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Construqäo dos objetos de discurso

e categorizaqäo: Uma abordagem dos


processos de referenciaqäo
Lorenza Mondada e Daniéle Duboisl

Resumo
A idéia segundo a qual a lingua é um sistema de etiquetas
que se ajustam mais ou menos bem ås coisas tem atravessado
a historia do pensamento ocidental. Opomos uma outra
concepqäo segundo a qual os sujeitos constroem, através de
pråticas discursivas e cognitivas social e culturalmente situadas,
..versöes püblicas do mundq.
De acordo com esta segunda visäo, as categorias e os
objetos de discurso pelos quais os sujeitos compreendem o
mundo nao säo nem preexistentes, nem dados, mas se
elaboram no curso de suas atividades, transformando-se a partir
dos contextos. Neste caso, as categorias e objetos de discurso
säo marcadas por uma instabilidade constitutiva, observåvel
através de operaqöes cognitivas ancoradas nas pråticas, nas
4tividades verbais e näo-verbais, nas negociacöes dentro da
interaqäo.
Existem, todavia, pråticas que exercem um efeito
estabilizador observåvel, por exemplo, na sedimentagåo das
categorias em prot6tipos e em estereötipos, nosprocedimentos
para fixar a referéncia no discurso, ou no recurso äs técnicas
de inscriqäo como a escrita ou as visualizaqöes que permitem
manter e "solidificar" categorias e objetos de discurso.
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andamento cientffico e o discurso que ele produz, notadamente


