosse
muito apreciada se estivéssemos no meu escritório, onde eu teria controle da
situação.
E eu realmente tentava não encarar, mas era impossível. Como não olhar
para aquela maravilha em toda sua glória? Como eu deveria colocá-lo na linha,
se não mantinha a minha?
— Você está pelado — finalmente encontrei minha voz. — As pessoas
geralmente costumam ficar vestidas quando se apresentam a desconhecidos.
— E daí? — ele deu de ombros e foi tomar banho. — Você também está.
Fiquei revoltada. Sim, gostava de sexo, porém não admitia que me
tratassem como uma piranha. Modelos carregavam aquele estigma social. Era
uma grande hipocrisia: se eu fosse um empresário homem com grande apetite
sexual, muita gente acharia normal. Aplaudiria até.
— Eu não sou uma prostituta! Não pense que me trazer até aqui te dá um
passe automático para transar comigo — disse com raiva.
Ele olhou para mim através do vidro transparente do boxe do chuveiro e
esfregou o corpo devagar, provocando-me:
— Ok, saiba que te chamarem até aqui não te dá um passe automático
para transar comigo.
Eu me senti ultrajada, não estava acostumada a ser desafiada por homens.
Geralmente eles faziam de tudo para me agradar e não eram presunçosos.
Levantei-me e enrolei meu corpo úmido com um roupão felpudo, saindo a
passos duros do banheiro, de nariz erguido e xingando Dimitri mentalmente de
todos os nomes possíveis.

Capítulo 6 — Croissette

Como não havia nenhum compromisso até mais tarde, me vesti e andei
pelas ruas de Cannes, revisitando os cafés que gostava e arriscando colocar o pé
na água fria. Não entendia como algumas pessoas conseguiam tomar banho
daquele jeito! Uma garotinha saiu do mar com os lábios arroxeados e tremendo,
correndo para o braço reconfortante da mãe e da toalha que a aguardava.
Eu adorava o frio, mas preferia o calor do Brasil.
Conversei com os moradores, tirando a ferrugem do meu francês. Um
simpático vendedor de flores de meia-idade e meio barrigudinho me convenceu
a comprar uma muda de íris, uma flor branca com pétalas manchadas de lilás e
amarela em seu centro.
Era tão agradável conversar com ele, parecia um vovô desses de filme.
Além de treinar o idioma do país, treinei também minhas habilidades de botânica
— que eram quase nulas — ao aprender o jeito certo de cuidar da planta, qual
tipo de vaso e a quantidade de sol adequada para ela. Ele estava tão feliz em
imaginar sua flor visitando terras estrangeiras, que não tive coragem de avisar a
verdade: a alfândega provavelmente barraria o seu produto.
Mesmo assim, voltei ao hotel com a muda nas mãos, pensando em como
havia algo sobre a calmaria de Cannes que me deixava nostálgica. Com uma
vontade de sentar e relaxar, apreciar a vista e as pessoas. O que era
completamente sem sentido, a vida calma nunca pertenceu a mim!
Como poderia sentir falta de algo que jamais tive?
Ao retornar, mal saí do elevador, e Alê, a modelo de longos cabelos
ruivos e pernas quase infindas, me arrastou até um dos quartos, uma penthouse
como a de Dimitri. Ela trancou a porta com a chave antes de falar qualquer
coisa.
— Como você chega, some e não me avisa nada? — Alessandra ralhou.
Observei ao redor, vendo a mesma disposição do quarto ocupado por
mim, mas com vestidos e sapatos de Alessandra espalhados pelos móveis. Pelo
jeito, os anos não mudaram a sua mania de nunca decidir qual roupa usar até que
seja o último minuto do evento.
Analisei um vestido dourado muito brilhoso e o joguei na pilha de
descarte, que sempre ficava em cima de sua mala. Ela não deveria ir a uma
premiação vestida como a própria estatueta.
— E desde quando eu preciso de autorização para andar na rua? — tentei
manter a expressão séria de CEO em reunião de negócios, mas comecei a rir ao
sentar na cama, onde o vestido dourado estivera um segundo antes. Alê se
encontrava no mesmo patamar de Lúcia, uma das poucas pessoas que entraram
no meu círculo de amizades e nunca saíram. — Estava só espairecendo, não fiz
nada imperdível.
— Deixe-me adivinhar, Dimitri te irritou em dois segundos? — balancei
a cabeça concordando, e Alessandra sorriu. — Não se preocupe, é a
especialidade dele. Vamos nos arrumar, devemos arrasar hoje. As atrizes de
Hollywood não serão páreo para nós.
Ela caminhou em toda sua exuberância de modelo até o celular, e uma
música começou a soar de uma caixinha de som perdida no meio de tantos
tecidos finos. A voz de Valesca Popozuda soou alto e claro, enchendo o hotel
refinado com o ritmo brasileiro.
Não consegui evitar: joguei a cabeça para trás e ri de sua escolha
musical. Era mais do que apropriada para nós duas. Cada uma pegou uma escova
e fez de microfone:

“O meu brilho, você quer
Meu perfume, você quer
Mas você não leva jeito
Pra ter sucesso, amor, tem que fazer direito”

Neste ritmo, entre brincadeiras e piadas, começamos a nos arrumar.
Enquanto Alê tomava banho, corri até a minha cobertura e peguei a mala. Não
havia sinal de Dimitri ou Dante. Coloquei a pequena muda na cabeceira da
cama, torcendo para que nenhuma camareira desavisada a jogasse fora.
E que nenhum ator arrogante ousasse fazê-lo.
Achei melhor deixar um bilhete, avisando para não tocar na minha
planta.
Retornei quando Alessandra já estava enrolada na toalha, penteando os
cabelos. Era a minha vez de usar o chuveiro. A música, ainda no modo “repetir”,
tocava.
Sentia-me bem naquele clima descontraído e mal me lembrava que não
queria estar ali, inicialmente. Alê — que já me vira nua nas diversas viagens à
trabalho e nas provas de roupa — entrou no banheiro de braços levantados,
segurando um pincel de blush na mão e me instigando a cantar o refrão em voz
alta. Sem escova à disposição, foi a vez do sabonete virar microfone:

“Eu já falei que eu sou top
Que eu sou poderosa
Veja o que eu vou te falar
Eu sou a diva que você quer copiar”

A música acabou e Alessandra correu para o quarto, em seguida começou
a tocar um rap da Karol Conká, Tombei. Não pude deixar de notar como as
escolhas eram tendenciosas. Eu tinha uma veia narcisista e sabia disso, mas a
Alê... Nossa! Ela era Narciso renascido.
E eu a adorava do jeitinho dela, sem mudar nada, porque Alessandra
possuía um brilho próprio, era realmente cativante. Enrolei-me na toalha, vendo-
a se maquiar em frente a um espelho de corpo inteiro, escondido perto do closet.

“Se quiser conferir, vem cá, pra ver se aguenta
Miro muito bem, enquanto você tenta
Enquanto mamacita fala, vagabundo senta
Mamacita fala, vagabundo senta”

De calcinha e sutiã, preparei a pele sem parar de me mover. Eu tinha feito
diversos cursos de maquiagem durante a carreira de modelo para aprender a me
arrumar sozinha, gostava de como o resultado era sempre do jeito que eu queria.
Mais tarde, um hair stylist viria para ajeitar o penteado. O som continuava a
tocar:

“Faça o que eu falo
E se tiver tão complicado
É porque não tá preparado
Se retire, pode ir”

Alessandra me puxou pela mão e nós duas cantamos juntas: “Já que é pra
tombar, tombei”. Eu me senti com vinte anos de novo. Ficava tão presa ao
mundo dos negócios, que esquecia de aproveitar a vida. Decidi relaxar um
pouco, como mamãe tinha sugerido. Eu gostava de minhas regras, mas talvez
pudesse adaptá-las.

“Já falei que é no meu tempo
As minhas regras vão te causar um efeito
É quando eu quero, se conforma, é desse jeito
Se quer falar comigo então fala direito”

Quando terminei de me arrumar, senti-me poderosa em um Valentino
preto, longo, com decote profundo e que se aderia ao corpo como uma segunda
pele.
No rosto, o destaque da maquiagem era o batom matte vermelho,
marcando a boca desenhada. O salto alto e o colar com uma gota de diamante
completavam o visual. O cabelo foi arrumado em suaves e naturais ondas que
caíam pelo ombro.
Pietro — o cabelereiro mais divertido da França — nos arrumou no
quarto. Ele não entendia uma palavra do que a música dizia, mas tentava cantar
imitando o português, fazendo uma língua que só Deus era capaz de
compreender. Despedimo-nos dele com dois beijinhos e ouvimos uma promessa
de visita ao Brasil.
— Ei, vamos para Paris amanhã? — perguntei enquanto colocava meus
itens mais essenciais dentro da bolsa preta de alta costura. — Estou em férias
forçadas por uma semana, pensei em ir até lá e depois a Londres, topa?
Ela borrifou seu perfume francês favorito, Channel Nº5, e me olhou com
o cenho franzido, sabendo da minha leve tendência de ser viciada em trabalho.
— Você? Férias forçadas?
O ceticismo em sua voz deixava claro sua dúvida sobre eu fazer algo
forçado. E era verdade. Vim a Cannes por causa do contrato milionário e decidi
tirar férias porque mamãe me convenceu que eu precisava. A viagem para Paris,
entretanto, tinha propósitos maiores do que ver a torre Eiffel. Eu queria
encontrar uma das editoras da Vogue francesa, Anne-Marie Blanchard.
— Sim — dei de ombros. — Eu deixei tudo bem detalhado para a
mamãe.
— E para a Lúcia? — questionou enquanto eu largava minha mala de
volta na cobertura, com a echarpe que eu havia desistido de usar. Enquanto
caminhávamos para o elevador, segurei o riso. Era meio óbvio que eu tinha
instruído minha gerente com milhares de recomendações. Alê virou-se para
mim, ajeitando a alça do meu vestido. — Não posso, combinei com os rapazes
de ir a um cruzeiro pela costa europeia. Quer ir?
Ela se desculpou com o olhar, sabendo que eu não entraria em um barco
por livre e espontânea vontade. Balancei a cabeça negando, e o elevador apitou,
abrindo a porta.
O saguão estava lotado com pessoas indo e vindo em roupas elegantes.
Não foi apenas a comitiva de Pendleton que se hospedara ali, o hotel era uma
concentração de celebridades. Estava acostumada a ver homens lindos, porém
perdi a fala ao ver a dupla dinâmica — ou DD, como Alê costumava chamar
Dante e Dimitri — de smoking. Junto com eles, Pendleton, de braços dados com
uma jovem loira, nos cumprimentou com um sorriso amistoso demais para a
cobra por baixo da pele de empresário:
— Espero que tenha feito uma boa viagem.
Retribui o sorriso, estendendo a mão em cumprimento, ele a pegou e
beijou o dorso.
— A viagem foi maravilhosa — disse. — Não havia como ser diferente,
se estava na primeira classe.
— Para você, eu sempre ofereceria o melhor.
Senti seu polegar fazer círculos na parte central da palma da minha mão,
ainda presa na dele.
Puxei o braço de volta, a minha resistência em ir a Cannes não era
somente pelo trabalho ou por não querer servir de babá de marmanjo. Era ele:
Pendleton. Não conseguia me sentir à vontade em sua presença. Apesar do frio
que percorreu minha coluna, mantive as aparências:
— Obrigada, não esperava menos do senhor.
Fiquei de frente para a dupla de atores, a beleza do saguão do hotel, com
seu piso de mármore, lustre do mais delicado cristal e perfumadas flores típicas
da França, era ofuscada pela presença daqueles homens.
O sorriso luminoso de Dante era tão tentador quanto o ar soturno de
Dimitri, cujo cabelo um pouco mais comprido estava bem preso. A barba cheia
parecia mais curta, ele provavelmente cuidara dela durante a tarde. Os olhos
verdes permaneciam os mesmos, claro, repletos de promessas obscuras.
Ele colocou a mão na base da minha coluna.
— Não precisava fugir — sua voz rouca, tão próxima da minha orelha,
arrepiou a minha pele. — Eu não mordo, a menos que você me peça, é claro.
Respirei fundo, perguntando-me por que precisava resistir à tentação. Eu
gostava de manter o controle, sabia com quem poderia transar sem consequência
alguma. O ator bad boy era uma incógnita, e este era o grande problema. Ele
poderia ser o perfeito caso de uma noite, mas também poderia render uma
matéria escandalosa em jornais de fofoca.
Entrei na suntuosa limusine ainda ponderando minhas opções. Resistir à
tentação era muito mais chato do que ceder completamente.
Quanto antes aquela noite terminasse, melhor.




Capítulo 7 — Festival

O evento era imenso, maior do que se via pela televisão. Fiquei


impressionada com a comoção e a quantidade de flashes disparados em nossa
direção quando pisamos fora da limusine. Talvez os rapazes prodígio fossem
realmente os queridinhos da noite.
Dimitri, como eu bem sabia, não fora apenas nomeado para melhor ator:
o filme em que ele atuara com Dante concorria também à Palma de Ouro. O
grande prêmio da noite.
Do início do tapete vermelho, vi as suntuosas escadas e a dupla dinâmica
sendo entrevistada para um importante canal de televisão americano, exclusivo
de notícias sobre o entretenimento.
Como se tivéssemos ensaiado, eu e Alessandra nos aproximamos no
momento que a repórter loira em um longo vermelho perguntou pelas
acompanhantes. A atenta mulher, que estava longe de ser novata, nos reconheceu
e perguntou como eu havia conhecido Dimitri.
Eu já tinha pensado na desculpa perfeita: nos conhecemos em uma festa e
não nos soltamos mais. Porém, Dante foi mais rápido na mentira:
— A Alessandra é uma amiga de longa data e é agenciada pela Cinthia
— ele respondeu em um inglês perfeito, a língua natal da entrevistadora. —
Nossos amigos terminaram se conhecendo...
— E apaixonando? — a mulher questionou.
— Eu sinto muitas coisas pelo Dimitri — olhei para ele com um sorriso
nos lábios que guardava para propagandas de perfume em dia dos namorados. —
Ele é uma pessoa encantadora.
Ela se virou para Dimitri, aguardando sua resposta.
— Também sinto coisas crescendo pela senhorita Grimaldi — ele me
puxou para perto pela cintura e aspirou, ou melhor, praticamente farejou o meu
pescoço exposto, dando um beijo provocante na pele.
O arrepio em mim não fazia parte da atuação.
A mulher sorriu, satisfeita, sabendo que seria assunto das redes sociais no
dia seguinte. Provavelmente, ainda hoje.
Assim que finalmente entramos, cumprimentei o diretor, o produtor e os
outros atores presentes, tanto os do filme de Dante e Dimitri quanto outros. Se eu
estava ali, dentre pessoas influentes da indústria cinematográfica, aproveitaria
para fazer contatos.
Pendleton tinha razão, eu era ambiciosa e queria ir além do que minha
mãe jamais fora.
Fui até a área reservada para a comitiva do filme, na tentativa de
conversar um pouco mais com o diretor. Stuart Allen era um homem por volta
dos quarenta anos, com o grisalho pontuando algumas partes de seu cabelo loiro.
Sua carreira tinha sido meteórica após uma comédia independente que despontou
inesperadamente para o sucesso.
Mais de vinte anos depois, ele era conhecido e respeitado. Uma pessoa
perfeita para se manter um contato profissional. Trocamos poucas palavras sobre
atores e agências antes dele ser chamado para uma entrevista.
Em vez de me levantar e ficar próxima do meu acompanhante, resolvi
observar os dois rapazes de Pendleton de longe. Falaram-me de como Dimitri
era instável e precisava de rédeas curtas, mas ele estava mostrando um
comportamento exemplar no evento.
Ao menos, até aquele momento.
Os dois conversavam animadamente em uma roda de celebridades. Uma
das minhas qualidades era a habilidade de conhecer o tipo de pessoa apenas a
observando. Dimitri poderia ser mais famoso e chamar atenção com aquele ar
misterioso, mas Dante era um verdadeiro showman. Ele tinha um carisma
envolvente, sempre conduzindo a conversa.
Ou seja, era esperto e bom de lábia.
Ele era um belo planeta, e as outras pessoas, meros satélites orbitando ao
seu redor.
Eu cobiçava suas costas largas escondidas no smoking. Sabia que as
coxas eram bem torneadas e tinha uma barriga tanquinho feita para ser lambida.
Não era à toa que sempre havia uma desculpa para filmá-lo sem camisa ou de
sunga: a bunda redonda foi feita para ter unhas cravadas nela, enquanto ele metia
com força e... Suspirei, não era momento para pensamentos impróprios.
Mas o que eu podia fazer? Dante foi feito para ser apreciado.
Dimitri, que estava em pé de frente para o amigo e, consequentemente,
na minha linha de visão, sorriu e piscou um olho. Provavelmente notando onde
minha atenção estivera momentos antes.
Sem pudor ou vergonha alguma, passei a admirá-lo também. Dimitri era
um pouco mais alto e forte do que Dante. Seu físico era tão escultural quanto o
de seu amigo, e ele sabia dançar bem, pois interpretou um Go-Go boy em sua
novela de estreia. Uma vez, vi em uma revista de fofocas que a audiência tinha
picos enormes sempre que ele aparecia interpretando o show do dançarino.
Antes de vir para cá, procurei informações e entrevistas dele no YouTube
e quando falava em russo, mesmo que eu não entendesse uma única palavra, era
enlouquecedoramente sexy.
Sorri de volta, mantendo vivo o jogo que eu tinha aceitado. Não seriam
férias decentes se eu não as aproveitasse direito, não é? Não conseguia decidir
qual dos dois me interessava mais. Realmente, como falei antes, a dupla de
atores era a definição de “tanto faz”.
Quanto a Dante, entretanto, havia um grande empecilho…
Alê conversava com alguns dos atores no círculo, mas logo cansou de ser
acessório e sentou-se na poltrona ao meu lado.
— Você já transou com Dante? — curiosa, questionei.
— Óbvio! Você já olhou para ele? — ela piscou para mim. — A gente
tentou namorar, mas não deu certo. Nossos horários eram incompatíveis, ele com
as gravações, e eu iniciando minha carreira como modelo internacional. A minha
agente é um porre, pensa que sou escrava, sabe?
Sorri e corrigi a postura quando um homem de terno subiu ao palco e
solicitou que todos sentassem em seus lugares, pois o evento começaria em
breve. Antes que os rapazes pudessem se aproximar e ouvir a conversa, me
inclinei só um pouco para sussurrar no ouvido de Alessandra:
— Sua agente é muito legal, ela até te deu um mês de férias.
— Quinze dias, você sabe disso — Alê retrucou em tom de brincadeira.
— E eu ainda usei cinco para vir ajudar Dante.
— Não é culpa minha se você tem coração mole e veio para eventos
oficiais em vez de estar relaxando — provoquei.
— Você também está aqui — a modelo sussurrou, mas não respondi.
Eu estava ali, porém não exatamente de férias. Apesar de ter toda
intenção de aproveitar.
— Então, ele está disponível? — apontei com a cabeça para o Dante.
Ela levantou uma sobrancelha questionadora:
— Achei que estava com o Dimitri.
— Estou analisando as opções — dei um sorriso felino.
Alessandra jogou a cabeça para trás e gargalhou:
— Fique à vontade, o produto já foi testado e aprovado.
— O que foi tão engraçado? — Dante sentou ao lado dela.
Minha amiga, que nunca mensurou suas palavras, olhou para ele de
forma lasciva.
— Seu desempenho sexual — Alessandra falou em alto e bom som,
fazendo Dante arregalar os olhos e Dimitri rir descontroladamente, a ponto de
Pendleton olhar feio para ele.
— Do que você está rindo? — virei-me para Dimitri. — Ninguém estava
falando mal do desempenho dele.
O ator se aproximou e sussurrou:
— Se quiser testar o meu, a gente pode chegar a um acordo mais tarde.
Não respondi, a expectativa era parte da conquista. As luzes esmaeceram
e uma mulher em um deslumbrante vestido de organza em seda pura começou a
falar, apresentando os grandes títulos da noite.
Nós nos calamos, atentos ao desenrolar da premiação. Era belo, formal e
um tanto entediante. O evento continuou... E continuou... E continuou... Parecia
não ter mais fim. Dimitri batia o pé, impaciente, e a única coisa que salvava
eram as apresentações musicais entre os prêmios, além de uma ou outra piada
engraçada de alguns apresentadores.
— Eu quero comer — o ator reclamou.
O olhei desconfiada, imaginando se ele pensava que eu era sua babá no
sentido literal da palavra. O fato era que eu tinha algo escondido em minha bolsa
de grife, uma barra de cereal, sempre mantida à mão para emergências.
Decidi oferecer para Dimitri, seria um símbolo da paz, algo para suavizar
o primeiro encontro desastroso. Não que eu considerasse o corpo dele nu algo
desastroso... Abri a bolsa e ofereci a única fonte de alimento disponível nas
redondezas.
— Come isso e fica quieto.
Dimitri olhou desconfiado para a barra de aparência duvidosa, mas
aceitou. Pela sua expressão maravilhada assim que mordeu, ele tinha gostado.
— O que é isto? — sua pergunta saiu entre gemidos de prazer.
— Uma barra de cereal caseira, feita pelo meu chef de cozinha — elas
eram deliciosas e ideais para minha dieta. Quando o vi abocanhar o último
pedaço, reclamei: — Seu guloso! Você comeu tudo e não deixou nem um pedaço
para mim?
— Não seja por isto.
Dimitri colocou a mão por trás do meu pescoço e me puxou para perto.
Nossas bocas se chocaram, e eu entreabri os lábios. A língua dele invadiu minha
boca, e senti o gosto da barra junto com o sabor dele.
Um calor invadiu meu corpo, a barba arranhava e arrepiava minha pele.
Cada pedaço de mim estava ciente da presença dele. Se ele era capaz de causar
essa reação com um beijo, o que poderia fazer entre quatro paredes?
— Vamos para o hotel — Dimitri mordiscou minha mandíbula. —
Ninguém sentirá nossa falta.
Olhei ao redor, todos estavam concentrados na apresentação e alheio às
chamas que me consumiam ali, sentada em uma poltrona vermelha acolchoada
entre centenas de celebridades.
— Eu deveria garantir seu bom comportamento — sussurrei sem muita
convicção.
— Esqueça as paranoias de Pendleton e de Dante. Se você for comigo, eu
prometo me comportar muito mal... — ele lambeu meu pescoço. — Deixo até
você me punir por mau comportamento, ou eu posso punir você por não cumprir
o seu papel...
Suspirei alto.
Eu podia ser uma ex-modelo de sucesso e CEO fodona, mas era apenas
humana! Quem poderia me culpar por ceder à tentação?
Foda-se Pendleton e suas maquinações, eu tinha interesses urgentes que
precisavam de atenção imediata.
— Finja que está passando mal, e eu cuido do resto.
Eu sabia como eventos daquele porte funcionava, não era o meu
primeiro. Menti para as pessoas certas e saí acompanhando um enjoado Dimitri.
Uma coisa era certa, o homem era um bom ator. Quase me convencia de que
estava doente.
E eu?
Ah, resolvi esquecer as regras, por uma noite.



Capítulo 8 — Sem regras

Dimitri fazia mais do que sexo, ele venerava o corpo da mulher. Suas
mãos tocavam cada centímetro da minha pele, e ele beijou e chupou tudo que
encostava. Eu me contorcia nos lençóis de cetim antes mesmo de ser penetrada.
Sua boca parecia feita para dar prazer, e eu retribuía chupando-o com o mesmo
vigor.
— Fique de quatro — ele ordenou.
Dimitri me virou de costas, e logo senti um tapa na bunda. Ele agarrou
meus cabelos e puxou a cabeça para trás enquanto segurava minha garganta com
a outra mão. O leve aperto no pescoço roubou meu fôlego e me excitou ainda
mais.
Quanto mais excitado, mais ele ia rápido e dizia palavras que não
compreendia e que eu nem me dava ao trabalho de entender. Apenas apreciava o
tom sexy e urgente em seu sotaque sedutor.
Sua mão desceu do pescoço e passeou por todo meu corpo até alcançar
minha bunda, onde desferiu outro tapa.
— Você é gostosa pra caralho — ele me puxou para mais perto,
desferindo outro golpe e mais outro. A cada um, eu gemia de prazer.
Ele me penetrou forte, sem aviso. Sabia que não teria problemas, pois
estava completamente molhada. A cada investida, ele ia mais fundo e mais
rápido, levando-me aos limites do prazer.
O silêncio do quarto era preenchido pelo barulho dos nossos corpos se
chocando, pelos meus gemidos enlouquecidos e, de repente, por um grito:
— Porra, Dimitri, você tem que estar de brincadeira comigo. Eu ainda
fiquei preocupado, achando que tinha passado mal de verdade! Caralho, como
caí nessa?
Nós paramos no ato e viramos para enfrentar um irado Dante. Ele jogou
um troféu na cama.
— Parabéns, idiota, você venceu como melhor ator, e nem estava lá para
receber o prêmio. O filme também ganhou a Palma de Ouro, caso isso seja do
seu interesse.
Dimitri levantou-se e colocou o troféu em cima da mesa de cabeceira, ao
lado da esquecida muda de planta. Eu me escondi embaixo do lençol e observei
estupefata como ele andou com tranquilidade até o minibar e pegou uma garrafa
de champanhe.
— Ótimo, junte-se a nós e vamos comemorar! — ele estendeu a garrafa
para o amigo.
— O quê? — pulei da cama, enrolada em cetim. — Você está louco?
Dante olhou de esguelha para a garrafa, mas logo sorriu e aceitou. Seus
olhos, que antes eram tão gentis, pareciam mais predatórios. A tensão sexual no
quarto era palpável, e eu lambi os lábios quando Dante levou a garrafa à boca e
bebeu um gole direto do gargalo.
Dimitri passou a mão pela echarpe preta de renda que eu havia
abandonado no quarto, se aproximou sorrateiro e me beijou, envolvendo meu
corpo em seus braços, sua língua invadindo minha boca. Dante não se moveu,
era uma presença sólida em minhas costas. A minha indignação foi substituída
por desejo, com apenas um segundo de dúvida entre eles. Eu nunca tinha tentado
algo como aquilo que estava sendo sugerido.
Seria uma novidade e tanto.
— O que acontece em Cannes, fica em Cannes — Dante disse,
aproximando-se de mim.
— Isso vale para Vegas, não? — perguntei, desconfiada.
Dimitri me abraçou por trás e puxou o lençol, deixando-me nua na frente
dos dois.
— E quem se importa?
Diante dos olhos famintos daqueles homens viris, com certeza eu não me
importaria com nada.
Dimitri derramou champanhe no meu ombro e lambeu. Dante me beijou,
tomando meus lábios com ardor. Eu me virei, ficando de frente para Dante, com
o corpo grudado ao dele. Assustei-me com um tecido escuro sendo colocado
contra os meus olhos. Dimitri me vendou com a echarpe preta que ele estivera
observando antes e puxou minha cabeça para trás.
Prensada entre os dois e com a visão comprometida, apesar de ainda ser
capaz de enxergar um pouco através da renda, eu era incapaz de raciocinar. Em
um momento, estava em pé, no segundo seguinte, me encontrava deitada
encarando dois homens lindos, um loiro e outro moreno, ambos parecendo feitos
para o pecado.
Mais bebida foi derramada em meu corpo, duas línguas, quatro mãos,
vinte dedos. Todos em mim. Sentindo. Apertando. Beijando. Acariciando. Meus
sentidos estavam sobrecarregados e o prazer dominava meu corpo.
Naquele momento, eu era deles.
Dante colocou uma camisinha e cobriu meu corpo com o seu, gemi
quando ele me penetrou. Dentro e fora. Dentro e fora. Dimitri se ajoelhou na
altura da minha cabeça e me segurou pelo lenço quando eu voltei a chupá-lo.
— Será que você aguenta mais? — Dante desafiou, e Dimitri me olhou
em dúvida.
Meu coração que estava acelerado, retumbou no peito.
— Quanto é mais?
Minha pergunta era mais carregada de curiosidade do que receio. Dimitri
abriu uma gaveta na mesinha de cabeceira, tirando um tubo vermelho e outra
camisinha de lá.
— De joelhos — foi tudo que ele falou.
Os dois inverteram a posição, e agora era o Dante que eu saboreava.
Senti algo viscoso entre minhas nádegas, e eu sabia o que viria, não seria a
minha primeira vez ali. Um dedo começou a brincar com minha bunda e logo em
seguida outro. A dor era pequena e ainda capaz de administrar, até que algo
muito maior substituiu os dois dedos, e eu prendi o fôlego.
— Respire e relaxe. — Dante falou em meu ouvido e me beijou com
ardor. Fiz o que ele pediu, e logo Dimitri me penetrou por completo. Respirei
várias vezes, tentando me acostumar com a sensação. — Isso, gostosa.
Dante continuou a beijar, e Dimitri esticou o braço para esfregar o meu
clitóris. Eles me acariciaram em sincronia, o prazer voltou a dominar meu corpo.
Dimitri parecia se segurar a cada vez que chegava perto de gozar, até que deve
ter ido perto demais e saiu de mim para não terminar a diversão antes do tempo e
trocar a camisinha por uma nova.
Dante deitou-se na cama e pediu que eu montasse nele, o que fiz com
muito prazer. Meus seios balançavam enquanto eu cavalgava com vontade, meus
gemidos poderiam ser ouvidos por toda Cannes, que não me importaria. Eu
estava tão perto...
Senti as mãos de Dimitri em minhas costas, empurrando-me para baixo,
deitada contra o peito de Dante. Eu não era inocente a ponto de não saber qual
era a intenção dos dois. Sempre foi algo que quis testar, saber se conseguiria, se
seria capaz de suportar, e estava doida para descobrir.
Tentei relaxar novamente, porém desta vez, todo meu fôlego foi roubado.
Estava preenchida como nunca estivera antes. Os dois começaram a se mover de
forma alternada e rítmica. Meu corpo queimava em chamas, ardendo em
labaredas de pura luxúria. O prazer misturado com a pontada de dor. Eu me
sentia completa e na beira de um precipício.
— Grite! — Dimitri puxou meus cabelos para trás e me penetrou mais
forte. Dante abocanhou meu seio e segurou meus quadris, dando mais impulso
ao movimento. Nenhum de nós três demorou muito antes do prazer dominar
nossos corpos e sobrepujar nossos sentidos.
Estava exausta, o suor pingava de meu corpo e parecia que não
recuperaria o fôlego tão cedo. Os dois homens se encontravam em uma situação
melhor. Talvez devesse mudar o meu personal trainer, as aulas de pilates não
estavam me preparando apropriadamente para pequenas orgias como aquela.
— Que tal um banho e pizza? — Dante sugeriu e levantou-se para
acionar a água quente da banheira.
— Eu não consigo me mexer... — reclamei e me perguntei como eles
tinham força para qualquer coisa que não fosse desmaiar e dormir.
— Não seja por isto! — Dimitri me pegou no colo e levou-me até o
banheiro. — Não há nada que um bom banho não resolva.
Nós três terminamos a noite na banheira, depois na cama e depois na
banheira de novo.
Algumas horas sem regras era o sinônimo do prazer.




Capítulo 9 — Outro dia

No dia seguinte, eu me espreguicei sabendo que não havia entrado no


Mediterrâneo, mas que tomara um banho muito mais interessante... Observei os
dois rapazes adormecidos, concluindo que, definitivamente, perder o controle de
vez em quando era bom.
Tomei outra chuveirada e vesti um biquíni vermelho cujo padrão
brasileiro de tamanho provavelmente horrorizaria algumas moças europeias. Um
vestido de linho branco amarrado na cintura e um chapéu grande com flores
completavam o visual.
Encarei a cama, apesar de não querer ficar como uma perseguidora,
observando os dois dormirem. Quem desviaria o olhar? Era uma bela visão: os
dois relaxados, cabelos espalhados no travesseiro, peitos à mostra e o lençol mal
cobrindo seus quadris.
Entre eles, o espaço vazio onde eu estivera alguns minutos antes.
Mordi os lábios, sentindo um latejar entre as pernas com as memórias do
prazer de outrora. Eu deixaria ambos recuperarem as energias antes de pensar em
usá-los mais um pouco.
Bati na porta de Alessandra para ver se ela estava acordada, mas
ninguém me respondeu, tentei ligar e nada. Ela deveria estar dormindo ou na
cama de outro alguém. Sem muita alternativa, desci para o restaurante na
intenção de tomar meu café da manhã em silêncio, lendo as notícias do jornal
deixado em cima de cada mesa.
Cumprimentei alguns rostos conhecidos enquanto fazia o meu pedido ao
garçom. Uma refeição leve para compensar a noite pesada era o pedido ideal. A
brisa fresca da manhã de Cannes entrava pelas janelas imensas. As pessoas
pareciam sonolentas, como se fosse uma manhã preguiçosa para todos.
Sorri quando o homem de olhos gentis me serviu uma xícara de café
quente. A bebida era como uma carga de energia em meu organismo,
revigorando-me. Abri o jornal, e como esperado, Dimitri estrelava a primeira
página. Li a reportagem em voz baixa, traduzindo o francês para o português em
minha mente:

“O grande destaque da noite foi o ator russo, naturalizado brasileiro,
Dimitri Duskin. Além de estrelar o longa vencedor da Palma de Ouro ao lado do
amigo e também brasileiro, Dante Gutierrez, derrotou nomes consagrados do
cinema e venceu o prêmio de melhor ator. Um grande feito para um estreante
que teve um início atribulado. A emoção foi maior do que o jovem conseguiu
aguentar, e ele precisou se ausentar do Festival antes da premiação,
acompanhado da ilustre Cinthia Grimaldi, a famosa ex-miss e CEO da ML
Agência e Produções, uma das maiores agências de modelos do Brasil e agente
da Top Model Alessandra Nogueira, também presente no evento ao lado do
jovem Gutierrez.
Coube a Dante receber a premiação em nome do amigo, e seu discurso
foi cativante, arrancando lágrimas e suspiros da plateia. Nós desejamos
melhoras a Dimitri e prevemos que este será o início de uma grande carreira
para os atores brasileiros.”
Verifiquei as redes sociais: o assunto do momento era o Festival e como
a conquista de um pobre garoto russo “exilado” no Brasil foi emocionante
demais até para ele. A internet deveria ser estudada, era impressionante como a
opinião do primeiro a falar geralmente era replicada pelo restante.
Ainda bem que a primeira notícia havia sido positiva!
Meu celular vibrou com uma mensagem de texto de Pendleton. Ele
estava preocupado com Dimitri, achando que passara mal por efeitos tardios da
reabilitação. O ator estava apenas há dois meses sem ingerir bebidas alcoólicas.
Se o empresário soubesse...
Fechei os olhos, lembrando de Dimitri bebendo champanhe em meu
corpo. Voltei a encarar o celular, a consciência pesando um bocado. Eles
deveriam ter me avisado da reabilitação! Dante viu e não falou nada, achei que
não havia problema. Talvez a luxúria tenha superado a razão na noite passada.
Pendleton também me parabenizou pela conduta e agradeceu a
repercussão positiva na manhã seguinte. Neste caso, minha consciência estava
limpa. Apesar da “pequena” transgressão, havia cumprido a minha parte do
acordo.
O Festival de Cinema de Cannes foi um sucesso para a dupla de atores.
Que, de fato, era uma dupla muito dinâmica.
Estava sorrindo com as memórias da noite anterior, quando uma voz
grave falou em inglês, perguntando se poderia sentar comigo. Demorei alguns
segundos para reconhecê-lo em camisa florida havaiana em vez de smoking.
Stuart Allen, o diretor.
Falei que sim, poderia sentar, e ele perguntou se Dimitri estava melhor.
Eu tentei mostrar minha melhor expressão de lamentação e conversei com ele
em inglês.
— Ele está muito exausto depois de ter se esforçado tanto para estar
presente no evento. Dimitri tem uma resistência muito grande, mas,
infelizmente, até homens como ele possuem seus limites — coloquei a mão no
peito, franzindo a testa e fazendo um leve bico com os lábios. — O coitadinho
não consegue nem se levantar.
Ele se compadeceu e desejou melhoras, eu queria rir da minha pequena
manipulação de palavras. Em teoria, não menti.
Apesar de ter terminado meu desjejum, continuei ali, nossa conversa
enveredando para assuntos mais interessantes, como os negócios e o que um
homem como Stuart Allen poderia fazer por mim. Trocamos contato, e eu
prometi que minha secretária enviaria um e-mail em breve.
Caminhei para a área da piscina com o celular em mãos, digitando
rapidamente uma mensagem para Júlia. Precisava de alguns favores da minha
secretária: comprar passagens para Paris e confirmar minha visita à sede
francesa da revista Vogue, enviar um e-mail para Stuart e contratar os serviços
de José Rodrigues, um homem que eu chamava apenas quando extremamente
necessário.
Depois da noite passada, precisava ter o máximo de informações sobre os
dois atores, caso eles pensassem em me chantagear por causa do nosso delicioso
interlúdio. Eu não atacaria primeiro, mas também não seria pega de surpresa. Os
serviços de Rodrigues seriam o meu cobertor de segurança contra Dante e
Dimitri.
Com aquilo tudo resolvido e sem nenhum peso na consciência, deixei
minhas maquinações de lado para finalmente sentar e relaxar um pouco.
O sol agradável de Cannes acariciava minha pele. A piscina de águas
cristalina era aquecida, porém eu não tinha disposição para nadar. Estiquei os
braços na confortável espreguiçadeira, olhos fechados por trás de óculos escuros
e fones de ouvido no volume máximo.
Eu precisei segurar a urgência de ligar para a minha mãe e saber como
estava a empresa. Era manhã de domingo e até as CEOs mereciam descanso.
Suspirei, lembrando da mensagem enviada meia hora antes. Secretárias também
deveriam descansar. Fiz uma nota mental, precisaria lembrar de dar um abono
salarial para a Júlia pelo serviço extra.
Uma sombra pairou sobre mim e mãos fortes pousaram em minha coxa.
Quase pulei de susto e arranquei os fones do ouvido, escutando uma risada
sedutora.
— Que nervosa! — Dimitri analisou meu corpo com apreciação. —
Posso te ajudar a relaxar, se quiser.
Lambi os lábios repentinamente secos, ele usava apenas um short que se
pendurava muito baixo em seu quadril:
— Talvez mais tarde.
O canto da sua boca se levantou, mas Dimitri nada disse. Ele se inclinou,
pegando o bronzeador largado em cima da minha bolsa de praia.
— Vire-se, ainda estamos sendo observados — ele apontou
discretamente com a cabeça para um homem em uma mesa próxima, inclinado
em nossa direção e com o celular em mãos. Ele não estava lá quando cheguei.
Obedeci, e Dimitri espalhou o óleo nas próprias mãos antes de esfregar
em minhas costas. Era algo normal para um namorado fazer, porém não
tínhamos nenhum relacionamento além do sexo compartilhado na noite anterior.
Suas mãos em meu corpo eram uma provocação, e eu, ciente de cada
ponto onde nossas peles se conectavam e com a memória latente do ocorrido
anteriormente, começava a me amaldiçoar por ter saído do quarto sem acordá-
los.
— Bom dia — ele beijou meu ombro, ainda atuando pelo bem da câmera
apontada para nós — Dormiu bem?
— Sim, estava muito cansada e apaguei, tive um sono sem sonhos —
para que sonhar, se tinha eles dois ao meu lado? — E você?
— Dormi bem, mas teria acordado melhor se você estivesse lá — ele se
inclinou, sussurrando em meu ouvido. — Gostaria de continuar de onde paramos
na noite passada, antes de Dante nos interromper.
— Que eu me lembre, ele não interrompeu nada.
Virei-me de frente, tentando me concentrar em seu rosto e não nas mãos
que agora trabalhavam em minha barriga exposta, os dedos longos fazendo
círculos preguiçosos.
— Interrompeu, sim — seus dedos se enterraram na pele da minha
cintura. — Eu pretendia ter você toda para mim, apesar de não ser uma pessoa
egoísta e ter gostado de dividir.
Eu me sentei, nossos corpos muito próximos. Coloquei uma mecha
errante do seu cabelo atrás da orelha, a perfeita namorada atenciosa.
— Vocês fazem isso com frequência?
Realmente, a curiosidade me corroía. Eu havia perguntado a Alê se ela
tinha transado com Dante, mas nunca questionei em relação a Dimitri. Aquela
era uma experiência que eu recomendaria às amigas.
— Não, você foi a primeira — o ceticismo deveria estar evidente em meu
semblante de sobrancelha levantada, pois ele continuou. — Dividimos pouca
coisa além do empresário e dos sets de filmagem. Dante não é o que eu
consideraria como amigo. Não mais.
Pelo modo como Dimitri disse a última frase, a recíproca era verdadeira.
Aquilo me surpreendeu mais do que eu fazer um ménage com os dois. Os jornais
sempre os apresentavam como amigos e companheiros de longa data.
— Por que me dividir, então? — eu o desafiei.
Dimitri sorriu, daqueles sorrisos que levantam apenas o canto da boca.
Ele pousou a mão em meu pescoço e se inclinou, sua voz como uma promessa
sedutora em minha orelha:
— Porque eu vi em seu olhar o quanto desejava os dois.
Se toda a lembrança da noite anterior já aquecia meu corpo, aquela voz
tão próxima de meu pescoço foi a gota necessária para fazer meu oceano de
controle transbordar. Eu o beijei, simplesmente porque queria sentir o gosto dos
seus lábios nos meus. Estava fazendo planos de levá-lo para o andar superior ou
continuar nosso pequeno show de casalzinho dentro da piscina, porém meu
celular tocou repetidamente.
Era Lúcia, com uma crise na ML:
— Desculpa te ligar nas férias, mas hoje é o desfile da JayClar e temos
um problema.
A quem eu queria enganar? Domingo não era dia de uma CEO da moda
descansar, aliás, nenhum dia era. Depois me questionavam por que eu não tirava
férias com mais frequência: aquela era a resposta.
Como mais temia, mamãe negligenciou as orientações deixadas por mim,
bagunçando dois contratos, um para campanha publicitária e outro para um
desfile de roupas masculinas.
Peguei minha bolsa e não disse nada para Dimitri, ele deve ter entendido
o contexto pelo meu lado da conversa ao telefone. No elevador, debati algumas
soluções com Lúcia e, ao chegar no quarto, dei graças a Deus por Dante não
estar mais adormecido na cama.
Não podia me dar ao luxo de ter distrações.
Com o notebook em mãos — não ia a lugar nenhum sem ele —, trabalhei
pelas horas seguintes na varanda que tanto admirei no dia anterior e não tive
tempo de curtir. A rua Croissette com seu vendedor de flores foi esquecida
devido a toda burocracia em que me afundei.

Capítulo 10 — Entre amigos

— Pensei que você estava sexy ontem — Dimitri disse quando baixei a
tela do notebook e me levantei para guardar na mala. — Mas te ver no comando
e gritando ordens é muito mais quente. Você se importa de verdade com a
empresa, não é?
— É óbvio, a empresa é minha vida.
Cruzei os braços, observando-o. Dimitri havia tomado banho, e a única
coisa que cobria seu corpo nu era a toalha branca do hotel enrolada em seu
quadril. Na luz da manhã, ele era tão tentador quanto estivera na noite anterior.
Ele encarou o teto, seu corpo estranhamente tenso, apesar de tentar parecer
relaxado.
— O que você esperava?
Sua voz parecia distante quando falou:
— Não sei, uma garota mimada brincando de ser chefe.
Sua afirmação me chateava, porém não me surpreendia. Eu geralmente
era subestimada por aqueles que não me conheciam.
Logo eles percebiam o engano.
Quando eu precisava falar sobre a empresa ou manter relações sociais,
sempre era uma mulher muito eloquente. Porém, conversar banalidades com um
cara depois de transar estava além da minha alçada.
— O que você quer? — optei pela sinceridade. — Estou muito irritada
para fazer sexo agora.
Dimitri se levantou, dando de ombros e deixando que a toalha fosse ao
chão. Eu pensava que era à vontade com meu corpo, mas ele alcançava outro
patamar. Contudo, por mais lindo que Dimitri fosse, homens sem roupa não
abalavam tanto minha tranquilidade exterior, apesar de me aquecer por dentro.
— Tem certeza? Sexo sempre me ajuda depois de um dia estressante —
ele deu a volta na cama, passando por mim antes de entrar no closet. — Vamos
sair para almoçar, então?
— Eu deveria bancar a babá, não o contrário — falei, lembrando-o do
meu propósito ali, porém já me dirigindo ao banheiro. Ainda estava de biquíni.
Quando entrei no chuveiro, não tranquei a porta. Queria ver até onde ia a
ousadia do ator. E, como esperado, minutos depois, Dimitri, em jeans e jaqueta
preta, entrou no cômodo e sentou na borda da banheira, observando-me através
do vidro transparente do box.
Se ele queria olhar, eu daria um show.
Enchi minhas mãos com a espuma do caro sabonete disponibilizado pelo
hotel — o quarto mais caro tinha os melhores produtos. Esfreguei os seios,
beliscando a ponta dos mamilos com a unha. Pelo vidro salpicado com gotículas
de água, vi sua boca se entreabrir em um “o” perfeito.
Levei uma mão à minha boca e suguei meu indicador, lembrando da
noite anterior, quando era Dimitri o que eu tinha entre os lábios. A mão que
ainda estava nos seios viajou mais para baixo, pela barriga e entre as pernas. Eu
me apoiei na parede, meu próprio dedo me penetrando, sendo seguido por outro.
Para dentro e para fora.
Preguiçoso e rápido.
Eu brincava comigo, tendo um homem divino como espectador.
Minha intenção inicial era provocá-lo, mostrar que dois poderiam jogar
aquele jogo de sedução. Agora eu começava a repensar a minha decisão de não
usar o sexo para relaxar. O chuveiro ainda aberto jorrava água morna em minha
pele, acariciando-a. Fechei os olhos, entregando-me ao prazer que eu me
proporcionava.
Mãos quentes seguraram minhas coxas, forçando-as a separar. Dimitri
estava ajoelhado em frente a mim, completamente vestido e sem se importar
com a água escorrendo pelas suas roupas.
Abri as pernas como ele silenciosamente pedia, passando uma delas pelo
seu ombro. Era uma dança estranha a que fazíamos, e eu precisava me equilibrar
para não sucumbir ante o ataque de sua habilidosa língua.
Foi a vez dele de acrescentar dedos à brincadeira, porém os dele eram
maiores, entravam e saiam sem parar, não dando espaço aos meus. Não era uma
provocação, era uma ordem para me fazer gozar. E eu o fiz, puxando seus
cabelos e gritando seu nome.
— Vire-se para a parede e se apoie com as mãos — ele comandou e eu
obedeci.
Logo Dimitri estava me penetrando por trás, puxando minha cabeça de
encontro ao seu peito pelo meu pescoço, beijando-me com os resquícios do meu
sabor em seus lábios.
Dimitri era o tipo de cara com quem eu não me importava de repetir a
dose.
Foi preciso quase uma hora para que conseguíssemos sair do quarto.
Dante e Alê nos aguardavam no saguão. Ele com sorriso conhecedor, ela com a
expressão parecida com a minha: de quem tinha acabado de transar e estava bem
satisfeita.
— Cinthia, é sempre um prazer revê-la — Dante segurou a minha mão e
beijou, seus lábios demorando um segundo a mais do que o necessário.
— Você me conheceu ontem — disse em tom condescendente. — Não
teve a oportunidade de me rever tantas vezes assim.
Ele piscou um olho e ficou perto a ponto de seu hálito quente encostar na
curvatura do meu pescoço:
— Foi, no entanto, bastante prazeroso nas duas vezes.
Meu sorriso em resposta foi pouco amistoso. Se fosse agenciado por
mim, seria rejeitado da agência só pela piadinha. Um cara que não consegue
manter a boca fechada não é um bom amante ou contratado.
Diminuí o espaço entre nós, envolvendo os braços ao redor de seus
ombros, como um abraço cordial entre amigos que se encontravam no saguão
principal do hotel.
— Se eu fosse você, teria muito cuidado com as brincadeiras e com a
língua — sussurrei em seu ouvido com um tom ameaçador. — Não esqueça que
eu detenho os direitos de negociação para todas as suas propagandas e eventos.
Ele mordiscou o lábio inferior e me deu um olhar sujo, sua voz era baixa,
o suficiente apenas para que eu e as duas pessoas ao redor ouvissem:
— O tesão que eu tinha por você acabou de triplicar, mas não se
preocupe, minha boca é um túmulo, senhorita Grimaldi.
Revirei os olhos. O carisma de Dante o levava a ser eloquente demais,
quase canastrão. Talvez devesse aprender com Dimitri a mais observar do que
falar.
— Vamos comer? — Alessandra enlaçou seu braço com o meu,
quebrando a tensão e a resposta que eu pretendia dar. — Estou com fome e não
quero passar o dia trancada no hotel.
Os rapazes haviam alugado um carro e fomos ao restaurante à beira-mar
L’Alba, um lugar pitoresco, com uma sacada em madeira que se estendia em
direção à areia. Mais além, o mar mediterrâneo cortado por um píer repleto de
turistas era emoldurado por extensas serras.
Pedimos uma seleção de frutos do mar e salada de entrada. Antes que
qualquer um pudesse começar uma conversa enquanto aguardávamos a refeição,
Alessandra me chamou à toalete. Eu imediatamente a segui, sabendo que a
curiosidade deveria estar enlouquecendo-a. Ela verificou as cabines do luxuoso
banheiro decorado em tons claros, como o resto do restaurante. Não tinha mais
ninguém ali.
— Você transou com o Dante? — ela sentou no balcão de mármore da
pia, suas longas pernas quase tocavam o chão, mas Alessandra ainda conseguia
balançá-las como uma criança feliz em manhã de natal. — Achei que o Dimitri
não estava doente de verdade e vocês tinham mentido para escapar...
Sentei-me no pequeno sofá bege, preparando-me para o pulo que ela
daria quando soubesse de tudo.
— Sim e sim — respondi, evasiva.
Alê franziu a testa, sem compreender.
— Sim e sim o quê? — seus olhos se arregalaram. — Você transou com
um e depois com o outro? Sua cachorra! E aí, o Dimitri é bem-dotado também?
— Não exatamente... — permaneci esquivando de respostas diretas.
Afinal, não era todo dia que eu podia me gabar de ter feito um ménage com dois
homens gostosos.
Pensando bem... Eu poderia, se quisesse.
O sorriso nos lábios de Alê murcharam, sendo substituído por uma
expressão de decepção.
— Poxa, Dimitri é pinto de seringa? — ela parecia verdadeiramente
chateada, como se eu tivesse acabado de esmagar suas fantasias eróticas.
Eu, por outro lado, não conseguia parar de gargalhar, imaginando uma
seringa de um milímetro entre as pernas de Dimitri. Mesmo a de dez seria
pequena perto dele.
— Eu quis dizer que não fiquei com um e depois o outro — enfatizei a
palavra, esperando que ela entendesse.
Seu cenho voltou a franzir enquanto Alessandra parecia processar a
informação. Podia ver a compreensão em sua feição chocada, com a boca
escancarada. Como esperado, ela pulou do balcão para sentar ao meu lado.
— Conte-me cada detalhe.
Falei sobre a saída do evento, transar com Dimitri — que estava longe de
ser seringa, para o alívio de Alessandra —, a chegada inesperada de Dante e o
que aconteceu depois. Uma mulher entrou no banheiro, mas como falávamos em
português, não interrompi minha história, ela não entenderia nada mesmo.
— Foi uma decisão sóbria, não estava bêbada — pensei bem, lembrando
das sensações da noite passada. — Porém me encontrava inebriada de desejo.
Alessandra me olhava como se eu fosse algum ser místico ou a inventora
da roda em tempos primordiais.
— Qual foi a sensação? — ela questionou.
Apoiei minha cabeça no encosto.
— Por um segundo, é assustador, como se você não pudesse dar conta
deles. Depois, qualquer raciocínio lógico lhe escapa da mente. Eles te preenchem
por completo, estando em todo lugar ao mesmo tempo — suspirei. — É como se
cada terminação nervosa sua fosse ativada.
— Meu Deus! Eu quero fazer também! — Alessandra bateu palmas com
animação, como se estivéssemos falando sobre um passeio no parque, e não
sobre transar com dois homens de uma vez só. — E eu achando que minha noite
tinha sido espetacular com o Leo Grant!
Ela me contou sobre o experiente ator com mais de quarenta anos que
encantava as mulheres do mundo todo. Lindo e cobiçado, era um selvagem na
cama, segundo Alê. Ela o conheceu no after party, a festa depois do evento. Eu
senti um pouco por ter perdido a festa, mas ainda preferia a minha
comemoração.
— Vamos almoçar antes que eles mandem nos procurar no banheiro,
provavelmente estamos trancadas aqui há meia hora — puxei-a para fora,
caminhando entre risadas e fofocas com minha amiga.
De volta à mesa, os rapazes não estavam preocupados com nossa
demora, na verdade, pareciam bem orgulhosos de si. Provavelmente chegaram à
correta conclusão de que eu estava contando para ela sobre nossa aventura.
A comida tinha um sabor divino, como sempre. Conversávamos sobre o
Brasil, nossas carreiras e Pendleton. Nada como um almoço com seus clientes
para descobrir um pouco mais do ambicioso empresário. Alguns sorrisos doces
meus e de Alê, e os rapazes já estavam contando tudo que sabiam.
Eu, obviamente, fazia uma nota mental a cada detalhe importante.
Dante lambeu a colher da sobremesa olhando para mim, sua língua
passando pelo metal, lembrando-me de onde ela estivera antes. E de como me
deu prazer.
— Eu tive uma ideia... — ele falou. — Nós quatro somos uma boa
equipe, deveríamos voltar para o hotel todos juntos.
Ninguém era idiota a ponto de não entender qual era a sua sugestão. Que
Dimitri aceitaria, eu não tinha dúvidas. Já a Alê... Ela me encarava com uma
sobrancelha levantada. Estávamos prontas para ultrapassar esta linha em nossa
amizade de anos?




Capítulo 11 — Despedida

Se tínhamos ou não condições de atravessar aquela barreira, infelizmente


eu não tinha como descobrir. Ao longo das minhas horas em reunião com Lúcia
mais cedo, recebi pelo celular minha passagem para Paris.
— Por mais tentadora que a sua proposta seja, tenho um avião para pegar
— beberiquei meu vinho. — Mas vocês fiquem à vontade para se divertirem sem
mim.
Alessandra deu de ombros, e eu não tinha certeza se aquilo significava
que ela estava aliviada, animada ou se realmente não se importava, desde que os
dois homens estivessem presentes.
— Eu topo! Você não tem como adiar?
— Pois é, Cinthia — Dante passou o dedo pelos lábios. — Não terá o
mesmo sentido sem você.
Dimitri permaneceu quieto, remexendo em sua comida com o garfo. Ele
levantou a cabeça e nossos olhares se cruzaram, havia uma estranha intensidade
ali.
O tipo de intensidade que eu não costumava incentivar.
— Como disse, não posso.
Falei de forma categórica, mostrando que mudar minha viagem era algo
fora de cogitação. Pagamos a conta do restaurante sob os protestos de Dante, que
não parava de reclamar sobre como eu estava sendo intransigente. Ao partirmos
para o hotel, Dante e Alê estavam dispostos a não perder nenhum segundo e
foram no banco detrás do carro, entre beijos e carícias. Eu os olhava pelo
espelho retrovisor sem culpa: se não quisessem plateia, teriam esperado pela
privacidade do quarto.
Minha boca salivou ao ver a dele descer pelo colo dela, afastando a
delicada blusa bordô um pouco para o lado e abocanhando o seio direito. Porra,
amaldiçoei minha maldita viagem para Paris!
Pelo jeito, Dante não era tão discreto quanto Pendleton imaginava, os
dois rapazes precisavam de uma babá para não darem escândalo em público.
Sorte deles que meu trabalho de acompanhante já tinha acabado e, com os vidros
fumês muito escuros, sabia que a privacidade da minha modelo estava
resguardada.
Alessandra ajeitou a blusa antes de sair do veículo, as carícias entre eles
diminuíram, mas não pararam. No elevador, Dante a agarrou em um beijo
quente, seu corpo colado ao dela contra o espelho.
Olhei para a câmera de segurança, era improvável que um hotel de luxo
desse permitisse que seus funcionários vazassem imagens dos hóspedes. Dei de
ombros, se, por acaso, caísse na internet depois, isso só aumentaria a busca por
Alessandra.
Dimitri, que estava atrás de mim, aproximou-se. Suas mãos foram
diretamente para minha cintura, e ele me puxou, grudando minhas costas contra
o seu peito. Esqueci de câmeras, seguranças e internet ao sentir sua ereção dura
contra a minha bunda. Ele beijou meu pescoço, a barba incipiente fazendo
cócegas contra a minha pele.
— Tem certeza que precisa ir? — seus dentes encontraram minha carne,
mordendo-me no ombro. — Não pode adiar a passagem? Eu iria te satisfazer o
dia inteiro e nem ia cansar.
Ah, como eu queria! Mas eu tinha compromissos em Paris. O elevador
apitou no nosso andar e saímos sem falar nada. Minha boca não conseguia
verbalizar a negativa guiada pela responsabilidade: eu não podia ficar.
Beijei Dimitri, num toque rápido e casto de lábios fechados, e parti para
meu quarto sem falar adeus. De outro modo, a luxúria queimando em mim
transformaria a razão em cinzas.




No quarto, a pequena muda de íris começava a perecer. Da minha bolsa,
retirei um dos papéis do bloco de notas da ML que sempre levava comigo e
rabisquei em francês as instruções dadas pelo florista. Talvez alguma camareira a
encontrasse e cuidasse dela apropriadamente.
Coloquei a mala em cima da cama, sendo assaltada pelas memórias da
noite anterior e imaginando Alessandra no meu lugar. Estariam beijando minha
amiga agora? As mãos deles passeando pelo corpo dela, excitando-a?
Soltei um suspiro alto. Talvez eu devesse tentar passar mais algum tempo
em abstinência, minha mente estava muito dominada pelo sexo!
Dobrei as poucas roupas espalhadas pelo quarto, faltavam três horas para
a decolagem, e o aeroporto ficava a menos de dez quilômetros de distância. Eu
chegaria cedo, evitando imprevistos.
A echarpe preta estava jogado no chão, descartada. Peguei-a, sentindo a
textura da renda nos dedos.
— Eu estava pensando... Não me despedi de você.
A voz masculina me assustou, e eu dei um gritinho junto de um pulo de
medo. A venda improvisada caiu em cima da cama, e eu encarei o invasor. Meu
coração acelerou, mas não de pavor.
— Você quer me matar de susto? — joguei o vestido de qualquer jeito na
mala e me apoiei na parede.
— Me desculpe, entrei com minha chave, não tive intenção de assustar
— Dimitri caminhou a passos decisivos até mim, suas mãos enormes foram para
a minha cabeça, cobrindo quase totalmente cada lateral do meu rosto. — Eu não
podia deixar você ir embora assim.
Seus lábios tomaram os meus com voracidade e, como na noite anterior,
em um momento estava em pé, no outro, me encontrava novamente de costas no
colchão, com aquele homem lindo entre minhas pernas, adorando o meu corpo
com o seu.
Dimitri pousou a mão em cima do lenço e o segurou firme, e eu logo
estendi os pulsos unidos. Ele os amarrou e me virou na cama. Com sua ereção
esfregando contra minha bunda, Dimitri desferiu um tapa e puxou minha cabeça
para trás pelos cabelos.
— Você tem um voo para pegar — ele separou minhas coxas com os
joelhos. — Então não se segure, eu não vou me segurar.
Eu deixaria a abstinência para outro dia.
Provavelmente nunca.




