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Revista Interamericana de Psicología/Interamerican Journal of Psychology - 2009, Vol. 43, Num. 3 pp.

432-441

432 A Zona Muda das Representações Sociais:


ARTICULOS

Uma Aproximação a Partir do Jogo de Areia

Beatriz Judith Lima Scoz1


Centro Universitário FIEO, São Paulo, Brasil
Albertina Mitjáns Martinez
Universidade de Brasília, DF, Brasil

Resumo
O objetivo deste artigo é fundamentar e mostrar a utilização do Jogo de Areia como recurso metodológico
inovador para o estudo da zona muda das representações sociais, especialmente as representações
sociais de professores pela sua significação para a prática pedagógica. A utilização do Jogo de Areia
foi alicerçada nos princípios que o norteiam, nas experiências profissionais e como pesquisadoras das
autoras e nas concepções teóricas de importantes especialistas. Também serão enfatizadas as possibi-
lidades que o Jogo de Areia oferece para a articulação das representações sociais com a construção da
subjetividade. Evidenciam-se assim, as contribuições que o aprimoramento das pesquisas sobre as
representações sociais dos professores pode oferecer às necessárias transformações que devem acon-
tecer nas formas em que esses profissionais se formam na atualidade.
Palavras-chave: Representações sociais; Zona muda; Ensino e aprendizagem; Subjetividade; Jogo de
areia.

The Mute Zone in Social Representations: An Aproach Based on the Sandplay

Abstract
The aim of this article is to argue for the use of Sandplay and show it as an innovative metodological
resource to studying the mute zone of social representations, mainly of teachers‘ social representations
bacause of its significance to pedagogical training. The use of Sandplay was strengthen on the principles
that guide it and on the professional and research experiences of the authors of this paper, so as on the
theoretical conceptions of remarkable specialists. It will be also stressed the potencial of Sandplay
linking social representations and the construction of subjectivity. Thus, it is demonstrated the
contributions of the improvement of researches of social representations of teachers to necessary changes
That might happen to the ways in what these professionals are educated nowadays.
Keywords: Social representations; Mute zone; Teaching and learning; Subjectivity; Sandplay.

As pesquisas sobre representações sociais, na nos dizem tudo, elas escondem alguns componentes
maioria das vezes, baseiam-se nas verbalizações dos de seus pensamentos em certas situações, e nestas exis-
sujeitos investigados através de entrevistas, questioná- tem duas facetas da representação: uma, explícita,
rios e outros instrumentos identificadores de discursos. verbalizada; outra não verbalizada, não expressa, de-
A ênfase é colocada na expressão verbal e no discurso nominada “zona muda”.
diário, como sistemas de mediação simbólica, através A impossibilidade de estudar as representações
dos quais o indivíduo se apropria do mundo externo e, sociais a partir apenas do que as pessoas expressam
nessa comunicação estabelecida na interação, ocorrem verbalmente de forma direta tem sido defendida por
“negociações”, re-interpretações das informações, dos diversos especialistas das representações sociais, uma
conceitos e significados. vez que elas não são necessariamente totalmente cons-
Entretanto, segundo Abric (2005), há algumas cientes. As explicações em relação à falta de conscien-
defasagens entre o que as pessoas dizem e o que elas tização de elementos que integram as representações
pensam, entre o que elas dizem (em seus discursos) e o são diversas e estão em consonância com as concep-
que elas fazem (em sua prática), o que coloca em dúvi- ções teóricas sobre as representações sociais que têm
da a compreensão das representações sociais. Ainda, sido elaboradas por diferentes autores.
para esse autor (2005), as pessoas entrevistadas não Para Abric (2005), a “zona muda” é constituída
pelos elementos da representação que têm um caráter
1
contra-normativo. Para explicitar essa idéia, Abric (2005)
Endereço para correspondência: Rua Evezu, 22, Alto de Pinheiros, São
Paulo, Brasil, CEP 05447-160. Tel.: (11) 38127919; Fax (11) 3037 7845. toma as concepções de Guimelli e Deschamps (2000),
E-mail: beatrizscoz@uol.com.br que denominam a zona muda como um subconjunto

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específico de cognições ou de crenças que, mesmo Rey, 2006). Entretanto, nos estudos das representações 433
sendo disponíveis, não são expressas pelos sujeitos nas sociais, as relações com a subjetividade não têm sido

