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oait1i22, 02:59 2.3. Uma breve digressio histrica ~ Esteredtipos Esterestipos Os estereétipos e a psicologia social 2.3. Uma breve digressao histérica A principal referéncia de estudo da histéria dos preconceitos e esteredtipos na psicologia social permanece sendo a obra de Duckitt (1992a, 1992b, 2010), da qual adotamos a perspectiva geral que orienta nossas anilises no presente capitulo. Duckitt e outros estudiosos da histéria dos preconceitos acolhem a suposigéo de que, até o final da segunda década do século XX, 0 preconceito nao era visto como um problema social. inexistia, portanto, a preocupacao em evitar expressa-lo, embora isto no significasse que antes desta época grupos sociais, etnias ou nacionalidades nao avaliassem de forma negativa ou convivessem com imagens mentais desqualificadoras dos outros grupos sociais. Para recensear alguns esterestipos sobre os povos da antiguidade adotamos como referéncias as obras “A invengdo do racismo na Antiguidade" (Isaac, 2004), “Repensando os outros na Antiguidade” (Gruem, 2011) e “A invengiio do racismo. Antiguidade e medievo” (Delacampagne, 1995). Para a discussdo dos esteredtipos na idade média e no inicio da modernidade, servimo-nos, sobretudo, da edicdo em portugués do livro de Bethencourt (2020) que, embora seja dedicado ao estudo do racismo e parta da premissa de que o racismo e os preconceitos sociais devem ser entendidos como fendmenos decorrentes dos projetos politicos dos varios agentes sociais, discute como os esteredtipos serviram como um meio de oferecer legitimidade e respaldo a tais projetos ao longo da historia. Consideramos estas obras, em conjunto com outras referéncias distribuidas ao longo desta secdo, fundamentais para o estudo da evolucao histérica dos esterestipos, preconceitos e racismos. A palavra preconceito (Brown, 1995), no sentido como a compreendemos hoje, uma antipatia injustificada em relacdo a algum grupo social, nao existia; muito menos 0 entendimento de que algumas pessoas eram mais preconceituosas do que outras. A nocéo de esteredtipos é ainda mais recente, surgindo apenas no final do século XIX, hitpsilestereotipos netuma-oreve-digressaoshistorical ‘vee 911/22, 02:59 2.3. Uma breve cgressohstérica— Estrestipos embora na segunda década do século XX tenha conhecido um deslize de significado cujo resultado permitiu a assungao do sentido ao qual a atribuimos hoje em dia. A naturalizacao das relacdes desiguais nao é algo estranho as sociedades humanas se considerarmos que, desde a antiguidade até os nossos dias, a escravidao e o dominio de uns povos sobre outros foram fenédmenos recorrentes nos contatos entre os grupos humanos. As relacdes assentadas em critérios assimétricos eram vistas como absolutamente naturais até 0 inicio do século XX, quando se impés uma certa sensibilidade em relagao aos problemas das diferencas entre os individuos e os grupos humanos. Dominar, colonizar, escravizar; apenas de algumas décadas para cd estas praticas passaram a ser consideradas abomindveis, injustas e pouco éticas. A tese prevalecente na longa trajetéria da humanidade era a de acatar o entendimento de que alguns grupos tinham o direito e, em algumas versdes, até mesmo o dever, de conquistar as terras pouco civilizadas e impor suas visdes de mundo aos povos dominados. Esta seco do capitulo é dedicada a apresentar, de forma necessariamente breve e esquematica, a evolucao histérica de algumas das principais crengas estereotipadas vigentes na atualidade. Para tal, o argumento serd desenvolvido com base em um modelo, encontrado na figura 11, no qual esto incluidas as etapas classicas da periodizagao histérica, sem descuidar dos desenvolvimentos dos estereétipos a partir do século XX. so CSC~*~SSSS*~*~*S*~sSS*~S SS = Especializagao e~ - NNatwralizagao dos | bissensdes e s > Atiudinal |p protusto de niveis esteredipos eo. ge Mh | eonltos M v y y Sociedades Cognitvamente avaroe’”—migragoes e tradicionais (Olimismrio taticamente motivado guerra ao terror y v y v ipa ae Sinieses @ Novas eenatios Antiguidade otimismo pluralidade v v RevisOes sistemdticas Complementariedade Mundo Em busca de medieval weorias Z Modelos mutiniveis Bots e big data v Individuo undo podem: Contexto, y Mundo confito contemporéneo Figura 11: desenvolvimento dos esteredtipos e preconceitos, da Antiguidade ao século XX hitpsilestereotipos netuma-oreve-digressaoshistorical 2192 oariza, 0250 2.2. Una rove cgresséo itica~ Etorestinos Discutiremos, inicialmente, os esteredtipos nas sociedades tradicionais e na antiguidade, prosseguindo com as formulacées presentes no periodo medieval até chegarmos & idade moderna. Como bem deve suspeitar 0 leitor, apresentaremos argumentos essencialmente especulativos e construidos & luz dos conhecimentos disponiveis na atualidade a respeito de como teriam sido as relacdes entre os diferentes grupos humanos nos distintos periodos da histéria. Importa assinalar os trés elementos que consideramos decisivos na construcao das teorias psicossociais e balizam a nossa narrativa, 0 que nos levou a acentuar trés modalidades de teorias: as assentadas sobre as diferencas individuais, elaboradas sobretudo a partir de argumentos centrados na ideia de descendéncia; as teorias cuja @nfase recai nos elementos contextuais, particularmente os associados com 0 impacto do clima e do territério nas condutas humanas; e as teorias hierarquizadoras centradas nas anélises dos conflitos de poder e das diferengas de status entre os grupos. Segundo a interpretacao de Bethencourt (2020), a construgéo dos relatos sobre 0 outro exige a atribuicao sistematica de significados e o desenvolvimento de interpretagées por parte dos percebedores a respeito de uma série de pistas e indicadores visuais, como também depende de teorias elaboradas a partir do senso comum, nas quais sao aludidos fatores como os efeitos dos diferentes tipos de ambiente, as caracteristicas comuns herdadas pelos membros de um grupo e a influéncia das concepgoes religiosas na conduta dos