Da "referéncia" aos processos nas ciéncias experimentais ou naturais, repousa sobre a hip6te-
de "referenciaqäo" se de um poder referencial da linguagem que é fundado ou
legitimado por uma ligacäo direta (e verdadeira) entre as pala-
A questäo de saber como a Ifn a refere o mund tem vras e as coisas.
sidp colocada hå muito tempo em diversos quadros conceituais. Pode-se considerar que as ciéncia•s cognitivas reatualizam
Se as respostas säo diferentes, a maior parte pressupöe ou visa esta questäo, com seus pressupostos e dificuldades: os proble-
uma relacäo de correspondéncia entre as palavras e as coisas, masreencontrados pelo tratamento artificial das Ifnguas natu-
correspondéncia dada, preexistente e perdida, ou recuperar, rais em
traducäo automåtica, a prop6sito do diålogo
(quer seja
encontrar no exercfcio da atividade cientffica, por exemplo. homem-måquina, ou em robötica) revelam a dimensäo proble-
Esta perspectiva se exprime através das metåforas do espelho e måtica de um
modelo baseado num "mapeamento" das pala-
do mais recentemente, do "mapeamento" (mapping,
reflexo, e, vras sobre as coisas, que avalia as performances discursivas
matching), que se referem todas a uma concepcäo especular m in o seu grau de correspondéncia com o mundo exterior.
do saber e do discurso, considerada como uma re-presentacäo Este ponto de vista pressupöe que um mundo_ autonomo jå
adequada da realidade (Rorty, 1980). Esta concepqäo investe discretizado em objetos ou "entidades" existe independente-
em mais nfveis de anålise da linguagem: assim, a sintaxe foi mente de qualquer sujeito que se refira a ele, e que as repre-
avaliada em relacäo ä sua capacidade de cartografar a "ordem >entacöes lingüfsticas säo instrucöes que devem se ajustar ade-
natural do •mundo"; as gramåticas foram concebidas para quadamente a este mund02.
corresponder a uma 16gica profunda subjacente ä Ifngua e des- Propomo-nos reconsiderar aqui quaisquer argumentos
(Padley, 1985; Cohen, concernentes ao que estå na base desta concepqäo e que se
1977; Grace, 1987). Mais recentemente, no quadro da lingüfsti- manifestam de maneira recorrente, em particular nos debates
ca cognitiva, a mesma concepqäo trata o sistema lingüfstico em contemporäneos em ciéncias co nitivas: nos nos debruqare-
termos de "gramåtica espacial" e de "motivacäo icönica", na mos sobre a noqäo de referencia em si mesma, através de um
tentativa de fundamentar as estruturas lingüisticas nos princfpios questionamento relevante da lingüfstica e da psicologia cognitiva.
cognitivos "naturais" (Dubois; Resche-Rigon, 1995). Esta con- Com efeito — no lugar de partir do pressuposto de uma
cepqäo se manifesta também nos trabalhos de pesquisa de Ifn- segmentaqäo a priori do discurso em nomes e do mundo em
guas ideais (Eco, 1993), estimuladas pela tentativa ut6pica de entidades objetivas, e, em seguida, de questionar a relacäo de
encontrar e constituir uma lingua perfeita em adequacäo total correspondéncia entre uma e outra — parece-nos mais produti-
com o mundo. Esta perspectiva é compartilhada pelo discurso vo questionar os proprios processos de discretizacäo. Deseja-
comum e pelo senso comum: a crenca em um mundo exterior mos, além disso, sublinhar que, no lugar de pressupor uma
é uma propriedade central da "razäo mundana" ("mundane gstabilidade a priori das entidades no mundo e na lingua, é
reason", Pollner, 1987), que då uma inteligibilidade e uma possfvel reconsiderar a questäo partindo da instabilidadg
descritibilidade ä realidade cotidiana, äs suas representaqöes constitutiva das categorias por sua vez cognitivas e lingüfstica,s,
comuns, aos raciocfnios de todos os dias; que permitem, além assim como de seus processos de estabilizacäo.
disso, tratar as contradiqöes ou os conflitos entre as versöes Isto nos leva a deslocar nossa atenqäo do problema das
mültiplas e as discordåncias das "mesmas" pealidades como entidades da Ifngua, do mundo ou da cogniqäo para a anålise
sendo imputåveis ao erro ou ä loucura. Do mesmo modo, o
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dos processos que a constituem, assegurando a essas entidades traremos que esta questäo pode ser revisitada em termos de
uma evidéncia e uma estabilidade mais ou menos grandes. O 'objetos de discurso" (Mondada, 1994) e de "categoriza€äo"
problema näo é mais, entäo, de se perguntar como a informa- (Dubois, 1995). Estas abordagens lingüisticas e psicolögicas eståo
fäo é transmitida ou como os estados do mundo säo represen- estreitamente imbricadas, na medida em que todas duas säQ
tados de modo adequado, mas de se buscar como as atividades concernentes äs pråticas e aos discursos; elas devem, todavia,
humanas, cognitivas e lingüfsticas, estruturam e däo um senti- ser diferenciadas a fim de evitar uma reducäo de um nfvel a
do ao mundo. Em outros termos, falaremos de referenciagäo, outro. O fundamento comum de nossas abordagens é a impor-
Iratando-a, assim como ä categorizaqäo, como advindo de prå- tincia concedida ä dimensäo intersubjetiva das atividades lin-
Ocas simbölicas mais que de uma ontologia dada. Como diz güfsticas e cognitivas, responsåvel pela produqäo da ilusäo de
Rastier, a referenciacäo nao diz respeito a "uma relacäo de re- um mundo objetivo (da objetividade do mundo), "pronto" para
presentacåo das coisas ou dos estados de coisas, mas a uma ser percebido cognitivamente pelos indivfduos racionais-
relacäo entre o texto e aparte näo-lingüfstica da pråtica emque Vamos, primeiro, mostrar que a mudanca e a instabilidade
ele é produzido e interpretado" (1994:19). Estas präticas näo nao säo, de modo nenhum, excecöes ou problemas, mas uma
säo imputåveis a um sujeito cognitivo abstrato, racional, inten- (limensäo intrfnseca do discurso e da cognicäo. Analisaremos,
cional e ideal, solitårio face ao mundo, mas a uma construcäo ern seguida, alguns procedimentos pelos quais a estabilidade é
de objetos cognitivos e discursivos na intersubjetividade das produzida»criando efeitos de objetividade e de realidads — quea
negociaqöes, das modificaqöes, das ratificaqöes de concepqöes (lesde entäo,näo podem ser considerados como dados, mas
individuais e püblicas do mundo. como resultantes de processos simbölicos complexos.
Em resumo, passando da referéncia referenciagäo, va-
mos questionar os processos de discretizaqäo e de estabiliza-
sap. Esta abordagem implica uma visäo dinåmica que leva em A instabilidade generalizada
conta näo somente o sujeito "encarnado", mas ainda um sujeito
socio-cognitivo mediante uma relaqäo indireta entre os discur- A literatura cientffica é atravessada pela constataqäo de um
sos e o mundo. Este sujeito conströi o mundo ao curso do grande numero de divergéncias entre a linguagem ou o conhe-
cumprimento de suas atividades sociais e o torna eståvel graqas (irnento humano e o mundo entre os nomes seus sentidos
äs categorias — notadamente äs categorias manifestadas no dis- comuns, seus usos, seus conceitos e as "coisas". A perspectiva
curso. Isto significa que, no lugar de fundamentar implicita- litöpica (ou nostålgica) de uma cartografia perfeita entre as
mente uma semantica lingüfstica sobre as entidades cognitivas palavras e as coisas considera, de uma parte, näo somente que
abstratas, ou sobre os objetos apriori do mundo, nös nos pro- os objetos säo eståveis e dados a priori de um ponto de vista
pomos reintroduzir explicitamente uma pluralidade de atores extensional (e perceptual), mas também que eles tem proprie-
si!uadps que discretizam a lingua e o mundo e däo sentido a (lades "essenciais", "intrfnsecas" e "inerentes" que säo mantidas
glei? constituindo individualmente e socialmente as entidades. rnesmo quando o objeto evolui perceptualmente ao "sofrer"
Este artigo tenta articular nossas avaliacöes disciplinares iransformaqöes materiais (ver Schnedecker e Charolles, 1994).
para identificar os niveis de anålise lingüfstica e psicolögica outra parte, esta perspectiva tende a interpretar as ativida-
pertinentes que se deve levar em consideraqäo quando se de- des do sujeito como marcadas pelas "negligéncias", pelas "fal-
seja formular a questäo da referéncia. Mais precisamente, mos- tas de precisäo", pelas "dificuldades em nomear" ou mesmo
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pelos "erros" e "insucessos", imputäveis também äs imperfei- car uma pessoa: ela pode ser igualmente tratada de
qöes das Ifnguas "naturais" (em oposicäo äs Ifnguas sagradas 'antieuropéia" ou de "nacionalista" segundo o ponto de vista
ou artificiais), ou as mås realizacöes, ä incompletude de um ide016gico adotado; diacronicamente, um "traidor" pode tor-