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condições normais de produção; e, se fossem expressas suficientemente consideradas. Concordando com Gon-
(notadamente em certas situações), poderiam questio- zález Rey (2003), as representações sociais devem ser
nar os valores morais ou as normas valorizadas pelos percebidas como produções subjetivas que têm funda-
grupos. mento em uma realidade social, na qual também inter-
Assim, certos elementos de representação – mesmo vêm processos de subjetivação que a configuram.
aqueles que seriam centrais – podem ficar “escondi- Ainda de acordo com González Rey (2003), as
dos” ou “mascarados”, de modo que aparecem só os representações sociais estão constituídas por uma mul-
elementos periféricos. Abric (2005), considerando tiplicidade de elementos de sentido e significação, que
ainda, que os elementos do núcleo central podem ser circulam na sociedade e dão às representações sociais
funcionais – práticas em relação ao objeto da repre- sua dimensão subjetiva constituída por sentidos sub-
sentação –, ou normativos – avaliação, julgamentos, jetivos responsáveis pela unidade inseparável entre o
atitudes ou estereótipos em relação ao objeto da repre- emocional e o simbólico.
sentação –, sugere que os que ficam na zona muda são As representações sociais apresentam-se como uma
os normativos, pois estes são mais ligados a avaliações forma de organização do espaço simbólico em que o
e valores, que aparecem como ilegítimos para o grupo sujeito se desenvolve. A realidade aparece para as
de pertença do indivíduo que os representa. Apesar da pessoas através das representações sociais e dos dife-
orientação cognitivista do autor e de sua interpretação rentes discursos que formam o tecido social. Por meio
limitada sobre as razões pelas quais alguns elementos deles, nos sujeitos individuais que se confrontam em
da representação ficam no que denomina “zona muda”, um determinado espaço social, configuram-se os sen-
suas conceitualizações permitem aumentar a visibilida- tidos subjetivos das diferentes esferas de suas vidas, e
de de um aspecto das representações – seus elementos se desenvolvem os processos de significação de si mes-
não conscientizados – que demandam formas indiretas mos e de suas relações com os outros (Mitjáns Martínez
de exploração para avançar na sua compreensão. & González Rey, 2006).
Para Abric (2005) e Menin, (2006), conseguir re- Tal como demonstram Mitjáns Martínez e González
velar os elementos da zona muda de representação im- Rey (2006), há uma confluência de sentidos configura-
plica descobrir e desenvolver novos instrumentos de dos de forma simultânea no espaço social e no sujeito
investigação que permitam demarcá-la e evidenciá-la. individual, ou seja, a qualidade da aprendizagem é in-
Menin (2006) sugere instrumentos que reduzam a pres- fluenciada por elementos de sentido procedentes de
são normativa sobre o sujeito que representa, permi- outras áreas da vida do sujeito, como sua identidade
tindo que ele expresse seus pensamentos através da re- social, e, ao mesmo tempo, pelas emoções desse sujei-
dução dos riscos de julgamento negativo da parte de to, que aparecem através de sua expressão singular.
seus interlocutores. Dessa maneira, as representações sociais estão impli-
Nesse sentido, uma tentativa como o Jogo de Areia, cadas com os temas do subjetivo e da subjetividade
um instrumento inovador de pesquisa (explicitado nos social. Se não fosse assim, a dicotomia mecanicista do
próximos itens deste artigo), apresenta-se como um re- social e do individual acabaria dominando o campo de
curso muito rico para a realização de pesquisas com a estudos das Representações Sociais, ou se cairia na
zona muda das representações sociais e junto a outras negação absurda do individual, defendida, nem mais
formas indiretas de exploração já em utilização, pode nem menos, do que por indivíduos concretos muito bem
abrir novas possibilidades metodológicas e técnicas, que caracterizados em sua definição singular.
permitirão à teoria das representações sociais conhecer Além disso, a separação entre os conhecimentos
desenvolvimentos mais promissores. Assim, o objetivo gerados social e individualmente é extraordinariamen-
central deste artigo é fundamentar e mostrar a utiliza- te frágil, pois em cada momento social de gênese de
ção do Jogo de Areia como recurso metodológico para uma representação aparece um conjunto de sujeitos
o estudo da zona muda das representações sociais, es- individuais, cujas criações, contradições e ações são
pecialmente as representações sociais dos professores centrais na constituição do núcleo figurativo de um
pela significação destas para a prática pedagógica. sistema representacional, ao qual ficam subordinados
por múltiplos mecanismos de caráter social depois que
Subjetividade e Representações Sociais a representação se apropria do espaço social em que foi
engendrada. Este é um processo infinito do desenvol-
O conceito de representação social significou a cria- vimento social (Mitjáns Martínez & González Rey,
ção de uma nova zona de sentido dentro da Psicologia 2006).
Social, orientada a um dos processos mais importantes Outra questão aparece com freqüência no estudo das
da subjetividade social (Mitjáns Martínez & González representações sociais, a partir da concepção da subje-

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434 tividade numa perspectiva histórico-cultural (González conjunto de estados afetivos sobre os quais o sujeito
Rey, 2003): a integração da categoria “sentido” à lingua- pode ou não ter consciência. Esses estados não podem
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gem e ao significado. Nesta perspectiva, a categoria ser ignorados, pois eles, na perspectiva da subjetivida-
“sentido” é muito mais ampla, pois representa uma for- de, se integram nas representações sociais. No Jogo de
mação dinâmica, fluida e complexa, que tem inúmeras Areia, a presença da dimensão emocional resulta às
zonas de sentido que variam em sua instabilidade. Tra- vezes em vivências muito intensas que facilitam a com-
ta-se de um agregado de todos os fatores psicológicos preensão dos sentidos subjetivos produzidos pelos su-
que surgem em nossa consciência como resultado da jeitos e, ao mesmo tempo, a leitura de suas emoções
palavra. O significado, por sua vez, é apenas uma das como pode-se notar nesses comentários de uma autora
zonas de sentido que a palavra adquire no contexto da de cena no Jogo de Areia (Weinrib, 1993, p. 39-40):
fala (Vygotsky, citado por González Rey, 2003). Com o Jogo de Areia você escolhe um objeto coloca-o
Desse ponto de vista, as representações sociais ex- na caixa e torna-se mais consciente de um sentimento. A
pressam realidades sociais que não se esgotam em sua caixa torna-se uma extensão de você mesma. Eu sei o
expressão discursiva e nem na linguagem porque são que é certo para colocar nela. Às vezes entro em confli-
parte de um tecido social constituído e organizado histo- to. Se não parecer direito, eu retiro. Ela torna meus sen-
ricamente, que se reproduz não só nos espaços conver- timentos acessíveis à mim mesma, me ajuda a distin-
sacionais, mas também na constituição subjetiva de seus gui-los. Ela me diz que eu tenho um sentimento – esteja
protagonistas (Mítjáns Martínez & González Rey, 2006). ou não celebrando alguma coisa –. Eu sei como me sinto
O conceito de sentido nas representações sociais, quando faço um cenário. Ele me conta. Assemelha-se um
relacionado à discussão sobre a zona muda aponta para diálogo silencioso entre mim e eu mesma.
duas direções: a primeira é a necessidade de utilização
do conceito de sentido subjetivo (González Rey, 2003, As Representações Sociais e Algumas
2007) para definir o caráter subjetivo das representa- Preocupações no Âmbito do Ensino
ções sociais e suas diferenças com entidades puramen- e da Formação de Professores
te lingüísticas ou discursivas; a segunda, derivada da
primeira, é evidenciar a expressão emocional dos con- As representações sociais e, conseqüentemente, os
teúdos representacionais que até hoje não têm sido sufi- significados e sentidos subjetivos que os professores pro-
cientemente considerados nas teorias das representa- duzem em seus processos de aprender e de ensinar, têm
ções sociais. sido pouco considerados na educação. Mentores e imple-
Para que isso ocorra, é necessário compreender o mentadores de programas ou cursos de formação conti-
estudo da zona muda das representações sociais como nuada, que visam mudanças em cognições e práticas,
um processo complexo que demanda a utilização de têm a concepção de que, oferecendo conteúdos e traba-
instrumentos indiretos que permitam a expressão dos lhando a racionalidade dos profissionais, produzirão
aspectos não conscientizados e dos aspectos emocio- mudanças em posturas e formas de agir a partir do do-
nais que a integram. Nesse sentido, o Jogo de Areia mínio de novos conhecimentos. Essa concepção é mui-
apresenta-se como um instrumento valioso de pesqui- to limitada. Os professores são pessoas integradas a
sa, uma vez que constitui um espaço de produção do grupos sociais de referência, nos quais se gestam con-
sujeito no qual se geram sentidos subjetivos e se expres- cepções de ensino e aprendizagem que constituem repre-
sam processos simbólicos vinculados às representações sentações e valores, os quais participam da forma em
sociais impossíveis de serem explorados de forma dire- que os professores se relacionam com os conhecimen-
ta. Destaca-se assim, o valor metodológico do Jogo de tos que lhes chegam. Ou seja, os conhecimentos são
Areia como instrumento de pesquisa para o estudo das incorporados ou não, em função de complexos processos
representações sociais, reconhecendo-se, no entanto, que não apenas cognitivos, mas sócio-afetivos e culturais
a complexidade da constituição destas, demanda for- (Gatti, 2003).
mas de indagação que não se esgotam com a utilização Não podemos esquecer outro fator presente na es-
de um único instrumento. cola, que pode atuar como empecilho para um trabalho
Na produção de cenas realizadas pelo sujeito no Jogo com as representações sociais dos professores. Há, nas
de Areia, junto com os elementos da representação con- escolas, um forte componente que contribui para com-
tra-normativos defendidos por Abric (2005) – cognições portamentos estereotipados: a tendência ao enquadra-
e crenças que não são expressas pelo sujeito em condi- mento faz com que os professores fiquem presos a este-
ções normais de produção, pois podem entrar em con- reótipos, falando não de suas próprias representações,
flito com valores morais ou normas de um determinado mas do que conhecem das representações de outros gru-
grupo – é necessário considerar as produções de senti- pos com os quais convivem.
do subjetivo que permeiam as representações. Nessas Desse modo, os professores podem ser levados a
situações há, por vezes, uma complexa síntese de um verbalizar somente conhecimentos acerca dos proces-

