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13º Congresso de Inovação, Ciência e Tecnologia do IFSP - 2022

A ATRIBUIÇÃO DE PERSONALIDADE JURÍDICA AO RIO WHANGANUI

SUELEN LEMES DE SOUZA1, JULIO CESAR PINHEIRO JUNIOR2, TÂNIA RITA GRITTI
FERRARETTO3

1 Graduanda em Tecnologia em Gestão Ambiental da Faculdade de Tecnologia de Jundiaí “Deputado Ary Fossen”,
suelen.souza5@fatec.sp.gov.br.
2 Graduando em Tecnologia em Gestão Ambiental da Faculdade de Tecnologia de Jundiaí “Deputado Ary Fossen”,

julio.pinheiro2@fatec.sp.gov.br.
3 Professora de Ensino Superior da Faculdade de Tecnologia de Jundiaí “Deputado Ary Fossen”,
tania.ferraretto@fatec.sp.gov.br.
Área de conhecimento (Tabela CNPq): 3.07.04.06-5 Legislação Ambiental/ 5.02.05.03-0 Conservação de Bacias Hidrográficas

RESUMO: Localizado na Nova Zelândia, o rio Whanganui é considerado de extrema importância para
o povo Maori, que o reverencia como um ser sagrado e ancestral. Após uma série de litígios históricos
entre os Maori e o Estado, foi atribuída, em 2017, personalidade jurídica ao rio, medida, até então,
inédita no mundo. O presente estudo objetivou compreender, através de pesquisa bibliográfica, o
significado de tal concessão a um recurso natural e sua relevância para o direito e para a conservação do
meio ambiente. Assim, o reconhecimento do valor intrínseco do corpo d’água, a configuração de uma
nova forma de tentar coibir a degradação do recurso natural, e o reconhecimento, no âmbito jurídico, da
relação entre comunidades tradicionais com o corpo d’água, bem como sua cultura e visão de mundo,
destacam-se como pontos positivos da medida adotada.

PALAVRAS-CHAVE: Personalidade jurídica; rio Whanganui; legislação ambiental.

THE ATTRIBUTION OF LEGAL PERSONALITY TO WHANGANUI RIVER

ABSTRACT: Located in New Zealand, the Whanganui River is considered of utmost importance to the
Maori people, who revere them as a sacred and ancestral being. After a series of historical disputes
between the Maori and the State, in 2017 the river was granted legal personality, a measure that was
unprecedented in the world. The present study aimed to understand, through bibliographic research, the
meaning of such a concession to a natural resource and its relevance to the law and to the conservation
of the environment. Thus, the recognition of the intrinsic value of the river, the configuration of a new
way of trying to curb the degradation of the natural resource, and the recognition, in the legal scope, of
the relationship between traditional communities with the river, as well as its culture and vision of the
world, stand out as positive points of the adopted measure.

KEYWORDS: Legal personality; Whanganui river; environmental law.

INTRODUÇÃO
O Rio Whanganui, com seus 290 km de extensão, é considerado o maior rio navegável da Nova
Zelândia, fluindo do Monte Tongariro para o mar da Tasmânia, conforme observa-se na Figura 1.
Localizado na região de Manawatū-Whanganui, na Ilha do Norte, é de extrema importância para o povo
Maori, que o considera sagrado e um ser ancestral, fonte de seu sustento físico e espiritual. Assim, essa

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visão se mostra contrária à perspectiva tradicionalista que considera os recursos naturais como uma
propriedade e/ou bem que deve ser explorado para determinados fins econômicos (AGUIRRE;
CÁRCAMO, 2020; BEAGLEHOLE, 2015; TOZZI, 2019).

FIGURA 1. Mapa com localização e extensão do rio Whanganui.


Fonte: Associates Times (2020)

Para Hutchison (2014) foi essa relação dos Maori com o rio a responsável pelas mudanças nos
valores da sociedade que culminaram, em 2017, na aprovação e implementação do Te Awa Tupua Act,
documento que atribuiu ao rio Whanganui o status de pessoa jurídica, ou seja, concedeu ao recurso
hídrico os mesmos direitos de uma pessoa (KRAMM, 2020); precedente esse que, posteriormente,
influenciou diversos outros países a fazerem o mesmo com seus corpos d’água.
Diante do exposto, o objetivo central do presente trabalho é, tendo por base a legislação Te Awa
Tupua Act, compreender o significado da atribuição de personalidade jurídica a um recurso natural, no
caso, o rio Whanganui, e sua importância para o direito e para a conservação do meio ambiente.

MATERIAL E MÉTODOS
Foi realizada pesquisa exploratória, objetivando proporcionar maior compreensão a respeito da
atribuição de personalidade jurídica a recursos naturais. A metodologia utilizada foi o levantamento
bibliográfico de artigos publicados em periódicos acadêmicos e científicos, além de páginas oficiais do
governo neozelandês, de modo a permitir uma maior abrangência da temática.