Capítulo 12 — Paris

O rio Sena brilhava sob as luzes da lua e da cidade, havia chovido mais
cedo e o frio penetrava pelo meu casaco. Esfreguei uma mão na outra para
aquecer os dedos congelados, apesar das luvas de lã.
Notre-Dame e suas imponentes gárgulas se agigantavam diante de mim à
medida que caminhava em sua direção. Eu gostava de andar pelas ruas da Île de
la Cité, uma das duas pequenas ilhas no coração de Paris, me sentia em um filme
romântico antigo. Por isso sempre ficava no hotel D’Aubusson, onde eu poderia
ir a pé para admirar a catedral.
Nos jardins de Notre-Dame, pisei na estrela gravada no chão, o Marco
Zero, onde tudo começou. Olhei para cima, desejando estar no campanário entre
as gárgulas de pedra.
— Nunca imaginei que você fosse do tipo religiosa — Dimitri me
abraçou por trás, aquecendo-me um pouco com o calor do seu corpo. — Pensei
que seria mais do tipo Torre Eiffel.
Eu virei a cabeça de lado e beijei seus lábios antes de voltarmos a
caminhar entre os jardins.
— Você quer dizer o falo gigante de ferro? — dei de ombros. — Eu
gosto, sou muito a favor de falos gigantes — olhei para ele de forma sugestiva, e
Dimitri sorriu. — Mas prefiro o clima medieval daqui. A gente pode ver o local
onde o último grão-mestre dos templários foi queimado em praça pública ou
então a igreja onde mantiveram Maria Antonieta presa antes de ser decapitada e
tantas outras coisas legais.
Dimitri franziu o cenho e me olhou como se eu tivesse criado duas
cabeças.
— Você conseguiu extinguir todo o romantismo de Paris!
Dei uma cotovelada em sua barriga, mas ele provavelmente nem deve ter
sentido, considerando o sobretudo enorme que usava por cima de duas blusas de
lã.
Aqueles que eu havia mencionado eram grandes líderes, e outras pessoas
tiraram não apenas o seu poder, mas também suas vidas. Não importa quão alto
estejamos, ninguém é inalcançável. Esta era a razão para me isolar e não deixar
outros se aproximarem. Eu sempre me sentia sozinha em meio a uma multidão.
Olhei para a catedral mais uma vez, pensando em como responder a
Dimitri.
— Me faz lembrar que qualquer um pode cair — apontei para as antigas
gárgulas no alto das torres de Notre-Dame. — Porém, se você tiver uma visão
mais ampla, enxergar mais longe e for feroz, ninguém te derrubará.
Aquela era a minha segunda estratégia: o ataque era a melhor defesa.
Ele seguiu a direção apontada pelo meu dedo e digeriu a analogia
enquanto observava as estátuas.
— Então você quer ser como elas? — Dimitri voltou o olhar para mim.
— Fria, de pedra e inalcançável?
Em outro momento, eu teria concordado sem pestanejar. Queria ser
distante e estar acima de todos, onde ninguém pudesse tocar em mim ou em
minha empresa. No entanto, com seus verdes olhos perfurando a minha alma, eu
começava a me ver presa naquela esmeralda sem fim, sem saber como escapar
do desejo daquela presença.
Nem ao menos tinha certeza se pretendia escapar dele.
Diante do meu silêncio, Dimitri me beijou. Seus lábios provocantes nos
meus, a exigente língua pedindo passagem. E sob o vigilante olhar das
centenárias gárgulas, eu me derreti em seus braços.
Era estranho como os planos poderiam mudar. Eu tinha acabado de
rejeitar sexo a quatro em Cannes e pensava que viajaria sozinha para Paris. De
repente, me vi na cama com Dimitri decidindo que uma viagem para a capital
francesa parecia mais interessante do que um cruzeiro pela costa europeia.
Não sabia ao certo como Dimitri havia me convencido a trocar minha
reserva no hotel de uma pessoa para duas. Provavelmente, tinha algo a ver com
ele dizendo que não estava saciado de mim.
Dimitri perdeu sua passagem para o cruzeiro e nós partimos em um avião
para Paris. Mais cedo, depois da curtíssima viagem, fomos direto ao hotel e não
saímos do quarto. Nosso tempo foi gasto entre lençóis de algodão egípcio, até a
fome nos obrigar a dar uma volta pela cidade.
— A gente podia ter pedido comida no quarto, sabe? — ele mordeu
minha orelha.
Inclinei a cabeça, dando acesso livre ao meu pescoço, onde ele salpicou
beijos antes de lembrar que estávamos em público. Dimitri segurou minha mão,
conduzindo-me de volta às margens do rio Sena. Um navio iluminado estava
ancorado e casais subiam nele, animados com o passeio.
— Não... precisamos andar um pouco, ou ficaremos enjoado um do outro
muito rápido — pisquei um olho para ele. — E aí você terá perdido seu cruzeiro
por nada.
— A gente pode jantar ali, assim você me compensa pelo passeio perdido
— ele apontou para a embarcação que eu observava segundos antes.
Estaquei de forma tão abrupta, que Dimitri, ao continuar andando, foi
puxado para trás por nossas mãos conectadas. Inicialmente, ele riu da minha
reação, mas quando me olhou de perto, aproximou-se, preocupado.
— Ei, o que eu falei de errado? — ele tocou em minha pele. — Você está
mais fria e pálida, vamos sentar.
Eu odiava me sentir fraca, principalmente em público, mas era assim que
eu ficava quando estava tão perto de um barco e me imaginava subindo nele. O
medo era algo irracional e debilitante. Incontrolável.
Respirei fundo umas três vezes para acalmar meu coração acelerado,
engolindo o pavor antes que ele tivesse condições de realmente se manifestar.
Dimitri me indicou um dos bancos nos jardins da catedral, e sentamos um ao
lado do outro em silêncio. Encarei os meus pés, buscando as palavras certas.
— Desculpa, tive um trauma com barcos na infância e às vezes ele volta
para me assombrar — ele abriu a boca para falar, mas eu o interrompi. — Antes
que você me encha de perguntas, já fiz terapia e me ajudou bastante, consigo
entrar em piscina e até adoro entrar no mar. São os barcos que me deixam assim.
Ele se recostou no banco de madeira e olhou na direção do rio, onde o
navio ainda devia estar ancorado. Sua atenção se voltou para mim.
— Ia te convidar para tomar um vinho, não pretendia “encher de
perguntas”.
— Seria o primeiro — falei mais para mim do que para ele.
Entretanto, Dimitri ouviu.
Imitei sua posição, recostando-me no banco e aproveitei para apoiar
minha cabeça no encosto. O céu de Paris brilhava com milhares de estrelas para
mim. Fechei os olhos, sentindo a leve brisa contra o suor frio que se apoderara
de mim.
Um delicado beijo em cada uma das minhas pálpebras fechadas me fez
encarar o homem ao meu lado, meio que pairando sobre mim.
— Eu gostei.
Levantei uma sobrancelha, sem entender direito:
— Você gostou de me ver ter um pequeno ataque?
— Sim — ele ergueu levemente os ombros e explicou: — Te deixou mais
humana, como todos nós, reles mortais.
Com aquilo, sentei-me ereta e segurei a gargalhada que queria escapar da
boca.
— Ah, sim! Falou o reles mortal que é um ator vindo da Rússia, com
quase dois metros de altura, lindo, gostoso, desejado, vencedor de duas
estatuetas no festival de Cannes!
— Sabe, você é até legal quando não é uma megera metida — ele disse,
puxando-me para perto, seu nariz contra a curvatura do meu pescoço e a barba
de dois dias arranhando minha pele.
Coloquei a mão em seu rosto, sentindo o queixo quadrado sob minha
palma, e Dimitri inclinou levemente a cabeça, em direção ao meu toque. Deslizei
meu polegar pela maciez de seus lábios. Os olhos verdes, agora escuros por
causa da pouca iluminação, me encaravam com intensidade.
— Você até que é legal quando não é um bad boy arrogante.
Ficamos ali, conversando bobagens às margens do rio Sena. A presença
reconfortante de Dimitri até me fez esquecer do navio zarpando com seus
passageiros para um dos mais românticos passeios de Paris.
Um que eu nunca iria ver, mas não me importava nenhum pouco.
Jantar em terra firme com Dimitri era uma opção muito melhor.





Não fui a Londres.
Os dias seguintes passaram voando, divididos entre passeios por Paris e
horas na cama. Visitamos a sede parisiense da Vogue e além de uma conversa
animada com a Anne-Marie, terminamos concedendo uma entrevista à famosa
revista. Pelo menos, compensaria Pendleton por Dimitri não ter ficado o evento
inteiro em Cannes.
Era o quinto dia em Paris e sétimo em que eu estava fora do Brasil,
minhas férias chegavam ao fim. Não haveria mais passeios às margens do Sena,
visitas ao campanário de Notre-Dame ou jantares no segundo andar da torre
Eiffel.
Também não haveria mais Dimitri...
Ele iria para a Rússia, visitar a família. Apoiei a cabeça no travesseiro e o
observei dormindo. Ele parecia tão pacífico e relaxado, com os cabelos caindo
pelo rosto.
Nos últimos dias, conheci um Dimitri diferente daquele apresentado na
televisão. Era intenso, lindo e charmoso, mas havia várias camadas por trás:
cuidado, gentileza, senso de humor. Sentia como se Dimitri atuasse o tempo
todo, como se o ator grosseiro e problemático não passasse de mais um dos seus
papéis. Segundo ele, o bad boy rude vendia mais do que o bom moço.
Descobrir essas coisas era curioso para mim. Eu tinha amigos e
conhecidos, colegas de trabalho, homens e mulheres, contudo era raro eu manter
um laço e até uma conversa normal com uma pessoa depois de transar com ela.
Quando eram os rapazes do “teste do sofá”, nossa interação se restringia
a sexo e negócios. Nenhum jamais havia sentado comigo para tomar um café,
desperdiçando uma tarde de sexo selvagem a três com uma top model em terras
francesas ou desistido de um cruzeiro para viajar ao meu lado.
Verifiquei a hora no celular, constatando que a soneca após o primeiro
sexo da tarde precisava acabar. Sentei na cama, tirar férias tinha me deixado
mole: eu nem tinha partido, e já havia um sentimento de nostalgia por Paris em
meu peito.
Era só uma cidade.
Eram só cinco dias.
Era apenas um homem.
Antes que eu pudesse levantar, um braço forte me segurou pela cintura e
me puxou de encontro ao colchão. Dimitri montou em cima de mim, seu
semblante sonolento desaparecera, sendo substituído por uma expressão
indecifrável. Ele acariciou meu rosto e encostou minha testa na sua.
— Sentirei sua falta — disse entre beijos salpicados em minha face,
terminando com um na boca que me impedia de responder.
Eu sentiria falta dele também.
Suas mãos se prenderam nas alças de minha camisola, descendo-a até
expor meus seios. A boca atrevida deixou um rastro de beijos pelo meu pescoço,
indo em direção ao mamilo intumescido. Dimitri me adorou com lábios, mãos e
dentes antes de me penetrar com força, fazendo-me esquecer de qualquer coisa
que não fosse aquele homem e o que ele me fazia sentir.


Capítulo 13 — Descoberta

Não compreendia como nos sete dias em que estive ausente, minha mãe
conseguiu atrasar quase dois meses de trabalho. Ela autorizou serviços e
propagandas demais na mesma semana do Fashion Week, desorganizou o
esquema de rodízio de modelos que eu havia preparado e fez alguns contratos
abaixo do nosso padrão. Minha sorte era Lúcia, sempre ao meu lado e me
ajudando — contanto que eu não parasse de contar e recontar sobre o ocorrido
em Cannes e em Paris.
Nas últimas cinco semanas, trabalhei sem descanso. Minha boca se abriu
em um enorme bocejo, tirar férias me deixou mesmo mole, nunca senti tanta
sonolência na vida!
— Senhorita Grimaldi — Júlia me chamou pelo intercomunicador. — O
senhor Rodrigues está aqui.
Imediatamente, observei o homem pelo monitor da câmera de segurança
e autorizei sua entrada. Por volta de cinquenta anos, mas com rosto de setenta,
ele entrou em meu escritório em seus jeans surrados, tênis Converse mais velhos
do que a maioria dos meus modelos contratados e uma camiseta comum, de loja
de departamento.
José parecia um tiozinho querendo ser jovem. Ele passou a mão pelos
cabelos escorridos e meio oleosos e empurrou os óculos quadrados — muito
grandes para o seu rosto — contra a ponte do nariz.
Não havia nada de extraordinário em José Rodrigues. Um homem
comum, meio franzino e que poderia se perder facilmente em meio à multidão.
Este era o seu objetivo: não ser notado.
Rodrigues, sempre astuto, mantinha a aparente fragilidade apenas como
um disfarce, uma casca para esconder seu verdadeiro cerne, seu interior, de olhos
curiosos. Um dos melhores detetives particulares que a cidade tinha a oferecer.
Sabia disso porque mais de vinte anos antes, meus pais o contrataram
para vigiar um ao outro. Os dois estavam traindo e nenhum queria ser traído.
Seria engraçado, se não fosse tão hipócrita.
Resultou em um natal bem peculiar na mansão Grimaldi. Eu era jovem e
depois de presenciar meus pais se acusando, com provas em mãos de como o
casamento deles era pura fachada para as capas de revista, percebi que o prazer
do sexo sempre seria mais importante do que o amor.
Desde aquele dia, pautei a vida nos três elementos importantes para a
minha família: sexo, dinheiro e poder. Anos depois, eu havia me tornado uma
Grimaldi exemplar e costumava usar os serviços do senhor Rodrigues com
frequência.
Afinal, conhecimento era poder.
— Conseguiu as informações solicitadas? — questionei, apesar de saber
a resposta. Se ele tinha vindo até mim, era porque já o serviço estava finalizado.
Acostumada com sua agilidade, me surpreendi ao segurar a pasta com
cada detalhe pedido, quase um mês depois de ter sido solicitado.
— Foi difícil. As redes sociais geralmente fazem metade do meu
trabalho, porém, neste caso, me atrapalharam. Encontrar a verdade oculta atrás
de tantas mentiras foi um desafio maravilhoso, quase me sinto mal por cobrar —
ele falou em tom de piada, e o canto de sua boca se levantou em um sorrisinho.
Seus olhos astutos, entretanto, mostravam que não tinha humor algum
ali. Eu conhecia o caso de um empresário que tentou enrolá-lo e teve todos os
seus podres vazados na internet. O caloteiro perdeu a empresa, a esposa e a
reputação.
Sem pestanejar ou verificar o conteúdo do envelope, abri a gaveta e de lá
tirei um maço grosso de notas de cem embrulhadas no que parecia ser um pacote
de padaria. Tinha certeza que padaria nenhuma entregava aquele tipo de pão...
— Obrigada pelo serviço — agradeci, dispensando-o.
Esperei Rodrigues sair e o observei se afastar pelo monitor de segurança.
Eu me sentia culpada por usar subterfúgios para invadir a privacidade de
Dimitri, ainda que aquela sensação tenha sido inédita. Eu não era do tipo que
tinha uma consciência para sentir pesar. Se um dia tive um “Grilo Falante” em
meu ombro, ajudando-me a discernir o certo do errado, ele desaparecera ainda na
infância.
Soltei o envelope e pressionei as têmporas com as pontas dos dedos,
fazendo pequenos círculos. Uma dor de cabeça começava a se formar, somando-
se ao sono quase incontrolável.
Antes de partir, Dimitri e eu trocamos o número de nossos telefones. E,
desde então, tínhamos conversado por mensagem quase todos os dias, quando eu
chegava em casa cansada demais para pensar em festas ou outras formas de
socializar.
Apesar de todos os momentos que passamos juntos, fiquei impressionada
em como ele era bem mais eloquente na palavra escrita do que na falada.
Provavelmente porque pessoalmente, sua boca estava ocupada demais
saboreando meu corpo para se preocupar em formular frases.
Fechei mais as pernas, sentindo a excitação crescer. No final das contas,
eu estava fazendo a abstinência prometida em Cannes forçadamente em prol da
empresa.
Foi quando notei que ainda segurava o envelope entre os dedos,
provavelmente com mais força do que deveria.
Era tarde demais para voltar atrás, havia acabado de pagar uma soma alta
por aquelas informações e deveria verificar seu conteúdo. Abri o grande relatório
com o coração acelerado e, ao contrário do esperado, havia quatro pastas dentro.
Espalhei-as em cima da mesa.
Incrédula, encarei os nomes.
— Júlia — chamei no intercomunicador. — Não passe nenhuma
chamada nem libere visitas, eu não quero ser interrompida pelas próximas horas,
ok?
Podia sentir a hesitação dela através da linha:
— E se for urgente?
— Resolva, eu confio em você — disse e desliguei em seguida.
Comecei pela pasta de Pendleton, os maiores podres deveriam estar ali.
Eu não sabia se ficava surpresa ou não com o que lia: o empresário não estava
tão bem como queria aparentar. Dois processos de assédio finalizados
rapidamente e em sigilo, antes que pudessem alcançar a mídia. Quebra de
contratos e dívidas com agiotas, ele tinha uma queda por jogos de azar.
Marcos, o motorista bonitinho e educado de nariz extravagante, era na
verdade membro de uma gangue. Ele estava ali supostamente para garantir que
Pendleton não fugisse para terras estrangeiras sem pagar a dívida. O empresário
informara aos chefes do rapaz que havia feito um grande investimento em
Cannes, porém Rodrigues não conseguiu descobrir qual.
Aquilo não fazia o menor sentido!
Talvez ele quisesse leiloar as estatuetas de ouro?
Passei para a pasta de Dante e fiquei ainda mais chocada. O bom moço
carismático e garoto de ouro, de bom, não tinha nada. Sexo, droga, bebidas e
destruição de quartos de hotel coloriam o currículo do rapaz. Pendleton
provavelmente gastara uma grana para manter aquilo em sigilo, os casos
mostrados nas revistas não cobriam um quinto da verdade.
Mas se ele fez isso pelo Dante, por que não fez por Dimitri?
O papel dizia que Dante fizera reabilitação no início do ano, mas
Pendleton falou que tinha sido Dimitri! Talvez Rodrigues tenha trocado os
nomes... Abri a pasta do russo, lendo que ele participou da destruição do quarto
de hotel e teve um leve problema com álcool, mas não precisou de reabilitação.
Quando Dimitri me ofereceu vinho na primeira noite em Paris, eu
perguntei sobre a reabilitação. Ele disse que estava bem, uma taça não tinha
problema. Mesmo assim, insisti em bebermos suco. Naquela noite, Dimitri não
mentiu, pelo visto: ele não tinha problemas com álcool.
Peguei meu celular e, no terceiro toque, Rodrigues atendeu.
— Tem certeza que as pastas de Dimitri e Dante estão corretas? —
questionei sem dar um cumprimento sequer.
— Está duvidando do meu trabalho, senhorita Grimaldi? — seu tom era
duro, descrente. — Sim, tenho certeza. Não saberia dizer o motivo, mas Dimitri
encobriu o amigo. Era o nome dele na papelada da clínica de reabilitação, porém
eu hackeei o sistema e vi uma filmagem da câmera de segurança. Dante esteve
lá, o ator russo nunca pisou na clínica.
Desculpei-me pelo questionamento. “Bad boy vende mais”, uma vez
Dimitri dissera. Movida pela curiosidade e desconfiança, continuei a ler a pasta
de ambos. Uma cópia do contrato deles com Pendleton estava lá e era uma
merda, o empresário detinha a vida profissional dos dois e sugava tudo o que
podia deles.
Já tinha visto contratos como aqueles, geralmente feito por agentes sem
escrúpulos e assinados por artistas novos, deslumbrados por terem sido notados e
tão desesperados em conseguir uma oportunidade, que aceitavam qualquer coisa.
Eu podia ter todos os defeitos do mundo, porém não era uma exploradora de
sonhos alheios, meus contratos eram vantajosos para ambos os lados.
Pendleton detinha todos os direitos dos atores, e eles eram dois dos
poucos clientes que ainda não tinham o processado ou conseguido se livrar de
suas garras. Devia tanto dinheiro, que mesmo Dimitri e Dante fazendo sucesso,
não era o suficiente para pagar a dívida. O que impedia Pendleton de desmoronar
provavelmente era sua bem estruturada rede de contatos e parcerias.
E onde eu entrava nisso tudo, por que se dar ao trabalho de me levar lá
com um contrato milionário? Ele ganhava muito mais chamando uma pessoa
qualquer e comandando as propagandas por conta própria!
Senti um embrulho no estômago e fechei os olhos ao pegar a quarta
pasta. A resposta estava ali, podia sentir isso. Tinha medo do seu conteúdo, pois
sabia que uma vez quebrada a minha confiança, ela nunca mais ficaria inteira
novamente, e eu teria que fazer aquela pessoa sofrer as consequências.





Capítulo 14 — Realidade

Um dos maiores medos de todo CEO era descobrir que havia ratos em
sua empresa.
Após alguns dias processando aquele golpe, decidi que era hora de
montar uma armadilha. A temporada de caça aos ratos estava aberta!
Se eu quisesse retomar o controle, precisaria fingir ignorância e continuar
a agir normalmente. Mesmo que uma tormenta estivesse se formando dentro de
mim, usava uma máscara que mostrava estar tudo bem.
Lúcia e eu conversávamos tranquilamente no meu escritório enquanto
fazíamos a escolha dos modelos do Fashion Week. Ela pedia que eu falasse de
novo sobre os meus últimos momentos com o galã russo.
— Você já sabe de tudo, até demais — enfatizei o final com um sorriso,
pois, na empolgação, tinha contado sobre Alê e Dante se agarrando no carro,
mesmo não sendo muito fã de fofocas.
O intercomunicador emitiu um bip, e antes de atender ao chamado da
secretária, olhei o monitor. Uma ruiva de pernas longas e um vestido curto
acinturado de alta-costura se encontrava parada em frente à Júlia, em pé e
aguardando sua vez de entrar.
Falando no diabo...
— Mande Alessandra entrar, Júlia — avisei pelo aparelho. — E obrigada.
Alessandra entrou no escritório em toda sua exuberância, como se
estivesse andando em uma passarela. Ela levantou uma sobrancelha para a
quantidade de fotos espalhadas em cima da mesa.
Lúcia apontou para a cadeira ao lado dela.
— Sinta-se à vontade para ajudar.
— Você foi selecionada para três desfiles e uma propaganda — mostrei a
foto do portfólio dela, com um post-it em cima. — Por enquanto.
Ela sentou no lugar indicado, analisando os desfiles para os quais a
agência fora contratada.
— Então — Lúcia lançou um olhar sugestivo para a amiga. — As férias
foram boas, hein?
Alessandra olhou dela para mim e entreabriu a boca, com as mãos na
cintura.
— Sua cachorrona! Já contou tudo? — ela me acusou corretamente.
— Tudo não — eu me defendi. Com o aporte de trabalho e as últimas
descobertas, eu não havia conseguido falar com ela ainda. — Não sei como foi
com vocês depois que eu parti de Cannes — completei com um sorriso nos
lábios e um amargor na boca.
— Quer dizer depois que você interrompeu o nosso pequeno ménage? —
ela me olhou de esguelha.
— Ué, como assim? — ouvi Lúcia perguntar e voltei a me concentrar nas
garotas.
Virei-me para Alessandra:
— Eu não interrompi nada.
— Dimitri pulou fora do ménage logo no início! — Alessandra olhou
exasperada para a gente. — Nós três entramos no quarto, Dante não parava de
me beijar. Eu mandei os dois sentarem no sofá enquanto eu fazia um pequeno
show de strip. Eles pareciam apreciar, e quando sentei no colo de Dimitri e o
beijei, ele retribuiu por um segundo. Porém, de repente, se levantou e me
colocou em pé, dizendo que eu e Dante deveríamos nos divertir sem ele.
Isso aconteceu porque ele foi para o quarto se despedir de mim. Pela
primeira vez, transamos sem nada de inusitado: apenas um homem e uma
mulher, até ambos gozarem de prazer. Apenas com o detalhe da echarpe de
renda amarrando meus pulsos. Todos sabiam o que tinha acontecido depois,
Dimitri me acompanhou até Paris, abandonando Dante, Alessandra e o cruzeiro
que eles fariam juntos.
Sorri para esconder a carranca que queria se formar. Eu pensei que
Dimitri era um cara legal e fingia ser bad boy para as câmeras, mas era o oposto.
Caí como idiota em sua atuação de bom moço.
— E vocês se divertiram no cruzeiro? — Lúcia perguntou com os olhos
brilhando de curiosidade.
— Claro, e eu terminei fazendo o ménage com um carinha lindo do navio
— ela se abanou de forma dramática e nos olhou com um ar sugestivo. — Dante
está no Brasil, a gente poderia marcar alguma coisa com ele...
— A gente quem? — Lúcia arregalou os olhos. — Nós três e ele?
Alessandra balançou a cabeça, confirmando.
Hum, aquilo poderia ser exatamente o que eu precisava. Bati as unhas
contra a mesa, um plano se formando em minha mente.
— Dimitri estará lá também? — perguntei.
Imediatamente, me senti uma idiota pelo estúpido acelerar do coração.
Precisava me lembrar: o Dimitri que conheci, fiz sexo e andei ao lado
pelas ruas de Paris não era verdadeiro. Ele esteve me manipulando o tempo todo,
e eu, alguém que acreditava não ser tola, caí na dele.
— Você vai dividi-lo? — Alessandra questionou, e as duas estavam
ansiosas pela minha resposta. Em relação a homens, nunca fui do tipo
possessiva. Afinal, jamais me importei muito com nenhum.
Devolvi sua pergunta:
— E você, vai dividir o Dante?
— Claro — ela deu de ombros. — Como te falei, ele não passa de um
amigo muito íntimo.
Se minha intuição estivesse certa, veríamos isso em breve.
— Por mim, pode marcar — disse com voz decidida.
Lúcia, boquiaberta, não conseguia esconder o espanto. Compreendia seu
choque: desde que Pendleton entrara naquela sala com uma proposta suspeita, eu
havia entrado em um universo paralelo também. Sua cabeça loira se virou para
cada canto do escritório.
— Isso é alguma pegadinha? Só eu estou achando surreal a tranquilidade
de vocês? — ela se levantou, ultrajada. — Sei que pode ser natural para as duas,
mas eu não me sinto à vontade com isso! — Lúcia colocou a mão na cintura e
bateu o pé, ou melhor, o stiletto no chão. — Então eu posso só assistir? Sempre
quis tentar o lance voyeur. Se eu cansar de observar, entro na brincadeira.
Era a vez de Alessandra e eu ficarmos boquiabertas, observando Lúcia
sentar com toda sua classe, como se não tivesse dito nada e nos presentear com
um doce sorriso inocente.
Gargalhei e não era parte da minha atuação, por um momento acreditei
que a gerente estava realmente indignada.
— Pode marcar para a próxima semana, no sábado — disse para a top
model. — Será um grande dia.
Alessandra levantou-se e se despediu, partindo do escritório quase
saltitante. Esperei que ela saísse do prédio, mudando a câmera de segurança
ativa no monitor para acompanhar cada passo seu. Quando a vi pisar na calçada,
voltei minha atenção para Lúcia, que continuava selecionando portfólios.
Depois de me tornar CEO da ML, eu me mantive fria e distante de outras
pessoas, principalmente desconhecidos. Minha intenção era me proteger de
possíveis aproveitadores, mas não foi o suficiente.
— Preciso do contrato de propaganda do Dante e do Dimitri — falei para
Lúcia. — E peça para Júlia chamar o Rodrigues de volta, tenho mais um serviço
para ele.
Estava prestes a ultrapassar um limite que nunca cheguei perto de atingir
antes, porém, para eliminar a ameaça que Pendleton representava, eu precisaria
jogar tão sujo quanto ele.
Pretendia fazer isso sem descer do meu belíssimo salto alto.
Com o controle remoto em mãos, fui mudando a imagem do monitor,
passando por cada câmera de segurança espalhada pelo prédio: os sets de
filmagem, o setor gráfico, os camarins, o laboratório de revelação, a sala de
reuniões, o palco com passarela para testes e pequenos desfiles, o saguão, o
porteiro, a cozinha e tantos outros setores da empresa.
Todos os funcionários ali presentes foram escolhidos pessoalmente por
mim, após terem sido aprovados pelo RH. Eu sabia um pouco da vida deles,
como a do faxineiro que varria o chão para pagar o tratamento da filha e recebia
um bônus para a compra de remédios ou a recepcionista que lutava contra a
bulimia.
Cada um tinha sua história, e o emprego deles estava em minhas mãos,
dependia exclusivamente de mim. Porque a ML Agência e Produções não era
apenas uma empresa, era a minha vida e família. Eu faria de tudo para protegê-
los.
O celular tocou, e o número de Dimitri piscou na tela. Pensei em rejeitar
a ligação ou talvez só xingá-lo de todos os nomes possíveis, mas o jogo não
tinha acabado ainda e eu continuaria fingindo até a cartada final.
— Você concordou em um encontro com Dante? — ele perguntou à
guisa de cumprimento.
Encostei-me na poltrona e a girei, observando a imensidão da cidade e
seus prédios de concreto através da parede de vidro.
— Por quê? — questionei com a voz tranquila e controlada. — Quer
participar também?
Eu o ouvi bufar do outro lado da linha. Dias antes, talvez eu ficasse feliz
em vê-lo demonstrar um resquício de ciúmes, como se me dividir com outro
homem não parecesse tão simples como antes.
Cheguei a imaginar que eu pudesse representar algo a mais além de sexo
para ele.
— Não vá, por favor — ele suplicou, e eu o odiei.
Lágrimas se formavam no canto dos meus olhos. Odiei Dimitri e sua
maravilhosa atuação, o odiei por ter me manipulado, por ter atravessado a
muralha de aço e concreto em volta do meu coração e por ter me feito sentir e
sonhar com coisas que nunca pensei antes.
E eu me odiei também por ter baixado a guarda perto dele.
Podia ver meu reflexo no vidro, com o rosto avermelhado e as lágrimas
que começavam a deslizar pela face. Eu nunca chorava normalmente. Contudo,
minhas emoções pareciam sempre à flor da pele desde a viagem para Paris.
Sentia-me mal por não permanecer sempre firme e fria diante daquela
situação, como sempre fiquei diante de tantos outros obstáculos. Pensando bem,
eu nunca tinha sido traída daquela forma, e não me referia apenas a Dimitri.
Eu ainda precisava respondê-lo. O tom saiu firme, apesar da tormenta em
mim:
— Eu vou.
— Porra! — ele desligou o telefone.
Com o cenho franzido, encarei o aparelho. Aquela tinha sido uma ligação
estranha! Levantei-me e encostei a testa no vidro, vendo as pessoas na calçada
como formiguinhas. O chão, lá embaixo, pareceu subir e descer, e minha visão
turvou com uma vertigem que se apoderava de mim.
Virei-me, ficando com as costas contra o vidro, e escorreguei até o piso,
onde apoiei minha testa nos joelhos dobrados. E ali, sentada no chão, no topo de
um prédio do centro da cidade, eu, uma CEO de sucesso, se permitiu chorar por
uma traição vinda de dentro do pequeno grupo de pessoas que participavam da
minha vida. Aquilo me partia por dentro.
Derramar lágrimas, entretanto, não resolveria meu problema. Eu tinha
uma semana para fazer o plano infalível e ser mais esperta do que meus
inimigos.
E o tempo estava passando.




Capítulo 15 — O plano

Eu não costumava ser uma pessoa ansiosa, porém aquela semana tinha
sido um teste de paciência. Entre reuniões, advogados, contratos e acordos, eu
me sentia exausta. Minhas forças foram drenadas, e o cansaço fazia meus ossos
pesarem. Nem me alimentar direito eu conseguia e, por causa disso, tonturas
continuavam a anuviar minha mente.
Dimitri me ligou mais uma vez, tentando me persuadir a não participar
do encontro com Dante. Porém, ele não me deu um bom motivo para tal e,
mesmo que desse, eu tinha meus planos.
No sábado, eu e Lúcia fomos a um spa. Queria estar perfumada, relaxada
e perfeita para a minha noite de glória. Por volta das dez horas da noite, paramos
o carro em frente à casa de Dante. Ela ficava em um condomínio de porte médio
dentro de um bairro luxuoso.
De dois andares e branca com janelões fumê, a casa se agigantava contra
o céu noturno e os terrenos vizinhos, sem nenhuma casa construída ainda no
entorno. Dei uma última olhada para Lúcia, que observava a casa sem ficar
muito impressionada, assim como eu. Ela abraçou sua enorme bolsa retangular
de couro branco e me encarou de volta:
— Tem certeza que quer fazer isto?
Não tinha, mas era preciso.
— Sim.
Respirei fundo antes de sair, checando mais uma vez o banco detrás do
carro.
Dante, em jeans e uma camisa de botão azul, dobrada na manga, me
recebeu na porta com um sorriso fácil no rosto. De todas as coisas que passei
naquela semana, abraçá-lo e dar um beijo em sua bochecha foi uma das mais
difíceis de fazer.
Alessandra, em um provocante vestido preto com um decote profundo
que chegava até o meio de sua barriga, estava sentada com uma taça de vinho na
mão. Os cabelos avermelhados caindo pelo ombro combinavam perfeitamente
com a pele alva e os lábios de rubi.
Ela dobrou as pernas, e notei o delicado tecido aberto em uma fenda na
altura de suas coxas, que deixava pouco para a imaginação. Afinal, eu conseguia
ver que Alê tinha se depilado recentemente, e não estava me referindo às pernas.
Praticamente nua, Alessandra pousou a mão no joelho do homem sentado
ao seu lado. Ele era uma variável que eu não tinha contado em meus planos.
Todo vestido em preto e com uma barba mais espessa do que a última vez que o
vira no aeroporto de Paris, mais de um mês antes, Dimitri me encarou com olhos
sombrios.
Havia algo nele que me atraía como uma mariposa à luz, e assim como o
infortuno inseto, eu me queimaria se ousasse encostar em Dimitri. Cumprimentei
a todos com voz sedutora e cara de quem quer dar, como as que usava nas
minhas antigas propagandas de lingerie.
Lúcia estava nervosa e não conseguia esconder o sentimento, que
escorria por suas feições e trejeitos. Entretanto, os presentes na casa
provavelmente pensavam que era ansiedade pelo sexo louco prestes a acontecer.
Seria normal o seu nervosismo.
Um vinho foi posto em minha mão, mas não me atrevi a beber. Precisava
me manter sóbria e não queria me arriscar com a bebida, ela poderia ter sido
adulterada.
— Não sabia que você estava no Brasil — eu me aproximei de Dimitri,
que permanecia sentado em seu modo taciturno. Inclinei-me em sua direção,
apoiando minhas mãos no encosto do sofá, uma de cada lado de seus ombros. —
Senti sua falta.
Eu o beijei por dois motivos: eu já tinha assumido meu lado tola e
realmente sentia falta dele e porque era a última vez que poderia fazê-lo. Não
havia motivos melhores. Seus lábios traidores continuavam deliciosos. Ele
demorou um segundo para retribuir o beijo, mas logo suas mãos foram para a
minha cintura e eu sentei em seu colo em seguida.
Rápido demais, mas eu não conseguia parar! As bocas tinham vida
própria e mostravam uma urgência em se unir em um duelo de línguas. Um
barulho de rolha estourando soou ao meu lado, Lúcia agradeceu a bebida
oferecida por Dante. Alessandra disse algo, e eles riram.
Dimitri interrompeu o beijo para seguir mordiscando minha mandíbula e
orelha, onde sussurrou muito baixo, só para eu ouvir:
— Fuja.
Não desviei do esmeralda profundo de seus olhos, ele me implorava em
silêncio para seguir seu conselho. Passei o polegar pelo seu lábio inferior, e
Dimitri beijou a ponta do meu dedo. Encostei minha testa à sua, sabendo que o
deixaria de fora do meu esquema de vingança.
Para ser sincera, eu não o tinha colocado nela.
E estava cansada de tanta farsa e ardis, pretendia dar um fim de vez
naquilo.
— Onde está a câmera? — fui direto ao ponto. Diante do silêncio de
Dimitri, levantei-me para enfrentar Dante. — Sei que tem pelo menos uma
câmera escondida aqui, onde ela está?
Alessandra e Dante pareciam estupefatos, bocas entreabertas e olhos
arregalados. Minha amiga foi a primeira a se recuperar:
— Câmera? Ninguém aqui é doido de compartilhar algo seu sem
autorização!
— E quem falou em compartilhar? — Lúcia interviu, deixando a timidez
de lado, agora as cartas seriam postas na mesa e não precisaria fingir mais nada.
Aquela era uma das grandes qualidades de Lúcia, agia sempre como uma leoa,
pronta para defender aqueles que amava. — Aliás, já que entramos neste assunto,
quanto você ganhou para vender a foto do aniversário da sua amiga para o
jornal?
Eu tinha colocado Rodrigues para descobrir isso também, Alessandra me
traía há muito tempo, e eu, inocente, nunca desconfiei.
— Já que entramos no assunto, não consegui descobrir o que você ganha
me vendendo assim para o Pendleton — falei com uma tranquilidade letal.
Ao revelar a verdade, o clima na sala mudou completamente. O rosto
sorridente de Dante se fechou, revelando uma carranca nada carismática,
Alessandra colocou a mão no peito e titubeou, em uma vã tentativa de se
justificar.
— Pendleton me convenceu que não era justo eu ser a top model e ainda
ficar à sua sombra, ele disse que eu podia me tornar uma artista de Hollywood
e...
Levantei a mão, interrompendo-a, não precisava ouvir mais nada. Antes
que eu pudesse falar, entretanto, Dimitri, ainda sentado na mesma pose, foi o
primeiro dos rapazes a encontrar a voz:
— Como você soube?
Ele parecia bem tranquilo para alguém que estava prestes a ser acusado
de tentativa de chantagem.
— Eu tive um café da manhã interessante com o Stuart Allen — afastei
alguns passos para longe do sofá, assim poderia ficar de frente para todos. — O
diretor tem uma língua solta ao acordar, dentre muitas coisas, comentou como
vocês dois ficavam tensos quando Pendleton estava por perto. Achei suspeito e
mandei investigar.
Alessandra, desistindo de tentar se justificar, me olhou com frieza:
— Diga a verdade, você os investigaria de qualquer forma.
— Sim — dei de ombros. — Meu erro foi não ter feito isso antes de
viajar para a França. Agora me corrijam se eu estiver errada: Pendleton deve
dinheiro e convenceu vocês dois a participarem de um pequeno esquema, em
troca, ele conseguiria alavancar as suas carreiras ainda mais.
A campainha tocou, me assustando um pouco com o sino alto. Olhei para
Lúcia, ela balançou a cabeça para os lados discretamente, negando. Não era o
momento de nenhuma entrada triunfal.
Ainda.
Dante abriu a porta, e Marcos — o segurança/capanga de bandido —
entrou arrastando um suado Pendleton pelo colarinho de seu terno chique,
apertado demais para o corpo ligeiramente roliço. Levantei a sobrancelha diante
da cena.
— Meu patrão está cansado desse esquema sem fim de vocês — ele
empurrou o empresário para o meio da sala, fazendo-o se estatelar no chão. —
Vim resolver de uma vez e encontrei esse rato fugindo pela janela.
Ele colocou uma mão na cintura, afastando um pouco o terno para
revelar de propósito um brilhante revólver bem ao alcance de seus dedos.
— O que seu patrão quer? — eu fui a única com coragem para falar algo.
Os dedos dele roçaram na arma.
— Saber por que não foi pago ainda.
— A culpa foi minha — Dimitri se levantou, ficando na minha frente e
quase me impedindo de ver o homem armado. — Em uma festa idiota,
Alessandra bebeu demais e contou sobre a fortuna da família de Cinthia.
Pendleton teve a ideia de chantageá-la, e Alê deu todas as informações que ele
precisava para fazer isso. O plano era bem simples: atraí-la para a nossa
armadilha e filmar você transando com a gente. Pendleton te chantagearia: ou
você dava dinheiro, ou o vídeo de sexo vazaria na internet. Nós supostamente
estaríamos em um cruzeiro logo pela manhã, uma viagem que você nunca faria,
deixando-a sozinha em Cannes.
Tudo foi fingimento desde o começo, a arrogância de Dimitri, a
facilidade com que Pendleton aceitou a ausência dele no Festival de cinema, a
revolta de Dante ao nos encontrar na cama e a forma como Alê disse que eram
apenas amigos, ficando tranquila depois de eu ter transado com alguém que ela
claramente tinha interesse.
— Você não explicou como foi culpa sua — Marcos perguntou.
Dimitri olhou por cima do ombro para mim e voltou a encarar o capanga.
— Eu destruí a filmagem. Acordei quando você estava no chuveiro e
permaneci de olhos fechados. À luz do dia, eu não conseguia te encarar. Depois
que você saiu, me levantei e vi uma muda de flores na cabeceira da cama com as
instruções rabiscadas em um papel timbrado da sua empresa. E te vi como
pessoa, não a “megera fria e calculista que merecia isso e muito mais” como
Alessandra havia dito.
Olhei para minha ex-amiga, e ela deu de ombros. Estiquei o dedo do
meio em um gesto bastante imaturo, mas eu não queria interromper o discurso de
Dimitri a xingando.
— Peguei o cartão de memória extra e o troquei pelo que estava dentro
da câmera escondida, com a gravação. Fingi que houve um problema na
filmagem, Dante tentou te convencer a fazer de novo, mas você não quis. Então
eu fui para Paris, prometendo filmar lá.
A viagem para Paris, os momentos que passamos lá... Tudo maculado.
Estragado, manchado, jogado na lama…
Talvez existisse algum equilíbrio cósmico e uma pessoa bem-sucedida
nos negócios não poderia ter sorte no amor também.
— Já ouvi o bastante! — eu o interrompi e olhei para Marcos por cima
do ombro de Dimitri. — O que o seu patrão acha de tudo isso?
Marcos me encarou com um sorriso que parecia ser reconfortante, porém
era sinistro. Ele deveria ser ator, foi tão convincente como o gentil motorista no
aeroporto. Sua expressão amedrontadora aumentou quando ele respondeu:
— Me diga você, chefe.
O último trabalho de Rodrigues foi entrar em contato com o agiota.
Juntos, fizemos um acordo. Alessandra tinha razão ao falar sobre a minha
fortuna, mas ela esqueceu que eu seria capaz de tudo para proteger minha
empresa.
O dinheiro era capaz de mover o mundo, até “alugar” um capanga para
aquela noite. Eu o trouxera escondido no banco traseiro do meu carro.
Pendleton se levantou, olhando de mim para Marcos com assombro.
Expressão espelhada na feição de quase todos. Lúcia abriu a bolsa enorme em
seu colo, retirando a pasta com a papelada.
— Teve um detalhe que Alessandra esqueceu de avisar: não se deve
brincar comigo — aceitei os documentos de Lúcia. — Pendleton, estou sob
proteção e você não vai me chantagear. Aliás — virei-me para todos — qualquer
um de vocês, se pensarem em fazer qualquer mal a mim ou a alguém ligado a
mim e à minha empresa, vai lidar com Marcos.
Alessandra se escondeu atrás de Dante, segurando em seu braço com
medo. O ator se afastou do seu toque. Pendleton cruzou os braços:
— E o que vocês pretendem fazer comigo? Me matar?
Eu ri. Queria estar sentada em um banco alto na penumbra de um bar,
com um Martini na mão e um vestido vermelho, parecendo uma mafiosa, não em
pé em uma sala bem iluminada, com dois sofás e uma tela plana de sessenta
polegadas ligada em um ridículo vídeo de lareira crepitante.
— Sou uma mulher de negócios, Pendleton, e quero expandir. Preciso
dos seus clientes, contatos e parcerias. Como estou me sentindo caridosa, apesar
de tudo que tentou fazer a mim, eu pago sua dívida — estendi para ele o contrato
detalhado que os meus advogados prepararam com muito cuidado e atenção. —
Se você se aposentar e nunca mais se aproximar de mim ou da minha família,
principalmente da minha mãe.
Ele não tocou no papel, olhando-me com a sobrancelha levantada e com
resquícios de soberba.
— Ou? — foi tudo que disse.
Marcos se adiantou, colocando a mão na coronha da arma.
— Ou... — eu respondi. — Marcos te levará para um passeio muito
interessante, porém nada agradável, e você terá que lidar com o patrão
verdadeiro dele. Sem minha ajuda.
Pendleton pegou os papéis com ódio e se sentou no outro sofá. Eu não
sentia nenhum pingo de pena dele. Além de armar para mim, estava aqui hoje,
provavelmente para assistir escondido o desenrolar da quente noite de sexo e
garantir que a filmagem fosse feita.
— E quanto a nós? — Dante perguntou com raiva contida. — Planejou
algo especial também?
Eu o presenteei com o meu melhor sorriso lupino.
— Na verdade, sim. Eu pensei em várias alternativas para os três, uma
forma de puni-los, talvez até negociar seus contratos para uma agência pequena
e estagnada. Porém, eu estaria punindo a mim ao abrir mão de três artistas no
auge de suas carreiras — Lúcia me admirava com certo ar de orgulho. Eu me
sentia assim também. — Vocês vão trabalhar dobrado para recuperar o meu
dinheiro investido hoje. Dimitri e Dante, seus péssimos contratos serão mantidos
daquele jeito. Alessandra, o seu foi revisto, estava muito vantajoso,
desproporcional aos outros.
Segui um dos ditados favoritos do meu pai: “mantenha os amigos perto e
os inimigos mais perto ainda. De preferência, em coleiras bem apertadas”. Esse
último era um acréscimo que ele gostava de fazer.
Dimitri permaneceu calado, Dante e Alê gritaram um não de indignação,
exigindo serem liberados. Podiam fazer a birra que quisessem, eu tinha a
assinatura deles no papel, testemunhas sobre os seus esquemas, além das provas
conseguidas por Rodrigues.
A vantagem era minha.
— Assim como Pendleton, vocês têm uma escolha, mas podem ter
certeza que a alternativa será muito pior — deixei a ameaça pairando no ar.
Dante se aproximou de mim, gritando:
— Isso não ficará assim!
Marcos se adiantou, mas ele estava longe. Dimitri foi mais rápido,
puxando Dante pela camisa.
— Não se aproxime dela, seu idiota! — ele empurrou o colega.
Dante o encarou, seus olhos estreitos em raiva.
— Agora é o defensor dela, não é? — ele bateu palmas com escárnio. —
Parabéns, muito esperto. Sempre te achei um paspalho, mas vejo que te
subestimei. Ficou do lado vencedor, se fingindo de herói e provavelmente
conseguirá fodê-la até cansar.
O soco certeiro em seu nariz era tanto devido quanto esperado. Dante
caiu no chão, aos pés de Dimitri, com sangue escorrendo de suas narinas.
Alessandra correu para ajudá-lo.
— Vocês são uns monstros! — ela esbravejou.
— Monstros? — Lúcia interviu e apontou para mim. — Conheço essa
mulher há mais de uma década, eu não tinha um centavo no bolso e comecei a
trabalhar como modelo para ajudar em casa. O que ela fez? Me ensinou todos os
truques que sabia, como andar e posar direito. Por causa dela, minha família saiu
da lama e eu pude fazer até uma faculdade!
Alessandra a encarou com certo desprezo, a top model havia nascido em
berço de ouro, ainda que de pais somente ricos, não milionários como os meus.
Ao contrário de Lúcia, ela tivera condições de fazer diversos cursos antes de
entrar na carreira de modelo. Tornamo-nos amiga porque Alê era a alma da festa,
impulsiva e divertida, não tinha como não ficar alegre ao lado dela.
Até ela crescer e virar aquela outra pessoa que eu não reconhecia.
— E aí — Alessandra falou com desprezo. — Você largou sua carreira
para segui-la como um cachorrinho.
Lúcia balançou a cabeça para os lados, ainda descrente com a face
verdadeira da garota que fora nossa companheira por tantos anos.
— A beleza não dura para sempre, Alessandra — ela disse, e a outra
retrucou:
— Para isso existe plástica e casar com homem rico.
— Chega! — Pendleton se levantou e empurrou o contrato em minhas
mãos. — Eu sou amigo de sua mãe desde que você era uma menina, não fica
com peso na consciência por me jogar na sarjeta?
Peso na consciência por ele? Não ficava. Ele usou a influência da minha
mãe todos esses anos em favor próprio, além de tentar me chantagear, apesar da
amizade com a família. Além disso, Pendleton tinha dois ou três imóveis,
poderia vender e montar outro negócio.
Aliás, esta teria sido a minha primeira opção, vender meus bens para
quitar a dívida em vez de fazer armadilhas e chantagens.
Retirei uma nota de cem reais deixada no bolso traseiro da calça jeans de
propósito:
— Aqui, para você não achar que eu sou ruim. É o troco que sobrou
depois de pagar sua dívida.
Ele olhou para a nota com asco. Ódio fervilhava em seu rosto, deixando-
o mais enrugado do que era. De braços esticados para baixo e punhos cerrados
rente ao corpo, ele queria explodir, porém a presença sólida de Marcos ainda
com a mão na coronha da arma, ao meu lado, o impediu de dizer algum
impropério.
— Verei todos vocês no inferno — ele falou e saiu a passos duros,
batendo a porta.
Entreguei os documentos para Lúcia, que verificou a assinatura e
também assinou como testemunha. Dante, já em pé, estancava o sangramento do
seu nariz com a camisa. Alessandra ficava rondando ele como uma cadelinha
pedindo atenção, enquanto Dimitri permanecia entre nós dois, com a expressão
séria e os braços cruzados.
— Saiam da minha casa, agora — Dante ordenou sem necessidade, eu já
tinha cumprido o meu propósito ali. Quando começamos a sair e Alessandra
permaneceu ao seu lado, ele se afastou dela e apontou para a porta, aos berros:
— Você também, porra!
Antes de passar pela porta, olhei para trás a tempo de ver a mágoa nos
olhos chorosos de Alessandra e senti pena. Ela não foi movida apenas pela
ambição. Entretanto, saí sem falar nada. Um amor não-correspondido não era
uma desculpa plausível para trair uma amizade de anos.
Na calçada, destravei o carro para Lúcia e Marcos entrarem. Antes que
eu pudesse fazer o mesmo, Dimitri se colocou no meu caminho.
— Não fale nada — eu o alertei. — Não preciso de suas explicações ou
motivos.
Ainda não me sentia preparada para confrontar Dimitri, principalmente
depois de ter certeza de que ele foi a razão para não terem conseguido me
chantagear.
Porém, deveria ter me alertado, passamos cinco dias em Paris e ele nunca
disse nada. Se não fosse pelo Rodrigues, eu continuaria na ignorância e
terminaria caindo em alguma armadilha.
Ele selou os lábios, se segurando para não falar o que tanto queria dizer.
— Outro dia, então — Dimitri disse, saindo do meu caminho.
E da minha vida.


Capítulo 16 — Discursos

A vida é uma caixinha de surpresas, e por mais que eu tente manter o


perfeito controle, o destino vem e bagunça tudo. Assumir a empresa de
Pendleton não foi fácil, não era à toa que ela tinha precisado recorrer a agiotas
para quitar as dívidas, apesar de ter um ótimo lucro com seus agenciados.
Além de viciado em jogos, ele era extremamente desorganizado, tive que
contratar alguns contadores extras para colocar as finanças em ordem de forma
rápida. Meus advogados também precisaram de reforço para rever cada contrato.
Teria sido mais fácil revender a empresa dele do que incorporar à minha,
porém eu precisava fazer isso, vê-la prosperar e alcançar patamares apenas
sonhados por Pendleton. Era uma questão de honra.
Dimitri me procurou algumas vezes, porém os advogados ou Lúcia
lidaram com ele. Como agradecimento por ter me protegido em Cannes, seu
contrato foi revisto também, e ele recebeu um mais justo, como os outros
agenciados.
Alessandra e Dante tiveram a ameaça mantida e ficariam com os acordos
bostas até que eu recuperasse o valor investido.
Durante os quatro meses e meio seguintes ao fatídico evento, passei todo
o tempo trancada no escritório, e até minha mãe passou a me ajudar, contudo,
durante a maior parte do tempo, apenas reclamava do trabalho, mais do que
realmente trabalhava. Ela ficou muito surpresa com a aposentadoria de
Pendleton e grata por eu ter superado minha “birra” com ele e o ajudado,
comprando sua empresa.
Mamãe acreditava em tudo que diziam...
— Come alguma coisa — Lúcia colocou uma salada de frutas em cima
da mesa. — Você precisa se alimentar direito.
Comi sem pestanejar, já tivemos essa discussão diversas vezes, eu dizia
que estava em um regime alimentar controlado por nutricionista, e ela ainda
tentava me empurrar mais comida.
Parei na metade da enorme tigela:
— Se eu comer mais, vou estourar.
— Vai estourar de qualquer forma — ela começou a rir. — E aí, está
preparada? Eles estarão lá.
Era a inauguração oficial da expansão da nova ML Agência e Produção,
um evento de gala em um clube fechado, exclusivo para contratados e pessoas
influentes do ramo.
Naquela noite, seriam reveladas mais do que as novidades na empresa.
— Eu fiz besteira, não deveria ter esperado tanto tempo para falar com
ele — apoiei a testa entre as mãos, cansada. — Finjo que não penso em Dimitri,
nas coisas que fez e disse, mas é uma farsa. Ele está em minha mente todos os
dias.
Lúcia deu a volta na mesa e ficou ao meu lado, me dando um abraço
reconfortante. Fiquei em pé e me joguei em seus braços, coloquei minha cabeça
em seu ombro e chorei. Não era muito comum que eu vertesse lágrimas, porém
minhas emoções estiveram bagunçadas nos últimos meses.
Eu era uma confusão de sentimentos.
Minha atenção se voltou para o enorme vaso com uma flor de íris
exatamente igual à muda que eu tinha abandonado no quarto de hotel em
Cannes: branca com pétalas manchadas de lilás e amarelo no centro. Dimitri
tinha me enviado no dia anterior com um bilhete:
“O que você cultiva com carinho cresce e floresce, mesmo em solo
estranho.”
Não sabia o que ele pretendia cultivar comigo, mas um solo irrigado com
mentiras poderia encharcar e apodrecer qualquer relacionamento.
— Pode fingir o quanto quiser, mas a mim você não engana — Lúcia,
percebendo para onde meu olhar se dirigia, segurou meu rosto e secou as
lágrimas em minha face com a ponta dos dedos. — Aquela semana na França te
mudou, Cinthia. E é óbvio que significou mais do que você deixa transparecer.
— O que eu faço? — perguntei.
Ela sorriu e beijou minhas bochechas, onde ainda estava úmido:
— Se vai falar com ele, tem que estar arrasando.
Isso eu já pretendia fazer de qualquer forma e tinha escolhido o vestido
ideal, contudo sabia que não era suficiente para esconder todos os meus
segredos:
— Ele vai descobrir.
— Está na hora de você deixar de se esconder.
Respirei fundo e sorri. Eu podia fazer isso, já tinha enfrentado coisa pior.





O espelho refletia uma mulher de maquiagem fatal e aparência
determinada. Em um vestido preto e longo, soltinho e de corte reto, eu me sentia
bem diferente do que costumava usar.
— Você está linda, não se preocupe — Lúcia me entregou o xale de seda,
que coloquei preso aos meus braços, na parte interna dos cotovelos.
O tecido passava pelas costas, na altura da cintura, e cada ponta caída na
frente cobria boa parte do meu corpo. Tentei não pensar na echarpe preta de
renda que mantinha escondida no fundo da gaveta.
Suspirei, concordando com ela. Eu estava linda e sabia disso, apenas
precisava equilibrar a bagunça hormonal que eu me tornara. Afinal, passei meses
dividida entre trabalhar, vigiar o trio vigarista — mais conhecido como
Pendleton, Dante e Alessandra — e debater se devia ou não procurar Dimitri em
vez de acompanhar sua carreira e vida pessoal à distância.
Era vergonhoso, mas eu havia me tornado uma perseguidora. Pelo
menos, não tinha ultrapassado o limite de colocar um rastreador no celular dele e
dos outros. Até pensei em fazer isso, principalmente com Pendleton, para saber
com antecedência caso ele se aproximasse de mim. Desisti, entretanto, não me
tornaria cárcere da paranoia, apenas viveria minha vida com seguranças ao lado,
como sempre fiz desde pequena.
— Senhoritas? — a cerimonialista abriu a porta, espiando dentro do
camarim onde nos encontrávamos. — Está na hora, e pela lista de convidados, os
mais importantes já chegaram.
— Pode dizer à mamãe para começar, obrigada — agradeci e segurei a
mão de Lúcia.
Estava na hora.
Aguardamos atrás da cortina vermelha que isolava o salão de festas dos
bastidores. Mamãe, com sua delicada voz, anunciava no microfone que, a partir
daquela data, estaria se afastando de vez da ML Agências e Produções, deixando
o destino da empresa apenas em minhas mãos.
Já era assim há muito tempo e bastou uma semana trabalhando no meu
lugar para minha mãe perceber que não tinha nascido para ser uma burocrata.
Segundo ela, eu só conseguia porque tinha herdado a “veia empresarial” do meu
querido pai.
Papai voltou ao Brasil apenas para me prestigiar naquela festa e,
provavelmente, transar com minha mãe pelos velhos tempos antes voltar para os
Estados Unidos. Ainda bem que eu tinha meu próprio apartamento, eles
costumavam ser bem barulhentos. Era quase como estar dentro do quarto com
eles, e eu já tinha esgotado minha cota de sexo com mais de duas pessoas
presentes.
— É com muito orgulho e prazer — mamãe falou ao microfone — que
eu convido a minha amada filha, Cinthia Lins Grimaldi, ao palco.
As cortinas vermelhas se abriram, e sob as luzes dos holofotes e de
aplausos dos convidados, caminhei com determinação até o estande de granito
preto, que mais parecia uma versão moderna de um púlpito de igreja, onde
minha mãe estava.
Ela me deu um beijo no rosto e desceu as escadas, juntando-se ao
público. Posicionei-me atrás do púlpito e, com o microfone em mãos, observei
alguns rostos conhecidos antes de iniciar meu discurso:
— Boa noite, antes de mais nada, eu gostaria de agradecer à minha mãe e
ao meu pai por sempre me apoiarem e acreditarem em mim. Quem eu sou e o
que me tornei é um reflexo da criação de vocês — sorri para os dois, minha
infância não foi tradicional, porém eu não a trocaria por nada. — A moda e as
passarelas fizeram parte da minha vida desde que nasci, talvez até antes. É o que
sou e sempre fui! Pareceu-me natural assumir a empresa quando minha mãe, a
grande Martina Lins, cansou da burocracia de um escritório. Hoje, tantos anos
depois, lamento dizer que ela não faz mais parte da nossa equipe.
Fiz uma pausa dramática, colocando a mão no peito. Mamãe passou vinte
porcento das ações dela para mim, tornando-me sócia majoritária, além de CEO.
Eu poderia decidir tudo sozinha, o que era perfeito. A partir daquele momento,
mamãe jamais poderia me influenciar a aceitar outra proposta tenebrosa como a
de Pendleton. Continuei com a voz firme:
— E para honrar a minha mãe, que tanto me proveu durante toda a minha
vida, anuncio a expansão da ML Agência e Produções. Nós incorporarmos os
clientes do famoso empresário Louis Pendleton, que infelizmente não pode
comparecer, está muito ocupado curtindo a aposentadoria na cidade onde nasceu,
em Londres — falei em tom de brincadeira, enfatizando as palavras certas para
as pessoas sorrirem. Alguns até sussurram que queriam estar “ocupados” assim.
Ah, se eles soubessem da verdade! Pendleton fugiu do Brasil porque
devia a mais de um agiota, eu quitei apenas a dívida maior e com o mais
perigoso deles. Porém, ele tinha outras pendências que eu só descobri depois,
quando Rodrigues continuou a monitorá-lo para ter certeza que não causaria
mais problemas para mim.
— Estamos agenciando modelos e atores a nível nacional e internacional
— continuei meu discurso enquanto garçons serviam champanhe em delicadas
taças de cristal aos convidados. — Dou as boas-vindas aos novos contratados, e
tenham certeza que a agência procurará o melhor para a carreira de vocês.
Saibam que nossa expansão continuará, pois o Brasil está se tornando pequeno
para nós. E para isto, preciso de pessoas competentes e de confiança ao meu
lado. Lúcia Avelar, por favor, venha ao palco.
Olhei para trás, sabia que Lúcia estava escondida pela cortina, esperando
por mim, caso eu sentisse alguma coisa ou precisasse dela. Esta parte era
surpresa para minha amiga, apenas a organizadora do evento sabia.
Quando a cortina foi aberta novamente, como esperado, Lúcia estava lá,
estática. Deslumbrante em seu vestido prata, apesar dos olhos esbugalhados em
choque. Logo ela se recuperou e andou até mim com a graça de ex-modelo. Seus
lábios podiam sorrir, mas seu olhar era questionador, eu quase podia ouvir seus
pensamentos: “o que você está aprontando e por que não me disse nada?”
Segurei sua mão e voltei a falar:
— Todos aqui a conhecem como ex-top model e minha gerente, ou
melhor, o meu braço direito, aquela que resolve os problemas. Muito mais do
que amiga, você é uma das funcionárias mais competentes e dedicadas que
tenho. Todos os dias, você dá o seu sangue e suor pela empresa, por isto, será
promovida a COO da ML Agência e Produção — o salão de festas irrompeu em
[1]

aplausos. A cerimonialista nos entregou duas taças de champanhe, e eu levantei a


minha: — Um brinde ao futuro!
Todos levantaram a suas respectivas taças e beberam um gole. Lúcia
apertava minha mão e tremia um pouco. Ela agradeceu ao microfone e nós
saímos do palco. Mal a cortina de veludo vermelho se fechou atrás de nós, Lúcia
estava me abraçando entre lágrimas.
— Você... Louca... Não disse — ela balbuciava frases entre soluços, e eu
só conseguia compreender palavras soltas. — Morrer... Susto... Consigo?
Sequei suas lágrimas com a ponta dos polegares, tentando acalmá-la e
fazê-la beber um pouco da água oferecida por uma garçonete:
— Você sempre soube que eu sou louca. Não disse porque era surpresa,
ninguém vai morrer de susto e tenho certeza que é completamente capaz de
assumir o cargo — respondi seus comentários, ou o que eu entendi deles, e a
abracei mais uma vez. — Eu acredito em você, Lúcia.
Um sorriso sincero brotou em seus lábios, e seu rosto se iluminou.
— Obrigada, Cinthia — ela disse, com a voz ainda chorosa. — Mas você
está enganada, não é pela empresa que dou o meu sangue e suor, é por você. O
mundo deveria saber que você não é a mulher gananciosa e intransigente com
um coração de pedra que finge ser. Pelo menos, não é assim o tempo todo.
Ela deu de ombros, e eu gargalhei, sabendo que em alguma parte do seu
discurso, havia um elogio sincero.
— Não me importo em ser ambiciosa, fria, intransigente, calculista e
maquiavélica. Podem me chamar do que quiserem, não dá para ser CEO de uma
empresa de alcance internacional, em uma área na qual o produto é a pessoa, são
os nossos modelos, sendo boazinha. E você, como a segunda no comando,
precisará ser assim também — tratei de alertá-la.
Estar à frente de uma empresa era maravilhoso, mas tinha seus pontos
negativos. Perder a pureza da alma era um deles.
— Sei disso — ela entortou a boca, mas terminou sorrindo. — Eu vou
retocar a maquiagem e você vá lá fora e procure alguém que merece um pouco
da bondade escondida em tanta arrogância.
Coloquei as duas mãos na cintura, afastando sem querer o xale da minha
frente, e falei, rindo:
— Ora, já está assim? Um segundo atrás eu era maravilhosa!
— Você pode até ser maravilhosa, mas eu não disse isso — ela me olhou
dos pés à cabeça e revirou os olhos. — Deixe de enrolar e vá falar com os
convidados! Eu vou retocar a maquiagem.
Entrei no salão decorado em dourado e marfim. Pessoas elegantes nos
mais variados estilos, dos mais joviais e despojados ao esporte-fino,
conversavam ao redor de mesas redondas cobertas por toalhas de linho branco.
Um enorme lustre de cristal pendia do teto, logo acima da pista de dança.
O palco estava ocupado por uma banda tocando músicas ao vivo. Com
um sorriso no rosto, cumprimentei os convidados. Sempre educada e gentil,
estendia a mão e conversava olho no olho com cada um. A fotógrafa oficial do
evento, uma loira de gentis olhos castanhos, sempre nos interrompia, solicitando
nossa atenção para tirar fotos de cada convidado comigo.
— Filhinha — papai me abraçou, falando em seu português enrolado,
com forte sotaque americano. — Estou tão orgulhoso do meu bebê!
Revirei os olhos, apenas meu pai me tratava daquela forma. Eu o abracei
de volta, ainda preocupada com sua magreza exagerada. Os anos estavam
alcançando papai, e os grisalhos em seus cabelos que outrora o deixavam
charmoso, agora cobriam sua cabeça totalmente.
— Obrigada, papai — agradeci antes de posarmos para uma foto.
Ele olhou para os lados e levantou uma sobrancelha.
— O responsável por esta confusão já chegou?
Ao contrário da mamãe, ele não acreditou na bondade do meu coração ao
incorporar uma empresa com tantos problemas. Terminei contando a verdade
sobre a chantagem, eu ainda duvidava que papai não infernizaria a vida de
Pendleton de algum modo.
— Não o vi — respondi, pois eu sabia de quem ele estava falando. A
“confusão” que ele se referia era a minha bagunça emocional.
— Quero ter uma conversa séria com ele — abri a boca para protestar, e
ele levantou a mão, me interrompendo. — Você sempre foi tão autossuficiente,
são raras as oportunidades que eu tenho de fazer o papel de pai. Deixe-me ter o
meu momento!
Beijei o seu rosto. Desde que meus pais se separaram e ele foi embora, eu
sentia falta de nossas conversas no fim de tarde e de seus ensinamentos.
— Ok, papai — olhei para a mamãe, ela conversava com duas estilistas
famosas. — Vai falar com ela?
— Pretendo mais do que isso, estou velho, mas não estou morto — seu
sorriso imenso era contagiante, e eu me peguei rindo do olhar conquistador que
fez. Deixei-o com suas maquinações de Don Juan e voltei a circular pelo salão.
Quase uma hora se passou, e eu enfim aceitei a primeira bebida da noite:
uma taça de água oferecida pelo garçom. Minha boca estava seca de ansiedade,
não tinha encontrado ainda aquele que tanto queria ver. Não tive tanta sorte com
os que eu não queria: Dante dançava com uma modelo alta e siliconada,
enquanto Alessandra o observava com fúria contida. Ambos estavam ali por
obrigação.
Lúcia, recomposta em uma maquiagem impecável e tranquila depois da
promoção inesperada, entrou no salão, recebendo os parabéns dos colegas. Eu
me distraí, observando-a por um segundo, quando uma mão quente se
posicionou na base da minha coluna. Pela reação imediata de meu corpo, eu
sabia quem era sem nem ao menos me virar.
— Parabéns — a voz grave disse baixo no meu ouvido.
Virei de frente para ele. Por causa do personagem que ele faria em seu
próximo filme, Dimitri estava ligeiramente diferente da última vez que o vi: os
cabelos um pouco mais compridos e em um tom mais claro, quase como um mel.
Uma barba rente ao rosto e bem cuidada cobria a covinha que às vezes aparecia
quando ele sorria.
Os olhos verdes, sempre presentes em meus mais doces sonhos,
continuavam cristalinos. Vestido todo de preto, desde o terno até a gravata e a
camisa, parecia também um pouco mais forte.
— Obrigada — eu disse, incapaz de desviar o olhar. — A gente precisa
conversar.
Ele sorriu, as feições repletas de um prazer genuíno:
— Estava ansioso para ouvir essas palavras de sua boca.
— Senhorita Grimaldi — a fotógrafa me chamou. — Uma pose para a
foto, por favor.
Voltamo-nos para a mulher, nossos corpos quase se tocando. Eu
precisava conversar com ele em um lugar privativo naquele momento, ou
perderia a coragem depois.
— Aguarde dez minutos e me siga — eu disse, indo em direção à Lúcia e
pedindo que ela segurasse a festa por meia hora.
No camarim, relaxei um pouco os braços e ombros tensos antes de
segurar o xale no lugar correto de novo. Exatos dez minutos depois, uma batida
soou na porta. Dimitri entrou, eu apontei para a maçaneta e ele virou a chave,
trancando-nos no pequeno ambiente fechado.
Permanecemos em silêncio, um encarando o outro e sentindo a tensão
preencher o espaço entre nós. Havia em mim uma necessidade avassaladora de
encurtar a distância e me jogar em seus braços. Aquela ânsia de tê-lo me era
estranha, como se ele tivesse me enfeitiçado em Paris.
— Apenas me escute, por favor — Dimitri se aproximou, mas parou a
alguns passos de mim. — Eu e Dante começamos nossa carreira juntos, em uma
escola de teatro, mas ele tinha um talento nato, quase refinado. Sempre muito
carismático, Dante conquistava as pessoas dentro e fora do palco. O meu talento,
por outro lado, era mais bruto. Por algum motivo, nos tornamos amigos e Dante
me ajudou muito. O ator que sou hoje, devo a ele.
— Já tinha lido algo sobre o teatro nas revistas, mas não sabia que era
assim — disse, curiosa com sua história.
— O contrato com Pendleton nos trouxe o sucesso — ele balançou a
cabeça e encarou o chão antes de me olhar novamente. — Com a fama, vieram
as festas, e com estas, as mulheres, o álcool e as drogas. Não foi bonito, quanto
mais famosos, mais acesso a drogas nós tínhamos. Um dia, Dante visitou os pais
completamente chapado, a mãe dele ficou tão transtornada, que teve um pré-
infarto.
Não consegui segurar o suspiro de assombro que saiu por meus lábios.
Dimitri continuou:
— Foi um choque de realidade para nós dois, imaginei isso acontecendo
com minha mãe e resolvemos parar com a bebida e as drogas. Foi difícil, mas eu
consegui. Achei que Dante também tinha conseguido, porém me enganei.
Estávamos viajando para um evento, quando ele bateu na porta do meu quarto de
hotel, transtornado. No alto das drogas, Dante havia destruído alguns móveis de
seu quarto e pediu para que eu assumisse a culpa do vandalismo.
Cansada de ficar em pé, encostei-me na bancada de maquiagem:
— E você assumiu.
Não foi uma pergunta, era uma afirmação. Eu tinha visto a reportagem na
seção de entretenimento do jornal.
— Eu devia a ele — Dimitri deu de ombros. — Segundo Pendleton, ser
bad boy combinava com meu estilo caladão. Também não queria me culpar caso
a mãe dele tivesse outro infarto, ela é uma boa pessoa.
Como ele poderia se culpar pelo erro de outros?
— Por isso você fingiu se internar na clínica de reabilitação no lugar
dele... — conjecturei em voz alta.
Dimitri sorriu.
— Descobriu isso também, hein? Não estou surpreso — ele deu um
passo à frente, mas parou, desistindo de se aproximar. — Eu errei muito com
você. Quando estávamos em Paris, queria te contar, porém tinha medo que você
me odiasse. Nossos dias foram tão perfeitos, acreditei que não voltaria a fazer
sexo com Dante e me convenci que estava mais segura na ignorância. Achei que
Pendleton procuraria outra pessoa para chantagear, e eu fiquei na Rússia,
esperando um momento seguro para voltar. Sem aquele Marcos nos rondando.
— Você voltou, no entanto.
Lembrei-me de quando ele me ligou, insistindo muito para que eu não
fosse à casa de Dante.
— Por você, eu voltei — seus olhos verdes queimavam como brasa. —
Todos estavam com raiva de mim, mas os convenci que queria uma segunda
chance e ajudar a te filmar. O meu erro, Cinthia, foi achar que você precisava da
minha proteção. Dizem que a ignorância é uma benção, entretanto isso só vale
para indefesos e covardes. Pessoas como você pegam o conhecimento e usam a
seu favor. Você chegou lá, linda e poderosa, a perfeita loba em pele de cordeiro.
Naquela noite, soube que eu era um idiota e que tinha te perdido.
Sua boca se cerrou em uma linha fina, ele havia terminado de falar. Sim,
eu usava o conhecimento e gostava de manipulá-lo a meu favor. Já tinha
perdoado Dimitri, se não fosse por ele, Pendleton teria vencido. Depois de ouvir
como tudo aconteceu, nem a mágoa restava em mim.
Com o silêncio imperando dentro do camarim, pude ouvir o som que
vinha do salão e a música que a banda estava tocando. Era perfeita demais para
ser coincidência, deveria ter o dedo de Lúcia no meio, provavelmente as
anteriores seguiram o mesmo tema e eu não prestara atenção:

“Não vejo mais você faz tanto tempo
Que vontade que eu sinto
De olhar em seus olhos, ganhar seus abraços
É verdade, eu não minto”

Dimitri se atentou à letra de Você não me ensinou a te esquecer, do
Fernando Mendes, ao mesmo tempo que eu. Ele finalmente se aproximou, sua
grande mão indo para o meu rosto. O olhar fixo ao meu, um desejo contido
formando uma bolha prestes a estourar ao nosso redor. Se eu era o ímã, ele era o
ferro, incapaz de se afastar.

