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LINGUAGEM DA PAIXÃO: INTELECTUAIS E POLÍTICAS

artigo/dossiê
CULTURAIS NO BRASIL

THE LANGUAGE OF THE PASSION: INTELLECTUALS AND


CULTURAL POLICIES IN BRAZIL

Mariella Pitombo*
Frederico Barbosa**

Introdução ressaltando suas debilidades, divisões e in-


capacidades para responder a certos pro-
O conflito em torno de palavras obede- blemas.
ce a regras diferenciadas no campo políti- O campo da análise políticas culturais
co e no campo da controvérsia científica. tem se caracterizado pelo uso de perspecti-
A pertinência do saber e da compreensão vas normativas e pela adesão a campos de
da realidade social típica da cientificidade valores alinhados internamente a posições
cede lugar à conquista do poder no espa- homólogas externamente. Em geral, as de-
ço político. Nesse último, o uso da palavra cisões a respeito dos sentidos da interpre-
intenciona o estabelecimento de coalizões tação, dos resultados e dos valores das po-
e alianças, marginalizando os adversários, líticas gerais ou específicas já foram feitas

*
Professora Adjunta do Centro de Cultura, Linguagens e Tecnologias Aplicadas da Universidade Federal
do Recôncavo da Bahia UFRB (Santo Amaro/BA/Brasil). Doutora em Ciências Sociais pela UFBA. E-mail:
mariella.pitombo@gmail.com
**
Pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA – e professor do Centro Universitário
de Brasília – UniCeub – (Brasília/DF/Brasil). Doutor em Sociologia pela UnB. E-mail: frederico.barbosa@
ipea.gov.br

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antes do jogo analítico-empírico começar. ambiente democrático e de pesquisa.
Nesse espaço reflexivo, a crítica e a proble- As pesquisas sobre políticas culturais
matização nem sempre é bem-vinda, pois no Brasil têm conhecido um crescimento
significaria, talvez, a fragilização do con- recente como objeto de investigação. Um
junto de apostas e posições de ação. grupo de pesquisadores, nucleados em tor-
Entretanto, existem práticas interpreta- no da Universidade Federal da Bahia, que
tivas que colocam para as ciências, a nosso denominaremos aqui de Rede Cult, tem
ver, questões mais complexas, quais sejam, capitaneado a produção de conhecimento
as perspectivas interpretativas que têm sen- sobre a temática. Analisar as dinâmicas de
tido laudatório, normativo e particularista funcionamento dessa rede e mais especifi-
(com adesão linear e não reflexiva a con- camente suas estratégias, princípios e valo-
figurações valorativas descontextualizadas res que orientam sua produção simbólica é
das relações sociais concretas) e que para um dos propósitos deste trabalho.
se manter com essas características faz ge-
neralização que carecem de base empírica, 1. Ponto de partida
oposição ideológica e subsunção simplista
de valores aos fatos. Para contornar es- A metáfora pressupõe um excedente de
sas características dos usos específicos da significados em relação ao que está sendo
linguagem interpretativa, dos seus usos enunciado1. Esse excedente depende de va-
políticos, normativos e valorativos, o que riáveis de contexto, mas também de regras
denominaremos aqui “usos metafóricos da culturais das comunidades de fala. A redu-
linguagem”, é possível imaginar e mesmo, ção da metáfora a uma “rede” de enuncia-
exercitar, certo uso controlado das teorias, dos descritivos, pretensão dos métodos nas
de conjuntos de assertivas formais, de mo- Ciências Sociais, nem sempre é possível.
delos ou tipologias, que têm como objetivo Entretanto, na análise de políticas públicas,
a descrição ou interpretação empírica. Ou no mínimo, tem-se de apontar estratégias
seja, as assertivas se orientam para inter- para a descrição da realidade dos campos
pretar o mundo como ele é, mesmo que se sociais, das interações que dão sentido aos
reconheçam os excedentes de significados processos e desempenhos da ação. A des-
de qualquer linguagem, inclusive a cientí- crição sobre “o que se diz” dos repertórios
fica experimental ou descritiva (narrativa narrativos, representações, imagens e cren-
referencial) (PASSERON, 1995). ças e de como se relacionam faz parte do
É difícil explicar ao certo os porquês jogo interpretativo, mas estes elementos
daquelas características interpretativas das não estão soltos e nem são autônomos em
pesquisas e das avaliações no campo das relação às materialidades (recursos com pe-
políticas culturais, ou seja, da normativi- sos específicos) das relações estruturadas e
dade e unilateralidade, já que as críticas e de suas necessidades internas.
as visões alternativas a respeito do mesmo A escolha do raciocínio sociológico pe-
objeto são vitais para o aperfeiçoamento las interpretações de entremeio ou pelas
das ações e deveriam ser bem-vindas ao redes narrativas, híbridas por definição, ou

1. Para as complexas relações entre metáfora e linguagem, ver Searle (1995).

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seja, em que os sistemas de assertivas ou Em primeiro lugar, a ideia da interpreta-
enunciados são, a uma só vez, descritivos ção como pertencente ao rol das narrativas
e construtores da realidade, performativos, híbridas aponta para a performatividade da
não procura evitar uma série de perguntas linguagem. A descrição e a metáfora esta-
delicadas – o que de fato aconteceu? Quais riam no mesmo plano. A descrição e a nor-
os sentidos? Ao evitá-las, as análises socio- matividade seriam faces da mesma moeda.
lógicas assumem posições construtivistas As interpretações que atores fazem de si e
relativamente ingênuas, próximas àquelas de suas práticas devem ser descritas nas
opiniões de senso comum que deseja criti- suas estruturas, conexões, relações e inten-
car. Ou simplesmente ocupam as interpre- sidades empíricas. Entretanto, algo aconte-
tações com metáforas, valores e analogias ce fora das narrativas, ou seja, as estruturas
selvagens, como se disse, laudatórias, nor- objetivas, interações estruturadas e as redes
mativas e particularistas. de comunicação mais ou menos eficientes
De um lado, é possível apontar afasta- para coordenar as ações entre atores.
mentos absolutos entre narrativas e práti- Assim, a interpretação sociológica deve
cas, assim, falar é sempre afirmar posições ser ajustada ao mundo empírico e a ação
políticas e sociais, justificando-as, fazer o deve levar a sério, tanto quanto a estru-
jogo das performances, sem preocupações tura ou estruturas das narrativas e repre-
com a explicação das suas razões e funda- sentações ou os contextos objetivos2. É um
mentos sociológicos. Já que a objetividade grande desafio entender as relações entre
não é possível, aderir a posições específicas a produção simbólica dos pesquisadores e
torna-se o jogo. o complexo de relações fixadas pelos seus
Ou, por outro lado, mais diretamente, sistemas de enunciados fixos (laudatórios,
sem considerar que as formas de positivis- normativos e valorativos) com as intenções
mo científico já imaginaram essa possibi- políticas. Na verdade, enfrentar o desafio é
lidade sem sucesso, pressupor a aderência estabelecer um sistema de hipóteses sobre
completa entre narrativa e a realidade. as relações entre a prática de interpreta-
O raciocínio sociológico é, já menciona- ção das Ciências Sociais e suas adesões a
do acima, um raciocínio de entremeio, que valores sociais mais amplos. Há razões so-
pressupõe a construção teoricamente con- ciológicas e sociais para que essas relações
trolada do seu objeto, mas também o diálo- sejam densas, para o caso brasileiro3.
go com os processos sociais complexos de Aqui, nossas escolhas também assumem
construção de significados antagônicos que posição. A descrição das estruturas das in-
constituem o próprio objeto que precisa ser terpretações e narrativas científicas ou, no
explicado. limite, políticas, permitem certa liberdade

2. As teorias sociológicas dão diferentes ênfases nas interações intersubjetivas, nas estruturas das relações
ou nas representações ou valores, ou seja, em aspectos fenomenológicos ou estruturais da experiência
social. Em qualquer caso, a experiência tem estruturas relacionadas à formação, dissolução e adesão a
grupos significativos e que possibilitam a experiência social.
3. Peirano (1991) interpreta a presença de representações do cientista social no Brasil como uma espécie
de intelectual engajado. Ver também Pecaut (1990) e Miceli (2001).

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para pensar a ação e o que está em jogo na e sua construção teórica controlada. A pro-
escolha pelo uso mais intensivo de certos dução dominante pouco aciona as críticas
recursos e estratégia no espaço estruturado das Ciências Sociais sobre a institucionali-
das diferentes e estruturadas relações so- dade que organiza e instrumentaliza a ação
ciais. Saber quem se relaciona com quem, do Estado, não discute a tensão entre ação
seus objetivos específicos e as orientações e valores ou tampouco se debruça sobre
gerais permitiria afinar os instrumentos de a disputa entre diversas interpretações e
coordenação, diálogo e a otimização do uso concepções sobre as políticas culturais. Em
dos recursos disponíveis. geral, os esquemas interpretativos desen-
Portanto, assumimos a diferença entre as volvem-se em torno de oposições abstratas
crenças, que representam as coisas como elas como, por exemplo, entre governos anta-
são, sendo passíveis de serem verdadeiras gônicos, republicanismo e neoliberalismo,
ou falsas, os desejos ou a abordagem nor- Estado e mercado, democracia e autorita-
mativa, que assume uma representação das rismo, desigualdade e igualdade e tantas
coisas como gostaríamos que elas fossem ou outras categorias que constroem interpre-
tencionamos fazer que elas sejam. Daí as ne- tações. Todas estas categorias são abertas
cessidades heurísticas de se levar a sério as semanticamente e objeto de controvérsias.
crenças e as redes narrativas dos atores e do Sociologicamente, seus sentidos referem-se
próprio cientista social, que carecem, no pro- a usos específicos e contextuais.
cesso interpretativo, de serem descritas em- Do nosso ponto de vista, a administra-
piricamente ou controladas reflexivamente. ção pública – ou o Estado de forma geral
Entretanto, a interpretação, as palavras – são conjuntos de atividades e ações que
e os enunciados se ajustam ao mundo num têm como objetivo a configuração de con-
duplo sentido, são mais ou menos adequados dições materiais e institucionais para rea-
na explicação das estruturas externas e de- lização de finalidades políticas e sociais.
vem interpretar os padrões de relações sociais Diferentes instrumentos podem ser criados
subjetivos. Assim, as interpretações socioló- e mobilizados, sendo que o financiamento
gicas não devem ser reduzidas a referentes é apenas uma das múltiplas dimensões dos
fixos, a assertivas fixas, a valores, categorias dispositivos de políticas públicas. A teia de
pré-construídas, a ideologias ou a normas, normas, práticas, agendas, estruturas ins-
mas devem ser consideradas no seu processo titucionais e conceituais viabilizam e dão
de vai-e-vem entre assertivas e empiria. significado às despesas públicas e seu perfil
alocativo retrata disputas e os instrumentos
2. Os Estudos sobre políticas culturais: escolhidos para organizar as ações. Há um
considerações à luz da sociologia da ação grave equívoco na simplificação da admi-
pública nistração pública a elementos técnicos e de
gestão.
No caso dos estudos na área das polí- A mesma simplificação é corrente a res-
ticas culturais, desenvolvidos recentemente peito do Estado. O Estado e a administração
no Brasil, pode-se dizer que são caracte- são configurados por conjuntos de relações
rizados pela tradição de ausência de me- sociais que mantêm relações entre si, cons-
todologias que levem a sério as relações tituindo-se em redes complexas e contradi-
empíricas, a estrutura relacional do objeto tórias de influências e determinações que