RESULTADOS E DISCUSSÃO
Histórico
A batalha do povo Maori pelo rio Whanganui data ainda do período colonial. Segundo Aguirre
e Cárcamo (2020), em 1840, a coroa britânica e líderes Maori firmaram o Tratado de Waitangi, um
documento que reconhecia os direitos dos Maori à terra, florestas e áreas pesqueiras e, em tese, dividia
o território entre as duas partes. Todavia, o acordo foi marcado por uma série de violações por parte dos
colonos, que resultaram na desapropriação de terras dessas comunidades - que se instalaram na região
no século X – e que, por conta disso, foram forçadas a migrar para áreas pouco férteis e com acesso
restrito a pesca (ALBERTI, 2007; AGUIRRE; CÁRCAMO, 2020).
Em decorrência das violações ao tratado, os Maori ingressaram com inúmeras ações judiciais
nas diversas cortes do país, buscando o reconhecimento de seus direitos sobre as terras. De acordo com
Alberti (2007), há registros de petições realizadas perante o parlamento e a coroa britânica ainda no
século XIX. No entanto, somente no ano de 1975, após uma série de protestos, foi criado um tribunal,
conhecido como Tribunal de Waitangi, para julgar os processos e demandas dos Maori contra o governo.
Um desses processos, o caso Wai 167, levado ao Tribunal de Waitangi no ano de 1999, resultou
no reconhecimento dos direitos do povo Maori sobre a região e iniciou uma série de negociações entre

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o Estado e essas comunidades tradicionais. Decorrente disso, em 2014, um acordo foi estabelecido entre
as partes, tornando-se lei em 2017, denominada de Te Awa Tupua Act, no qual o Rio Whanganui é
declarado como detentor de personalidade jurídica (AGUIRRE; CÁRCAMO, 2020; TOZZI, 2019).

Personalidade Jurídica
A atribuição de personalidade jurídica consiste, basicamente, em conferir direitos,
responsabilidades e obrigações a um sujeito e/ou entidade. Dentre esses direitos encontram-se: o direito
de não sofrer danos; o direito à imagem, ao nome, a firmar contratos, à busca por reparação em caso de
violações, dentre outros (TOZZI, 2019).
De acordo com Hutchison (2014), a decisão de atribuir personalidade jurídica a algo é
estabelecida por valores sociais, ou seja, é reflexo do que é considerado importante e valioso para
determinada sociedade. Dessa forma, a decisão da Nova Zelândia de conceder esse status a um rio é
indicativo de mudanças nos valores daquele corpo social, demonstrando que o país valoriza o rio
Whanganui o suficiente para incorporá-lo em seu sistema legal.
Tozzi (2019) destaca ainda que, ao conceder personalidade jurídica à recursos naturais,
reconhece-se o valor intrínseco desses bens ambientais, de modo a proporcionar maior proteção ao
mesmo, uma vez que esse pode adotar medidas, através de seus representantes, a favor de seus interesses.
Desta forma, um dano ambiental pode ser reconhecido e indenizado em favor do recurso ambiental em
questão, sem que, necessariamente, sejam demonstrados danos a terceiros.
Em meio aos ganhos da declaração de personalidade jurídica, também se intercalam algumas
críticas: para Cruz (1997 apud Tozzi, 2019) a definição dos interesses da natureza sempre irá depender
da razão humana, não evidenciando a real utilidade na atribuição de direitos aos elementos ambientais.
Por sua vez Gussoli (2014) afirma que a concepção de sistema jurídico à natureza resultaria em sua
antropomorfização e na revogação de sua naturalização. Em contrapartida, relata também que os
conceitos do meio jurídico são antropocêntricos, e a superação para a quebra desse paradigma humanista
é um processo lento.
Todavia, vale ressaltar que o conceito de direitos da natureza vai além do âmbito ecossistêmico,
substanciando-se na bioculturalidade, vinculando a função material e espiritual. Vale dizer que a
natureza é considerada como um todo, compondo a ascensão da história de nações, e sendo um resultado
da harmonia entre as interações biológicas, validando a interdependência entre todos os seres
(AGUIRRE; CÁRCAMO, 2020).
Ademais, essa concessão de direitos jurídicos ao rio está alinhada aos Objetivos do
Desenvolvimento Sustentável (ODS), propostos pela Organização das Nações Unidas (ONU) para a
agenda 2030, como: ODS 6 - Água potável e saneamento; ODS 14 - Vida na água; ODS 17 - Parcerias
e meios de implementação. Todavia, ganha-se uma nova perspectiva para um convite de uma nova visão
sobre o rio e sua preservação, considerando também a cultura do povo Maori (NAÇÕES UNIDAS
BRASIL, 2022).