“Você bem que podia perdoar
E só mais uma vez me aceitar
Prometo agora vou fazer por onde nunca mais perdê-la”

— Não se iluda, Dimitri — uma lágrima deslizou pelo meu rosto, e ele
franziu o cenho ao interrompê-la com o polegar. Mantive a voz firme, no
entanto: — Posso até ser uma loba voraz, mas estou longe de ser perfeita.
Ninguém acumula a quantidade de dinheiro que tenho, e não estou me referindo
ao herdado, sem cometer alguns erros no caminho. Eu tenho mantido um
segredo de você, de quase todo mundo, na verdade.

“Agora, que faço eu da vida sem você?
Você não me ensinou a te esquecer
Você só me ensinou a te querer
E te querendo eu vou tentando te encontrar”

Dimitri se inclinou, seu nariz no meu pescoço, a barba arranhando minha
pele e beijos salpicados atrás da minha orelha. Eu me deixei levar, a música
embalando o movimento de suas mãos pelos meus ombros e braços. Um teste...
Aquilo era um teste para ver quão receptiva a ele eu estava.
E a resposta era: muito.
Envolvi os braços ao redor do seu pescoço e o trouxe para mais perto,
juntando sua boca com a minha em um beijo cheio de saudades e desespero. Um
encontro cataclísmico de línguas e necessidade.
Agarrei seus cabelos, mantendo-o ali, firme, preso, real. As mãos de
Dimitri desceram pelas minhas costas e quando alcançou a base da minha
coluna, ele me puxou, colando meu corpo ao seu.
Foi aí que Dimitri percebeu o meu segredo e tudo parou.


Capítulo 17 — Surpresas

No mundo da moda, aprendi diversos truques e um deles é que você pode


manipular a percepção das pessoas. Ao desviar o foco delas, o óbvio passa a não
ser notado: uma roupa preta de corte reto e decote de princesa, ideal para alongar
a silhueta, um belo xale pendurado em meus braços como acessório e cobrindo a
parte anterior do corpo, a maquiagem certa, um tom mais escuro das luzes,
iluminando o ambiente principalmente com candelabros e castiçais, e até um
móvel de granito no palco, capaz de esconder mais da metade do meu corpo.
Cada detalhe pensado com cuidado.
No camarim, entretanto, sob a luz de LED e sem o xale, com o seu corpo
encostado ao meu, Dimitri sabia. Ele se afastou, e seus olhos se arregalaram ao
observar o meu abdômen dilatado.
— De quem é? — foi seu primeiro questionamento.
Tentei não me ofender, era uma pergunta justa. Além de estarmos
separados há muitos meses, minha barriga era pequena. Com meu físico magro e
alto, a dieta da nutricionista e os exercícios para gestantes, eu parecia ter três,
não seis meses.
Apesar disso, cruzei os braços.
— Seu.
— Impossível! — ele passou a mão pelos cabelos. — A última vez que
transamos foi há seis meses! Se você está grávida de seis meses, tem que comer
urgentemente, nosso bebê está passando fome!
Meu coração pulou uma batida com o “nosso bebê” e a preocupação em
meio ao seu atordoamento. De todos os cenários catastróficos que imaginei para
este momento, aquele não estava tão ruim.
— O bebê está no peso ideal para sua idade gestacional, não se preocupe
— coloquei a mão sobre a barriga. — Eu que não engordei nada além do
necessário.
— Como? — ele perguntou e sentou em uma cadeira, praticamente
desabando nela.
Arrastei outra e me sentei também.
— O que você quer saber? Como escondi por tanto tempo? Estive tão
atolada no trabalho, que não tive vida social, demorei um pouco para descobrir a
gravidez. Nunca fui de enjoar, apenas sentia vertigem e achava que era do
estresse, que, em minha mente, também era o culpado pela falta de menstruação
— ergui os ombros por um momento. — Já tinha acontecido antes, desregular a
menstruação quando estava trabalhando demais. Depois, eu chamei os
advogados e eles redigiram um acordo de confidencialidade, a equipe médica e
meus funcionários assinaram, ninguém podia dizer nada.
Ele escondeu o rosto nas enormes mãos, os cabelos, bagunçados por
nosso breve amasso durante o beijo, caíram para frente. Eu mal podia ouvir sua
voz quando falou:
— Não, quero saber como aconteceu.
Relaxei na cadeira, lembrando-me do tempo que passei pensando no
assunto até descobrir quando poderia ter ocorrido. Qual teria sido o deslize...
— Há um fato curioso sobre métodos anticoncepcionais: eles não são
cem porcento eficazes. Está lá na caixinha, mas a gente nunca acredita que
vamos cair no desvio padrão, não é? — ele ajeitou a postura e passou a me
observar com atenção, eu continuei. — Apesar da pílula ter falhado, ainda havia
a camisinha. Nós usamos quase todas as vezes...
— Menos uma — Dimitri complementou, boquiaberto. — O sexo no
chuveiro em Cannes, depois da piscina. Eu não me preocupei depois que você
comentou sobre a pílula quando a gente estava em Paris...
Dei de ombros, eu também não tinha me preocupado. Logo no início,
assim que recebi o resultado, pensei em diversas alternativas para resolver o meu
“problema”. Eu sabia que não conseguiria, entretanto. Passaria o resto da vida
pensando na criança. Depois de vê-la no monitor da ultrassonografia e de ouvir
seu coração batendo, tive certeza que jamais lhe causaria algum mal.
— Não há com o que você se preocupar, eu sou mais do que capaz de
educar uma criança. Pode sair por esta porta e nunca mais pensar em nós de
novo, sua carreira e o contrato com a agência não serão prejudicados —
consegui falar, apesar das adagas fatiando meu coração. Não queria ninguém
comigo por obrigação. — Talvez meu pai te procure para ter uma conversa, mas
ele só está louco para bancar o paizão.
A palavra paizão deve ter ligado algum botão em Dimitri, pois ele se
levantou imediatamente, como se tivesse levado um choque. Prendi a respiração.
Ele iria embora, e o meu conto de fadas acabaria ali.
Dimitri, ao contrário da minha expectativa, ajoelhou-se aos meus pés,
suas mãos espalmadas na minha barriga, cobrindo-a quase por completo.
— Eu vou ser pai? — ele questionou com voz embargada.
— Sim — sequei as lágrimas que voltaram a cair. Droga de bagunça
emocional! — De uma menininha, mas ainda não escolhi o nome.
— Pode ser Íris, como a flor de Cannes? — ele perguntou, e eu fiquei em
dúvida, Cannes era o nosso primeiro encontro e uma mancha na relação, ao
mesmo tempo. Dimitri continuou a falar. — Foi através de sua preocupação com
aquela indefesa muda de planta que eu percebi que poderia facilmente me
apaixonar por você.
Tendo dito aquilo, eu não podia negar. De fato, queria esse nome nela.
Inclusive, a sonoridade do nome me agradava: Íris Grimaldi Duskin,
nossa filha.
Fiquei de pé e virei de costas. Ainda ajoelhado, Dimitri obedeceu meu
comando silencioso e abriu o zíper do meu vestido, fazendo-o deslizar pelo
corpo e cair no chão, ao redor dos meus pés.
Voltei-me para ele apenas de lingerie, meias sete-oitavos e salto alto.
Dimitri beijou com carinho minha barriga desnuda. Ele me olhou como se me
venerasse:
— Eu já te disse que te amo?
Balancei a cabeça para os lados, negando.
— Tudo bem, eu também nunca falei isso para você — dei de ombros.
— Deixa eu te demonstrar — ele afastou a minha calcinha com a ponta
dos dedos e parou. — Hum... Tem algum risco de machucar o bebê?
Gargalhei da sua expressão, um misto de medo e desespero.
— Não — respondi. — A menos que você pretenda fazer algo muito
bizarro.
O canto de sua boca se levantou e os provocadores dedos de Dimitri
encontraram minha carne macia.
— Deixaremos o bizarro para depois, então — ele piscou um olho e me
atacou com sua língua e mãos.
Segurei-me em seus cabelos, seis meses lidando com hormônios da
gravidez e sem sexo me deixaram um pouco.... necessitada. Não demorou muito
para que eu mordesse os lábios, tentando não gritar.
Ele me chupava sem piedade, um dedo, dois, três, entrando e saindo de
mim. Minhas pernas fraquejavam de prazer, e eu o empurrei para o chão, tirando
suas roupas com a urgência de um faminto desesperado por alívio.
Cavalguei, sentindo-o mais profundo, seus dedos beliscando meus
mamilos sensíveis. Eu rebolava, subindo e descendo, sugando-o por completo
para dentro de mim. Puxei-o pelos cabelos, trazendo Dimitri para um beijo
voraz.
Precisava que acabasse logo, mais de meia hora havia passado, porém
não queria. Fiquei de quatro, com o os braços apoiados na cadeira. Dimitri me
penetrou por trás, tapa na bunda e mordidas no ombro aqueceram nosso
momento. Rápido, intenso e sem interrupções.
Gemidos involuntários escapavam de mim, e Dimitri tapou minha boca.
— Segure firme — ele alertou.
Eu fiz, ele entrava e saía de mim tão rápido, que minha cabeça batia
repetidamente contra o assento macio da cadeira. Eu berrei quando o orgasmo
explosivo me atingiu, agradecendo pela banda ter trocado o repertório para um
rock agitado.
Ofegantes, pelados e exaustos, estávamos no chão, ele apoiado na cadeira
e eu em seu colo. Dimitri fazia círculos na minha barriga, distraidamente.
— Eu te amo — ele beijou meus lábios. — Posso ter percebido quando
vi a flor, mas acho que foi à primeira vista, desde o momento em que te vi, toda
linda e indignada na banheira.
Lembrei-me da raiva que tive dele naquele dia. Indignação era pouco
para simbolizar o que senti.
— Acho que comecei a realmente gostar de você no dia que voltou por
mim lá em Cannes e me apaixonei quando me ajudou na minha pequena crise
em Paris — aconcheguei-me em seus braços. — Eu te amo.
Ficamos em um silêncio agradável, curtindo a pele um do outro.
Toque.
Carinho.
O amor.
E a batida insistente na porta.
— Espero que vocês estejam vestidos e apresentáveis — Lúcia disse
através da porta. — Vocês têm noção do tempo? Estou enrolando o pessoal há
mais de uma hora!
Opa, eu e Dimitri tínhamos a terrível mania de escapar dos eventos
oficiais para transar. Nós nos arrumamos apressadamente, rindo da aparência
desastrosa do meu cabelo. Eu o prendi em uma trança embutida e resgatei o xale
do chão. Não era hora de anunciar ao mundo as novidades.
— Ei — ele falou, colocando o colar no meu pescoço. — Acho que a
gente deveria casar, antes que seu pai me mate para limpar sua honra.
Duvidava muito.
— Ih, ele tá meio atrasado para isso, minha “honra” foi perdida faz
tempo.
Ele me abraçou por trás, encarando-me pelo reflexo do espelho.
— Tem um espaço para mim? — Dimitri beijou meu ombro. — Em sua
vida de CEO, modelo, empreendedora e futura mãe?
No reflexo, observei o casal que formávamos. Seríamos poderosos e
inalcançáveis, um aumentando o lobby do outro.
Formidáveis.
Minha atenção, entretanto, não estava no que poderíamos fazer um pelo
outro.
Estava em sua mão em minha barriga.
Nos meus ombros relaxados contra o seu peito duro.
Em seus olhos, repletos de carinho.
Na nossa filha, ainda por nascer.
Ou no meu coração, que desejava estar ao lado dele.
— Vou verificar minha agenda — pisquei um olho para ele, que sorriu.
De mãos dadas, eu e Dimitri saímos do camarim para enfrentar o
mundo...
Juntos.



Epílogo

Três anos depois



Não me cansava do meu novo escritório. Era moderno e arrojado,
decorado em tons claros. Fiz questão de ter um janelão aqui também, feito por
uma parede inteira de vidro temperado com proteção ultravioleta.
A vista dava para um mar de arranha-céus e poucas construções menores.
Entretanto, ao contrário da minha antiga sala, esta havia algo além. O parque
Griffith com o seu observatório e depois dele, o Hollywood Hills, com o famoso
letreiro.
O downtown de Los Angeles tinha o seu charme.
Antes da nossa filha nascer, eu e Dimitri nos casamos escondido da
mídia, apenas com um grupo seleto de convidados. Para anunciar a nossa união,
fizemos um book fotográfico da gravidez e vendemos algumas dessas fotos junto
com as do casamento para a maior e mais importante revista de entretenimento,
além de uma entrevista exclusiva. Em pouco tempo, nosso nome — com as
informações que queríamos passar — não saía das revistas e canais de fofoca.
Por muitos anos, o trabalho foi minha vida, e eu me dediquei
completamente a isto. Sempre acreditei que um dia bem-sucedido no escritório
era a melhor coisa que poderia acontecer, além de orgasmos casuais.
Como estava enganada!
Mesmo depois da melhor reunião ou da assinatura de um contrato
perfeito e lucrativo, voltar para casa, para os braços de Dimitri e para perto de
nossa filha, era o ápice dos meus dias.
E depois de três anos trabalhando na expansão da ML Agência e
Produções, com a ajuda crucial do meu pai, que adiantou a papelada e compra do
imóvel aqui nos Estados Unidos enquanto eu resolvia a burocracia no Brasil,
abrimos uma segunda unidade em Los Angeles, na Califórnia. Onde eu morava
agora, como CEO de uma agência multinacional.
Estávamos no coração de Hollywood, angariando mais agenciados a cada
dia. Fossem eles desconhecidos com grande potencial ou famosos em busca de
contratos melhores. Eu preferia lucrar menos com cada um e ter um número
grande de clientes satisfeitos do que ser como Pendleton, que sugava seus
poucos agenciados.
Alguns dos nossos modelos, inclusive, decidiram se tornar atores.
Leandro, o que tinha imenso sex appeal e sempre arrasava nas propagandas
televisionadas, foi minha primeira aposta. Hoje, era protagonista da novela
principal de uma das maiores emissoras brasileiras. Fiquei muito satisfeita, ele
foi um dos que mais usei em meus “testes do sofá” e o havia recompensado de
alguma forma.
Dimitri sabia do meu antigo costume de transar com alguns modelos e
não se importava, ele fizera algo parecido com as atrizes figurantes. Nenhum de
nós era santo antes de descobrirmos a verdade: ele era tudo que eu precisava, e
vice-versa.
Pendleton nunca mais entrou no ramo do entretenimento, meu pai
costumava manter o olho nele. Da última vez que foi checado, ele era relações
públicas de uma empresa de telefonia na Inglaterra. Já os contratos de Dante e
Alessandra foram negociados com outra agência, fizemos uma permuta e eu me
livrei de suas negatividades. Continuavam a fazer sucesso, porém não
alcançaram nem um terço do que desejavam.
Dante jamais chegaria aos pés de Dimitri.
Eu sentia muitas saudades do Brasil. O país tinha seus problemas, mas
era o meu país. O lugar onde nasci, cresci e tive minha filha. A saudade maior,
entretanto, era de Lúcia. Devido aos anos de amizade, minha confiança nela e,
principalmente, seu trabalho como minha vice, lhe rendera uma segunda
promoção, tornando-se a CEO da nossa sede brasileira.
De mamãe, não tinha como sentir falta. Ela passava mais tempo em seu
apartamento em Santa Monica do que em sua casa, no Brasil. Não que eu me
importasse, todos a amavam, e ela acabou sendo uma avó melhor do que fora
como mãe. Íris a idolatrava, e as duas adoravam passear por Los Angeles como
estrelas.
E Íris Grimaldi Duskin era uma pequena diva.
Sendo filha de um ator e uma modelo conhecidos pela beleza, ela parecia
uma linda boneca que ganhou vida. De rosto delicado, cabelos compridos,
bochechas rosadas e expressivos olhos azuis, a garotinha encantava a todos.
Vinda de uma família de artistas, desde muito nova amou os holofotes.
Sua primeira aparição foi como filha de Dimitri em um filme de drama. Era uma
cena rápida, mostrando o casal — depois de muitos infortúnios — feliz e casado,
com uma filhinha no colo.
Apesar de rápida, a cena tornou-se eterna. O amor e a conexão de Dimitri
com a pequena Íris era perceptível mesmo pela tela, era algo enraizado em suas
almas e nem a melhor atuação poderia se comparar.
Foi o primeiro Oscar dele.
Depois disso, Íris participou de mais alguns comerciais. Eu não aprovava
muito, queria que ela fosse apenas criança e que brincasse. Contudo, além da
veia artística, minha menininha também herdou a lábia de empresária para
negociação. Ela me convenceu que gostava e queria mais.
Não a privei daquilo que a fazia feliz, porém sempre dosava as
quantidades. Assim, ela poderia brincar como qualquer criança e seguir o legado
da família. No final das contas, eu, que costumava criticar minha criação, fazia
algo parecido com minha filha.
Tínhamos, entretanto, um grande diferencial: o amor. Ao contrário dos
meus pais, que sempre discutiam e costumavam trair um ao outro, eu e Dimitri
nos amávamos mais a cada dia. Ele tinha razão quando falou que foi paixão à
primeira vista: nossas almas se reconheceram. Porém, era com o cotidiano, com
as pequenas tarefas diárias que demonstrávamos o quanto fomos feitos um para
o outro.
A doce e esperta Íris veio para acrescentar mais ao que já era bom,
tornando-o perfeito. Eu não fazia ideia de como podia haver um amor tão grande
quanto o que sentia pela minha filha. Por mais que diversas vezes ela testasse
minha paciência e limites, não seria capaz de imaginar um futuro sem Íris.
Verifiquei o monitor de segurança, sempre posicionado atrás da minha
mesa. Estava quase na hora. Levantei-me para ficar agachada em frente à porta:
3, 2, 1...
— Mamãe! — Íris irrompeu no escritório, pulando em meus braços
abertos.
Eu a abracei apertado, sentindo o aroma suave de seus cabelos, e beijei
sua testa. Ela me encheu de beijos por todo o rosto. Íris falava rápido, contando
sobre o seu dia, enquanto eu tentava acompanhar o seu português misturado com
inglês. Fiquei em pé, com ela em meu colo.
— Olá, meu amor — os lábios de Dimitri encontraram os meus, em um
beijo terno.
Íris, envergonhada, escondeu o rosto na curvatura do meu pescoço.
Dimitri sorriu para a pequena e me beijou mais uma vez.
O sol começou a se pôr, os raios laranja e púrpura que entravam pela
parede de vidro combinavam com o tom ruivo alaranjado na cabeça do meu
marido. O bom de ser casada com um ator era que a cada papel, eu tinha um
homem de aparência ligeiramente diferente. Porém, o seu cerne era sempre o
mesmo, o da pessoa que eu amava.
Sempre que Dimitri tinha tempo livre entre as gravações, ele trazia Íris
aqui neste horário. E, juntos, no último andar do edifício que representava nosso
império, assistíamos o sol se pôr em Los Angeles.
Enquanto os dois estivessem ao meu lado, eu sabia que o céu era o limite,
e que o nosso amor era infindo.



Sobre a autora

Aretha V. Guedes é bióloga, casada, mãe de um garoto de nove anos e


estudante de odontologia. Sempre amou livros, séries, filmes, músicas e jogos.
Recebeu no Wattpad o prêmio internacional Wattys 2016 e 2017, além de ser
destaque em Romance na plataforma, conquistando mais de 61 mil seguidores.
Na plataforma Luvbook, foi uma das vencedoras do 1º Concurso Luvbook/Ler
Editorial, com o conto New Adult A Soma dos meus erros. É colaboradora dos
blogs Capitu Já Leu e Arca Literária. A série Jack Rock conquistou milhões de
leituras online, sendo best-seller de sua categoria.
Romance e erótico não são suas únicas linhas de escrita, também escreve
contos e livros de fantasia e drama. O romance sobrenatural Reich – entre
vampiros e deuses ficou no primeiro lugar do ranking de Fantasia por mais de
três meses do Wattpad e também foi o mais vendido de Fantasia da Amazon.







SEM ALTERNATIVA

C. Caraciolo

Dedicatória

Carol, Aretha e Raphael



Suki.


Sinopse

Melanie está em apuros.


Prejudicada por um familiar sem caráter, a jovem CEO vê sua empresa
afundar enquanto os processos e as dívidas se multiplicam em suas mãos.
Charles está satisfeito.
Após o excelente andamento de um processo que move contra a Turano
Soluções em Transportes, a empresa de Melanie, o empresário sente que a justiça
será feita contra Fernando, o homem que tentou dar um imenso golpe na Família
Miguez, sua companhia de doces gourmet.
Em uma última tentativa de não perder sua casa e enterrar seu nome na
lama, Melanie oferece a Charles um acordo inusitado, e ele prontamente aceita,
visando lucro imediato. Porém terá sido esse o único motivo do CEO da Família
Miguez?
Duas empresas em guerra, duas famílias em conflito e apenas uma
certeza: atração imediata e sentimentos conflituosos podem tanto unir quanto
separar lados opostos de uma batalha.


Capítulo 1

— Pronto, querida, cá está sua bebida! — Mara exclamou assim que


sentou ao lado de sua amiga em um banco de madeira. — Ah, vai, não me olha
com essa carinha. Uma boa cerveja gelada cai bem nessa noite quente, e eu não
quero nem vou beber sozinha.
Melanie olhou para Mara, deslumbrante em seu modelito hipster,
composto de um vestido estrategicamente surrado, com a maior cara de brechó
chique, botas de combate e os cabelos cortados no que Mara chamava de “bob
médio”, e ergueu uma sobrancelha.
— Quente? Você está de botas, Mara, não é bem um modelito que grite
“verão carioca”... Mas ok, eu bem que preciso de uma bebida de qualquer
maneira… — Melanie mensurou, erguendo rapidamente os ombros, como se
estivesse se rendendo ao pedido da amiga.
Mara lhe dirigiu um imenso sorriso animado antes de abrir as duas
garrafas de cerveja, e as duas ficaram em silêncio por uns instantes, saboreando
suas bebidas e olhando o movimento na praça. Algumas crianças corriam ao
redor do chafariz da pracinha, e vez ou outra, uma tropeçava e caía dentro da
construção de pedra, mas se levantava rapidamente, já que não havia água dentro
e a fonte era relativamente pequena.
— E aí, amore, qual é o problema? Por que você me chamou hoje? Sua
carinha diz que você não está muito…
— Animada? Feliz? Exuberante? — ela completou e suspirou. — Pois é,
Mara, meu pai aprontou de novo.
— De novo? — perguntou a amiga, levando a mão ao peito em um gesto
teatral.
— De novo. Nenhuma novidade, eu sei, só que dessa vez não vai
adiantar assumir o controle da nossa empresa temporariamente e arrumar a casa.
Não é suficiente para reparar as besteiras. Papai está sendo processado por
roubo, por ter desviado quatro caminhões de entregas para tentar receber o valor
do seguro, além de ganhar por fora o valor da mercadoria. A boa e velha fraude.
O queixo de Mara caiu, fazendo seu rosto expressar toda a surpresa de
um modo quase cômico. De todas as falcatruas que o pai de Mel já havia feito,
nada se comparava com roubo. Normalmente, tudo se resumia a péssimos
negócios, quantias emprestadas a “amigos” e pequenos desvios de caixa. Por
isso a expressão tão espalhafatosa de surpresa, que em outros momentos teria
feito Melanie achar graça. Naquele momento, ela estava arrasada demais para
isso.
Ela bebeu um gole da cerveja, ouvindo a amiga questionar:
— E aí? O que isso significa pra você e sua empresa?
A jovem empresária apenas deu de ombros antes de finalizar o resto da
bebida, suspirar e afirmar:
— Falência. A seguradora já ganhou o processo, isso não há dúvidas, e
vai levar uma quantidade de dinheiro que você nem imagina. Só isso já seria
suficiente para enterrar a firma, mas ainda tem a publicidade negativa em cima
de meu pai e…
Mel hesitou por um momento, se sentindo mal só de precisar pensar
naquilo tudo.
— E…? — incentivou a jovem cabeleireira.
— E papai está sendo processado como pessoa física também. O dono da
empresa que fazíamos as entregas era amigo dele. Eram colegas de mergulho, de
Krav Magá, sei lá, algo assim. Esse senhor ficou profundamente irritado com o
que papai fez, já que ainda foi acusado de ter participado, o que, convenhamos, é
ridículo.
— Óbvio, só seu pai para achar normal sabotar a própria empresa.
Mel inclinou a garrafa vazia de cerveja na direção da amiga, como se
dissesse “exatamente!”.
— Para completar, meu pai enfiou um soco na cara dele, em uma
armação de tentar se passar por vítima que não convenceu ninguém. Só Deus
sabe o motivo disso tudo, mas não satisfeito em cometer um crime, Seu
Fernando vai lá e decide cometer outro. Está sendo processado por agressão,
injúria, difamação, eu nem lembro mais o quê. A indenização é astronômica, por
sinal. É o fim total da empresa da família.
Mara, impressionada demais para conseguir falar qualquer coisa, deixou
que a amiga prosseguisse no relato de derrota do maior patrimônio de Melanie.
Desde antes de as duas se conhecerem, ainda adolescentes, o sustento da família
de Mel vinha todo da empresa transportadora de produtos alimentícios, fundada
por seus pais antes de ela nascer.
O que começou como um emprego de motoboy levou o pai de Mara,
Fernando, a erguer um sólido e confiável negócio, que atendia diversas docerias,
padarias e fábricas de doces, bolos e aperitivos por todo Rio de Janeiro.
Porém a ambição cegou Fernando, que começou a tomar decisões não
muito corretas para lucrar mais. Tais decisões, que costumavam sempre transitar
entre congelar salários e se negar a pagar FGTS para funcionários, começaram a
deixar o saldo no fim do mês sempre vermelho, até porque o dinheiro
“economizado” nunca ficava na conta da empresa, mas sim em seu próprio
bolso. Isso sem contar as indenizações trabalhistas, afinal, era direito dos
funcionários receber seus valores devidos.
Melanie, que se formou em administração de empresas para poder ajudar
no negócio da família, ao perceber o que o pai estava fazendo, interferiu e tomou
a presidência da empresa, dando um jeito de reverter ao menos uma parte das
burrices de Fernando. Tudo acabou dando tão certo, que ela conseguiu recuperar
o prestígio perdido em pouco tempo.
Porém não esperava que Fernando continuasse agindo por baixo dos
panos, tentando acordos com criminosos para conseguir lucros indevidos. O que
começara com direitos trabalhistas logo migrou para coisas mais sérias ainda. A
última tentativa foi contratar homens para simular um assalto em uma entrega de
quatro caminhões de doces gourmets que rumavam para os estúdios de uma
grande emissora da cidade, uma das maiores do país.
Fernando, apesar do mau caráter, não tinha muito talento para se
envolver com criminosos profissionais, o que resultou em um fracasso na
operação, que não somente conseguiu arruinar seus planos de pegar o dinheiro
do seguro, como fez desaparecer quatro dos melhores caminhões que a empresa
possuía. Suas carcaças destroçadas foram encontradas algumas semanas após o
evento.
Por sorte, ninguém se machucou. Ao menos isso.
— Agora meu querido e amado pai decidiu se esconder de tudo e todos,
deixando para sua filha, no caso eu, uma herança em vida um tanto... indigesta.
Não que eu ligue muito para o nome dele, o problema é que ele jogou o nome da
família na lama, e isso obviamente inclui o meu! — disse Melanie, em um
fôlego só.
Desabafar, por mais necessário que fosse, não era fácil. As intimações, as
idas e vindas a advogados e as reuniões ameaçadoras com as partes prejudicadas
vinham minando todas as forças da agora ex-CEO da Turano Soluções em
Transportes.
Toda a sua vida se organizara ao redor do negócio de família. Desde sua
formação e trabalho, até mesmo a sua casa, que também era a sede da empresa.
A área externa de sua confortável casa acolhia uma segunda construção, criada
para ser o escritório centralizador de todas as operações da empresa, de recursos
humanos a redes sociais.
Juridicamente, ali era também o único endereço da empresa, já que a
garagem dos veículos de transporte era em outro local, alugada pela empresa.
— Deus, como ele pôde fazer isso tudo, Mel? — exclamou, possessa
com tamanha injustiça. — Tudo bem que você sempre se deu melhor com sua
mãe, que Deus a tenha. Mas, sei lá, te deixar nessa roubada não parece uma
coisa certa para um pai fazer com uma filha!
A jovem apenas suspirou. Não era novidade para ela que o homem que a
criara não pensava em ninguém além dele mesmo. Mara, vendo a expressão
desolada da amiga, pediu um minutinho e foi correndo comprar mais duas
cervejas. Aquela noite requisitava uma concentração maior de álcool no sangue.
— Nem quero saber o que se passa na cabeça dele — Mel respondeu
assim que sua amiga retornou. — No momento, quero aproveitar minha amiga
sem ser a pior companhia do mundo e tentar não me jogar na frente de um
ônibus. Acha que consigo?
Mara a abraçou pelo ombro e beijou sua têmpora, tentando animá-la.
— Podemos tentar! Qualquer coisa, eu me jogo com você. Podemos
escolher um carro chique em vez de um ônibus? Bom, pensando bem, os ônibus
não deixam de ser Mercedes, não é? Eu posso mandar uma mensagem para
nossos amigos e pedir que eles joguem uma bandeira de unicórnio em nossos
caixões, que tal? Vai ser super tendência! Um enterro Tumblr!
Mel acabou sorrindo verdadeiramente pela primeira vez em muito tempo.
Mara sabia que ela gostava de unicórnios, pois sua mãe era apaixonada pela
figura mitológica, então, por mais dark que tenha sido a piada, conseguiu fazer a
amiga rir.
Desde que recebera a bateria de notícias desagradáveis de seu contador,
risadas eram raridade na vida da jovem. Seu pai havia ligado rapidamente e
informado que pretendia vender a casa da família para poder pagar as dívidas
dos processos. Melanie sabia que também era um modo de apagar tudo que
pudesse ser usado para lembrarem dele.
— Ah, Mara, ainda tem mais… — começou assim que lembrou desse
detalhe.
Mara soltou Melanie do abraço e balançou a cabeça por lados, fazendo
seu longo e muito colorido cabelo balançar.
— Não, não tem! Tem? Não é possível que tenha algo pior do que isso!
Só falta ele ter apostado sua vida em cavalos com a máfia! É isso? Você agora
será a submissa de um mafioso? Porque não tem nada pior na vida...
Melanie deu um sorriso sem humor.
— Ok, estou em melhor situação que a submissa, mas, amiga... Nossa
casa está no nome dele. O processo que ele recebeu por parte do dono da
empresa...
— O mesmo que levou o soco do seu pai? — Mara interrompeu, e a
amiga assentiu com a cabeça.
— Charles Miguez, daquela marca chique de doces artesanais, sabe?
Família Miguez?
Mara ergueu o lábio superior numa careta facilmente traduzida como “É,
ferrou” e deixou que a amiga prosseguisse no relato da desgraceira. A empresa
em questão fornecia doces para praticamente todos os estabelecimentos
comerciais da cidade, incluindo o salão de beleza de Mara, que servia os
biscoitos junto de cafés para clientes aguardando serem atendidas. Qualquer
pessoa com um negócio próspero ou grande no Rio sabia que os biscoitos deles
eram os melhores.
— Ele está pedindo no processo um valor que meu pai só conseguiria…
bom… vendendo nossa casa. E ele já avisou que vai fazer isso. Ou seja, em
menos de um mês eu descubro que vou perder minha empresa, meu emprego e
minha casa. Tem como melhorar?
Melanie virou a cerveja de uma vez e olhou para a amiga, que parecia
aérea, como se estivesse em outro mundo, até que de repente exclamou:
— Ei! Eu tive uma ideia! Eu conheço uma pessoa que conhece uma
pessoa que conhece uma pessoa…
— Ok, já entendi… — Melanie disse e sorriu pela segunda vez em muito
tempo. Era o Efeito Mara, a cabeleireira sempre conseguia fazer todo mundo
sorrir.
— Então, essa pessoa conhece alguém que trabalha lá dentro! Pelo que
eu soube, na Família Miguez os funcionários são muito felizes! E se você fizesse
um acordo com o Charles Miguez e fosse trabalhar para eles?
A cabelereira estava tão animada, que Mel nem conseguiu protestar. Sua
ideia parecia vinda de romances de banca de jornal, daqueles de impressão em
folhas baratas. Se existissem livros de negócios de banca de jornal, com certeza
essa ideia estrelaria o primeiro volume de uma coleção.
Notando a falta de animação da amiga, Mara insistiu:
— Ah, vai! Seria ótimo! Aposto que você se destacaria lá dentro e
poderia matar dois coelhos com uma cajadada só! Quem sabe não conheça
alguém, digamos... interessante?
Melanie literalmente se engasgou com a cerveja que foi tentar beber
enquanto acompanhava o raciocínio da amiga.
— Hein? Amiga, você bebeu? Ah, sim, claro que bebeu, dã — ela disse
quando Mara apontou para a cerveja em suas mãos e sorriu. — Beba menos,
então, já está totalmente bebum!
Mara colocou a mão livre no joelho da amiga e o balançou para os lados,
como uma criança mimada chamando a atenção da mãe.
— Ah, amiga, pare de ser tão quadrada! Olha, você pode tentar um
acordo pacífico com ele! Você trabalha para ele por um tempo, por um salário
menor, claro, e vai pagando a dívida de seu pai assim! Não revire os olhos para
mim, mocinha! Eu te dei uma ideia para sair do buraco, já pode deixar a saída de
se jogar na frente do ônibus para segundo plano. Pode se concentrar somente na
bandeira de unicórnio.
— Reviro sim, ora! Que ideia ridícula! De que livro erótico você tirou
isso? O que eu vou fazer, dormir com o patrão? É esse o tipo de trabalho que
você está propondo?
Dessa vez, foi Mara quem engasgou, só que com sua própria saliva e de
tanto rir da sugestão que ouviu.
Alguns tapas nas costas depois, ela conseguiu respirar e parar de rir e
explicou:
— Não, sua anta, é trabalhar mesmo! Quero dizer, com essas coisas
administrativas suas, não com seu corpinho! Oferece para ele aquilo que todo
empresário gosta: abrir mão dos direitos trabalhistas. Diz que você trabalhará
sem carteira assinada, por contrato ou como empresa contratada, no período de,
sei lá, um ano.
Mel virou a cabeça de lado enquanto pensava na sugestão da amiga.
— Diga que seus serviços custam o dobro do que realmente custam,
cobre dele um terço desse valor, o que não vai te ferrar muito, afinal, não vai ter
mais aquele saco de ossos imprestável para assinar o futebol e o BBB no
paperview, então as suas contas vão…
— Maraline!! — Melanie retrucou, horrorizada.
— Ah, desculpa… Não posso xingar seu pai?
— Não, claro que pode! Me ofende você achar que era ele quem assinava
o futebol! Ele assinava o BBB, o Brasileirão era todinho meu, poxa...
Mara piscou algumas vezes e caiu na gargalhada ao ouvir o muxoxo que
a amiga deu. Até Mel, que não estava lá no seu melhor humor, acabou rindo
também.
E, assim, Mara continuou tentando convencer a amiga de que aquela
saída era a melhor de todas. Depois de mais duas cervejas, Melanie acabou
topando, afinal, e as duas começaram a bolar um plano e estratégias para não
deixar que o atual CEO da Fábrica Miguez pudesse recusar seu pedido.
A ideia era doida? Era. Provavelmente ia dar errado? Sim. Havia grandes
chances de todos rirem de sua cara? Definitivamente. Mas era a única opção de
Melanie.
Com o coração repleto de esperança renovada, a jovem administradora
decidiu tentar a sorte.
O máximo que receberia, de qualquer modo, era um não, certo?




Capítulo 2

Na manhã seguinte, Melanie estava pronta para bater na porta da Família


Miguez. A noite havia sido movimentada, já que assim que se despediu de Mara,
com seu plano pronto, Mel se dedicou a preparar uma quantidade de dados que
fosse satisfatória para convencer o CEO que a sua contratação era o melhor
caminho para as duas famílias e, consequentemente, as duas empresas.
Os papéis se multiplicaram na mesma proporção que as xícaras de café,
chá verde e latas de Red Bull, de modo que às dez da manhã, Melanie tinha um
grande fichário repleto de argumentos em prol de sua contratação.
Junto a isso, duas olheiras imensas devidamente cobertas com a melhor
maquiagem que ela possuía. Por mais que estivesse falida, Mel ainda era uma
ex-CEO que sabia como se portar e se arrumar para um encontro de negócios.
Chegar na empresa não foi tarefa muito complicada. Localizada em um
bairro nobre e de fácil acesso, em menos de uma hora de ônibus a
administradora caminhava em frente à porta de entrada.
Sua ideia era simples: se apresentar de modo confiante, porém sem que
parecesse arrogante, requisitar junto à secretaria uma reunião com Miguez e
apresentar o plano que poria fim aquela confusão criada por seu pai.
Os dados trabalhados durante a noite eram provas mais que suficientes
para convencer qualquer administrador em início de carreira — o que Miguez
não era, já que trabalhava como CEO da marca havia bons anos — de que Mel
era competente.
E ela realmente era. Não se tornou CEO de uma empresa lucrativa
apenas por fazer parte da família. Sem ela, a Turano Soluções em Transportes
não teria sobrevivido a nenhuma falcatrua do pai. Além de extremamente astuta,
ela era inteligente e observadora, além de muito criativa. Conseguia vender gelo
para esquimó e convenceria um republicano a votar em Bernie Sanders em meia
hora de conversa.
— Bom dia. Me chamo Melanie e gostaria de me encontrar com Charles
Miguez. Tenho um assunto importante para tratar com ele. Sei que não marquei
hora para essa reunião, mas acredito que nosso encontro seja muito proveitoso
para a empresa — disse Melanie num sopro de confiança que começou a se
esvair quando notou as sobrancelhas se arqueando no rosto da secretária.
— Sinto muito, senhora.... — hesitou enquanto escolhia as palavras
certas para responder à jovem audaciosa à sua frente.
— Melanie.
— Sim, senhora Melanie. Entendo o que você me disse, mas infelizmente
acredito que seja impossível anunciar você ao senhor Charles. Nossa empresa
tem uma política séria quanto os encontros com o CEO. Desta forma, acredito
que o melhor que você possa fazer é nos encaminhar um e-mail...
— Desculpe, não perguntei seu nome — tentando ganhar tempo para
pensar numa saída, Melanie mudou o caminho da conversa para algo que
pudesse lhe ajudar.
— Sandra, senhora.
— Ok, Sandra, deixe-me explicar melhor. Eu sou Melanie Turano,
diretora executiva da Turano Soluções em Transporte, empresa que está num
imbróglio judicial com a Família Miguez. Vim até aqui para poder conversar
com o senhor Miguez acerca dessa situação e oferecer algumas saídas para esse
problema.
Se em um primeiro momento Sandra parecia atenciosa, na hora em que
Melanie mencionou a palavra “judicial” e o nome “Turano Soluções em
Transporte”, sua expressão se alterou completamente. Se suas orelhas tivessem
pálpebras, era nítido que Sandra as teria fechado para não escutar mais a jovem.
— Senhora Melanie, agradeço sua explicação, principalmente por ter
detalhado o intuito do seu encontro. Acredito que o melhor que você pode fazer
é entrar em contato com o jurídico da empresa por meio desse telefone.
Sandra entregou um cartão simples com o nome de um advogado e um
telefone para contato. Colocando um ponto final na conversa, perguntou:
— Tem mais alguma coisa que eu possa lhe ajudar?
Mel se sentiu derrotada por dentro, mas não demonstrou. Agradeceu o
tempo dedicado e se foi do prédio.
Com o coração repleto de desânimo, ela começou a pensar em alguma
estratégia ou alternativa, quando o destino sorriu para a jovem: ao passar pela
porta do prédio comercial, um homem alto e de perfil atlético, vestido de
maneira relativamente casual, passou por ela.
Imediatamente, lembrou da imagem que viu do presidente da empresa e
constatou que aquele homem era uma versão mais jovem — e atraente — de
Charles Miguez, ex-amigo de seu pai. Portanto deveria ser o filho, Charles
Júnior, o CEO da empresa. Isso! Aquela era a chance dela de conseguir sua
reunião!
Logicamente, aquilo era uma loucura. A empresa deveria ter diversos
funcionários e até mesmo clientes com hora marcada para encontros de
negócios, e a chance de ele topar era minúscula, mas Melanie não tinha muito a
perder. Se seu plano A foi por água abaixo, então agora era o momento de tentar
um plano B!
— Senhor Charles, por favor, gostaria de falar com o senhor! — ela
disse num rompante para o homem, que parou de caminhar e voltou sua atenção
para ela de modo cauteloso.
— Pois não?
Por um instante, Mel esqueceu o que havia dito. Assim que Charles
voltou sua atenção para ela, a jovem sentiu como se suas pernas tivessem
perdido a força. Que ele era atraente, era óbvio, ela notara de longe. Mas assim,
de perto, “atraente” não era uma palavra que faria jus à beleza do CEO.
Charles era alto, muito mais alto que ela, tinha ombros largos, maxilar
esculpido, uma barba por fazer que o deixava incrivelmente sexy e um cabelo
daqueles que homens perdem horas tentando copiar — mas que ele nem devia
ter penteado. O significado de virilidade e beleza natural adquiriu uma nova
roupagem para Mel.
Seus olhos eram severos, em tom de caramelo, penetrantes, e
vasculharam a jovem de cima a baixo, avaliando, com aprovação disfarçada, a
postura elegante, a roupa social bem-feita, a maquiagem leve e tudo que
mostrava em estética o profissionalismo de Melanie.
Limpando a garganta por um momento, para tentar recuperar a voz
perdida, Mel começou a falar, ignorando o coração saltando no peito e a luxúria
se espalhando em suas veias:
— É um assunto importante do seu interesse. É a respeito da Turano
Soluções em Transporte — explicou em uma respiração só, sem dar chance de
Charles a interromper.
Engolindo em seco, mas sem perder a postura, Mel viu Charles estreitar
os belos olhos enquanto a ouvia. Em seguida, ele a analisou novamente, até que
finalmente disse algo:
— Como você se chama?
— Me chamo Melanie. Venho em nome da empresa para...
— Melanie. Eu sei quem você é — ele a interrompeu de repente. —
Filha do Fernando, que não somente tentou prejudicar minha empresa, como
também acusou meu pai, amigo dele, de ser cúmplice. Você é muito parecida
com ele.
Mel engoliu em seco e tentou dizer algo, mas o homem apenas disse:
— E, claro, agrediu covardemente meu pai idoso. Me perdoe a
indelicadeza, senhorita Melanie, mas não tenho interesse algum em me reunir
com você ou quaisquer outros funcionários de sua empresa.
Mais uma vez, a jovem tentou dizer algo, mas foi impedida por uma mão
grande e máscula posta frente ao seu rosto.
— O processo tem avançado rapidamente, e acredito que em pouco
tempo terei meu prejuízo ressarcido — continuou Charles. — No mais, gostaria
que você não viesse mais até minha empresa, pois acredito que isso possa
complicar ainda mais as coisas para vocês.
Melanie engoliu em seco mais uma vez, sentindo sua confiança um
pouco abalada, mas tentou convencê-lo de novo:
— Se você me ouvir, perceberá que a proposta que eu tenho para te fazer
é melhor para sua empresa do que qualquer coisa que você possa ganhar na
justiça. Nossa empresa é pequena, não temos muito o que fazer para ressarcir o
prejuízo que meu pai causou, o senhor deve saber disso. Há outras dívidas sendo
quitadas agora, não há muito o que fazer.
Nesse momento, o olhar de Charles parecia um laser, escaneando
Melanie com precisão. Quem aquela mulher pensava que era? Invadia seu
espaço pessoal e ainda se dizia capaz de saber o que era melhor para a empresa?
A ousadia de Melanie irritava Charles, mas, ao mesmo tempo, o
surpreendia. Havia uma confiança na sua fala que fazia o CEO da Miguez ficar
em dúvida se deveria ou não dar ouvidos à invasora.
— Acho difícil que você tenha encontrado uma alternativa melhor do
que a atual. Acredite em mim, tenho muito mais motivos para confiar em meu
advogado do que nas palavras daquela que gerencia a empresa que me roubou.
Melanie já esperava por esse discurso, por isso trabalhou a noite inteira
em um material que provasse seu valor.
— Se você não quer me escutar, então leia esse arquivo. Eu expliquei
tudo ali. São números e tabelas que envolvem a dívida que temos com vocês,
bem como o que temos disponível para quitar. Em suma, meu trabalho. Passe
para seu contador e advogado que eles confirmarão o que estou tentando dizer.
Tudo foi dito em um tom decidido, de forma a não debochar da
capacidade de Charles entender o material que ela produzira, mas sim mostrar
que ela não estava ali para brincadeira.
As palavras de Melanie pareciam ter mexido com Charles. Aquela
mulher o enfrentara e ainda fizera pouco caso de suas habilidades como
administrador da empresa. Entretanto, era verdade que a transportadora do pai de
Melanie não era grande o suficiente para limpar todas as dívidas e que
provavelmente demoraria muito para conseguir cobrir o prejuízo e arcar com o
processo movido.
Além do mais, Charles sabia que Fernando havia arruinado a empresa
aos poucos, segundo seu advogado e seu pai haviam revelado, o que provava que
talvez o processo não seria tão simples quanto todos na Família Miguez
gostariam.
Por um acaso, sobravam poucas alternativas para ambos, Charles e
Melanie, e aquele fichário parecia ser a corda de salvação de ambos, se a
audaciosa senhorita Melanie estivesse certa.
— Ok, vou analisar sua proposta, mas não prometo nada — disse
Charles pegando em mãos o grosso fichário organizado por Melanie. — Entrarei
em contato caso tenha uma resposta. Agora, se você me der licença, tenho outros
problemas para resolver.
E sem esperar uma resposta, Charles se voltou para os elevadores sem
olhar para trás. Aquele encontro o havia irritado, já que toda a situação que
envolvia a empresa de transportes se tornara bastante delicada. Encontrar com
alguém da outra parte, logo no início da manhã, não era algo que ele esperava ou
desejava.
Além disso, uma pequena parte de si mesmo se incomodou por, ainda
que fosse completamente não profissional, sentir uma atração imediata pela
jovem abusada, porém extremamente sensual em sua postura de executiva de
sucesso, mesmo que não fosse uma postura real. Afinal de contas, ela fracassara
em manter sua empresa, ainda que não fosse culpa sua.
Balançando a cabeça para tirar seus pensamentos daqueles lábios
rosados e decididos, Charles iniciou seu dia na empresa se esforçando ao
máximo para não interromper o trabalho a qualquer momento e ir ler a tal
proposta.

Capítulo 3

O restaurante escolhido para o encontro era sóbrio, porém aconchegante.


Uma mistura de pub inglês, com seus longos balcões de madeira escura e
grandes televisões que passavam esportes ininterruptamente, com uma área
externa aberta, virada para uma bela vista de paisagem natural.
Música ambiente confortável e poucas mesas faziam daquele restaurante
o ponto de encontro preferido de Charles com seu advogado, André. O motivo
da reunião, é claro, era o material entregue por Melanie a ele duas semanas
antes.
Nesse meio tempo, o CEO da empresa analisou cada detalhe da proposta,
se surpreendendo com a riqueza de detalhes e organização que Melanie havia
preparado.
No entanto, se Charles parecia propenso a avançar na discussão da
proposta, André era contrário a ideia mesmo antes de ouvir os pormenores.
Amigo de longa data de Charles, o advogado via no processo um caminho rápido
e simples de ganhar duas vezes na mesma situação: venceria o processo para seu
amigo e um caso empresarial importante, o que poderia dar mais destaque para
sua carreira.
— Acredito que a proposta dela é interessante — Charles insistiu. — E,
André, você precisa concordar comigo que esse fichário é um primor de
qualidade. A postura dela é um tanto audaciosa demais, ainda que eu tenha
notado o medo por baixo daquela pose toda, mas o trabalho que fez foi muito
bom.
André bebeu seu vinho e bufou antes de falar:
— Charles, ela pode ter feito o melhor trabalho do mundo, mas isso é
roubada. Entenda, você está processando a empresa que essa pessoa administra,
logo, qualquer contato com ela pode atrapalhar o andamento do processo. Fique
longe dela, longe da empresa dela, longe de tudo isso, porque essa causa está
vencida. Em breve, o juiz baterá o martelo a nosso favor e receberemos tudo que
é devido.
A expressão de Charles mostrava sua discordância em relação ao ponto
de vista do advogado. Influenciado pelos documentos de Melanie, Charles tinha
informações que André provavelmente não imaginava, ou fingia não saber. Eram
amigos e companheiros de trabalho, mas também tinham seus egos e desejos
pessoais.
Charles sabia que André lutava para conseguir uma vaga em um
escritório de advocacia grande. Queria a vida dos casos milionários de
corporações internacionais. Para isso, precisava começar de baixo, esmagando
todos os seus adversários e vencendo seus casos.
— Entendo o seu ponto de vista jurídico, mas você precisa entender que
tenho dados que talvez você desconheça.
André parou imediatamente de fazer a expressão entediada que o
acompanhava desde o início do assunto e começou a prestar atenção com
interesse.
— A empresa de transportes decretou falência, isso você sabe. A única
coisa que poderíamos receber deles seriam valores baixos referentes a penhora
de imóveis. No caso, imóvel, porque o Fernando só tem uma casa. Eles se
desfizeram de tudo, pagaram as dívidas obrigatórias e fecharam as portas.
Acabou o dinheiro. Não temos o que receber.
Enquanto Charles falava, André beliscava alguns aperitivos, voltando a
se sentir um pouco entediado, pois já sabia de tudo aquilo. A televisão passava a
reprise de um dos jogos do final de semana da liga americana de futebol, de
modo que a programação parecia muito mais interessante do que o assunto em
questão.
Quando Charles passou a se perguntar se seu amigo prestava atenção no
que ele dizia, André de repente o questionou da forma como somente advogados
sabem fazer:
— E se isso não passar de um golpe? Você sabe que pode ser até mesmo
processado por ela se cometer qualquer deslize, não sabe? E você vai deslizar,
simplesmente porque se isso for um golpe, esse é o objetivo.
Charles aguardou pacientemente os argumentos de seu amigo e
funcionário.
— Ou seja, o objetivo é uma briga de processos que emperra a justiça e
te faz perder muito dinheiro. Dinheiro que você poderia investir para fazer mais
dinheiro. Você só perde, meu amigo. Acredite em mim, não quero apenas vencer
esse caso. Eu quero é vencer majestosamente esse caso, entendeu? — disse de
maneira exagerada, fazendo o amigo dar uma risada.
A fala de André era convincente. Melanie poderia ser traiçoeira e
simplesmente estaria, a mando do pai — que desde sempre suscitou
desconfiança em Charles —, tentando convencer o CEO a fazer alguma besteira
para reverter o processo. Charles sabia que a situação era muito favorável para si
e que não precisaria se preocupar demais com tal problema simplesmente porque
a causa estava vencida.
Porém, mesmo de forma rápida, o encontro com Melanie tinha sido
verdadeiro. A administradora, apesar de nervosa e em alguns momentos
defensiva, não aparentava estar tentando tirar vantagem, pelo contrário. Os
dados apresentados mostravam que ela se oferecera para trabalhar quase de
graça em troca da amortização da dívida feita por seu pai.
Suas contas eram facilmente entendidas e ressaltavam que em apenas um
ano, o valor seria restituído de modo muito mais rápido, já que a Fernando
Solução em Transportes não tinha mais um centavo furado. Além disso, a
Família Miguez ainda contaria com a experiência e trabalho de uma profissional
que, até aquele ponto, se mostrava extremamente competente, apesar da pouca
idade.
Desde que o dia em que virou as costas para Melanie, Charles não parava
de pensar nela. Ele realmente havia se impressionado com a disposição da
administradora. Convenhamos: ir até a empresa responsável por um grande
processo contra a empresa que você administra e buscar um acordo no qual você
se oferece como empregada com um salário modesto não parecia algo
premeditado para alguém que desejava dar um golpe.
Não havia sobrado nada da antiga empresa de Melanie, logo, sua
proposta parecia verdadeira. Um modo de limpar o nome de sua família e de
ainda ter um emprego.
— André, sei o que você me recomenda, mas eu já tomei uma decisão.
Preciso da sua ajuda com esses dados. Vou aceitar a proposta dessa moça.
O advogado bufou e revirou os olhos mais uma vez.
— Tem algo aí que você não me contou. E eu sinto que já até sei o que é.
Rabo de saia.
— Não, André, não é isso. O fato é que a Melanie tem um argumento que
para mim não há como negar. Além de sua empresa não ter um tostão furado,
essa mulher preparou um belo plano de lucros que, se de fato funcionar, será
muito melhor do que qualquer processo que possamos ganhar. Ela é jovem e,
como já disse, audaciosa. E Deus é testemunha que nós não conseguimos
contratar um administrador decente nos últimos quatro anos.
André ergueu as mãos para o ar e exclamou:
— Ok, eu me rendo! Já vi que essa mulher mexeu com você de um jeito
que seu bolso não consegue te tocar. Vou começar tudo, então. Analisar a
papelada, bolar um contrato para a empresa que ela ainda vai criar, fazer toda a
burocracia de prestação de serviço, blá, blá, blá...
— Perfeito, obrigado — Charles interrompeu o drama do amigo.
André fez um gesto com as mãos, dispensando o agradecimento. Bem ou
mal, era seu trabalho, ainda que ele não concordasse com seu empregador.
— Agora, já que você tirou da minha mão uma vitória fácil, será que
poderíamos pelo menos nos aproximar daquelas duas maravilhas ali? —
perguntou e apontou para duas mulheres altas, loiras e magras, obviamente
turistas. — Elas não parecem daqui, creio que precisem da ajuda de dois
moradores da cidade — André levantou sua taça de vinho para as mulheres, com
um sorriso largo e convidativo no rosto.
Charles pegou sua carteira do bolso traseiro da calça, pescou algumas
notas e deixou na mesa enquanto se levantava.
— André, hoje é seu dia de sorte, porque essas duas são só suas. Isso é,
se elas te quiserem. Eu preciso voltar pra Miguez, colocar um monte de coisas
em dia e pensar em como vou tirar proveito do trabalho da filha do Fernando.
E sem dar tempo para o amigo responder, se foi, antes que qualquer
aproximação feminina pudesse segurá-lo mais tempo longe da empresa e de seus
planos.
Sua cabeça estava a mil por hora. Aquela mulher não só conseguiu o
contato que desejava, como também o convencera com seu plano de negócios. O
dossiê entregue por ela mostrava que Melanie pesquisara a fundo tudo que dizia
respeito à sua empresa, e Charles, mesmo sem admitir, desejava ver até onde
iria, se ela seria mesmo capaz de botar em prática aquelas ideias atrevidas na
empresa que batera o prego no caixão da Turano Soluções em Transporte.
Os pensamentos se sobrepunham uns aos outros sem que fosse possível
ordená-los: a voz decidida, os gestos fortes, porém contidos, o olhar de quem
guarda a informação do blefe como trunfo. Melanie o havia impressionado de tal
modo, que todo seu trabalho naquela tarde estava focado em analisar aquele
primeiro encontro.
Sem se dar conta, tudo aquilo já não pertencia mais apenas ao campo
jurídico e administrativo: Charles tinha algum tipo de curiosidade em ter aquela
mulher por perto, além da óbvia atração, que ele mantinha muito bem escondida
dentro de si. Afinal, era um profissional com caráter. Jamais tiraria proveito de
nenhum tipo de situação apenas para aquecer sua cama à noite.
Enquanto o CEO pensava em como retornaria o contato com Melanie,
avisando-a sobre o acordo que firmariam, a jovem administradora estava
ocupada vendendo tudo que ainda restava na empresa. De peças de reposição
dos caminhões a mobiliário de escritório, tudo saía a toque de caixa de sua casa.
As lembranças dos erros de seu pai eram combustíveis potentes para que
tudo fosse despachado o quanto antes. Sobrariam apenas seus pertences pessoais
e as poucas lembranças de sua mãe, como as almofadas com lindas estampas de
unicórnio, todas cheirando a erva doce, o chá preferido da fundadora da TST.
Abraçando uma delas, Mel sentiu uma pontada de saudades no peito.
Tudo seria tão mais fácil se sua mãe estivesse viva ainda... As duas dariam as
mãos e, juntas, reverteriam todo o mal feito por Fernando. Se bobear, ainda
chutariam seu traseiro em conjunto! Melissa não era mulher de abaixar a cabeça
para homem nenhum. Uma pena que tenha falecido antes de Fernando mostrar
as caras.
Seu pai havia telefonado de novo, dias depois da ida de Mel até a
Família Miguez. Fernando só quis enfatizar o que sua filha já sabia: que ela
precisava se virar sozinha enquanto ele tirava um tempo para “esfriar a cabeça
depois de tantas injustiças”. Ainda teve a audácia de pedir a Mel que lhe
despachasse uma quantidade imensa de pertences pessoais para a casa de seus
parentes, onde estava aproveitando umas férias, enquanto Melanie era deixada
no meio da fogueira.
Mel, é óbvio, disse que enviaria tudo e cumpriu sua promessa:
selecionou todos os pertences do pai — ao menos, os que não conseguiu vender
— e enviou pelos correios.
Para uma instituição de caridade em outra cidade.
Melanie podia até ter sido enganada, mas burra, ela não era.