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incidem na organização dos atores, suas O papel dos intelectuais é central no
práticas, orientações normativas e prefe- processo de produção de significados, mas
rências, nas instituições, processos, meto- talvez não haja mais lugar para o intelec-
dologias, ideias, etc. tual tradicional e para o intelectual total. O
A leitura que fazemos dos trabalhos so- lugar da mediação ainda está aberto, mas
bre políticas culturais leva-nos ao seguin- tratar a política sem considerar o cenário
te argumento: é necessário reconfigurar e institucional é tratar de outro fenômeno,
orientar as pesquisas para que sejam feitas mais simplificado, que é a luta ideológica
a partir de métodos, teorias e levantamen- abstrata, sem contexto empírico concreto,
tos empíricos capazes de fornecer descri- no qual a opinião geral e principiológica é
ções que considerem as complexidades que vista com bons olhos. Fácil nesse contexto
o assunto exige. Resolver problemas signi- demonizar ou santificar o Estado, idealizar
fica reconhecer-lhes a complexidade. Não ou desconstruir forças políticas específicas.
bastam entrevistas ou levantamentos inge- Todavia, como já se afirmou, a sociolo-
nuamente passíveis de verificar hipóteses gia da ação pública ou a análise de políticas
estrategicamente formuladas, ou o postula- públicas implica em exatamente considerar
do e descrição dos quadros de proposições as densas relações entre política, adminis-
que constituem o desenho e justificativa tração e ação social como parte de relações
das políticas, embora esse passo inicial seja simbólicas estruturadas. Se o papel dos me-
fundamental. diadores (intelectuais) é central, também
Consideramos que a complexidade dos devem ser contextualizados.
campos de ação pública exige um trata-
mento mais adequado para as relações en- 3. Os intelectuais como mediadores
tre racionalidade técnica e política, para as
regras do jogo orçamentário (o que implica Para seguir a reflexão, antes apontamos
em entendê-lo nos seus aspectos macro, para as características que a pesquisa está
mas também nos conteúdos programáticos), ganhando nas Ciências Sociais empíricas.
para as características das burocracias e ca- Para tal, relacionaremos a reflexão com
pacidades estatais, para a dimensão simbó- autores que estabilizaram pesquisas e refle-
lica das relações sociais internas, concretas xões, em linhas gerais, em torno da crítica
e empíricas entre Estado e sociedade. Essa do intelectual tradicional, mesmo que, em
complexidade põe em xeque a maneira tra- alguns casos, mantenham nas suas refle-
dicional de se pensar a política e a ação. xões algo do estilo normativo-abstrato da-
quele tipo-ideal.
2.1. Estudos sobre políticas culturais: um O quadro 1 apresenta os autores que uti-
campo politizado lizamos na construção da nossa reflexão.
Não exporemos a concepção de cada um,
Deslocando a ênfase do espaço da pes- não temos a pretensão da exegese, mas a de
quisa empírica para os estudos como espa- dizer que aqueles autores preparam terreno
ço de mediação, reflexão e formação crí- para uma concepção pragmática e situada
ticas, também deslocamos ligeiramente os da linguagem e da análise social. Dessa
sentidos passíveis de serem atribuídos aos maneira, as Ciências S|ociais adquirem di-
estudos elaborados pela Rede Cult. ferentes direções, mas também relações éti-

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cas e posicionais em relação às diferentes reflexão de Michel Burawoy (2009, p.233-
ideologias, instituições e interesses sociais. 244; 2009, p. 219-230) a respeito do inte-
É de se dizer que, depois, voltaremos lectual público, e de Edward Said (2005),
nossa atenção para dois autores, Pierre sobre as representações do intelectual.
Bourdieu e Antônio Gramsci, mediados pela

Quadro 1 - Paradigmas sobre os intelectuais


Autor Conceitos centrais Questões teóricas Objetivos normativos
Bourdieu Espaço social, campos, Criação da crença, Ampliação do campo das liberda-
habitus, hexis, capital lógica prática, legi- des na determinação, desconstru-
cultural, distinção, teo- timação de posições ção dos dispositivos de imposição
ria da prática, violência sociais, lutas por clas- do arbitrário social;
simbólica; luta simbó- sificações;
lica;
Gramsci Intelectual orgânico, me- Função social e políti- Formação de ideologias e blocos
diação ideológica, bloco ca dos intelectuais da históricos;
histórico, hegemonia, produção simbólica;
dominação; Intelectual como mediador e como
produtor de argumentos posicio-
nados social e politicamente;
Foucault Episteme, formação Processos de subjetiva- Resistência estratégica no campo
discursiva, dispositivos, ção da objetividade; do saberes e poderes;
disciplina, microfísica
dos poderes (arquitetura
das relações entre co-
nhecimento, poderes e
dos corpos);
Mannheim Intelligentsia autônoma; Condições sociais do Conhecimento universitário como
conhecimento; Au- conhecimento prático específico
tonomia relativa dos (resolução de problema se há pla-
intelectuais em relação nejamento);
aos campos sociais;
Edward Said Intelectual como crí- Crítica cultural das Resistência aos discursos e inter-
tico dos valores e das relações de poder. pretações dominantes;
dissimetrias de poder,
relações de dominação e Alinhamento com os excluídos
alienação. no quadro da reversibilidade da
reflexão, ou seja, da crítica e da
autocrítica em espaço público.

(Elaboração dos autores)

Para Gramsci, a hegemonia é a orga- lectuais aos quais se ligam. Os intelectuais


nização social do consentimento, cultural, orgânicos elaboram o bom senso político a
política e economicamente, e é contingente partir do senso comum das classes sociais. O
e situacional. Pode ser estruturada ou desa- processo de construção de representações se
fiada pelos intelectuais e pelas forças inte- dá em contato e em relação com as classes,

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frações de classe, grupos e camadas sociais. política tem usos diferenciados para os dife-
Os intelectuais tradicionais são desen- rentes grupos e classes por elas interpeladas.
raizados, elaboram suas narrativas e aná- As relações entre visão de mundo, ideologia
lises a partir de ideias gerais de justiça, de e representações políticas são complexas e,
objetivos políticos e morais. O mais que os mesmo que a concepção de Gramsci a res-
intelectuais tradicionais poderiam fazer é peito da relação entre esses elementos e pro-
desmistificar a dominação, pela contrapo- jetos políticos tenha algo de verdadeiro, não
sição entre ideias gerais e fatos sociais e dá conta das infinitas negociações de senti-
políticos, tendo suas interpretações um al- do entre os atores e entre eles e o comporta-
cance limitado pelas dificuldades técnicas mento dos fenômenos econômicos e sociais.
inerentes à sua forma de construção de co- A ambiguidade e a diversidade de certas po-
nhecimento, especialmente pela distância sições unidas por princípios e ideias gerais
em relação ao objeto e problemas sociais semelhantes têm como contraparte a debili-
que são objeto da reflexão. dade e inconsistência tanto analítica quan-
Entre os vários conceitos, o de hege- to empírica, o que une as interpretações é
monia é especialmente importante para exatamente um conjunto de proposições e
Gramsci. Quanto mais sólida for a hegemo- valores ligados a classes específicas.
nia política e cultural, ou seja, a capacidade Para Pierre Bourdieu (1987), os in-
de convencimento da legitimidade e univer- telectuais têm interesses na construção
salidade de um conjunto de propostas, de simbólica e estes se referem às lutas pelo
uma certa visão de mundo como de valida- monopólio da imposição de formas de re-
de universal, tanto mais sólido o papel dos presentação e crença a respeito dos campos
intelectuais e mais sedimentado o domínio sociais. A violência simbólica para Bour-
de umas classes ou grupos sobre outras. O dieu pressupõe a dialética entre desconhe-
intelectual é mediador entre forças, sendo cimento, virtualmente intransponível, e
capaz de acomodar contradições e objetivos reconhecimento. Aqui os controles críticos
sociais diferentes, mesmo que dentro de li- são metodológicos e sociológicos, isto é,
mites claros, ou seja, no quadro de projetos apenas a crítica lógica, metodológica, teó-
políticos específicos. Os avanços econômi- rica e empírica oferece conhecimentos váli-
cos, científicos, tecnológicos e institucio- dos. E esta é realizada em condições sociais
nais devem ter sentidos e estes consolidam específicas, isto é, nos campos científicos.
e criam os atores que os apoiam ou criti- Na nossa interpretação de Bourdieu, a
cam. Dessa maneira, a produção simbólica ilusão oferecida pelo intelectual orgânico
é chamada a justificar projetos ou coalizões não é apenas a de um antagonista pouco
democráticas, liberais, antidemocráticas, simpático às formulações gramscianas, mas
antipopulares, conservadoras, autoritárias, refere-se à falta de controle metódico da
modernizadoras, capitalistas, reformistas, construção de conhecimento e ao reconhe-
nacional-desenvolvimentistas, socialistas cimento dos efeitos de teoria e dos efeitos
etc., sem que os limites entre as configu- performáticos do discurso. Ou seja, refe-
rações ideológicas e os seus ajustamentos rem-se à dificuldade de retirar da análise os
com as configurações de forças entre os elementos avaliativos e normativos cons-
grupos sejam frequentemente tematizadas. titutivos dos discursos e elaborar de forma
A mesma representação de mundo e de crítica a respeito da relação por demais ín-