sistema cognitivo imperfeito (popular, ignorante, até mesmo nar-se um "her6i". O problema tem Sido colocado mais radical-

patolögico ou, nåo hå muito tempo, herético). mente por Harvey Sacks no quadro da etnometodologia: em
De um modo mais positivo, gostariamos de analisar alguns vez de avaliar as categorizagöes, buscando-lhes adequacäo
dados empiricos que nos permitam definir os processos referencial, correspondéncia e veracidade (por exemplo, indo

subjacentes a tais imperfeiqöes, reconsideradas, de modo contrå- observar se uma pessoa categorizada como "negra" é efetiva-

rio, em termos de recursos lingüfsticos, discursivos e cognitivos mente um negro), ele se propöe estudar como a categorizacäo
necessårios para tratar eficazmente da referenciaqäo. No que se- é um problema de decisäo de dependéncia que se coloca para

gue, mostraremos, em primeiro lugar, como as categorias säo os atores sociais, e como eles o resolvem selecionando uma

geralmente inståveis, variäveis e flexfveis. Em segundo lugar, cgtegoria em vez de outra dentro de um contexto dado. A ques-

analisaremos estas instabilidades como sendo inerentes aos ob- tao näo é mais avaliar a adequaqäo de um r6tulo "correto", mas

jetos de discurso e as pråticas, e como estando ligadas as propri- de descrever em detalhes os procedimentos (lingüfsticos e s6-
cåo-cognitivos) pelos quais os atores sociais se referem uns aos
edades intersubjetivamente negociadas das denominagöes e
categorizaqöes no processo de referenciaqäo: estas ültimas näo outros — por exemplo, categorizando qualquer um como sendo
um "homem velho", em vez de um "banqueiro", ou de um
säo mais consideradas como algo que estabiliza uma ligacäo
4izetg com o mundo, mas como processos que se desenvolvem
"judeu" etc., tendo em conta o fato de algumas destas categori-

no seio das interaqöes individuais e sociais com o mundo e com as poderem ter eventualmente conseqüéncias importantes para

os_outros, e por meio de mediacöes semiöticas complexas. a integridade da pessoa (Sacks, 1972; 1992).
Tais variaqöes no discurso poderiam ser interpretadas como
dependentes da pragmatica da enunciaqäo, mais que da seman-

A instabilidade das retaqöes tica dos objetos. Neste caso, elas deveriam afetar os objetos soci-

entre as palavras e as coisas ais,mais que os objetos psiquicos, cuja semantica poderå ser
considerada como escapando ä ideologia, como mais precisa,
eståvel,senäo até ligada a valores de verdade. De fato, argumen-
As categorias utilizadas para descrever o mundo mudam,
tar-se-ånäo somente que näo é nada disso, que os objetos soci-
por sua vez, sincrönica e diacronicamente: quer seja em discur-
Ais näo säo um desvio do modo "normal" de referir, mas que, de
sos comuns ou em discursos cientificos, elas säo mültiplas e
Inodo simétrico, trata-se de considerar'a referéncia aos objetos
inconstantes; säo controversas antes de serem fixadas normativa
do mundo psiquico e natural, no ambito de uma concepqäot
ou historicamente.
geral do processo de categorizaqäo discursiva e cognitiva tal como

Variaqöes sincrönicas e diacrönicas eles säo observåveis nas pråticas situadas dos sujeitos.

dos usos categoriais comuns Depois da teoria dos protötipos de Rosch, as abordagens da
categorizaqäo evolufram do quadro filosöfico clåssico que trata

A variabilidade das categoriza€öes sociais mostra que hå da formaqäo dos conceitos para uma perspectiva mais ecolögica

sempre, por exemplo, muitas categorias possfveis para identifi-


que considera que a organizacäo do conhecimento humano é
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