Duas semanas se foram desde o encontro de Melanie com Charles, e a


insegurança tomava conta dos nervos da administradora. Todas as suas
esperanças de manter a casa que guardava as lembranças de sua mãe estavam no
plano que Mara havia bolado e Mel havia executado com maestria.
Porém, o silêncio de Charles parecia indicar que algo não ia bem. Todos
os detalhes estavam no plano entregue, logo, não havia muito o que discutir, era
pegar ou largar, sem muita margem para mudanças. Provavelmente a noite em
claro havia sido em vão.
Já se passavam das oito da noite quando seu celular piscou, avisando de
um e-mail recebido:
Esteja conosco às 9:00 em ponto.
Preciso que você assine alguns documentos e comece logo a trabalhar.
Leve toda a documentação necessária, em especial a de seu MEI.
Quero lhe apresentar aos funcionários amanhã mesmo.

Mel não pôde conter um grito de alegria assim que terminou de ler.
Naquela noite, se houvesse uma garrafa de champanhe, com certeza ela a beberia
inteira com muito gosto!
Os últimos meses tinham sido de mais derrotas do que vitórias, e parecia,
pelo menos de uma forma inexplicável, que as coisas agora poderiam melhorar.
Sua esperança transbordava pelo peito enquanto um pensamento tomava conta
de sua mente:
O que será que havia passado pela cabeça de Charles naquelas duas
semanas?
Melanie tinha somente a certeza que havia conseguido mexer com aquele
homem. Ele a havia a escutado e mostrava ter apreciado seu trabalho,
aparentemente. Agora era só colocar a mão na massa e reconquistar sua casa.
De cabeça erguida.


Capítulo 4

Charles olhou no relógio, impaciente, pela quarta vez em dez minutos.


Melanie estava atrasada vinte minutos, o que fez com que ele cogitasse desistir
do acordo. Estava prestes a ligar para André, quando sua secretária anunciou a
chegada da jovem.
Com um suspiro de impaciência, ele ordenou a Sandra que a deixasse
entrar, mas não se levantou da cadeira para receber a jovem. Estava claramente
decepcionado com a falta de responsabilidade de Melanie. Se ela não conseguia
nem ao menos chegar na hora, que dirá…?
Seus pensamentos foram interrompidos quando Mel entrou em sua sala
mancando.
— Senhorita? O que houve com seu…? — tentou perguntar,
genuinamente preocupado, mas Melanie apenas balançou levemente a cabeça,
como que dispensando sua preocupação.
— Uma leve torção causada por um taxista desastrado. Peço desculpas
pelo atraso e garanto que isso não vai se repetir.
Charles apertou os olhos, ainda sentado em sua cadeira, e aceitou a mão
que Melanie estendia a ele, não sem antes notar que a pele delicada da região
estava um pouco ralada.
— A senhorita foi atropelada, é isso? — perguntou, se questionando se
ela seria uma dessas moças que parecem ter dois pés esquerdos.
Seria péssimo se esse fosse o caso, já que seu trabalho envolveria idas à
fábrica, local cheio de objetos perigosos — e valiosos — para a empresa. Seria
uma imensa dor de cabeça se ela prendesse um braço no moedor de nozes, por
exemplo.
— Sim, mas está tudo bem. O problema foi que o taxista se sentiu
culpado, me ofereceu uma carona e me levou para o hospital, em vez de me
trazer para cá. Precisei dar a volta na emergência e fugir, antes que ele tentasse
me internar no CTI por causa de um pé torcido. Bom, apesar do atraso, e peço
desculpas novamente por ele, cá estou. Podemos iniciar a reunião?
Charles cruzou as mãos em seu colo e avaliou Melanie por um
momento. Sua postura não era arrogante, mas mostrava uma confiança
inabalável. Ele se perguntou se aquele modo de agir era real, ou se era fruto de
um teatro muito bem ensaiado, já que ela mostrara uma certa vulnerabilidade no
primeiro encontro dos dois.
Ainda analisando o rosto da jovem, ele deu início ao encontro e mostrou
sua contra-proposta. Melanie conteve um suspiro de alívio ao ver que ele não
havia modificado muita coisa de sua proposta inicial, apenas aumentara um
pouco a carga horária, nada de mais.
O salário foi aceito, metade do que ela recebia antes, mas contabilizado
como se fosse um terço do esperado — exatamente do jeito que Mara havia
sugerido. Não seria exatamente algo discrepante, já que seu salário não era nem
de longe o esperado para uma CEO na Turano Soluções em Transportes. Até
nisso seu pai tentava lucrar. Ela não reclamara na época porque conhecia as
condições da empresa como a palma de sua mão, e não podia descobrir um santo
para cobrir outro.
Os horários foram combinados, e suas tarefas, definidas. A jovem não
poderia estar mais aliviada, ainda que a distância entre sua antiga função —
CEO de uma empresa, ainda que pequena, mas próspera — e seu novo trabalho
— auxiliar executiva somente — fosse gigantesca. Nada importava para
Melanie, que fazia um grande esforço para não gritar de felicidade.
Os dois passaram a hora seguinte acompanhados de André, que chegou
depois de alguns minutos e não fez questão de esconder seu desagrado com
aquele acordo, e assinaram todos os documentos necessários.
O acordo estava selado. Melanie agora era uma funcionária contratada da
empresa que seu pai havia tentado roubar. A ironia da situação era grande, mas
Mel era uma profissional competente, que mostraria a todos ali que faria valer
sua contratação.
— Ok, Melanie, vou levá-la à fábrica. Sandra, ligue para Antônia e avise
que estou chegando com a nova funcionária, sim? — Charles pediu pelo telefone
para a secretária.
Tanto Mel quanto André olharam para o CEO com a surpresa estampada
no rosto. O dono da empresa ia levar a funcionária terceirizada até o local de
trabalho dos confeiteiros? Por quê?
— Ahn, senhor Charles, não se preocupe, eu posso ir so…
— Eu sei que você pode ir sozinha, mas é a minha fábrica, e eu quero ter
certeza de que você saberá conduzir suas tarefas. Não posso deixar que você vá
assim, como se fosse a nova sócia daqui. É bom que você tenha em mente isso,
senhorita: você é funcionária daqui, portanto, vai seguir as minhas ordens.
Algum problema com isso?
Mel acertou a postura, tentando distribuir o peso do corpo nos dois pés e
não mostrar a dor que estava sentindo no local da torção. Pensar nisso a distraiu
por um momento, o que a impediu de dar a resposta atravessada que desejou ao
ouvir o tom grosseiro de seu novo chefe.
— Não, senhor — respondeu simplesmente.
— Bom. André, obrigado pela visita. Vou entregar os documentos para
Sandra levar ao RH e…
— Sim, coisa que eu deveria ter feito desde o início — André não
conseguiu segurar a alfinetada. Estava intrigado com a postura de seu amigo
para com aquela mulher. Era como se ele quisesse cuidar de tudo relacionado a
ela sozinho.
Era como se ele estivesse…
— Agradeço.
O tom de voz de Charles foi cortante, como se não quisesse discutir na
frente da funcionária.
Deixando André sozinho em sua sala, ele caminhou em direção ao
elevador, deixando os dois para trás. Melanie estranhou aquele comportamento e
logo concluiu que seriam doze longos meses ao lado de um chefe aparentemente
grosseiro e excêntrico, que gostava de fazer tudo do seu jeito esquisito.
Mas o que poderia fazer? Deveria agradecer aos céus pela oportunidade
de não perder tudo que era seu.
— Senhor André — ela cumprimentou o advogado com um aceno de
cabeça e caminhou para fora da sala, tentando ao máximo não mancar, mas
falhando, tendo em vista que seu tornozelo estava muito inchado.
André, que respondera ao cumprimento do mesmo modo, com um aceno
de cabeça, ficou olhando a jovem caminhando atrás de seu chefe. Notou seu
hematoma na perna, um grande e assustador roxo se formando na batata da
perna, com alguns tons de uma cor escura, quase preta, seu caminhar hesitante,
como se estivesse com dor, e se perguntou se o motivo para seu amigo de longa
data fazer questão de levar a nova funcionária até a fábrica era por causa
daqueles machucados, que pareciam recentes.
Estaria Charles querendo bancar o herói com ela? Não era de seu feitio.
Caminhando até a mesa de seu chefe, André pegou a papelada e levou
até Sandra, pedindo para a secretária encaminhar todos os documentos para o
setor responsável. Enquanto esperava o elevador, se deu conta de duas coisas.
A primeira era que Charles não havia esperado por sua companhia.
Afinal de contas, só havia um elevador disponível ali, e André desceria para o
mesmo estacionamento do CEO da Miguez. Era natural que ele compartilhasse a
viagem até seus carros com o amigo e a funcionária.
A outra coisa que notou é que o chefe havia dito que levaria os
documentos para o RH, mas se esqueceu deles. Charles nunca se esquecia de
nada relacionado à empresa, o que significava somente uma coisa: ele estava
mais do que desconfiado de Melanie.
Estava envolvido por ela muito precocemente.
Só restava a André torcer para que sua intuição sobre a jovem estivesse
errada, e ela não fosse uma vagabunda interesseira, coisa que ele tinha certeza.
Não era como se ele fosse um exímio conhecedor de mulheres, de
qualquer maneira.

Capítulo 5

Melanie permaneceu em silêncio durante toda a viagem. Estava


estranhando aquela situação: ela, recém-contratada, no carro do CEO da
empresa, seguindo rumo à fábrica logo em seu primeiro dia. Não fazia sentido, já
que ela precisava primeiro conhecer o funcionamento interno da companhia, não
como eles faziam seus biscoitos e seus tipos diferentes de financier.
Para completar, seu tornozelo doía intensamente. Talvez o taxista tivesse
razão em se sentir tão culpado, e ela realmente precisasse deixar um médico
analisar a torção... Porém, apesar de tudo, a jovem não questionou a decisão do
chefe. Já tinha notado quão grosseiro Charles poderia ser, e não queria tornar a
situação desconfortável além do que já era.
Gostaria muito de poder comemorar sua vitória, sim, gostaria. Não era
ingrata nem sonhadora. Sabia muito bem que em breve ela poderia se livrar das
dívidas do calhorda do pai, o que faria com que pudesse manter sua casa, limpar
o nome da família e, ainda por cima, não passar por dificuldades financeiras sem
emprego e sem lar.
Sim, ela sabia que seu pai poderia tentar vender a casa de qualquer
modo. Porém Mel desconfiava que existia uma lei ao seu lado que impediria o
pai de cometer tamanha estupidez. Só precisava de um advogado em quem
confiar, já que o que prestava serviços à sua família desapareceu quando soube o
que Fernando havia feito.
Melanie não o culpava. Também desapareceria das vistas de seu pai, se
tivesse chance.
— A fábrica funciona de segunda à sexta-feira, de vez em quando, em
épocas especiais, aos sábados — Charles disse, de repente, tirando Mel de suas
reflexões. — Uma de suas funções será conferir determinados lotes de entregas
de ingredientes, além de…
Nesse momento, a jovem parou de escutar. Como assim, conferir
entregas? Não era essa a sua função! O que esse homem esperava que ela fizesse
mais, além do previsto no contrato? Biscoitos de natal?
— Além dos balancetes e tudo aquilo que você já deve estar careca de
saber, não? — perguntou retoricamente, com um sorriso um pouco debochado,
que Mel observou de canto de olho.
— Sim, senhor — respondeu, somente, e o silêncio invadiu o carro.
Charles tamborilou os dedos no volante enquanto aguardava o sinal de
trânsito abrir. O dia estava nublado, e as ruas ainda estavam molhadas por uma
fina chuva que havia caído mais cedo. Ele se perguntou se fora aquele o motivo
do acidente de Mel e notou que ela de vez em quando movia o corpo como se
fosse pegar em sua perna ferida, mas logo acertava a postura no banco.
— O que houve, de verdade? — ele perguntou quando não pôde mais se
conter.
Melanie olhou em dúvida, mas assentiu em compreensão quando ele
apontou para seu tornozelo.
— Estava chuviscando, então creio que o motorista estava impaciente
por isso. Não sei, talvez ele quisesse fugir dos respingos… Na pressa, ele parou
em cima da faixa de pedestres quando tentou passar o sinal amarelo, me
forçando a dar a volta por trás do carro para seguir caminho. Só que ele não me
viu, deu ré quando uma senhora reclamou de sua obstrução na faixa e acabou me
derrubando no chão.
Charles balançou levemente a cabeça, contendo a breve nota de irritação
que tomou conta de si.
— Entendo. Anotou a placa dele?
— Não, senhor. Não havia necessidade. Ele prestou socorro, até muito.
Praticamente me sequestrou para me levar ao hospital.
Charles não disse mais nada. Não concordava com ela, até porque o
taxista não fez mais que a obrigação legal, levando em conta que estava errado.
Mas não podia interferir na vida pessoal de sua funcionária, por mais que
desejasse.
Os dois chegaram na fábrica menos de vinte minutos depois de terem
saído do escritório da Família Miguez. Quando o carro entrou na garagem da
bela casa, Charles pediu a Mel que esperasse um momento, e em seguida
desligou o carro, saiu e deu a volta, indo abrir a porta do lado do passageiro.
Mel não gostou nem um pouco do ato de cavalheirismo, pois não via
necessidade daquilo.
— Obrigada, senhor — murmurou assim mesmo e apertou sua bolsa
contra o corpo, como se estivesse um pouco nervosa com aquele arroubo de
gentileza dele.
Charles não respondeu o que gostaria: que não estava sendo educado, só
queria uma garantia de que a situação não era pior do que ela dizia ser e que ele
não precisaria dar uma licença médica para a administradora em seu primeiro dia
de trabalho.
Ao ver Mel mancando um pouco, mas não o suficiente, ele conteve um
bufar de alívio. Sua intuição dizia que ela era o tipo de pessoa orgulhosa que não
admitiria a gravidade da situação, mas, caso fosse algo preocupante, ela não
conseguiria omitir por muito tempo.
Apesar de seus esforços para pensar em Melanie como uma funcionária,
ele acabou reparando em suas pernas longas e delineadas. Era uma jovem
atraente, que se vestia com apreço, ele relembrou ao notar a saia escura de corte
elegante que terminava na altura dos joelhos e a blusa de algum tecido que ele
imaginou ser seda, mas não tinha muita certeza, já que não entendia muito de
moda.
De qualquer maneira, ele apreciou o que viu. O “conjunto da obra”,
como diria seu amigo André.
Melanie era o seu tipo.
A ex-CEO parou de caminhar quando notou que seu chefe não estava
mais ao seu lado. Como era a primeira vez que entrava ali, não sabia bem para
onde ir e não queria soar arrogante, como se não precisasse de ajuda para
encontrar o caminho.
Olhou por cima do ombro e percebeu que Charles estava parado no
mesmo lugar, com a porta do carro ainda aberta. Ergueu inconscientemente as
sobrancelhas, em dúvida, o que fez com que ele explicasse rapidamente:
— Estou me certificando de que você está bem para trabalhar.
Mel hesitou antes de responder, mas quando o fez, foi com certeza na
voz:
— Sim, estou perfeitamente bem, senhor. Podemos…? — pediu e
apontou para a porta da garagem que provavelmente dava no interior da casa.
Ele assentiu e caminhou até ela, abrindo caminho para que Mel entrasse
na frente.
— Bom, bem-vinda à fábrica da Família Miguez — disse com a voz
tranquila enquanto guiava Melanie pela casa ampla. — Escolhemos uma casa
comum para sediar a fábrica pois já era uma propriedade da família. Fizemos as
devidas modificações na estrutura, claro, e começamos aqui mesmo. Alguns
anos depois, transferimos o escritório para o local que você já conhece.
Melanie assentiu com a cabeça e se deixou ser guiada pelos cômodos da
grande casa enquanto ouvia as explicações sobre a história da fábrica, os
produtos oferecidos e os tipos de doce disponíveis na empresa. Todos, por sinal,
pareciam muito apetitosos.
Apesar de ter prestado serviços para a empresa, Mel nunca tivera
oportunidade — ou tempo — para provar nada da Miguez, e mal podia esperar
para o fazer depois que sentiu o cheiro de biscoitos caseiros assando no forno
industrial.
O melhor momento do dia foi conhecer os funcionários. Não houve um
que não tenha sido extremamente solícito e simpático com Mel, que se sentiu
muito bem-vinda, apesar de ser ex-funcionária da empresa de Fernando. Em
breve explicação, Charles explicou a situação, e não houve uma expressão de
reprovação para a jovem. Todos pareceram simpatizar com ela.
Todos, menos seu chefe, que continuava sendo seco e até mesmo rude
com suas constantes e incômodas perguntas:
“Está prestando atenção, senhorita?”
“Entendeu, ou preciso repetir, senhorita?”
“A senhorita não vai anotar nada? Confia tanto assim em sua memória?
Então me diga qual é a diferença entre uma massa sucrée, uma massa frolla e
uma massa brisée? Qual dessas usamos nas linhas de doces artesanais,
senhorita?”
Focando na dor em seu tornozelo, Mel conseguiu se controlar e não
responder o que gostaria a cada pergunta desagradavelmente sarcástica ou em
tom de desprezo, como se ela fosse uma idiota.
A verdade é que Melanie estava tendo uma certa dificuldade para lidar
com Charles. Não por ele ser rude, desagradável, seu chefe ou inimigo de seu pai
— na verdade, esse último item praticamente o tornava seu amigo, já que
Fernando havia se tornado, por escolha própria, uma pessoa indesejada para a
própria filha.
Ela sabia lidar com pessoas de postura arrogante daquele jeito, nada
costumava abalar seu lado profissional, ainda que sentisse vontade de dar
respostas mais... justas. Afinal de contas, ela havia pesquisado tudo aquilo, sabia
de cor e salteado que a Família Miguez era uma fábrica de confeitaria seca, ainda
que estivesse tentando expandir seu marcado para outros tipos de doces.
O grande problema ali era que Charles desconcertava Mel. Era um
homem extremamente imponente, atraente, que tinha certeza do que falava,
quando falava e como falava. Para completar, seu maxilar esculpido, olhos
vibrantes e pele bronzeada tiravam Melanie de seu eixo, o que a deixava
desconfortável, pois aquela situação ia contra seus princípios profissionais.
Era seu chefe, pelo amor de Deus.
O alívio de Mel foi quando uma das confeiteiras, que estava em seu
horário de almoço quando Mel foi apresentada à equipe, apareceu na cozinha e
viu a jovem, correndo para se apresentar. O forte abraço que a senhora baixinha
e enrugada lhe deu foi suficiente para ela esquecer seus hormônios outrora
adormecidos.
— Querida, seja muito bem-vinda! Meu nome é Pérola, sou a
confeiteira-chefe daqui e…!
— Senhora Pérola, poderia controlar suas emoções, por favor? —
Charles pediu com grosseria, o que fez a senhora robusta parar de sorrir e
responder com as mãos na cintura:
— Ora, ponha-se no seu lugar, seu gigante abusado! Charles não te deu
educação não, Júnior? Quem você pensa que eu sou, uma daquelas jovens fáceis
que te cercam como abutres na carniça?
Melanie quase engasgou ao ouvir a reprimenda, mas respirou aliviada
quando ouviu as risadas e pode vislumbrar um sorriso no rosto de Charles, que
foi até a senhora, se inclinou e a abraçou. Aquela cena não passava apenas uma
brincadeira entre os dois.
— Elas não são tão fáceis assim, madrinha, algumas são até de origem
religiosa... Eu acho... Bom, elas adoram ajoelhar — ele respondeu em voz
sussurrada, em tom de brincadeira, levando a senhora a dar uma boa gargalhada
e Mel a corar levemente com o teor da piada. — Como estão os financiers hoje?
— Maravilhosos! Nossa querida estagiária tem mãos de fada, lembra? —
perguntou e apontou para uma jovem de pouca idade, possivelmente vinte anos,
que estava em um canto cuidando da iguaria. — Já apresentou essa mocinha para
ela? Aliás, quem é essa mocinha?
Charles revirou levemente os olhos e mencionou:
— Você se apresentou sem nem saber quem é? É Melanie, a nova
administradora daqui. Vai trabalhar em caráter experimental por doze meses e…
— Experimental? E agora existe contrato de experiência de doze meses?
O que aconteceu com os três meses? Ah! — exclamou quando se deu conta de
algo e pressionou a mão rechonchuda contra a bochecha. — Então ela não é sua
namorada? Peguei o bonde andando…?
— E sentou à janela? Sim, madrinha, foi exatamente o que você fez —
Charles disse com seriedade, mas Mel, ligeiramente encantada com o
relacionamento tranquilo dos dois, notou um certo carinho em sua voz.
Aparentemente, por baixo de todo aquele disfarce rude, havia um homem
que respeitava a família, e isso a agradou muito. Bom, agradou até o momento
em que ele percebeu seu olhar de adoração, franziu o rosto e ordenou:
— Já apresentei você a todos. Você não tem trabalho a fazer agora? Ou
quer que eu faça o seu trabalho primeiro, para te ensinar?
Todo o encanto de Mel evaporou, e ela fez um esforço tremendo para não
responder à altura.
— Ande, pare de ser molega! — ele exclamou grosseiramente, o que fez
com que todos na cozinha ficassem em silêncio, incluindo Pérola, que franziu as
sobrancelhas, mostrando seu desagrado.
Melanie contou até cinco mentalmente, deu um sorriso profissional e
respondeu simplesmente:
— Como queira, senhor.
E saiu da cozinha, indo para a sala/recepção da fábrica, onde havia
deixado seu material de trabalho. Conseguiu ouvir a voz de Pérola dizendo:
— Eu juro por Deus que vou bater em seu traseiro com uma colher de
pau se continuar sendo tão rude com essa pobre moça! Por que ela estava
mancando, Júnior?!
A defesa da senhora a acalmou um pouco, mas, ainda assim, Melanie
prometeu para si mesma que seria a melhor profissional possível ali, porém
jamais deixaria que aquele homem pisasse nela.
Caso ele o fizesse, ela jurou que tornaria sua vida um inferno naqueles
doze meses.
Melanie era uma profissional de categoria, mas não tinha sangue de
barata.





Capítulo 6

Logo o tempo foi passando, e Melanie se viu totalmente à vontade na


Família Miguez após alguns meses. Cuidava pessoalmente de cada detalhe
administrativo, era prestativa e tinha soluções práticas e lucrativas para diversos
problemas, o que a tornava uma pessoa querida para a maioria dos funcionários
da fábrica.
No início, sua vida não foi tão fácil. Seu chefe insistia em brigar por
qualquer bobagem, e ela aguentou calada ao menos no início. Entretanto, a
paciência não era eterna: em uma manobra arriscada, já que isso poderia
acarretar em seu desligamento e, portanto, no término do acordo dos dois, ela
decidiu dar um basta ao mal-estar diário que era estar na presença de Charles.
Sua saída foi passar a frequentar mais a fábrica da Família, alegando diversos
motivos contábeis, até que se instalou de vez lá. Como a casa era bastante ampla,
ela só precisou escolher um dos antigos quartos que serviam de escritórios e
montou sua estação de trabalho no local.
A casa possuía dois andares, mas o segundo quase não era utilizado.
Sendo assim, ela escolheu um pequeno quarto próximo à cozinha onde todos
trabalhavam, para que pudesse ficar perto deles e sentir os cheiros deliciosos de
doces assando. Aquele aroma era sempre uma inspiração a mais em seu dia.
Foi a melhor decisão tomada desde que começou a trabalhar para a
Família Miguez. Lá, Mel era rodeada de funcionários gentis, educados e
prestativos, o contrário do que acontecia no escritório, e logo se enturmou na
família. Criou laços de intimidade com diversas moças e senhoras, bem como
alguns dos poucos funcionários homens da fábrica, frequentou encontros depois
do trabalho, como happy hours, festas de aniversário, enfim.
Melanie passou a fazer parte da família de um jeito que não havia
conseguido nem em sua própria empresa.
Pérola era uma que fazia questão de deixar isso bem claro. Inclusive, a
senhora até brincava que, por pior que Fernando fosse, o soco que ele dera em
Charles Sênior era algo aguardado por todos, já que o presidente não era tão
educado quanto o filho.
Ao ouvir isso, Mel, que estava em seu horário de almoço, comendo um
sanduíche na copa conectada à cozinha, olhou para Pérola enquanto a senhora
incorporava ingredientes em uma massa de biscoitos gourmet, e fez uma
expressão de dúvida.
— Educado? Charles é educado? Estamos falando de qual Charles? Há
um terceiro Charles além do chefão e desse poço de grosseria que você chama de
afilhado? — perguntou com uma voz falsamente inocente, e todos na cozinha
caíram na risada, incluindo Pérola, que parou o movimento com a espátula em
mãos.
— Ah, querida, mas o problema de Júnior é só com você. E não adianta
bronquear com ele, já tentei, mas há algo nele que vai além de implicância por
você ser filha de quem você é… Algo que faz ele perder totalmente o controle...
O que será?
— Amor! — a estagiária dos financiers, como normalmente Amanda era
chamada, exclamou, para surpresa de todos, já que se tratava de uma jovem
calada e tímida.
Assim que o susto dos presentes na cozinha passou, risadas preencheram
o ambiente, deixando a moça corada.
— É verdade, tem cara disso mesmo! — reforçou Ryan, um dos
confeiteiros, um rapaz alto, magrelo e sempre risonho. — Ou é só desejo de
vingança somado a atração. Minha mãe vivia lendo romances com esse tipo de
relacionamento. “O mocinho bruto que quer justiça pelos atos contra a sua
família”. Charles tem a maior cara de mocinho desinteressado!
— Com certeza, tem mesmo! E acho que ele está caidinho por ela, mas
não consegue superar isso, já que ela é filha do inimigo. E, para completar, ainda
é funcionária dele! Imagina o tamanho do processo que ele levaria? — dessa
vez, foi Juliana quem disse, a moça responsável pela limpeza da cozinha,
também jovem como Amanda, porém muito mais extrovertida.
Mel acompanhava o debate de olhos arregalados, com o sanduíche ainda
em mãos e a boca aberta de espanto.
— Eu ainda acho que ele está se apaixonando… — Amanda disse e
quase derrubou a farinha que carregava quando Ryan rebateu:
— Sim, porque você é romântica demais, Amandinha. Para mim, o
negócio é mais em cima: é tesão puro e inquestioná…
— Opa, vamos segurar o palavreado, que há idosas no ambiente —
Pérola mandou, e várias risadinhas puderam ser ouvidas no ambiente. —
Independentemente do que seja, é algo que o deixa diferente. É meu afilhado,
afinal de contas, eu o vi crescer, mas nunca o vi desse modo, tão… na
defensiva… — comentou, sonhadora, olhando para cima, como se a resposta
estivesse nas luminárias da cozinha.
— Claro que ele está na defensiva! Ele quer a moça para si, mas não
pode, pois ela é filha do mal! Oh, me perdoe, Mel — pediu Tamires, outra
confeiteira, ao se dar conta da gafe, mas Melanie nem prestou atenção direito na
ofensa.
A única coisa que passava pela cabeça da administradora era: ele está
interessado em mim?
— Ora, Tami, não seja grosseira! Por mais que o pai dela seja um
cornudo babaca — Ryan começou e precisou desviar de uma espátula
arremessada por Pérola —, não podemos xingar, é família dela!
Nesse momento, Mel aterrissou e parou de pensar em Charles,
defendendo a mulher que ofendera Fernando:
— Ah, não, não é família! Família não faz o que aquele safado fez.
Podem xingar à vontade, todos aqui têm a minha permissão. Inclusive, posso
contar vários podres dele, para todo mundo odiar em conjunto!
Ainda que estivesse brincando, o tom de sua voz no final fez com que
todos parassem suas atividades e olhassem para a administradora com
compaixão. Pérola foi a primeira a dizer algo:
— Sua família somos nós, minha pretinha! — disse a senhora,
chamando Mel pelo apelido que dera por causa da cor de seus olhos e cabelos,
muito escuros, em contraste com a pele muito branca. — Que esse senhor vá
para o raio que o parta, você tem a nós! Não é, turma?
Um grito coletivo de “é!” foi ouvido por toda a fábrica, inclusive por
Charles que acabara de chegar e estava saindo do carro, na garagem da casa.
— Além do mais, não pense que nós esquecemos que dia é hoje,
pretinha! — exclamou a senhora, limpando as mãos no avental e deixando a
massa de biscoito de lado, ainda que não fosse o recomendado.
Melanie arregalou os olhos e desejou que não fosse o que ela pensava.
Mas obviamente era: a equipe da fábrica de doces descobrira seu aniversário.
— Inclusive, como era de se esperar, nós fizemos um bolo ma-ra-vi-lho-
so para você! — exclamou Tamires, que também largou seus afazeres e
caminhou até uma das geladeiras, fazendo com que todo mundo comemorasse
junto em uma algazarra animada que foi rapidamente interrompida por uma voz
alta:
— Mas o que está acontecendo aqui? Que palhaçada é essa? — gritou
Charles, calando a todos e fazendo Mel derrubar seu sanduíche em cima da
mesa.
Mal tendo tempo de ficar feliz pelo carinho de seus colegas de trabalho,
a administradora já teve que se preparar para mais uma bronca. Era óbvio que
Charles aparecera de surpresa para arrumar motivos para brigar com ela. Era
algo comum: ele passava dias sem ir à fábrica, mas quando ia, era somente para
reclamar.
— Eu passo duas semanas fora, quando venho, minha fábrica está de
pernas pro ar? Onde está o profissionalismo que eu conheço tão bem? O que é
isso? — perguntou, entrando, irado, na cozinha e vendo a massa de biscoitos
abandonada por Pérola. — Meu dinheiro dá em árvores para ter material jogado
fora? E essa louça?
Juliana arregalou os olhos ao ouvir a bronca, mas nada disse, estava
muito surpresa com a grosseria do chefe com todos, em especial em uma sexta-
feira: era o dia oficial de comemorar aniversários na empresa, e Charles sabia
muito bem disso.
— Tá criando um ecossistema essa louça já, enquanto a Senhora Juliana
acha ótimo ficar sentada no banquinho da ilha, como se fosse dona do lugar!
— Ora, Júnior, espere um pouco…! — Pérola começou a tentar defender
os colegas, mas nem com a madrinha Charles foi educado:
— Espere um pouco uma ova! Quem é o dono dessa fábrica, é você?
Então fique em silêncio, respeite a autoridade ao menos uma vez na vida, Pérola!
— praticamente urrou, fazendo Pérola ficar em silêncio enquanto planejava
colocar laxante na comida do afilhado na primeira oportunidade que surgisse.
Em seguida, ele caminhou até a mesa na copa, onde estava o sanduíche
praticamente intocado de Mel, e apontou para ele:
— O que é essa nojeira em minha mesa? Nunca ouviu falar em talheres
ou pratos? Jogo americano? Se não tinha o menor conhecimento de higiene, nem
mesmo o básico, por que quis vir trabalhar em uma empresa alimentícia,
senhorita Melanie?
Mel se levantou, o coração aos pulos, e abriu a boca para responder a
ofensa, mas Charles não permitiu:
— É óbvio que esse descontrole em minha cozinha só podia ser culpa
sua! Desde que chegou, é impressionante como só traz o caos para essa empresa!
Eu devia ter escutado meu advogado e percebido que você não passa de uma
interesseira que só queria entrar aqui para finalizar o que seu pai começou! Tal
pai, tal…
Todos seguraram a respiração quando um sonoro tapa foi presenciado.
Com lágrimas nos olhos, mas com a expressão dura de quem havia sido
profundamente magoada, Melanie continuou com a mão erguida após agredir
seu chefe, como se tivesse se arrependido, mas não quisesse demonstrar.
— Meça suas palavras. Sou sua funcionária, não seu saco de pancadas.
Em nenhum momento, nesses meses todos em que estou aqui, faltei ao respeito
com você ou com nenhum de seus funcionários, nem fiz nada que pudesse
quebrar a frágil confiança que você depositou em mim.
Charles, que virara brevemente o rosto para o lado ao ser esbofeteado,
agora olhava para ela com a incredulidade estampada em toda a sua expressão
corporal.
— Não somente isso, eu resolvi diversos problemas administrativos que
você nunca conseguiu sanar, nem sozinho, nem com os administradores
terceirizados que vieram antes de mim! Não há nenhuma razão para esse
descontrole comigo! Se é seu desejo me demitir, que demita de uma vez, mas
apenas...! Pare de me torturar, por favor....
O que era para ser um grito de liberdade acabou se tornando um pedido
quando sua voz falhou no final da frase e uma lágrima escorreu por seu rosto. Ao
notá-la, Melanie pegou o resto de seu almoço e saiu da cozinha sem olhar para
ninguém em especial, murmurando pedidos de desculpas a todos e indo se fechar
em seu pequeno escritório.
Charles continuou parado no mesmo lugar, a vergonha por sua explosão
de injustiça começando a consumi-lo. Não sabia o que acontecera para agir
assim, não era o seu normal tratar qualquer pessoa com tamanha violência, que
dirá uma funcionária sua.
Ela estava coberta de razão: em nenhum momento dera motivos para que
ele a tratasse daquela maneira, e ele sabia disso, por isso o remorso o atingia
com mais força do que o tapa que recebera — merecidamente, por sinal.
Charles ouviu um barulho seco ao seu lado e se virou para ver do que se
tratava.
Com surpresa, viu Pérola de braços cruzados, ao lado de uma das ilhas
da cozinha, olhando para ele com cara de poucos amigos.
— Madrinha, eu… — ele tentou dizer algo, mas ela acenou com a
cabeça para o objeto que provocara o barulho, e Charles seguiu o seu olhar.
Na sua frente havia um naked cake muito bonito, com ganache de
chocolate visível entre uma camada e outra e um pequeno unicórnio colorido, de
biscuit, espetado ao lado de uma velinha de aniversário. No lugar de um número,
havia um ponto de interrogação, já que a equipe não sabia qual era o ano de
nascimento de Melanie.
— O que é…? Para quem é esse bolo? — Charles perguntou somente e
olhou ao redor, mas seus funcionários não responderam e deixaram que Pérola se
entendesse com o afilhado.
— Nunca, nesses trinta e cinco anos que eu conheço você, fiquei tão
decepcionada quanto hoje. Sei que não deveria puxar sua orelha na frente de
todos, mas como seu descontrole desmedido aconteceu em minha cozinha, estou
mandando minha ética profissional para o lixo.
Charles respirou fundo e, apesar de ser o CEO da empresa, ficou calado
aguardando a merecida bronca.
— Você não somente foi injusto com todos, como entrou em minha
cozinha… Sim, minha cozinha. Não é porque você é o CEO, que essa cozinha
seja menos minha. Ponha-se no seu lugar atrás daquela mesa chique no
escritório, pois sem mim, essa fábrica não existe.
Os funcionários estavam desconfortáveis com aquela situação, e a tensão
era tão palpável, que Pérola reduziu a bronca para poder dissipá-la de uma vez.
— Você entrou em minha cozinha, berrou um bocado de injustiças e
estragou o que seria uma breve comemoração de aniversário de uma jovem que,
ao contrário de você, não têm família para comemorar.
Charles abriu os olhos o suficiente para que Pérola pudesse ver sua
surpresa e arrependimento.
— Hoje é sexta-feira, dia de comemorar os aniversários, você sabe
muito bem disso. Por coincidência, é o aniversário de Melanie. Enquanto você
não pedir desculpas a ela, você está proibido de entrar em minha cozinha. Tome,
leve o bolo até o escritório dela. Anda, xispa daqui!
E expulsou seu chefe-afilhado do ambiente. Assim que saiu de lá,
carregando um bolo pesado e apetitoso em mãos e uma dose extra de culpa nas
costas, Charles obedeceu, como um homem que respeitava sua família acima de
tudo, às ordens de sua madrinha, e foi rumo ao escritório.
No caminho, ouviu discretas comemorações e elogios à Pérola vindas da
cozinha e se sentiu pior ainda por seu comportamento.
Mel realmente tinha o poder de tirar sua cabeça do eixo. Isso ficou claro
para todos naquela tarde na fábrica de doces gourmet.


Capítulo 7

Melanie ouviu batidas na porta do escritório, mas não respondeu. Estava


tentando se concentrar em relatórios e qualquer coisa que a fizesse não pensar na
demissão que estava por vir.
Onde ela estava com a cabeça quando esbofeteou aquele homem? Sim,
ele merecera, sim, ele fora um completo babaca, mas essa não era Melanie. A
Melanie real era profissional, controlada e educada, não uma histérica que saía
distribuindo tapas a três por dois, como se fosse uma criança birrenta.
A verdade é que ficou profundamente ofendida por ter sido comparada
com seu pai. Ela não era como o pai, jamais seria. Era uma mulher honrada, de
bom caráter e que seguia os ideais ensinados por sua mãe, uma mulher digna,
apesar de ter casado com quem casou. Como Melissa saberia que Fernando seria
um criminoso? As pessoas não possuem etiquetas que revelam seus defeitos, não
é verdade? Até porque a mãe falecera antes de Fernando iniciar seus atos
criminosos.
Mais do que ofendida, Melanie ficou magoada por aqueles impropérios
terem vindo de Charles. Por mais que tolerasse suas grosserias calada, havia um
fogo dentro da jovem, ocasionado pela atração intensa que sentia por seu chefe,
que nublava sua vista e a fazia sentir vontade de empurrar Charles contra a
parede a cada vez que ele reclamava de algo e o beijar com paixão, extravasando
todo o desejo que sentia.
Some a esse desejo toda a grosseria habitual do CEO. Não era uma boa
combinação. Frustração sexual e mágoa são sentimentos péssimos de serem
combinados, ainda mais no ambiente profissional.
Como vivia para o trabalho, havia muito tempo que Mel não era tocada
por um homem. Para piorar a situação, a cada dia que passava, a jovem sentia
mais e mais o fogo consumi-la por dentro a cada vez que via seu chefe, a cada
vez que eles se esbarravam acidentalmente ou que ele entrava em seu escritório
para conferir certos dados que poderiam ser informados por e-mail ou telefone.
A estranha questão que Charles fazia de ir vê-la semanalmente, quando
não havia a menor necessidade, afinal, a visita à fábrica era mais por costume do
que por obrigação, confundia Melanie. Parecia um prazer estranho em perturbá-
la!
Além disso, segundo a senhora madrinha do CEO da Miguez, Charles
nunca se envolveu diretamente com os administradores a ponto de frequentar
seus escritórios. Sim, é verdade que todos eles trabalhavam no mesmo prédio em
que o CEO tinha sua sala, mas o contato dele com esses funcionários sempre foi
restrito, de acordo com a confeiteira-chefe.
Se aquilo tudo fosse verdade, por qual razão Charles vivia entrando no
escritório de Melanie, senão por aquilo que a equipe da cozinha afirmava? Qual
seria a razão para aquelas visitas além da possível atração?
Por um breve momento, Melanie se permitiu acreditar naquilo e até
vislumbrou um futuro em que, passando toda a confusão com seu pai, ela
poderia se perder nos braços do chefe por ao menos uma noite.
Mas, após aquela demonstração violenta de desagrado e sua reação frente
a ela, Melanie apagou de seus sonhos tal possibilidade. Ainda assim, quando ele
viesse demiti-la, ela sairia de queixo erguido, sabendo que, ao menos, conseguira
quitar uma parte da dívida do pai, de modo a preservar sua casa até conseguir um
emprego que a permitisse resolver o seu problema, bem como um advogado que
pudesse protegê-la de perder sua moradia.
— Melanie? Posso entrar? — perguntou Charles, e Mel prendeu a
respiração por um momento, mas logo respondeu:
— Sim, pode.
Seu tom de voz era seco, e ela torceu para que permanecesse desse modo
enquanto a última humilhação fosse aplicada por aquele homem que amava ser
detestável.
Charles entrou e fechou a porta atrás de si. Para a surpresa da jovem, em
suas mãos havia um bolo, que ele deixou em cima de sua mesa antes de tirar o
terno e o colocar de lado. Em seguida, ainda calado, Charles puxou a cadeira
extra do diminuto escritório, se perguntando por que ela preferia aquele cubículo
ao escritório espaçoso de seu prédio.
Imediatamente, entretanto, ele soube a resposta ao notar seus olhos
desconfiados o mirando. Era tão óbvia, que ele se espantou por não ter percebido
antes.
— O motivo de você vir trabalhar aqui foi… por minha causa? — ele
perguntou com seriedade, porém cautelosamente.
Melanie olhou para a face de Charles e quase suspirou de alívio ao ver
que não havia marcas de sua mão ali. Só o que havia era uma expressão que
mesclava culpa com uma certa insatisfação.
— A pergunta é séria, ou é mais um motivo para você se descontrolar e
descontar sua raiva em mim?
Charles balançou levemente a cabeça e respirou fundo, como se
controlasse. Um longo minuto se passou com os dois se encarando, praticamente
sem piscar, até que o CEO resolveu fazer de uma vez o que precisava fazer:
— Melanie, gostaria de pedir desculpas por minha atitude. Você tinha
razão, não havia motivos para o que eu fiz, e peço que me perdoe pelas palavras
que disse. Garanto que não acredito em nenhuma delas.
— Então por que disse? Sabendo que eu tomei a iniciativa de resolver
financeiramente o impasse entre nossas empresas não somente porque preciso,
mas principalmente porque discordo das atitudes de Fernando, por que achou
que seria de bom tom me humilhar na frente de todos com palavras mentirosas?
Charles balançou a cabeça para os lados, como se negasse as palavras
que ecoavam nas paredes do escritório, e prometeu:
— Você tem a minha palavra de que isso não se repetirá. Não é de meu
feitio tratar ninguém desse modo, e não há desculpas para o que eu fiz. A única
coisa que posso dizer para me justificar...
Ele hesitou antes de falar, fechou e abriu a boca uma ou duas vezes antes
de finalmente dizer:
— Acho que eu senti uma certa inveja de todos.
Mel franziu o cenho, entortou levemente a cabeça para o lado, confusa, e
perguntou a que ele se referia.
— De ver todos tão bem-entrosados, quando o máximo que eu consigo é
dar broncas desnecessárias em vez de conversar civilizadamente com você.
A sinceridade crua de Charles impressionou a ambos, que ficaram em
silêncio por um momento, até que Melanie, um pouco emocionada com a
declaração, disse:
— Ok, desculpas aceitas. Peço perdão pelo tapa. Foi um descontrole de
minha parte que também não faz parte de quem eu sou. Para ser sincera, foi a
primeira vez que bati em alguém… — ela confessou com um pequeno sorriso
culpado, apesar da tensão que sentia nos ombros.
Charles sentiu os lábios se curvarem em um sorriso e acabou se
surpreendendo novamente ao ver que o climão na sala começava a se dissipar
mais rápido do que ele imaginava.
— Esse bolo é meu? — perguntou Mel, apontando para o naked cake, e
riu quando ouviu a resposta:
— Não, é o bolo de aniversário do gato do vizinho — brincou Charles,
com um tom não agressivo na voz.
— Não me diga que hoje é aniversário do Faísca!? — ela respondeu e
abriu a boca em choque, fingindo.
— Ah, aquele gato gordo e preto se chama Faísca? Não sabia… —
Charles comentou, impressionado, e riu em seguida. — Vamos assoprar essa
vela de ponto de interrogação de uma vez. Já que eu estraguei o seu aniversário,
então ao menos vamos comer um bolo gostoso.
A jovem sorriu abertamente, abriu uma das gavetas de sua mesa e tirou
sua nécessaire, pescando um isqueiro de dentro e fazendo o que Charles sugerira.
Mal a vela em formato incomum começou a tremular sua chama,
Melanie a assoprou de uma vez, voltou a pegar sua bolsinha, retirou um pequeno
jogo de talheres enrolados em um tecido florido e cortou desajeitadamente dois
pequenos pedaços do bolo, oferecendo para seu chefe a parte que lhe cabia
equilibrada em cima da faca.
— Meu Deus, você conseguiu cortar a menor fatia que eu já vi na vida
sem quebrar o bolo. Aposto que ela está transparente! Vou botar você para cortar
os bolos de rolo!
Dessa vez, Melanie gargalhou, o que fez com que o bolo equilibrado
caísse nos joelhos dos dois, que quase se encostavam durante aquela estranha
reconciliação entre um chefe e uma funcionária.
Na cozinha, Pérola e a maior parte dos funcionários da Miguez
pressionavam o rosto na parede que fazia divisa com a cozinha e o escritório de
Mel, na tentativa de ouvir o que os dois diziam.
— Ela está rindo! Ai, minha Santa Sara Kali, ele conseguiu o perdão dela
— a senhora robusta exclamou, levando a mão ao peito.
— Eu não disse que ele ia conseguir? Eu sabia! — disse Tamires, dando
pulinhos.
Todos começaram a comentar a conversa, vibrar e fazer apostas, menos
Amanda, que estava ocupada fazendo os financiers que eram sua marca
registrada enquanto um sorriso brincava em seus lábios e ela repetia para si
mesma:
— Eu não disse que era amor? Eu disse...


Capítulo 8

Após os pedidos de desculpas de ambos e as fatias finas de bolo


devidamente devoradas, Charles resolveu, em um impulso, convidar Mel para
jantar.
— É tradição da empresa comemorar os aniversários de seus
funcionários — explicou quando viu a expressão desconfiada de Melanie, que
apontou para o bolo partido, como quem dissesse “sim, eu sei, e nós já
comemoramos”.
Charles respirou fundo e admitiu:
— Ok, é o meu jeito de compensar o fiasco de agora. Apenas um jantar
simples, em algum lugar à sua escolha.
Mel pensou em brincar e escolher um restaurante caríssimo, mas achou
melhor não abusar da sorte, então apenas sugeriu:
— Ok, vamos pedir uma pizza aqui, depois do expediente. Ou podemos
ir até uma pizzaria, talvez seja mais... adequado.
Charles ponderou por um momento, mas deu de ombros:
— A escolha é sua. Uma pizza, então. Eu passo aqui após o final do dia.
Pode ficar depois dele?
Ela sorriu e assentiu, selando o acordo de paz de ambos, e em seguida os
dois foram cada um para os seus afazeres.
Porém, por mais que tentassem, nenhum dos dois conseguia não pensar
em como se acertaram rapidamente e em como as batidas do coração de cada um
estavam estranhamente descompassadas, como se uma simples pizza na copa
fosse um grande evento.
Pareciam dois adolescentes, estranhamente animados, o que ia totalmente
contra os eventos daquele dia, em que um agredira o outro, seja fisicamente ou
com palavras.
Horas depois, quando todos já haviam ido embora — e comido suas
fatias do bolo de aniversário de Mel, que passou o resto do dia agradecendo por
tudo, a ponto de Pérola ralhar com ela —, a ex-CEO se viu sozinha na fábrica
pela primeira vez.
Apesar de ser chamada desse modo, a fábrica nada mais era que uma
residência comum, adaptada para os devidos fins, com direito a casas vizinhas,
tudo em uma rua segura. Por isso, a jovem não sentiu medo de ficar ali sem
companhia.
Entretanto, seu coração estava disparado por imaginar que ficaria sozinha
com seu chefe pela primeira vez desde que o conhecera. Estranhamente, seu
receio não era sobre a figura dele. Não havia desconfiança sobre suas intenções,
nem temor de que Charles fizesse mal a ela, de modo algum.
Por mais irritadiço que fosse, ele jamais demonstrara comportamento
violento, além do tradicional rude e daquela explosão no mesmo dia.
O medo de Melanie era sobre si mesma. A atração que sentia por Charles
não diminuíra nem quando ele gritara com ela, apenas se transformara em
frustração sexual. Seria preciso uma grande força de vontade e profissionalismo
de sua parte para não se adiantar e beijar aqueles lábios cheios e sensuais de seu
chefe.
O barulho do carro de Charles a fez parar de pensar bobagens e ir até um
dos banheiros para verificar se seus trajes estavam de acordo com o esperado.
Assim como todos os funcionários, Mel mantinha uma muda de roupas em seu
armário no vestuário da fábrica, para o caso de algum acidente na cozinha sujar
uma de suas roupas.
É claro, a muda de roupas em questão era um vestido simples, de malha
preta, mangas compridas e saia rodada que terminava pouco acima dos joelhos.
Não havia necessidade de se manter uma roupa de gala ali. Até porque o
encontro seria apenas uma pizza.
Aliás, nem seria um encontro. Era apenas uma pizza.
Apenas isso.
Mel tentou se convencer de que era exatamente o que ela gostaria, mas
seu coração nutria a vontade de que fosse, sim, um encontro.

Assim que entrou na casa, Charles se pegou pensando no alívio que


sentia por sua funcionária ter ido para aquele dia de trabalho vestindo calças
sociais, e não saias. Suas longas pernas eram uma perdição para ele, que fazia
um esforço tremendo para não as notar quando estavam de fora.
Normalmente, era quando ele ficava mais arredio, pois estava tendo
muito trabalho para se portar de modo correto na frente de Melanie. Ele não
poderia perder o controle por uma centena de razões éticas e profissionais, mas
principalmente por saber que, mesmo se suas desconfianças sobre a atração entre
os dois estivessem corretas, não seria o certo a se fazer naquele dia.
Um dia, quem sabe, depois que o impasse entre as duas empresas se
resolvesse, talvez ele poderia convidar a jovem para um jantar direito, em um
encontro normal. Enquanto ela trabalhasse para ele, porém, jamais poderia
encostar em um dedo dela.
Principalmente depois do que acontecera naquela tarde, quando ele fora
tão desagradável e mal-educado.
— Você é muito pontual! — exclamou Melanie, e ele levou um susto ao
vê-la parada ao lado do sofá da sala, com um sorriso no rosto e um vestido no
corpo.
Um maldito vestido.
Charles quase gaguejou e, assim que trancou a porta, apontou para ela e
perguntou:
— Você trocou de roupa?
Ela olhou para a peça que cobria seu corpo, a alisou sem perceber e
respondeu:
— Sim, eu tomei um banho! Estava toda suada, sabe? Um certo chefe
meu me irritou ao longo do dia, isso me estressou, e eu fiquei toda grudenta.
Charles deu uma longa risada e caminhou até ela, parando a uma
distância segura, curtindo a naturalidade com que Mel estava brincando com ele.
— Eu tenho duas certezas: esse seu chefe deve ser um idiota.
— Correto — ela disse audaciosamente e tapou a boca com as mãos,
contendo uma risada. — Perdão! Foi sem querer, escapou!
Ele voltou a rir e acenou com a cabeça, como se dispensasse as
desculpas.
— É justo que você ache isso depois do que fiz hoje. Não se preocupe.
— E qual é a segunda certeza? — perguntou, um sorriso tranquilo
enfeitando o rosto.
Charles se perdeu naquele sorriso, que tantas vezes viu direcionado a
outras pessoas, mas nunca a ele, e respondeu, ainda em tom de brincadeira:
— Não há nada mais sexy do que uma mulher dizendo que está grudenta
de suor.
Mel colocou as mãos na cintura, dobrou um pouco a perna, fazendo uma
pose bem canastrona, e respondeu:
— Nossa, você ia enlouquecer se me visse, então. Dava para produzir
velas com todo aquele grude no meu corpo.
Ele fechou os olhos, fingindo saborear a imagem mentalmente, e
perguntou:
— Uau. Velas de que cor?
— Da cor mais luxuriosa possível: cinza-poluição. Da cor do Faísca.
Miau!
Ainda rindo do clima descontraído, os dois fizeram os pedidos pelo
telefone para uma pizzaria — escolhida, claro, por Mel — e sentaram no sofá na
sala, mantendo novamente a distância segura para ambos.
Enquanto aguardavam a pizza chegar, começaram a conversar sobre
amenidades, trabalho, clima, até que o assunto que Melanie menos gostaria de
debater no dia de seu aniversário surgiu: seu pai.
— Ele sempre foi assim, Charles, principalmente depois que mamãe
morreu — explicou após ser questionada sobre sua relação com Fernando. —
Sempre querendo dar um jeitinho em tudo, para lucrar mais em cima dos outros,
para sair de bonitão da jogada…
— A ponto de fraudar a própria empresa?
Ela assentiu e explicou:
— O clássico empresário vitimista: fingia estar mal das pernas para não
pagar os direitos dos funcionários. Coube a mim tentar salvar a empresa da
família quando atingi a idade para isso.
— Sinto muito — ele disse com sinceridade, e ela apenas sorriu à guisa
de agradecimento. — Você sabia do esquema de fraude?
Ela franziu as sobrancelhas por um momento, como se estivesse
ofendida com a sugestão, então Charles reformulou a pergunta:
— Quero saber se você sabia e tentou impedir, ou se foi surpresa para
você e só soube quando tudo explodiu. Não estou insinuando que você foi
cúmplice.
— Ah, sim. Não, esse foi bem… mal planejado, digamos assim. Só
soube quando ele me ligou avisando que tudo deu errado. Até então, eu achava
que realmente se tratava de um assalto que nada tinha a ver com ele.
— Compreendo. E onde está seu pai agora, que mal lhe pergunte?
A dúvida de Charles, por mais que fosse honesta, também era um teste.
Se ela hesitasse ou demonstrasse que gostaria de proteger o pai, lhe daria
motivos para que desconfiasse de sua honestidade.
Para seu alívio, ela apenas suspirou e disse:
— Na casa de parentes que não sabem do que ele fez. Na fronteira com a
Argentina, não sei exatamente a localização, pois não tenho contato com essas
pessoas, mas sei que é por ali.
— Sei… E a bomba ficou no seu colo para resolver? Por que não deixou
que tudo explodisse de uma vez, já que decretou falência de qualquer modo?
— Porque o processo do seu pai me faria perder minha casa — ela
admitiu com tristeza. — É meu único bem e a única lembrança de minha mãe.
Como você e o senhor Charles aceitaram a minha proposta e interromperam os
processos contra Fernando, eu ganhei tempo para decidir o que fazer para me
proteger das loucuras dele. Se vocês desejarem tirar tudo dele, por mim, tanto
faz, meu maior problema é perder meu lar.
Charles franziu o cenho enquanto ouvia tudo aquilo e, sem perceber,
tocou o queixo, como se estivesse refletindo sobre algo. Era um hábito dele, ela
já havia notado.
— Charles? O que houve? — perguntou quando notou que ele estava
aéreo.
— Ah. Me perdoe. Foi só algo que me passou pela cabeça sobre isso
tudo.
Melanie não entendeu o que ele quis dizer com aquilo, portanto
imaginou que ele estivesse apenas desgostoso com seu relato e decidiu mudar de
assunto:
— Mas não vamos falar sobre o meu adorável parentesco com aquele
calhorda do Fernando. Vamos falar sobre… — ela olhou ao redor, procurando
um assunto. — Faísca! — exclamou quando o gato do vizinho entrou pela
janela.
— É, realmente, esse é um excelente assunto, o gato gordo que acha
nossa fábrica uma extensão de seu quintal.
Mel, que se levantara para ir acariciar o bichano, parou no meio do
caminho ao notar suas palavras.
“Nossa fábrica”.
Charles, ao notar que a súbita parada da jovem, se levantou também e
caminhou até ela.
— Melanie? Tudo bem? — perguntou e olhou pela janela,
acompanhando seu olhar, temendo que alguém estivesse tentando invadir a casa.
— O que você viu?
Melanie desviou o olhar e o fitou nos olhos, piscando rapidamente,
como se tentasse se recompor.
— Não, nada, eu… só viajei por um momento. E essa pizza, que não
chega, hein?
Apesar de suas tentativas de fingir que nada havia acontecido, as
palavras de Charles e as consequências delas em Melanie fizeram aquilo que os
dois estavam tentando evitar ao longo de todo aquele encontro acontecem:
Os dois se viram próximos um do outro.
Próximos até demais.
Próximos o suficiente para que toda a química que pairava entre os dois
desse sinal de vida e ambos ficassem conscientes dela: a respiração de Mel ficou
levemente ofegante, os lábios de ambos se entreabriram, o desejo ferveu com
muita intensidade.
Nenhum dos dois sabe bem quem fez o primeiro movimento. Talvez, o
movimento tenha sido sincronizado. A questão é que em um segundo eles se
olhavam, no outro, a distância entre os corpos foi consumida, os lábios se
chocaram, as línguas se encostaram e mãos agarram nucas com paixão, tudo
ocorrendo ao mesmo tempo.
Enquanto os dois se entregavam ao desejo outrora reprimido, nem
escutaram quando um motoboy chegou com a pizza solicitada e buzinou tanto
que o vizinho, dono de Faísca, acabou indo ver o que era, pagou a pizza e, como
vingança por ter sido acordado, levou a pizza de Charles e Melanie e comeu
sozinho, em companhia de seus gatos, incluindo Faísca, que escapuliu pela
janela assim que Charles deitou o corpo de Melanie no sofá.
Faísca era um gato abusado, mas não a ponto de ficar encarando as noites
de sexo alheias.

Assim que se deu conta do que acabara de fazer com seu próprio chefe,
foi como se um balde de água gelada caísse sobre a cabeça de Melanie. Deitada,
ainda nua, por cima de Charles, sentindo as batidas intensas de seu coração sob
pele suada, a jovem administradora levantou a cabeça e viu o rosto atraente do
homem agora totalmente relaxado.
Levantando-se abruptamente, Mel tratou de pegar a primeira roupa que
encontrou no chão para cobrir a súbita vergonha que sentiu. Charles abriu os
olhos e não entendeu a cena que se passava à sua frente: sua mais nova amante
tentando se vestir, como se estivesse desesperada para ir embora.
— Melanie? O que houve? — perguntou, esticando o braço para pegar
suas roupas e as vestindo enquanto via a mulher ajeitando o sutiã com pressa.
— Isso… isso foi um erro, Charles. Você… — ela estava ofegante, tanto
pelo esforço de vestir as roupas, quanto pela atividade física intensa de
momentos antes. — Você é meu chefe…! Ai, meu Deus…!
Charles terminou de vestir a calça e foi até ela, a impedindo de continuar
com aquela loucura, segurando gentilmente seu braço e puxando seu queixo para
que ela o olhasse.
— Nem esfriamos ainda, e você já se arrependeu? — brincou, e ela
imediatamente respondeu:
— Mas é claro! Isso não poderia ter acontecido!
— Por que, eu sou tão ruim de cama assim? Ah, já sei, é porque foi no
sofá, não é? Garanto que minhas habilidades são incríveis em uma cama de
verdade. Sabe como é, apoio para os joelhos, mais aderência, essas coisas.
Mesmo a contragosto, ela riu da piada, mas logo ficou séria e tentou
rebater. Charles logo a silenciou com um beijo calmo, diferente daquele urgente
de outrora, que resultara naquele ato impensado de momentos antes.
Melanie, indo contra as suas expectativas, não recusou o beijo, pelo
contrário. Se entregou como se fosse o primeiro que trocavam, abraçando
Charles com força, como se quisesse fundir os corpos em um só.
Quando finalmente interromperam o beijo, Mel continuou de olhos
fechados e ouviu a frase que mais queria escutar naquela noite:
— Vamos tentar não pensar em mais nada essa noite. É seu aniversário.
E voltou a beijá-la ardentemente.
Mel não fez nenhuma objeção à sugestão, pelo contrário.
Naquela noite, só comemoraria de todas as formas possíveis.