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tima do sociólogo (cientistas sociais) com social e a respeito das representações dis-
as posições e representações sociais par- poníveis e mobilizadas, com a vantagem de
ticulares. Ao contrário de Mannheim, que não objetivar - ou raramente o fazer - sua
pressupõe a autonomia do intelectual em própria posição4. A segunda tentação é a de
relação às condições sociais, o “intelectual universalizar posições particulares. Movi-
flutuante”, Bourdieu indica que a própria mentar visões de mundo específicas no pro-
ideia de autonomia implica no investimen- cesso interpretativo, ajustando argumentos
to social numa espécie de libido sciendi, um e justificativas sistemáticas, defensivas de
interesse no conhecimento distanciado, ra- visões particulares, não é também algo in-
cional, dos jogos político-sociais. comum no jogo político da ciência.
A ciência social, então, teria como pres- As Ciências Sociais podem ser acusadas
suposição a construção teórica e empirica- de aderir a posições, ideias e explicações par-
mente regulada do objeto, mas também do ciais dos atores. Ao contrário da economia,
controle reflexivo das condicionantes da ciência altamente formalizada e deshistori-
posição social na formulação de conjunto de cizada5, normativa e aplicada por definição,
assertivas teóricas e empíricas. A ciência não capaz de responder a demandas políticas sem
se mantém não normativa o tempo todo, na aparentar a adesão a políticas particulares, a
verdade, a ciência é reflexiva, e é exatamen- sociologia pode ser acusada de comprometi-
te esta característica que permite um vai e mento com posições específicas por ter que
vem crítico entre as assertivas normativa do fazer uso da linguagem natural, altamente
senso comum (e da doxa) e as da ciência. indexada aos contextos sociais e, portanto,
usada pelos atores (LAHIRE, 2008).
3.1 Preparando o campo para pensar a me- Analisar, classificar, sintetizar, usar prin-
diação dos intelectuais e as Ciências Sociais cípios, ideias gerais e elaborar tipos são pro-
cedimentos usuais e atrativos no processo
interpretativo, cuja finalidade última é a reso-
A partir dessas apropriações rápidas a res-
lução de problemas públicos (CASTEL, 2006),
peito da sociologia bourdieusiana, seguimos
descrição densa das práticas sociais (LAHIRE,
nossas reflexões a respeito da argumenta-
2008) ou solução de quebra-cabeças teóricos
ção sociológica. Para nós, o sociólogo con-
e práticos propostos pela teoria sociológica.
vive com tentações nada triviais. A primeira
O trabalho das ciências sociais é, em
tentação, que não chega a se constituir em
geral, voltado para a compreensão, escla-
pecado, é colocar-se em uma posição acima
recimento a respeito dos objetivos e senti-
ou distante do conjunto de posições, como
dos da ação, mas também debater e investir
um geometral, capaz de objetivar todos os
energia na reflexão a respeito da adequa-
outros atores, o que lhe permitiria exercitar
ção de orientações alternativas para a ação,
um sobrevoo avaliativo sobre todo o campo

4. Sobre o raciocínio sociológico e seu espaço de assertividade em contraste com ciências formais, ver
Passeron (1995). A respeito da epistemologia das ciências naturais, ver Bachelard (1996). A respeito das
diferentes concepções sobre as relações entre política e sociologia, ver Lahire (2006).
5. Para uma abordagem menos reducionista do pensamento econômico, consultar Nasar, Silvya (2012).
Para o tratamento da economia como argumentação, ver Jose Marcio Rego (1996).

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mesmo que estas – disposição para agir – e reflexão nas Ciências Sociais, neste senti-
aquelas – disposição para compreender - do, é dada pela qualidade da conexão en-
impliquem em interesses muito diversos6. tre objetivos substantivos e meios, pela sua
Em todo o caso, o desafio de qualquer aná- justificação argumentativa e empírica, mas,
lise em ciências é manter-se descritiva o especialmente, pelo uso de processo de le-
tempo necessário, fazendo uso controlado gitimação oferecido por critérios racionais.
de assertivas teóricas no processo de inter- Em geral, o sociólogo procura por fatos
pretação dos fatos históricos. recorrentes, conexões causais, como su-
Se aquelas tentações aludidas podem ser cessão regular de eventos que se seguem
consideradas sérias, e o são, levantam ques- uns aos outros de forma previsível, quando
tões importantes sobre a interpretação socio- não estabiliza seu objeto em classificações
lógica. Entre a adesão a posições sem peso ou tipos que simplificam as relações reais
social, por um lado, pressupondo um campo como recurso heurístico (a exemplo de con-
sociológico autonomizado, universitário e ceitos como classe, grupo de status, buro-
científico e, por outro, lastreado em ideias cracia, campo, comunidade etc.) e que em
e valores não discutidos (direitos humanos, muitos casos passam a funcionar como en-
direitos sociais, justiça, igualdade, república, teléquias, ou seja, categorias ou conceitos
democracia, desenvolvimento etc.), é neces- que se bastam a si mesmos. Em outros ca-
sário dizer que há um interesse na autono- sos, os sociólogos constroem ou descrevem
mia da reflexão sociológica e na afirmação relações ou estruturas objetivas.
de seus métodos e raciocínios específicos. Em todo o caso, as conjunturas, aconte-
A crítica sociológica produz efeitos exa- cimentos e elementos subjetivos são toma-
tamente pelo fato de se pensar autônoma dos como epifenômenos das relações estru-
(embora o seja apenas de forma relativa) e turadas. Se o problema da objetivação das
críticamente, e por permitir o desencanta- relações de força que envolve as produções
mento, a compreensão e a objetivação das simbólicas e discursivas já é um problema
relações de poder simbólico. Nesse caso, a metodológico importante, o que não se dirá
questão não é apenas o de estabelecer con- para a análise de conjunturas, situações e
troles metodológicos e teóricos das asserti- interações quando os atores procuram esta-
vas sociológicas, mas movimentar o inte- bilizar interpretações, mapear possibilidades
resse no desinteresse, ou seja, estabelecer de alianças e oposições, bem como contro-
uma postura reflexiva e sistemática a res- lar os significados mobilizados localmente?
peito das condições particulares da enun- Essas questões nos levam para os limites
ciação a respeito do mundo social. da interpretação sociológica (lembremo-nos
No que se refere à adesão a posições do vai-e-vem dialético entre raciocínio na-
particulares, pode-se dizer que se realiza tural [narrativa, interpretação, discurso, aqui
todo um trabalho de universalização do não importam as distinções]) e raciocínio
particular, pressupondo que a qualidade da formal. Nos termos apresentados, voltam as

6. As C|iências Sociais são ciências históricas no sentido de que suas assertivas são indexadas a contextos
precisos e que a transposição daquele conjunto de assertivas para outros contextos implica em desliza-
mentos semânticos e em outros significados (ver Bourdieu e Wacquat, 2008).

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questões relacionadas ao uso da linguagem os critérios de vigência são a capacidade de
natural nas Ciências Sociais. O processo in- resolver problemas dentro de um quadro es-
terpretativo implica a produção de narrati- tável de teorias aplicadas (paradigmas).
vas que mobilizam usos descritivos ou re- Para Bourdieu, o cientista social encon-
ferenciais, usos metafóricos, normativos, tra nos campos autônomos os espaços de
performativos etc. da linguagem, mas tam- críticas cruzadas e controle coletivo das
bém na formação de conjuntos de assertivas proposições resultados de pesquisa. Vê um
teóricas, capazes de regular a interpretação. diferencial entre ciência e senso comum,
embora, reversamente, a ciência constitua
3.2. Definindo o intelectual como mediador linguagens e conceitos para reelaboração
do senso cotidiano. A ideia de corporati-
Para Gramsci, há uma conexão estreita vismo do universal que conhecimentos de
entre intelectual e jogos sociais. Segundo pesquisa sejam controlados e destravem
ele, ao intelectual orgânico cabe organizar as ilusões de senso comum, próprios para
simbolicamente as relações entre objetivos sustentar a dominação simbólica, que im-
de grupos diversos, fazendo sínteses impos- pedem reformas e acumulações no sentido
síveis. Articula, desloca, torce, dobra e corta da coesão e igualdade social. A própria des-
conceitos de forma a criar associações ade- crição dos campos como lutas competitivas
quadas aos grupos. O intelectual constrói permite a inclusão de elementos de trans-
argumentos que são defensivos de posições, formação social na reflexão de Bourdieu,
o que Thomas Kuhn (2007), em contexto di- pois as transformações surgem das lutas
verso, chamou de ciência normal, quando os entre ortodoxos e heterodoxos.
pressupostos funcionam de maneira tácita e

Quadro 2 - Critérios definidores do intelectual


Bourdieu Corporativismo do univer- Campos autônomos; O vivido é objetivado estruturalmente;
sal; construção de ciência
reflexiva; conhecimen- A experiência de sentido comum é
Autonomia do campo cien- to empírico; objeto de reflexão e crítica empírica;
tífico;
O intelectual orgânico sucumbe ao
vanguardismo ou ao populismo;
Gramsci Intelectual orgânico, classe Sociedade civil, guerra O vivido é perspectivado e deve exis-
reformador- revolucionária, de posições. tir um projeto de classe trabalhadora;
associação do intelectual
com partidos e posições Conhecimento e ideo- O intelectual orgânico atua junto às
políticas particulares uni- logia situacionais; classes sociais construindo normas de
versalizantes; ação a partir de bom senso comum;

O cientista social se mantém afastado


e alheio ao público;
Burawoy Sociologia pública tradi- Campo científico com O desafio da universidade é aprender
cional; uso de métodos de a trabalhar com grupos amplos man-
participação intensiva tendo a qualidade de sua reflexão e
Sociologia pública orgânica. nas questões sociais; pesquisa.

