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Gramsci e Nós STUART HALL
Gramsci e Nós STUART HALL
10/02/2022
AMÉRICA CENTRAL / EUROPA / ANÁLISE
CAPITAL / CULTURA / SOCIOLOGIA
Gramsci e nós
POR STUART HALL
TRADUÇÃO
VILA VUDU
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01/11/2022 21:39 Gramsci e nós
STUART HALL DISCURSA EM UM COMÍCIO DO CND EM TRAFALGAR SQUARE EM 1958. FOTOGRAFIA: CORTESIA
DE STUART HALL ESTATE / ALLEN LANE
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E
ssa não é uma exposição abrangente das ideias de Antonio
Gramsci, nem um comentário sistemático da situação
política na Grã-Bretanha hoje. É uma tentativa de ‘pensar em
voz alta’ sobre alguns dos dilemas que mais perplexidade
geram em toda a esquerda, à luz – sob o ponto de vista – do trabalho de
Gramsci.
Não estou dizendo que, em qualquer sentido simples, Gramsci teria ‘as
respostas’ ou ofereceria ‘a chave’ para ‘resolver’ nossas dificuldades correntes.
O que acredito é que precisamos ‘pensar’ de modo Gramsciano os nossos
problemas – o que é diferente. Não devemos usar Gramsci (como por tanto
tempo abusamos de Marx) como um profeta do Velho Testamento que, no
momento certo, nos presenteará com a citação mais apropriada para nosso
máximo consolo. Não há como remover esse “Sardo” de sua formação política
única e específica, teletransportá-lo para o final do século 20 e pedir-lhe que
resolva para nós os nossos problemas: especialmente porque o cerne de seu
pensamento sempre foi a recusa a esse tipo de ‘transplante’ leviano de
generalizações a partir de uma conjuntura, nação ou época específicas, para
outras.
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Além disso (e aí está uma das principais razões pelas quais essa ideia é tão
pertinente para nós hoje), Gramsci teve que encarar também a capacidade da
direita – especificamente, do fascismo europeu – em hegemonizar aquela
derrota.
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Gramsci, por outro lado, sabia que diferença e especificidade importam, são
decisivas. Assim, em vez de perguntar ‘o que Gramsci diria sobre o
thatcherismo?’ temos apenas de prestar atenção de modo sério a essa fixação
que Gramsci tinha pela noção de diferença, a questão da especificidade de uma
dada conjuntura histórica: como forças diferentes se combinam,
conjunturalmente, para criar um novo terreno, sobre o qual uma forma
diferente de política precisa se formar. Essa é a intuição que Gramsci nos
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oferece sobre a natureza da vida política, a partir da qual podemos tirar um fio
condutor.
Quero dizer o que penso que sejam “as lições de Gramsci”, em primeiro lugar
em relação ao thatcherismo e ao projeto da Nova Direita; e, em segundo, em
termos da crise da esquerda. Aqui, apresento só as linhas mais gerais do que
entendo por “thatcherismo”. O que estou tentando discutir é a abertura, a
partir de meados dos anos 70, de um novo projeto na Direita. Por “projeto”,
não quero dizer (como nos alerta Gramsci) algum tipo de conspiração. Quando
falo de “projeto”, estou falando da construção de uma nova agenda na política
britânica. O objetivo da senhora Thatcher sempre foi não meramente algum
tipo de reversão eleitoral de curta duração, mas um longo período histórico de
exercício do poder. Essa ocupação do poder pela direita não tinha em vista
apenas o comando do aparelho de Estado. Na verdade, o projeto foi
organizado, nos estágios iniciais, em oposição ao Estado, que o ‘thatcherista’
via como profundamente corrompido pelo bem-estar social e pelo
keynesianismo, que, por sua vez, teriam ajudado a ´corromper´ o povo
britânico. O thatcherismo ganhou vida no confronto contra o velho estado de
bem-estar keynesiano, contra o ‘estatismo’ social-democrata, o qual, na visão
do thatcherismo, havia dominado os anos 60. O projeto tatcherista foi
transformar o Estado para assim reestruturar a sociedade: desorganizar,
deslocar, desfazer toda a formação política do pós-guerra; reverter a cultura
política que havia formado a base do pacto – o compromisso histórico entre
trabalho e capital – vigente a partir de 1945.
Essa reversão aspirava a ser muito profunda: uma reversão das regras básicas
do consenso político, das alianças sociais que serviam de substrato àquele
acordo e dos valores que lhe haviam garantido popularidade. Não estou
falando de atitudes e valores das pessoas que escrevem livros. Falo das ideias
das pessoas comuns que simplesmente, na vida ordinária cotidiana, têm de
calcular como sobreviver, como cuidar da família e dos dependentes mais
próximos.