Capítulo 9

O novo relacionamento dos dois foi devidamente escondido dos outros


funcionários, a pedido de Melanie, que tinha vergonha de julgamentos. Afinal,
por mais que todos fossem incríveis com ela, nada mudava o fato de que Charles
era chefe de todos, era o CEO, filho do presidente da empresa.
Mara, a amiga espevitada da administradora, entretanto, soube em
primeira mão e vibrou pelo telefone.
— Amiiiiiga, finalmente você transou! Ai, minha Nossa Senhora das
Causas Perdidas, muito obrigada por mais uma bênção!
— Mara! Ok, eu vou desligar, sua louca! — Mel ameaçou, ainda que
risse, e Mara berrou do outro lado da linha:
— Nããão! Eu me controlo, prometo! Por favor, me conta os detalhes!
Como foi?
Melanie suspirou, tentando não parecer uma adolescente apaixonada, e
confessou:
— Perfeito. O melhor aniversário de toda a minha vida.
— Ai, bem no meu coração… — a amiga reclamou, fazendo voz triste.
— Eu fiz aquela festa com tanto amor e carinho no ano passado… Mas ela só
pensa na festa da salsicha!
— Agora vou desligar!
— Nããão! Ok, parei, espera!! Me conte, vai!
Rindo e com as bochechas pegando fogo pelo comentário da amiga, Mel
começou a contar sobre como foi a primeira noite. Contou das conversas, de
quando ele se referiu à fábrica como sendo dela também, do primeiro beijo, de
como seu vestido logo encontrou o chão e os dois fizeram amor vibrante no sofá,
levando Mel a ver estrelas há muito desconhecidas em companhia de um
homem.
Mara gargalhou quando a amiga contou que eles perderam a pizza, então
comeram todo o estoque de biscoitos gourmet que estavam prestes a vencer
enquanto a nova pizza não chegava, e riu mais ainda quando Mel confessou que,
no retorno da cozinha, após o assalto ao estoque, a administradora levou o chefe
para seu escritório e fez amor com ele lá, confessando à amiga que era seu
desejo antigo.
— Isso é óbvio! Quando você me contou desse encontro, eu procurei no
Google esse homem, e benzadeus! Que homem delicioso! Parece aqueles
modelos capas de romances de livro de CEO!
— Bom, ele é um CEO, né? Assim como eu também era, não se esqueça
disso.
Mara ficou em silêncio por um momento, e Mel riu dessa hesitação,
imaginando que sua amiga estava refletindo sobre o cargo de presidência de
Charles.
— Não tinha pensado nisso, sabia? Meu Deus, Mel, você está dormindo
com um CEO sendo uma ex-CEO! Isso é incrível! Me diz, ele tem um imenso e
bem grosso…?
— Ok, agora vou desligar! Beijo, Mara!
— Beijo, amore mio! Amo você! — a amiga exclamou, rindo que nem
criança do constrangimento de Mel.
— Eu também, Maravilhosa. Beijo!
Minutos depois de ter encerrado a ligação, Mel ainda ria sozinha de
tudo, sentindo que, pela primeira vez em muito tempo, um pouco de felicidade
se fazia presente em sua vida sempre tão confusa pelos erros de seu pai.
Seu chefe, outrora uma pessoa desagradável, mudou da água para o
vinho, o que tornou seu trabalho muito melhor. Além disso, é claro, Mel podia
extravasar todo o desejo que sentia por Charles, assim como nutrir um
sentimento mais agradável do que o desprezo que sentia antes.
Charles, em seu apartamento luxuoso, pensava o mesmo, só que de outro
modo: finalmente pôde parar de agir como um homem insuportável perto dela
apenas por não conseguir conter o desejo que sentia por aquela mulher.
Ainda que não admitisse nem para seu melhor amigo e advogado, o
CEO da Miguez não tirou Mel da cabeça desde o dia em que a conhecera. Agora
que podia confessar isso para si mesmo, essa atração toda que o consumia, ele se
sentia mais leve, além de estar plenamente satisfeito com o fato de que a mulher
alvo de seus interesses ser alguém tão maravilhosamente fascinante. Linda,
sensual, profissional, um pouco tímida, apesar da segurança, divertida,
honesta…
Essa última característica enchia Charles de alívio. Temera, e havia certa
lógica nisso, que ela realmente fosse filha de seu pai, no sentido metafórico da
coisa, ou seja, que quisesse seguir os passos de Fernando no mundo do crime.
Mas sua intuição não falhava, por isso ele dera a chance para ela, a despeito do
que seu advogado — e mesmo seu pai — falara.
Olhando para os encontros rápidos e escondidos que teve com Mel ao
longo daquelas semanas, mesmo que somente para roubar um beijo em seu
escritório, Charles concluiu que valera a pena as horas que passara para
convencer seu pai de que, sim, era arriscado confiar em Mel, mas que ele
assumiria os riscos.
Seu pai, que de bobo não tinha nada, notou que havia algo de diferente
no filho, então concordou com aquela ideia um pouco estapafúrdia de acordo,
não sem antes passar um longo sermão no seu primogênito, é claro.
Por mais sério que fosse, Charles-pai amava Charles-filho do jeito que
um pai deve amar seu filho. Não do jeito torto e abusivo que Fernando tinha de
amar Melanie. Por isso, o senhor torceu para que tudo desse certo, pois queria
somente o bem do filho.
Até aquele momento, tudo estava dando certo, pensou Charles, e se
continuasse assim, quem sabe ele não conseguiria aprofundar a relação dos dois
e trazer tudo a público?
Ele apostava todo o seu patrimônio que Pérola vibraria com a notícia.
Tomado por uma súbita animação, comum aos novos amantes quando
pensam nas pessoas queridas, Charles pegou seu telefone e ligou para Mel a fim
de convidá-la para um jantar em seu apartamento.
A jovem hesitou por um momento, mas logo esse instante passou;
pensou um grande “que se dane” e aceitou o convite.
Os dois passaram a segunda noite juntos, e a opinião de que a segunda
foi ainda melhor que a primeira foi unânime. Dessa vez, Mel dormiu com ele, já
que fizeram amor até a exaustão, e, ao contrário da fábrica, ali havia uma grande
e convidativa cama.
Mel e Charles tomaram o café da manhã juntos em clima de namoro,
rindo, trocando carícias, roubando beijos, dando beijos e quase não ligando para
a comida. Tudo estava se encaixando rapidamente, e quem visse de fora, nem
imaginava que aqueles dois brigavam como cão e gato não fazia nem um mês.
A vida tem dessas coisas, felizmente.





Capítulo 10

Mais ou menos dois meses após o início do relacionamento secreto entre


chefe e funcionária — que de secreto não tinha nada, já que todos na fábrica
desconfiavam, ainda que nada falassem na presença dos dois —, Amanda não
conseguiu resistir e soltou a pergunta que cem por cento dos funcionários da
Família Miguez gostaria de fazer:
— Vocês estão juntos, não estão?
A cozinha, que trabalhava a todo vapor, imediatamente ficou em silêncio,
e cada pessoa ali dentro olhou para Mel, que comia seu almoço na copa, como
de costume. Demorou um longo minuto para ela perceber que a pergunta fora
dirigida à sua pessoa.
— Oi? — balbuciou, arrancando risadas de todos, que vibraram com a
timidez repentina da colega.
Cada um dos confeiteiros largou seus afazeres e correu até a mesa,
parando ao redor dela e encarando a ex-CEO, que sentiu as bochechas pegando
fogo. Até os funcionários de outras áreas apareceram na cozinha.
— Ah, vai, pretinha, estamos derretendo de curiosidade há semanas! Seu
humor melhorou, o humor de Júnior melhorou, ele vem até aqui com mais
frequência do que antes e toda hora vocês se enfiam naquele escritório
minúsculo para “discutir contabilidades” — Pérola fez aspas com os dedos, e
seus colegas assentiram em expectativa.
Mel arregalou os olhos, aterrorizada, e desejou que um buraco se abrisse
no chão e a engolisse.
Tentando não dar bandeira, ela limpou os lábios com um guardanapo,
para tentar ganhar tempo, e começou a tentar se explicar:
— Bem, nós... Há mudanças em determinadas áreas administrativas
que... Eu sugeri novos planos de ação para... Enfim... Coisas.... Outras coisas
novas... e unicórnios...
Todos entortaram a cabeça para o lado, de forma quase cômica, e
Tamires foi a primeira a perguntar:
— Você anda bebendo em horário de trabalho, querida? Sabe que é
contra as regras, não sabe?
Mel acabou rindo, apesar do constrangimento, e respirou fundo,
relaxando a tensão. Eram seus amigos, afinal de contas, não precisava se
preocupar tanto.
— Não, eu falo sério, é verdade. Há diversas novas ações sendo
implementadas, vocês sabem disso, eu fiz laboratório com vocês, e Pérola quem
está entrevistando os novos funcionários, né? Além disso, Amanda toda hora vai
comigo para feiras de gastronomia e cultura, né, Mandy?
Ela assentiu com a cabeça e abriu um sorriso tímido.
— Nunca achei que eu seria tão popular entre o pessoal popular... — ela
comentou, dando uma risadinha. — É sério, gente! Mel já me levou para vender
os biscoitos em feirinhas hipsters tantas vezes, que eu já conheço todo mundo de
nome ou de vistas! Fui reconhecida até no supermercado como a menina dos
biscoitos.
Melanie assentiu com a cabeça, sorrindo. Sua ideia de introduzir a
Família Miguez a um novo público de consumidores fora um sucesso.
Originalmente, os doces eram vendidos a estabelecimentos, como por exemplo
cafeterias, salões de beleza, restaurantes, etc. Depois da nova ação de Mel, o
público-alvo da Miguez deixou de ser somente empresas e se tornou pessoas.
Um excelente exemplo de local de venda dos biscoitos e financiers foram
as duas feiras mais famosas entre o público jovem no Rio de Janeiro: a Babilônia
Feira Hype e a Feira Independente de Qualquer Coisa, ambas extremamente
rentáveis e multiculturais. Mesmo que Amanda fosse uma jovem tímida, era uma
vendedora muito dedicada e trouxe diversos novos clientes para a empresa em
seus “bicos” nas feiras, com sua barraquinha de doces artesanais.
Além disso, Melanie apresentou um novo projeto, baseado no sucesso
que foi a linha de financiers de Amanda, de implementação de outros tipos de
massa que não somente as da confeitaria seca: além dos tradicionais biscoitos, a
Miguez em breve começaria a expandir os negócios para abarcar também o
mercado de éclairs, canelés, doces de massa choux, também conhecida como
“massa carolina”, para confecção de doces pequenos ou bombas, e, futuramente,
muffins, cupcakes e macarons.
Apenas a apresentação da ideia para Charles já foi suficiente para que os
olhos do CEO brilhassem. Fazia parte dos planos da empresa essa expansão,
porém o presidente e seu filho, bem como Eliane, acionista da Família Miguez
— mãe de Charles Júnior e esposa de Charles Sênior nas horas vagas —, não
haviam encontrado um modo de iniciar tais planos.
Melanie não somente fizera uma pesquisa completa com os confeiteiros
da Miguez, como fora atrás de fontes de pesquisa e rodara a cidade verificando o
que estava em alta no mercado de doces artesanais. Desse modo, fez um de seus
famosos dossiês e, com ajuda de sua amiga Mara, cabelereira extremamente
antenada nas modernidades, principalmente hipsters, bolou a campanha de
marketing de trazer o visual em alta no momento: tons pastéis ou futuristas e
modernos, como hologramas, designs tropicais, muita cor, muito glitter
comestível e, claro, temáticas envolvendo seus queridos unicórnios, que estavam
em alta entre o público jovem.
Após explicar os detalhes que a equipe ainda não conhecia, Pérola
colocou as mãos na cintura e reclamou:
— Ah, por isso chegou aquele carregamento de cortadores de biscoito
com formatos bizarros! Unicórnios? Eram unicórnios? Júnior é um pilantra, nem
me avisou de nada! Mas o que eu sou, não é mesmo, além da confeiteira-chefe?
— perguntou e pegou um rolo de macarrão no armário, balançando no ar como
se planejasse tacá-lo na cabeça de Charles.
— Ah, é que ele ainda vai testar antes de começar algo, eu fiquei de
ajudar. Além disso, ele ia te comunicar hoje mesmo, combinamos ontem à
noite...
Mel imediatamente tapou a boca com as duas mãos, vermelha como uma
dedo-de-moça, e largou seu sanduíche em cima da mesa ao ouvir gritos de
comemoração. Ela podia jurar por Deus que fora sem querer, mas não adiantaria,
ninguém ligava sobre como a informação havia chegado até eles. O que
importava era que a ex-CEO e atual administradora finalmente assumira seu
relacionamento com seu chefe.
— O que está acontecendo aqui? — Charles perguntou, entrando de
surpresa na copa, exatamente como acontecera no aniversário de Mel, meses
antes.
A cena, inclusive, era muito parecida: uma comemoração, Mel deixando
o sanduíche cair na mesa e ele surgindo sem aviso. A diferença é que, daquela
vez, havia um sorriso no rosto do dono da empresa, que não passou despercebido
por ninguém.
Logo todos fizeram silêncio, ainda que sorrissem, e voltaram aos seus
afazeres. Salvo Pérola, que deu a benção ao afilhado e, logo em seguida, ergueu
o pau de macarrão em sua direção.
— Seu safado, que papo é esse de unicórnios? Eu sou a última a saber de
uma linha de doces agora, é?
Charles ergueu uma sobrancelha e olhou para Mel, que ainda estava de
olhos arregalados, constrangida demais para conseguir falar alguma coisa.
— Ah, é uma nova linha de biscoitos sugerida pela Mel, madrinha. Eu ia
comunicar a você hoje, para começarmos os testes. É tudo bem inicial ainda,
como todas as linhas, esqueceu?
Pérola cruzou os braços, fazendo seu imenso busto ficar ressaltado no
vestido, antes de dizer:
— Olha só, senhor CEO, não me venha trazer coisas doidas para cá, que
essa é uma empresa de família! Daqui a pouco você me aparece com biscoitos
em formatos esquisitos!
— Ah, devo cancelar os biscoitos em formatos de seios, então? Poxa, eu
escolhi pessoalmente as formas, que decepção... — ele brincou enquanto
caminhava tranquilamente pela cozinha, pegava um prato e talheres e entregava
para Mel. — Continua comendo na mesa sem prato, não é? Não sei por que
ainda me espanto...
Seu tom de voz era tão tranquilo e pacífico, quase amoroso, que os
funcionários todos se entreolharam, positivamente surpresos.
Charles parecia um homem apaixonado, achando graça das manias da
namorada.
E, a julgar pelo rubor que coloria a face de Melanie, era mais ou menos
isso que ele realmente era.
— Ah... Obrigada, desculpa, eu... Não tenho hábito de comer sanduíches
com garfo e faca...
Charles puxou os talheres de volta e os guardou na gaveta de onde os
tirou, dizendo:
— É verdade, esqueci desse detalhe. Mas não tem problema, só use os
pratos, que dar formiga aqui não é exatamente algo bom, você sabe — disse com
a voz calma. — Escuta, quando terminar o almoço, pode dar um pulinho na sua
sala? Preciso conversar com você sobre...
— Contabilidade... — Amanda completou, distraída enquanto moldava
um financier, e imediatamente se recriminou pela língua solta quando todos a
olharam. — Ah, desculpe! Eu vou... farinha... estoque... — e apontou para a
porta do outro cômodo, praticamente correndo, morta de vergonha.
Enquanto Mel tentava não rir daquela cena, recolheu seu almoço e
colocou no prato, seguindo Charles até o escritório e ouvindo as risadas
baixinhas.
— Eles já sabem, né? — ele perguntou quando Melanie fechou a porta
atrás de si e deixou seu sanduíche em cima da mesa. Quando assentiu com a
cabeça, ainda corada, ele encostou na parede e a puxou pelo braço, beijando sua
boca com calma.
Quando se separaram por um momento, ela pediu:
— Desculpa, eu deixei escapar que fizemos um acordo ontem de noite, aí
eles deduziram...
Ele franziu o nariz, como se não se importasse com aquilo.
— Eu conheço todos eles, são ardilosos. Uma hora iam arrumar um jeito
de arrancar uma... confissão. Mas há uma vantagem nisso: não precisamos mais
esconder, precisamos?
Melanie piscou algumas vezes, as mãos apoiadas no peito másculo de
Charles, e engoliu em seco. Não sabia bem o que aquela conversa era, e estava
confusa demais para conseguir falar algo.
O que havia começado como uma relação profissional conturbada logo
evoluiu para um relacionamento puramente sexual, que, por sua vez, aos poucos
ia virando algo... maior. Ela podia negar, não querer admitir, mas a cada encontro
furtivo, a cada noite de paixão no apartamento de Charles, a cada palavra
carinhosa, Melanie ia se envolvendo mais, e mais, e mais...
Até perceber que estava totalmente apaixonada por seu chefe, filho do
homem que seu pai tentou roubar. A família Miguez não tinha motivo algum
para gostar de sua família, ela compreendia, por isso aquele relacionamento
quase shakespeariano a confundia.
— Ahn... O que... isso significa...?
Charles percebeu imediatamente seu desconforto: Mel saiu de mulher
apaixonada em seus braços para uma jovem quase tímida e nervosa com suas
palavras. Ora, o que ela pensava? Que aquilo tudo era somente diversão para
ele? O CEO deu uma risada, pensando em como aquele estranho relacionamento
entre os dois mais parecia um primeiro namoro de adolescentes, em vez de algo
entre dois adultos profissionais. Ele mesmo tinha seus momentos de descobertas
ao lado dela.
— Significa o que significa, ué. Que não precisamos mais esconder... Ou
precisamos?
Ela piscou algumas vezes e mirou seus lábios, se distraindo por um
momento. Passou o indicador no queixo forte, sentindo a pele macia até encostar
em sua boca.
— Não estávamos... escondendo, escondendo de verdade...
Charles deu uma risada baixa e a trouxe mais de encontro a seu corpo.
— Sim, eu sei, apenas não jogávamos na cara de todo mundo.
— E é isso que vamos fazer agora? — ela comentou, abrindo um sorriso
divertido. — Que tal uma linha de biscoitos com nossos nomes entrelaçados?
A risada de Charles foi ouvida perfeitamente da cozinha.
— Iam vender muito... Minha mãe seria a primeira a comprar,
definitivamente.
Mel tapou os olhos com a mão que estava usando para acariciar o rosto
dele. Sua risada era uma doce canção para Charles.
— Meu Deus, em que momentos saímos de chefe e empregada que se
odeiam para esse casal de adolescentes planejando biscoitos confeitados, senhor
Miguez?
Novamente, os funcionários ouviram as risadas de onde estavam e
acabaram acompanhando, mesmo que à distância, o namoro, agora não mais às
escondidas, de sua colega de trabalho e seu chefe.
— Contabilidade... — Amanda comentou, um amplo sorriso no rosto, e
todos riram alto, sentindo o clima romântico e leve se espalhar pelos cômodos da
fábrica da Família Miguez.
Tudo parecia nos seus devidos lugares, agora.
Que viessem biscoitos de unicórnio, a confeiteira-chefe nem ligaria se
fossem biscoitos em formato de mula.
Pérola estava plenamente satisfeita.





Capítulo 11

— Entra, Charles, só não... repara na bagunça... — Mel pediu, parada na


porta, e se afastou para que ele entrasse em sua casa.
Logo da entrada do terreno, ele já havia notado que algo estava errado
ali. Localizada em um bairro pacato da zona norte do Rio de Janeiro, a
residência de Mel, outrora lar de sua finada empresa, era uma charmosa casa de
esquina em uma rua arborizada no Méier. Com um grande terreno, ideal para
vans de entrega estacionarem na época da TST, a casa era dividida em duas
construções: uma de dois andares, onde Mel morava, e um puxadinho, onde
ficava o antigo escritório e sede da Turano Soluções em Transporte.
O que mais impressionou Charles não foi o tamanho do lar de Mel — ele
já esperava algo naquelas proporções, portanto era natural que a família vivesse
com conforto. O que o chocou foi o vazio do terreno: sem carros, a pequena
piscina no canto esvaziada, nenhum enfeite ou mesmo flores pela grama —
ainda que ela estivesse bem cuidada — que se espalhava por toda a área externa.
Quando entrou na casa, seu susto foi maior: o interior da residência era
tão vazio quanto o exterior. Não havia sequer pinturas grandes na parede da
antessala.
Mel trancou a porta, um pouco envergonhada por Charles ver sua casa
vazia, mas tratou de fingir que não havia nada de errado.
— Vem, vou te mostrar a casa. Não há muuuito o que mostrar, há mais
cômodos do que novidades, mas faz parte do protocolo te apresentar tudo, né?
Vamos começar pela cozinha — ela tentou parecer animada, mas Charles, que
ainda estava com o cenho franzido, notou seu tom de voz.
Entrando na cozinha, ela fez um gesto amplo, apontando para os
pouquíssimos móveis — uma mesinha de quatro lugares com duas cadeiras e um
conjunto de armários no canto — e para o fogão industrial.
Não compreendendo o motivo de ela ter um fogão daquele tamanho, ele
apontou para o eletrodoméstico e olhou Mel, que entendeu sua dúvida e
explicou:
— Foi a única coisa que não consegui vender. Minha mãe comprou
porque os funcionários vivam comendo aqui, então de vez em quando havia
almoços coletivos na empresa. Todo o restante foi vendido, troquei por coisas
menores — apontou para a geladeira no canto da iluminada cozinha.
Charles começou a desfazer o nó da gravata e a deixou em cima da mesa,
junto de seu terno, carteira e celular, enquanto ponderava.
— O que você quer dizer com “todo o restante”? Você vendeu mais
alguma coisa?
Ela ergueu os ombros, como se aquilo não fosse algo que a machucasse
profundamente, um grande demonstrativo da traição de seu pai, de sua solidão e
do fracasso de sua carreira de CEO, e respondeu:
— A gente tem que fazer o que tem que fazer, né? Vem, vamos ver a sala,
depois eu te mostro o quarto. Acho que é o melhor lugar para te mostrar — ela
respondeu com um sorriso travesso no rosto, levando Charles a rir, ainda que a
contragosto. Não estava confortável em saber que sua namorada precisara abrir
mão de tanta coisa por causa do calhorda do ex-amigo de seu pai...
Namorada.
Soou bem aos ouvidos dele, então o chefe de Melanie fez uma nota
mental de elaborar um pedido que fizesse jus ao que sentia pela funcionária.
Assim que chegaram na sala, ela fez o mesmo gesto amplo e disse:
— Poderíamos fazer algo aqui, porém...
— Você não tem sofá — ele concluiu, o bom humor se esvaindo
rapidamente ao ver a sala com as duas cadeiras que faltavam na mesa da
cozinha, uma estante com alguns livros e uma televisão de tubo no chão, ao lado
de uma luminária.
Olhando melhor, notou que havia um futton no chão, então imaginou que
ela usasse a sala como um espaço de leitura. Voltando a atenção para a estante,
olhou os títulos por um momento e continuou intrigado. Eram poucos livros,
antigos, pareciam refugos de sebo, daqueles que livrarias de usados recusam na
hora de comprar.
— Por que você...? — tentou perguntar, mas Mel, ainda tentando soar
animada, o puxou pelo braço.
— Não faz pergunta difícil! Vem, agora os quartos! — e o levou escada
acima até o segundo andar da casa.
Igualmente vazio, a ponto de a voz de Mel produzir eco nas paredes.
— Olha, ali ficava o quarto dos meus pais, ali era o meu quando criança
e esse aqui — apontou para uma porta de madeira maciça, muito bem entalhada
— é o meu agora. Escolhi esse porque é o mais... Hm... Habitável da casa.
Sem mais explicações, ela abriu a porta e deu passagem para Charles
entrar. Assim que o fez, ele compreendeu o que ela queria dizer com “habitável”:
era o cômodo com maior quantidade de espaço ocupado, e ainda assim, não
parecia totalmente utilizado. Um armário embutido que ocupava uma parede
inteira, uma cama de casal, uma pequena televisão de LCD que dividia espaço
com um DVD Player em uma escrivaninha, dois criados-mudos, um repleto de
livros e outro com um tablet, carregadores de celular e um Moleskine, tudo
muito bem organizado.
Ao contrário do restante da casa, o quarto era todo decorado: pinturas nas
paredes, um lustre moderno, alguns bibelôs, cortinas elegantes, tudo muito
harmonioso. Havia uma recorrência de unicórnios ali que fez Charles rir: uma
aquarela acima da cama, algumas almofadas, dois ou três bichinhos de pelúcia,
bibelôs de acrílico pintados em tons holográficos e um móbile curiosamente
infantil com vários unicórnios pequeninos e muito coloridos.
— Ah, esse móbile foi meu quando criança. Guardei porque me lembra
de mamãe — ela explicou com um sorriso no rosto, sem aparentar estar triste. —
O restante é tudo presente de Mara, uma amiga minha muito querida. Tudo que
ela vê de unicórnio, compra, inclusive quando vai viajar. Não sei se deu para
notar, mas eu gosto de unicórnios.
Charles riu da piada, terminou de olhar tudo e voltou sua atenção para
Mel, que tinha os braços para trás, em uma postura profissional que ia contra o
local onde estavam. Quase riu de sua pose de executiva, mas achou melhor não
brincar. Não naquele momento.
— Isso é um videogame? — ele perguntou, vendo um objeto semelhante
a um videocassete coberto com uma toalhinha repleta de desenhos de unicórnio.
— Ah, sim! Eu cobri para não pegar poeira, não estou com tempo para
jogar.
Charles assentiu com a cabeça e olhou as caixas de plástico contendo
jogos da desenvolvedora Colt Company , responsável pelo que Charles
[2]

considerava os melhores games de toda a geração atual. Achou curioso que Mel
gostasse dos mesmos jogos que ele, até que lembrou de uma série de games
muito famosa que envolvia... unicórnios.
Incrivelmente, o quarto de Mel era moderno, iluminado e realmente
parecia habitado por alguém doce, porém forte, tal e qual a figura mitológica.
— Por que a casa inteira parece vazia, enquanto seu quarto é a única
parte que parece ser... ocupada?
Ela ergueu os ombros rapidamente, como se aquilo não fosse nada.
— Como eu disse, a gente tem que fazer o que a gente tem que fazer,
Charles.
— Sei... E o que “a gente tem que fazer” significa vender tudo que havia
aqui dentro para pagar as burradas do seu pai?
Ela estalou dois dedos na frente do rosto.
— Bingo, senhor CEO.
Charles sabia que era aquilo, mas ficou estupefato ao ouvir a
confirmação. Não era possível que Fernando tenha feito tanta besteira àquele
ponto!
— A maior parte das coisas dessa casa eram de meu pai. Compradas por
ele, quero dizer. Eu vendi tudo que dava para vender, doei o que encalhou e
fiquei somente com o que me interessava ou o que pertencia à minha mãe.
Mesmo com essa explicação, não fazia sentido para ele.
— Mas mesmo sofás e móveis básicos?
Novamente ela ergueu os ombros.
— Eu não sei quando vou precisar sair daqui. Achei mais fácil vender
tudo, quitar o que precisava ser quitado e guardar o restante para quando for
embora.
Agora fez sentido, ele pensou e se aproximou de Melanie, botando as
mãos em seus braços, esfregando a pele fria e a abraçando por um momento.
— Você não tinha algo guardado, um fundo de reserva? Precisou tanto
assim se livrar de tudo?
Ela acenou com a cabeça e hesitou antes de responder:
— Ainda tenho, mas não quero tocar nele. Não sei o que me aguarda
daqui a alguns meses, se vou trocar de emprego, se vou sair daqui... Fiz o que
precisava fazer: me livrar de tudo do meu pai, assim como ele fez com tudo que
ele e minha mãe suaram tanto para construir.
Charles abraçou Mel com mais força, sentindo o ódio consumi-lo. Era
nítido o quanto viver naquela casa imensa e vazia era dolorido para Melanie, e
aquilo o incomodava demais, principalmente por saber que nada era culpa dela.
Logo Melanie tratou de animar Charles, garantindo que estava tudo bem
e que tudo ia se ajeitar algum dia. Mas ele não acreditou e fez outra nota mental:
conversar com seu advogado e ver se suas teorias sobre uma possível alternativa
para ela realmente estavam corretas.
O pedido de namoro ficaria para depois. Não havia mais clima para algo
tão especial assim. Porém, ele jurou que não demoraria muito a resolver as
coisas entre eles.
E Charles, ao contrário de Fernando, era um homem de palavra.




Capítulo 12

Mel chegou na fábrica da Família Miguez quase uma hora antes do


esperado. Estava exultante para contar a novidade para seus colegas, por isso
acabou se antecipando e abriu a casa, facilitando o trabalho dos funcionários que
ainda chegariam.
Quarenta minutos depois, os primeiros funcionários começaram a chegar,
estranhando a fábrica já estar aberta. Quando Tamires e Amara entraram na
grande cozinha industrial, notando Melanie sentada na cadeira da copa, feliz
como uma criança, logo concluíram o que não deviam:
— Ele te pediu em casamento? Ahhh!! Que lindooo! — Tamires gritou e
abraçou Amanda, que sorria, encantada.
Melanie parou de sorrir imediatamente e se levantou, erguendo as mãos
para as duas, como se tentasse silenciar a gritaria.
— Não! De onde vocês tiraram...?
— Quem vai casar? — Ryan perguntou ao entrar na cozinha, de mochila
nas costas, ainda meio sonolento naquela segunda-feira chuvosa.
— A Mel e o Patrão! Ele pediu a Mel em casamento! — Tamires
exclamou, dando pulinhos sem sair do lugar.
Melanie parecia uma maçã-do-amor, de tão vermelha.
— Não, ele não...!
— QUEM VAI CASAR? AI, MEU DEUS! — Pérola exclamou e levou
as costas da mão direita à testa, em um gesto dramático. — RYAN, ME
SEGURA, QUE EU VOU DESMAIAR, MEU AFILHADO VAI CASAR COM
A PRETINHA!
Mel tentou explicar a todos que não era nada daquilo, mas à medida que
novos funcionários chegavam, a algazarra aumentava, até que a bagunça que se
instalara ficou tão grande, que ninguém nem notou quando ela escapuliu da
cozinha e foi para a área externa.
Respirando fundo, sentindo o coração martelando no peito, ela ligou para
Charles, que atendeu quase imediatamente:
— E aí, contou para eles? — perguntou, soando animado.
— Éan... Não... Eu tentei, mas eles entenderam... outra coisa... Você vai
passar aqui em algum momento?
Charles estranhou o tom tímido que ouviu, mas logo concluiu que
provavelmente seus funcionários imaginaram coisas sobre eles dois, alguma
coisa sobre namoro ou, se bobear, casamento, como era costumeiro. Não ficaria
surpreso se Pérola tivesse encabeçado o mal-entendido: era o sonho da madrinha
ver o afilhado casado.
— Sim, daqui a meia hora eu saio daqui e a gente conta juntos, pode ser?
— Pode, obrigada! — respirou fundo, aliviada. — Eu comandei a
empresa de meu pai por anos, mas aqui eu me sinto uma estagiária. Como você
consegue lidar com funcionários tão... animados? Os meus eram tão sérios e
taciturnos!
Charles riu do outro lado da linha e explicou:
— É uma grande família, por isso. É ótimo na maioria do tempo, mas de
vez em quando há um certo... limite sendo ultrapassado.
— Nem me diga... Preciso comprar uma maquiagem mais forte, estou
ficando corada como uma adolescente aqui... Enfim, venha logo, estou louca
para contar tudo!
Charles prometeu que sairia em breve e logo encerrou a ligação. Mel
guardou o celular no bolso da calça social e girou nos calcanhares para voltar à
sua sala, quando ouviu um barulho e olhou por cima do ombro, vendo uma
mulher desconhecida trancando o portão atrás de si.
Seu queixo quase caiu. A mulher parecia uma modelo de passarela:
extremamente alta, magra, com longos cabelos dourados que caíam em cascata
por suas costas. Sua roupa era de grife, seus sapatos com certeza custavam uma
parte significativa do salário atual de Mel e sua pele gritava “EU ACORDEI
ASSIM”, com direito a letras miúdas que diziam “graças ao meu dermatologista
milionário”.
A única coisa que Mel conseguiu pensar foi na música da colombiana
Shakira, Don’t Bother, principalmente quando a cantora menciona que se sente
uma pulga perto da nova namorada de seu amado. Era exatamente assim que
Melanie se sentia: um bichinho sem graça perto daquela mulher.
Mas, para fazer justiça, provavelmente a Gisele Bündchen se sentiria um
picolé de chuchu perto de Nana.
A estonteante mulher, que estava distraída olhando seu iPhone dourado
enquanto caminhava rumo ao interior da fábrica, quase esbarrou em Mel, que
saiu da frente bem na hora, e ergueu os olhos, mirando a ex-CEO.
— Oh! Me perdoe, moça, eu não te vi! — exclamou, dando um sorriso
simpático e entrando em seguida, sem esperar resposta de Melanie, que apenas
piscou por um momento, se perguntando quem era aquela pessoa, mas entrando
em seguida, logo atrás da beldade.
Ao contrário do que esperava, Mel acompanhou com o olhar Nana ir não
para a cozinha ou mesmo para o escritório, mas sim para o lavabo mais próximo
da sala, ficar um minuto lá e sair se abanando.
Notando que a ex-CEO a olhava com ar de dúvida, Nana bufou e
comentou:
— Sabe quando você come algo que não para no estômago? Vou te falar,
se fosse possível, eu diria que estou grávida... Enfim, avise ao Lili que passei
aqui, faz esse favor? Volto em meia horinha, preciso de um remédio para enjoo.
E, alisando a barriga extremamente reta, ela se foi da fábrica, deixando
Melanie totalmente confusa e, por que não dizer, um pouco enciumada.
Lili?
Ela se referia a Charles?
Quem era aquela mulher estranha e o que ela era do CEO da Família
Miguez?

Uma hora depois, Charles apareceu na fábrica, bem mais atrasado do que
deveria, pois precisou resolver alguns problemas no escritório. Entrou na casa
correndo, ofegante, e parou na cozinha, botando as mãos nos joelhos enquanto
recuperava o fôlego.
Assim que o notaram, todos gritaram comemorações. A ausência de Mel
nem foi percebida, de tão animados que todos estavam com o suposto
casamento. O CEO teve trabalho para explicar que, não, não era um pedido de
casamento, mas sim o anúncio de que Melanie fora efetivada na empresa,
deixando de ser contratada para virar administradora oficial da Família Miguez.
Como não teve opção, acabou contando a novidade sem a presença de
Mel, que estava enfiada em sua saletinha, tentando não agir como uma mulher
ciumenta e bolar conclusões absurdas em sua mente.
Porém, era difícil não pensar besteiras! Lili? Que intimidade aquela
beldade, obviamente milionária e elegante, tinha com Charles! Era natural que
ela pensasse várias coisas, ainda mais depois que ele conhecera sua casa, que
não era bem motivo de vergonha, mas seria suficiente para espantar muitas
pessoas.
Era isso então? Ele não gostara de sua situação, daí voltara para amantes
mais... qualificadas que uma ex-CEO cuja empresa falira debaixo de seu nariz?
— Mel? — Charles bateu na porta do escritório antes de abrir e entrar. —
Por que está aqui, e não na cozinha? Ah, eu me atrasei e você veio adiantar o
trabalho, certo? Desculpa, eu tive...
— Não, tudo bem, não se preocupe — ela disse, tentando soar calma e
profissional. — Está tudo certo. Estou cuidando de uma papelada aqui, preciso
enviar os pedidos dos fornecedores novos. Ah, uma moça alta e loira passou aqui
tem meia hora, quarenta minutos. Pediu para te avisar que ia voltar em breve, só
foi comprar remédio para enjoo.
Charles arregalou os olhos, parecendo assustado. Para Mel, aquela
expressão dizia que fora pego no flagra, e aquilo arrasou a administradora.
— Loira e alta? Tem certeza? Enjoo? O que Nana veio fazer aqui? — ele
se perguntou, parecendo subitamente ansioso, e saiu da sala sem dizer mais nada,
rumando para o seu escritório particular, no segundo andar da casa.
Melanie, que já estava insegura, ficou ainda mais com a pulga atrás da
orelha. Ou se sentindo uma pulga, na verdade, tal e qual a música...
Decidiu se afundar no trabalho para tirar a cabeça dos ciúmes que
borbulhavam em seu peito. Mais tarde ela poderia perguntar, como adulta, quem
era aquela modelo de passarela e o que ela era para Charles.





Capítulo 13

Vinte minutos depois que decidira apenas trabalhar, a cabeça de Mel já


estava doendo, de tanto que ela tentava se concentrar. Não era habitual de sua
parte agir daquele jeito, e ela logo sentiu uma pontada no peito, sabendo muito
bem o que aquilo significava.
Decidiu tirar a questão a limpo de uma vez, antes que aquilo tudo se
convertesse em uma imensa enxaqueca. Arrumou sua mesa, deixando tudo
organizado, se levantou e caminhou pela fábrica, subindo as escadas rumo ao
segundo andar.
Ao contrário do térreo, aquele andar ainda se assemelhava a uma
residência, não um local comercial: seus quartos mantinham a estrutura básica de
antes da reforma, e Mel se perguntou, distraída, se aquela fora uma casa tão boa
de morar quanto a sua era no passado.
Logo se pegou pensando no pai e não conseguiu refrear a comparação ao
pensar na tal da Nana: se Charles a traísse do jeito que estava parecendo, seriam
duas grandes apunhaladas em muito pouco tempo. Seu pai e seu... amante.
Mas, não, não devia ser o que ela imaginava, ela não queria crer na
possibilidade.
Porém... Eles não eram namorados. Ele estava livre para se envolver com
quem quisesse, e ela sabia perfeitamente disso, mesmo que doesse.
Chegando na porta do escritório de Charles, lugar que ela — ou os outros
funcionários — nunca visitavam, ela ergueu a mão para bater na porta, quando
ouviu vozes. Mel se esforçou muito para não ouvir atrás da porta, mas foi mais
forte que ela, principalmente quando a risada de Nana se fez presente, a
assustando.
— Não seja escandalosa, Natércia — Charles repreendeu, mas Mel notou
diversão em sua voz.
— Ora, Lili, não seja um chato de galochas! Eu não consigo acreditar
que você cogitou a possibilidade de eu estar grávida! Você não sabe que para um
bebê ser fecundado é necessário que uma abelhinha encontre uma florzinha?
Mel franziu as sobrancelhas, tentando entender o que ela queria dizer
com aquilo.
— A abelha poderia ser uma fertilização in vitro, concorda?
Novamente, a risada de Nana correu pelos corredores do segundo andar.
Melanie estava confusa com o desenrolar da conversa.
— E você acha que eu faria uma coisa dessas sem te avisar? Por quem
me tomas, ó, cunhado safado?
Cunhado!
Mel quis gritar de felicidade ao ouvir aquilo, mas se conteve. Nana era
cunhada de Charles, provavelmente casada com um irmão dele!
Estranho, pensou Melanie de repente. Charles não havia contado a ela
que tinha um irmão homem... Apenas que tinha uma irmã mais velha, que ela
ainda não havia conhecido, uma moça chamada Lisandra...
— Lili, a minha Lili me mataria se fosse a primeira a engravidar. Você
sabe que é o sonho de sua irmã carregar nosso futuro filho na barriga, e eu
jamais vou tirar isso dela!
“Ah! Ela é casada com a irmã dele!”, Mel concluiu e abriu um sorriso ao
ouvir o apelido que Nana chamava a esposa.
— Pare de me chamar de Lili, ou chame somente minha irmã assim, sua
nojenta. É esquisito chamar duas pessoas de gêneros diferentes pelo mesmo
apelido.
Nana realmente gostava de rir, ela pensou. Nem parecia que estava
botando os bofes para fora uma hora antes.
— Mas chega de falar dos meus enjoos obviamente causados por
intoxicação de doces Miguez. Vamos falar de você e de sua nova namorada. É a
moça de cabelos e olhos muito pretos que eu esbarrei mais cedo?
Mel quase colou a orelha na porta, ainda que se recriminasse por fazer
aquilo.
Charles não respondera, então ela concluiu que provavelmente ele
acenara com a cabeça.
— Nossa, Charles, ela é linda! Você já pegou ela aqui?
— Aqui onde? — ele perguntou.
— Aqui, na fábrica, ué. Já?
— Eu não vou responder isso, você é minha cunhada!
— Nem ligo, fale logo, que eu quero contar pra Lili! Ela está ansiosa
para saber. Pegou ela aqui?
Um breve silêncio se fez presente, e logo outra risada correu pelas
paredes, fazendo Mel dar um pequeno salto de susto.
— Você não presta, Lili! Sabia que você ia conseguir isso, essa sua
vingancinha sórdida! E se vingou exatamente do jeito que disse, transando no
meu antigo escritório! Blergh, que nojo, nunca mais eu como um biscoito da
Miguez, eu...
Mel imediatamente parou de ouvir tudo depois que a palavra “vingança”
penetrou em seus ouvidos.
Era isso?
Todo o relacionamento deles ao longo de várias semanas era isso?
Uma vingança?
Sua cabeça rodou por um momento, e ela precisou se apoiar na parede.
Claro que era, fazia todo o sentido. O fato de ela nunca ter sido
apresentada à família dele, o fato de ele sempre ficar misterioso quando ela
falava sobre a casa, a reação dele ao conhecer a antiga sede da Turano Soluções
em Transportes...
Era tudo parte de um plano de vingança contra seu pai por meio dela!
Ferir o pai por meio da filha!
Uma risada incrédula saiu de sua garganta, e ela imediatamente tapou a
boca e correu escada abaixo, temendo ter feito barulho suficiente para os dois
ouvirem.
Enquanto rumava ao seu escritório com os olhos nebulosos de lágrimas,
Mel só conseguia pensar em como os dois foram tolos: ele, por achar que o pai
se importaria com a filha, ela, por ter se apaixonado por seu chefe e inimigo
direto de sua família.
Sim, porque a ideia de que “inimigo do meu inimigo é meu amigo” só
funciona em livros e filmes. Na vida real, se você tem relação com o inimigo, é
fuzilada sem nem ter chance de defesa.
Ainda mais se os laços forem sanguíneos.
Mel arrumou sua bolsa, pegou suas coisas e deixou um bilhete, avisando
que estava se sentindo mal, mas que faria seu trabalho de casa. Sem olhar para
trás, saiu da fábrica, notando que, mais uma vez, ela se via sem alternativa.
Não podia largar o emprego, pois acabara de ser efetivada, e seria
péssimo para sua reputação que descobrissem que sua demissão foi por ter
dormido com o chefe. Não podia continuar normalmente no emprego, pois
precisava encarar quase diariamente o homem que amava e que a traíra. Não
podia ir embora e recomeçar do zero, pois precisava cumprir com o acordo feito
com a empresa, ou seu pai voltaria do limbo, depois de meses em silêncio, e ela
perderia de vez a casa.
Não havia alternativa para Mel, a não ser torcer para que Charles não
prosseguisse em sua tentativa de vingança e que o tempo curasse o coração
novamente partido.
Enquanto ia para sua casa vazia, ela pensou em como teria sido melhor
que ele a tivesse traído. Uma escapada teria doído menos que aquela apunhalada
tão baixa e vil. Tudo fora armado e arquitetado.
Se vingar de Fernando esquentando sua cama... Depois, ao ver que ela
era competente, já que os planos de novas linhas de doces gourmet visando
público jovem havia sido um sucesso, a contratar para ser sua empregada e
provavelmente esfregar em sua cara quem mandava ali... Era demais para
Melanie.
Juntando os cacos de seu coração, ela não viu saída a não ser aceitar sua
condição de traída e torcer para que a dor passasse em algum dia.
Procurar outro emprego também seria uma excelente ideia, e ela jurou
que, quando conseguisse parar de chorar, o faria de algum modo.



Capítulo 14

Charles Miguez, o presidente da Família Miguez, nunca vira seu filho


daquele jeito, tão aéreo, e sabia exatamente o motivo: a filha de seu desafeto, o
maldito Fernando.
— Maldita a hora em que aquele desgraçado entrou em minha vida... —
murmurou para si mesmo na mesa de jantar de seu duplex no Leblon.
Sua esposa desviou o olhar do filho e o fixou no marido, perguntando
silenciosamente o que ele havia dito.
— Aquele escroto do Fernando... Fez merda comigo, fez merda com
minha empresa e agora fez merda com minha família — disse e apontou para
Charles, que estava distraído cortando um bife no prato.
Ao ouvir o nome do pai de sua ex-quase-namorada, o jovem CEO ergueu
a cabeça e olhou para os pais. Sabia que estava sendo uma péssima companhia
naquele jantar, mas não conseguia evitar. Sua mente ia e voltava de Mel a cada
segundo em que não estava concentrado no trabalho.
Tudo em que conseguia pensar era em seu sorriso, seus cabelos
perfumados e macios, seu corpo quente colado ao seu, sua risada tímida, seu tom
de voz profissional... E imediatamente o desânimo o socava com tudo ao lembrar
que ela estava tratando-o com frieza havia quase um mês, e ele nada conseguia
fazer para quebrar aquela muralha de gelo erguida por Mel.
— Desculpa, do que vocês estão falando?
Sua mãe deixou os ombros caírem, em um gesto de chateação, e disse:
— Seu pai estava falando de Fernando e de como ele tem o poder de
interferir em nossas vidas, meu amor.
Charles limpou a boca com um guardanapo e deixou os talheres de lado,
ouvindo atentamente o que os pais diziam.
— Como assim?
— Ora! — o pai bufou, passando a mão nos cabelos brancos e penteados
para trás. — Primeiro ele tenta nos roubar. Depois, ele me acusa de ser conivente
com suas tramoias. Não satisfeito, ele me agride e me faz perder um dente. E eu
realmente gostava de ter todos os meus dentes, não esse falso horroroso aqui —
apontou dramaticamente para sua boca. Charles teria rido, se não estivesse tão
desanimado. — Por último, ele ainda manda aquela piranhazinha te seduzir para
conseguir mais...
— Ei...! — o CEO tentou defender Mel, mas, para surpresa dos homens
presentes no jantar em família, foi a matriarca da família Miguez quem se
pronunciou em voz alta:
— Não diga isso de quem você não conhece, Charles! — exclamou,
silenciando os dois homens, Charles-pai e Charles-filho. — Melanie é uma
jovem encantadora, que nada tem a ver com o pai. Foi tão vítima daquele safado
quanto qualquer um de nós. Mais, até, levando em conta que ele conseguiu
arruinar todo o patrimônio.
Perplexo, Charles Júnior abriu a boca e perguntou:
— Como a senhora...?
Ela estalou os lábios e repetiu o gesto do marido, passando a mão nos
cabelos, como que para se certificar que estivessem bem presos em seu coque
elegante costumeiro.
— As pessoas falam muito, principalmente as mulheres da alta
sociedade, meus queridos. Por sorte, eu ando apenas com as pessoas de boa
índole, e todas foram unânimes ao dizer que essa jovem é uma pessoa honesta e
competente. Não pode ser culpada pelos erros do pai. Seria o mesmo que
Charles chutar um cachorro e Júnior levar a fama de malvado.
O pai fez cara de ultrajado e levou a mão ao peito de forma cômica.
— Eu jamais chutaria um cachorro, sua desalmada.
Revirando os olhos, Eliane bebeu um gole do vinho e prosseguiu:
— Você é muito literal, querido. Mas entendeu bem o que eu quis dizer,
não entendeu? Não falei besteiras sobre o que não sabe.
— Ah, e suas amigas fofoqueiras agora são detetives particulares para
saberem tudo sobre o caráter de alguém? Você deveria saber, minha querida, que
as pessoas fingem muito bem!
Sem perder a pose elegante, Eliane encarou o marido e, dando um
pequeno sorriso disse:
— Minhas amigas fofoqueiras não são detetives, mas Alberto, o homem
que contratei para checar o histórico de Melanie, sim. Peço licença por um
momento, sim?
Pai e filho ficaram de queixo caído enquanto Eliane caminhava
tranquilamente até um aparador próximo à porta da cozinha de seu luxuoso
duplex, pegando na gaveta uma delicada pasta e levando até os dois homens
estupefatos.
— Aí diz tudo que precisei saber sobre essa mocinha. Ela realmente é
uma jovem honrada, que tentou de tudo para salvar a empresa fundada pelos
pais, mas que não teve muita opção a não ser decretar a falência, mesmo que boa
parte da dívida não a afetasse diretamente. Inclusive, o motivo de ela ter ficado
praticamente sem nada foi porque fez questão de pagar o FGTS de cada um dos
funcionários, mesmo que não houvesse necessidade levando em conta a falência.
Sem entregar a pasta para Charles ou para o filho, Eliane deu uma olhada
rápida em alguns papéis e prosseguiu:
— Aparentemente, a ideia de se oferecer para trabalhar conosco veio de
Mara Lima, uma cabeleireira amiga de infância de Melanie.
— Como esse detetive poderia saber disso? — Charles perguntou,
confuso.
A mãe olhou para ele como se estivesse conversando com um bebezinho.
— Ora, meu querido, fazendo perguntas para as pessoas certas. Inclusive,
ele descobriu, com essa jovem cabeleireira, que tem uma leve tendência a ter
língua solta perto de homens bonitos, o motivo pela qual Melanie rompeu com
você, meu filho.
Charles arregalou os olhos ao ouvir aquela afirmação. Não somente por
querer muito saber o que havia acontecido, já que estava no escuro por todo
aquele tempo, mas também por ficar surpreso de saber que sua mãe tinha
conhecimento de algo.
Mas aí lembrou imediatamente: Pérola. Sua madrinha era melhor amiga
de sua mãe, é óbvio que ela contara. Porém, como a mãe ficou em silêncio, ele
supôs que não conhecia nada sobre seu relacionamento com a funcionária.
A mãe fechou a pasta e a colocou de lado na mesa, dando um tapinha na
mão do marido quando ele tentou pegá-la.
— O que o detetive particular não me informou, meu filho, mas eu logo
compreendi, foram seus motivos para aceitar aquele acordo da jovem. Sim, ele
se mostrou um excelente e lucrativo acordo, já que os métodos de administração
dela são impecáveis e suas ideias são brilhantes. Ela oferece um frescor
moderno, com essa história de levar a Família Miguez até locais independentes
e... como se chama isso? Hips...?
— Hipster, mãe — ele explicou, ansioso.
— Isso! Aqueles jovens de barba longa, camisa de lenhador e vestidos de
brechó! Então, a conexão que ela fez de nossa empresa com essa geração nova
foi um espetáculo. Os doces macios foram um sucesso, triplicamos o
faturamento, contratamos mais pessoas, enfim, você sabe mais do que eu tudo o
que ela fez. Mesmo coisas pequenas, como os biscoitos de unicórnio, algo tão
simples, porém inovador, casaram perfeitamente com uma tendência de design
que eu mesma desconhecia. Quem diria que cavalos com chifres na testa fariam
tanto sucesso de repente, não?
Charles assentiu com a cabeça. Era verdade, a moda anterior entre o
público jovem eram desenhos animados específicos, não personagens
mitológicos genéricos.
— Sim, ela é brilhante, daria uma excelente CEO. Mas não tinha como
você saber perfeitamente que isso não seria uma furada, havia? Você viu algo
nela, não viu, Charles? Algo além de intuição profissional e análise do dossiê
que ela mandou, certo?
Ele hesitou por um momento, mas assentiu com a cabeça.
— Fico feliz que você admita, meu filho, que não foi somente o lado
profissional que te fez contratá-la. Você está apaixonado por essa moça?
O pai desviou o olhar e mirou o filho, impressionado. Ele não fazia ideia
do que acontecia entre Mel e Charles, achava que se tratava somente de sexo
casual.
— Sim, mãe. Totalmente.
A mãe deu um sorriso satisfeito e explicou:
— Alberto conseguiu obter outra informação: Mel está chateada por
causa de algum tipo de vingança que ela ouviu você falar com minha nora.
Pesquisando mais a fundo, ele descobriu que você... Hm... — a mãe limpou a
garganta, um pouco sem graça, e continuou. — Fez algum tipo de promessa de
que faria... amor com alguém na fábrica, do mesmo jeito que... Oh, meu Deus,
eu realmente não criei vocês dois para agirem assim... Enfim, ela descobriu que
você flagrou minha filha e minha nora em uma situação constrangedora na
fábrica e jurou que faria o mesmo um dia.
Charles cobriu o rosto com as mãos, gemendo baixinho.
— Não foi bem assim, aquilo foi uma brincadeira só... Sim, eu peguei as
duas um dia, na época em que o escritório era na casa da fábrica, e brinquei, dias
depois, que um dia faria o mesmo, para ficarmos quites. Na época, Lisandra
trabalhava conosco ainda, eu jurei que faria aquilo na sala dela, já que ela...
Bom... fez na minha.
Em uma competição de quem estava mais desconfortável com aquele
assunto, definitivamente o presidente da Família Miguez ganhava em disparada:
até suas orelhas estavam vermelhas ao ouvir aquele monte de informação
desnecessária sobre a vida sexual de seus dois filhos.
— Aham... — ele limpou a garganta, tentando chamar a atenção de
todos. — E o que isso tem a ver com a filha do Fernando?
— Simples, querido. Ela sem querer ouviu uma conversa de nossos filhos
em que eles faziam piadas sobre essa... vingança. Obviamente ela compreendeu
errado e concluiu que o relacionamento de Charles com ela era um jeito doentio
de nosso filho se vingar de Fernando.
Charles levantou da mesa tão abruptamente, que derrubou uma cadeira,
assustando seus pais.
— Droga, não acredito que é isso! Eu sou um idiota, é lógico que era
isso! Nós ouvimos um barulho fora da sala naquele dia, mas achamos que fosse
impressão nossa, ou acústica... Desculpa, pai, mãe, eu preciso ir. Preciso
consertar as coisas.
Novamente, pensou, mas não disse.
Sem esperar resposta, ele saiu correndo da casa dos pais, pegou o carro e
dirigiu enlouquecidamente, bolando mil planos na cabeça.
Olhando o arroubo de pressa do filho, Charles mirou a esposa, ainda
meio surpreso com tudo.
— Você é impossível, não? Não satisfeita em juntar nossa filha com a
esposa, agora quer juntar nosso filho com a funcionária? Acha isso produtivo de
algum modo?
Apesar das palavras incrédulas, havia uma nota de orgulho na voz do
patriarca da Família Miguez.
Sem perder sua pose, Eliane bebeu mais um gole de seu vinho e
decretou:
— Ora, claro. A jovem é um primor de inteligência. Inclusive, desejo que
Charles ocupe seu lugar e que dê o cargo de CEO a ela. Os dois no comando da
empresa será uma lufada de frescor para a Família Miguez.
Charles Sênior arregalou os olhos, mas ponderou por um momento.
Enquanto isso, sua esposa prosseguiu:
— Estamos velhos, querido. Está na hora de deixarmos a próxima
geração cuidar dos negócios. Vamos viajar por toda a Europa, provar outros
doces, fazer outras coisas além de só pensar em biscoitos.
Ele franziu os olhos antes de comentar:
— Você é ardilosa, mulher... Confesse que, além dessa sua ideia, que é
brilhante, não vou mentir, você também tem outros planos aí... Planos...
maternais.
Eliane sorriu diante da constatação do marido.
— Não é culpa minha se nossos filhos são lerdos no quesito romance.
Está passando da hora de eu conhecer meus netos, e como nossa nora ainda não
decidiu engravidar, então eu aposto minhas fichas em Charles. Além do mais, já
viu que olhos lindos a Melanie tem?
E sem deixar de sorrir, entregou o dossiê para o marido, que abriu e viu
uma foto de Melanie abraçada a Charles Júnior na rua da fábrica. O sorriso de
ambos era tão iluminado e verdadeiro, que Charles deu o braço a torcer: era
realmente amor que havia entre os dois.
Porém, sem admitir seu erro de julgamento, ele somente murmurou,
rabugento:
— Espero que nosso neto puxe os olhos dela, então. Seria péssimo se
herdasse meus olhos miúdos ou os seus de gata felina.
Sem dizer mais nada, Eliane sorriu e bebeu o restante de seu vinho,
totalmente satisfeita.
Tudo daria certo, afinal. Valera a pena contratar Alberto.
Ela fez um pequeno lembrete mental de agradecer à Cinthia Grimaldi,
CEO da ML Agências e Produções. A indicação que a filha de sua amiga de
anos, Martina, fizera do detetive fora excelente.




Capítulo 15

— Comodato, meu amigo — André comentou, olhando para uma turista


ruiva de olhos claros que almoçava sozinha no pub preferido dos dois amigos.
— Perdão? — Charles perguntou assim que sentou ao seu lado na mesa,
munido de duas garrafas de cerveja.
— Comodato. O que você me perguntou sobre a casa de sua
namoradinha. Não há como retirar um filho de uma casa que pertença aos seus
pais, principalmente se ele não possuir imóveis. É contra a lei você deixar um
filho sem lar assim.
— E isso vale no caso de Melanie?
— Sim, senhor. Olha, aquela ruiva tem olhos verdes! Sabe como é uma
combinação rara, cabelos vermelhos com olhos dessa cor? — André olhou com
ares de predador para a ruiva, que nem prestou atenção nele, apenas no jogo que
passava na televisão.
— André, foca aqui, por favor — Charles estalou os dedos na frente do
rosto do advogado, que olhou para ele a contragosto. — Isso significa que ela
está segura em relação àquela casa?
— Yep. Mais alguma coisa que você queira?
Charles mal sentou, já se levantou, exclamando antes de sair correndo:
— Que você pegue o caso dela!
— O quê? Jamais! — André reclamou, possesso. Não simpatizava com
ninguém da família de Fernando, e ainda estava chateado por ter perdido o
processo do pai de Charles, já que fazia parte do acordo da Família Miguez com
Melanie.
Charles olhou por cima do ombro, surpreso, deu meia volta e se
aproximou do amigo, dizendo de modo cortante:
— Ou você pega, ou está demitido. A escolha é sua, meu amigo. Até
mais!
E saiu alegremente pela porta do pub, deixando André atônito, pensando
em como seu amigo havia mudado. Tudo mudou, na verdade. A empresa estava
faturando mais, Charles estava mais feliz e mais decidido, os funcionários
estavam contentes...
Tudo isso foi só aquela garota?
André ainda resmungava, insatisfeito, quando a tal da ruiva de olhos
verdes se aproximou, flertando com ele, que não reparou e apenas disse:
— Não quero nada, obrigado! — disse num tom seco sem levantar os
olhos do copo.
A jovem arregalou os olhos e se retirou, vermelha de vergonha. Foi aí
que André notou a burrada que fizera. Ele achara que se tratara de uma
garçonete, não da menina que tanto cobiçava. Mas mesmo se fosse uma
empregada do pub, isso não daria a ele o direito de ser desnecessariamente rude,
certo?
Ele realmente não entendia nada de mulheres, isso era um fato
consumado.