individuos. No caso dos estere6tipos, as pistas visuais se associam basicamente & aparéncia fisica, destacando-se elementos inerentes as caracteristicas fenotipicas (cor da pele, anatomia dos olhos, ldbios e narinas, tipo de cabelo, barbas e pilosidades), bem como fatores estritamente associados aos vestudrios (roupas, enfeites e acessérios). Estas pistas tendem a ser utilizadas para a elaboragdo de teorias e articulagao entre os elementos perceptuais e as teorias, por sua vez, ajudam o agente a elaborar explicagées e justificar as suas condutas em relacao aos outros e a si mesmo 2.3.1. Sociedades tradicionais Em geral os grupos étnicos atribuem a si um nome cujo significado pode ser traduzido como humano. Os egipcios antigos, por exemplo, denominavam a si mesmos rame, os homens, considerando os demais povos uma massa amorfa. Nestes termos, os outros povos nao seriam tio humanos quanto os que assim se autonomeiam, sendo crivel supor um claro distanciamento entre o préprio grupo, os autéctones, e 0 os outros, os hitpsilestereotipos netuma-oreve-digressaoshistorical vee oariza, 0250 2.2. Una rove cgresséo itica~ Etorestinos estrangeiros. As interpretagdes sobre este estranhamento em relacao ao diferente estariam na base das atitudes negativas em relagao aos estrangeiros, bem como explicariam as tensdes e desconfiangas surgidas nas circunstancias que as interagées entre os grupos se tornassem imperativas. E cabivel especular o quanto estilos de vida diferentes proporcionam percepcées negativas relativas aos grupos que acolhem concep¢ées de mundo distintas. Com o surgimento da agricultura e o potencial de mudanca representado por esta transi¢io, torna-se possivel imaginar o impacto exercido pela adocao de um estilo de vida sedentério e os efeitos dessa decisdo na percepcao dos residentes destes primeiros aldeamentos agricolas sobre os grupos némades que permaneciam apegados aos modelos tradicionais de sobrevivéncia, centrado nas atividades de coleta e de caca. Trabalhos desenvolvidos na primeira metade do século XX pelo botanico russo Nokolai Vavilov (1887-1943) permitiram mapear como os humanos domesticaram as plantas. E interessante notar, conforme apresentado por Jones (2019) numa revisdo recente, que este movimento ocorreu de forma praticamente concomitante nos varios espacos alcancados pela espécie humana na sua longa difusdo através dos continentes. A figura 12 sinaliza os provaveis locais onde surgiram as primeiras culturas agricolas, espalhando-se por territérios téo distantes entre si como as Américas Central e do Norte (1), do Sul, 0 Pacifico andino (2) e mais ao sul (3), 0 Atlantico (4), a Africa (5), a Europa mediterranea (6), 0 Oriente Médio (7), a Peninsula indiana na Asia (8), a Asia Central (9) a China e Coreia (10) e as ilhas de Java e a Malasia (11), no Pacifico Sul. hitpsilestereotipos net'uma-oreve-digressaoshistorical 4192 oartt22, 02:59 2.3. Uma breve digressio histrica ~ Esterestipos Regides nas quais supostamente se inicia a domesticacao dos grdos, segundo Vavilov ‘Adaptado de Jones (2019) Figura 12: locais provaveis de surgimento das culturas agricolas © que determinou, apés 0 final da ultima era glacial, o estabelecimento destes assentamentos agricolas? A resposta para esta questo poderia ser resumida em uma palavra, calorias (Jones, 2019). Quais foram as agées humanas passiveis de serem interpretadas como compativeis com 0 fomento do consumo cal6rico? Quais os reflexos destes movimentos numa natureza praticamente virgem? Pelo jeito, parece que nao comecamos bem, pois um dos primeiros indicadores da ocupagdo humana sedentéria se associou com uma enorme devastacao em Areas até ento intocadas. A utilizagao do fogo e as modificagdes topograficas e orogréficas introduzidas por agentes humanos transformaram por completo a superficie de algumas regides do planeta. A irrigacio obrigou a mudanca do percurso de alguns rios e a criaco de cursos de 4gua artificiais. Um segundo aspecto a ser enfatizado se refere & ago humana de destituir das espécies nativas a liberdade genética, uma expressao da area de estudos da arqueologia vegetal que se refere a impossibilidade de algumas espécies continuarem com o seu fluxo de descendéncia de forma espontanea, sem a intervengao humana. Entre os vegetais, este efeito foi marcante no caso dos grdos, em especial 0 trigo, 0 arroz € 0 milho. No caso dos animais, a condigao dos bovinos é particularmente emblemiatica, pois dificil mente imaginarfamos, nos dias de hoje, uma manada de bois e vacas a vagar em estado selvagem por um territério intocado. Estas transformagées, tanto na paisagem quanto no bioma vegetal e animal, nao se impuseram sem consequéncias; foram acompanhadas por uma série de doencas e parasitas que passaram a afetar os vegetais, animais e humanos (Jones, 2019). Uma hitpsilestereotipos netuma-oreve-digressaoshistorical si92 oariza, 0250 2.3. Uma breve cgressohstérica— Estrestipos terceira consequéncia da expansao humana e das modificages produzidas pela nossa espécie se relaciona diretamente com a mudanca da composigdo da atmosfera, sendo particularmente marcante a mudanga nos niveis de diéxido de carbono e metano, cujos efeitos ainda hoje impactam o nosso ecossistema. Aestas transformacées na crosta terrestre, na biosfera e na atmosfera se agregaram mudancas de porte nas organizaées sociais que se tornaram bem mais complexas. Registros dos primeiros assentamentos agricolas retroagem hd cerca de 9000 anos, tendo sido documentados em locais usualmente situados em vales proximos as bacias hidrograficas como a de Catal Hiylik na Turquia, a de Jarno, préxima ao rio Tigre na Mesopotamia, e a de Yangshao, nas imediagdes do Rio Amarelo, na China. Estes primeiros assentamentos humanos estdo na origem das primeiras vilas e cidades, cuja histéria remonta hd cerca de 8.000 anos. Pouco a pouco estes conglomerados alcancam estagios de maior complexidade até o surgimento de um tipo de organizacao social centrada claramente numa dimens&o que podemos qualificar como hierdrquica, como identificados nos