Refiro-me a isso quando digo que o thatcherismo tinha como objetivo uma
reversão no senso comum ordinário. O senso comum do povo inglês havia sido
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Nada mais crucial, a esse respeito, que a ideia de Gramsci de que cada crise é
também um momento de reconstrução; que não há destruição que não seja
também reconstrução; que, historicamente, nada é desmantelado sem o
correspondente esforço para pôr outra coisa ‘nova’ no lugar: que toda e
qualquer forma de poder não apenas exclui, mas também produz alguma
coisa.
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Como dar conta de uma ideologia que não tem coerência, que fala num dos
nossos ouvidos com a voz do homem de negócios utilitarista, e no outro ouvido
com a voz do respeitável homem burguês patriarca? Como esses dois
repertórios operam juntos? Estamos todos tomados de perplexidade frente à
natureza contraditória do thatcherismo. Do nosso jeito intelectual, pensamos
que o mundo entrará em colapso por causa de uma contradição lógica: essa é a
ilusão do intelectual – que a ideologia teria de ser coerente, cada pedacinho
dela absolutamente em harmonia com o todo, como um ensaio filosófico.
Quando, na verdade, todo o propósito do que Gramsci chamava de uma
“ideologia orgânica” (quer dizer, historicamente efetiva) é que ela articula
numa configuração diferentes sujeitos, diferentes identidades, diferentes
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Vivemos às voltas com o projeto tatcherista, não desde 1983 ou 1979, como
reza a doutrina oficial, mas desde 1975. 1975 é o climatério da política
britânica. Primeiro, a disparada do preço do petróleo. Segundo, o início da
crise capitalista. Terceiro, a transformação do moderno conservadorismo,
pela ascensão da liderança thatcherista. O momento da virada é quando, como
dizia Gramsci, fatores nacionais e internacionais se alinham. Não começou
com a vitória eleitoral da senhora Thatcher, porque política não é uma questão
apenas eleitoral. Aterrissou, na verdade, em 1975, como um soco direto no
peito político de Callaghan [o primeiro ministro trabalhista à época]. Partiu ao
meio a já rachada muleta de Callaghan. Uma das metades permanece
avuncular, paternalista, social-conservadora. A outra metade já dança uma
outra melodia.
Uma das vozes de sereia, cantando a nova canção nos ouvidos de Callaghan, é
seu genro, Peter Jay, um dos arquitetos do monetarismo, em sua função de
missionário como editor de economia do The Times. Callaghan viu primeiro as
novas forças de mercado, o novo consumidor soberano, descendo da colina
como fuzileiros navais. E, dando ouvido a essas intimações do futuro, o velho
abriu a boca. E o que ele disse? Que o beijo tinha que acabar. Fim de jogo. A
social-democracia já era. O estado de bem-estar se foi pra sempre. Não temos
mais dinheiro para isso. A conta não fecha. Estamos pagando demais a nós
mesmos, nos dando empregos fajutos em demasia, passando tempo demais só
curtindo no balanço.
Dá para ver a psique inglesa colapsando sob o peso de tantos prazeres ilícitos
em que se refestelara – a permissividade, o consumo, as coisas boas. Tudo
falso, só espuma e purpurina. Os árabes explodiram tudo aquilo. Agora, temos
de pensar de outro modo. Thatcher fala dessa ‘nova rota’. E fala também de
outra coisa, profunda na psique britânica: o masoquismo. A necessidade que
os ingleses parecem ter de levar uma palmada da babá e ser mandado para a
cama sem o doce. O cálculo de que cada bom verão tem de ser pago por 20
invernos terríveis. O espírito de Dunkirk – quanto pior nossa situação, melhor
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Nos Cadernos do Cárcere, Gramsci nos alerta para o fato de que uma crise não
é um evento não mediado, surgido do nada, mas um processo. Pode durar
muito tempo, e pode ser resolvida de maneiras muito diferentes: por
restauração, por reconstrução ou por transformismo passivo. Às vezes mais
estáveis, às vezes mais instáveis, num sentido profundo, as instituições
britânicas, a economia britânica, a sociedade e a cultura britânica estão em
profunda crise social durante praticamente todo o século 20.
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Gramsci nos alerta que crises orgânicas dessa ordem surgem não apenas no
domínio político e em áreas tradicionais da vida industrial e econômica, não
simplesmente na luta de classes, no sentido antigo; mas em uma ampla séries
de polêmicas e debates sobre questões fundamentais de ordem sexual, moral e
intelectual, numa crise das relações de representação política e dos partidos –
em toda uma enorme lista de questões que, a primeira vista, não parecem de
modo algum articuladas necessariamente com a política em sentido estrito. É
o que Gramsci chama de crise de autoridade, que nada é se não a crise da
hegemonia, ou crise geral do Estado.