(Elaboração dos autores)

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Para Burawoy, ambos os autores – cia os interesses sociais diferenciados e, na
Gramsci e Bourdieu – são limitados nas nossa interpretação, era ator privilegiado
representações do intelectual. Para esse au- por ter acesso às leituras e avaliações es-
tor, Bourdieu seria uma espécie de intelec- pontâneas a respeito das forças e sentidos
tual público tradicional, isto em razão da sociais. Ainda, segundo nossa interpreta-
sua crença em certo padrão de objetividade ção, não dispunha de instrumentos analí-
e capacidade objetivação das diferentes po- ticos para objetivação das posições e para
sições sociais. Burawoy escreve: as análises da ação pública e social a partir
de seus inúmeros artefatos e instrumentos
Os públicos aos quais a sociologia públi- sociotécnicos. Embora se deva reconhecer
ca tradicional se dirige são amplos, passi- que, para Gramsci, todos são intelectuais,
vos, rarefeitos e dominantes. Esses públicos mas alguns exercem as atividades de forma
tem uma presença amorfa. Com efeito, para especializada, o intelectual para Gramsci
Mills, eles dificilmente poderiam subsistir é ator que produz certos conhecimentos
em uma sociedade de massas, assim como práticos, mas o conhecimento mesmo não
para Bourdieu (2000) – outro intelectual pú- é contextualizado sociologicamente. E, tal-
blico tradicional -as pessoas comuns eram vez, essa contextualização nem seja neces-
impermeáveis à mensagem sociológica. (Bu- sária para os usos práticos, concordamos7.
rowoy, 2009, p.237). O mesmo vale para Bourdieu, exceto quan-
do reconhece que o jogo social é estratifi-
Gramsci é, para Burawoy, o típico inte- cado em múltiplos níveis e que cada campo
lectual orgânico, a partir do qual é possível específico mobiliza questões específicas.
formular a ideia de sociologia pública orgâ- Há na formulação deste último autor uma
nica. Nesta, pressupõe-se: “(...) nas comuni- construção sociológica, num diálogo com
dades subjugadas, a existência, para usar a uma tradição diferente da filosofia política
linguagem de Antônio Gramsci, de um cer- gramsciana. Não ria o leitor com o truísmo,
ne de bom senso contido dentro do senso mas a tradição sociológica francesa na qual
comum das pessoas. A educação socioló- Bourdieu está inserido é uma tradição uni-
gica é um diálogo sem mediação entre um versitária. Todo o desejo de uma sociologia
sociólogo e um público (presencial ou pre- crítica passa por esse filtro.
sumido), que mobiliza a sociologia na ela- A síntese das posições entre os atores se-
boração dum entendimento que todos nós ria responder ao desafio da universidade em
temos da estrutura social” (Idem, ibidem). aprender a trabalhar com os grupos sociais,
Para nós, Gramsci conhecia e reconhe- traduzindo em coletivos os instrumentos de

7. As Ciências Sociais tentam assegurar que a reunião de dados respalde a interpretação e que a produção
dos dados responda a um conjunto de protocolos rastreáveis e criticáveis. Da mesma forma, as Ciências So-
ciais pressupõem a possibilidade de crítica aos recursos teóricos mobilizados na interpretação. Esse duplo
movimento reconhece que a linguagem é aberta semanticamente e que a interpretação não é uma descri-
ção simples do que acontece no mundo, mas um jogo complexo de linguagem. O mais importante é que a
interpretação nas ciências pode fracassar no contexto da discussão, exatamente por ser permeável à crítica.

Linguagem da Paixão: intelectuais e políticas culturais no Brasil 73


diferentes espaços sociais e linguagem ajus- vos ou habitus (disposições internalizadas
tada a outros espaços e, mesmo desenvolver na socialização e cuja estrutura gera dispo-
conhecimentos, tecnologias e dispositivos sições estruturadas para pensar, agir, sentir,
que, por hora, dados os nossos objetivos limi- escolher de determinadas formas) relacio-
tados, podemos chamar de emancipatórios. na-se com os espaços sociais estruturados
e hierarquizados. As interações dos inte-
4. Os intelectuais e seus múltiplos jogos de lectuais, no quadro dessas estruturas, vão
linguagem determinar o que está em jogo – e as mo-
dalidades do jogo – em cada espaço social
Como se vê, a interpretação em Ciências específico. A reflexão sobre essas relações
Sociais não se resolve com uma frase. vai determinar representações e diferentes
O significado de uma situação é produ- maneiras de se imaginar e desempenhar o
zido ao se comparar fatos com um padrão papel de intelectual. Ou seja, consideran-
normativo. Esses podem ser padrões morais, do-o nos distintos domínios de posições
ideais de justiça ou de convívio, teorias, posicionadas – campo artístico, jornalísti-
modelos, enfim, construções simbólicas co, literário, filosófico, histórico, político,
organizadas, em relação aos quais os fatos econômico, etc. –, para concluir as manei-
são contrastados e a partir dos quais vão ras de mobilizar diferentes representações,
ganhando camadas de interpretação. Man- classificações, discursos, interpretações a
ter-se descritivo na enunciação não é uma respeito dos problemas públicos.
atitude afetiva, ideológica ou política, pelo Os indivíduos, entretanto, têm alguma
menos não de forma simplista, mas exige capacidade de refletir e usar da linguagem
um certo tratamento dos fatos e dos pressu- de outros campos, mobilizar recursos de
postos construtivistas. Entretanto, pode-se simbolização e generalizações que remetem
dizer que os fatos são artefatos, pois exigem às autoapresentações de autonomia em rela-
um equilíbrio entre dados, informações e ção a disputas específicas. O intelectual joga
pressupostos estabilizados. O discurso refe- jogos específicos, ou especializados, deli-
rencial é um dos jogos de linguagem pos- mitados por campos, mas também pode se
sível. A linguagem não apenas diz o que pretender como uma espécie de geometral,
são as coisas e as relações, mas constrói, capaz de avaliar todas as posições e ideias
classifica, enfatiza, propõe, desloca modos do espaço social ou simplesmente postular
de ver, muda estados etc. Por outro lado, verdades a partir de posições de princípio.
ser normativo não é um disfarce, manipula- Além das disputas pelo sentido dos pro-
ção ou estratégia de guerras ou competições blemas e objetos de interpretação, os inte-
para dizer o que são os fatos, monopoli- lectuais também desenvolvem lealdades e
zando as possibilidades de dizer a verdade. adesões sérias pelas instituições ou, ao con-
Trata-se de mais um conjunto de possibili- trário das alianças, desenvolvem antagonis-
dades disponível para a enunciação. mos corporativos mais ou menos facilmente
É possível afirmar que um acontecimento perceptíveis nas suas análises e discursos. A
ou um fato ocorreu. A discussão se dá sobre tensão entre as lealdades e a independência
seus significados. Portanto, interpretá-los é é permanente. O equilíbrio entre capacidade
associá-los a redes normativas e empíricas. de agência (reflexividade) e determinações
A estruturação desses padrões normati- sociais é difícil, exige em termos de esfor-

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ços e controles teóricos e metodológicos. A Talvez, o dilema mais importante em
compreensão do que determina e do que é relação a esses atores sociais refira-se ao
determinado no discurso, mesmo do cien- seu caráter, qualificado por alguns de “flu-
tista, implica sempre a questão de se saber tuante” ou “enraizado”. O primeiro caso se
se as posições e interpretações são univer- refere a uma representação dos intelectuais
sais ou se respondem às pressões do campo, como atores que lastreiam suas preocupa-
grupo e instituições de pertencimento ou de ções em ideias e valores “universais”, mais
adesão mais ou menos permanentes (caso do que em questões de especialidades ou
de consultores, bolsistas, temporários, con- orientações normativas particulares. No
tratados de forma precária etc.). segundo, os intelectuais seriam ligados a
Em muitas situações, os tipos de inte- grupos ideológicos, institucionais ou de
lectuais vão ser desenhados pelos estilos interesses, daí o caráter “enraizado” do in-
que decorrem dessas inserções; alguns deles telectual, representação que associa o inte-
voltam-se para criar linguagens esotéricas, lectual e o ancora, e à sua atividade refle-
jargões e interpretações que se direcionam xiva a campos especializados e autônomos,
aos pares acadêmicos, outros se concentram a instituições específicas (universidades,
em desenvolver argumentos defensivos para mídias, thinktanks – governamentais ou
as linhas de ação de seus grupos, outros se privados –, corporações profissionais etc.)
dedicam a pensar a resolução de problemas ou a grupos sociais (classes, movimentos
colocados pelas realidades sociais e cultu- sociais, Estado, empresas, sindicatos etc.).
rais. Obviamente todos os conhecimentos Evidentemente, todas essas representa-
são práticos, mas diferentemente motiva- ções questionam sobre as possibilidades de
dos. O primeiro é o típico intelectual tradi- que os intelectuais digam a verdade e inda-
cional e o segundo é o intelectual orgânico guem sobre as condições de possibilidade de
de Gramsci; já o terceiro, é pragmático. fazê-lo. De um lado, colocam importantes
Os traços são exagerados e podemos re- questões a respeito das condições do conhe-
petir o velho refrão de que tipos organizam cimento crítico, heterodoxo e insatisfeito
os argumentos, mas vamos encontrar inter- com as condições do próprio saber e da si-
conexões e misturas entre os padrões tipo- tuação social vigente. Do outro, o pensamen-
lógicos delimitados, quando os localizamos to conservador ou acomodado, satisfeito com
nas práticas sociais efetivas. Os tipos-ideais o saber normalizado e com as desigualdades,
são: acadêmico-universitário, militante e vulnerabilidades e exclusões sociais e cultu-
planejador. Cada um resulta de disposições rais é indagado nas suas questões e descri-
específicas, mas que se misturam e se re- ções específicas. Entretanto, a simples acu-
lacionam de maneira interdependente nos sação de crítico ou conservador não resolve
diferentes espaços de produção simbólica. nada a respeito da qualidade da reflexão.
Nada impede que a reflexividade amplie
a redirecione motivações e objetivos para
5. Rede Cult: intelectuais e suas práticas
abranger objetivos parciais e totais de ou-
tros atores. Além disso, os bens e produ-
ções circulam para públicos mais ou menos Desde meados dos anos 2000, um grupo
especializados, impactando nos modos de de pesquisadores que chamaremos aqui de
trabalhar e produzir conhecimento e ação. Rede CULT, aglutinados em torno do Centro