grandes impérios agricolas surgidos ha cerca de 6000 anos e nas organizagGes sociais despoticas posteriores. A previsibilidade dos dias numa aldeia agricola primitiva em nada se assemelhava com incertezas da atividade forrageira exigida para os grupos némades, sendo possivel supor, desde logo, que entre sedentérios e némades tenha se criado uma série de interpretagdes pertinentes & vida e as caracteristicas de uns e outros e, mais do que isso, que estas visdes estereotipadas tenham sido marcantes nas provaveis relagées de troca estabelecidas entre estes grupos. Podemos presumir, adicionalmente, que alguns destes efeitos tenham sido transmitidos por geracées. A representacao dos némades como contraponto aos civilizados chegou aos autores da antiguidade a se considerar a maneira pela qual os gregos caracterizavam as tribos némades, tratando- as como gente que nao trabalha, ndo semeia, ndo come pao, nem mesmo erige estatuas e templos para honrar aos deuses (Isaac, 2013). 2.3.2. Mundo antigo Ainda que o passado humano se estenda por mais de uma centena de milhares de anos, a histéria humana é muito curta e se sustenta nos registros escritos. Se as premissas da psicologia hist6rica sugerem que as mentalidades so determinadas pela aco conjunta da histéria e da geografia, tanto a época quanto o lugar moldam a hitpsilestereotipos netuma-oreve-digressaoshistorical vee oariza, 0250 2.2. Una rove cgresséo itica~ Etorestinos nossa percepgao de mundo e a maneira pela qual interpretamos a realidade (Parot, 2000; Penna, 1981). Holoceno é um termo da geologia que se refere a uma era geolégica iniciada hé aproximadamente dez mil anos (aproximadamente, pois a fase de transicao entre o pleistoceno e a etapa inicial do holoceno ocorre entre 10.000 e 12,000 anos). Este periodo se caracterizou por temperaturas mais amenas e se encontra frequentemente associado com o surgimento da horticultura, a cultura agricola mais primitiva. Estudos demograficos sugerem que nessa etapa uma parcela da populagao humana comegara a adotar um estilo de vida que passou a diferir de forma nitida dos padrdes encontrados até entdo. Na presente se¢ao oferecemos alguns indicadores do modo de vida anterior a0 holoceno e indicaremos, na medida do possivel, em que sentido este estilo de vida favoreceu a expressao dos esteredtipos entre os primeiros humanos. Adotaremos, como ponto de partida, o esquema classificatério da figura 13, no sem antes admoestar que a adocdo de esquemas classificatérios podem ser enganadores, pois sabemos 0 quanto a caracterizacdio das etapas da evolucao da civilizago humana se defronta com uma dificuldade decisiva, pois 0 ritmo de desenvolvimento das civilizacdes pulsa de forma independente umas das outras. Um mesmo continente pode estar ocupado por civilizagées com niveis de organizaao social diferentes; se algumas destas civilizagdes podem ter mantido contatos, outras podem estar absolutamente isoladas, mesmo ocupando territérios no muito distantes. Em que pese os riscos, adotar um esquema geral nos parece inevitdvel e, para tal, langamos mao dos argumentos expostos em Christian (2004), cujas diretrizes gerais esto expostas na figura 13. 7. Sistemas globais (bilhdes de pessoas) 6. Impérios (200 mil a mithdes de pessoas) 5. Cidades, nagées, aliangas (1.000 a 100,000 pessoas) 4. Grupos culturais, tribos, cidades,vilas. (600 a 1.000 pessoas) 3. Grupos reprodutivos (60 a 500 pessoas) 2. Grupos locais (13.450 pessoas) 1. Grupos parentais (9a 12 pessoas) | Figura 13: escalas da organizagao social humana (simplificagdo baseada no modelo encontrado em Christian (2004) hitpsilestereotipos netuma-oreve-digressaoshistorical 782 oariza, 0250 2.2. Una rove cgresséo itica~ Etorestinos A forma mais primitiva corresponde a um tipo de organizago social composta por um numero muito reduzido de pessoas, geralmente uma familia com vinculos sanguineos ou de parentesco. A subsisténcia desses bandos dependia fundamentalmente de coleta de raizes, tubérculos e de frutos e, em alguma medida, da caca de animais de pequeno porte. A expectativa de vida era muito baixa, em torno de 40 anos, e a amplitude de movimento destes pequenos grupos bastante limitada, sugerindo que ao longo da existéncia estas pessoas estabeleciam contatos com um numero muito reduzido de semelhantes. Nesta época, correspondente ao que usualmente chamamos de Idade da Pedra e os especialistas chamam de pleistoceno, os grupos humanos seguramente estabeleceram algumas modalidades de contatos e de trocas com outros grupos, tanto de humanos quanto de hominideos. Desafortunadamente, no temos como saber quais as impress6es muituas que cada uma destes grupos desenvolviam sobre 05 outros e, provavelmente, nunca chegaremos a saber sobre a existéncia ou ndo de esterestipos nestes grupos, embora possamos considerar esta hipstese como provavel, pois eram dotados da capacidade da linguagem, o que teoricamente os tornava aptos a criar representaces estereotipadas sobre outros grupos. Adicionalmente, podemos supor que estas populagées viviam em grupos muito reduzidos, estavam dispersos, se deslocavam em reas relativamente restritas e que os contatos fortuitos com os outros grupos deveriam ser relativamente esporadicos. As mudangas sociais, consequentemente, eram muito lentas, sendo pouco provavel que tivessem desenvolvido solucées tecnolégicas avancadas, 0 que por certo os impediu de desbravar os territérios situados além dos limites geogrficos em que estavam confinados. E possivel imaginar que a passagem do tempo tenha levado estas familias primitivas, compostas por um pouco mais de uma dezena de individuos, a estabelecerem vinculos mais consistentes com outros grupos localizados nas regiées relativamente préximas, estabelecendo-se alguns lacos sociais entre os bandos, no que corresponde ao segundo tipo de organizacao social identificado na figura 13. Esta nova modalidade organizacional se caracterizava pela formagao de grupos locais, de maior porte, formados por varias familias distribuidas em territérios adjacentes. Nestas redes de