Assim, uma das coisas mais importantes que Gramsci fez por nós foi dar-nos
uma concepção profundamente expandida da própria política, e, assim,
também do poder e da autoridade. Não se pode, depois de Gramsci, regredir
ao velho sentido estreito da política eleitoral ou política partidária, nem ao que
se entendia como a ocupação do poder do Estado, como constituindo o
fundamento da política moderna em si. Gramsci compreende que a política é
um campo muitíssimo mais vasto; e que, especialmente em sociedades como
essas que conhecemos, os pontos nos quais se constitui o poder serão sempre
os mais variados. Estamos vivendo o momento da máxima proliferação dos
locais de poder e de antagonismo na sociedade moderna. A transição para essa
nova fase, para Gramsci, é decisiva. Coloca diretamente na agenda política as
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Nada disso significa, como sugerem algumas interpretações, que assim sendo
o Estado já não interessa mais. O Estado é sem dúvida absolutamente central
para articular as diferentes áreas de contestação, os diferentes pontos de
antagonismo, num regime de governo. O momento quando se obtém
suficiente poder para organizar um projeto político central é decisivo, porque
então se pode usar o Estado para planejar, apressar, incitar, solicitar e punir,
para dar forma comum a vários sítios de poder e consentimento em um único
regime. Esse é o momento do “populismo autoritário” – com o thatcherismo
simultaneamente ‘por cima’ (no Estado) e ‘por baixo’ (lá no chão, com a
pessoas).
Nem mesmo nesse momento a senhora Thatcher comete o erro de supor que o
Estado capitalista teria um caráter político único e unificado. Está plenamente
consciente de que, por mais que o Estado capitalista seja articulado para
assegurar condições históricas, de longo prazo, para a acumulação de capital e
a lucratividade, e ainda que seja o guardião de determinado tipo de civilização
e cultura burguesa e patriarcal, o Estado capitalista é, e continuará a ser, arena
de contestação e disputa.
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Gramsci já tinha os olhos postos num mundo que ia se tornando mais e mais
complexo. Viu a pluralização das modernas identidades culturais, que emergia
entre as linhas de desenvolvimento histórico desigual. E propôs a pergunta
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Falei até aqui sobre Gramsci à luz do thatcherismo: usando Gramsci para
compreender a natureza e a profundidade do desafio que o thatcherismo e a
nova Direita impõem à esquerda, à vida e à política dos britânicos. Mas, ao
mesmo tempo, inevitavelmente, falei também sobre a esquerda.
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Já deu para perceber que não estou falando sobre se o Partido Trabalhista fez
bem nessa ou naquela política, numa ou noutra questão. Estou falando sobre a
concepção total de política: a capacidade para capturar em nossa imaginação
política as vastas escolhas históricas que estão aí, hoje, diante do povo. Estou
falando de novas concepções da própria nação: ou será que você ainda acredita
que a Grã-Bretanha poderia avançar para o século 21, com aquela concepção
de ser ‘inglês’ constituída integralmente da longa e desastrosa marcha
imperialista da Grã-Bretanha sobre o planeta? Se você ainda pensa assim,
então você não entendeu a profunda transformação cultural indispensável
para refazer o que é ser “inglês”. E esse tipo de transformação cultural é,
precisamente, o que o socialismo significa hoje.
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Para eles, com o lento, mas firme, declínio do socialismo, nascerá uma nova
era; e eles, esses ‘novos’ homens, literalmente ‘de bens’, possessivos, estarão
no comando. Essa gente sonha com alcançar poder cultural real. E o Partido
Trabalhista, com sua conversa de “não sacuda o bote”, “não provoque”,
“vamos melhorar nas pesquisas”, na verdade, só têm diante de si uma escolha:
ou se torna historicamente irrelevante ou se põe a esboçar uma forma
inteiramente nova de civilização.
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Não digo só “socialismo”, sob o risco da palavra ser tão familiar para você a
ponto que pense que estou falando apenas de colocar o velho programa, que
todos conhecemos, de volta nos trilhos. Falo aqui sobre uma renovação de
todo o projeto socialista, no contexto da moderna vida social e cultural. Falo
de alterar as relações de forças – não para que a Utopia seja instalada e tome
posse na manhã seguinte, depois das eleições gerais, mas para que as
tendências comecem a se mover na direção oposta. Quem precisa de um
paraíso socialista onde todo mundo concorde com todo mundo, onde todos
sejam exatamente o mesmo? Deus nos livre! Falo de um lugar onde possamos
finalmente começar a discussão histórica sobre que novo tipo de civilização
que teremos de criar. Essa é a questão. Será possível que as imensas novas
capacidades materiais, culturais e tecnológicas, que ultrapassam em muito até
os sonhos mais visionários de Marx, e que temos hoje realmente já nas mãos,
serão todas elas politicamente hegemonizadas pela modernização reacionária
do thatcherismo? Ou podemos tomar todos esses meios de produzir história,
de produzir novos sujeitos humanos, e lançá-los na direção de uma nova
cultura? Essa é a escolha que está diante da esquerda.
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