Linguagem da Paixão: intelectuais e políticas culturais no Brasil 75


de Estudos Multidisciplinares em Cultura tam) em espaços institucionais centrais na
(CULT), vinculado à UFBA, vem se consoli- configuração das políticas culturais con-
dando como um dos principais intérpretes temporâneas, sobretudo àquelas vinculadas
para o fenômeno das políticas culturais no ao que chamamos de Era Lula. Descrever
Brasil, principalmente àquelas implementa- brevemente o perfil desse grupo e seu modo
das na história mais recente do país. de produção é o foco desta seção.
Não custa lembrar que a conformação Como já mencionado, o grupo foi es-
de tal grupo coincide com o momento no truturando-se ao redor do CULT/UFBA em
qual a esquerda assume o comando políti- meados dos anos 2000, tendo como figu-
co do país, inaugurando a fase que alguns ra de proa nesse processo Albino Rubim,
estudiosos vêm denominando de “lulismo” professor da Universidade Federal da Bahia
– quer dizer, o período de governo federal (UFBA). Naquele momento, mais precisa-
iniciado com a posse de Luís Ignácio Lula mente, em 2003, criava-se o CULT – um
da Silva como presidente do Brasil, em centro destinado ao desenvolvimento de
2003, reeleito para um segundo mandato, e atividades de pesquisa e extensão sobre
sucedido por Dilma Roussef, em 2011, tam- cultura. Em 2005, o Centro promove a
bém reeleita em 2014. Tal contextualização primeira edição do Encontro de Estudos
não pode ser desconsiderada tendo em vista Multidisciplinares em Cultura (ENECULT)8,
as relações desses intelectuais com as estru- evento científico que viria a tornar-se um
turas de poder que ora assumiam o coman- fórum de referência para discussão sobre
do do país, situação que condicionou forte- políticas culturais e espécie de semeadura
mente os trânsitos entre vida acadêmica e para a conformação da rede que se tornaria
vida política e consequentemente impactou referência na área.
nos programas de pesquisa e modos de in- Os primeiros passos da sua institucio-
terpretação das políticas públicas de cultura nalização enquanto rede de pesquisadores
– principal objeto de análise desse grupo. deu-se em 2007, quando criaram a REDEP-
A rede reúne colaboradores associados CULT9 durante a realização do III Enecult,
aos processos de construção das políticas numa iniciativa liderada por Albino Rubim.
culturais e possui um específico modus ope- Cabe ressaltar que o grupo que estamos de-
randi que vem lhe garantindo perenidade finindo aqui como Rede Cult extrapola a
e legitimidade como camada portadora de configuração inicial da REDEPCULT, ain-
sentido para as políticas culturais no Brasil. da que os membros desta última sejam as
Seus produtores e participantes e mesmo principais figuras que animam a dinâmica
seus organizadores transitaram (ou transi- do grupo de intelectuais que vem se con-

8. Para maiores detalhes sobre o histórico do ENECULT e seus impactos no agendamento de pesquisas
sobre políticas culturais no Brasil (ver RUBIM; VIEIRA, SOUZA, 2014).
9. A rede é composta por pesquisadores de várias instituições e desenvolve projetos coletivos de estudos,
pesquisas, seminários e cursos e é também responsável pela publicação do periódico Políticas Culturais em
Revista. Integram a rede Albino Rubim (UFBA), Lia Calabre (Fundação Casa de Ruy Barbosa), Alexandre Bar-
balho (UECE), Anita Simis (UNESP), Francisco Humberto Cunha Filho(UNIFOR) Isaura Botelho(CEBRAP), José
Marcio Barros(PUC-Minas/UEMG), Claudia Leitão(UECE), Paulo Miguez(UFBA) e Leonardo Costa(UFBA) .

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solidando como hegemônico nos estudos e das trajetórias de alguns deles, uma circu-
sobre políticas culturais. Isto porque, a rede lação estreita entre campo político e campo
mais ampla, ou Rede Cult, faz gravitar em acadêmico acabou estabelecendo-se10.
sua órbita um número maior de pesquisa- O trânsito estreito que os pesquisadores
dores que possuem vínculos acadêmicos estabelecem entre o campo acadêmico e o
com os principais protagonistas. político confere-lhes um caráter bifronte na
Se há um ponto em comum que os une sua atuação. Isto é, ao tempo em que são
é uma posição ideológica vinculada aos va- agentes que se ocupam em refletir sobre o
lores progressistas, tendo alguns deles, in- tema das políticas culturais através da uma
clusive, histórico de militância em partidos produção científica profícua, atuam, por
políticos de esquerda. Por conta desse perfil outro lado, como agentes nativos da esfera

10. Albino Rubim é um dos principais protagonistas da rede. Professor titular da Universidade Federal da
Bahia, Rubim foi o idealizador do ENECULT, fundou o Centro de Estudos Multidisciplinares em Cultura
- CULT na UFBA (2003) e o Programa de Pós-graduação em Cultura e Sociedade – Pós Cultura (2005),
programa que vem se tornando um importante celeiro da produção científica acerca dos temas ligados à
políticas, gestão e economia da cultura no país. Desde os anos 2000, vem produzindo com regularidade es-
tudos e pesquisas sobre políticas culturais no Brasil cuja temática preponderante é a relação entre Estado,
cultura e política no país, gerando um número significativo de livros e artigos que tem se transformado
em referências recorrentes para as pesquisas que versam sobre políticas culturais no Brasil. O seu vínculo
estreito com o campo político, através da sua filiação ao Partido dos Trabalhadores (PT) possibilitou uma
interlocução intensa com o Ministério da Cultura nas gestões do PT, especialmente durante os dois ciclos
de governo Lula, tendo a frente da pasta os ministros Gilberto Gil e Juca Ferreira. A sua proeminência
enquanto especialista no campo das políticas culturais lhe alçou ao posto de Secretário de Cultura do Es-
tado da Bahia no período de 2007 a 2010, durante o segundo ciclo de governo de Jaques Wagner, também
do PT. Alexandre Barbalho é historiador, tendo defendido doutorado na Universidade Federal da Bahia,
sob orientação de Albino Rubim. É professor da Universidade Estadual do Ceará (UECE). O trânsito pelo
Ministério da Cultura também marca a trajetória desse pesquisador, atuando principalmente na condição
de professor de cursos oferecidos pelo ministério com objetivo de capacitar gestores culturais. Barbalho
passou também pela experiência de ocupar um cargo na gestão pública da cultura, tendo assumido por
um rápido período o cargo de presidente da Fundação de Cultura, Esporte e Lazer da Prefeitura de For-
taleza, durante a gestão da prefeita Luizianne Lins, também vinculada aos quadros do PT. Lia Calabre é
historiadora e funcionária de carreira da Fundação Casa de Ruy Barbosa, órgão vinculado ao Ministério
da Cultura, e ocupa a chefia do setor de pesquisas em políticas culturais. É também a idealizadora e
organizadora dos Seminários Internacionais de Políticas Culturais, sediados na mesma instituição e que
ao lado do ENECULT vem se tornando um dos principais fóruns de debates nacionais sobre o tema das
políticas culturais. A pesquisadora possui também um número expressivo de publicações cujas temáticas
giram em torno da história das políticas públicas de cultura no Brasil, bem como na análise de programas
e instrumentos de política e gestão cultural. Claudia Leitão é professora da Universidade Estadual do Ceará
(UECE). Possui intensa experiência na gestão pública da cultura: foi Secretária de Cultura do Estado do
Ceará e Secretária de Economia Criativa do Ministério da Cultura, entre 2011 e 2013 durante a gestão de
Marta Suplicy à frente do MinC. É ainda consultora para a economia criativa da Organização Mundial do
Comércio (OMC) e da Conferência das Nações Unidas para o Comércio e o Desenvolvimento (UNCTAD).
Paulo Miguez é economista, professor da UFBA e ex-orientando de Albino Rubim. É também um dos
pesquisadores que constrói sua trajetória num trânsito estreito entre o universo acadêmico e o campo da

