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DOI: 10.1590/1413-81232021264.

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Taquete SR, Borges L. Pesquisa qualitativa para e epistemológicas são discutidas e norteiam a expo-
todos. Petrópolis: Vozes; 2020. sição das dimensões mais técnicas e operacionais da

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utilização do método.
Wilza Vieira Villela Contando “velhas histórias de um modo dife-
(https://orcid.org/0000-0002-6246-2716) 1 rente” as autoras iniciam a conversa brindando o
leitor com narrativas históricas sobre os modos de
1
Medicina Preventiva, Universidade Federal de São entender e interpretar o mundo, que mesmo base-
Paulo. São Paulo SP Brasil. wilza.villela@gmail.com ados em lógicas bem distintas das que usamos hoje
para explicar a vida, garantiram a sobrevivência e
evolução da espécie4. Este percurso chega até a idade
Inspiradas por Cora Coralina, que num dado moderna, quando o conhecimento produzido pelo
poema diz que não faz versos ou poesia, apenas conta método científico se torna sinônimo de verdade.
velhas histórias de um modo diferente1, as autoras Entretanto, há vários pontos de parada, em teo-
apresentam o volume Pesquisa qualitativa para todos rias filosóficas ou das ciências sociais que buscam
anunciando a sua intenção: não fazer um tratado den- explicar as relações entre individuo e sociedade, a
so nem um manual de pesquisa qualitativa. Pretendem produção de subjetividades e sua objetivação. Sem
sim contar o que aprenderam sobre o tema ao longo pretender que seja um ponto de chegada, a narrativa
dos vários anos como pesquisadoras e docentes em compreende até reflexões mais práticas e atuais sobre
cursos de Pós-Graduação na Faculdade de Ciências o uso de softwares na pesquisa qualitativa.
Médicas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Num primeiro momento, o jeito diferente de
A busca por um caminho alternativo entre um contar a velha história não é óbvio. Do mesmo
tratado formal e um manual se justifica por duas ra- modo que na pesquisa qualitativa, é preciso forçar
zoes. A primeira considera a sua utilidade: estudantes um estranhamento para não tomar o discurso do
da área de saúde, especialmente da área médica, nem outro como um já sabido.
sempre estão familiarizados com a leitura de textos No entanto, conforme se avança na leitura dos
teóricos ancorados nas ciências sociais e na filosofia onze capítulos compõem o livro (e que podem ser
que constituem a maioria dos tratados sobre o méto- lidos de forma independente, já que cada capítulo
do. Ao mesmo tempo, a simplificação dos manuais por aborda um conteúdo específico) este jeito diferente
vezes incorre em reducionismos, comprometendo a de contar a velha história vai se desvelando. Os temas
densidade teórica necessária para que os resultados de abordados são amplos e visam abarcar polos teóricos
uma investigação qualitativa não se confundam com e técnicos, e os capítulos são encadeados de modo
conhecimentos produzidos pelo senso comum2. No a evidenciar a indissociabilidade entre ambos; os
afã de sintetizar os fundamentos teóricos do método conteúdos explorados em cada tema/capítulo tam-
qualitativo por vezes os manuais deixam de apresentar, bém são amplos, juntando referencias tradicionais
na sua extensão e complexidade, as potencialidades no campo a outras mais contemporâneas, locais e
do uso desta abordagem2. Perdem, assim a sua ope- contextuais e, principalmente, reiterando a articular
racionalidade, pois nem sempre é simples seguir os teoria e prática.
passos descritos no manual, e muitas vezes a tentativa No decorrer da leitura vai se vislumbrando com
não resulta na produção de um conhecimento útil e mais nitidez as professoras frente aos seus alunos e
inovador. as pesquisadoras frente aos seus interlocutores de
A segunda razão diz respeito ao posicionamento pesquisa. Comprometidas com o aprendizado, a
das autoras em relação ao diálogo e às trocas intersub- compreensão do outro e o compartilhamento das
jetivas. Inclusive é este posicionamento que determina suas experiências, atentas a cada dúvida ou ques-
a sua opção por uma abordagem que tem como um tionamento.
dos seus pressupostos a importância dos afetos, cren- A escolha de apresentar os caminhos que con-
ças e valores na produção de sentidos e significados feriram sentido e significado à pesquisa qualitativa
das experiências para os sujeitos3. para as autoras captura o leitor. Não há uma oferta de
Assim, escrever um livro sobre pesquisa qualita- soluções ou dicas para uso. As narrativas, reflexões, e
tiva é, para as autoras, um meio de compartilhar sua sugestões esclarecem o leitor e instigam a sua curio-
experiência, incluindo escolhas e valores. Representa sidade no sentido de aprofundar as referencias que
também um posicionamento de diálogo e troca, dão suporte à abordagem qualitativa como estratégia
como leitor. válida para investigação científica na área da saúde.
Nesta troca, as autoras buscam apresentar de O sujeito humano, alvo das práticas em saúde,
forma simples e acessível, diferentes aspectos da in- se constitui como tal a partir da sua singularidade,