individuos, conectados em pequenos grupos, abre-se a possibilidade de intensificagdo de relagdes de trocas e circulacao de informagées e, consequentemente, o surgimento de inovagées sociais e tecnolégicas, embora bastante limitadas. Os individuos de um bando poderiam passar quase toda a vida sem estabelecer qualquer contato com hitpsilestereotipos netuma-oreve-digressaoshistorical ee oariza, 0250 2.2. Una rove cgresséo itica~ Etorestinos membros das outras tribos, o que deve ter favorecido a criagdo de dialetos particulares e préprios a cada grupo, o que por certo reduziu o potencial de trocas sociais e, por consequéncia, o surgimento de inovacées tecnolégicas mais importantes. Ao longo de milhares de anos deve ter ocorrido uma expansdo desta populacao, que passou a ocupar territérios relativamente préximos, um processo por certo muito lento, pois a humanidade ainda nao dispunha de recursos tecnolégicos suficiente para fazer frente a climas inéspitos e nem meios para se deslocar com eficiéncia por terrenos pouco acessiveis e acidentados. Ha cerca de 100 mil anos grupos populacionais se expandiram além dos limites do continente africano e se deslocarem em direcao a Asia, posteriormente se espalharam pela Europa até alcangarem, hd cerca de 60 mil anos, as ilhas mais acessiveis do Pacifico Sul. Estas populacdes se tornaram relativamente isoladas umas das outras, sendo plausivel admitir que esta separacao determinou diferengas entre os perfis genéticos da populacio original e das delas derivadas e, consequentemente, em fungdo das condicées ambientais a que estavam expostas, passaram a se diferenciar no que concerne a aparéncia fisica (ver figura 10) Qual o impacto desta diferenciagao nas condutas humanas? Como ela afetou a relacdo entre os grupos no que concerne aos esteredtipos? Ainda que adotemos um posicionamento pessimista em relacao a possibilidade de oferecer uma resposta razoavel, acreditamos que as evidéncias disponiveis no Ambito das relages intergrupais podem nos ajudar a discutir esta quest&o. Consideremos duas grandes dimensées analiticas, por um lado, a competicao, particularmente as hostilidades intergrupais e o advento das atividades bélicas e, por outro lado, a cooperagao, tanto a intragrupal quanto a cooperacao entre os grupos e bandos. Considerando que os recursos encontrados por estes primeiros grupos humanos nos territérios de caca e coleta devem ter sido insuficientes para atender as necessidades imediatas de todos os grupos, podemos supor que a hostilidade intergrupal foi uma caracteristica decisiva nas relacdes entre os primeiros grupos humanos. Isto ndo nos impele, no entanto, a concluir que a vida dos primeiros agrupamentos humanos tenha sido marcada por guerras constantes e incessantes e muito menos assegurar que quem vivia nessa época nao tinha um minuto de sossego. Este entendimento nao é compativel com as evidéncias etnolégicas e arqueolégicas identificadas na literatura especializada; se as guerras podem surgir rapidamente, o cenério bélico também hitpsilestereotipos netuma-oreve-digressaoshistorical vee oariza, 0250 2.2. Una rove cgresséo itica~ Etorestinos pode se modificar de forma abrupta, sendo seguido por periodos de relativa paz. A nogao mal tragada de selvagens o tempo todo a espreitar os caminhos para encontrar uma oportunidade de emboscar um desavisado ou uma tribo inimiga nao é convincente e nem justificada. Se a violéncia intergrupal e as guerras, tais como se manifestaram nos primeiros agrupamentos humanos, podem nos ajudar a entender o surgimento dos esteredtipos e dos preconceitos, é importante que tenhamos uma maior clareza a respeito da origem das hostilidades intergrupais. Allen (2014), na introducdo de uma obra dedicada ao estudo da violéncia e das guerras entre grupos de cacadores-coletores, identifica duas grandes tradicées de estudos, associadas de forma longinqua as doutrinas expostas por Thomas Hobbes (1588-1679) e Jean Jacques Rousseau (1712-1778). Uma delas se aproxima das teses de Hobbes, nas quais se admite que a vida humana pode ser representada pela metéfora de uma guerra de todos contra todos. Nesse sentido, a vida humana nao seria apenas muito curta, como também desagradavel e brutal. Desconsiderando os exageros retéricos, esta concepsdo esta préxima da posi¢ao acolhida pelos “falcées", uma vertente de estudiosos que oferece suporte a tese de que a guerra sempre foi uma constante na trajetoria da espécie humana, ou melhor, ja se encontrava presente entre os hominideos, antes mesmo do surgimento dos humanos. Este grupo de estudiosos desenvolveu uma robusta literatura, baseada em argumentos arqueolégicos e etnoldgicos, bem como ganhou uma certa notabilidade apés a publicaco de varios livros direcionados a um ptiblico nao especializado, cujos titulos carregam um forte apelo emocional-mercadolégico: 0 macho demonfaco. As origens da agressividade humana (Wrangham, & Peterson, 1998), Batalhas constantes: 0 mito do selvagem nobre e pacifico (Le Blanc, & Register, 2003), A guerra na civilizaco humana (Gat, 2006) e O mais perigoso animal: a natureza humana e a origem da guerra (Smith, 2007). Estas obras acentuam as influéncias da genética, e com base em argumentos nos quais se consideram os comportamentos agressivos vistos nas colénias de chimpanzés e as proximidades evolutivas entre as duas espécies, sugerem que 0 padrao de conduta dos primeiros grupos humanos nao dever ter sido muito diferente do observado entre os nossos primos distantes. Esta proclividade a violéncia seria principal mecanismo responsdvel por fendmenos como o altrufsmo endogrupal, a formagao de coaliz6es, a diferenciagao entre e o endogrupo e o exogrupo e a cautela face aos estrangeiros. Um artigo publicado no periédico Science contribuiu decisivamente para 0 fortalecimento desta concepgao ao evidenciar, a partir de andlises de segunda ordem hitpsilestereotipos netuma-oreve-digressaoshistorical 0192 oariza, 0250 2.2. Una rove cgresséo itica~ Etorestinos de pesquisas realizadas em diversos sitios arqueolégicos e em dados