Charles chegou na casa no Méier uma hora depois. Tocou a campainha


incessantemente e, assim que Mel surgiu na porta, gritou:
— Abra o portão!
Assustada, Melanie obedeceu e deixou que Charles estacionasse o carro
na ampla garagem de seu terreno, vindo atrás após trancar tudo.
— Charles? O que está...? O que veio fazer...? — começou a perguntar,
mas estava atônita demais para fazer sentido.
Seu coração estava frenético, suas mãos um pouco trêmulas, e os olhos
escuros estavam muito arregalados. Ela, novamente, se sentia uma jovenzinha
boba e inexperiente, nervosa porque sua... como os adolescentes chamavam?
Crush? Sua crush estava ali, em sua casa.
Ela passara semanas de inferno tentando se manter longe dele, tentando
ignorá-lo, solicitando que ele mantivesse o contato apenas profissional na fábrica
e bloqueando-o em todos os modos de comunicação possíveis fora do ambiente
de trabalho.
Sentia saudades dele, de sua risada, de seu lado profissional, de seus
beijos, suas carícias, seu corpo. Sentia saudades de tudo que o envolvia, até de
seu lado rabugento. Sem sombra de dúvidas, Mel o amava, mas a dor em seu
coração era maior do que qualquer tipo de possibilidade de perdão ou conversa.
— Mel, eu... — ele exclamou, um pouco ofegante, como se não tivesse
vindo de carro, mas sim de bicicleta. — Eu falei com meu advogado, é sobre seu
pai...
— O que tem eu? — uma voz masculina perguntou, causando um
sobressalto tanto em Charles quanto em Mel.
Os olhos do CEO se arregalaram ao ver aquele homem detestável ali,
mas em nenhum momento ele olhou para Mel com ares de acusação, coisa que
ela esperava. Ficou um pouco mais feliz ao vê-lo chocado, não com raiva dela,
mas aí lembrou que ele era um cretino sórdido e sacudiu brevemente a cabeça,
tentando afastar a pontinha de esperança que brotou dentro de si.
— O que faz aqui, Fernando? — perguntou Charles, tentando não deixar
sua raiva fluir.
— Eu pergunto o mesmo. A casa é minha — respondeu com arrogância,
e Charles agradeceu aos céus por Melanie ter puxado a mãe: o rosto daquele
homem lhe causava um desagrado sem comparação, e ele odiaria ver traços da
mulher que amava naquele traste.
— Pai, sossega teu facho? — Melanie reclamou, cruzando os braços e
olhando com desprezo para Fernando, que ficou chocado com a atitude da filha.
— Sua é uma ova, a casa é minha também, já que você e mamãe compraram
juntos e eu sou herdeira dela.
— É, gatinha, mas é teu nome que está na escritura? Eu acho que não.
Então me respeita, que eu te jogo pra fora daqui assim, ó — disse e estalou os
dedos, fazendo Charles sentir desejo de estalar uma parte daquele homem
também.
Seu pescoço, no caso.
— Eu quero ver você tentar, Fernando, seu pedaço de merda sem
credibilidade alguma — Melanie disse com ferocidade, e novamente Fernando
se espantou. Sua filha era muito controlada, muito elegante, quase submissa.
Aquela nova Melanie estava o assustando naqueles vinte minutos desde que
chegara em sua própria casa e encontrara tudo vazio.
Sem nem pestanejar, ele ergueu a mão para bater na filha, mas Charles
foi mais rápido, entrou na frente e o enfrentou, torcendo seu braço atrás do
pulso.
— Maria da Penha, já ouviu falar, seu calhorda? Encoste um dedo nela e
eu garantirei a você uma passagem só de ida para a cadeia.
— Há, no nosso país? Ledo engano achar que vai... — Charles nem
deixou que ele respondesse, apenas o empurrou com tudo no chão. Fernando
quase voou longe, se estatelando na grama aparada.
Dando uma olhada para Mel, ele ficou aliviado ao ver que ela nem ao
menos se mexera. Continuava olhando para o pai com desprezo, parecendo
assustada pela tentativa de agressão.
— Pai, vai embora.
Tentando se levantar, ele começou a gritar coisas desconexas:
— A casa é minha, sua bastardinha! Minha!
— Vai embora agora, ou eu juro por Deus que cancelo o acordo com
Charles e deixo ele levar tudo o que sobrou! Eu não vou mais tolerar suas
burradas, nem vou consertar suas cagadas! Ou vai embora, ou eu juro que
forneço todo o material suficiente para te colocar na cadeia por fraude e todos os
outros crimes que você cometeu!
Fernando piscou, atônito ao ver aquela postura nova, se levantou, as
mãos tremendo de ódio, e ameaçou:
— E em que lugar você vai morar, fedelha?
— Isso não é da sua conta, é? — Charles disse, se mantendo ao lado de
Melanie, que discretamente estendeu a mão para o lado, buscando conforto na
mão do ex-amante. — Ao contrário de você, ela pode trabalhar e conquistar um
novo lar, sem precisar pisar em ninguém. Aliás...
Charles se virou de frente para Melanie, ainda segurando em sua mão, e
disse:
— Eu estou cancelando nosso acordo, Mel, e demitindo você. Calma,
espera. Você será readmitida com um salário justo para sua função, e nosso
acordo de retirar a queixa sobre seu pai está findado.
— Mas... — ela tentou argumentar, apertando a mão quente de Charles
de forma nervosa.
— Não se preocupe. Ele não poderá vender sua casa. Fernando, já ouviu
falar em comodato?
O jovem casal olhou na direção do velho, que arregalou os olhos,
assombrado, mas tentou disfarçar:
— Isso não existe em nosso país, eu posso tirar ela daqui a qualquer
minuto e...
— Não, não pode. Não sem advogado, sem dinheiro e, claro, sem ter
onde morar, não é mesmo? — Charles disse com ironia. — Afinal, se você
vender essa casa para pagar os custos do processo de meu pai, em que lugar vai
morar depois que ficar totalmente zerado?
Fernando hesitou, e sua pálpebra começou a se mover de modo
involuntário. Ele estava totalmente sem alternativa e sabia disso.
— O que você quer, Miguez?
Soltando brevemente a mão de Mel, ele virou o corpo na direção do
homem detestável e disse com a voz calculadamente gelada:
— Você vai passar a escritura da casa para a sua filha e vai sumir da vida
dela. Se fizer este pequeno favor, eu e meu pai não te processaremos mais e vida
que segue.
— Eu não...!
— Não é uma proposta. Meu advogado vai entrar em contato com você
em breve. Faça isso, ou eu conseguirei uma ordem de restrição, e você não
poderá se aproximar de Melanie mais. Some isso ao comodato, e você fica sem
casa e com um processo caro nas costas.
E sem esperar resposta do ex-presidente da Turano Soluções em
Transporte, Charles se virou, novamente pegando na mão de Melanie, que nem
hesitou e o acompanhou para dentro da casa, trancando a porta atrás de si,
deixando um possesso — e falido — homem em seu quintal.
Assim que se certificaram que ele fora embora, os dois subiram até o
quarto de Melanie, que sentou na cama e respirou fundo várias vezes, deixando o
nervosismo fluir por um momento.
Charles se aproximou e ajoelhou em frente a ela, dando apoio silencioso.
Quando se sentiu mais calma, ela notou a posição do CEO, no chão, e pediu que
ele se levantasse dali. Como ele não obedeceu, ela ajoelhou junto, o encarando
nos olhos.
— Obrigada.
Ele a puxou pela nuca, abraçando o corpo trêmulo da jovem contra o seu,
e pediu:
— Me perdoe, Mel. Sobre o que você ouviu naquele dia. Não foi... Não é
o que parece.
Melanie o abraçou pela cintura, aspirando profundamente, sentindo seu
perfume familiar. Sua cabeça estava uma confusão, mas ela sentia verdade em
naquelas palavras antes mesmo que ele explicasse. Principalmente porque,
depois do que acontecera momentos antes, ela realmente acreditava que tudo não
se passou de um grande mal-entendido.
Charles a afastou um pouco, apenas para olhar em seus olhos, e explicou:
— O que você ouviu no mês passado, naquele dia, foi uma brincadeira
interna. Um dia, quando minha irmã ainda trabalhava conosco na fábrica, ela
resolveu que minha mesa no escritório seria um excelente lugar para ela e a
então namorada, a Natércia, que você conheceu aquele dia, fazerem... Bom, você
imagina, certo? Eu flagrei as duas e depois que consegui apagar a imagem da
cabeça, jurei vingança, mas de brincadeira. O quarto onde nós dois, você e eu,
fizemos amor aquele dia, no segundo andar da fábrica, foi escritório dela no
passado. Por isso eu me vinguei, compreende? Foi só uma...
Mel levou os dedos aos lábios de Charles, o calando.
— É errado ou precipitado se eu disser que amo você agora?
Sentindo um sorriso abrindo no rosto, ele respondeu:
— Se você não se incomodar se eu disser o mesmo de volta, eu digo que
não é errado nem precipitado.
E nada mais foi dito após aquilo. Charles capturou os lábios de Mel, que
se entregou totalmente ao beijo de reconciliação, sentindo o coração explodir de
felicidade, alívio e, claro e principalmente, amor.
Amor é o que mais sobrava na Família Miguez. Melanie já sabia disso,
mas naquela tarde em que seus problemas familiares e profissionais foram
resolvidos, ela teve mais provas do óbvio.
Afinal de contas, em breve ela também seria da família.
Oficialmente.
Ela tinha certeza disso.




Epílogo

— Bom dia, Família! — Melanie exclamou, entrando na fábrica com um


imenso sorriso no rosto. Parte dele era feito de felicidade, a outra, de
expectativa.
Todos os funcionários da fábrica gritaram em resposta da cozinha, e ela
caminhou até o local que tanto adorava frequentar.
Um grito coletivo de boas-vindas foi ouvido até da casa do vizinho dono
do gato Faísca. Mel tapou as orelhas com as mãos, rindo, e quase revirou os
olhos quando um coro imenso de parabéns começou a ser cantado.
Sem opção a não ser deixar que a comemoração de seu aniversário, a
segunda desde que começara a trabalhar na Família Miguez, porém a primeira
como CEO oficial da empresa, Mel apenas se deixou levar pela alegria de todos
naquela data tão importante.
Amanda, Ryan, Pérola, Juliana e todos os outros funcionários, dos
antigos aos novos, contratados para cuidar das diversas linhas de doces, bolos e
biscoitos da marca, trouxeram um bolo imenso da geladeira, deixando em cima
da mesa onde, poucos minutos antes, Pérola misturava ingredientes,
devidamente deixados de lado.
— Ora, novamente desperdiçando material, madrinha? — Charles ralhou
de brincadeira assim que o coro de parabéns cessou e todos foram abraçar a
aniversariante. — Eu vou ao banheiro por um minuto, e quando volto, já estamos
gastando recursos?
Pérola, que havia deixado uma marca imensa de batom rosa na bochecha
de Melanie, fez um gesto com a mão, dispensando o comentário do afilhado, e
retrucou:
— Não seja sovina como seu pai, Júnior, ou colocaremos laxante nos
seus bolos! Anda, pare de ser cricri e venha comemorar o aniversário de sua
amada!
Mel olhou para ele, rindo abertamente da cena, e o envolveu pelo
pescoço quando Charles cobriu o espaço entre os dois, pegou em sua cintura e se
inclinou para um beijo de boas-vindas.
Naquele dia em especial, Charles já estava na fábrica antes mesmo de
abrir, tal e qual o dia em que Mel fora efetivada e queria contar a novidade. A
diferença é que havia aí não somente um anúncio a fazer, mas também um
pedido.
Um pedido muito especial e esperado por todos.
— Mel, corta seu bolo! — Pérola pediu, já enxugando as lágrimas.
Charles, vendo a madrinha dando bandeira, levou a mão até a testa,
fechando os olhos por um momento enquanto ouvia as risadas de todos os
presentes, inclusive de Melanie, que, é claro, já havia entendido tudo.
Sem hesitar, ela parou em frente à mesa, passou a mão em seu terninho,
alisando o tecido, ligeiramente nervosa, e fez uma pergunta silenciosa com o
olhar para Pérola, que apenas disse:
— Corte uma fatia do lado esquerdo, querida.
Emocionada e um pouquinho surpresa pela sintonia incrível presente no
ambiente, ela assoprou rapidamente a velinha cuja chama tremulava
delicadamente, pegou uma espátula e com calma cortou uma fatia do lindo bolo
com recheio de creme e cobertura de chocolate. Assim que a espátula bateu em
algo que ofereceu resistência, ela abriu um sorriso imenso, e todos gritaram.
Sentindo os olhos enchendo de lágrimas, que Charles imaginou serem de
emoção por um motivo específico, ela tirou uma fatia e colocou em um prato,
revelando, no centro do bolo, em um espaço devidamente cavado por Pérola, que
caprichou na confecção daquela iguaria, uma caixinha de veludo muito bem
embrulhada em papel-manteiga. Retirando o objeto, ela desembrulhou e abriu a
caixa, vendo, é claro, um anel de noivado com um diamante solitário no meio.
Quando olhou para o lado, Charles pegou a caixinha de sua mão, se
ajoelhou e pediu:
— Mel, você é a luz da minha vida, a pessoa que eu mais amo e que mais
colore meus dias. Sem você, nem os biscoitos da Pérola seriam doces.
— Ei — a madrinha começou a reclamar, mas alguém pigarreou, então
imediatamente Pérola se calou e voltou a enxugar as lágrimas de felicidade.
Aguardando as risadas cessarem, Charles prosseguiu:
— Eu fui um ogro com você quando nos conhecemos, tratei você como
nunca havia tratado um funcionário, e o que você fez? Sozinha, aguentou tudo,
me colocou em meu lugar quando eu merecia e, principalmente, cresceu minha
empresa, mesmo a Família Miguez sendo a responsável por diversos processo
em cima da Turano.
— Processos totalmente justificáveis — ela corrigiu, mas deu um sorriso
travesso e pediu que ele continuasse.
— Além de provar sua inocência e tentar resolver os problemas causados
por aquele calhorda do Fernando, você ainda correu atrás de melhorias para a
Miguez, conquistou meus amigos e funcionários, entrou para a família de
repente e ainda fez com que eu me apaixonasse por você, sem nem me dar conta
de quando exatamente isso aconteceu.
Mel enxugou uma lágrima solitária e riu.
— Melanie, você é uma mulher vibrante, iluminada, incrível, e eu amo
tudo em você. Menos aqueles unicórnios de acrílico que brilham no escuro e
ficam nos encarando quando estamos sozinhos em seu quarto.
Algumas pessoas assoviaram, fazendo com que o casal desse uma risada,
mesmo sem desviar os olhares um do outro.
— Seja minha esposa, Mel, e me faça o homem mais feliz do mundo. Eu
prometo que dedicarei todos os dias da minha vida fazendo a mesma coisa.
Todos estavam em silêncio, aguardando, pois já sabiam muito bem o que
aconteceria em seguida, mas queriam ver a reação de Charles.
— Sim, é óbvio que sim! — Mel exclamou, a voz repleta de emoção, e
seu agora noivo se levantou e a abraçou, beijando seus lábios com todo o amor
do planeta.
Todos gritaram em comemoração numa algazarra imensa, até que
Amanda, impaciente, assoviou com os dedos, silenciando a cozinha e todos os
mais de vinte funcionários do local.
— Tá lindo, gente, mas acho que o patrão tem que cortar o bolo de
aniversário da Melanie!
Charles franziu as sobrancelhas, ainda com Mel nos braços, e procurou
saber do que se tratava, olhando ao redor, mas ninguém disse nada. Nem mesmo
sua noiva. Soltando a CEO da família Miguez por um momento, ele se
aproximou da mesa, confuso, e olhou para a madrinha.
— Corte uma fatia do lado direito, querido.
Pegando a espátula, ele fez o que Pérola mandara e cortou, revelando,
para a sua surpresa, que a metade da direita era totalmente diferente da esquerda:
enquanto o lado que Mel havia cortado tinha a massa clara com recheio de
creme, como ele havia solicitado, o outro lado era um bolo xadrez, com
quadrados rosa e azuis, cortado ao meio e unido com o recheio de creme da outra
metade.
Ainda sem entender, ele apontou para o bolo e disse, olhando para
Melanie, que apenas sorria, as duas mãos unidas na frente do rosto, como se mal
pudesse conter a notícia:
— Esse bolo do filho do Frankenstein tem alguma razão? Por que essa
parte do bolo está rosa e azul?
Um alfinete poderia ser escutado se caísse no piso de cerâmica o da
fábrica.
Sem apressar nada, Mel abriu mais ainda o sorriso, levou as mãos ao
ventre e disse:
— Porque eu ainda não sei se é menino ou menina, então Pérola resolveu
o dilema fazendo o bolo de ambas as cores.
Novamente, todos foram à loucura: palmas, gritos, assovios, abraços.
Porém Charles não enxergava mais nada, somente a mulher de sua vida ali,
radiante, com os olhos úmidos de alegria, o sorriso aberto enquanto caminhava
em sua direção, pegava seu rosto entre as mãos e o beijava.
Nada mais importava, nada mais o incomodava. Em menos de cinco
minutos ele não somente noivara da mulher mais incrível, forte, guerreira,
maravilhosa e linda de sua vida, como descobrira que ela estava grávida de um
filho seu.
Não havia nada naquele momento que pudesse distrai-lo. Ele nem
percebeu quando sua irmã e sua cunhada chegaram para festa, ou quando os pais
apareceram. Charles só tinha olhos para Melanie, sua noiva, sua amada, sua
futura esposa, mãe de seu filho e de qualquer outro bebê que eles pudessem ter
no futuro.
Sua mente, entretanto, viajava para um lugar em especial: a casa de Mel,
que se transformaria no lar da nova família, com tudo que uma casa familiar tem
direito: um jardim bem-cuidado, um balanço na árvore, cachorros, brinquedos
espalhados por todo o lugar, a churrasqueira acesa em datas comemorativas,
reunindo toda a família ali, e, acima de tudo, um quarto em especial... Repleto de
unicórnios e luzes e cores... com um bercinho adornado por um lindo móbile,
que Mel guardava desde sempre, lembrança de sua querida e finada mãe.
Sim, aquela criança seria a mais amada do mundo, com a família mais
louca, forte, colorida e doce do mundo. Exatamente como aqueles unicórnios
que enfeitavam a casa no Méier, agora repleta de amor e vida.
Que todos seriam felizes, Charles não tinha dúvida.
Era um homem de sorte, em todos os aspectos.






Agradecimentos

Agradeço a todas as pessoas de sempre:


Arethão, por ser linda.
Carolaine, por também ser linda.
Minhas lindezas Lene, Dani, Renata e Aninha, pela força de sempre.
Meu marido, Raphael, por ter revisado esse livro e por ser o Raphael.

Muito obrigada.





Sobre a autora

Caraciolo não é um pseudônimo. É somente um dos nomes de Clara, que


decidiu escrever romances como os que enchiam sua adolescência de risadas e
suspiros: os romances de banca de jornal. Um desafio e tanto para quem tem
dedo solto e acaba escrevendo demais da conta, quando pode!
Você pode encontrar outras obras dela na Amazon ou na página e no site
Capitu Já Leu.
E pode rir de sua tentativa de falar de si mesma na terceira pessoa.
Ela está rindo muito, por sinal...
:D




SEM VOLTA


Carol Moura

Sinopse
Quando as coisas ficaram difíceis para Linda Hatman, a única coisa que
sua mente perturbada pensou em fazer foi fugir para Vegas e realizar os 10 itens
de uma lista rebelde. Dona de uma rede de hotéis avaliada em alguns milhões de
dólares, Linda foi preparada desde cedo para tocar os negócios da família e
jamais meter os pés pelas mão. Porém, quando ela pede para um sedutor barman
em um hotel cassino lhe ajudar com os itens de sua lista de merda, como ela
costuma chamar, a sorte é lançada. No lixo, na opinião da mulher.
Na manhã seguinte da sua noite de aventura, com uma ressaca infernal,
ela não somente descobre que alguns itens da lista foram realizados, como
também os dois últimos foram completos e muito bem consumados. Linda casou
e transou com um estranho. Agora ela só precisa cancelar o casamento, certo?
Errado.
É dia dos namorados e esse é o único dia em que nenhum cartório tem
autorização para tal procedimento. Uma lei implantada pelo governador
romântico do Estado de Nevada.
Linda então precisa passar mais um dia com o seu parceiro de crime para
conseguir cancelar a burrada que fizeram e cada um seguir o seu caminho.
Certo?
Talvez sim! Talvez não!








Para todos os leitores do Botando Banca.
Vocês são maravilhosos!

Prólogo
A lista

Seu olhar mortificado só me deixava mais revoltada.
Ele não tinha o direito de estar se sentindo mal. Era ele quem estava
fazendo aquilo comigo. Em seus olhos, eu podia ver que ele não se sentia bem
com a situação, mas pouco me importava. A culpa era dele, afinal de contas.
Como se atrevia a me olhar com tanta... compaixão?
Olhei para os papéis espalhados pela mesa e me senti ainda mais
indignada, revoltada para ser mais precisa. Não havia espaço para qualquer outro
sentimento dentro de mim naquele momento. E eu seguraria a indignação e
revolta o quanto pudesse, pois, no momento em que eu deixasse a mágoa tomar
conta de mim, tudo desabaria. Tudo.
O que eu fiz para merecer aquilo? Por que ele não se importou mais
cedo?
Quando questionei, ele desdenhou de minhas preocupações. Disse que
não era nada. E então tirou todo meu chão.
Desgraçado!
— Linda, querida, por favor, sente-se, vamos conversar com calma sobre
os... Linda! Linda! Espere!
Sequer fiquei para ouvir o que ele tinha para me dizer. Dei as costas e o
deixei gritando enquanto eu saía do local que me sufocava.
Desci os andares do prédio pelas escadas — esperar o elevador não era
uma opção — e quando cheguei ao térreo, abri a porta corta-incêndio com força
e me joguei para o hall do grande complexo de salas. Puxei uma grande
quantidade de ar quando finalmente cheguei do lado de fora do prédio.
Jenny estava me aguardando ao lado do carro e prontamente andou até a
porta e a abriu para mim.
— Senhorita Hatman — cumprimentou assim que entrei no carro.
Ela era minha motorista havia dois anos, nos falávamos pouco, mas ela
era observadora e sabia fazer as perguntas certas nos momentos precisos. Então,
no instante em que ela contornou o carro e entrou no lugar do motorista para
começar a dirigir, simplesmente se manteve concentrada na direção enquanto me
perguntava suavemente se estava tudo bem comigo.
— Tudo bem, Jenny. Me leve para casa, por favor — solicitei enquanto
pegava meu telefone na bolsa.
Quando não ouvi a sua afirmativa, levantei os olhos para ver o motivo do
silêncio. Ela me olhava através do espelho retrovisor com o cenho franzido,
como se estivesse tentando entender o motivo pelo qual eu estava querendo ir
para casa no meio da tarde de uma terça-feira, quando tudo o que fazia, mesmo
aos finais de semana, era trabalhar.
— Algum problema? — indaguei, levantando a sobrancelha para ela, que
imediatamente desviou o olhar e prestou atenção na estrada.
— Não, senhorita.
— Bom, me leve para casa, por favor.
Voltei minha atenção para o telefone que, como eu esperava, tinha muitas
chamadas não atendidas e outros muitos e-mails para serem respondidos.
— Como quiser.
Procurei me concentrar no trabalho por um momento, mas pela primeira
vez em muito tempo, não consegui pensar na rede de hotéis que eu presidia
desde a morte do meu pai, Nicholas Hatman.
Fui criada para tomar conta do império que havia sido criado com a
Hatman Hotéis desde muito cedo. Aos dezesseis, já me esforçava por um G.P.A.
impecável. Aos dezoito, já estava na faculdade cursando Negócios. Aos vinte e
[3]

três, já me candidatava a uma especialização em hotelaria e hospitalidade e aos


vinte e oito assumi a presidência da rede hoteleira após a morte do meu pai.
Aos trinta, estava sentada dentro do meu carro, indo para casa com a
cabeça cheia de merda (sem trocadilhos), me sentindo a pessoa mais traída e sem
chão do mundo e esperando por um encontro com a adega de vinhos herdada do
meu pai.
Fodam-se os e-mails e as ligações. Eu tinha uma merda de vice-
presidente para lidar com os problemas da empresa, além dois conselheiros bem
pagos. Fodam-se as preocupações. Foda-se agir da forma correta. Fiz isso
durante a vida toda para passar pelo que estou passando agora?
FO-DA-SE!

**

Quando pedi para Jenny me levar para casa, me referi à cobertura em um
dos hotéis da família, em Beverly Hills. Aquele era um dos mais luxuosos hotéis
da rede. O último andar fora todo convertido para ser meu apartamento e
escritório quando assumi as empresas de Len Hatman, meu pai. Len e minha
mãe, Judy Hatman, eram separados há alguns anos, e eu morava com ela e meu
padrasto, Oswald Carly, um médico renomado. Quando papai faleceu e eu
assumi os negócios da família de vez, pensei que seria melhor me mudar e seguir
com minha independência.
Ao passar pela recepção do hotel, Howard, o concierge, me abordou com
seu iPad a postos.
— Boa tarde, senhorita Hatman. Chegou cedo... — observou, me fazendo
revirar os olhos.
— Olá, Howie — cumprimentei sem parar de andar e seguindo para os
elevadores.
— Temos muitas ligações e recados para a senhorita hoje... — iniciou
enquanto deslizava a caneta pelo aparelho em suas mãos, procurando pelos
recados.
— Passe para Stacy, Howard, hoje não atenderei ninguém.
Howie soltou um suspiro assustado e parou de andar. Pela visão
periférica, pude vê-lo congelado em seu lugar. Ignorando sua reação, pressionei
o botão para que o elevador se abrisse.
— Mas sua mãe... — o concierge deu um passo em minha direção para
tentar falar novamente.
— Eu não estou para ninguém, Howard — fui taxativa e entrei no
elevador, logo digitando o código de acesso a minha suíte.
— Sim, senhora... — sua voz era trêmula, como se estivesse ferido pelas
minhas palavras. Howie era quase tão workaholic quanto eu. Quase.
Enquanto o elevador subia, peguei meu telefone pela última vez. Enviei
uma mensagem para Stacy, minha secretária, avisando que não atenderia
ninguém até uma segunda ordem e que ela passasse tudo para Louis Castillos,
vice-presidente da Hatman Hotéis. Sem aguardar qualquer resposta, desliguei o
telefone e o joguei novamente dentro da bolsa.
Quando as portas do elevador se abriram, eu já havia retirado os sapatos.
Assim que pisei no tapete fofo da suíte, respirei fundo e atirei o par longe, junto
com a bolsa. Caminhei diretamente até a adega, estrategicamente instalada entre
o quarto e a sala para dividir o grande ambiente e me dar alguma privacidade.
Era imensa e repleta dos melhores vinhos que o dinheiro poderia comprar.
Vinhos que foram guardados pelo meu pai e que mantive reservados para serem
consumidos apenas em ocasiões especiais.
— Bem, acho que essa é uma baita ocasião especial, não é, papai? —
falei alto e ri em seguida. Estava falando sozinha, talvez minha cabeça já
estivesse apresentando problemas. Talvez eu só quisesse alguém para conversar.
Talvez eu quisesse meu pai para conversar.
Pegando um Bordeaux de mil novecentos e muito tempo, andei até a
cristaleira e saquei um taça e o saca-rolhas. Tive alguma dificuldade e estraçalhei
a rolha um pouco ao abrir a garrafa. Sorri sem realmente estar com vontade e
servi uma pequena quantidade daquele antigo vinho.
— Para você, papai — resmunguei novamente e bati delicadamente o
gargalo na taça para brindar, levando a garrafa até meus lábios e deixando a taça
para o meu pai imaginário.

**

Na segunda garrafa, eu estava entediada. Geralmente, quando estava
assim, eu trabalhava. Bem, normalmente eu trabalhava para compensar qualquer
coisa. Então, se eu estava brava, trabalhava, se estava feliz, trabalhava ainda
mais...
O que eu estava sentindo naquele momento?
Medo?
Tristeza?
Por que eu não estava trabalhando?
Olhei para a televisão e pensei na quantidade de tempo em que eu não
assistia nada. Será que ainda passava Punky — A Levada da Breca ou Blossom?
Caramba, será que ainda passava Goosebumps?
Pegando o controle remoto, estrategicamente colocado ao lado da
televisão pela equipe de governança, me senti patética ao perceber que não havia
ligado aquela televisão (ou qualquer uma) em anos. Sequer sabia o que era
diversão havia muito tempo.
Ligando a enorme televisão, subi no sofá e me ajeitei, sentando em cima
dos pés. Eu precisava tirar a saia e a blusa, que combinavam perfeitamente com
o blazer atirado em algum canto do quarto. As roupas estavam me apertando e
dificultando minha tentativa de ficar confortável, mas já estava tonta demais para
mudar de roupa.
Que horas são? O sol ainda está brilhando...
Era cedo. Muito cedo, considerando o fato de que eu sempre chegava do
trabalho tarde. Passava do horário normal de expediente com frequência,
chegava quando a noite já havia caído.
Comecei a zapear pelos inúmeros canais disponíveis e parei em algum
filme de terror. Era algo relacionado a exorcismo, e eu não estava bêbada o
suficiente para ter coragem de encarar algum demônio vomitando ou torcendo
partes de seu corpo.
Foi então que parei em um filme que estava começando.
— Um Amor Para Recordar — resmunguei sozinha. — Deve ser
bonitinho.
Foi a coisa mais cruel que assisti na vida.
As lágrimas grossas e gordas caíam ao mesmo passo em que outra
garrafa de vinho era consumida.
Deus! Que merda de filme foi aquele?
Eles se apaixonam, ela mostra uma lista fofa para ele e simplesmente se
casam antes da garota morrer de câncer?
Que tipo de ser humano escreve um roteiro destes?
Enquanto fungava e analisava os créditos do filme subindo, pensei em
Jamie Elizabeth Sullivan e Landon Carter, dois jovens apaixonados que só
queriam viver o seu amor juntos, mas não puderam.
Mesmo a lista de Jamie não foi realizada por completo. Ainda assim, aos
dezessete anos, eles viveram muito mais do que eu, com mais que o dobro de sua
idade.
Debilmente, porque aquilo era apenas um filme baseado em um livro e
aquelas pessoas eram apenas personagens, pensei que, mesmo jovens, Landon e
Jamie tinham encontrado o amor, dançaram juntos, estiveram em dois lugares ao
mesmo tempo, e ele até fez uma tatuagem nela.
Aos trinta, eu não conseguia me lembrar se algum dia tive um diário,
alguém que me fizesse suspirar ou uma lista de coisas que eu gostaria de fazer.
Que fim levaria a minha vida?
Em que momento eu aproveitaria tudo o que fora deixado pelo meu pai?
Dando mais um grande gole na garrafa de vinho, fui atrás de papel e
caneta.
— Eu também tenho direito a isso — resmunguei, limpando as lágrimas
e a coriza do nariz. — Vou fazer minha própria lista!
Encontrei o bloco e caneta do hotel e voltei para o meu lugar.
Coisas como escalar o Everest, tomar banho nas piscinas quentes e
naturais em meio ao gelo na Islândia e dar uma volta na Red Light Street em
Amsterdã enquanto comia um brownie de maconha passaram pela minha cabeça.
Entretanto estava ansiosa para ter os itens completos em minha lista. Se
eu colocasse coisas muito complexas, talvez demorasse mais tempo para poder
completa-las.
Talvez eu nunca conseguisse realizá-las.
— Talvez eu devesse fazer algo mais simples... — murmurei, batendo
com a caneta no bloco. — O que fazer...? O que fazer...?
Foi então que um novo filme começou. E o seu nome me chamou
atenção.
Jogo de Amor em Las Vegas.
LAS VEGAS!
VEGAS!
Eu nunca tinha ido para Las Vegas, a não ser para inspecionar dois hotéis
da rede que ficavam lá. Nunca para diversão. Não encontrava tempo para
aproveitar como a cidade e eu merecíamos, mas sempre tive vontade. Uma
vontade ofuscada pelo foco no trabalho e na tentativa de honrar o império que
meu pai havia construído.
Tentando não pensar em meu pai novamente, respirei fundo e voltei ao
meu plano.
VEGAS!
— Uma lista de coisas para fazer em Las Vegas! — exclamei como se
fosse uma grande novidade.
Provavelmente milhares de pessoas já haviam feito uma lista sobre isso.
Especialmente pessoas moribundas. Como Jamie Sullivan. Outros livros
deprimentes deviam estar cheios de listas para fazer. Mas, em minha mente
bêbada, aquela lista era inédita.
Até porque minha lista seria um pouquinho diferente.
Então escrevi na primeira página do bloco:


LISTA DE MERDAS PARA FAZER EM LAS VEGAS!

1. Ir para Las Vegas;
2. Gastar uma pequena fortuna em um cassino;
3. Experimentar drinques exóticos enquanto reclama da vida para o
Barman;
4. Ver um show de go-go boy;
5. Dançar em frente ao Bellagio;
6. Andar em uma limousine com a cabeça para fora do teto solar
enquanto canto a música tema de Titanic;
7. Fazer uma tatuagem;
8. Assistir a um show cover da Tina Turner;
9. Casar com um estranho na capela do Elvis;
10. Transar com o marido estranho.


— Bem, bem... — suspirei, olhando para a lista. — Para fazer tudo isso,
preciso ir para Vegas...
Andei até a bolsa e peguei meu telefone. Liguei o aparelho e ignorei
enquanto ele apitava loucamente. Precisada do número da minha assistente.
— Stacy?
— Sim, senhorita Hatman? — a voz de minha assistente parecia aliviada
quando me atendeu. — Tenho alguns recados urgentes...
— Sem recados, Stacy! Mande preparar o jatinho. Estou indo para Las
Vegas.





Capítulo 1

Um novo drinque

Puta que pariu!
Quem ligou o interruptor da “dor eterna” na minha cabeça?
Minha cabeça!
Saltei da cama, levando as mãos à cabeça. Meus cabelos estavam
completamente embaraçados, e a ressaca era do inferno, mas, fora aquilo, eu
aparentemente estava bem.
Ou quase bem.
Olhei para a cama de onde eu havia saltado e percebi que não estava
sozinha. Deitado de bruços, com os cabelos negros completamente bagunçados,
o homem estranho permaneceu imóvel mesmo quando comecei a dizer
palavrões.
— Mas que merda! — minha voz era quase esganiçada. — O que diabos
eu fiz?
Analisei em volta, analisando a bagunça que fizemos na noite anterior.
Em cada peça de roupa jogada pelo chão um flash sobre a noite anterior vinha
em minha mente.
Eu colocando um pequeno checked ao lado do item número um da minha
lista de merda, já dentro do jatinho...
Fazendo check-in no hotel...
Indo ao bar e pedindo o drinque mais exótico do cardápio...
De repente, a lembrança do estranho dormindo na cama em minha frente
veio com tudo.

***

— Dia difícil? — o barman maravilhoso perguntou.
Sua voz profunda e rouca me causou arrepios na pele. Isso ou eu estava
com uma vontade fodida de fazer xixi, já que havia bebido três garrafas de
vinho. Estava bem melhor depois da viagem até Vegas, mas estava bebendo meu
primeiro drinque que não era vinho e sabia muito bem que a mistura seria letal.
Mas quem estava se importando?
— Vocês aprendem a perguntar isso no cursinho de garçom? —
questionei sem tirar os olhos dele.
Sorriso largo, irritantemente parelho e branco, rosto simétrico e cabelos
longos o suficiente para que eu pudesse puxá-los enquanto enfiava a língua em
sua boca.
Tudo bem, eu não estava tão sóbria assim.
— Acho que é nosso protocolo para puxar assunto com belas mulheres.
Sorri ao ouvir o elogio. Eu estava acostumada a ser elogiada, mas sempre
por pessoas que sabiam quem eu era. Ou seja: a sinceridade delas era
diretamente ligada ao que elas queriam de mim. Não contava.
Mas o barman? Fui esperta o suficiente para não fazer check-in em um
Hatman e proibi Stacy de dizer onde eu estava. Ele não sabia quem eu era, e eu
me senti bem ao ouvir o seu flerte.
Segurando o canudinho preto, aproximei meus lábios e suguei o liquido
delicioso daquela taça bem decorada.
— Isso é realmente gostoso — elogiei. — Qual é o nome?
— Ainda não batizei. Fiz especialmente para você, me pediu o drinque
mais exótico, achei que deveria inventar um — informou, se apoiado no balcão e
dando uma piscadinha sexy para mim.
— Um drinque especialmente para mim? — eu me apoiei no balcão
também e devolvi o flerte. — Estou lisonjeada.
— Quem sabe se você me disser o seu nome, eu possa batizar o drinque
com ele. — seus olhos penetraram nos meus, eram escuros, mas estavam
iluminados pelas luzes do bar.
— Linda — respondi antes de voltar a beber do meu drinque, mas sem
tirar os olhos do belo barman.
— Linda... — repetiu meu nome como se fosse uma canção. — Combina
com você. Em algumas línguas, isso quer dizer “bonita”. E você realmente é
muito bonita.
Minha beleza se encaixava nos padrões impostos pela sociedade: cabelos
castanhos claros, olhos azuis, pele branca e bem tratada. Além disso, sou alta,
cerca de 1,70, tenho um corpo esbelto, curvas delineadas, seios e bunda fartos...
Então, sim, eu sabia que era bonita para algumas pessoas, nem tanto para outras.
Afinal, eu também sabia que havia mulheres mais belas e menos belas do que eu.
Que havia homens que não se interessavam por mim.
Porém a forma como aquele cara me fez o elogio fez com que algo
mexesse dentro de mim.
Eu tinha encontros, cheguei a namorar, mas com pessoas do meu meio.
Pessoas que queriam o mesmo que eu e não se importavam em serem trocados
por uma reunião; pessoas que sabiam qual era o meu nome, quanto valiam as
minhas ações, mas não tinham a mínima noção de quem eu era de verdade.
Eu não sabia quem eu era de verdade!
E depois do que havia acontecido não muitas horas antes, me conhecer e
ser conhecida além do meu nome passou a ter mais importância para mim.
E certas necessidades instantaneamente começaram a aparecer também.
— E qual é o seu nome? — perguntei ao barman, querendo saber quem
ele era.
— Ryan, mas meus amigos me chamam de Knox.
Esticando a sua mão por cima do balcão, ele a ofereceu para que eu
pegasse e pudéssemos nos apresentar oficialmente.
— Knox? Parece perigoso — e realmente era. Assim que meus dedos
encostaram na sua grande (e um pouco úmida pelo manuseio das bebidas) mão,
meu corpo todo reagiu em excitação.
— É parte do meu sobrenome, Knoxville — explicou.
Um homem na outra ponta do balcão chamou por ele. Desviando o olhar,
Ryan levantou a mão para o homem e me olhou, para falar novamente.
— Aproveite o seu drinque, Linda.
Eu aproveitei, enquanto via aquele homem se mover de um lado a outro
no bar. Ele era alto, eu arriscaria um metro e noventa, talvez dois metros, e um
pouco corpulento. Eu até poderia dizer que eram músculos bem trabalhados, a
camisa preta apertada no corpo me permitia analisar tudo com bastante esmero.
Ryan roubava olhares enquanto continuava a atender outros clientes.
Quando meus drinques estavam acabando, ele prontamente fazia outro, me
entregava e voltava aos seus afazeres.
Eu deveria passar para o próximo item da lista, mas estava tão bom onde
eu estava... E a vista era realmente privilegiada. Tirando a lista da minha bolsa,
eu a reli e sorri. Peguei a caneta e fiz um pequeno check ao lado do item três:
“beber um drinque exótico”.
Rindo, coloquei mais dois checks ao lado. Um para cada drinque exótico
com o meu nome que eu havia bebido.
— Recebeu bilhete de algum admirador? — Ryan brincou, tirando minha
atenção do pedaço de papel. Meu olhar se desviou para ele, e eu sorri.
Não sei exatamente o que eu estava pensando, mas entreguei o papel para
ele. Knox começou a rir enquanto seus olhos tremulavam ao ler os itens da lista.
— Ei, o número três está incompleto. Você não reclamou da vida para
mim — meu estômago embrulhou um pouco naquele momento, mas o sorriso
em meu rosto não vacilou. — Talvez eu possa te ajudar em outros itens...
Sua sobrancelha levantou sugestivamente para mim.
— Eu imagino que sim, Casanova, mas, pelo menos nos últimos itens, eu
pretendo seguir a ordem correta — pisquei, brincando. Ele fez um beicinho
decepcionado. — Não chore, e me consiga outro drinque.
— Mais um? Você estará bem para voltar ao seu quarto de hotel? —
questionou, imóvel, sem fazer qualquer menção de que ia começar a preparar
meu Linda.
— Talvez você possa me levar. Ou você pode me levar para a diversão, o
que me diz, Knox? O que acha? Será que você pode fazer da minha estada em
Las Vegas algo inesquecível?
Seus olhos se espremeram minimamente, e um sorriso predador se fez
em seus lábios. Lembro que quando seu turno acabou, ele deu a volta no bar e
sentou ao meu lado.
Depois, lembrava de mais alguns (muitos) drinques, e todo o resto era um
borrão.

***

Eu estava completamente nua, então peguei o lençol solto pela cama e
me enrolei nele. Foi naquele maldito momento que eu vi. O negócio brilhou em
meu anelar esquerdo, me fazendo querer vomitar. Analisei de perto o anel, era
uma argola fina com um pequeno dado colado em cima. Era vagabundo, mas
delicado.
Os flashes novamente invadiram minha mente.
Knox e eu cambaleando pela Strip;
Jogando no cassino;
Nós dois nos agarrando em um canto escuro do cassino;
Riscando o item número dois da lista;
Knox colocando a aliança em meu dedo e eu colocando uma no dedo
dele também;
— Eu prometo que descobrirei como te amar, respeitar e apoiar... Agora
podemos transar?
Elvis nos declarando marido e mulher.
— Eu casei com um estranho — resmunguei para a aliança fajuta em
volta do meu dedo assim que o foco voltou ao presente.
Olhei em volta, à procura do documento. Desesperada, passei meus olhos
minunciosamente pelo quarto antes de ir até a cadeira ao lado do móvel da
televisão. Lá estava ele.
Linda Knoxville.
Meu Deus! Deixei mudarem meu nome?
— Casei com um estranho! — sussurrei mais alto, repetindo como se
precisasse me convencer daquilo.
— E tivemos uma bela lua de mel, esposa — a voz rouca resmungou,
meio abafada. Olhei para ele, sentindo o corpo todo se arrepiar ao perceber que
meu marido estava acordado. Metade do seu rosto estava amassado no
travesseiro.
— Você...
Tentei encontrar algo para dizer a ele, mas o que diria? Ele não havia se
aproveitado de mim: quando saímos do bar, estava bêbado também. Quando nos
casamos, estávamos rindo como duas hienas epiléticas, estávamos achando
realmente engraçado aquela merda toda. E quando chegamos ao quarto...
Bem, nós dois estávamos muito ativos também. Eu me lembro! Deus não
me beneficiou com amnésia alcoólica.
Nós, em meu quarto, nos despindo, nos beijando, agarrando... Jesus!
Suas investidas duras e rápidas, minhas mãos arranhando suas costas,
nossas bocas esfomeadas. Sua boca chupando meus seios, suas mãos amassando
a minha bunda quase a ponto de dor... O seu pau entrando e saindo de dentro de
mim incontáveis vezes, até que estávamos gritando em puro prazer.
— Eu...? — incentivou para que eu continuasse falando.
— Ryan, o que foi que fizemos? — choraminguei, apertando um pouco
mais o lençol em meu corpo e caminhando até minha mala para pegar alguma
roupa. Eu sequer lembrava o que havia nela! Na tarde passada, estava tão
transtornada e bêbada, que sequer sabia o que tinha escolhido para usar na minha
aventura louca por Las Vegas.
— Nos divertimos, Linda. Fique tranquila. Nos protegemos — disse
casualmente.
Eu me virei em sua direção, e ele se levantou da cama e caminhou até
mim. Nu.
Meu Deus! Que corpo maravilhoso, pensei assim que meus olhos se
focaram nele por inteiro. Ryan era forte, tinha o corpo malhado e rígido. Era liso
e quase totalmente livre de pelos. Lembrei do quanto sua bunda era deliciosa de
apertar também, e por um momento pensei em jogá-lo contra a cama novamente
e... Ugh! Eu precisava manter o foco!
Estiquei a mão para que ele se mantivesse longe. Ele parou e levantou a
sobrancelha, me mostrando sua dúvida.
— Estávamos bêbados ontem à noite, e embora tenha sido muito
divertido...
— Foi muito gostoso também, baby — interrompeu, seu rosto estava
relaxado, com um sorriso sacana estampado, como se estivesse adorando aquela
situação.
— Foi, foi gostoso, Ryan, mas precisamos resolver isso. Cancelar o
casamento. — eu estava ficando aflita com a situação. Onde eu estava com a
cabeça?
Meu estômago se contorceu no momento em que percebi quão
imprudente eu fora. Beber tudo aquilo, largar tudo em Los Angeles, transar com
um cara desconhecido...
Deus! E se ele descobrir quem eu sou e o que eu tenho e não quiser o
divórcio para ficar com parte dos meus bens?
Linda, você é uma retardada!
Pensei nisso tudo enquanto desviava dele e praticamente corria em
direção ao banheiro. Assim que entrei, bati a porta e me escorei nela.
— Claro que vamos cancelar. Não se preocupe — ele respondeu em um
tom mais alto para que eu escutasse do banheiro. — Eu só vou para casa trocar
minhas roupas e tomar um banho, podemos nos encontrar no cartório em...
Imediatamente abri a porta do banheiro e enfiei a cabeça para fora.
— De jeito nenhum! Não vou perder você de vista...
Ele cruzou os braços, ainda nu (por que ele ainda não se vestiu?), e me
olhou com humor.
— Coloque uma roupa, pelo amor de Deus! — pedi, mas, no fundo, eu
queria ficar olhando para ele por mais uns vinte minutos... ou cinco horas.
Porra! Foco, Linda. Foco! — E não vou arriscar nos desencontrarmos. Você fica
e daqui vamos ao cartório.
— Estou fedendo, minhas roupas também, estou de ressaca e com fome.
Nada acontecerá antes de eu estar limpo e alimentado, querida — ele foi
categórico em suas palavras.
E puta que pariu.
A voz dele conseguiu deixar o meu corpo aceso como a porra da árvore
de natal do Rockfeller Center em Nova Iorque.
— Tudo bem — tentei me controlar e manter meus olhos nos seus. —
Banho e comida. Entendi. Concordo — listei, parecendo um robô, mas eu tinha
que me concentrar naquele momento.
— Posso tomar banho com você, então?
Pisquei algumas vezes antes de entender sua proposta.
— Não!
E novamente bati a porta. Através dela, pude ouvir a risada de Ryan
Knoxville.
E, incrivelmente, seu riso me fez sorrir.




Capítulo 2
Esquecendo por um momento

Nós passamos em seu apartamento, em um bairro mais afastado em
Vegas, e eu optei por aguardá-lo no carro enquanto ele tomava um banho rápido
e trocava de roupa. Enquanto o motorista do carro alugado tentava encontrar
uma rádio decente para ouvirmos, eu, sentada no banco traseiro, peguei meu
telefone e o liguei rapidamente. Fiz um enorme esforço para não abrir meu e-
mail, escutar as mensagens de voz ou mesmo ler as mensagens no aplicativo de
conversa que faziam meu telefone quase entrar em colapso, de tanto que vibrava.
Selecionei o número de minha assistente e liguei para ela.
— Senhorita Hatman, graças a Deus, estão todos morrendo de
preocupação com você.
— Estou bem, volto ainda hoje e me resolverei com todos. Apenas avise
isso.
— Mas...
— Stacy, só faça o que eu pedi.
— Mas seus pais...
— Minha mãe e meu padrasto não morrerão — meu tom de voz estava
além de alterado: pingava sarcasmo. — Diga a eles que não sou criança. Estou
apenas descansando. Estarei em casa em breve.
Encerrei a ligação sem dar qualquer chance para Stacy e ignorei todos os
alertas na tela. Pressionei o botão lateral por tempo suficiente para desligar o
aparelho e aguardei por Knox.
Quando ele apareceu em frente ao prédio, me permiti olhar para ele
através dos meus óculos. Memórias vívidas do que fizemos na noite anterior
causaram arrepios em meu corpo e me fizeram fechar as pernas, na tentativa de
acalmar o pulsar da minha excitação.
Vestido com jeans simples e surrado e uma camiseta branca apertada, seu
estilo foi coroado com um Ray-Ban clássico e quadrado. A barba estava cerrada,
e seu maxilar duro e forte parecia muito beijável.
— Linda? — eu o ouvi chamar de onde estava. Levantei meus olhos e
peguei seu sorriso aberto e muito perfeito para o meu gosto. — Pronta para o
café da manhã? E você pode dispensar o chofer, tenho carro, posso levar você
para onde precisar.
— Prefiro o carro — respondi sem dar abertura para discussão.
— Esnobe — ele murmurou com humor.
— Gostaria de ir logo para o cartório, Ryan — resmunguei da janela,
ignorando sua declaração. — O que está fazendo aí ainda? Entre no carro.
— Estava deixando você terminar de me apreciar — sua voz era
carregada de humor. Revirei os olhos e tentei relaxar enquanto ele contornava o
carro para entrar.
No momento em que entrou, seu aroma fresco encheu o veículo, me
fazendo contorcer mais um pouco. Na outra noite, ele cheirava como um
cinzeiro, eu também, é claro. Estávamos perto de fumantes. Mas de banho
tomado, cheiroso como estava e com as roupas perfeitamente modeladas em seu
corpo... Deus! Eu só queria voltar para o hotel.
— Café? — insistiu novamente.
— Tudo bem, café! — relaxei e deitei a cabeça no encosto do banco do
carro.

**

Minha ideia era apreciar o café da manhã de um dos hotéis. O Bellagio
talvez. Mas Ryan indicou um caminho mais distante e, quando percebi,
estávamos em frente a um trailer adaptado com a pintura desbotada e a aparência
completamente velha. Era uma área de trailers em um bairro afastado da parte
badalada da cidade.
— O que estamos fazendo neste lugar? — perguntei, abaixando os óculos
e tentando ler a placa em frente ao trailer. Ela dizia Ovos & Bacon.
— Viemos tomar café — Knox respondeu como se fosse completamente
óbvio.
Em seguida, saiu do carro e deu a volta rapidamente. Abriu a porta,
estendeu a mão para que eu saísse e sorriu, pegando em minha mão e olhando
para o anel de casamento, que eu ainda não havia retirado. Retirei a mão da sua,
fechei meus dedos e olhei para meus pés, um pouco sem graça por ter sido pega.
Knox foi gentil o suficiente para não falar sobre o assunto.
— E por que aqui? — perguntei, tentando desviar a atenção do anel que
permanecia em meu dedo.
— Porque esse é o lugar que faz o melhor café da manhã do mundo.
Novamente pegando em minha mão e me deixando tensa, Ryan
Knoxville me arrastou em direção ao trailer desbotado. Nós paramos em uma
das mesas disponíveis do lado de fora, e ele chamou nosso motorista para se
aproximar. O homem caminhou vagarosamente em nossa direção enquanto eu
continuava analisando o local.
— Você quer tomar café da manhã conosco? — ouvi Knox perguntar ao
motorista e imediatamente me senti mal por sequer considerar o homem.
— Não, senhor, estou bem, obrigado. Estarei aguardando no carro.
— Claro — Knox sorriu e esticou a mão para apertar a do homem.
Aquilo foi muito legal da parte dele. Não tinha ideia de que era uma
pessoa que se preocupava com as outras daquele jeito. Mas eu não sabia nada
sobre ele, não é?
Casei com um completo estranho.
— Você sempre toma café da manhã aqui? — perguntei quando ele
puxou a cadeira para que eu pudesse sentar.
— Infelizmente, fica longe demais para vir todos os dias, mas eu tento
vir constantemente. Vale a pena.
Se valia a pena, eu não sabia. Não havia comido lá ainda, mas o lugar,
embora velho, parecia limpo e organizado e tinha algo diferente, ao menos para
mim. Eu cresci em uma família que nunca precisou fazer refeições em lugares
que não fossem muito caros, então aquele lugar era um ponto fora da minha
rotina.
Logo que estávamos acomodados, uma senhora de pele bem negra
apareceu com um sorriso imenso estampado no rosto.
— Meu Ryan! — ela juntou as mãos como se estivesse rezando. — O dia
sempre fica perfeito quando você aparece, meu menino! — a mulher se
aproximou, e ele se levantou para abraçá-la.
— Yvone, como vai? — o sorriso de Ryan estava completamente
diferente de todos os que eu já havia presenciado antes. Quando seus lábios se
abriam para sorrir, seu rosto todo se transformou. Principalmente seus olhos.
Eles brilhavam, se apertavam nos cantos e emitiam uma sensação tão boa...
— Estou ótima, e você? — olhando para mim, Yvone franziu o cenho e
voltou sua atenção para ele. — Quem é a moça? — perguntou sem rodeios.
— Esta é Linda, minha amiga — apresentou resumidamente. — Linda,
esta é Yvone, ela praticamente me adotou quando vim para Vegas.
— Olá, senhora! — cumprimentei ao me levantar e estendi minha mão
para ela.
— Olá! — Yvone sorriu, mas eu sabia que me analisava.
— A senhora tem um lugar muito legal aqui — tentei elogiar. Yvone
estufou o peito, parecendo orgulhosa quando respondeu:
— Isso porque você ainda não experimentou meu café da manhã.
Quando experimentar, verá que é o melhor lugar do mundo — discursou com
satisfação.
— Foi por isso que a trouxe — Knox revelou voltando a sentar à mesa.
— Vou ajudar Linda a escolher o que ela vai querer, mas eu quero o de sempre.
O melhor.
Yvone assentiu, piscou para ele e sorriu amistosamente para mim antes
de nos deixar.
— Vou te ajudar a escolher algo — Ryan alcançou o cardápio para mim.
— Se você está pedindo o melhor, talvez eu deva pedir também.
— Claro, só queria te mostrar as opções — novamente seu rosto inteiro
mudou ao sorrir, preenchendo o ambiente com a sua facilidade de comunicação.
Ryan Knoxville era uma pessoa que poderia fazer um ambiente todo mudar com
a sua presença. E sempre para melhor.
Nós nos olhamos por alguns segundos, analisando um ao outro, talvez
tentando saber o que passava em nossas mentes. Mas quando meus olhos
desviaram para os seus lábios e mais flashes da nossa noite vieram à mente,
resolvi quebrar o silêncio.
— Qual é a história com Yvone? — perguntei olhando para dentro do
trailer. A mulher se movimentava de um lado a outro no pequeno espaço.
— Quando cheguei em Vegas, morei em uma república com o filho de
Yvone, Noel. Ele me trouxe para cá e me viciou na comida dela.
— Onde está Noel? — perguntei, interessada.
— Ele mora na Carolina do Sul agora. Casou e se mudou para lá. Sheila,
sua esposa, tem um bom emprego na região.
— E de onde você é?
— Califórnia — sua sobrancelha levantou quando meus olhos se
arregalaram. Ele era da Califórnia? — O que foi?
— De onde?
— Sacramento — respondeu e se levantou rapidamente, caminhando até
a janela do trailer. — Yvone, ela vai querer o mesmo que eu.
— Tudo bem, querido! — a mulher respondeu sem olhar em direção a
Knox, estava ocupada demais para aquilo, pelo que parecia.
Quando Knox estava novamente sentado à minha frente, retomei o
interrogatório.
— O que veio fazer aqui em Vegas? — eu me ajeitei na cadeira e cruzei
as mãos em cima da mesa.
— Vim trabalhar. Me pareceu interessante tentar a vida aqui. Então eu
simplesmente deixei tudo para trás — sua explicação foi sucinta, mas eu sabia
que havia mais história ali. Continuei o encarando, tentando encontrar uma
forma de saber mais sobre sua vida. Mas se eu lhe fizesse tantas perguntas, ele as
faria para mim também. E se tinha algo que eu não queria, era que Knox
soubesse quem eu era.
Eu não o conhecia, já estava me arriscando o suficiente sendo quem eu
era e andando sozinha por Las Vegas. Claro que eu não era nenhuma
celebridade, mas minha família e a rede Hatman de hotéis era muito conhecida.
Quando Yvone deixou os pratos em cima da nossa mesa, meus olhos
quase saltaram para fora do rosto. Era muita comida.
Waffles com manteiga e calda, ovos, bacon, torradas, geleias e muffins.
— Quanta comida para duas pessoas — observei enquanto Yvone
terminava de deixar nosso pedido na mesa. Eu conhecia grandes cafés da manhã,
mas geralmente a quantidade condizia com o número de pessoas que estavam à
mesa.
Yvone soltou um grunhido em minha direção, fazendo com que Knox
risse. A mulher se foi, e eu continuei olhando para a quantidade absurda de
comida.
— Yvone nunca faz pouca comida, nunca — ele explicou enquanto
começava a servir um prato para mim. — Você a ofende se fala que tem comida
demais.
— Isso é desperdício — resmunguei, analisando ele me servir uma
porção de cada item na mesa.
— Nunca é. Ela faz de propósito para eu levar as sobras. É um costume.
Com Noel longe, sempre que pode, ela transfere seus cuidados para mim. Está
tudo bem, vamos embalar o restante, e eu darei a alguém que precise. Sempre
faço isso — piscou para mim. — Agora coma.
Na primeira mordida no waffle, soltei um gemido. Nada de
extraordinário, especialmente quando se é dona de uma rede de hotéis onde se
tem acesso livre aos pratos mais sofisticados da culinária. Mas aquilo tinha gosto
de algo que eu não sabia decifrar.
— Gostoso, não? — Knox perguntou orgulhoso, sabia a resposta.
— Sim, mas tem algo a mais. Há algo aqui que não consigo identificar no
gosto, só sei que é... — lambi meus lábios e olhei para o prato novamente. —
Algo que nunca provei.
— Para mim, tem gosto de lar — ele disse antes de voltar a comer seus
ovos. Fiquei analisando a comida enquanto ouvia sua resposta ecoar em minha
cabeça.
Lar.
Eu nunca soube o que era ter um lar.
Eu tive pais, família, mas um lar mesmo? Nunca. Meu pai estava sempre
trabalhando, minha mãe, ocupada, e eu estudando para herdar o império. A
palavra que Knox usou para justificar o excelente sabor da comida parecia muito
certeira, mesmo que eu nunca tivesse provado. E eu não me refiro à comida.

**

Enquanto terminávamos nosso café da manhã — que, mesmo sendo algo
tão banal, me fez gemer como uma estrela pornô de tão gostoso que estava —
percebi que Ryan também mantinha no dedo o anel de casamento. Percebendo
meu olhar fixo em sua mão, ele retirou o anel e o olhou seriamente por alguns
segundos.
— Vamos trocar? — perguntou, ainda analisando a bijuteria entre seu
dedo indicador e polegar.
— Trocar as alianças?
— Sim, como uma lembrança. Você fica com a minha, e eu, com a sua —
explicou.
Olhei para a minha mão e analisei minha própria aliança. Embora barata,
era delicada. Suspirei e sorri, a retirando do dedo e entregando a ele. Em
seguida, peguei a dele e a coloquei no polegar por ser muito grande para os
outros dedos. Knox testou o anel em seus dedos, mas não coube em nenhum.
Então pegou seu molho de chaves e pendurou minha aliança ali.
— Assim lembraremos um do outro.
Mesmo sem a aliança, eu me lembraria de Ryan Knoxville para sempre.
Eu o tinha desafiado a tornar minha estada em Vegas inesquecível, e ele levou
muito a sério o pedido.
A loucura que compartilhamos jamais cairia no esquecimento. Por um
momento, me peguei revivendo nossa conversa na noite anterior. Em como fora
rápido esquecer tudo o que estava acontecendo quando Knox começou a
conversar comigo.
E, aproveitando o café da manhã de Yvone, na companhia daquele
homem — aquele belo homem que conseguia deixar tudo mais relaxado e que
sorria com os olhos e falava de forma tão irreverente —, foi muito fácil esquecer
quem eu era e todas as minhas responsabilidades.

Capítulo 3
O Governador de Nevada merece morrer

— Desculpe, por um momento pensei ter ouvido que o cartório está
fechado — consegui finalmente dizer depois de tanto rir.
— Foi exatamente isso que eu disse, senhora — imediatamente comecei
a gargalhar novamente.
— Linda, se acalme — Knox tentou dizer, mas eu não conseguia parar. O
cartório estava fechado. Era essa a resposta que o segurança me deu quando
tentei abrir a porta do local.
O CARTÓRIO ESTAVA FECHADO!
Após trocarmos nossos anéis, Knox e eu terminamos o café da manhã,
nos despedimos de Yvone e seguimos para acabar com a nossa situação de uma
vez por todas. Enquanto o motorista nos levava para o nosso destino, ficamos em
silêncio. Tentei procurar algum assunto para ouvir a voz dele por mais tempo,
mas nada veio à mente.
Quando finalmente chegamos no cartório, recebemos a notícia infeliz.
— Ele está dizendo que o cartório não abre hoje! — continuei
gargalhando. — Tudo bem, tudo bem... Chega, moço, agora me diga por onde eu
entro.
— É verdade, senhora, os cartórios de Las Vegas não abrem no dia dos
namorados.
Quando vi Knox levar as mãos à cabeça, com a face retorcida em
frustração, comecei a perceber que talvez aquilo não fosse uma brincadeira. Meu
riso foi cessando enquanto o nervosismo e a irritação tomavam conta.
— Que palhaçada é essa? — olhei para Knox e para o guarda.
— Eu não lembrava disso — meu marido disse, parecendo mortificado.
— Então é verdade?
— Sim, senhora — o segurança afirmou. — Por decreto do governador
do Estado de Nevada, o dia dos namorados é um feriado absoluto em Vegas.
Desta forma, nenhum cartório realiza cancelamento de matrimonio.
Era possível que eu estivesse tendo uma crise de ansiedade. Eu nunca
tive uma, mas sabia quais eram os sintomas graças ao ataque fingido de uma
colega de faculdade. Chloe Zimmer, ela não entregaria um trabalho a tempo para
o professor e fingiu uma crise para fragilizá-lo, mas durou apenas 13.7 segundos,
e o professor acabou desmascarando-a. Ele a forçou a fazer um artigo sobre o
tema e apresentar para toda turma, apenas para puni-la por brincar com um
assunto tão sério.
— Linda, calma! — ouvi a voz de Knox me dizendo novamente e senti
sua mão acariciando minhas costas enquanto eu vagarosamente sentava na
calçada em frente ao cartório.
— Quem faz um decreto desses?
— Desculpe, eu me esqueci que hoje era dia dos namorados, sequer
passou pela minha cabeça.
— O que faremos agora? Eu não posso ficar casada com você, Knox.
Se ele descobrisse quem eu era, poderia me prejudicar. Nosso casamento
era legítimo. Como se não bastassem todos os meus problemas atuais, eu teria
que lidar com divisão de bens, pensão e tudo mais. Eu não conhecia Knox e não
poderia confiar em seu sorriso simpático ou em seu bom papo, a fortuna da
minha família estava no meio disso tudo. Deus! Como eu fui idiota...
— Amanhã resolveremos isso. Será a primeira coisa que faremos.
Pularemos até o café da manhã — respondeu com certo desespero na voz. Era
nítido que ele queria me acalmar.
— Como fui tão estúpida? Me casei com um estranho! Deus! Cacei um
barman e me casei com ele — joguei o rosto em minhas mãos e choraminguei.
— Ei, agora está me ofendendo — seu tom era de brincadeira. Mesmo
assim, me fez perceber o que havia dito.
— Desculpa, Knox. Mas não podemos negar que fomos muito
imprudentes. Muito mesmo.
O longo e forte braço dele caiu sobre o meu ombro quando ele me
abraçou de lado. Ficamos em silêncio por algum tempo, enquanto eu pensava em
falar com Stacy. Precisava avisar que ficaria mais um dia pelo menos.
— Tenho uma ideia — Knox saltou para longe de mim, parando bem na
minha frente. — Onde está aquela sua lista?
— O que tem ela?
— Temos mais um dia juntos, pensei em riscar os itens restantes da sua
lista de merda.
— É uma lista de merda mesmo, não poderia ter escolhido nome melhor
— me levantei e caminhei até ele.
— Relaxa, Linda, vamos resolver isso amanhã. Mas já que estaremos
juntos por mais um dia... — ele levantou uma sobrancelha e me olhou com um ar
de desconfiança fingida. — Ou você quer ficar longe de mim hoje e nos
encontramos amanhã?
— Não tem a mínima chance de eu tirar os olhos de você, Ryan
Knoxville — disse com firmeza, mas um sorriso bobo queria escorregar pelos
lábios.
— Então? Já que temos mais um dia casados, por que não o passamos
nos divertindo? — Knox abriu os braços de forma relaxada, apenas dando ênfase
ao seu convite. — Vou te ajudar a concluir os itens de sua lista e garanto, baby,
você vai adorar.
Por um segundo, a primeira resposta que passou pela mente foi não. Mas
então lembrei o motivo de estar naquele lugar e novamente aquela sensação de
impotência se alojou em meu peito.
Eu só tinha o “hoje”.
Por que não o aproveitar?