Linguagem da Paixão: intelectuais e políticas culturais no Brasil 77


das políticas culturais ao ocuparem postos é referência no campo de estudos da cul-
de gestão, colaborando assim para a cons- tura e que é explorada por pesquisadores
tituição de práticas e discursos sobre o “fa- da área. A área tem um número de outros
zer” das políticas culturais. Tal dinâmica, autores de referência que dialogam e são
como veremos na próxima seção, confere referenciados na rede e que certamente
uma especificidade na epistemologia gera- constituem redes dentro das redes e que se
da por esses estudos, qual seja: um alinha- relacionam a outros universos de pesquisa,
mento de ideologias entre o campo político caso de pesquisadores ligados às artes, aos
e o campo intelectual. direitos culturais, à economia criativa, en-
Há de se destacar ainda que parte dessas tre outros.
figuras tem sido também responsável por
processos formativos em universidades pú- 5.1 Mídias e circulação do conhecimento
blicas, contribuindo assim para a formação
de uma linhagem de pesquisadores sobre
Uma das estratégias de ação desse grupo
políticas culturais que, por sua vez, vêm
de intelectuais foi a criação de um conjunto
ocupando os quadros docentes de universi-
de veículos para disseminação da sua pro-
dades públicas. Tal dinâmica vem gerando
dução. Numa lógica circular, à medida que
um ciclo de reprodução de esquemas inter-
esses intelectuais iam lançando suas publi-
pretativos que orientam a rede, bem como
cações, foram tornando-se referências im-
para a estabilização da sua hegemonia.
portantes, no compasso em que ocupavam
Nomes como Albino Rubim, Alexandre
um espaço relativamente vazio na produ-
Barbalho, Lia Calabre, Isaura Botelho, José
ção acadêmica sobre o tema das políticas
Márcio Barros, Paulo Miguez, entre outros,
culturais. Nesse sentido, as publicações
são mediadores intelectuais importantes
foram um dos principais vetores da visibi-
que estabelecem a agenda de pesquisa que
lidade do grupo no compasso mesmo em

gestão pública da cultura. Entre 2003 e 2005 atuou no Ministério da Cultura como Assessor Especial do
Ministro Gilberto Gil e como Secretário de Políticas Culturais. Foi ainda membro do Conselho Estadual
de Cultura da Bahia entre 2009 e 2011. Francisco Humberto Cunha Filho é professor da Universidade de
Fortaleza (UNIFOR). Sua produção está voltada para estudos acerca do tema dos direitos culturais, patri-
mônio cultural e políticas culturais. Foi Secretário de Cultura de Guaramiranga (CE) entre 1991 a 1993 e
diretor de Ação Cultural da Secretaria de Cultura do Ceará (1988-1991) e membro do Conselho Estadual
de Cultura do Ceará (2004-2011). José Marcio Barros é professor do da PUC-Minas e da Universidade do
Estado de Minas Gerais (UEMG). É o fundador do Observatório da Diversidade Cultural uma plataforma
que desenvolve ações colaborativas entre agentes culturais, artistas, gestores públicos e pesquisadores,
voltadas para a temática da diversidade cultural. Barros é também um pesquisador que estabeleceu uma
relação com o Ministério da Cultura mediante consultoria na construção de Redes de Observatórios da
Economia Criativa, implementada pela Secretaria da Economia Criativa. Ademais, participa como con-
sultor de programas voltados para a construção de planos estaduais e municipais de cultura em parcerias
com universidades e o Minc. Isaura Botelho é pesquisadora do CEBRAP e atua principalmente como
consultora, realizando estudos e pesquisas sobre práticas de consumo e públicos para a cultura. Ocupou
cargos de gestão no Ministério da Cultura desde os anos 80, com passagem pela Funarte e nas gestões de
Celso Furtado e Gilberto Gil, quando coordenou, entre 2003 e 2005, o setor de pesquisas e planejamento
da Secretaria de Políticas Culturais.

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que a recorrência crescente a essa produção como referência na produção de conheci-
lhes concedia um espaço privilegiado de mento sobre políticas culturais é viabiliza-
interpretação e produção de sentido para o da, em certa medida, pelo conjunto da pro-
fenômeno das políticas culturais no Brasil. dução disseminada nas diferentes mídias
O CULT, nesse sentido, ocupou o lugar que a própria rede organiza.
de principal núcleo promotor das publica- A função do conjunto das produções
ções de pesquisadores da Rede. A Coleção é exatamente, como mídia organizada e
CULT11, os anais do ENECULT12, a Coleção sistemática, a de demarcar possibilidades
Sala de Aula13 e o periódico Políticas Cul- discursivas ou, como diria Michel Foucault
turais em Revista14 são os instrumentos de (2000), delimitar os seus regimes e forma-
destaque desse conjunto de produções capi- ções discursivas. Essa dimensão caracte-
taneado por intelectuais da rede. Em outro riza o trabalho desses autores, que, além
artigo por nós produzido (2018), tomando de escritores, exercem o papel no sistema
como estratégia metodológica a bibliome- educacional e nas instituições políticas, no
tria, analisamos a recorrência de autores qual também atuam em processos formati-
nacionais e internacionais que embasam as vos gerais e específicos, no caso de gestores
pesquisas mais recentes sobre políticas cul- públicos, e exercem funções diretamente
turais. Da amostra selecionada15, depreen- vinculadas à administração pública.
deu-se um quadro de citações que ilustram Os artigos veiculados por estas distin-
a predominância dos autores da Rede Cult, tas mídias povoam fortemente as referên-
com destaque especial para: Albino Rubim, cias dos estudos sobre políticas culturais
Alexandre Barbalho, Lia Calabre e Isaura desenvolvidos mais contemporaneamente
Botelho. A hegemonia dos autores da rede no país. Numa confluência entre contexto

11. A Coleção CULT foi lançada em 2007, é editada pela EDUFBA e já conta com a publicação de 29 tí-
tulos, na sua grande maioria dedicada à temática das políticas culturais. É um dos principais veículos de
divulgação da produção do grupo e onde se materializa com mais força as colaborações entre os membros
da rede.
12. Até o momento, já foram realizadas 13 edições do evento ininterruptamente. Em suas dez primeiras
edições (2005-2014), 4.300 artigos foram submetidos ao evento. O GT de Políticas culturais é um dos gru-
pos que mais atrai apresentação de comunicações. Os artigos veiculados nos anais do evento têm servido
como fonte importante para os estudos sobre políticas culturais. Muitos deles são publicados posterior-
mente nos livros da Coleção Cult.
13. Trata-se de uma coleção destinada à divulgação de textos introdutórias sobre questões relativas à
cultura em geral e as políticas culturais, mais especificamente. A coleção tem apenas quatro números. Mas
um dos deles, intitulado “Organização e produção da cultura” (2005), comparece como uma referência de
destaque na pesquisa bibliométrica que realizamos tomando como corpus o conjunto de artigos apresen-
tados no Enecult. Este caso específico revela o modo como o preenchimento de uma lacuna de reflexão
sobre determinados temas pode gerar um espaço de legitimidade de discursos por ser inaugural.
14. O periódico Políticas Culturais em Revista é uma iniciativa da REDEPCULT e é por ela editada. Seu
primeiro número foi publicado em 2007. Até o momento, já possui 19 números publicados e já atingiu
uma avaliação relativamente alta dentro das categorias avaliativas da CAPES.
15. O estudo tomou como corpus de análise um conjunto de 268 artigos sobre políticas culturais apresen-
tados em dez edições do ENECULT (2005-2014).

Linguagem da Paixão: intelectuais e políticas culturais no Brasil 79


político e agendamento de programas de cos, além da ocupação em postos de co-
pesquisa, ousa-se aqui a afirmar que este mando da gestão pública do país, acabaram
grupo tem contribuído para a conformação por fermentar uma ambiência que favore-
e a crescente consolidação de um campo ceu a legitimação da referida rede enquanto
de pesquisa cujo eixo central gravita em mediadores simbólicos privilegiados na in-
torno das políticas culturais. Nesse proces- terpretação das políticas culturais no Brasil.
so mutuamente implicado, caminham, pari
passu, o crescimento da agenda de pesquisa 5.2 A produção simbólica e seus funda-
sobre políticas culturais nos programas de mentos axiológicos
pós-graduação nos quais atuam os mem-
bros da rede (condição que possibilita a Na Rede Cult, a produção é muito va-
formação de uma geração de pesquisadores riada, mas os discursos são agenciados por
que vem se especializando no tema), com a crenças e valores bastante homogêneos.
produção intelectual daí decorrente. Dispo- Além disso, a produção tem como interlo-
sitivos como os referidos veículos de dis- cutores alguns atores restritos, um círculo
seminação do conhecimento produzido, os de mediadores simbólicos privilegiados que
processos formativos que originam novos preserva a imagem e os fundamentos do
pesquisadores especializados, um conjunto discurso oficial16.
de iniciativas tais como eventos acadêmi-

Quadro 3 -Autores e obras mais citados objeto de análise

Natureza da
Autores nacionais Título publicação
RUBIM, Albino & BARBALHO, Alexandre (orgs.) Pol íti ca s cul tura i s no Bra s i l Li vro org/ Cul t
RUBIM, Linda. (org.) Orga ni za çã o e Produçã o da Cul tura Li vro org/ Cul t
RUBIM, Albino Pol íti ca s Cul tura i s : entre o pos s ível e o i mpos s ível Arti go/Cul t
NUSSBAUMER, Gisele Marchiori (org.) Teori a e pol íti ca da cul tura : vi s ões mul ti di s ci pl i na res Li vro org/Cul t
RUBIM, Albino & ROCHA, Renata (Org.) Pol íti ca s Cul tura i s Li vro org./Cul t
BARBALHO, Alexandre Pol íti ca cul tura l Arti go/Cul t
RUBIM, Albino (orgs.) Pol íti ca s cul tura i s do governo Lul a /Gi l : des a fi os e enfrenta mentos Arti go/Cul t
RUBIM, Antonio Albino Canelas Pol íti ca s Cul tura i s no Bra s i l : tri s tes tra di ções , enormes des a fi os Arti go/Cul t
BOTELHO, Isaura As di mens ões da cul tura e o l uga r da s pol íti ca s públ i ca s Arti go/Cul t
RUBIM, Antonio Di l ema s pa ra uma pol íti ca cul tura l na contempora nei da de Arti go
BARBALHO, Alexandre Rel a ções entre Es ta do e cul tura no Bra s i l Li i vro
BOTELHO, Isaura A Pol íti ca Cul tura l e o Pl a no da s Idei a s Arti go/Cul t
BARBALHO, Al exa ndre Pol íti ca s cul tura i s no Bra s i l : i denti da de e di vers i da de s em di ferença Arti go/Cul t