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sos de ensino e aprendizagem conformes à norma e não disso, nessa atividade, os adultos deixavam cair por terra 435
expressar aqueles que não são conformes. Ou seja, quan- muitas defesas e resgatavam o mundo infantil. Segun-

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do um indivíduo encontra alguém pela primeira vez – do Kalff (citado por Weinrib, 1993, p. 62), “no Jogo
no caso deste estudo, o professor – ele busca, geral- de Areia, lembranças perdidas vêm à tona e fantasias
mente, passar uma impressão favorável. Um dos meios reprimidas são liberadas.”
de criar essa imagem positiva é expressar as atitudes O aspecto central do Jogo de Areia é o conceito de
que parecem as mais adequadas à situação: verbalizar “espaço livre e protegido”, que tem dimensões tanto
somente as opiniões, ou crenças aceitos pelo grupo de físicas quanto psicológicas: enquanto há liberdade para
pertencimento (Abric, 2005). criar aquilo que se deseja na caixa de areia, sua dimen-
Há ainda, por vezes, resistência por parte dos pró- são e o número de miniaturas, embora extensos, são
prios formadores de professores a aceitar uma produ- limitados e “continentes”, criando-se assim uma situa-
ção original que escapa às delimitações impostas por ção segura e protegida. A segurança psicológica de-
tendências dominantes do pensamento pedagógico. corre da atmosfera protegida, na qual o sujeito recebe
Dessa maneira, como já mencionado, o professor limi- aceitação incondicional (Kalff, citado por Weinrib,
ta-se a repetir aquilo que é esperado, cerceando sua 1993). Essas características do Jogo de Areia – a redu-
capacidade reflexiva, suas ações docentes e suas possi- ção dos mecanismos de defesa e a atmosfera protegida
bilidades de transformação. – entreabre uma pista metodológica para favorecer a
Apresenta-se, assim, a necessidade de descobrir e expressão da zona muda das representações sociais tal
de colocar em funcionamento novos instrumentos de como conceituada por Abric (2005): a redução da pres-
estudo das representações sociais de professores, que são normativa que se exerce sobre o indivíduo.
permitam demarcar e evidenciar a zona muda de suas Os procedimentos criados por Kalff para a utiliza-
representações sociais. Sem isso, talvez os estudos e pes- ção do Jogo de Areia consistem na utilização de uma
quisas sobre as representações sociais de professores fi- ou duas caixas com areia, a qual poderá ser molhada
quem limitados à dimensão discursiva de estas e conse- para poder ser moldada. Kalff também sugere uma gran-
quentemente não consigam evidenciar elementos im- de coleção de miniaturas para facilitar a expressão do
portantes a ter em conta no delineamento de estratégias maior número possível de conteúdos, tanto do mundo
de mudanças no processo de formação profissional. O externo quanto do mundo interno, que se constituem
aprimoramento das pesquisas sobre as representações em um conjunto de emoções, sentimentos, pensamen-
sociais dos professores pode contribuir às necessárias tos, valores, expectativas.
transformações que devem acontecer nas formas domi-
nantes em que se forma os professores na atualidade. A Caixa
Como afirma Gatti, (1996), ao continuarmos com os A forma da caixa é retangular, com 72 cm de com-
mesmos métodos de formar professores e prover seu aper- primento, 50 cm de largura e 7,5 cm de profundidade.
feiçoamento, assistiremos, como já temos assistido, a si- Essas medidas correspondem ao campo de visão de uma
mulacros de mudança, mas não transformações reais. pessoa, que se encontra sentada diante da caixa. O fun-
Enfrentar esses desafios exige a busca de caminhos do é pintado de azul claro para representar água, quan-
teórico-metodológicos que permitam lidar com a com- do se desejar. As dimensões físicas da caixa são muito
plexidade contida nas questões anteriormente apon- importantes porque promovem a concentração e, ao
tadas. O jogo de areia, anteriormente citado, utilizado mesmo tempo, limitam e contêm, ou seja, pode-se criar
criativamente a partir de uma concepção das represen- o que se deseja, mas o espaço físico é finito, mantendo
tações sociais como expressão da subjetividade social a fantasia em limites seguros. Assim, é possível aten-
(nós acrescentaríamos: da subjetividade individual) der à característica central do Jogo de Areia: a de espa-
(González Rey, 2003) e devidamente embasado teori- ço livre e protegido.
camente pode ser um recurso muito rico para a reali-
zação desse propósito. A Areia
A areia é considerada por Kalff (citado por Azeve-
O Jogo de Areia do, s.d.) um material extremamente importante por con-
ter, como a terra, elementos naturais primordiais que
O Jogo de Areia foi desenvolvido entre 1954 e 1956 remetem às cenas e brincadeiras da infância. Além dis-
por Dora Kalff, analista suíça formada no Instituto C. so, a areia permite inúmeras sensações táteis e uma
G. Jung em Zurique. Ela enfatizou as possibilidades grande mobilidade: criar espaços elevados, depressões,
desse método psicoterapêutico para trabalhar com adul- fazer buracos, enterrar objetos etc. Ainda segundo Kalff
tos, pois acreditava que brincar livremente, construir (1980, p. 71), “os movimentos fluidos na areia, ou o
cenas e criar imagens passo a passo, reavivava a ima- deixar simplesmente escoá-la por entre os dedos, mos-
ginação e liberava a capacidade de expressão. Além tra que algo começou a mobilizar-se dentro do sujeito.”