etnograficos, que as atividades bélicas foram documentadas em todos os continentes e que esta tendéncia a se perfilar entre as forcas do préprio grupo para combater um inimigo externo, embora no plano imediato signifique um sério risco para a sobrevivéncia individual, pode ser interpretado como uma conduta compativel com 0 aumento do potencial de sobrevivéncia do grupo como um todo. Nesse sentido, o altruismo endogrupal aumenta a chance de sobrevivéncia do grupo, ainda que isso signifique para 0s individuos envolvides na peleja uma maior chance de ter a vida ceifada antes da hora e de manchar as maos com o sangue alheio (Bowles, 2009). Em contraposicao aos falcdes, um outro grupo, ao qual se aplicou a designacao algo pejorativa de pombas, se aproxima da perspectiva de Rousseau, ao estabelecer uma contraposigo entre a sociedade civilizada, marcada pela violéncia e opressao, e as sociedades tradicionais, nas quais o bom selvagem se estabeleceu em um ambiente marcado por uma condico de completa harmonia com a natureza e com os outros humanos. Nesta perspectiva, a paz sé seria quebrada nas etapas mais tardias da pré- historia, sobretudo a partir do momento em que se introduz formas mais sofisticadas de organizacao social. A paz desaparece quando surgem o chefe tribal, a cidade- estado, o império despético e 0 colonialismo. Temos, pois, uma longa linhagem de agentes responsaveis pela origem e manutencao de um estado permanente de guerras entre os grupos humanos e, assim concebida, a guerra nao derivaria de uma historia evolutiva que nos premiou com genes que nos impelem a travar guerras matar aos nossos coespecificos com orgulho e satisfacao. As hostilidades entre os humanos procederiam nao de uma inclinacdo biolégica particular para a violéncia, mas resultariam das tentativas de se apossar e manter o dominio de bens e recursos naturais e econémicos e da consequente estratificacao imposta pelas novas formas de organizagao social (Estabrook, 2014), Formulacées contemporaneas procuram articular um pouco as ideias expressas por cada uma das duas posicées, enfatizando tanto o papel da biologia quanto o da ecologia, ao acentuarem, contra Rousseau, que se as guerras estavam presentes desde a origem da humanidade, nas etapas iniciais da evolugao elas nao se mostravam to mortiferas ou frequentes quanto a doutrina de Hobbes insiste em nos fazer acreditar (Gordon, 2014). O distanciamento, 0 estranhamento e até mesmo as emboscadas contra os estrangeiros estavam presentes, mas no em carater endémico. Da mesma forma, nem todos os atentados contra a vida ou as mortes violentas documentadas pela arqueologia ou pela etnologia deveriam ser hitpsilestereotipos netuma-oreve-digressaoshistorical sni9e oariza, 0250 2.3. Uma breve cgressohstérica— Estrestipos interpretadas como o resultado de altercacdes entre grupos diferentes, pois muitas poderiam advir de dissengGes internas ao préprio grupo, a exemplo de vingangas ou do assassinato puro e simples. Avioléncia e as hostilidades intergrupais alcancaram um outro nivel de expresso com as novas formas organizacionais, particularmente a partir da passagem do tipo 2 para © tipo 3 de organizagao encontrada na figura 13, constituidas por grupos reprodutivos de tamanho médio ou grande a ocuparem e preservarem territorios de coleta e caga. Quanto mais bem servido pela natureza, por exemplo, se situado em um vale fértil ou préximo a cursos d’égua, maior a probabilidade do territorio oferecer bens alimentares, vegetais e animais. Por outro lado, os habitantes estavam mais sujeitos a atrair intrusos. Estas condicdes permitiram o surgimento da nogao de territorialidade (Pardoe, 2014), o desenvolvimento de estratégias conjuntas entre os grupos populacionais ocupantes do territério para a defesa frente a invasores fortuitos e, consequentemente, o surgimento da diferenciagao entre aqueles com quem é possivel contar para as tarefas de defesa e os outros, os invasores, os inimigos, aqueles que devem ser mantidos a distancia ou, se for 0 caso, ameacados, intimidados ou mesmo aniquilados. As discussées encetadas na seco anterior, bem como os aludidos na nossa discussdo da pré-histéria até alcancar as primeiras cidades e vilas, se referem aos tipos de organizacao social clasificados entre os modelos 1a 4. As organizagdes as quais iremos nos referir na sequéncia podem ser incluidas nos tipos 5 e 6, cujos registros histéricos indicam que teriam surgido ha n&o mais de cinco mil anos. A elaboracao dos documentos que alcancaram os nossos dias e ainda hoje sao utilizados no esfor¢o de desbravar a histéria dependia do trabalho especializado de escribas, uma categoria que certamente deve ter ocupado uma posicao privilegiada na estrutura burocratica das primeiras sociedades organizadas. Podemos imaginar que o trabalho destes primeiros registradores tenha sido relativamente diversificado. Alguns devem ter se dedicado & perenizacao dos mitos de legitimagao e & confecco de relatos laudatérios dedicados a celebracao das vitérias militares; outros, por certo se especializaram no registro daquilo que se supde decisivo para o estabelecimento de qualquer ordem governamental e administrativa, em particular o registro documental de atos que preservassem a incolumidade das fronteiras e permitissem a obtengao e o ordenamento dos recursos necessarios para a organizacao das defesas contra incursdes de inimigos. hitpsilestereotipos netuma-oreve-digressaoshistorical 12192 oariza, 0250 2.2. Una rove cgresséo itica~ Etorestinos A passagem dos assentamentos e aldeias agricolas para uma nova ordem social permitiu a criagao das primeiras civilizagdes. Civilizagio nos parece um termo um tanto duibio, pois estas formas societais foram marcadas por conquistas e conquistadores, invasées e invasores. Nesta nova ordem, no mundo civilizado recém- inaugurado, a presenca do outro, o estrangeiro, nos limites ou mesmo a uma certa distancia, ndo passava desapercebida e os cuidados para manté-lo apartado podem ser considerados fundamentais na manutengao da estabilidade politica destas