Elaboração dos autores

16. Os textos analisados estão na base de dados da pesquisa “Estudos da Cultura no Brasil: um mapa pos-
sível” e contou com o apoio do CNPq e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia (FAPESB).
A base é formada por autores internacionais com destaque para Nestor Garcia Canclini, Stuart Hall, Geor-
ge Yúdice, Michel de Certeau, Raymond Williams e Homi Bhabha. Os autores nacionais mais citados são
Albino Rubim, Alexandre Barbalho e Lia Calabre, que fazem parte da rede de pesquisadores em Políticas
Culturais - REDEPCULT, criada em 2007 durante o III ENECULT. Ressalte-se ainda, que as obras mais

80 Repocs, v.15, n.31, jan./jul. 2019


O grupo de mediadores regula a produ- organizacionais do mercado).
ção das representações que conformam os As produções socializam um conjunto
discursos. Evidente, não estamos dizendo de reflexões ao qual podemos caracterizar
que há censura ou que o dispositivo de pes- como de intervenção. Elas descrevem o que
quisa funcione como aparelho ideológico. está sendo realizado e o que as iniciativas
Ao contrário, as interpretações são diversas governamentais significam no contexto
e múltiplas, mas gravitam em torno de ima- das ausências de períodos anteriores. São
gens, crenças e valores comuns ao pós-neo- produções fortemente informativas que,
liberalismo. A proposição de temas e formas embora nem sempre com eixos analíticos
de abordagem são fortemente propostos explicitamente construídos para a interpre-
pelos mediadores simbólicos. O campo de tação, apresentam os diferenciais positivos
proposições de pesquisa é então delimitado dos governos pós-neoliberais em relação a
e assim, é seletivo, promovendo inclusões e outros.
exclusões de temas e abordagens. Para evi- Esta configuração é própria das ativi-
denciar as inclusões podemos citar a forte dades ideológicas que vinculam a interpre-
presença dos estudos culturais. Por sua vez, tação a um conjunto de ideais normativos
as exclusões evidenciam-se na ausência de específicos capazes de vincular os atores
estudos econômicos, de gestão e de mode- ao processo de difusão e elaboração, ofere-
los de análise de políticas públicas. cendo exemplos empíricos convincentes na
As publicações são muito diferencia- matriz de valores, crenças e ideias organi-
das, mas pode-se caracterizá-las, em geral, zados num quadro ideológico pré-estrutu-
por se tratar de textos descritivos, voltados rado. Nesse sentido, não há necessidade de
para o registro do que acontece nas políti- distinção entre pesquisadores, militantes,
cas culturais e nos seus segmentos de po- intelectuais engajados e público. A assime-
líticas públicas, propagando e difundindo tria entre pesquisador, pesquisado e público
as iniciativas dos governos recentes, es- é desfeita em função de objetivos de cons-
pecialmente dos governos pós-neoliberais trução de consensos provisórios em torno
(quando outros períodos de governo apa- de valores e orientações políticas comuns.
recem, são caracterizados pela ausência de Aqui está presente uma espécie de pós- po-
políticas ou pelo predomínio das instâncias sitivismo misturado com métodos intuiti-

utilizadas de autoria e/ou organizadas por Rubim, Calabre e Barbalho compõem a Coleção Cult, editada
pela EDUFBA e que já conta com a publicação de 28 títulos, na sua maioria dedicada à temática das po-
líticas culturais. Pode-se afirmar, então, que esse conjunto de autores que conforma a rede, com especial
destaque para os três mais citados, vem contribuindo para a consolidação das políticas culturais como
um campo de estudos, mediante uma produção bibliográfica regular e profusa sobre políticas culturais
no Brasil. Considerando-se o quadro delineado a partir das referências bibliográficas nacionais utilizadas
pelos autores dos artigos apresentados no ENECULT, perfilou-se com certa clareza a suspeita de que já
portávamos, a saber: a conformação de uma elite intelectual que vem se tornando referência para as pes-
quisas realizadas acerca do tema das políticas culturais. A dinâmica da rede e o perfil já foram objeto de
análise e são aqui aprofundadas. Ver Pitombo, M. et alii "Intérpretes e produções sobre políticas culturais
no Brasil: a radiografia de uma elite hegemônica", no prelo.

Linguagem da Paixão: intelectuais e políticas culturais no Brasil 81


vos de pesquisa-ação e com a ideia do inte- especialmente seus livros como referencial,
lectual orgânico gramsciano. É o conjunto nossa hipótese que a cultura política co-
de relações entre esses atores e processos mum é o pós-neoliberalismo17 desenha-se
de construção simbólica que, interpelados a partir da crítica recorrente ao neolibe-
pela ideologia geral, o que denominamos ralismo de governos anteriores, na qual o
pós-neoliberalismo, assegura a eficácia do período Fernando Henrique Cardoso (FHC),
projeto geral. que vai de 1995 a 2002, aparece como
O caráter crítico é evidente, mas o as- maior exemplo, e pela ideia de centralidade
pecto normativo nem sempre é tão claro. do Estado, do sistema de direitos culturais,
Esse se revela pela generalização simbólica, do sistema nacional de cultura e das dire-
pelo uso de conceitos de textura aberta e trizes da participação e descentralização.
pela intrusão de premissas normativas nem Esse parece o núcleo comum: democracia
sempre reveladas (por exemplo, o conceito e cidadania. As divergências estratégicas,
de democracia – e são tantos –, a necessida- de concepções, de avaliações de contexto e
de de construção de setorialidade nas polí- alternativas raramente são tematizadas.
ticas públicas de cultura ou ainda, hipóteses No pós-neoliberalismo, deriva das for-
sobre como funcionaria a descentralização, mulações da Rede Cult, o poder estatal deve
raras vezes são objeto de discussão). Ade- ser fortalecido e democratizado. Evidente-
mais, os fatos narrados são sempre alusivos mente, esse projeto associa-se à produção
e os métodos não permitem a perspectiva- simbólica centralizada em agentes públicos
ção da realidade social e institucional que universalistas e na sua distinção das produ-
é investigada (quem fala? Em nome de que ções provenientes do mercado, que teriam
posição social e institucional? Em que base interesses particularistas e individualistas.
empírica são apoiadas as descrições?). A democratização implica, por sua vez, em
Tomando o conjunto da produção Cult, fortalecimento do Estado e das instâncias

17. Ilustrativo é o conjunto de títulos publicados na Coleção Cult que se destinam à análise das políticas
culturais implementadas durante o período que aqui denominamos de pós-neoliberais, a saber: “Polí-
ticas culturais no governo Lula (2010); “Políticas culturais, democracia e conselhos de Cultura” (2010)
“Políticas Culturais no Governo Dilma” (2015). Os artigos dedicam-se à análise de políticas especificas
implementadas durante o referido ciclo político. Ainda que apontem limitações e críticas à efetivação
de algumas políticas, a exemplo da mudança na condução da gestão de políticas culturais no governo
Dilma, – emblemático é o título de um dos artigos “Políticas culturais no primeiro governo Dilma: pata-
mar rebaixado”- de modo geral, os artigos tendem a exaltar o caráter novidadeiro das políticas culturais
implantadas especialmente no governo Lula, ressaltando o aspecto da mudança em relação a governos
anteriores(considerados como ausentes e autoritários), adjetivando-as muitas das vezes como inaugurais
na história das políticas culturais brasileiras. Vejamos um trecho do texto que apresenta o livro “Políticas
culturais no governo Dilma”: “As gestões de Gilberto Gil (2003-2008) e Juca Ferreira (2008-2010) no go-
verno Lula, com (muitos) acertos e (alguns) erros, colocaram as políticas culturais em um expressivo pata-
mar, nacional e internacional, nunca antes alcançado pelo Ministério da Cultura no país. Elas enfrentaram
as tristes tradições – ausências, autoritarismos e instabilidades – que marcaram a trajetória das políticas
culturais nacionais e inauguraram vigorosas políticas culturais em diversas áreas” (RUBIM; BARBALHO;
CALABRE, 2015, p.9)

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públicas. Fortalecimento do Estado em fun- uma de suas políticas ou entre elas. Eviden-
ção da sua vinculação ao dever de garantir temente, as nossas assertivas não implicam
direitos de cidadania, espaço dos direitos numa oposição ao estilo interpretativo e aos
culturais e sociais, e a por outro lado, forta- valores carregados pelos textos analisados,
lecimento da participação social, na forma mas ao caráter aberto dos seus conceitos e à
de reorganização dos processos decisórios e sua imprecisão empírica.
da descentralização federativa. No pós-neoliberalismo, a democracia
Como a produção total em análise se dá estaria sendo realizada através de políticas
sobre a vigência simbólica do pós-neolibe- públicas de Estado, baseadas na participa-
ralismo, o esquema interpretativo sublinha ção e na descentralização. Repetindo, aqui
as ações presentes conferindo-lhe discursi- o que falta é tratado como desafio, poten-
vamente as características de plenitude de cial, características inteiramente alinhadas
significação; nesse caso, quando diante da aos governos pós-neoliberais. No passado
falta, a ação se vê desafiada; enquanto isso, neoliberal, ao contrário, nenhuma dessas
o passado neoliberal é de falta e má vontade iniciativas existia, e nem poderiam, dada a
com a democracia e com os direitos garanti- presença de forças cujo contexto era de pre-
dos pela ação pública. Em muitas situações, cedência do mercado e do individualismo.
as ausências são completadas com descrições É interessante apontar para a construção
de desigualdades, concentrações de recursos da cultura política comum como restituição
sociais e simbólicos, monopólios decorren- da política, em contraste com a economia.
tes dos interesses de mercado ou do capital. A economia separa, a política une e permite
Faltam as descrições empíricas a respeito das a inclusão e expressão da cultura popular
dinâmicas das desigualdades, dos movimen- na cidadania. Nessa área, aponta-se que as
tos dos atores e das relações no campo con- políticas culturais só existiram e se forta-
creto. Nenhum dos textos sob interpretação leceram em momentos de autoritarismo. O
faz qualquer referência ou descrição do que desafio seria consolidá-las em período de
seriam as desigualdades, de quais seriam os democracia. Interessante que os períodos
monopólios, quem deles participaria ou dos autoritários elaboraram ideologias e enun-
movimentos dos atores nos espaços políti- ciaram a cultura de forma muito similar:
coinstitucionais. No caso das políticas des- fortalecimento do Estado, reconciliação e
critas, são representadas nos seus desenhos reconhecimento das expressões populares
ou princípios mais gerais, como se a imple- no concerto da nação, união do político
mentação não fosse da ordem da problema- com o social, atuação do Estado em nome
ticidade. Os argumentos sobre governos são do bem público e uma concepção de de-
sintéticos, como se o mesmo governo não mocracia que deveria ajustar-se à realidade
sofresse de tensões e contradições em cada social18. O programa de ação se desdobrará