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436 As Miniaturas Expansão: O Jogo de Areia como


As miniaturas são variadas e representam todo o Instrumento de Pesquisa
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universo: pessoas de diversas raças e em diferentes épo-


cas e funções; animais; vegetação; pedras; conchas; Alguns estudos mencionados por Franco e Pinto
moradias e construções de diferentes tipos (casas, cas- (2003, p. 98) estão sendo realizados no Brasil, com o
telos, igrejas, pontes, etc.); mobília; utensílios domés- intuito de ampliar o âmbito de utilização do Jogo de
ticos; instrumentos de trabalho; meios de transporte; Areia. Para essas autoras, sem descuidar do risco de
brinquedos de play-ground; figuras religiosas e mito- um ecletismo teórico-metodológico, trata-se de enca-
lógicas etc. Também é importante oferecer materiais rar toda a riqueza inerente a essa técnica em benefício
(de encaixe, por exemplo) que possibilitem construir o da produção de conhecimento científico. Por outro lado,
que não estiver disponível. essas autoras também apontam a necessidade de se bus-
É importante lembrar que as miniaturas, por seu car formas de aplicação específicas, mais abrangentes
valor simbólico, não são apenas analogias de outras coi- e menos elitistas com o Jogo de Areia, para que ele não
sas, mas adquirem vida própria, força real e dinâmica, fique restrito aos consultórios.
valor emocional e conceitual. Além disso, remetem à Na história do Jogo de Areia no Brasil, a criação do
realidade da vida cotidiana, oferecendo-se assim uma PROTEJA (Projetos e Estudos em Terapia com o Jogo
oportunidade para que as pessoas possam perceber va- de Areia) pode ser considerada, um marco de desen-
lores e normas sociais valorizados por seus grupos de volvimento de pesquisas com o Jogo de Areia. No pri-
convivência, podendo questioná-los e expressar suas meiro simpósio do PROTEJA agregaram-se pesquisa-
próprias crenças, cognições e emoções em relação a eles. dores de diferentes universidades e de diferentes áreas
No Jogo de Areia, a produção de sentidos subjetivos do conhecimento que referendou, num certo sentido, a
pode ser compreendida pela dimensão simbólico – emo- inserção do Jogo de Areia em um contexto de pesquisa
cional, pois essa produção não ocorre fora de uma rede acadêmica brasileira. Neste simpósio considerou-se o
de sentidos já constituídos pelos sujeitos na qual o simbó- Jogo de Areia, para além de um método psicotera-
lico e o emocional formam uma unidade. A preparação pêutico, ou seja, reconheceram-se características do Jogo
dos cenários por si só é um ato simbólico e os símbolos de Areia como um novo procedimento metodológico
são representados pelas construções na areia ou pelas na pesquisa qualitativa.
miniaturas que são utilizadas como ferramentas de ex- Por outro lado, as pesquisas em Psicologia e em
pressão. Quando esses processos de simbolização estão Educação com abordagens psicossociais, no caso deste
carregados de vivências emocionais pode se afirmar que estudo, as Representações Sociais, necessitam reconhe-
trata-se de processos de produção de sentido subjetivo. cer novos princípios epistemológicos que orientem as
Uma outra especificidade do Jogo de Areia é a di- pesquisas com esse enfoque. Nesse sentido a Episte-
mensão do fazer, que se expressa pela transformação mologia Qualitativa proposta por González Rey (1997,
visível da matéria: os cenários e a areia. O efeito “mão 2005) constitui uma interessante alternativa epistemo-
na massa” pode ser positivo em pessoas muito intelectua- lógica para o delineamento de pesquisas qualitativas nas
lizadas, habituadas a expressar-se ou até mesmo a “con- quais, o pesquisador, utilizando instrumentos abertos e
trolar” diversas situações apenas por meio das pala- semi abertos de diferentes naturezas possa avançar na
vras. O Jogo de Areia, também pode beneficiar pessoas compreensão de objetos de pesquisa complexos, os quais
que se expressam mal verbalmente (Ammann, 2002). as representações sociais dos professores sobre o ensi-
Há uma especificidade central no Jogo de Areia que nar e o aprender constituem uma expressão. Peter Reason
precisa ser ressaltada: sua capacidade como proce- (1998), ao analisar algumas propostas metodológicas
dimento “projetivo”, uma vez que o sujeito é posto na atuais no campo da investigação qualitativa, também
presença de situações pouco estruturadas. Essa questão sugere outros meios de pesquisa tais como formas expres-
é importante, pois contribui para revelar a zona muda sivas: a dança, o teatro, etc. (e poderia se acrescentar, o
das representações sociais tal como concebida por Jogo de Areia), considerando-as maneiras de conhecer
Abric (2005). que oferecem possibilidades mais ricas, coloridas e in-
Além disso, o Jogo de Areia permite extrapolar ape- tensas para a pesquisa. Esse autor menciona ainda,
nas o conteúdo observável à primeira vista que se ex- atividades como a narrativa de histórias, sóciodramas,
pressa verbalmente, para avançar em possibilidades de teatro de bonecos, desenhos, pinturas, considerando-os
expressão simbólica, figurativa e emocional. Assim, o valiosos canais de expressão para ressignificar histó-
Jogo de Areia pode ser utilizado para compreender as- rias de vida e para validar dados que não podem ser
pectos não conscientizados das representações sociais obtidos por processos ortodoxos de pesquisa.
de professores acerca dos processos de aprender e de É importante lembrar ainda que a própria autora
ensinar, na condição de indutor de informação relevante desse método (Kalff, 1980) afirmou ser o Jogo de Areia
sobre esses aspectos. não apenas um método de psicoterapia, mas também