primeiras civilizagées humanas. As cidades, surgidas ha cerca de 5500 anos, numa regido compreendida entre os rios Tigre e Eufrates, dependiam inteiramente da produgao de excedentes alimentares. A introdugo do arado e de outros implementos agricolas permitiu o aumento da producao. Se as necessidades alimentares passaram a ser atendidas com o trabalho de relativamente poucos agricultores, um ntimero razoavel de habitantes deve ter passado a desempenhar outras fungées, o que supée uma diferenciagdo social bem mais especializada do que as encontradas nas formas de organizacao anteriores. Erigidas preferencialmente em vales de bacias hidrograficas, as primeiras cidades estavam situadas em regides com uma certa instabilidade climatica. A alternancia entre as inundagées e as épocas de seca suscitava periodos de grande escassez alimentar, 0 que tornava estes sitios alvos de visitantes indesejaveis. Os invasores, genericamente denominados bérbaros, saqueavam, destrufam e vilipendiavam os (nao to) pacificos moradores destas cidades; daf o surgimento das primeiras paligadas e muralhas, construfdas com a dupla finalidade de proteger os ali estabelecidos e manter a distancia tudo aquilo que se supunha indesejavel. Aclaboracao de estratégias de defesa contra as invasdes barbaras supée um certo acordo politico e, como sabemos, a politica envolve fundamentalmente relacées de poder e de desigualdade. Estabelece-se assim a distingao entre uma incipiente aristocracia guerreira e todos os outros ndo aquinhoados pelos deuses com as habilidades de esfolar o inimigo, brandir uma espada, empunhar um arco e desferir certeiras flechadas. Aos tltimos restava o trabalho no campo ou, no melhor dos cenérios, dominar as atividades laborais que comegaram a se fazer necessarias, como a confeccéio de potes e vasos de barro ou cerdmica e o trabalho com pedras, tinturas, couros, madeiras, conchas e outras materiais presenteados pela natureza. O trabalho artesanal se torna mais sofisticado e uma nova classe de artesdos passa a ocupar uma posi¢do intermedidria entre os que passavam o dia a labutar irrigando a terra com o hitpsilestereotipos netuma-oreve-digressaoshistorical 13492 oariza, 0250 2.2. Una rove cgresséo itica~ Etorestinos suor do préprio rosto e uma elite guerreira dedicada aos labores de defesa, saques e conquistas. Se 0 estoque de proteinas era fundamental, dominio politico dependia do controle do excedente agricola e este demandava uma série de cuidados e restrigdes. Os alimentos deveriam ser semeados e vigiados; a colheita realizada no momento oportuno; a produco, removida dos campos e armazenada em silos, mantidos sob constante vigilancia para evitar as subtracées indevidas; o estoque, cuidadosamente distribuido pela populacao, evitando injustigas que por certo criariam fissuras na organizacao social. Estes trabalhos demandavam o esforgo organizador de uma burocracia cada dia mais especializada. A contabilizacao dos excedentes alimentares foi facilitada pela criaco dos nimeros e com o desenvolvimento da escrita, cada vez mais fonética e independente de recursos imagéticos. 0 perfodo exato da semeadura dos campos se encontrava inteiramente subordinado ao fluxo do tempo, das estacdes do ano, dos ventos e do incessante movimento de cheia e vazante dos rios, cuja previsio requeria o desenvolvimento de conhecimentos cada vez mais especializados. Trabalhar o conhecimento exige dedicacao e horas de estudo e reflex; e os primeiros a se dedicarem a tais atividades ja nao mais precisavam se preocupar em labutar de sol a sol, nem com os labores de semear e colher o grao de cada dia, sujar as maos nas matérias primas da producao artesanal e, muito menos, empunhar a espada nas atividades de defesa. Quem eram estes pensadores, sendo os descendentes dos demiurgos anteriormente referidos? Uma hipétese alternativa, representada pela obra As origens da consciéncia no colapso da mente bicameral, publicada em 1978 pelo professor Julian Jaynes, da Universidade de Princeton, causou um forte impacto entre muitos psicdlogos (Hampden-Turner, 2019; Morris, 2019). Além de apresentar uma audaciosa hipétese a respeito do surgimento da consciéncia, distanciando-se dos argumentos evolucionistas, postulou a hipétese extremamente arrojada de que até cerca de 3000 anos a vida cotidiana dos humanos estava sujeita a um constante vozerio oriundo do mundo externo, néo exatamente de outras pessoas, e sim de deuses e outras entidades (Jaynes, 2000). A hipétese da mente bicameral sustenta que até o advento da escrita o mundo era regido pela dimenso da oralidade, a qual explicaria, inclusive, a passagem da organizacao social baseada nos pequenos grupos de cagadores e coletores para as grandes comunidades agricolas. Os dois hemisférios cerebrais atuavam sem que nenhum deles dominasse a vida mental, derivando-se daf 0 adjetivo bicameral. Apenas a partir do momento em que um deles, o esquerdo, passou a predominar, hitpsilestereotipos netuma-oreve-digressaoshistorical 14192 oariza, 0250 2.2. Una rove cgresséo itica~ Etorestinos teriam surgido a consciéncia, a vida interior, as narrativas épicas, a espacializacao do tempo e a nocdo de identidade, tal como a concebemos hoje em dia No mundo bicameral, os humanos escutavam e prestavam atengao cotidianamente as vozes das estatuas, dos {dolos e das representagées figurativas dos deuses. Se os deuses se dirigiam diretamente ou nao aos humanos, estes permaneciam sempre atentos as vozes alucinatérias oriundas do cérebro, interpretando-as como vozes reais oriundas das bocas das divindades, estatuas e idolos. Neste mundo ninguém poderia ser considerado responsavel pelas proprias aces, nado podendo receber crédito pela realizacdo de qualquer ato excepcional, muito menos acusacées por ages vis. Tudo era regido por uma hierarquia perfeitamente definida; as pessoas ndo encontravam dificuldades em identificar os lugares ocupados pelos deuses, reis, humanos comuns e escravizados. Esta hierarquia, definida e sustentada pelas vozes onipresentes, no entanto, comega a desmoronar