18. Podemos citar Azevedo Amaral, um dos ideólogos mais bem articulados do que se denominou pensa-
mento autoritário no Brasil, referindo-se ao Estado Novo e, paradoxalmente, ao seu caráter democrático:
“O golpe de Estado de 10 de novembro, protegendo o Brasil contra os perigos imediatos que a demagogia
estimulada pela campanha de sucessão presidencial ameaçava precipitar, salvou o regime democrático,

Linguagem da Paixão: intelectuais e políticas culturais no Brasil 83


com a proposição de efetivação de pesqui- Numa análise sobre o histórico e os
sas sobre a realidade nacional, criação e desafios para a implantação das políticas
reconhecimento de movimentos culturais culturais no Brasil, a pesquisadora Lia Ca-
nacionais, que estes se enraízam nas rea- labre (2007), por exemplo, arrola uma série
lidades locais e de que eles se relacionam de questões tomadas como desafios a serem
com os problemas nacionais. enfrentados pelos governos e “possíveis
Considerando uma visão, por vezes ana- formas de atuação na elaboração de polí-
crônica, na análise a respeito da história das ticas” (grifos nossos). A autora inicia a aná-
dinâmicas entre cultura e Estado no Brasil, lise considerando duas questões chaves na
e a imprecisão conceitual no que se refere pauta das políticas culturais: a diversidade
à democracia, às instituições e do papel dos cultural e a economia da cultura. Como se
mercados nos processos de desenvolvimen- trata de uma longa seção do artigo, selecio-
to social, pode-se afirmar que a configu- namos alguns trechos ilustrativos do cará-
ração do quadro ideológico pós-neoliberal ter propositivo da abordagem:
dos estudos da Rede Cult tem uma carga “O primeiro ponto é o da defesa da di-
crítica importante, mas também carrega versidade como elemento fundamental para
fortes conteúdos normativos. O conteú- a continuação da existência das próprias
do normativo deve-se, em certa medida, à sociedades e que comporta como proposi-
posição bifronte que alguns desses agentes ções de política: (...) - Utilização da questão
ocupam quando dividem seu papel de in- da diversidade como bandeira fundamen-
telectuais que interpretam o fenômeno das tal contra o processo de globalização uni-
políticas culturais com a atuação na condi- formizadora” (grifos nossos). (CALABRE,
ção de gestores da máquina pública. Desse 2010, p.103)
modo, alguns textos estabelecem espécies No que se refere ao modo de atuação
de “receituários” mediante recomendações do estado no mercado de bens simbólicos,
propositivas do que se acredita serem as a autora recomenda: “Implementar ações
boas práticas para as políticas culturais que inibam a intervenção mercadológica
consideradas inclusivas, democráticas e re- devastadora (como, por exemplo, alteração
publicanas – valores caros ao pós-neolibe- de calendários e de tempo de duração) em
ralismo. O que expressa a normatividade, festejos e celebrações tradicionais”.
aliás, sempre presente nas teorias e nas ti- Por ser uma um campo de estudos que
pologias usadas na interpretação das Ciên- se insere dentro das políticas públicas, logo,
cias Sociais, é o uso de conceitos aberto, num campo aplicado da produção de co-
analogias e metáforas sem o desdobramen- nhecimento, não será este um dos atributos
to em enunciados descritivos. (desejados) que marcam as interpretações

evidentemente o único compatível com as condições da realidade nacional e com os imperativos das
tradições brasileiras. O estilo do Estado Novo define-se por duas características inconfundíveis. É demo-
crático e é nacionalista (...) O Estado Novo é democrático porque é nacionalista. E somente corresponde à
ideia nacional por ser democrático” (Amaral, 1981, p.107). Para uma abordagem mais ampla de uma das
tradições democráticas do pensamento político e social brasileiro, ver, Almino, 1980.

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no campo das políticas culturais? dade ou sem acesso às políticas públicas de
Há diferenças nesse alinhamento. Mui- fomento ou reconhecimento.
tos dos trabalhos analisados têm como
característica, como já dissemos, o cará- Considerações Finais
ter mais alusivo, ideológico e laudatório,
outros mais complexos, descritivos e mais A dinâmica da Rede Cult foi interpre-
capazes de distinção entre o dito e o feito, tada a partir da atuação e da posição dos
mas sempre mantém o caráter de construto atores mais relevantes e mais citados. O
encarregado de fazer ver a inexistência de estilo argumentativo e interpretativo des-
valores e de efetividade da cultura políti- ses intelectuais é o modelo que serve de
ca pós-neoliberal em toda sua plenitude. espelho para a rede. Como se viu, nos es-
O que nos interessa aqui é afirmar que os quemas interpretativos sobre as políticas
conceitos abertos como democracia, neo- culturais postos em prática pelo grupo ana-
liberalismo, participação, descentralização lisado predominam valores e crenças gerais
etc. acabam por referenciar e organizar as (democracia, participação, inclusão social,
interpretações presentes na área. diversidade cultural, Estado ativo e garan-
É interessante também ressaltar as rela- tidor de direitos etc.) sobre o controle de as-
ções nada simples entre pós-neoliberalismo sertivas teóricas empiricamente referencia-
e forças políticas organizadas. Esse conjun- das. Nesse sentido, os intelectuais em tela
to de valores pode ter melhor expressão em incorporam o papel de mediadores simbó-
um outro partido ou governo, mas se trata licos fortemente vinculados ao regime de
muito mais de um conjunto de enunciados ação pública de governos denominados de
valorativos que se identificam por afinida- pós-neoliberais.
des eletiva com as forças políticas institu- Evidentemente, correu-se o risco das
cionalizadas. É assim que se tornam pos- generalizações, pois os intelectuais analisa-
síveis realinhamentos globais da produção dos produziram um sem número de traba-
teórico-reflexiva em suas relações com os lhos em contextos e com interesses muito
governos. É ilustrativo que, depois de mui- variados. Mesmo sabendo desse risco, a
tos livros e artigos de quase perfeito ali- interpretação amparou-se nas trajetórias e
nhamento político, surgem já nos primeiros no estilo narrativo dos trabalhos mais cita-
anos do Governo Dilma Rousseff um con- dos na rede. A principal característica desse
junto de textos bastante críticos em relação grupo é a proximidade com o jogo político
às linhas de atuação do governo federal nas (propiciado, sobretudo, pela dupla função
políticas culturais. Não se trata de uma re- gestor/intelectual que alguns deles ocupa-
definição, mas de uma constatação da linha ram) e no diálogo denso entre produção in-
editorial e dos autores da Rede Cult de que telectual e orientação das políticas. Projeto
a realidade do governo se afasta do ideário político e intelectual estão amalgamados e
pós-neoliberal e das prioridades construí- é esta hibridização que dá força e eficácia
das nos dois Governos Lula no campo da ao grupo e simultaneamente à rede.
cultura, especialmente com os processos de Como se viu, tal “hegemonia” se cons-
descentralização, democratização e parti- truiu também a partir de um eficaz aparato
cipação, com a construção de programas acadêmico de produção e disseminação do
voltados para grupos de maior vulnerabili- conhecimento mediante um número consi-

Linguagem da Paixão: intelectuais e políticas culturais no Brasil 85


derável de publicações, no agendamento de 110, DAN, UnB, 1991.
programas de pesquisa e modelos interpre- PITOMBO, M. ; BARBOSA, F. ; NASCIMENTO, L. ;
tativos possibilitado pela formação de no- SOUZA, L. Intérpretes e produções sobre políticas
vos quadros de especialistas na área. culturais no brasil: a radiografia de uma elite he-
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86 Repocs, v.15, n.31, jan./jul. 2019


RESUMO ABSTRACT
O estudo sobre políticas culturais tem co- The Brazilian studies on cultural policies
nhecido progressivo crescimento no Bra- have faced an exponential growth in the
sil nas últimas décadas. Nesse artigo, será last decades. The researches of Rede Cult,
tomado como foco de análise um grupo a group of intellectuals which production
de intelectuais, denominado aqui de Rede have been reference for the studies develo-
Cult, cuja produção tem se tornado refe- ped in that area, will be the main focus of
rência para as pesquisas desenvolvidas na this article’s analysis. Taking as a premise
área mais recentemente. Tomando como the role of these intellectuals as symbolic
premissa o papel dos intelectuais como me- mediators, which interpretations have been
diadores simbólicos, cujas interpretações building worldviews, this article intends to
constroem visões de mundo, este artigo in- analyze the dynamics of Rede Cult from its
tenciona analisar a dinâmica da rede a par- production, focusing in the argumentative
tir da sua produção, centrando o foco no and interpretive styles of these intellectuals
estilo argumentativo e interpretativo desses in order to comprehend theirs believes,
intelectuais, de modo a depreender crenças, values and political relations that guide its
valores e os jogos políticos que orientam own actions and social positions.
suas ações e estruturam suas posições so-
ciais. KEYWORDS
Intellectuals. Cultural policies. Rede Cult.
PALAVRAS-CHAVE
Intelectuais. Políticas culturais. Rede Cult.

Recebido em: 06/08/2018


Aprovado em: 13/12/2018

Linguagem da Paixão: intelectuais e políticas culturais no Brasil 87

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