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um meio que tornaria os conteúdos da imaginação tratar o objeto investigado, como veremos no próximo 437
reais e visíveis. Ou seja, essa premissa justifica outros item.

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enquadramentos teóricos e metodológicos para inter-
vir tanto nas demandas psicoterapêuticas quanto nas O Jogo de Areia como Instrumento:
da investigação em psicologia. Um Exemplo de sua Utilização
Por essa razão, temos utilizado o Jogo de Areia não
como método psicoterapêutico, mas como um instru- Não pretendemos aqui apresentar a pesquisa e seus
mento de pesquisa para tentar compreender as Repre- resultados na íntegra, uma vez que o objetivo deste
sentações Sociais de Professores a partir dos significa- artigo é apenas fundamentar e exemplificar algumas
dos e dos sentidos subjetivos que eles produzem em vantagens na utilização do Jogo de Areia para compre-
relação a seus processos de aprender e de ensinar. ender a zona muda das Representações Sociais. Apre-
sentamos assim, uma breve narrativa sobre a introdu-
O Jogo de Areia na Pesquisa: Integrando ção e a utilização do Jogo de Areia na pesquisa que
as Narrativas à Dimensão Imagética uma das autoras deste artigo realizou, salientando seu
valor como instrumento de pesquisa.
Embora o foco principal de análise seja a dimensão O espaço que escolhemos para evidenciar o Jogo de
imagética do Jogo de Areia, e a cena possa, de certa Areia como instrumento de pesquisa foi um curso de
forma, se auto-narrar, algumas narrativas originadas especialização em Psicopedagogia (da Pós-Graduação
na cena podem contribuir para revelar como o narrador lato-sensu da Universidade Católica de Pernambuco –
interpreta as coisas, ou seja, os significados e sentidos UNICAP/BR) onde uma das autoras já atuava como
das coisas para ele. Como diz Oswaldo Saidon (citado docente e já vinha realizando o trabalho com o Jogo de
por Fernández, 2001, p. 87). “a cena narra na medida Areia na formação dos alunos. Nossa opção por esse
em que produz um acontecimento . . . e a narração con- curso foi a presença de um grande número de alunos
voca a cena.” que atuavam como professores, principalmente na edu-
A narrativa também pode facilitar a compreensão cação básica.
de uma multiplicidade de sentidos na medida em que A pesquisa foi realizada com 36 professores em qua-
permite que inúmeros assuntos aflorem, surgindo, in- tro etapas durante quatro meses subseqüentes. Nessas
clusive, aqueles que não estão presentes na situação etapas os professores eram divididos em quatro gru-
face a face, ou aqueles com os quais nunca tivemos ou pos. Nos três primeiros meses foram vivenciadas qua-
teremos experiência direta (Berger & Luckmann, 1999). tro cenas diferentes: 1ª etapa, cena livre; 2ª etapa, cena
Assim, embora o foco principal do Jogo de Areia seja o de alguém ensinando e alguém aprendendo; 3ª etapa,
aspecto vivencial, as contribuições das narrativas ou cena marcante de aprendizagem e cena marcante de
depoimentos para a compreensão das Representações aprendizagem modificada; a 4ª etapa consistiu na pro-
Sociais dos professores também devem ser conside- jeção dos slides para os participantes das cenas foto-
radas. grafadas nas etapas anteriores.
Nos relatos autobiográficos, algumas vezes os afe- Os objetivos da pesquisa foram indicados a todos os
tos também podem se evidenciar, pois no esforço para participantes, lhes asseguramos que a participação teria
lembrar de alguma coisa, o que mais frequentemente caráter confidencial e que preservaríamos o anonimato
vem à mente é algo excitante, algo desagradável, algo deles. As fotos das cenas em slides e as narrativas das
que causou embaraço, etc. Bruner (1997, p. 56) acres- mesmas, foram realizadas a partir de um consentimen-
centa que “os “esquemas” de memória estão sempre to esclarecido dos participantes.
sob controle de uma “atitude afetiva”. Na primeira etapa da pesquisa, ao observar o ma-
Assim sendo, passaremos a mostrar a utilização terial do Jogo de Areia os participantes da pesquisa
do Jogo de Areia, como um instrumento de pesquisa – demonstravam curiosidade e alegria, principalmente
incluindo os comentários dos participantes durante o diante das miniaturas lembrando, comentando e, por
desenvolvimento das cenas – para compreender as re- vezes, rindo muito de suas brincadeiras de infância.
presentações sociais dos professores sobre os processos Confirmava-se assim o que Weinrib (1993, p. 62) es-
de aprender e de ensinar e sobre suas próprias repre- creve sobre o Jogo de Areia: “o aspecto lúdico parece
sentações sociais acerca desses processos. propiciar ao adulto uma entrada ou um rito de inicia-
Utilizamos o termo instrumento de pesquisa no sen- ção no sentimento, no afeto e no mundo da criança.
tido amplo de qualquer recurso facilitador da expres- Lembranças perdidas vêm à tona, fantasias reprimidas
são do sujeito em relação ao tema em estudo (González são liberadas.” Essa situação evidenciava, pouco a
Rey, 2002). Além disso, o Jogo de Areia pode ser con- pouco, a confluência de uma série de sentidos que se
siderado uma técnica (González Rey, 2002) na medida articulavam na história daqueles alunos/professores ao
em que propõe procedimentos e maneiras de abordar e manipular as miniaturas possibilitando um reconheci-