**

Ryan me fez dispensar o motorista, alegando que se eu me divertiria com
ele, seria à sua maneira. Quando chegamos em seu apartamento, ele me
convidou para subir. Lá, pegou apenas uma mochila e guardou roupas e produtos
de higiene. Era óbvio que ele passaria a noite no meu quarto, comigo. Eu não
tiraria os olhos dele até que o cancelamento estivesse feito, mas vê-lo arrumar
suas coisas para ficar comigo dava uma conotação completamente diferente
dentro da minha mente. Mesmo que eu tentasse sossegá-la.
— Quer algo para beber? — perguntou enquanto eu andava pelo
apartamento que mais se parecia com um estúdio. Sua cama era enorme e ficava
bem no meio do local. A cozinha ficava no canto direito, ao lado de uma grande
janela, e era muito pequena, separada apenas por uma mureta. O local era feito
de tijolo aparente vermelho, num estilo bastante Londrino.
Os lençóis na cama estavam desarrumados, e o chão, levemente
bagunçado. Também pude notar alguns calçados e roupas jogadas pelos cantos.
Eu nunca havia visto nada assim. Foi estranho e ao mesmo tempo me trouxe
uma sensação de humanidade. Deus, eu vivi em uma redoma de vidro por tanto
tempo!
Que coisa mais triste.
— Não, estou bem, obrigada — respondi, tentando me recompor.
Pegando meu telefone na bolsa, o liguei e aguardei as notificações pirarem no
aparelho. Quando levantei a cabeça, percebi Knox me observando por alguns
segundos antes de se aproximar, suas mãos foram para os meus ombros e
levemente me forçaram para que eu sentasse.
— Você parece nervosa — olhei para ele horrorizada com a sua brilhante
dedução, era nítido que eu estava nervosa. — Tudo bem, desculpe. Eu sei que
você está preocupada com o cancelamento do casamento...
— Eu não sei onde eu estava com a cabeça, Knox — interrompi sua
frase. No entanto, eu sabia. O problema era justamente este, minha cabeça. Eu
fiquei completamente pirada com o que aconteceu e me enfiei no fundo de uma
garrafa (ou talvez tenham sido três), alguns drinques a mais e levei Knox
comigo. — E ainda carreguei você nesta enrascada.
— Você não me carregou para nada — suas mãos pegaram o meu rosto e
seguraram firmemente enquanto ele falava. Seus olhos estavam vidrados,
profundamente fixos nos meus enquanto complementava. — Eu sabia
exatamente no que estava me metendo.
— Você casou comigo para transar — afirmei rindo sem humor.
— Casei com você porque sabia que poderíamos cancelar em seguida.
Resolvi realizar os itens da sua lista porque, bem, tudo bem, eu queria transar
com você. Deus! Linda, quero foder você agora mesmo — suspirei com a sua
declaração e deixei meus olhos mirarem seus lábios. Lembrava de como era
beijá-los, mas, honestamente, as lembranças já não pareciam tão boas quanto a
realidade. — Você é a mulher mais bela e sexy que já conheci.
— Não me beije, Knox. Por favor — implorei baixinho.
— Por que não? — seu tom desceu como se estivesse contando um
segredo para mim.
Porque deixaria tudo mais difícil, pensei enquanto me levantava e ia para
longe dele.
— Porque isso só atrapalharia nossos planos, Ryan Knoxville. E você me
prometeu diversão e minha lista completa. Se ficarmos aqui, perderemos o dia.
Ele não engoliu a minha justificativa. Na verdade, parecia até um tanto
chateado comigo. Bem, eu entendia, ele tinha acabado de me fazer um elogio e
dar a entender que me foderia de todas as formas que eu quisesse, mas eu o tinha
descartado. Ryan parecia perceptivo e inteligente, então contei com o fato de que
ele entenderia que eu apenas não queria complicar as coisas ainda mais entre a
gente. Rezei para que ele não me forçasse a falar sobre quem eu era ou sobre o
que estava acontecendo comigo.

**

LISTA DE MERDAS PARA FAZER EM LAS VEGAS!
1. Ir para Las Vegas;
2. Gastar uma pequena fortuna em um cassino;
3. Experimentar drinques exóticos enquanto reclama da vida para o
Barman;
4. Ver um show de go-go boy;
5. Dançar em frente ao Bellagio;
6. Andar em uma limousine com a cabeça para fora do teto solar
enquanto canto a música tema de Titanic;
7. Fazer uma tatuagem;
8. Assistir a um show cover da Tina Turner;
9. Casar com um estranho na capela do Elvis;
10. Transar com o marido estranho.

— Você tem os itens 1, 2, 3, 9 e 10, esse com louvor, concluídos — Knox
disse olhando para a lista, mas seu tom de voz era mais sacana quando citou os
dois últimos números, já que eu tinha me casado e feito sexo com ele naquela
noite.
Tínhamos saído da casa dele e voltado ao meu quarto de hotel, para que
eu pudesse tomar um banho antes de irmos para a nossa primeira aventura. O
clima estava maravilhoso, nem quente, nem frio.
— E você se sente muito orgulhoso sobre isso, imagino — revirei os
olhos, mas ele provavelmente não viu, uma vez que eu estava de costas enquanto
revirava minha bagagem atrás da roupa ideal para fazer turismo. — Que tipo de
roupa devo usar? — perguntei, puxando um vestido soltinho e mostrando para
ele o modelo.
Knox olhou por um tempo a peça de roupa e depois voltou sua atenção
para mim novamente.
— Deixe esse para a noite. Jeans e blusa está bom — mas seus olhos
continuavam em mim, queimando, me olhando com um desejo latente. Quase
palpável. Sua fisionomia, mesmo a sua postura, me diziam que ele estava
excitado. E para ser honesta, eu o queria também, sentia atração por ele, mas um
sentimento de medo me invadira quando acordei e o vira na minha cama. Nada
daquilo poderia ser levado a diante. Era injusto e perigoso.
Injusto para Knox.
Perigoso para mim.
— Tudo bem... — murmurei, virando de costas para ele novamente. —
Eu vou tomar um banho e você pode ficar à vontade. Tem... hum... Tem bebida
no minibar, tem chocolate também e...
— Leve o tempo que precisar, bonita — ele disse. A ênfase nas palavras
não me passou despercebida. Ele usou a palavra para dizer que eu era linda.
Bela.
Entrando no banheiro, puxei uma longa respiração e sentei na privada.
Apoiei a cabeça nas mãos e os cotovelos nos joelhos, tentando me recompor,
pensar direito no que estava fazendo.
Volte para casa, Linda. Volte agora. Encare seus problemas. Vá encarar
a sua situação de frente, como seu pai sempre a ensinou.
O problema era que meu pai só havia me ensinado a enfrentar os
problemas administrativos de frente. Meus pais não me prepararam para os
problemas da vida. Dinheiro foi tudo o que aprendi a administrar.
Levantei e fui até a porta, pronta para pedir a Knox que fosse embora,
que meus advogados entrariam em contato com ele. Voltar para casa e resolver
tudo como uma menina grande.
Então eu parei. Mantive minha mão na maçaneta e fiquei a encarando.
Analisei seu formato, o tom da minha pele, minhas unhas bem tratadas e
vermelhas... Cuidar da minha aparência era a única coisa que me fazia parar de
trabalhar. Ir ao spa, cuidar do meu corpo, cabelos, unhas...
Eu nunca cuidei da minha alma.
Há quanto tempo eu não parava de trabalhar para viajar, me divertir, ficar
à toa, sem fazer nada?
Responda rápido, Linda:
Qual é o seu programa de televisão favorito?
A cor das cortinas da sua suíte?
Quantos amigos você tem na sua lista de contatos?
Tirei a mão da maçaneta como se tivesse sido queimada e pisquei
algumas vezes, percebendo que havia lágrimas sorrateiras tentando escapar dos
meus olhos.
Não. Eu não voltaria ainda. Não sem antes me divertir. Foi loucura casar
com Knox, mas ao estar bêbada, percebi que não estava vivendo, apenas
sobrevivendo. Eu estava perdendo a minha juventude, morrendo sem ao menos
desfrutar das oportunidades que tinha.
Quando eu finalmente cancelasse aquele casamento, voltaria para Los
Angeles e então provavelmente... NADA! Um grande nada estaria me
esperando.

**

Incrivelmente demorei mais de uma hora no banheiro. Era como se a
água escorrendo pelo meu corpo me trouxesse uma sensação nova. A beleza das
bolhas de sabão, que eu fiz questão de produzir muitas, parecia uma novidade
aos meus olhos. A transparência levemente colorida da furta-cor me fez sorrir.
Eu me esfreguei, sentindo o leve arranhar da esponja na pele enquanto respirava
e sentia o cheiro dos sais de banho caros disponibilizados pelo hotel.
Deixei os cabelos molhados, para que secasse naturalmente, não dei a
mínima para maquiagem e me vesti com o jeans e a blusa que Knox havia
sugerido. Quando me olhei no espelho, me senti linda.
E livre.
Ao sair do banheiro, me deparei com Knox dormindo na ponta da cama,
as pernas estavam dobradas e os pés ainda estavam no chão. Ele provavelmente
estava sentado e apenas se jogou para trás. Devia estar cansado.
Caminhei até minha mala e puxei meu relógio para saber as horas. Era
quase hora do almoço, se eu estivesse seguindo as regras da antiga Linda, estaria
pedindo que Stacy providenciasse minha comida enquanto eu analisava mais um
relatório ou me preparava para entrar em uma reunião. Mas eu não estava sendo
a Linda de sempre, então voltei para a cama e me sentei ao lado dele.
Analisei seu semblante pacífico enquanto dormia e tentei não sorrir ou
achá-lo tão perfeito, mas era praticamente impossível. Mesmo inconsciente,
Knox ainda preenchia o ambiente. Era um contágio diferente. Difícil de explicar,
mas dentro de mim, eu conseguia sentir.
Delicadamente toquei seu braço e o sacudi.
— Ei, Knox, você está cansado? — seu sorriso se abriu antes dos olhos.
Deus! Ele sempre estava feliz?
— Você demorou — respondeu com a voz baixa e um pouco rouca.
Sentou-se na cama e me olhou rapidamente, mas antes que começasse, parou
para me analisar e sorriu. — Você está muito bonita.
Obrigada, eu me sinto bonita, pensei, mas não respondi.
— Podemos ir? Estou pronta — informei, me levantando.
— Sim! Nossa diversão vai começar!
Capítulo 4
O melhor cassino

Como não havíamos almoçado ainda e Knox alegou que eu não tinha
ideia do que era diversão e jogatina, ele resolveu me levar em um cassino
diferente.
— E o que tem de diferente neste cassino? — perguntei enquanto íamos
em direção às ruas paralelas de Vegas.
— É italiano, tem um restaurante lá e... — ele me fitou com animação,
mas procurou fazer um suspense.
— E o que, Knox? — incentivei, ficando animada.
— Não é um hotel cassino — murchei e franzi o cenho sem entender.
— E o que tem isso?
— É da máfia — sussurrou, se aproximando, e eu me aproximei também
e olhei para os lados, sem saber o porquê.
— Sério?
— Não! — Knox riu e deu um passo para trás, me fazendo rir. — É
apenas um cassino com um excelente restaurante na cobertura. Pegando na
minha mão, ele voltou a andar e me puxou com ele.
Seguimos até o restaurante a pé e permanecemos durante todo o tempo
de mãos dadas, o que me deixava desconfortável e muito confortável ao mesmo
tempo. Ao chegarmos em frente ao belo casarão, analisei a bela estrutura por um
tempo e percebi que fora construído para parecer antigo e europeu, como os
prédios italianos. A placa elegante e luminosa dizia Italia Casinò & Cucina. Era
um local era imponente e pela primeira vez fiquei preocupada com a forma
simples com a qual estávamos vestidos.
— Não estamos vestidos para entrar em um lugar desses, Knox — avisei,
mas fui ignorada.
Subindo a grande escadaria da frente, Knox me puxou com ele até que
estivéssemos na entrada do local. Nós entramos, e Knox não parou de andar até
atravessarmos todo o local e subirmos uma nova leva de degraus, para enfim
chegarmos no enorme e sofisticado restaurante. Os garçons trabalhavam com
fluidez em volta das mesas, e os clientes estavam sentados fazendo seus pedidos
ou apreciando suas refeições. Aparentemente ninguém tinha notado a nossa
presença.
— Knox, ei! Como vai? — um dos garçons nos abordou.
— Gerry, meu amigo! — exclamou meu marido de mentirinha. — Como
está?
— Tem tempo que não te vemos, cara — Gerry disse ao apertar a mão de
Knox.
— Ocupado no bar do hotel — ele justificou. — Esta é Linda, minha
esposa — congelei quando ele me apresentou daquela forma.
— Caramba, cara! Parabéns! — desta vez o rapaz abraçou Knox, o
fazendo soltar minha mão.
— Obrigado! — continuou a farsa. — Ela é a mulher mais bela que já vi
na vida, não poderia deixar escapar.
Aquilo me fez corar e sorrir. Olhei para meus pés e enfiei as mão nos
bolsos do jeans tentando disfarçar.
— Vocês vão almoçar aqui? — Gerry perguntou.
— Só se Antonio estiver na cozinha — Knox desafiou, abrindo os
braços.
— Claro que está! Vá em frente. Foi um prazer conhecê-la, Senhora
Knoxville. — o garçom fez uma reverência de brincadeira.
— Obrigada. Foi um prazer, Gerry — minha voz era quase esganiçada.
Mas sendo sincera e totalmente maluca, eu tinha gostado quando o garçom me
chamara de Senhora Knoxville.
Precisarei de internação assim que chegar em L.A.
Ryan me guiou por entre as mesas, mas não paramos em nenhuma.
Quando vi, fomos em direção a uma enorme porta de metal. Trabalhando com
hotéis, eu conhecia muito bem aquela porta, estávamos indo em direção à
cozinha.
Knox empurrou a porta enorme e gritou “Buongiorno!” para que todos o
ouvissem. Mesmo no ruído da cozinha, cheia de panelas chiando e batendo,
comandos do chefe de cozinha, máquinas trabalhando e homens falando alto, ele
conseguiu se fazer escutar. Todos no ambiente fizeram uma pausa para olhar em
nossa direção.
— Knoxville! — um homem corpulento e muito vermelho, com sua
dólmã branca e levemente suja de algo vermelho, exclamou e caminhou até nós.
— Il mio testimone in cucina! — o homem, que mais parecia Gerard Depardieu,
abraçou Knox.
Ele trabalhou na cozinha desse restaurante? Meu italiano não era minha
melhor língua, mas pude entender o que ele dissera: o melhor homem na
cozinha.
— Ho appena lavato i piatti — eu apenas lavava os pratos, Knox
respondeu humildemente. — Antonio, esta é minha esposa, Linda. Linda, baby,
este é Antonio, o melhor chefe Napolitano de Las Vegas.
Novamente ele me apresentou como sua esposa. O que ele queria com
aquilo? Brincar?
— Bella! Pio bella! — o homem pegou minha mão e a beijou. Muito
bonita. Ele disse, todo namorador para mim.
— Grazie mille! — agradeci sorrindo para a simpatia do homem.
— Oh! Parla Italiano! Ancora meglio! Ancora meglio — festejou o
[4]

homem.
Olhei para Knox e percebi que ele me analisava com algo no olhar. Não
pude identificar o que era, mas parecia... hum... sexy. Mantive os olhos nos dele,
desafiando-o. Eu não queria desviar meu olhar primeiro.
— Italiano, mas não Napolitano — os olhos de Antonio brilharam, eu
sabia que Napolitanos amavam muito o seu lugar. Nápoles é uma região do Sul
da Itália um pouco ignorada e também separatista em relação ao restante do país.
Tudo que conhecia era fruto de uma das poucas viagens que fiz. Era bela, porém
parecia que os italianos falavam outra língua.
— Gosto dela, Knoxville, eu gosto dela — Antonio sorriu
agradavelmente para mim.
— Sim, sim, tire os olhos. É minha! — Knox brincou batendo no ombro
do chef. — Antonio, queremos saber se podemos almoçar naquela mesa —
Knox pediu. — E se eu posso preparar para ela aquele espaguete.
— Hum... romântico! — Antonio brincou. — Claro, sigam! Sigam!
O homem nos direcionou até a tal mesa misteriosa. Nós atravessamos a
cozinha, e para mostrar um pouco de consideração à equipe, levei as mãos em
meus cabelos e os segurei tentando mostrar ao menos a minha intenção de evitar
que algum fio caísse na cozinha.
Andando pelas cozinhas dos hotéis, eu tinha total noção dos aparatos que
deveria usar para poder visitá-las. Quando finalmente chegamos em frente à
outra porta, Knox a abriu e me levou para dentro. O local era simplesmente
lindo. A vista da varanda dava para toda Las Vegas.
— A noite é muito mais bonito, mas temos outros planos para a noite —
respirei fundo e senti o vento mais gelado que batia em mim enquanto
novamente analisava toda a vista. Mais uma vez fiquei admirada com tudo
aquilo. Quanto tempo fazia que eu não parava para olhar o visual da minha
cidade? L.A era linda. Eu tinha parado em algum momento para olhar pela janela
do hotel em Paris quando fui visitar alguns investidores? Não, eu nem tinha
aberto as cortinas.
— Aqui é lindo, Knox! — suspirei e o fitei em seguida. — Obrigada.
— Não me agradeça ainda — puxou a cadeira e fez sinal para que eu me
sentasse. — Aproveite esse tempo para contemplar e pensar se quiser. Eu volto
logo.
Antes de partir, ele me deu um beijo no rosto, fazendo com que nós dois
nos olhássemos tentando entender o que estava acontecendo.
Enquanto Knox estava na cozinha, olhei a bela vista enquanto alisava
meu rosto, exatamente no local onde ele havia beijado.

**

Não demorou muito para ele retornar com os nossos pratos em uma
grande bandeja. Ele serviu tudo na mesa e se sentou à minha frente. Logo um
dos rapazes da cozinha estava nos servindo vinho tinto e nos desejando um bom
apetite. Olhei para o prato de espaguete na minha frente e admirei a apresentação
do prato. O macarrão estava cuidadosamente enrolado, com uma quantidade
generosa de molho por cima e um ramo de manjericão enfeitando.
— Então você cozinha! — afirmei, pegando o garfo e a colher para
comer.
— Às vezes... — ele disse, dando de ombros e pegando seus próprios
talheres. — No entanto, eu sei fazer o espaguete mais assassino do mundo, e foi
Antonio quem me ensinou. Achei que seria legal fazermos coisas diferentes
hoje. Como eu disse, gostaria que você se lembrasse de mim quando partir. E eu
aceitei o desafio de fazer esse momento inesquecível, caso não se recorde.
Um nó se fez em minha garganta. De repente, uma vontade de chorar me
invadiu. Por quê? Por que eu estava agindo daquela forma? Por que aqueles
sentimentos conflituosos brincavam dentro de mim?
O que aconteceu obviamente tinha mexido comigo ao ponto de me fazer
beber demais e tomar as decisões que havia tomado e, claro, me feito conhecer
Ryan. Mas estar com ele daquela forma, daquele jeito, contando os segundos
para me livrar da situação que havíamos nos metido e ao mesmo tempo sofrendo
por estar com as horas contadas pelo prazo de validade, era confuso.
— Obrigada, Knox. É gentil da sua parte — agradeci delicadamente e me
forcei a comer. A bola angustiante ainda estava alojada na garganta. Tomei um
longo gole do vinho e saboreei a bebida tentando me concentrar em mandar
todos aqueles sentimentos embora.
Aos poucos, o sabor da refeição foi me fazendo relaxar, e a conversa com
Knox foi limpando a nuvem desconfortável que se fez por um momento. Ele
falou de como foi parar na cozinha de Antonio e que lavava pratos enquanto
cantava. Rapidamente conquistou a confiança do chef e com isso, em pouco
tempo, estava preparando pequenos pratos. Mais uma vez fiquei encantada com
o espírito livre de Knox. De como sua vida não tinha rumo, o que o deixava livre
para ser aquilo que desejasse e fazer o que bem entendesse.
Quarenta e oito horas antes eu teria achado aquilo um absurdo.
Enquanto falávamos e ríamos, eu não fiz quaisquer perguntas com medo
que ele fizesse questionamentos a mim também, porém uma pergunta ficava
dançando na ponta da minha língua. Finalmente, quando não consegui segurar,
perguntei:
— Knox, por que você me apresentou como sua esposa? — ele comia a
sua massa e parou de mastigar por um momento quando ouviu minha pergunta.
Largou os talheres com as pontas apoiadas no prato e pegou a taça de vinho.
Assim que ele engoliu a comida, levou a taça aos lábios e bebeu um gole.
Quando finalmente largou a taça, olhou para mim, diretamente em meus olhos, e
respondeu:
— Você é a minha esposa... Por enquanto — revirei os olhos para ele. —
Eu só queria saber qual é a sensação de apresentar uma mulher tão bela como
minha.
Argh! Por que esse homem tinha que ser tão charmoso? Por que sua voz,
postura, a porra do seu olhar tinha que preencher o ambiente daquela forma?
Percebendo que fiquei envergonhada com aquelas palavras, ele tratou de
mudar o assunto.
— Pronta para a sobremesa? — disparou, se levantando. Assenti,
animada, mas minha empolgação mudou minutos depois, quando ele trouxe
Tiramisù.
Eu sorri em agradecimento, mas de alguma forma ele percebeu que eu
não estava empolgada com a sobremesa.
— Você não gosta de Tiramisù — ele afirmou.
— Não é o meu favorito, mas eu como... — antes que eu pudesse
terminar a sentença, ele recolheu a sobremesa e voltou para a cozinha. Quando
retornou, colocou uma taça na minha frente, me fazendo sorrir.
— Gelado de limão com espumante demi-sec — anunciou. Bati palmas
para a taça e peguei a colher louca para provar. Eu conhecia a sobremesa, era
italiana também, mas muito mais servida na América do Sul, mais precisamente
na Argentina. — Pela sua cara, você aprova — Ryan sentou na minha frente e
começou a provar o seu Tiramisù.
— Eu amo sobremesas cítricas!
Nós apreciamos nossos doces, e quando finalmente terminamos, Knox
levantou e estendeu a mão para mim.
— Pronta para o cassino? — dei a mão para ele e levantei.
— Knox, eu realmente não estou vestida para o cassino — justifiquei
enquanto ele me levava ao longo da sacada onde estávamos.
— Você está perfeitamente bem vestida para o cassino que vamos —
paramos em frente a uma porta e um burburinho animado saía dela. Uma placa
na porta dizia: Apenas funcionários.
Quando a porta foi aberta, avistei um grupo de pelo menos oito pessoas
em torno de mesas, alguns jogando poker, outros jogando na roleta. E todos com
os rostos desenhados com riscos vermelhos.
— Knox! — alguns gritaram em boas-vindas.
Ryan olhou para mim e disse:
— Pronta para se divertir?

**

No cassino da cozinha não rolava dinheiro. Apenas um batom vermelho
de marca vagabunda como recompensa. Aquele que ganhava a partida tinha
autorização para desenhar o que quisesse no rosto dos perdedores. Achei
barulhento, o local era abafado e tinha até um cheiro desagradável de gordura
misturado com suor. Entretanto eu posso afirmar: nunca me diverti tanto em toda
a minha vida.
Escolhemos a mesa de dados para jogar.
Era antiga, alguns números já estavam apagados na mesa — imagino que
tenha sido trocada por uma nova no cassino, e os funcionários recolheram a
antiga.
— Sua vez, baby! — Knox disse empolgado, me entregando os dados.
Eu praticamente saltitava. Peguei os dados e os chacoalhei na mão, mas antes de
jogá-los na mesa, estendi minha mão fechada para ele, bem na frente do seu
rosto.
— Assopra para dar sorte! — pedi.
Knox pegou a minha mão com delicadeza e olhou para mim antes de
puxar meu punho fechado para seus lábios e beijar. Senti meu rosto esquentar
com aquela atitude. Quando ele soltou a minha mão, sacodi os dados uma última
vez e soltei. O resultado foi exatamente o número que eu havia apostado. Vibrei
e joguei minhas mãos para cima em comemoração. Senti as mãos de Knox em
minha cintura, me fazendo parar de pular. Ele se postou bem atrás de mim e,
ainda com suas mãos em torno do meu corpo, disse próximo ao meu ouvido:
— Acho que te dou sorte, bonita — brincou, com a voz rouca, fazendo
meu corpo todo reagir a ele.
Mal sabia que ele me trazia muito mais.
Capítulo 5
Marcada na pele

— Próxima parada... Tatuagem! — Ryan informou quando saímos do
cassino. Eu ainda passava um lenço demaquilante, que consegui emprestado de
uma das funcionárias que estava no cassino da cozinha em seu horário de
descanso.
— Eu não sei, Knox! Eu nunca fiz uma — estava com medo de sentir
dor, porém também excitada. A vontade de fazer uma tatuagem era grande.
— Mais um motivo para fazer. Alguma ideia do que quer? — andamos
lado a lado de volta para a Strip.
— Não, talvez algo para lembrar esse momento? — disse como se
pedisse aprovação para a minha ideia.
— Legal, vou posar para o tatuador. Você prefere nu? — brincou, e eu o
empurrei com o ombro e comecei a andar mais rápido. — Não, não! — ele disse
e pegou na minha mão. — Você não vai fugir — Knox me parou, fazendo olhar
para ele. — A menos que realmente não queira — emendou com preocupação.
— Eu quero! Só estou com medo de sentir dor.
Dor.
Eu não queria senti-la. Nenhuma delas, nem a da cabeça, nem a do
coração e muito menos a da alma.
— Vamos escolher um local que não machuque tanto — disse, tentando
me encorajar. Durante todo o caminho mantivemos nossas mãos dadas. Foi
confortável, normal.
Foi bem-vindo.

**

Escolhi dadinhos.
Queria algo que simbolizasse a minha aventura em Vegas, mas também
algo que me lembrasse Knox. Enquanto folheava cada uma das páginas cobertas
de desenhos, tentava encontrar o símbolo perfeito para colocar em meu corpo.
Foi então que o brilho do anel dele, que estava em meu polegar, chamou minha
atenção. Quando eu disse ao tatuador o que queria, fiquei aliviada por Knox não
comentar nada a respeito da minha escolha.
Ao me sentar na cadeira, apontei para o tatuador o local no qual ele
deveria fazer a tatuagem. Seria pequena e delicada e ficaria no meu ombro.
O tatuador começou, e só o barulho da máquina já me fez apavorada.
Knox pegou a minha mão e fez um grande trabalho tentando não rir de mim.
Quando finalmente o tatuador começou o desenho na minha pele, me senti
relaxar, doía, mas era suportável. As sobrancelhas de Knox levantaram em
expectativa quando me perguntou:
— Não está doendo?
— Um pouco. Está queimando, mas você tinha razão, escolher o local
certo faz toda a diferença — disse, aliviada e mais animada com o desenho.
Ryan tinha apontado o local exato em minha clavícula para que não sentisse
tanta dor, já que aquele local era um dos mais sensíveis. Apertei a mão de Knox
delicadamente para dar ênfase às palavras seguintes: — Obrigada. Está
realmente sendo muito divertido, Knox.
O homem pareceu ter o rosto todo transformado em euforia. Como se ele
realmente estivesse preocupado com a minha diversão, com a minha felicidade.
De fato ele estava dizendo o tempo inteiro que se importava em me dar
momentos inesquecíveis, mas na vida todos nós falamos muito e prometemos
ainda mais. E quase sempre são promessas vazias.
Prometemos dieta na segunda-feira;
Prometemos o “na alegria e na tristeza” para o padre;
Dizemos que será a última vez que vamos dirigir acima do limite de
velocidade;
Juramos que é a última vez que machucamos alguém...
Mas quando realmente fazemos isso? As pessoas sempre falham em
alguma promessa, seja para si ou para outra pessoa. Então acho que nos
acostumamos a não levar muito a sério as palavras. Muito menos as promessas.
Knox parecia diferente. Não que eu tivesse muito contato com pessoas
fora do ambiente de trabalho, mas pelo o que eu conhecia do mundo, os seres
humanos estavam esquecendo a força da palavra. Parecia que promessas e
acordos não valiam de nada se não fossem gravados ou colocados em um pedaço
de papel, que exigia a sua assinatura e cláusulas que te prejudiquem caso não
cumpra a sua parte no acordo.
Com Ryan Knoxville as palavras valiam. Pelo menos era o que ele estava
me mostrando. E por Deus, tudo em mim gritava para acreditar nele, para querer
confiar nele. Eu me sentia protegida e livre ao lado daquele homem. Eu me
sentia completamente imprudente de estar com ele daquela forma, e ainda assim
nunca me senti tão bem.
— Ficou linda! — anunciei, animada, depois de olhar por um longo
tempo no espelho.
— Quero ver! — Knox se aproximou e olhou para o pequeno desenho
em meu ombro através do reflexo do espelho. Enquanto ele admirava minha
tatuagem, eu admirava seu olhar para mim. Com um sorriso satisfeito, ele
dedicou sua atenção para mim e disse para o tatuador:
— Quero uma igual a dela. Embaixo do braço e um pouco maior —
exigiu.
— Só se for agora, amigo — o homem pegou um novo par de luvas
pretas e sentou em sua cadeira pronto para começar.
— Knox...? — maneei a cabeça e pisquei, tentando entender o que ele
estava fazendo.
— Pare com isso, você está parecendo a garota de Crepúsculo agora —
debochou, indo em direção à cadeira.
— Garota de Crepúsculo? — do que ele estava falando?
— É, a que se apaixonada pelo vampiro. Ela está sempre se piscando
toda e balançando a cabeça, parece um tique nervoso.
— Não tenho ideia do que está falando — caminhei até onde o tatuador
estava e sentei no local que era ocupado por Knox anteriormente.
— É um filme. Crepúsculo, filme de livro — explicou. Filme de livro, foi
exatamente isso que me fez voar para Las Vegas. Um filme baseado em um
livro.
— Odeio esse filme — o tatuador resmungou, fazendo Knox bufar. —
Vampiros que brilham. Péssimo.
— Pode crer! — meu marido concordou. — O que fez nos últimos anos,
Linda? Não conhecer Crepúsculo é como viver em outro mundo.
Trabalhando, escondida do mundo real.
Fingindo viver.
— Ei! — Knox chamou, me puxando para fora dos meus pensamentos.
— Lembro de ter segurado a sua mão, devolva o favor e segure a minha também
— sua palma estava virada para cima aguardando o toque da minha. Ergui minha
mão e bati na dele antes de apertá-la com força, e nos mantermos conectados até
que ele tivesse os seus próprios dados.

LISTA DE MERDAS PARA FAZER EM LAS VEGAS!
1. Ir para Las Vegas;
2. Gastar uma pequena fortuna em um cassino;
3. Experimentar drinques exóticos enquanto reclama da vida para o
Barman;
4. Ver um show de go-go boy;
5. Dançar em frente ao Bellagio;
6. Andar em uma limousine com a cabeça para fora do teto solar
enquanto canto a música tema de Titanic;
7. Fazer uma tatuagem;
8. Assistir a um show cover da Tina Turner;
9. Casar com um estranho na capela do Elvis;
10. Transar com o marido estranho.

**

Ao sairmos da loja de tatuagem, me sentia destemida e pronta para a
próxima aventura. Knox provavelmente percebeu, pois ele parecia ainda mais
alegre. Seu objetivo estava sendo alcançado a cada minuto. Nós andamos pela
Strip, e embora estivesse uma temperatura agradável, o sol não estava tímido e
nos presenteava com a sua presença assim como o azul incrivelmente belo do
céu.
Quando foi que percebi o céu?
— Nossa próxima aventura só começa daqui a uma hora, o que acha de
fazermos algo? Você pode escolher.
Eu travei. Tinha que escolher algo para divertir e passar o tempo, mas o
quê?
— Não tenho ideia — respondi, frustrada. — Não sei, Ryan.
O rosto de Knox iluminou.
— Você me chamou de Ryan — franzi o cenho sem entender.
— Já chamei você de Ryan antes, Ryan.
— Foi diferente — disse, simplesmente dando de ombros e dispensando
o comentário.
Diferente como? Queria saber, mas ele parecia ter encerrado o assunto.
Então também deixei para lá. Tentando pensar no que eu gostaria de fazer para
passar o tempo, olhei em volta de onde estávamos e então dei de cara com uma
Ross Dress for Less ao lado do Hard Rock Café. A Ross era uma loja de
departamentos enorme, então pensei que já que estava fazendo turismo e me
divertindo, poderia muito bem fazer algumas compras.
— Acho que quero fazer compras — anunciei, já andando em direção à
loja.
— Compras? — o tom de voz mudou de relaxado para tenso, quase
esganiçado. Olhei para trás e vi que ele me seguia. — Linda, veja bem... eu... —
ele parou antes que entrássemos na loja.
— O que foi? — olhei para a loja mais uma vez e voltei minha atenção
para ele.
— Eu sei que prometi uma grande farra hoje, mas eu hum... Sou um
barman — justificou com o rosto mortificado. Parecia tão envergonhado. Então
percebi, em nossas aventuras até o momento, ele não havia pago. O café da
manhã com Yvone, o almoço no Antonio... Tudo bem, eles eram amigos.
Merda! A tatuagem. Tudo bem, o tatuador parecia conhecer Ryan, mas
não o vi pagando.
— Como pagou pela tatuagem? — questionei, voltando a me aproximar
dele.
— Não se preocupe com isso, Luke é meu conhecido — explicou como
se não fosse grande coisa.
— Isso eu percebi — coloquei as mãos na cintura e perguntei novamente:
— Como pagou pelas tatuagens?
— Troquei por bebidas no bar em que trabalho. Na próxima semana, ele
irá se divertir por minha conta — cruzando os braços, olhou para o outro lado da
rua, estava envergonhado.
Eu nunca me preocupava com dinheiro. Nunca ao ponto de sequer abrir a
carteira. Onde eu fosse em L.A sabiam quem eu era. As faturas apenas
chegavam. Quando eu viajava, geralmente era a negócios. Quando queria algo,
pegava e o assessor que estivesse comigo se preocupava com o pagamento. Meu
cartão de crédito foi usado por mim poucas vezes.
— Desculpe, Knox. Eu devia ter me preocupado mais com isso — eu me
sentia horrível. O cara estava perdendo um dia de trabalho e precisava se
preocupar com o dinheiro gasto.
— Não, não, Linda... Eu... — Deus, ele estava tão envergonhado...
Puxei a minha bolsa para frente e dei uma batidinha nela com a mão.
— Não se preocupe, baby... — usei seu artifício contra ele. — Eu
também posso fazer minhas mágicas. A farra econômica é por minha conta.
— Eu não posso aceitar, Linda. Não — Ryan meneou a cabeça em
negação, dando ênfase às suas palavras.
— Acabo de colocar em minha lista de desejos, Knoxville —
comuniquei. — Bem abaixo do café da manhã com a Yvone, do almoço do
Antonio e do melhor jogo de dados da minha vida — pisquei antes de enganchar
meu braço no dele. — Décimo primeiro item na LISTA DE MERDAS PARA
FAZER EM LAS VEGAS: gastar dinheiro com Knox na Ross Dress for Less.
Ele foi arrastado para dentro da loja e ficou emburrado por algum tempo,
mas acredito que era apenas orgulho. Quanto a mim, lógico que já havia entrado
em lojas de departamento. Macy’s, JC Penney, Marchalls... Eu havia conhecido
na faculdade. Mas uma frequentadora? Não. Essa foi mais uma coisa que vi com
outros olhos.
Peguei um dos cestos com rodinhas que eles ofereciam e comecei a andar
pela loja enquanto analisava os artigos. O que eu compraria? Eu tinha tudo... E
ainda sentia que não tinha nada. Ou, ao menos, nada que me agradasse. Knox
andou atrás de mim como se fosse um segurança em silêncio, até que parei em
frente a um vestido preto. Ele era justo, ficaria colado no corpo, e suas mangas
eram abaixo dos ombros. Nada de especial, mas realmente tinha gostado daquele
vestido simples.
— Tem um vestido para usar hoje à noite?
— Eu tenho aquele que mostrei mais cedo. Não coloquei nada muito
elaborado na mala. Faremos algo especial? — tirei os olhos do vestido e
coloquei minha atenção naquele belo homem. Levantando a sobrancelha como
se a pergunta fosse óbvia demais para ser respondida, Ryan se manteve calado.
— Acha que devo levar?
— Acho que você deve fazer o que quiser — informou de forma
irreverente.
Não diga isso, Knox. Se eu fizer o que eu quiser, nunca mais sairei daqui.
Ficarei com você.
Meu pensamento me assustou. Minha vontade de deixar tudo o que me
aguardava em Los Angeles aumentava a cada segundo.
Peguei o vestido, e continuamos passeando pela loja, quando uma
pergunta surgiu na cabeça.
— Knox? — chamei e me aproximei de onde ele estava, perto de uma
ilha de mostruário de relógios. Ele tinha um dos relógios em sua mão, era
praticamente todo negro, mesmo os ponteiros eram pretos, e pequenos pontinhos
sinalizavam os números. — É bonito — apontei para a peça.
— Sim, é — ele devolveu o relógio e se virou para mim. — Você queria
me dizer algo?
— Uma pergunta, na verdade — iniciei. — Quando assinamos o livro de
registro de casamento... Viu qual era o meu nome?
— Devo ter visto, Linda, mas não pergunte se me lembro. Porque eu
não... — sua face se transformou, passou de uma expressão relaxada para
intrigada. — Por quê?
— É Hatman — respondi com a certeza de que ele reconheceria.
— Sim? — instigou. — O que tem?
— Então, Senhor Knoxville, gostou do relógio? — a vendedora
simpática interrompeu a nossa conversa, e Knox deu atenção para ela.
— Sim, é lindo. Mas não levarei. Obrigado — seu telefone acabou
tocando, e ele sorriu antes de atender. — Me dê uma boa notícia, Elton — pediu,
se afastando de mim e da vendedora. Olhei para o relógio que ele estava
verificando.
— Separe-o para presente — solicitei sem perguntar o valor.
— Sim, senhora — a vendedora prontamente pegou a peça e começou a
trabalhar para fazer a sua venda.

Capítulo 6
Irônico

— Eu não vou entrar sozinha aí! — disse pela terceira vez.
— Bem, eu não estou pessoalmente animado para ver o elenco menos
bonito de Magic Mike.
— Magic Mike?
— Deus, o que você faz da vida? — perguntou assim que me mostrei
confusa sobre o tal Magic Mike. Passada a nossa quase conversa, decidi que
seria melhor não dizer quem eu era uma vez que ele não percebeu a dimensão
daquele sobrenome.
— Não vou entrar num clube de mulheres sozinha, Knox — voltei ao
assunto rapidamente.
— Eu não posso entrar em um clube de mulheres com você, Linda. Não
sei você lembra sobre ontem à noite, mas eu sou um menino.
— Então vamos cancelar.
— Não! Você vai, e eu vou organizar os itens que faltam da lista.
— Knox... — choraminguei.
— Sem Knox, vá se divertir e peça uma dança na cadeira — ele piscou,
enfiou alguns dólares em meu bolso, tirou as sacolas de compras das minhas
mãos e me deixou onde eu estava.
Entrei no ambiente escuro e sofisticado me sentindo completamente
patética. Não estava vestida para um clube de mulheres, nem estava preparada
psicologicamente também. O mais próximo que estivesse de saber como
funcionava um lugar desses foi quando acompanhei o noticiário sobre Orange
Kiss, um clube de elite para mulheres em San Diego que estava envolvido em
um esquema mafioso de lavagem de dinheiro. Tirando isso? Nada.
Não havia nenhum show, e comecei a pensar que talvez, naquele horário,
não tivesse mesmo shows. Fui até o bar e levantei a mão, pedindo para o barman
se aproximar.
— Um gin tônica, mais gin do que tônica — solicitei, e o homem
imediatamente começou a preparar. De repente, franzi o cenho e olhei em volta
novamente. — Mas que... — o bar estava vazio, exceto, o garçom e eu. — Não
tem show hoje?
— Os shows iniciam após as nove horas, senhora Knoxville — levantei a
sobrancelha para o garçom.
— Knox está metido nisso — afirmei. Claro que estava, o garçom tinha
feito questão de me chamar pelo nome de casada. — Mais um de seus favores.
— Pode apostar que sim. Ele pediu para a senhora ir até o palco e
aguardar. Meu nome é Elton.
Elton? O cara do telefone?
— Prazer, Elton, sou Linda, mas isso você já sabia.
— Pode apostar que sim — ele entregou o gin e apontou para que eu
fosse para o palco.
Assim que me sentei, uma música, que era impossível não reconhecer,
mesmo para mim, uma alienada no quesito viver a vida, começou a tocar.
Era MMMBop, do Hanson.
— Puta que pariu! — exclamei assim que vi Knox com uma peruca loira
e longa fingindo tocar teclado quando as cortinas se abriram.
QUE. MERDA. ERA. AQUELA?
Ele fez todos os tipos de danças ridículas já inventadas pelo homem
enquanto eu tentava não fazer xixi de tanto rir. Arrancando a peruca da cabeça e
jogando em mim, Ryan virou de costas e rebolou, me fazendo quase relinchar
como um cavalo louco. As lágrimas praticamente me cegavam.
Quando ele se aproximou de mim, esticou a mão para que eu pegasse.
Ainda rindo, fiz o que ele pediu e subi no palco. Ele me fez dançar na forma
mais ridícula possível junto com ele. E o pior, pulamos amarelinha imaginária.
Deus! Eu nunca ri tanto na vida!
Tirei as notas de dólar do meu bolso e comecei a enfiar no cós da sua
calça, enquanto ele fazia uns movimentos exagerados.
— Veja, esse é o passo de dança lombriga epilética — gargalhei, ouvindo
o que ele dizia. Em seguida, pegou minhas mãos e esfregou em seu peito e
barriga enquanto continuava com o movimento.
A música acabou, mas minha risada continuava ecoando pelo clube.

**

LISTA DE MERDAS PARA FAZER EM LAS VEGAS!
1. Ir para Las Vegas;
2. Gastar uma pequena fortuna em um cassino;
3. Experimentar drinques exóticos enquanto reclama da vida para o
Barman;
4. Ver um show do go-go boy;
5. Dançar em frente ao Bellagio;
6. Andar em uma limousine com a cabeça para fora do teto solar
enquanto canto a música tema de Titanic;
7. Fazer uma tatuagem;
8. Assistir a um show cover da Tina Turner;
9. Casar com um estranho na capela do Elvis;
10. Transar com o marido estranho.

Sentados na cabine, de frente para o palco, compartilhando o meu gin,
Knox e eu continuávamos sorrindo feito duas crianças.
— Você é a pessoa mais maluca que já conheci.
— Obrigado — agradeceu com uma pequena reverência. — Acredite,
maluco é bom.
— Não, sou eu quem deve agradecer, Knox — sussurrei. Peguei sua mão
e mantive minha atenção na minha mão sobre a dele. — Você queria que fosse
inesquecível. Já é, Knox, já é — dito aquilo, me levantei e fui em direção ao bar.
Pedi mais um gin para mim e solicitei que Elton levasse o que Knox quisesse
beber.
Perguntei onde ficava o banheiro e, assim que me apontaram a direção
correta, caminhei diretamente para ele. Entrei e fechei a porta, me encostando
nela e fechando os olhos. Eu já não tinha mais certeza de que sairia ilesa daquele
dia. Começava a pensar que ter ido para Vegas fora uma imprudência, mas topar
passar o dia com Ryan foi a maior das loucuras. Senti uma leve pontada na
cabeça e fui até a pia molhar o rosto.
Devia ter trazido os analgésicos que Oswald receitou.
Talvez eu deva dispensar o gin.
Pensei sobre o assunto. Meu rosto corado, os olhos brilhantes e um
pequeno vislumbre em minha tatuagem foram suficientes para me fazer pensar
que eu estava linda. Normal.
Eu parecia uma garota normal. Uma jovem mulher vivendo a vida,
aproveitando um feriado com o namorado.
Interessante.
Knox e eu mal nos conhecíamos, e já éramos casados. Por um momento,
me permiti pensar em como seria namorar com ele. Sempre seria divertido? Ele
se esforçaria para me surpreender da mesma forma?
Eu teria ciúmes dele, ou ele teria de mim?
Sozinha, naquele banheiro, me permiti sonhar e querer aquilo, mesmo
que não fosse possível. Éramos de mundos completamente diferentes, e quando
ele soubesse a verdade, provavelmente nunca mais olharia para mim. Era melhor
que terminasse daquela forma, assim ele teria uma bela lembrança minha para
sempre, assim como eu teria dele.

**

Saímos do clube, nos despedimos de Elton e seguimos pela Strip.
Procurei admirar a estrutura do local como uma turista, deixando de lado a
empresária do setor hoteleiro. Foi interessante me focar nas cores, na beleza e
arquitetura dos prédios que replicavam as principais maravilhas do mundo, e não
ficar analisando como eram seus amenities — o que os leigos conheciam por
xampuzinhos ao lado da pia do banheiro —, ou qual era o ticket médio de um
hotel daqueles. Eu apenas apreciei.
— Como é a sua família, Linda? — Ryan perguntou enquanto
passeávamos, e meu corpo todo ficou tenso. Provavelmente ele percebeu, me
analisou enquanto eu tentava procurar as palavras.
— Meus pais eram divorciados e meu pai morreu. Mamãe é casada com
um médico, e não tenho irmãos — dei de ombros.
Fui superficial, eu sabia, mas ele pareceu entender que eu não queria
falar mais, então passou a falar de si:
— Meus pais ainda estão vivos. Moram em Sacramento, não tenho
irmão, embora Noel, já conversamos sobre ele, o filho de Yvone... — explicou,
relembrando a conversa durante o café da manhã. — Ele foi como um irmão. Os
rapazes do Antonio, Elton e Philip, você não o conheceu, mas irá em breve, são
como família para mim.
— Sente falta dos seus pais? — murmurei a pergunta. Ele provavelmente
devolveria o questionamento para mim, mas minha curiosidade tinha falado mais
alto. Queria saber mais dos sentimentos daquele homem peculiar.
— Eu sinto, falo com eles toda a semana — respondeu com uma pitada
de nostalgia.
— Imagino... — murmurei. Consegui sentir aquelas palavras e acabei por
sentir falta dos meus pais também. Inclusive das coisas que nunca tivemos a
oportunidade de fazer e compartilhar como uma família. Bem, ao menos nos
moldes que eu considerava serem de uma família. — Estou ficando com fome...
— comentei e procurei mudar o tom da conversa.
— Quero levar você para jantar em um lugar especial, não queria que
comesse agora.
— Outra refeição especial? — indaguei, curiosa. — Você está me
mimando, marido.
— Você merece — informou, dando uma piscada, mas novamente um
clima se instalou entre nós. Seu belo rosto sorriu por inteiro, inclusive os olhos,
com as pequenas rugas que eu tanto gostava. — Espere aqui — ele me devolveu
as sacolas, atravessou a rua correndo e entrou em uma pequena loja de doces do
outro lado.
Quando retornou, me entregou uma garrafa d’água e um pacote de
biscoitos. Quando os abri, olhei para o formato de unicórnios graciosos e dei de
ombros antes de morder o primeiro. Fechei meus olhos e gemi. Eram deliciosos.
— Bom, não é? — ele incentivou.
— Muito. Tão... — ofereci o pacote para ele poder pegar um também.
— Sublime — completou. — É de uma empresa brasileira — informou.
— Sério? Legal! Não conheço o Brasil — contei em meio às minhas
mastigadas.
— Eu também não, mas conheço muitos brasileiros. São pessoas legais.
Eu me perguntei se para Ryan todo mundo era legal e amigo. Ele parecia
ser leal e simpático em um nível que nunca havia conhecido em minha vida,
mesmo que eu não tenha conhecido muita gente para servir de comparação.
— Olha, os músicos estão começando a montar a estrutura — meu
marido apontou. Uma moça já estava com tudo montado em frente ao Circus
Circus, um grande Cassino na Strip. Ela afinava o violão e cantarolava enquanto
dedilhava o instrumento. A caixa do seu violão estava aberta, aguardando por
trocados, e uma placa estava colada na base levantada do case de transporte. A
placa dizia:
Canto qualquer coisa.
P.S.: Menos Elvis
P.P.S.: Peça Alanis Morissette
— Alguém não gosta de Elvis e ama Alanis — ri enquanto lia. Knox
tirou uma nota de dólar do bolso e jogou no case da cantora.
— Toque Ironic, por favor — solicitou para a garota, que sorriu e
imediatamente começou a tocar a música de Alanis.
Procurei não me deixar abalar pela letra da música, que falava sobre
basicamente tudo o que a vida nos traz nos momentos errados, ou quando não
temos as armas certas para lutar. Sobre chover no dia do seu casamento, ganhar
na loteria aos noventa e oito anos.
A forma como tudo dá errado quando você pensa que está dando certo,
ou quando está tudo dando errado, e a vida trata de te dar uma ajuda para
consertar sem que você espere.
Era impossível não perceber a ironia da música. O nó na garganta se
formou novamente. Maior do que quando estávamos almoçando atrás da cozinha
do Antonio.
Knox apareceu no momento errado.
Por que eu não podia conhecê-lo em outro momento da vida? Talvez na
faculdade, quando eu ainda tinha como voltar atrás e não enterrar a minha
cabeça no trabalho.
Knox olhou para mim com empolgação, e eu procurei colocar minha
melhor máscara e sorri para que ele soubesse que eu estava apreciando o show.
Ele cantava baixinho junto com a cantora que se esforçava para fazer sua voz
parecer a da cantora original. Precisei chamar a razão para não dar meu coração
a ele.
O que estava acontecendo comigo, porra?


Capítulo 7
O poder do Titanic

— Vamos jogar um jogo — Ryan sugeriu enquanto sentávamos em um
banco próximo ao local em que a cantora que amava Alanis Morissette estava.
— Que jogo? — perguntei em meio a um gemido. Estávamos andando o
dia inteiro praticamente, meus pés, mesmo acostumados com salto doze
centímetros, estavam latejando de dor, isso sem falar na dor de cabeça que
começava a querer aparecer. Pequenas fisgadas que eu odiava. Geralmente era o
anúncio de uma dor descomunal logo em seguida Eu precisava de um remédio.
— Diga para mim três coisas que você odeia — ele ordenou.
Odeio sentir dor! Especialmente quando eu não quero senti-la.
Com a tatuagem, por exemplo, foi uma dor que eu procurei, tinha a
obrigação de sentir e aguentar. Contudo, há dores que eu nunca quis sentir. Dores
que me assustavam.
Mas escondi aquele fato para não interrompermos nossa aventura.
— Hum... — tentei pensar em algo. Tinha coisas que eu odiava,
especialmente o que eu havia descoberto no dia anterior, mas isso eu não diria a
ele. — Odeio acordar cedo. É algo que acontece sem que eu queira, mesmo no
final de semana eu acordo cedo. Eu quero me forçar a voltar a dormir, mas não
consigo. Meu cérebro começa a trabalhar assim que meus olhos se abrem e já
era.
— Isso explica o porquê de você saltar da cama cedo hoje... — seu tom
de voz era carregado de malícia.
— Pulei da cama porque seu ronco me assustou — provoquei.
— Eu não ronco! — disse, solenemente. — Tudo bem, mais duas coisas
que você odeia.
— Eu odeio perder — continuei. — Nada, nunca. Sou péssima
perdedora.
Isso estava mudando. Eu perderia em breve, muito. Especialmente o que
eu havia construído com aquele homem que já nem era mais estranho para mim.
— E o que mais? — instigou.
— Eu não gosto de beber água — dei de ombros, tentando deixar minhas
respostas superficiais. — E você?
— Eu não gosto de fazer drinques com frutas. As frutas sempre fazem
meus dedos arderem, especialmente quando me corto — iniciou.
— Mas você gosta de ser um barman — interrompi, recebendo um olhar
de reprovação.
— Isso é para as três coisas que mais gostamos, espere a vez, mulher —
ralhou, me fazendo levantar as mãos em rendição. — Eu não gosto de cigarros,
aliás, odeio e... Não tenho problemas em perder — seus olhos eram como duas
adagas perfurando os meus. Como se ele quisesse que eu absorvesse cada sílaba
das suas próximas palavras. — Mas eu realmente odeio desistir, Linda. Eu odeio.
O que eu deveria responder?
O que ele queria que eu respondesse?
Aquilo era para mim? Sobre desistir?
Tudo bem, talvez eu estivesse desistindo, mas ele não tinha ideia do que
estava acontecendo. Ele mal sabia quem eu era. Por que se importava tanto?
Optei por ignorar aquela indireta e partir para a próxima questão.
— Tudo bem, coisas que você gosta — joguei rapidamente.
— Você primeiro — Knox empurrou a questão para mim.
— Eu fui primeiro antes, agora você — devolvi.
— Tudo bem... — ele se rendeu, se ajeitou no banco e logo voltou a falar.
— Gosto de tomar café da manhã na Yvone, me faz lembrar dos meus pais —
iniciou. — Gosto de ser um barman e gosto de você.
— Não faça isso, Knox... — quase implorei. Minha voz traiu meus
sentimentos ao tremer quando solicitei a ele que parasse.
— Sua vez — respondeu como se eu não tivesse falado a minha última
sentença.
— Eu gosto...
Do que eu gostava?
Parecia que tudo o que eu costumava gostar havia mudado em pouco
mais de vinte e quatro horas. Era ridículo eu dizer que gostava de cálculo, ou de
macchiato no café da manhã ou de pintar minhas unhas de vermelho.
— Eu não sei do que eu gosto... — declarei magoada, e pela primeira vez
vi tristeza nos olhos sempre sorridentes de Knox.

**

Quando a noite começou a cair, Ryan voltou a falar ao telefone. Depois
da brincadeira ter ficado tensa, resolvemos voltar a andar. Enquanto
continuávamos passeando pela Strip, o dia lentamente ia dando espaço à noite. O
dia dos namorados estava chegando ao fim, e a minha lista também. Três itens
ainda precisavam ser riscados.
E Knox estava pronto para riscar o próximo item. Mesmo com a
movimentação e a poluição sonora que começava a se instalar na rua mais
movimentada de Las Vegas, foi impossível não ver o grande carro laranja se
aproximando ao som da música tema de Titanic, My Heart Will Go On, de
Celine Dion.
— Knox! — exclamei, horrorizada. — Isso não é uma limousine, é um
parque de diversões ambulante — eu estava chocada, o carro parecia não ter fim,
era quase do comprimento de um ônibus.
— Vamos, baby, vamos riscar o item número seis da lista — ele pegou a
minha mão e me arrastou para aquela imensa abóbora.
A música estava a todo volume dentro do carro.
— Você sabe... — ele iniciou enquanto nos acomodávamos. — Foi
proibido esse passeio que você quer dar, com o corpo para fora do teto solar.
— Foi?
— Sim, é perigoso e muito barulhento — ele revirou os olhos quando
disse aquelas palavras. — Então o governador entrou com esse decreto.
— O governador adora fazer decretos inconvenientes, não? — acusei,
frustrada e praticamente gritando por cima da música.
Knox pareceu não gostar do que eu disse, mas não respondeu. No lugar,
ele continuou a falar:
— Mas o Xander ali — apontou para o motorista que dava a partida no
carro imenso — vai para a rua lateral, para que você possa realizar o item
número seis. Foi o máximo que consegui.
Ele estava se desculpando? Oh, Knox!
O homem tinha sido maravilhoso comigo o dia inteiro.
— Está perfeito, é perfeito! — assegurei.
— E nós temos apenas quinze minutos. É apenas um favor então... —
deu de ombros um pouco envergonhado.
— É o suficiente.
Assim que fomos liberados para subir no teto solar, me senti
envergonhada. Por que diabos eu escolhi cantar a música tema de Titanic no teto
solar de uma limousine? Peguei um cachecol de plumas verde limão que estava
disponível dentro da limousine e enrosquei em meu pescoço, decidida a não me
deixar abalar pela minha própria loucura e aproveitar aquela gafe homérica. Mas
não sem Knox.
— Você vem comigo! — ordenei, o puxando para cima.
Ele se posicionou atrás de mim, e juntos começamos a cantar a música
com Celine Dion.
Knox pegou minhas mãos e fez com que eu abrisse os braços.
— Você está voando — brincou, fazendo referência a cena icônica de
Rose e Jack na proa do navio.
— Eu estou voando — repeti, sabendo que ele não entenderia a
profundidade do que estávamos dizendo naquele momento, ele realmente estava
me fazendo voar.
Movi meus dedos, os abrindo um pouco, e os entrelacei entre os de
Knox. Sua mão era enorme em volta da minha e me fazia sentir segura. Meu
coração parecia querer pular para fora do peito enquanto o vento batia em meu
rosto e cabelos e minhas costas ficavam cada vez mais coladas no peito dele. A
música foi esquecida, e Celine Dion gritando foi ignorada por mim e por Ryan.
Eu sabia, sentia em seu corpo que, assim como eu, ele já não se importava, com
a música, onde estávamos, ou quem nos via. Apenas queríamos um ao outro.
Virando o meu rosto em sua direção, olhei em seus olhos, de perto.
— Ryan — chamei seu nome, tentando obter sua atenção — eu menti —
disse um pouco mais alto. Meus olhos fugiram para os seus lábios, e ele
percebeu, já que sua boca se contraiu em um pequeno sorriso. Seu cenho parecia
franzido quando voltei meu foco aos seus olhos, como se estivesse confuso com
o que eu havia dito.
Sem qualquer cuidado com o que poderia vir depois, sem pensar nas
consequências e, principalmente, sem levar os problemas que me aguardavam ao
chegar em casa, simplesmente soltei:
— Eu menti quando disse que não sabia do que gostava — nós
permanecemos com nossos braços abertos, e eu descansei a cabeça em seu peito
e continuei olhando para ele. — Eu gosto do café da manhã na Yvone, gosto dos
Hanson, gosto de tatuagens e Alanis Morissette... E, definitivamente, gosto do
dia dos namorados.
Pronto! Tudo o que precisava ser falado foi gritado contra o vento e por
cima da música.
Foi como se meu peito estivesse cheio de algo pesado e eu tivesse jogado
tudo para fora. Ficou tão leve, que doeu. Meu coração estava tão disparado, que
meu peito doía. Ryan me fitou fixamente antes de finalmente agir. Seus braços
fecharam, ainda grudados aos meus, e me abraçaram com firmeza.
— Posso te beijar? Por favor? — eu quase não pude ouvir o que ele disse
com a música brega tocando tão alto. Assenti, maravilhada que ele ainda
estivesse preocupado com o que eu queria e que se desse ao trabalho de me
perguntar até onde poderia ir comigo.
Seus lábios caíram sobre os meus de forma firme e apaixonada. Seus
lábios eram macios, como na noite anterior, e também exigentes, exatamente
como no momento em que estávamos rolando na cama. Sua língua logo pediu
passagem, e suas mãos apertaram as minhas, que ainda estavam descansadas em
torno da minha barriga.
Seu corpo se colou ainda mais ao meu, era todo firme, duro e quente.
Deus, eu podia sentir o calor daquele corpo através das roupas. Lembrei de como
eu adorei sentir a sua pele na minha na noite anterior, em como o corpo de Knox
se esfregando, invadindo o meu, me deixou em êxtase, completamente entregue
a ele.
O vento batia com força e fazia meus cabelos chicotearem nossos rostos,
mas nenhum de nós se importou, estávamos mais preocupados em fundir nossos
corpos ali mesmo.
Como podia? Como em um dia aquele homem conseguiu estar sob a
minha pele em apenas um dia?
Deus! Como eu sairia daquilo?
De onde eu tiraria forças para sair daquilo? Onde encontraria forças para
virar as costas para aquele belo homem de sorriso fácil, brilho nos olhos e pura
gentileza em seus atos?
Suas mãos subiram e emolduraram o meu rosto, o empurrando ainda
mais contra o seu. Sua língua se aprofundou, degustando a minha e
aprofundando mais o beijo. Quando nos separamos, estávamos sem ar, não
escutávamos nossas respirações sobre a música, mas nossos peitos subiam e
desciam quase teatralmente. Nossos lábios, entreabertos e nossos olhares
estavam famintos um para o outro.
Knox saiu do aperto da abertura do teto solar e desceu para dentro da
limousine. Em seguida, suas mãos foram para a minha cintura e me puxaram
para baixo também, me colocando em seu colo e voltando a me beijar. Nossas
bocas eram tão boas juntas, que eu questionava todos os outros beijos que eu
havia dado em minha vida. As mãos de Knox passearam pela lateral do meu
corpo até que chegaram em minhas coxas, e ali apertaram a carne por cima do
jeans. Mordi seu lábio inferior com delicadeza e o chupei uma última vez antes
de voltar a beijá-lo profundamente. Minhas mãos se divertiam com os seus
cabelos rebeldes, e meu corpo todo se divertia com as sensações que sua boca na
minha provocava.
Mas então a limousine parou.
Nosso tempo esgotou.
E a magia se desfez.

Capítulo 8
A magia acabou

Assim que entramos na minha suíte de hotel, Knox foi diretamente para a
sua mochila. De lá tirou uma muda de roupa da mochila e apontou em direção ao
banheiro, pedindo permissão para tomar um banho. Eu assenti rapidamente,
pronta para tentar melhorar o clima entre nós depois do que aconteceu na
limousine. Quando a porta fechou, eu fui até minha bolsinha e peguei um
analgésico para a dor que começava a crescer em minha cabeça.
Assim que o motorista parou o carro e desligou a música, nos separamos
e tudo havia acabado. Descemos da limousine rapidamente, e Knox agradeceu e
se despediu do seu amigo. Quando voltou para perto de mim, parecia cauteloso.
Eu me fiz de desentendida e puxei um assunto qualquer para tentar quebrar o
gelo.
Ele parecia magoado, mas novamente respeitou a minha vontade. Nós
voltamos para o hotel cassino em que eu estava hospedada e fomos direto para a
minha suíte. Faltavam ainda dois itens para terminar a lista, e eu simplesmente
não sabia como terminar a noite sem ser nos braços de Ryan Knoxville.
Qualquer outra pessoa pensaria: está na chuva? Então, se molha!
O problema era que pegar aquela chuva me deixaria muito molhada e
provavelmente esturricada com um raio caindo bem no meio do meu rabo
egoísta.
Como aguentaria me machucar ainda mais?