a partir do século da metade do segundo milénio antes da nossa era, em especial devido as guerras, as imensas migragdes que se seguem as catastrofes impostas pelas mudancas climaticas e pela erupgao de vulcées como 0 Tera, na ilha de Santorini, ocorrida aproximadamente em 1450 antes da nossa era © mundo bicameral teria presenciado os primeiros ensaios de encontros entre diferentes grupos humanos. Em um mundo de vozes alucinatérias, as relacées intergrupais eram definidas unicamente pelas palavras e ensinamentos advindos das vozes escutados em cada um destes grupos. Os contatos entre os grupos, e os esteretipos deles advindas, eram marcados pelo teor das mensagens enunciadas pelos intimeros corais de vozes. Ao afirmarem que o outro grupo era amigavel ¢ confidvel, as relagées entre os grupos se mostravam amistosas ¢ os possiveis esteredtipos mutuos se definiam como positivos; se, no entanto, as vozes vaticinavam sobre os perigos suscitados pelos outros grupos, as relacdes se apresentavam conflituosas e os supostos estereétipos se tornavam extremamente negativos. Pouco importa, para 0 nosso argumento, a validade da hipdtese da mente bicameral; ela nos interessa por tornar manifestas as relagées entre os esteredtipos ea linguagem, um tépico a ser aprofundado nas segées 3.2 e 4.3. Também ela nos ajuda a entender um pouco melhor o efetivo papel exercido pelas crengas coletivas, particularmente quando elas so compartilhadas por quase todas as pessoas de um grupo social e se referem aos outros grupos. Também a hipétese aponta para um elemento fundamental relacionado com a nossa concepgo de esteredtipos, pois 0 hitpsilestereotipos netuma-oreve-digressaoshistorical 15192 oariza, 0250 2.2. Una rove cgresséo itica~ Etorestinos mundo bicameral representa um contexto no qual a individualidade nao ainda nao podia ser definida como uma caracteristica marcante na biografia humana, o que sugere tanto a importancia decisiva da entitatividade quanto o papel fundamental exercido pelas teorias implicitas tornadas publicas pelas vozes que entao se faziam ouvir. 2.3.2.1. Ambientes, tipos humanos e hierarquias Em consonancia com a nossa defini¢do inicial, a ativagao de um esteredtipo envolve dois processos: desindividualizacao e a posterior formulagao de teorias implicitas Esse duplo movimento, por sua vez, atende a dois objetivos fundamentais: o de facilitar 0 processamento cognitivo, ao transformar o fluxo da informagdo perceptual em entidades discretas, as classes ou categorias, assim como a formulago de discursos de legitimacao e justificacdo, mediante a utilizacdo de teorias implicitas. A partir do momento em que os grupos se diferenciam uns dos outros, e adotam nomes para aludirem a si mesmos e para fazerem referéncias aos outros enquanto totalidades que transcendem aos individuos, entramos no territério da desindividualizacao. Trata-se de uma operacdo cognitiva basica que independe da formulagao de silogismos. © processo de aplicagao de teorias implicitas, por sua vez, envolve a formulacao de arrazoados relativamente longos, que culminam em conclus6es fundamentadas em explicagdes a respeito da realidade fisica e social e das relacdes entre estes dois dominios. Postulamos que as teorias implicitas tenham desempenhado uma funcao primordial no surgimento e na estabilizagao das primeiras civilizagées, pois ofereceram o suporte para legitimar a diferenciagdo social e justificar préticas como a dominago e a escravizaga , assim como as conquistas territoriais. De acordo com Isaac (2013), os estereétipos a respeito dos habitantes das cidades e regides do mundo antigo se organizaram a partir de um conjunto de teorias elaboradas por fildsofos, gedgrafos, historiadores, poetas e cronistas da antiguidade e rapidamente acolhidas e difundidas pelo senso comum. O impacto destas primeiras teorias sobre 0 mundo fisico e social nao se restringiu, contudo, ao mundo antigo; muitas destas crengas ainda permanecem vivas nas nossas estruturas de pensamento. As versdes originais destas teorias, formuladas no século V antes do presente, atravessaram a antiguidade romana e todo 0 periodo medieval, se robusteceram no lluminismo e na Renascenga até ganharem roupagem cientifica nos hitpsilestereotipos netuma-oreve-digressaoshistorical 16192 oariza, 0250 2.2. Una rove cgresséo itica~ Etorestinos séculos XIX e XX, Quais foram estas ideias? Quais as versées iniciais destas teorias acolhidas pelo senso comum que, transformadas pela passagem do tempo, tém sido utilizadas de forma explicita ou implicita para a formulacao dos esteredtipos étnicos e locais? a) A crenga no determinismo ambiental, cuja formulagdo sistematica ocorreu em meados do século V antes do presente, Sustentava-se na suposicao de que as caracteristicas particulares de um grupo de pessoas ou de uma coletividade eram inteiramente determinadas pela geografia e, consequentemente, pelo clima. Os antigos acreditavam que os europeus, sujeitos a um clima menos convidativo, difeririam dos asiaticos por estes viverem em climas mais amenos e ostentarem caracteristicas pessoais e coletivas muito distintas. Conceitos como os de vontade, desejo, intencionalidade ou as caracteristicas peculiares das pessoas no eram importantes na elaboracao da teoria, vez que os atributos idiossincraticos das pessoas que viviam em uma determinada regido seriam inteiramente determinados pelo clima. O ambiente se responsabilizaria por definir as virtudes humanas e, a partir delas, seria possivel estabelecer a diferenciaco entre os povos de qualidade superior e aqueles que, inevitavelmente, deveriam se inclinar sob 0 peso dos melhores. O cardter hierarquizador dessa teoria implicita serviu como arcabouco intelectual para justificar a expanso geografica e 0 dominio sobre outros territérios; b) A crenga na hereditariedade dos caracteres adquiridos. A concepgo de que os bons frutos séo gerados por uma boa semente € contempordnea e correlata ao principio do determinismo ambiental. Esta crenga se sustenta no entendimento de que, ao definirem as caracteristicas de