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438 mento de suas representações sociais sobre os proces- guardadas, ou como diz Abric (2005, p. 24) “elemen-
sos de ensino e aprendizagem. tos não expressáveis . . . escondidos.” Enfim, era como
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Ao realizar a cena livre, na maioria das vezes, os se situações aparentemente incompreensíveis e incon-
participantes da pesquisa representavam episódios da troláveis fossem visualizadas e objetivadas. Isso possi-
vida familiar, revelando assim inúmeros sentidos que bilitava um momento de novas produções de sentidos
iam produzindo nesse contexto. Ao mesmo tempo, e, consequentemente, o reconhecimento de suas repre-
algumas vezes, as cenas livres evidenciavam a proje- sentações sociais acerca dos processos de aprender e
ção de episódios futuros, revelando uma configuração de ensinar.
de sentidos que determinavam em sua integração o Sabe-se que as verdadeiras transformações em
sentido subjetivo da atividade atual desenvolvida pe- uma pessoa requerem muito tempo. Todavia, na última
las autoras de cena. Esses sentidos eram traduzidos e etapa do trabalho, percebemos que o Jogo de Areia pro-
representados por crenças e expectativas em relação à vocava nos participantes da pesquisa inúmeras alter-
vida, às pessoas, aos seus processos de aprender e de nativas de ruptura com o estabelecido, que poderiam
ensinar, revelando-se assim suas representações so- acarretar novas representações sociais e assim, possí-
ciais acerca desses processos. veis transformações em suas ações profissionais.
Ao propor a cena alguém ensinando, alguém apren-
dendo, todos os participantes da pesquisa represen- As Cenas de Rita
taram cenas de relações de ensino-aprendizagem na
escola, vivenciadas no presente ou no passado, possi- Para mostrar de forma específica as possibilidades
bilitando assim uma configuração de sentidos que reve- metodológicas da utilização do Jogo de Areia para o
lava suas subjetividades como pessoas e como profis- estudo das representações sociais, foram selecionadas
sionais. Além disso, os objetos do cotidiano presente algumas cenas produzidas por Rita, uma das partici-
nas cenas ajudava os participantes da pesquisa a criar pantes da pesquisa anteriormente referida.
uma representação simbólica de suas vivências, o que Exemplificar a utilização do Jogo de Areia com uma
facilitava a reflexão, a análise dos processos de apren- professora permitirá ao leitor compreender as possibi-
der e de ensinar, evidenciando-se, ao mesmo tempo, lidades do instrumento para obtenção de informação
suas representações sociais acerca desses processos. relevante em relação à zona muda das representações
Ao realizarem a cena marcante de aprendizagem, sociais em relação ao ensinar e o aprender.
na maioria das vezes, os participantes da pesquisa co- Rita tem 31 anos, nasceu e mora em Recife/BR. É
locavam-se no lugar do aluno. As cenas representavam graduada em Pedagogia e especialista em Informática
situações desagradáveis que vivenciaram na escola, Educativa. Há cinco anos é professora desta disciplina
provocadas principalmente pela postura autoritária de na educação infantil e no ensino fundamental em uma
seus professores que não os reconheciam como sujeitos escola particular. Antes trabalhava como professora no
pensantes ou os desqualificavam como alunos. A se- ensino fundamental.
guir, sugeria-se a realização de uma outra cena, a par-
tir da seguinte instrução: “Se você pudesse modificar A Cena Livre
esta cena, como ela ficaria?” Na cena modificada, na Rita colocou as seguintes miniaturas na cena: me-
maioria das vezes, os participantes da pesquisa repre- ninos, meninas, casas, árvores, uma ponte, uma bici-
sentavam uma situação de aprendizagem que conside- cleta, um escorregador e um balanço de play-ground.
ravam ideal, oferecendo assim possibilidades para a Nessa cena, Rita relata que vivenciou momentos
compreensão dos sentidos que produziam em relação prazerosos que marcaram sua infância em uma praça
aos processos de aprender e de ensinar e, consequente- próxima à sua casa. Nesse lugar, evidenciava-se a cum-
mente, sobre suas representações sociais acerca desses plicidade entre as crianças e o contato com a natureza
processos. e com situações lúdicas e descontraídas. Desses mo-
Na quarta etapa da pesquisa a sequência das cenas mentos, segundo Rita, resultaram inúmeras relações de
realizadas pelos participantes foram mostradas através ensino e aprendizagem.
dos slides, tornando assim mais clara a visualização O significado da miniatura da ponte, foi assim expli-
do processo vivenciado por eles. O distanciamento em citado por Rita:
relação à própria cena fazia com que eles mesmos per- Coloquei a ponte como uma coisa que caracteriza a pra-
cebessem melhor o “lugar” que ocupavam no cenário, ça, porque as praças em geral têm uma ponte, embora
o que facilitou o reconhecimento de suas representa- nessa da minha infância não tivesse.
ções sociais. Em sua cena, acompanhada de seu depoimento,
No final das projeções, os participantes da pesquisa embora Rita não estivesse consciente de que a ponte
manifestaram sentimento de alívio ao “pôr prá fora” poderia significar um elemento de ligação entre sua
suas relações de ensino e aprendizagem há tanto tempo infância e a fase adulta, parece que o simples fato de

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A ZONA MUDA DAS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS: UMA APROXIMAÇÃO A PARTIR DO JOGO DE AREIA

chamar a atenção para ela, e de Rita visualizá-la, fez ção docente. Isso demonstra que “cada configuração 439
com se percebesse melhor. A partir daí, revelou que subjetiva de um espaço social está constituída por