**

Ryan saiu do banheiro já vestido e falando no telefone. Vestia uma
camisa branca simples, um jeans escuro, e o cabelo ainda estava molhado. Deus,
como ele era lindo. Seu cheiro másculo e limpo flutuou até mim fazendo coisas
completamente estúpidas com o meu corpo.
— Porra, que droga! — exclamou, chateado. — Não, tudo bem, cara. Sei
que fez o seu melhor. Fique tranquilo — resmungou antes de finalizar a ligação.
Assim que ele abaixou o telefone, se virou para mim.
— Algo errado? — logo questionei, enquanto colocava uma mecha do
cabelo atrás da orelha e aguardava por sua resposta antes de ir para o banheiro.
— O show cover da Tina Turner... Eu estava tentando um show de
verdade... — colocou a mão atrás da cabeça e coçou a nuca como se estivesse
envergonhado. — Mas meu amigo, um que trabalha na produção da casa de
show, não conseguiu... Só pagando mesmo, e bem... — ele parecia mortificado.
— Eu sou duro, Linda. Um duro.
— Você fala como se fosse um problema, Knox. Está tudo bem — e
realmente estava, o cara tinha se esforçado o dia inteiro para realmente fazer o
meu dia ficar melhor.
— Linda, eu não sou um idiota — respondeu, frustrado, abrindo os
braços. — Olha esse quarto, você certamente é uma garota com dinheiro — meu
corpo todo reagiu às suas palavras. — Não precisa ser muito esperto para
perceber isso. Como se leva uma garota rica para se divertir?
— Knox...
— Eu não dou a mínima se você é herdeira de um poço de petróleo, eu
apenas queria que você se divertisse, mas aí não há shows cover da Tina Turner,
só existe um concerto com a verdadeira Tina, e eu pensei: não custa nada...
— Knox...
— Mas é claro que algo teria que dar errado e...
— Knox! — chamei mais alto para que ele parasse. Sua voz morreu, e
ele olhou para mim esperando que eu finalmente falasse, mas eu apenas levantei
um dedo pedindo que ele esperasse um segundo e peguei o telefone na cabeceira
da cama. Disquei 9, como instruído, e logo a recepção atendeu. — Aqui é Linda
Hatman, por favor, consiga dois convites para o concerto da Tina Turner na casa
de shows... — olhei para Knox esperando que ele dissesse o nome para mim.
Piscando rapidamente, ele se embaralhou por uns segundos, mas finalmente
murmurou:
— Divas.
— Divas — respondi para o recepcionista.
— Sim, senhorita. Posso incluir na sua conta?
— Absolutamente — respondi e desliguei em seguida. Olhei para Knox e
sorri dando de ombros.
— Você é tipo a Paris Hilton? — ele perguntou, ainda um tanto
impressionado.
Não, eu trabalho. Sou mais uma Ivanka Trump, querido.
Pensei, mas nada disse. Deveria estar assustada, já que ele revelara ter
percebido que eu tinha dinheiro. E eu poderia estar muito errada sobre o meu
julgamento, mas não acreditava que Knox faria alguma coisa contra mim. Muito
menos se negar a cancelar o casamento.
Peguei o vestido que havia comprado naquela tarde e comecei a juntar
minhas coisas para o banheiro, mas Knox me parou.
— Eu vou descer e pegar uma bebida... — ele parecia completamente
perdido enquanto olhava em volta. — Respirar um pouco de ar fresco...
Lá estava, ele ficou intimidado. Era sempre assim! Merda!
— Knox! — chamei assim que ele abriu a porta. Ele olhou para trás e
sorriu como se soubesse pelo meu tom que eu estava preocupada.
— Estarei lá embaixo, baby — uma piscadinha rápida, e a porta foi
fechada.
Jesus amado! Me ajuda. Estou seriamente em apuros.
Eu me deixei cair de cara na cama e dei um grito abafado contra os
lençóis.
Fui para o banheiro e me despi para um longo e quente banho. Tentei não
imaginar como seria o dia seguinte, o dia em que cancelaríamos o casamento.
Para ser honesta, me machucava pensar em como tudo aconteceria.
Sequei meus cabelos com o potente secador do hotel e tentei modelá-lo
com os itens que tinha em minha bolsa. Eu não fiz um trabalho muito bom
quando fiz minha mala estando bêbada, então os cabelos não ficaram
satisfatórios, me fazendo prendê-los na nuca e mais soltos na frente. Por sorte, a
bolsa de maquiagem nunca se separava de mim, então ao menos na maquiagem
eu poderia caprichar. Optei por um batom vermelho e olhos bem marcados.
Meus olhos... brilhavam como nunca antes.
Eu estava completamente fodida.
O vestido de ombros caídos mostrava a tatuagem e me fez sorrir, o local
estava levemente vermelho, mas os pequenos dados eram realmente delicados e
bonitos. Eu me lembraria de Ryan para sempre.
Mas então, mesmo sem uma tatuagem, acho que nunca esqueceria dele.
Nunca!

**

Ao sair do elevador, carregava apenas minha carteira e a caixa com o
relógio que havia comprado para Knox. Fui até a recepção para pegar meus
convites para o show da Tina Turner e sorri ao tê-los em mãos. Conhecia as
músicas e gostava da cantora, mas quando fiz a lista não estava pensando muito
em qualquer um dos itens, eu apenas coloquei nela o que eu, bêbada, achava que
seria divertido. Mas Knox fez de cada número algo especial. Por isso não tinha
dúvidas de que o show seria igualmente inesquecível.
Quando me aproximei do bar, logo o identifiquei. Ele estava de costas
para a entrada, mas eu conseguia saber que o belo e imponente homem sentado,
com a cabeça apoiada nas mãos, era ele. Toquei seu ombro e fiquei ao seu lado.
— Estou pronta — Knox prontamente levantou a cabeça e deu atenção
para mim. Seu rosto era impagável quando me viu.
— Nossa, Linda! Você está maravilhosa — revelou com admiração.
Seus olhos me analisavam com um misto de vários sentimentos. Ia de
ternura à luxúria em segundos, como se ele simplesmente quisesse me colocar
em seu ombro e me levar dali, mas também quisesse me abraçar e adorar. A
sensação de ser analisada daquela forma era sem igual. De repente, eu mal podia
respirar, meu corpo todo ficou quente e arrepiado, e eu só queria que ele voltasse
a me beijar como fizera antes. Que me colocasse em seus braços e fizesse o que
quisesse comigo.
Lentamente levantei a caixa do relógio e coloquei na frente dele.
— Feliz dia dos namorados, Knox — eu não sei motivo de dizer aquilo.
Ok, eu sabia. Eu disse porque quis, mas não entendia por que estava fazendo
aquilo conosco. Comigo. Desde aquela tarde, cada minuto que eu passava com
aquele homem era mais um prego que eu martelava em meu peito.
Knox olhou para a caixa preta, com a marca do relógio brilhando na parte
de cima.
— Você não devia ter feito isso, Linda — ele engoliu em seco sem tirar
os olhos do presente.
— Eu queria. Você gostou dele e fez tantas coisas maravilhosas comigo
hoje, Knox. Eu nunca podia agradecer o suficiente. Por favor, aceite — abri a
caixa e tirei a bela peça negra de dentro. — Me deixa colocar em você — pedi,
esticando as mãos em direção ao seu pulso direito. Sem dizer uma palavra, ele
aproximou seu braço, dando o aval que eu precisava para colocar o relógio em
seu pulso.
— Eu não lhe dei nada... — começou a dizer assim que terminei de
colocar o objeto nele, mas o interrompi.
— Você provavelmente nunca vai saber, Ryan Knoxville, mas você me
deu em vinte e quatro horas muito mais do que eu tive em uma vida inteira.
Sua mão foi colocada em meu rosto, e daquela vez eu simplesmente não
desviei o olhar, queria que ele tivesse certeza de que eu falava a verdade para
ele. Ao menos aquela verdade. Ele aproximou o rosto do meu e beijou minha
bochecha por mais tempo do que geralmente um beijo na bochecha costumava
levar. Eu suspirei, levemente desapontada por seus lábios tocarem o meu rosto, e
não os meus lábios. Mas talvez ele finalmente tivesse entendido. Nosso prazo
estava esgotando, e continuar nos afogando não seria bom para qualquer um de
nós.
— Vamos? Tina Turner nos aguarda — convidei, dando um passo para
trás e estendendo minha mão para que ele a pegasse.

Capítulo 9
Sempre em minha mente

— Deus, que vergonha! Eu não conhecia quase nenhuma música do
repertório da mulher — reclamei de mim enquanto andávamos em direção à
última tarefa restante da minha lista maluca. Dançar em frente ao Bellagio.
Antes disso, disse a Knox que o levaria para jantar em um dos restaurantes mais
famosos de Las Vegas, mas ele apenas declinou, dizendo que queria muito
terminar a última tarefa.
— Mas você pareceu gostar muito do show, mesmo não conhecendo a
música.
— Como não gostar, Knox? A mulher tem quantos anos? Setenta? Deus!
Ela tem mais vitalidade do que eu. E quando ela cantou a música do filme do
Mel Gibson... — estalei os dedos tentando puxar da memória o nome do filme.
— Mad Max! — Knox ajudou. — A música se chama We Don’t Need
Another Hero.
— Obrigada! Sim, essa música, foi uma loucura. E quando ela cantou
Simply The Best? — perguntei animadamente, o fazendo rir da minha atitude. Eu
sorria, me sentindo leve e animada.
Um arrepio de frio passou pelo meu corpo e me abracei, tentando conter
o frio. Devia ter levado um casaco, estávamos no deserto, porra! Era frio à noite.
— Eu não tenho um casaco, mas tenho meus braços, então vem aqui —
Knox me puxou para junto dele, e relaxei dentro do seu abraço. Nós
continuamos a caminhar vagarosamente pela rua, e quando percebemos,
estávamos em frente ao lindíssimo Bellagio. O show das águas tinha começado,
e a minha ideia não era a mais inovadora: inúmeros casais faziam o mesmo que
nós pretendíamos.
Dançavam em frente ao show aquático e colorido. Homens em seus
ternos embalavam suas esposas ainda em seus vestidos de noiva. Eles sorriam
apaixonadamente um para o outro, e por vezes até trocavam beijos delicados e
amorosos. Olhei para Knox sem saber o que veria. Ele tinha um grande sorriso
nos lábios enquanto analisava os casais fazendo seus rituais.
— Você sabe o nome da música que está tocando? — ele me perguntou,
sem tirar a sua atenção dos dançarinos apaixonados.
Claro que eu sabia. Mesmo eu, uma alienada social, conhecia aquela
música.
— Always On My Mind, Elvis Presley — disse, vidrada no rosto dele.
— É a música mais ouvida do Elvis, no mundo inteiro. Chega a ser
piegas, de tão ouvida. Mas, sabe...? — ele finalmente me olhou. — Acho que
não poderíamos dançar uma música mais bela. Realmente, Linda, você sempre
estará em minha mente. Foi tudo diferente desde ontem.
Ele me puxou e fomos até onde estavam os outros casais. Knox nos
embalou de um lado ao outro vagarosamente enquanto nos olhávamos no fundo
dos olhos um do outro.
— Eu não posso dizer que tenho experiência com muitos homens... —
iniciei sem desviar minha atenção dele. — Mas eu posso dizer que você também
sempre ficará em minha mente, Knox. E talvez... — minha voz embargou com
emoção. — Talvez você tenha estragado qualquer chance de eu querer outra
pessoa novamente como eu quero você.
Foi o que bastou para ele me beijar. Um beijo lento, lânguido,
apaixonado e que me preenchia de todas as formas. Eu podia sentir o calor do
seu corpo no meu, suas mãos firmes em minha pele.
— Knox? — chamei, entre nosso beijo, sem parar a nossa dança.
— Hum? — ele não parecia muito interessado em minhas palavras, assim
não deixou de movimentar seus lábios nos meus.
— Vamos para o hotel — pedi, me separando dele.
— Você... — percebi que ele parecia decepcionado com as minhas
palavras, havia entendido errado, com certeza, mas eu não o culparia.
— Eu quero uma última noite com você — esclareci, com firmeza. Ryan
não pareceu espantado com a minha declaração, mas certamente parecia em
dúvida também.
— Por que, Linda? — sussurrou enquanto me analisava.
— Eu... eu só quero — respondi, começando a sentir uma angústia.
Talvez ele tivesse desistido de mim depois que eu ignorara suas investidas
durante o dia. Talvez depois de eu finalmente ceder, a brincadeira tivesse perdido
a graça... — Vo...você não... ugh, me quer?
— Acredite em mim, baby, eu quero você, quero de uma forma que
talvez você nunca vá saber. Eu só não quero que se arrependa como nesta
manhã, quando você acordou.
Ele parecia tão triste, eu realmente tinha sido uma biscate mais cedo...
Deus! Tudo havia acontecido pela manhã e parecia que estava há dias
com Knox. Era como se nos conhecêssemos há muito mais tempo.
— Eu fui uma cadela, Knox — minhas mãos foram para o seu belo rosto
e acariciaram sua pele com delicadeza. — Me desculpe. Mas eu estou sóbria
agora, sei exatamente o que estou fazendo, e eu quero mais um momento com
você, Ryan — minhas palavras eram calmas, sussurradas e firmes. — Quero ter
um pedaço seu e deixar um meu com você.
Fechando seus olhos com força, bem apertados, Knox respirou fundo.
Acho que estava colocando os pensamentos no lugar. Aguardei, sem tirar meu
foco dele, e quando seus olhos se abriram, havia um brilho determinado ali.
Pegando minha mão com firmeza, ele me puxou e saiu andando, se afastando do
Bellagio e de todos aqueles casais apaixonados.

**

Nada foi dito ou feito durante todo o trajeto até o hotel. Knox continuava
calado, e eu estava com medo de apenas ser deixada lá e ele sumir até o dia
seguinte, quando tudo estaria acabado. No momento em que entramos no quarto
de hotel e fui colocar o cartão-chave para ativar as luzes, Knox deteve a minha
mão e pegou o cartão dela, o colocando na mesa e não permitindo que as luzes
se acendessem. Sem uma palavra, me virei para ele e esperei.
Suas mãos estavam um pouco errantes, uma novidade, vindo daquele
homem que tinha se mostrado tão seguro comigo. Ele acariciou meus ombros e
delicadamente passou o polegar em minha tatuagem. O contato ardeu um pouco,
mas não tive qualquer reação negativa, meu corpo todo estava preparado para o
prazer que ele estava prestes a me dar.
Seus dedos subiram pelo meu pescoço, causando arrepios, e foram até
onde meus cabelos estavam presos, os soltando em seguida. Quando suas mãos
voltaram, começaram a tirar o meu vestido, que deslizou pelo corpo até estar
amontoado ao meus pés. Ryan voltou a me acariciar, mas adicionou sua boca a
equação.
Começou pelo meu pescoço, beijando delicadamente, esfregando seus
lábios, indo e voltando na curva, enquanto suas mãos acariciavam meus braços e
começavam a adentrar a área dos meus seios. Quando suas palmas finalmente
cobriram meus peitos minha cabeça pendeu para trás, e um leve gemido fugiu
dos meus lábios.
— Knox... — murmurei, mas ele não respondeu. Seus lábios finalmente
estavam ocupando o lugar uma das mãos, tomando meu mamilo em sua boca, a
enchendo com o meu seio. Ela o chupava com firmeza e delicadeza ao mesmo
tempo, sem me machucar. A carícia erótica me fez buscar seus cabelos e apertá-
los entre meus dedos enquanto começava a sentir meus joelhos falharem.
Soltando meu peito, ele se ergueu e finalmente me deu sua boca,
beijando-me com força e paixão. Sua língua invadiu a minha boca rapidamente,
exigindo ser aceita pela minha boca. Minhas mãos começaram a desabotoar sua
camisa enquanto nosso beijo devorava pedaços das nossas almas. Quando a
camisa de Knox estava fora de seu corpo, minhas mãos foram avidamente para
seu jeans. Seus pés trabalharam, tirando os sapatos, e aproveitei a deixa para
fazer o mesmo com os meus. Eu não era uma mulher baixa, mas assim que desci
dos saltos, sorri entre nossos beijos, eu tinha ficado muito menor do que ele.
Abri o botão do seu jeans e brinquei com o cós de sua roupa intima,
tirando dele um grunhido quase selvagem com a minha brincadeira. Sem
vergonha, espalmei minha mão em sua ereção e apertei com cuidado, enchendo a
minha mão com o seu pau duro e quente, que esperava por mim. Não sabia que
era possível ter água na boca durante o sexo, mas tive, minha boca salivou para
ter o seu membro dentro dela. E foi o que fiz.
Parei de beijá-lo nos lábios e tracei um longo caminho de beijos,
lambidas e mordidas até o seu membro. Quando me ajoelhei no chão e abaixei
sua boxer, Knox se afastou e me puxou para ele.
— Não, deixe-me...
— Não é momento para isso. Deixe que eu adore você e seu corpo,
Linda.
— Mas e você?
— Eu sou feliz fazendo você feliz, baby — ele me ergueu em seus braços
e puxou uma perna para circular em sua cintura. A outra, eu circulei por conta
própria. Logo estava em seus braços.
Suas mãos vieram para a minha bunda e apertaram minhas nádegas com
um pouco de força. Em seguida, ele andou até a cama e me colocou deitada, para
logo voltar a explorar o meu corpo com delicadeza. O erotismo estava em seus
lábios, dedos e ponta da língua, que fazia meu corpo se contorcer e arrepiar.
Nossas mãos ficaram frenéticas um no outro, ao passo que nossas respirações
aumentavam e preenchiam a grande suíte de hotel.
Se eu pudesse escolher uma música para embalar nossa transa, escolheria
a mesma canção que dançamos em frente ao Bellagio, Always On My Mind, do
Elvis Presley. Quem sabe seguiria de Ironic, da Alanis Morissette...
Em vinte e quatro horas, Knox e eu tínhamos até trilha sonora. Deus!
Como seria a minha vida sem ele depois do cancelamento?
Não me permiti pensar sobre aquilo, apenas voltei minha mente para
aproveitar o que ele estava me proporcionando naquele momento.
Ele voltou a chupar meus seios e desceu beijando minha barriga
enquanto sua mão começou a brincar com o meu sexo molhado e completamente
necessitado dele. Sua mão colocou minha calcinha para o lado, e sem qualquer
cerimônia, dois de seus dedos me invadiram, arrancando um gemido alto de
mim. Seus lábios desceram mais e beijaram uma de minhas coxas, como se
fossem meus lábios. A medida que sua língua brincava com a carne trêmula da
minha perna, seus dedos entravam e saiam de dentro de mim.
Quando Knox parou, se ajoelhou na cama e tirou minha calcinha. Eu
não podia ver seu rosto, mal conseguia vê-lo na penumbra do quarto, mas podia
imaginar seus olhos queimando, ardendo no meu corpo, me fazendo sentir linda.
Ele saiu da cama, eu sabia que estava em busca de um preservativo. Ouvi o
barulho da embalagem da camisinha sendo rompido e não muito tempo depois
Ryan estava em cima de mim, despejando beijos aleatórios em meus seios,
pescoço e lábios.
Senti ele esfregar seu membro para cima e para baixo em minha entrada
e gemi abrindo mais as pernas. Queria tudo dele, queria que ele me invadisse por
completo, que nossos corpos se fundissem de maneira que eu pudesse sentir
aquilo novamente cada vez que ele invadisse meus pensamentos quando
estivesse longe. Queria que Knox me marcasse, para sempre, como uma
tatuagem.
Quando ele entrou em mim, meus lábios se contraíram em um sorriso
satisfeito, e minha cabeça tombou para trás. Foi quase como se eu não
conseguisse conter a satisfação de finalmente tê-lo comigo. Por inteiro,
completo.
— Porra!
Ouvi ele dizer, sua voz era apertada e rouca de prazer enquanto seus
quadris se movimentavam para frente e para trás. Enrosquei minhas pernas ao
seu redor e movimentei meus quadris para que o atrito necessário nos ajudasse a
chegar no clímax juntos. E quando ele veio, Knox e eu gritamos nossos nomes e
gememos tão alto quanto podíamos. Extravasamos toda a tensão que havia sido
construída desde o início do dia.
Não queria que ele parasse de se movimentar pelo único motivo de não
querer que aquilo tivesse fim. Ryan me beijou apaixonadamente mais uma vez
antes de sair de cima de mim e pular para fora da cama.
Escutei ele se movendo até a porta e depois ouvi o barulho conhecido, os
eletrônicos do quarto apitando e uma pequena luz se acendendo no abajur ao
lado da porta. Knox havia posto o cartão chave na porta e habilitado a luz. Ele
estava de costas para mim, seu belo corpo e bunda à mostra me fizeram querer
chamá-lo de volta para a cama, mas não precisei. Ele foi rapidamente até o
banheiro e em seguida voltou, sem o preservativo. Deitando-se ao meu lado, ele
me puxou para os seus braços e me fez suspirar. Acariciei seu peito enquanto ele
alisava meu braço e beijava o topo da minha cabeça.
Ficamos um longo tempo daquela forma, apenas aproveitando a
companhia um do outro, mas logo o feitiço foi quebrado.
— Eu estava pensando... — começou com cuidado. — Talvez
pudéssemos trocar nossos números de telefone e manter contato...
Imediatamente me senti tensa e me separei dele como se seu corpo
estivesse pegando fogo.
— Não, Knox — disse categoricamente. Peguei tudo o que podia do
lençol e me enrolei nele ficando em pé imediatamente.
— Ei, espere! Eu não pedi você em casamento... — ele riu da ironia
daquelas palavras. — Apenas pensei, já que somos tão bons juntos, poderíamos
sei lá...
— Não, Knox! — exclamei novamente e andei até o banheiro, me
fechando dentro dele.
Que merda!
Por que de todos os caras que querem sempre foder e ir embora, Ryan
Knoxville tinha que ser aquele que gostaria de ficar?
Knox não parecia satisfeito com a minha resposta também, as batidas na
porta soaram quase ao mesmo tempo em que a fechei.
— Linda! Vamos conversar! Por favor! — ele pediu.
— Não quero falar.
— Qual é o problema? Eu apenas gostaria de manter contato... — de
repente ele ficou em silêncio. — Como sou estúpido! Você é casada! —
exclamou, alto, do outro lado. — Por isso todo o desespero. Jesus! Como sou
burro.
Fiquei enfurecida com o que ele disse, então abri a porta do banheiro em
um rompante e fui para cima dele. O encarei com fúria e mágoa.
— Acha mesmo que eu seria capaz disso? — não podia acreditar que ele
tivesse dito aquilo.
— Bem, se não é isso é o quê? Porque, honestamente, Linda, você
parecia muito inclinada a continuar o que estávamos tendo há poucos minutos.
Durante todo o dia eu vi você lutar contra o que estava rolando entre a gente,
mas depois que nos beijamos na limousine, eu pensei que poderíamos ter uma
chance... Eu certamente gostaria que tivéssemos, mas então você age como se
tudo tivesse sido um erro. Só posso pensar que você já tem alguém e bem... Que
você o traiu.
— Eu não tenho ninguém — aquelas palavras não poderiam ser mais
verdadeiras e dolorosas. Eu não tinha ninguém. Não tinha. Estava sozinha.
— Bem, então o que é?
— Não, Knox! Deixa isso para lá! — pedi, fugindo do seu olhar. Tentei
contorná-lo e ir até minhas roupas para me vestir, mas ele segurou meus braços.
— Se tudo o que aconteceu conosco não foi suficiente para fazer você
me dar uma resposta plausível, então tenha ao menos um pouco de compaixão e
diga mesmo assim. Tenha alguma consideração comigo, por favor, porque é
loucura, mas eu estou...
— Não diga! — implorei, baixinho, cansada.
— O que há de errado, Linda? Por que não podemos explorar o que
temos? Sei que você mora em Los Angeles e que tem a sua vida lá, mas se
realmente quisermos, podemos trabalhar nisso — sua voz trazia um tom
dolorido, como se ele estivesse implorando por uma chance.
— Não... — continuei dizendo, tentando evitar que as lágrimas caíssem.
Quando eu voltasse, tudo estaria acabado. Eu precisaria enfrentar tudo, e Knox
não poderia estar perto.
— Por que não, porra? Por que você está negando o que está acontecendo
entre a gente? Não é possível que você não enxergue! — ele gritou. Arregalei os
olhos, assustada com ferocidade de suas palavras. No momento seguinte, perdi o
foco do seu rosto, graças às lágrimas gordas que se acumulavam e que eu tentava
evitar a todo custo que rolassem. Quando voltou a falar, a voz dele era mais
contida: — Você disse que não tem ninguém e não é como se você fosse morrer
amanhã, então... — no momento em que ele disse a palavra morrer, o soluço
dolorido saltou para fora da minha boca e minhas pernas cederam. — Ei, Linda!
Knox chamou, me pegando em seus braços, e caminhou para cama. Em
seguida, sentou e me manteve em seu colo enquanto eu chorava sem parar.
— Fale comigo! Linda, por favor! Fale comigo! — eu podia ouvir o
desespero em sua voz enquanto ele tentava saber o que estava acontecendo
comigo.
Eu apenas me segurei a ele e chorei. Chorei por tudo o que estava
acontecendo. Pelos anos de vida que perdi me dedicando aos negócios da
família; por não ter o apoio emocional e psicológico da minha mãe, por sequer
ter o interesse dela em me fazer prestar mais atenção à minha saúde. Eu não tive
ninguém para dizer: pare! Vá ao médico! Procure saber o que são estas dores de
cabeça.
Senti os lábios de Knox em minha cabeça e desejei que ele pudesse me
curar com seus beijos. Desejei que pudéssemos ter nos encontrado em outras
circunstâncias. Desejei não ser eu.

Capítulo 10
Sem Volta

Pareceu uma eternidade até que eu pudesse me controlar e falar. Knox
ainda me mantinha em seus braços, protegida. Alguns longos suspiros depois,
consegui começar a falar.
— Meu pai morreu, vítima de um aneurisma. Ele se rompeu, e quando
meu pai chegou ao hospital, já era tarde demais — iniciei. — Nós sempre fomos
uma família focada em tudo, menos em ser uma família. Então, assim que ele
morreu, conselheiros, acionistas e advogados estavam em cima de mim —
aguardei Knox perguntar quem eu era, ou quanto dinheiro eu tinha, mas ele
continuou mudo. — Eu logo assumi os negócios da família, já trabalhava em
nossa empresa, e o passo seguinte era muito simples e certeiro. Se meu pai
faltasse, eu assumiria — engoli em seco.
“Eu apenas fiz o que estava nas cartas para mim. Abaixei a cabeça e
trabalhei. Mas então eu comecei a ter algumas vertigens e dores de cabeça. Nas
primeiras vezes, eu ignorei, mas então as dores começaram a ficar mais fortes
quando tinha alguma crise. Assim, resolvi chamar meu padrasto.”
“Ele é neurocirurgião, e pensei que poderia me ajudar. Ele disse que
provavelmente era estresse, mas que marcaria alguns exames para mim. Depois
me deu algumas pílulas, mas acho que caiu no esquecimento para ele. Fiquei
tranquila, se caíra no esquecimento, provavelmente não era importante. Ele era o
médico, de qualquer forma, e marido da minha mãe, pensei que podia confiar
nele. Só que eu tive uma vertigem muito forte e acabei caindo, apaguei...”
Respirei fundo e olhei para Knox. Eu estava deitada em seu ombro, então
apenas estiquei meu pescoço para ver a sua reação, mas ele não me passava
nada. Seus olhos estavam fora de foco. Talvez percebendo o que eu diria a
seguir.
— Os médicos solicitaram uma bateria de exames, mas eu não quis ficar
para o resultado. Assim que me senti melhor, exigi alta do hospital e voltei para
casa. Mas no dia seguinte... Ontem pela manhã, Oswald me chamou em seu
consultório para dizer que eu tinha um aneurisma sacular. Não lembro do
tamanho, mas lembro dele dizer que é grave — Ryan endureceu neste momento.
Eu estava me sentindo um pouco mais corajosa, então me desvencilhei dele e
fiquei em pé. — É necessário operar, ele pode estourar a qualquer momento,
segundo ele, está comprimindo a irrigação de sangue em certas regiões.
— Vo... você deveria estar aqui? Viajar assim? — ele finalmente falou,
sua voz mostrava que estava alarmado. Neguei com a cabeça. — Deus! Linda!
— Não faz diferença, Knox, eu poderia morrer em casa, dormindo —
expliquei.
— E poderia morrer dentro de um avião também... Mas resolveu morrer
em Las Vegas? — seu tom de voz correu rapidamente de tenso para furioso. —
O que diabos você estava pensando? — gritou, bravo.
— Em viver! — gritei de volta. — Eu nunca saltei de paraquedas, nunca
dirigi embriagada, nunca usei drogas, fumei ou bebi em excesso, e olha para
mim: uma bomba-relógio na merda da minha cabeça, Ryan!
— E você decidiu ficar revoltada e vir para Las Vegas?
— Sim!
— Você é louca! — acusou, se levantando. Apertei o lençol firmemente
contra o corpo. — Devia ter ficado, ido se tratar. Precisa operar isso.
— Eu posso morrer na mesa de operação, Knox — murmurei, tentando
engolir a próxima leva de soluços. — Se eu for, talvez não volte.
Ryan ficou quieto por um momento, branco, o sangue parecia todo ter
fugido do seu belo rosto.
— Eu bebi demais na manhã anterior, cheguei em minha suíte e comecei
a beber.
— Suíte? Você estava em um hotel?
— Moro em um hotel, Knox. Sou dona da rede Hatman de hotéis — os
olhos dele ficaram enormes com a revelação. — Sim, bem, acho que não
entendo nada sobre ter um lar, afinal de contas. E não entendia nada sobre viver,
me aventurar. Knox, eu tenho trinta anos e não sabia o que era diversão. É
surreal. Mas a verdade é que fui treinada desde que tive idade suficiente para
assumir os negócios da família. Fui convencida que teria tempo no futuro para
aproveitar o que eu estava deixando para trás. Bem, desculpe se eu pirei um
pouco e fiz a primeira coisa que passou pela a minha cabeça — novamente as
lágrimas começaram a escapar. Funguei e limpei o nariz com o pedaço de lençol
que tinha firmemente segurado em meu punho.
Naquele dia, Ryan tinha me olhado com simpatia, animação, curiosidade,
desejo e mesmo paixão. Mas naquele momento ele estava me olhando com
piedade. E eu odiei aquilo.
— Não faça isso, Ryan. Não me olhe desse jeito — pedi, me afastando.
— Estou preocupado com você — justificou, como se fosse óbvio.
— Por quê?
— Que pergunta estúpida é essa, Linda? — disse com irritação na voz.
— Não é idiota, Ryan! Nos conhecemos há vinte e quatro horas. Nós
brincamos e fodemos por aí.
— Foi isso para você? Brincadeira e foda? Fazer imprudência para ver se
você morria sem ser esquecida? — suas palavras não poderiam ser mais
verdadeiras e dolorosas.
— Talvez! — retruquei, brava, ferida. Ver a decepção nos olhos dele me
doía mais do que a iminência da maldita morte.
— E você encontrou o primeiro babaca disponível para a sua despedida
mórbida? Muito obrigado! — ele abriu os braços e começou a olhar em volta.
Quando focou em sua calça, andou até a peça e a pegou, voltando a procurar
pelas outras peças. Ele encontrou sua boxer e começou a se vestir.
— O que está fazendo? — perguntei, nervosa.
— Eu preciso respirar, não posso ficar aqui agora.
— Mas o cancela...
— Não se preocupe, vou assinar o cancelamento — e com isso ele
terminou de se vestir e saiu pela porta, a batendo atrás de si.
Não sei por quanto tempo olhei para a porta enquanto as lágrimas grossas
desciam copiosamente pelo rosto. Não lembro de quanto tempo demorei para me
mover. Quando o fiz, fui para o banheiro e tomei um longo e quente banho. Senti
uma fisgada na cabeça e tentei identificar se era realmente dor ou minha mente
estava me pregando uma peça. Assim que estava de banho tomado, lembrei do
momento em que recebi a bomba do médico, também conhecido como meu
padrasto.

Infelizmente, as notícias não são boas, Linda...
Precisamos dizer à sua mãe...
Recomendo uma cirurgia imediatamente...
Há riscos que precisamos levar em consideração...
Deveria ter solicitado um exame logo, mas você é tão jovem e não estava
nas estatísticas de pré-disposição, sem problemas de hipertensão como seu pai...
Deveria ter dado mais atenção a você quando veio a mim...

Suas palavras vieram em ondas, e eu não conseguira filtrar nem metade
delas. Era como se eu estivesse ficando surda, tudo estava abafado. Quando
finalmente consegui respirar e voltar a mim, estava completamente transtornada.
Naquele momento, olhei para os papéis espalhados pela mesa e me senti
ainda mais indignada, revoltada. Não havia espaço para qualquer outro
sentimento dentro de mim naquele momento. E eu seguraria a indignação e
revolta o quanto eu pudesse, pois, no momento em que eu deixasse a mágoa
tomar conta, tudo desabaria. Tudo.
O que eu fiz para merecer aquilo? Por que ele não se importou mais
cedo?
Quando o questionei, ele desdenhou de minhas preocupações. Disse que
não era nada. E então tirou todo o chão de mim.
Desgraçado! Ele simplesmente me negligenciou!
— Linda, querida, por favor, sente-se, vamos conversar com calma sobre
os... Linda! Linda! Espere! — sequer fiquei para ouvir o que ele tinha para me
dizer. Dando as costas, o deixei gritando quando saí do local que me sufocava.
Desci os andares do prédio pelas escadas, esperar o elevador não era uma
opção. Quando cheguei ao térreo, abri a porta corta fogo com força e me joguei
para o hall do grande complexo de salas. Puxei uma grande quantidade de ar
quando finalmente cheguei do lado de fora.

Então, para me torturar um pouco mais, lembrei do dia perfeito que tive
com Ryan. Deitei na cama e me mantive acordada, olhando para a porta na
esperança de que ele entrasse. E como em todo o dia que passamos juntos, ele
não me decepcionou.
Depois de um tempo imensurável, Ryan bateu na porta. Apressadamente,
fui até a porta e abri, seus olhos estavam vidrados nos meus. No momento em
que nos olhamos, ele deu um passo para frente, depois outro, até ficar cara a cara
comigo. Sua testa descansou na minha, e tudo o que podia ouvir eram nossas
respirações. Ryan beijou a ponta do meu nariz e fechou a porta atrás de si antes
de andar, me empurrando em direção à cama. Quando ele finalmente estava em
cima de mim, seus lábios tomaram os meus vagarosamente.
Nós fizemos amor por um longo período, e quando terminamos, ele me
deixou chorar contra o seu peito até dormir.

**

Pela manhã, eu acordei primeiro que Knox, tomei um novo banho, vesti
roupas confortáveis e fiz as malas sem que ele despertasse. Pedi serviço de
quarto para que tomássemos café da manhã antes de fazer o check-out e me
sentei na varanda, em posse do meu telefone e da certidão de casamento. Pulei
novamente todas as minhas mensagens e escrevi para minha mãe e meu
padrasto, avisando que estava voltando para casa à tarde. Também liguei para
Stacy, precisava que ela fizesse algo para mim.
— Senhorita Hatman! Graças a Deus! — seu tom era histérico e aliviado
ao mesmo tempo. — Preciso falar com a senhora...
— Eu não tenho tempo agora, Stacy...
— Você vai me escutar agora, Linda! — ela gritou ao telefone. — Você
vai ouvir o que tenho a dizer e depois eu mesma peço demissão, mas eu não vou
deixar de falar!
Fiquei imóvel e calada na linha por um momento enquanto ouvia a
respiração furiosa da minha assistente do outro lado.
— Tudo bem, Stacy, estou ouvido — disse, por fim.
— Oh! Graças a Deus! — exclamou, aliviada. — Seu padrasto, o doutor
Carly, proibiu você de voltar para casa de avião, Linda, aparentemente você
poderia ter morrido quando foi para Las Vegas. É muito perigoso para os
pacientes com o seu caso.
— Oh? — foi o que consegui dizer. Knox estava certo, eu estava louca!
Quanta imprudência. Mas eu nada sabia sobre a minha situação e não esperei por
explicações.
— Sim! Oh! — Stacy parecia cansada, ela devia estar apagando inúmeros
incêndios com a minha ausência. — É verdade, senhorita Hatman? Que a
senhorita está...
— Sim, é verdade — sussurrei de volta para ela. Meu peito se apertou ao
admitir para ela, mas também me senti confortada por sua preocupação. Stacy
era tratada como uma colega de trabalho, não amiga. Eu conversava com ela,
ríamos de algumas coisas, mas nunca procurei explorar qualquer relação além de
profissional com ela. Eu me senti mal, seria mais uma coisa a qual poderia
perder.
— Sinto muito, senhorita.
— Está tudo bem, eu preciso de um favor — solicitei, mudando o rumo
da conversa. — Descubra o número de seguro social de Ryan James Knoxville e
de sua conta bancária e deposite... — quanto eu depositaria para ele? Nenhum
dinheiro no mundo pagaria o que ele fez para mim. — Apenas me entregue as
informações quando eu chegar... E já que estou voltando para L.A de carro, por
favor, contrate um transporte e peça para me buscar em uma hora no endereço
que vou passar por mensagem, sim?
— Sim, senhorita.
— E, Stacy?
— Pois não?
— Você não precisa se demitir, obrigada.
Desliguei o telefone e fiquei olhando para a nossa certidão de casamento.
Linda Knoxville.
Era um bonito nome.

— Oi — ouvi baixinho da porta da varanda. Olhei para cima e tentei
sorrir. Ele era tão lindo... Os olhos inchados de sono e os cabelos bagunçados o
deixavam mais sexy ainda.
— Bom dia, o café da manhã está chegando a qualquer momento —
informei e sinalizei para que ele sentasse ao meu lado. Ficamos em silêncio
enquanto comíamos. Queria que ele dissesse algo, mas parecia longe, muito
longe dali.
Estava chateado comigo?
Ansioso para que tudo terminasse, agora que sabia da minha condição?
Eu não sabia. Mas à medida que Ryan se distanciava, mais aumentava a
minha vontade de terminar com tudo aquilo. Ainda que fosse me matar por
dentro, era melhor do que vê-lo tão distante.
Pedi um motorista particular e tive a ajuda de Knox para carregar minha
bagagem.
— Não é necessário — tentei dissuadi-lo, mas ele apenas sorriu sem
graça e dispensou a minha preocupação, colocando sua pequena mochila nas
costas e carregando a minha mala para fora do hotel.
Durante o trajeto até o cartório, olhei a Strip e tentei me despedir de cada
local que eu havia passado. Especialmente do Bellagio. Foi naquele momento
que eu percebi o que nunca poderia dizer para Ryan.
Que eu estava apaixonada por ele.
Era loucura se apaixonar tão rapidamente...
Talvez fosse a iminência da morte...
Ou talvez fosse amor mesmo, à primeira vista, ao primeiro contato, amor
ao primeiro beijo, paixão ao primeiro sorriso. Fascinação ao primeiro olá...
Mas a vida precisava continuar, e Knox não estava em meu futuro.
O que estava em meu futuro?
Eu ia morrer sozinha?
Ia sobreviver com sequelas?
Para quem eu deixaria o império que tinha herdado?
As perguntas rodavam em minha cabeça, me deixando cada vez mais
triste.
Quando chegamos ao cartório, pedi ao motorista que aguardasse e subi os
degraus lado a lado com Knox. Então parei e puxei sua mão para que ele parasse
também.
— Ryan, eu apenas queria agradecer por tudo — senti uma lágrima
escapar e rapidamente a limpei. — Você provavelmente nunca entenderá, mas o
que disse antes é verdade: você me deu muito. E eu espero que você seja feliz —
meu queixo tremeu quando disse as últimas palavras. — Você merece.
Ryan se aproximou e beijou meus lábios com delicadeza. Sem dizer uma
palavra, soltou minha mão, voltou a subir os degraus e entrou no cartório. Meu
peito doeu. Aquele tinha sido nosso último beijo?
Se fosse, aquilo me atormentaria enquanto eu vivesse. Não era suficiente,
não foi o suficiente o que tivemos até aquele momento. Mas era tudo o que eu
tinha.
E estava acabado.

**

— Knoxville! — ouvimos nossos nomes serem chamados e nos
levantamos lentamente na sala de espera. Knox bateu com as palmas das mãos
nas pernas e nada disse. Eu respirei fundo e me ergui, tirando forças sabe-se lá
de onde para seguir em frente.
Nós passamos pelo corredor extenso até que chegarmos em frente a uma
mesa. Um homem engravatado estava olhando por cima dos seus óculos para o
documento em sua mesa. Após alguns segundos, empurrou os papéis para nós e
disse de forma entediada:
— Favor conferir os dados e assinar.
Era isso?
Simplesmente seria daquela forma que acabaria?
Fechei os olhos e tentei me lembrar do momento em que Knox e eu nos
casamos.
Estávamos bêbados, obviamente. Mas foi divertido.
Muito.
— Eu prometo que eu descobrirei como te amar, respeitar e apoiar...
Agora podemos transar?
Sorri com a lembrança, mas meu sorriso caiu no momento em que Ryan
pegou a caneta e assinou na parte assinalada do documento. Ele se virou para
mim e entregou a caneta, piscando rapidamente. Tentando afugentar as lágrimas
que queriam aparecer, peguei a caneta e me abaixei para assinar o meu nome.
Peça-me para parar.
Minha mente gritou e finalmente uma lágrima escapuliu.
Então, esperando mais um momento, eu finalmente tomei coragem e
assinei o maldito papel.
— Ótimo! — Knox exclamou, pegando meu braço e me virando de
frente para ele com rapidez e firmeza. Olhei um pouco assustada para o seu ato,
mas não tive muito tempo para raciocinar. — Agora posso levá-la para um
encontro, pedir para namorar comigo e fazermos as coisas na ordem certa —
declarou antes de me beijar ferozmente em frente a todos na sala.
Sua língua foi implacável, exigindo passagem, dançando dentro da minha
boca e arrancando gemidos de dentro de mim. Minhas mãos envolveram o seu
pescoço e meu corpo se colou ao seu com tamanha necessidade, que não queria
mais soltá-lo.
Um pigarro foi solto e finalmente nos separamos. Knox me olhava com
determinação.
— Os senhores já podem sair... — o homem começou a falar com o
mesmo tom entediado, e Ryan levantou a mão para que ele se calasse. Sua
atenção nunca saiu de mim.
— Eu não vou desistir de você, Linda Hatman.
— Knox, isso é loucura. Moramos longe... — comecei a argumentar.
— Eu vou para Los Angeles, não me importo — resolveu rapidamente.
— Somos de mundos diferentes... — eu não queria dizer o verdadeiro
motivo, mas ele parecia saber exatamente o que estava passando em minha
mente.
— Linda, não tenha medo — pediu, segurando meu rosto.
— Eu posso morrer, Ryan — as palavras saíram com dor, e logo as
lágrimas jorravam para fora dos meus olhos. — Eu posso ficar na mesa de
operação.
— Eu serei o motivo para você voltar, Linda. E você vai voltar para mim.
Você é minha, e eu sou seu.
Aquele homem...
Deus! Como eu poderia olhar em seus olhos e mandá-lo embora? Era
impossível não ter sentimentos por ele, impossível não querer ele comigo para
sempre. Meu corpo estava completamente tomado pela emoção, de excitação ao
ouvir as palavras de Ryan para mim. Ele me queria. Independentemente da
minha doença, independentemente do meu dinheiro.
— Ryan... Eu estou apaixonada por você — as palavras saíram junto com
um sorriso nervoso.
— Eu sei, baby. Eu sinto o mesmo. É como se eu estivesse me vendo em
você.
— Com licença? — o homem entediado resmungou novamente, fazendo
com que eu e Knox olhássemos para ele. — Devo rasgar o cancelamento? —
perguntou com uma carranca e a sobrancelha esquerda erguida.
— Não! — Knox disse.
— Sim! — respondi ao mesmo tempo. Nós nos olhamos rapidamente.
— Quero fazer a coisa certa com você, baby. — justificou a sua negativa.
— Você já fez, Ryan, quando você disse: eu prometo que eu descobrirei
como te amar, respeitar e apoiar... Agora podemos transar? Bem, menos a
última parte — brinquei.
— Com a última parte.
— Obrigada! — agradeci novamente. — Por me dar aquele drinque.
— Obrigado por aparecer na minha vida — deu um beijo delicado em
meus lábios.
— Obrigada por estar na minha.
— E eu agradeço se me derem uma resposta: posso rasgar a anulação? —
o homem ranzinza perguntou novamente.
— SIM!
Respondemos juntos.
Juntos.
Nós estávamos juntos.

Epílogo
Três anos depois

LISTA DE MERDAS DAS MELHORES COISAS PARA FAZER EM
LAS VEGAS!
1. Ir para Las Vegas; Eu fui!
2. Gastar uma pequena fortuna em um cassino; Gastei em batom
também.
3. Experimentar drinques exóticos enquanto reclama da vida para o
Barman; Ganhei um drinque com o meu nome.
4. Ver um show de go-go boy; Novo conceito de go-go boy inventado
com sucesso!
5. Dançar em frente ao Bellagio; Deus! Foi lá que descobri que o amor te
pega rápido, basta conhecer a pessoa certa.
6. Andar em uma limousine com a cabeça para fora do teto solar
enquanto canto a música tema de Titanic; Nunca diga na minha cara que Titanic
é brega! Eu mato você!
7. Fazer uma tatuagem; Estou na terceira e contando...
8. Assistir a um show cover da Tina Turner; Dei de presente de natal o
DVD remasterizado de Mad Max para Knox.
9. Casar com um estranho na capela do Elvis; Três anos, três
casamentos... E contando.
10. Transar com o marido estranho. Todos os dias! Sempre que possível...

Era nosso aniversário de três anos de casamento/namoro/dia que nos
conhecemos. Nós estaríamos de partida para Vegas na semana seguinte, para
comemorar, mas eu sabia que Ryan estava preparando alguma surpresa para
mim, ele sempre fazia isso.
Entrei em nossa casa e tudo estava silencioso e escuro. Assim que cruzei
o batente da porta, pulei para fora dos meus saltos e larguei minha bolsa em cima
do aparador do hall de entrada. Mantive apenas as flores que havia comprado e a
caixinha com o presente. Era nosso aniversário.
— Ryan? — chamei, tentando descobrir onde ele estava. Nenhuma
resposta.
Por um momento, pensei que ele tinha esquecido do nosso dia, mas era
impossível. Ele tinha uma bela vantagem. Nosso aniversário era um dia antes do
dia dos namorados, e a cidade toda estava preparada para aquele dia. E se eu
fosse honesta? Ele nunca se esqueceria. Ryan Knoxville era o homem mais
perfeito que havia conhecido. E, por sinal, era meu.
Naquele mesmo dia em que desistimos da anulação do nosso casamento,
voltamos para o apartamento de Ryan. Ele fez uma boa mala para a viagem,
organizou tudo o que pode e fechou as portas. Eu tentei dizer que poderíamos ir
devagar, que ele poderia ficar, mas o homem estava decidido em voltar comigo e
me fazer entrar no primeiro hospital para arrancar o aneurisma da minha cabeça.
Palavras dele, não minhas.
Eu estava morrendo de medo. Quando me dei conta do que realmente
estava acontecendo, a raiva e a revolta deram lugar ao puro medo. Mas Ryan
nunca me abandonou. Nós voltamos para Los Angeles de carro, minha mãe e
padrasto já aguardavam por mim, assim como Stacy. Todos ficaram assustados
quando apresentei Knox como meu marido, mas a preocupação sobre a minha
saúde acabou ofuscando a notícia do casamento.
Na semana seguinte, Ryan e eu estávamos nos despedindo.

— Adeus! — disse, tentando me despedir corretamente dele. Deitada na
maca e preparada para a cirurgia, os médicos apenas aguardavam eu me
despedir para poder ir para o centro cirúrgico e ser sedada.
— Adeus? De jeito nenhum, estarei te esperando bem aqui quando você
voltar. — ele respondeu firmemente.
— Knox, é sério — iniciei a conversa. Ele tinha que entender que eu
poderia não voltar. — Eu deixei tudo preparado para você. Está tudo com Stacy.
— Eu já disse que não quero o seu dinheiro, não me casei e nem me
mantive casado com você por isso...
— Eu sei, Ryan. Eu sei! Mas isso não faz de você menos merecedor. Eu
quero que fique bem... — seus olhos pareciam desesperados quando fui
interrompida.
— Eu vou ficar bem, com você. Entendeu, Linda? — pela primeira vez eu
vi o meu amor desesperado. Tudo nele gritava terror. Estava aterrorizado com
aquela situação, mas só estava demonstrando naquele momento. Oh, Knox! —
Eu não tive tempo o suficiente, não tive o bastante de você, baby. Eu... eu te
amo. Eu te amo e não quero ficar sem você, então não me diga adeus.
— Tudo bem — assenti junto com a resposta, sentindo meu coração
apertar.
— E quando você voltar, vamos nos casar novamente. E no próximo ano
também, e em todos os anos...
Ele sorriu, e seus olhos brilharam, verdadeiras piscinas de lágrimas se
formaram dentro deles. Piscando rapidamente, ele se aproximou e me beijou.
Um beijo perfeito, doce e cheio de coragem. Um beijo que me dizia para voltar e
pegar tudo mais que ele tinha a me oferecer.
E assim eu fiz.

Eu voltei.
Voltei para ele.
Foram oito horas de cirurgia, mas eu voltei. Perdi 40% dos movimentos
do braço esquerdo, mas, ao acordar, ele estava lá. Bem, todos estavam lá. Minha
mãe, meu padrasto, Stacy, alguns conselheiros da empresa... Mas,
principalmente, Ryan. Meu marido estava lá, com um sorriso cansado, aliviado e
radiante ao mesmo tempo. Estava aguardando para me dar tudo o que ele tinha,
todas as novas aventuras que teríamos em nosso futuro.
Eu estava tão feliz em estar viva, que não me importei em perder parte
dos movimentos, eu simplesmente foquei em meu futuro. Com o tempo, fiz
fisioterapia e recuperei um pouco mais dos movimentos, minha mão não abria e
fechava com rapidez e nem abria completamente, meus dedos não esticavam
completamente. Mas para ser honesta, se eu não tivesse nenhum movimento,
estaria feliz também. Com Ryan, tudo na vida sempre tinha um sentido diferente.
Quando estava fora de perigo, minha mãe foi implacável sobre o meu
casamento. Engraçado perceber Judy Carly, uma mulher que basicamente só se
importava com ela mesma, tirar um tempo para se preocupar com a filha. Mas
depois que eu disse que não era da conta dela com quem eu casava e deixei claro
que o dinheiro da Hatman Hotéis era meu, ela sossegou. Então começou a ser
implacável para que eu tivesse um casamento de verdade.
Mal sabia ela que tive o melhor casamento de todos, porém, por outro
lado, seria bom estar sóbria em uma cerimônia. Então, após seis meses, nos
casamos novamente, em uma cerimônia discreta em um dos nossos hotéis em
Beverly Hills.
Foi um belo casamento, mas em seguida tivemos nossa primeira
discussão. Ryan se negava a assumir um cargo alto na Hatman Hotéis. Ele
alegava que não era honrado. E depois de semanas discutindo sobre o assunto,
coloquei a situação de maneira invertida para ele.
— E se fosse o contrário? E se você fosse o dono de tudo? Ia me querer
como uma garçonete em um dos hotéis? — perguntei, alterada, já estava cansada
daquilo tudo.
— Eu... não sei... Eu só não sei se tenho vocação para ficar atrás de uma
mesa, Linda — respondeu, um tanto frustrado.
Então chegamos a um acordo, nem tão alto, e nem tão baixo. Knox
estudaria e seria gerente de alimentos e bebidas de um de nossos complexos. Ele
ficou satisfeito, eu nem tanto, mas o amava, queria ele confortável e feliz.

Tudo continuava escuro e sem nenhum sinal dele. Nunca havíamos
comemorado em casa, então eu não sabia muito bem o que esperar.
Ninguém na cozinha;
Ninguém na sala;
Ninguém no escritório;
Ninguém nos quartos extras, que em breve desejávamos preencher.
Faltava o nosso quarto, então caminhei até lá e entrei. Lá estava: a claridade era
mínima e vinha do banheiro. Eram velas, as chamas brincavam fazendo sombras
na parede, e o aroma era inconfundível. Andei até o banheiro da nossa suíte,
curiosa para saber o que meu marido havia aprontado.
Não era a primeira vez que ele preparava um banho de banheira para
mim, e definitivamente não era a primeira vez que ele preparava um banho de
banheira com ele nu, envolvido na equação. Ainda assim, estava excitada e
ansiosa para vê-lo. Ansiosa para dar-lhe o meu presente também.
Segurei a caixa e as flores firmemente e empurrei um pouco mais a porta,
entrando no banheiro. É claro que ele estava lá, dentro da nossa grande
hidromassagem, coberto de espuma e pétalas bregas de rosa, mas ainda assim,
tão romântico... Ironic, de Alanis Morissette, estava tocando, e as velas
iluminavam o belo conjunto de ser humano que era o meu marido. Seus braços
estavam abertos e apoiados na banheira. De onde estava, eu podia ver sua
tatuagem, aquela que combinava com a minha e que nos lembraria, mesmo sem
necessidade, da melhor loucura que fizemos um dia.
— As flores são para mim? — perguntou com o semblante que eu mais
amava: completamente feliz, de um modo que seus olhos conseguiam sorrir mais
do que a boca.
— Sim, e o presente também — informei, deixando ambos em cima do
pequeno deque que tínhamos na hidromassagem. — Não toque, quero dar a você
— apontei, fazendo ele levantar as mãos em sinal de rendição. Comecei a me
despir para me juntar a ele, quando ouvi:
— Devagar! — pediu, assim que comecei a desabotoar a blusa.
— Você quer um strip? — levantei a sobrancelha para ele em
questionamento, o homem era sempre ansioso demais para colocar as mãos em
mim. Nossas brincadeiras dificilmente iam até o final, não demorava muito, ele
pulava em mim.
— Estou ansioso demais para assistir um strip-tease agora, baby. Só tira
devagar e depois vem para mim — eu sabia! Ele era sempre assim.
Fiz o que ele me pediu. Tirei minhas roupas vagarosamente e prendi
meus cabelos no alto da cabeça antes de entrar na banheira. A essa altura, a
música que tocava já era outra, Always On My Mind. Sentei de frente para ele,
encaixando minhas pernas em volta da sua cintura e sentindo a dureza do seu
membro em meu centro.
Beijei seus lábios delicadamente e depois espalhei beijos por todo o seu
rosto e ombros, até que estávamos encaixados e nos movimentando juntos. Será
que um dia cairíamos na rotina? Perderíamos a chama? Esperava que não, queria
amar e desejar meu marido até o fim dos meus dias e tinha certeza absoluta que
ele desejava o mesmo. Vagarosamente, Ryan se esforçava para entrar mais fundo
em mim enquanto meus lábios soltavam gemidos de prazer, de puro êxtase.
— Eu te amo! — disse fervorosamente enquanto a velocidade de suas
investidas ganhava velocidade. Rebolei e acompanhei seu ritmo, até que juntos
estávamos obtendo o nosso ápice e gemendo alto de satisfação.

**

— Feliz aniversário — sussurrou, acariciando meus braços. Deitei em
seu peito e me permiti relaxar na água quente e borbulhante.
— Feliz aniversário. Esse foi calmo — descansando a cabeça em seu
ombro, olhei para cima. — Gostei assim, pensei que você ia aprontar algo para
relembrarmos Vegas antes de ir para lá.
— Você esperava me encontrar com uma peruca loira dançando
MMMBop?
Gargalhei, me lembrando do quão ridículo ele estava.
— Ainda não consigo entender como você foi capaz de uma besteira
daquelas.
— Eu já estava caído por você, baby, faria qualquer coisa para que você
não encostasse em nenhum homem...
— Mentira! — bati em seu ombro. — Não havia go-go boys naquele
horário, e você sabia...
— Tudo bem, tudo bem! — admitiu. — Eu só queria que você se
lembrasse de todos os momentos, mesmo dos ridículos. Você era a pessoa mais
linda que eu tinha colocado os olhos. Mas também a mais triste.
Seu rosto suavizou com a lembrança, e eu estiquei o pescoço e o beijei.
— Eu nunca me esqueceria, amor. Nunca. Você trouxe motivos para
sorrir e viver a vida. Serei eternamente grata.
— Temos história. Três anos, Linda. Três anos que encontrei a mulher da
minha vida.
— Nossa história é a melhor. E quando tivermos nossos netos,
poderemos contar para eles como foi que nos conhecemos, nos apaixonamos e
nos casamos em vinte e quatro horas.
— Soa louco quando falamos assim, mas aquelas vinte e quatro horas
pareceram durar semanas, meses — brincou. — E sobre contar para nossos,
bem, temos que ter bebês primeiro.
Ryan queria filhos após um ano de casamento. Eu queria esperar mais.
Ainda tinha medo de que pudesse ter algum problema na contenção do meu
aneurisma, mesmo os médicos descartando veemente a possibilidade. Mas eu
não poderia evitar, passar por aquela agonia, por aquele medo. Tudo tinha ficado
em mim por muito tempo. Foi necessário terapia naquele ano para que eu
pudesse seguir em frente.
Diminui o ritmo de trabalho também, eu queria viver mais a vida e queria
aproveitar nosso amor antes de adicionar filhos. Quando finalmente decidimos
comumente que teríamos um filho, estávamos mais do que empolgados em
praticar, para que nossos herdeiros viessem ao mundo. Combinamos três.
Queríamos uma família grande e estávamos prontos e consciente para aquilo.
Então...
— Sim, temos que ter filhos antes de termos netos, concordo — eu me
virei, ficando de joelhos, e beijei seus lábios antes de pegar a caixinha de
presente. — Sobre isso...
Ele pegou a caixa com facilidade, mas não desviou seu olhar do meu.
— Feliz aniversário, baby — sorri largamente e senti meu coração
disparar enquanto ele abria a caixa.
Aconchegado em um papel dobrado estava o primeiro teste de gravidez
que havia feito naquela manhã. O papel dobrado era o exame de sangue que fiz
de urgência no minuto em que o exame de farmácia tinha me dado o resultado
positivo.
— Linda! — Knox exclamou, sorrindo, suas mãos tremiam de emoção
quando ele largou a caixa no deque e me puxou para ele. — Eu te amo, estou tão
feliz.
Nós nos beijamos por um longo momento, e quando nos soltamos,
repetimos o diálogo que tínhamos desde que assumimos o nosso amor em Las
Vegas.
— O que acontece em Vegas nem sempre fica em Vegas — sussurrei,
vendo as lágrimas de emoção nos seus belos olhos sempre sorridentes.
— Ainda bem! Ainda bem! — respondeu, extasiado.
— Viva Las Vegas! — exclamei, baixinho, mas feliz. Muito feliz.
— Viva Las Vegas! — Ryan, o amor da minha vida, espelhou a minha
comemoração.
Pensei que estava em um caminho sem volta quando descobri o
aneurisma, entrei em pânico ao saber que morreria sozinha e sem grandes feitos.
Ir para Vegas me fez perceber um novo caminho, e aquele também era sem volta,
é claro. Ter me apaixonado pelo homem que batizou um drinque com o meu
nome foi completamente involuntário, mas eu nunca voltaria atrás. Dei meu
coração para Ryan sem perceber.
E então, percebendo que eu era dele, eu daria meu coração todos os dias.
Sem arrependimentos.

FIM


Agradecimentos
Agradeço aos meus parceiros do Botando Banca! Esse projeto me enche
tanto de alegria quanto ter vocês na minha vida, Aretha, Clara e Raphael.
Um obrigada especialíssimo à LP (Livros Prontos e Lion) por
acreditarem neste projeto, apoiar e engrandecê-lo ainda mais!
E um super agradecimento a Wilka Andrade: obrigada, Kika, pelo
carinho e atenção de sempre pelas minhas obras. Você sempre estará em meu
coração.



Sobre a autora
Carol Moura é gaúcha, mas mora em Brasília com seu marido e filho.
Turismóloga de formação, apaixonada por literatura, séries e filmes,
escrevia em suas horas livres como hobby, até que em 2015 resolveu se
aventurar publicando seu primeiro original em plataforma digital.
Em 2017 optou por se dedicar integralmente à escrita, deixando a
estabilidade do seu emprego para se arriscar fazendo o que realmente ama:
escrever romances.
Tornou-se destaque no Wattpad com o livro Orange Kiss, posteriormente
a obra foi sucesso na Amazon juntamente com outros livros da autora, como a
trilogia Adeus, Groupie, Para Roxanne, Com Amor, entre outros títulos.
Com O Destino do CEO, a autora alcançou o topo de vendas, com mais
de 3 milhões de leituras em apenas quarenta dias, liderando o ranking de e-books
mais vendidos na plataforma digital.

Sem Volta é seu segundo livro no selo Botando Banca, uma parceria
idealizada entre ela e as autoras Aretha V. Guedes (Sem Regras) e C. Caraciolo
(Sem Alternativa), que visa reacender o gosto pela leitura de romances de banca
de jornal.





[1]
Chief Operating Officer, braço direito do Chief Executive Officer, o CEO.
[2]
Nota da autora: a Colt Company pertence a Dashier Colt, protagonista do livro O Destino do CEO, de
Carol Moura, minha amiga e colega de Botando Banca! =]
[3]
Grade point average: média das notas do aluno para ingressar em universidades nos Estados Unidos.
[4]
Fala italiano, ainda. Melhor ainda!
Table of Contents
Botando Banca
SEM REGRAS
Sinopse
Prólogo
Capítulo 1 — Leandro
Capítulo 2 — Senhor Pendleton
Capítulo 3 — Proposta
Capítulo 4 — Dante
Capítulo 5 — Dimitri
Capítulo 6 — Croissette
Capítulo 7 — Festival
Capítulo 8 — Sem regras
Capítulo 9 — Outro dia
Capítulo 10 — Entre amigos
Capítulo 11 — Despedida
Capítulo 12 — Paris
Capítulo 13 — Descoberta
Capítulo 14 — Realidade
Capítulo 15 — O plano
Capítulo 16 — Discursos
Capítulo 17 — Surpresas
Epílogo
Sobre a autora
SEM ALTERNATIVA
Dedicatória
Sinopse
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Epílogo
Agradecimentos
Sobre a autora
SEM VOLTA
Sinopse
Prólogo
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Epílogo
Agradecimentos
Sobre a autora

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