vestigação qualitativa. Dimensões teóricas, filosóficas formada por afetos, emoções, crenças e valores. Para
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conhecê-lo são necessárias formas de objetivar sua orientações sobre as dimensões práticas da pesqui-
subjetividade, o que é possível por meio das trocas sa. Ancorado numa perspectiva teórico-conceitual
intersubjetivas mediadas pelo uso da linguagem. consistente, o passo a passo da pesquisa – definição
Mas essas trocas precisam ser situadas e decodi- e recorte do objeto, definição de referencial teórico
ficas, para que a fala do sujeito se transforme na e estratégias de produção e análise de dados, ela-
reverberação das falas/discursos dos vários sujeitos boração do projeto e escrita de relatório e artigos
que habitam seu espaço social. As várias técnicas de divulgação dos resultados – não se transforma
de produção e análise dos dados qualitativos, em receita para uso comum.
apresentadas pelas autoras correspondem à plu- Do mesmo modo, a apresentação de estraté-
ralidade de teorias apresentadas anteriormente, e à gias de validação da pesquisa e seus resultados e a
posição das autoras em oferecer um leque grande discussão sobre aspectos éticos da pesquisa quali-
de possibilidades para que o leitor/pesquisador tativa, não são um repertório de condutas a serem
encontre a que lhe parece fazer mais sentido a cada seguidos. Ao contrário, são reflexões e sugestões
momento/objeto de pesquisa. para que o leitor entre em diálogo a partir dos seus
Na área da saúde a delicada relação entre ob- próprios valores e interesses e como pesquisador.
jetividade e subjetividade exige, mais que nunca, Um último ponto deve ser ressaltado, com res-
o uso de ferramentas conceituais e técnicas pre- peito à persistência, principalmente entre aqueles
cisas para operar a transformação da fala de um que estão iniciando no mundo da pesquisa, de um
sujeito num dado científico. A descrição objetiva suposto confronto entre métodos quantitativos e
do corpo humano e mensuração de cada aspecto qualitativos. Trata-se de estratégias distintas, com
do seu funcionamento é um requisito para as finalidades diversas e, portanto, não passíveis de
práticas terapêuticas. Nela se baseiam as interven- comparação. As autoras acertam em reconhecer
ções clínicas. Entretanto, intervenções em saúde que existe este tipo de querela, e acertam uma
se dirigem a doenças- lesões ou disfunções, que segunda vez em não entra nesta polêmica. A inves-
ocorrem num sujeito, portador de uma história e tigação qualitativa não pretende produzir verdades
de um universo afetivo singular. Mesmo a doença ou certezas, e sim desvendar a trama de sentidos
mais bem descrita nos tratados médicos adquire que confere intelegibilidade às experiências ao
características particulares para cada sujeito que sujeito situado histórica e culturalmente. A pro-
a vivência. posta de Taquette e Borges é fornecer elementos
Ter ferramentas para compreender as dinâmi- para aqueles que pretendem se aventurar nestes
cas subjetivas que delineiam processos de produ- caminhos.
ção de saúde e de adoecimento amplia o escopo do Ao apresentar múltiplas superfícies da investi-
trabalho e da pesquisa em saúde. Talvez por esta gação qualitativa as autoras dão valiosos subsídios
razão as autoras tenham sido tão criteriosas ao para a compreensão e o uso dessa estratégia de
apresentar a perspectiva compreensiva da investi- produção de conhecimento. Mesmo que a mola
gação qualitativa e a importância da subjetividade propulsora para o livro tenha sido a experiência
inerente ao humano, em qualquer processo de pro- das autoras com estudantes e pós-graduandos da
dução de conhecimento e no trabalho em saúde. área da saúde o livro pode ser útil e interessante
Lembretes simples, como o lugar da ciência para qualquer pesquisador que queira ter uma
no conjunto de saberes que orientam as decisões e visão ampla sobre a investigação qualitativa. Daí a
práticas cotidianas dos sujeitos, ajudam a delimitar feliz escolha do título: Pesquisa Qualitativa PARA
as potencialidades do uso do método. Explica- TODOS.
ções claras sobre as características do método o
científico, demonstrando que sua especificidade
não é a produção de verdades, e sim de consensos Referências
provisórios, contribuem para afirmar a cientifici-
dade do método qualitativo e deixar o leitor com 1. Coralina C. Poemas dos becos de Goiás e estórias mais.
vontade de prosseguir a leitura. A apresentação de São Paulo: Global Editora; 1984.
2. Denzin NK, Lincoln YS, editores. The Sage handbook
diferentes teorias oriundas das ciências sociais para of qualitative research. Thousand Oaks: Sage Publica-
fundamentar a escolha pela pesquisa qualitativa tions; 2011.
também é um recurso para ilustrar as várias pos- 3. Becker HS. Segredos e truques da pesquisa. Rio de Janeiro:
sibilidades interpretativas de um mesmo evento, Zahar; 2007.
mais uma vez desfazendo a ideia de que a ciência 4. Harari YN. Sapiens: A brief history of humankind. Park
Imperial: Random House; 2014.
produz verdades. E este arcabouço geral situa as

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