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muitas vezes ainda sonhava com esses momentos de elementos de sentidos procedentes de outros espaços
sua infância, expressando o desejo de integrá-los em sociais, assim como elementos que caracterizam esse
sua vida atual. próprio espaço em momentos históricos anteriores”
Rita expressou suas lembranças a partir dessa cena: (González Rey, 2003, p. 209). Entretanto, Rita diz que
Quero falar sobre a ponte. No início olhei a cena e pen- acabou optando pelo curso de Pedagogia porque era
sei: Será que a ponte tem a ver com a brincadeira? O que financeiramente mais viável, e também porque no cur-
tem a ver com a praça? Mas mesmo assim resolvi colo- so de Engenharia Florestal e Agronomia as mulheres
car. Mas continuei pensando: por que eu a coloquei na eram muito discriminadas.
praça, se na praça de minha infância não tinha uma pon- Nesse depoimento, associado aos seus valores e cren-
te? Será que pensei na estética ou no padrão de praça ças, Rita revelou suas motivações, interesses, expecta-
que eu tinha na cabeça? Em um ideal de praça? Mas tivas, elementos que participavam das suas produções
também pode ser uma questão subjetiva. O que eu estou de sentidos subjetivos, e que eram multideterminantes
querendo dizer com essa ponte? Estou querendo ligar o de suas escolhas profissionais. Ao mesmo tempo, esses
quê com o quê? Será que eu estou querendo fazer uma elementos também participavam de suas representações
ponte com a minha infância? Será que eu estou querendo sociais sobre os processos de aprender e de ensinar que,
voltar a viver a infância? Será que eu consegui sair de lá? por sua vez, se refletiam em suas ações docentes – uma
Esse depoimento revela que Rita começava a per- aprendizagem prazerosa tem que acontecer ao ar livre
ceber o que a ponte representava em sua cena e se e em contato com a natureza.
produziam sentidos subjetivos que integravam diferen-
tes espaços e momentos de sua trajetória de vida. Vin- Cena Marcante de Aprendizagem
culada a essa integração, Rita começava a reconhecer a Rita colocou as seguintes miniaturas na cena: ho-
si mesma na situação que estava enfrentando e podia mens, mulheres, árvores, flores e um relógio. Na cena,
falar de suas lembranças e preocupações atuais, reve- Rita reproduz uma sala de aula tradicional.
lando, assim, aspectos da constituição de sua subjeti- Esta é uma aula de matemática com os alunos em filas
vidade. Por outro lado, também se evidenciava o valor indianas completamente parados, sem reação nenhuma.
simbólico da ponte: sua força real e dinâmica aliada O professor geralmente de costas para os alunos só fica-
aos depoimentos das participantes do grupo, provoca- va fazendo registro no quadro negro. E a gente tentando
va em Rita a confluência de uma série de sentidos que acompanhar... Esse relógio que coloquei na cena signifi-
se articulavam em sua história e nas situações concre- ca a eternidade que eram esses momentos... E, como sem-
pre, do lado de fora coloquei o verde. A gente ficava no
tas dentro das quais ela atuava no momento.
espaço delimitado que era essa sala. Eu era essa mulher
A Cena com Alguém Ensinando e Alguém Apren-
perto da porta, eu ficava sempre ali porque quando me
dendo. Rita colocou as seguintes miniaturas na cena:
dava ‘os cinco minutos’ eu já estava em uma posição
mulheres, homens, várias árvores, galhos de árvores,
estratégica para sair da sala. Eu me sentia, ao mesmo
flores e pedras. tempo, perdida e culpada por não conseguir acompanhar
Acho que um momento de aprendizagem dever ser mui-
a aula. Agoniada, angustiada, com uma vontade de sair
to prazeroso. Eu vivenciei muitos momentos assim... O
dali e de jogar tudo ‘prá cima’.
aprender tem que estar ligado com o prazer e isso tem
Nessa cena, Rita revelou suas emoções, ou seja, con-
relação com o ambiente, com o que você tem em volta,
seguiu exprimir o sentimento de culpa, de confusão e
como você está colocada aí, como você se sente aí... Eu
de angústia em que se encontrava diante daquela situa-
coloquei um lugar de aprendizagem ao ar livre. Sempre
ção. Esses estados afetivos, irão integrando suas repre-
quis estar perto do verde, da natureza. Eu queria que
sentações sociais e suas produções de sentidos acerca
todas as escolas tivessem essa condição.
de seus processos de aprender e de ensinar, o que será
Nessa cena e em seu depoimento, tornam-se mais demonstrado mais adiante em uma outra cena
claras as representações sociais e, como parte delas, os
sentidos que Rita ia produzindo em relação a seus Cena Marcante de Aprendizagem Modificada
processos de aprender e de ensinar. Para ela, a apren- Em vez de modificar a anterior, Rita preferiu cons-
dizagem tem que estar relacionada com o prazer decor- truir outra cena colocando as seguintes miniaturas: ho-
rente do ambiente que a circunda, e este, por sua vez, mens, mulheres, crianças, mesas, banco, árvores, flo-
implica um contato com a natureza. Essa situação é tão res, material escolar, lunetas e outros materiais em cima
marcante para Rita que direcionou suas escolhas no das mesas. Em sua cena, Rita coloca uma situação de
curso de graduação – Engenharia Florestal e Agrono- sala de aula em um espaço externo, em contato com a
mia (não concluídos) – e até hoje interfere em sua atua- natureza.