Te Awa Tupua Act


Segundo Kramm (2020), a lei Te Awa Tupua (Te Awa Tupua Act), de 2017, pode ser avaliada
sob três diferentes níveis, sendo eles: 1. Pré-político – no qual o rio é considerado e respeitado como um
ser vivo de valor intrínseco; 2. Legal – referente ao status de personalidade jurídica concedido ao
mesmo; e 3. Institucional – que abarca a gestão e a conservação do corpo hídrico. De acordo com o
autor, esses níveis se relacionam entre si, visto que o rio é considerado uma pessoa jurídica e uma
entidade viva, mas não é capaz de se expressar ou defender seus interesses, dependendo de
representantes para isso.
Aguirre e Cárcamo (2020) por sua vez citam que a norma engloba também a proteção aos
tributários, riachos, lagos e demais ecossistemas aquáticos relacionados ao rio. Além de reconhecer a
importância sociocultural do corpo hídrico para os povos nativos da região, tal como, as violações
cometidas durante a colonização, com direito a um pedido de desculpas oficial e ao estabelecimento de
uma indenização de 80 milhões de dólares neozelandeses, a comunidade Maori, pelos danos causados
ao rio.
A legislação também determinou a criação de um fundo voltado para a manutenção e gestão do
rio, assim como, o estabelecimento de um corpo gestor, denominado Te Pou Tupua, responsável por
agir e representar os interesses do corpo hídrico, sendo concebido de modo a unir os conhecimentos

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científicos aos conhecimentos tradicionais do povo Maori. Desse modo, o comitê gestor é gerido por
dois representantes: um da etnia Maori e outro nomeado pelo governo. Além disso, foram criados outros
grupos: o Te Karewao – grupo consultivo formado por três pessoas; e o Te Kopuka – grupo composto
por dezessete representantes; ambos responsáveis pela definição de questões estratégicas envolvendo o
recurso hídrico; o Te Heke Ngahuru – encarregado pelo planejamento e conservação hídrica; e, por fim,
o Kia Matara Rawa – incumbido de gerenciar as margens do manancial, conforme Figura 2 (AGUIRRE;
CÁRCAMO, 2020).

FIGURA 2. O curso inferior do rio Whanganui flui perto do assentamento de Kaiwhaiki (NZ).
Fonte: Associated Press/ Brett Phibbs (2022)

No entanto, o Earth Law Center (2020 apud AGUIRRE; CÁRCAMO, 2020) aponta que, embora
a atribuição de personalidade jurídica ao Rio Whanganui seja um conceito inovador, a lei apresenta
algumas limitações, visto que não fornece instruções sobre como o rio deve ser gerenciado e nem
restringe os direitos à propriedade privada em seu entorno. Além disso, ainda não é possível avaliar o
grau de efetividade na implantação e no cumprimento do que determina a norma, pois são fatos muito
recentes.

CONCLUSÕES
A atribuição de personalidade jurídica ao rio Whanganui é um marco histórico para o direito
ambiental e para a luta dos povos indígenas e de ambientalistas no mundo todo. Do ponto de vista legal
e ambiental, representa o primeiro caso de concessão de direitos à um corpo hídrico no planeta, sendo
relevante por reconhecer o valor intrínseco do corpo d’água e por configurar uma nova forma de tentar
coibir a degradação do recurso natural, uma vez que ao tornar-se um sujeito de direitos, o rio pode,
através de seus guardiões/gestores, entrar com ações que visem a defesa de seus interesses; proteção
essa que se estende a todo seu ecossistema aquático e tributários.
Da perspectiva dos povos indígenas, a medida é significativa pois reconhece, no âmbito jurídico,
a relação entre as comunidades tradicionais, no caso o povo Maori, com o corpo d’água, bem como sua
cultura e visão de mundo, em que o rio é visto como uma entidade sagrada, sendo de extrema
importância, dado ao histórico de violações aos direitos dessa população. Além disso, a decisão abre um
precedente para que outros países concedam o status de pessoa jurídica a seus bens ambientais,
observando-se também os aspectos bioculturais e socioambientais, ou seja, essa relação entre o ambiente
e povos tradicionais.
No Brasil, o reconhecimento de direitos à natureza é uma válida tendência, gerando conceitos
de preservação do meio e de respeito aos povos tradicionais. Essa ação, inclusive, relaciona-se com o
que preconiza a Constituição Federal (1988), que estabelece o direito a um meio ambiente
ecologicamente equilibrado (Art. 225) e reconhece os direitos de comunidades indígenas sobre às terras

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que ocupam e aos seus costumes e tradições (Art. 231). Como exemplo, pode-se citar o rio Doce e sua
importância para o povo Krenak, que possui grande parte de suas tradições associadas ao rio e o
considera um ser ancestral; relação essa que foi citada na ação ajuizada, em 2017, pela Bacia do Rio
Doce, contra a União e o governo de Minas Gerais, que busca o reconhecimento da bacia hidrográfica
em questão como um sujeito dotado de direitos, processo inédito no país (IHU, 2017).

AGRADECIMENTOS
Agradecemos à orientadora desse estudo.

REFERÊNCIAS
AGUIRRE, M.; CÁRCAMO, A. M. O Rio Whanganui e o povo Maori: Reconhecimento e garantia dos
direitos da natureza. In: LUIZ FELIPE LACERDA (org.). Direitos da natureza: Marcos para a
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