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440 Esta cena está em um espaço aberto, mas eu coloquei outras cenas deu prá perceber que, apesar de não estar
mesas porque eram necessárias para o registro das aulas. em minha sala de aula ideal, também estou fazendo uma
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Coloquei também materiais concretos para nos ajudar a coisa que eu gosto e passo para os alunos. E acho que
manipular e a pensar a partir de uma coisa concreta. Ou isso é o mais importante, porque ajuda a fluir aquele
seja, você aqui está livre, está à vontade para circular momento de aprendizagem.
pelo ambiente e para sistematizar o conhecimento que Comentário final de Rita sobre o trabalho:
está buscando. Na outra sala de aula a gente via o cálcu- Foi muito bom, porque voltei no tempo. Pensei em vá-
lo, mas não sabia o que fazer com aquilo. Aqui eu estou rias etapas que estavam guardadas lá atrás. Acho que, se
curiosíssima para saber o resultado final. Na outra sala não fosse esse trabalho, nem sei como ia pensar nelas
de aula era a Matemática pela Matemática. Eu nunca fui para avaliar, para fazer essa ponte. Agora sei que eu sou
fã de matemática por conta disso. Têm crianças que odei- um pouquinho do que guardei: do que eu quero que per-
am a matemática até hoje porque nunca tiveram a opor- maneça; do que eu não quero que permaneça e também
tunidade de aprender dentro de um contexto que leve à do que eu já consegui transformar. O trabalho foi exce-
compreensão. Eu nunca daria uma aula dessa forma. Lem- lente! O Jogo de Areia me autorizou a ser o que eu sou.
brando da cena anterior, no mínimo me viraria para falar Me senti muito bem, gostei muito de fazer...
com os alunos. Eu estaria preocupada, sabendo que esta-
va causando aquilo nos alunos e também estaria me Considerações Finais
sentido culpada.
Nessa cena, Rita revelou novas representações Nas vivências realizadas com o jogo de areia, sur-
sociais e, ao mesmo tempo, um movimento de inte- giram várias possibilidades de síntese para compre-
gração de sentidos subjetivos em relação a seus pro- ender as representações sociais de Rita a partir dos
cessos de aprender e de ensinar. Ao colocar mesas em sentidos subjetivos produzidos acerca dos processos
sua cena, objetos escolares e lunetas, ela começou a de aprender e ensinar; a percepção que ela tinha de
perceber que a sistematização do conhecimento pode suas próprias representações sociais; os novos sen-
coexistir com uma situação descontraída de aprendi- tidos que ia produzindo e, conseqüentemente, sua
zagem. Por outro lado, sua aversão pela matemática subjetividade em processo de constituição.
revela suas representações atravessadas pelos sentidos Nas cenas e nos depoimentos de Rita, evidencia-
subjetivos que ela ia produzindo em relação à apren- ram-se suas representações sociais acerca dos proces-
dizagem dessa disciplina. Mais uma vez, revela-se uma sos de aprender e de ensinar atravessados por uma
confluência de sentidos subjetivos que iam sendo pro- confluência de sentidos subjetivos que se ancoravam
duzidos acerca de seus processos de aprender e de em sua história de vida e nas condições concretas em
ensinar: o modo como o professor transmite o conheci- que ela atuava no momento. Isso ajuda a compreender
mento e se relaciona com os alunos em sala de aula a gênese e as possíveis relações entre os sentidos subje-
interfere também nas representações sociais dos alu- tivos que ela ia produzindo nesse processo.
nos e na maneira como o aluno produz sentidos subje- O ato simbólico da preparação dos cenários no Jogo
tivos no processo de aprender. de Areia também constituiu uma expressão de elemen-
tos subjetivos, de visualização de aspectos conflituosos
A Projeção dos Slides e de reflexão; e, também, como um estimulador de
Comentários de Rita: impulsos dinâmicos e criativos, fazendo com que Rita
A cena de aprendizagem ao ar livre me dá uma espécie se percebesse diante da situação em que se encontrava,
de saudade, porque faz tempo que não trabalho assim... e redefinisse suas representações sociais, e produzisse
A gente tem um momento de roda, mas depois as crian- novos sentidos subjetivos em relação aos processos de
ças vão para as máquinas e a sistemática de trabalho é aprender e de ensinar.
diferente. Acho uma coisa comum em todas essas cenas: Além do acesso à maneira como Rita se situava
minha necessidade de contato com o externo, não diria como sujeito reflexivo, o Jogo de Areia também possi-
só com a natureza, mas com mais espaço para fazer do bilitou acesso às emoções que ela sentia em diferentes
jeito que eu quero. Mas, na cena livre, eu também perce- situações de ensino e aprendizagem, em diferentes
bi que havia limitações. Eu morava em frente à praça, momentos de sua vida. Podia-se assim compreender,
via todo mundo brincando, mas nem sempre eu podia ir com mais clareza, suas representações sociais e, conse-
para lá... Eu sonhava morar lá, mas, na verdade, não era qüentemente, suas produções de sentidos subjetivos
isso o que eu queria, eu estava buscando aquela sensa- nesse processo. Exemplo dessa situação aparece quan-
ção boa, aquilo que o local, o espaço traziam prá mim... do Rita expressa seus sentimentos como aluna e como
Eu acho que ainda tem entraves fortes, ainda não che- professora, em suas cenas marcantes de aprendizagem,
guei ao meu ideal, no que eu quero, que ainda falta mui- e a mesma modificada, dizendo sentir-se em aula de
to para encontrar, mas estou buscando. Além disso, nas matemática “ao mesmo tempo, perdida e culpada por

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A ZONA MUDA DAS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS: UMA APROXIMAÇÃO A PARTIR DO JOGO DE AREIA

não conseguir acompanhar a aula . . . agoniada, angus- processos de aprender e ensinar, questão que pode ser 441
tiada, com uma vontade de sair dali...”; e, como profes- relevante para os especialistas interessados no melhor

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sora, “nunca daria uma aula dessa forma. No mínimo delineamento dos sistemas de formação profissional.
me viraria para falar com os alunos. Eu estaria preocu-
pada sabendo que estava causando aquilo nos alunos e Referências
também estaria me sentindo culpada.”
Esses estados emocionais iam definindo suas repre- Abric, J. C. (2005). A zona muda das representações sociais. In D. C.
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entre representação social e produção de sentidos sub-
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trumentos, pode contribuir significativamente para a
Received 09/11/2008
compreensão da constituição e do desenvolvimento da Accepted 10/05/2009
subjetividade dos professores no exercício de seus

Beatriz Judith Lima Scoz. Centro Universitário FIEO, São Paulo, Brasil.
Albertina Mitjáns Martinez. Universidade de Brasília, DF, Brasil.

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