uma coletividade, a geografia e o clima determinam que as virtudes e vicios dos povos sejam transmitidos de geraco a geracao. Encontramos, neste caso, uma formulacdo primitiva do essencialismo biolégico, ainda que no lugar dos genes sejam albergadas noges como as de semente ou germe. Esta teoria serviu de contraponto ao ambientalismo extremado da tese exposta no item anterior e acena para um lugar de destaque ocupado pelas caracteristicas herdadas pelos individuos, o que supde uma preocupagao rudimentar com as diferencas de carater entre os seres humanos; ©) Acrenga no determinismo social, sendo particularmente significativa a suposigao de que o carater de um povo reflete inteiramente as caracteristicas do governo ao qual se encontra sujeito. Um governante fraco deveria ser responsabilizado pela fraqueza da sociedade por ele governada; um regime politico deteriorado terminaria por hitpsilestereotipos netuma-oreve-digressaoshistorical 11192 oariza, 0250 2.2. Una rove cgresséo itica~ Etorestinos fragilizar toda a sociedade. Esta crenca respaldou nao apenas o imperialismo militar ao fundamentar a tese de que um regente enfraquecido nao sera defendido vigorosamente pelos siditos, como também fortaleceu os argumentos hierarquizadores ao tornar absolutamente naturalizada e insuperdvel a diferenciagao entre aqueles a quem compete as tarefas de governo e os demais aos quais restariam apenas os deveres da obediéncia; d) A crenga na interacdo entre o ambiente e as caracteristicas pessoais herdadas. Esta crenga também ofereceu um forte respaldo para elaboragdo de proposigées essencialistas ao sugerir que 0 efeito continuo do ambiente fisico e social, aliado aos fatores transmitidos de geracdo a geracao, imporia uma série de caracteristicas permanentes e estdveis as futuras gerages. Se, afinal, uma civilizagdo foi talhada em um ambiente gue a tornou naturalmente melhor e cujas caracteristicas foram aperfeigoadas a cada geraco, presume-se, portanto, que ela inevitavelmente se tornara ainda mais poderosa, habilitando-a a se impor sobre outros povos e civilizagées. Esta tese ofereceu uma atitude legitimadora a conquista, a guerra e a dominagao e suscitou uma nova ordem de preocupacées: qual seria o destino que aguardava este povo virtuoso e dominador ao se estabelecer em um territério nao téo abengoado quanto o seu torrao natal e ao se misturar com os povos inferiores dominados? e) Acrenga na autoctonia e na linhagem pura, na qual se assegurava que um povo que sempre viveu no territério que Ihe é préprio e foi capaz de manter a linhagem pura, no se misturando como os outros, permaneceré superior aos povos que abandonaram o territério natural e degeneraram o sangue ao misturé1o com o dos povos inferiores. Desta tese derivam outras crencas; em particular, a de que a mistura entre os povos inevitavelmente gerard uma descendéncia degenerada, como também favoreceu o argumento da hierarquizaco ao diferenciar um grupo de linhagem pura, superior, ¢ os inferiores, de sangue misto ou conspurcado. O reflexo recente mais acentuado desta crenca foram as ideologias do eugenismo e do branqueamento que ganharam corpo no século XIX e popularidade no século Xx; f)Acrenca no poder explanatério da fisiognomia, a partir da qual passa ser depositada confianga numa disciplina ou saber dedicado a identificagéo das tendéncias pessoais, das propensées, do carater e do destino de uma pessoa com base na analise das caracteristicas fisicas observaveis. Estas teorias psicolégicas rudimentares foram utilizadas na antiguidade para reforgar argumentos relativos as diferencas hitpsilestereotipos netuma-oreve-digressaoshistorical 18192 oariza, 0250 2.2. Una rove cgresséo itica~ Etorestinos psicolégicas e morais entre os povos. A teoria de que o ambiente desempenha um importante papel na manifestacao das caracteristicas fisicas, psicolégicas e morais permitiu a elaboracao e a difusdo de inferéncias sobre as pessoas, supondo-se que os estados mentais internos poderiam se expressar nos tra¢os fisionémicos e na postura corporal. 0 actimulo de conhecimento a respeito das caracteristicas psicolégicas de uma coletividade se torna um elemento estratégico na ago politica; ao ser possivel identificar os atributos diferenciadores dos distintos povos, supostamente se tornaré mais facil os contatos e a comunicao com os estrangeiros e, consequentemente, a tarefa de submeter e civilizar os povos inferiores; g)Acrenca de que mediante o estabelecimento de comparagées com os animais podemos conhecer melhor os humanos. Esta crenga se fundamenta nas supostas semelhancas fisicas entre as caracteristicas de algumas espécies de animais e os atributos de determinados agrupamentos humanos, assim como na suposigao de que muitas coletividades humanas se organizam de uma maneira semelhante a que pode ser observada na organizagao social de algumas espécies de animais. Ela também se nutre de fabulas e narrativas populares nas quais as caracteristicas morais e intelectuais associadas a determinadas espécies animais sao utilizadas com a finalidade de ensinar ligées de moral e apresentar exemplos de civilidade a serem adotados pelos humanos. Esta aproximacao simbélica entre alguns grupos humanos e determinados animais ofereceu justificativas morais para a pratica da escravidao, j4 que os grupos escravizados podiam ser desqualificados da sua humanidade ao serem considerados mais préximos ao reino animal do que 4 natureza humana. Esta crenca permanece viva, particularmente na expresso dos estereétipos sob a forma de raciocinio essencialista animalizador; h) A crenca de que os estrangeiros, em especial os imigrantes, nao so dignos de confianca, seja por trazerem praticas e habitos que conspurcam e minam o vigor de toda uma sociedade, seja por introduzirem valores e costumes contrarios & concep¢ao de mundo dos autéctones. Esta crenga possui relevancia na atualidade em teorias que diferenciam a maneira pela qual os membros do endogrupo e do exogrupo se percebem e se tratam mutuamente nas sociedades contemporaneas. Estas crencas, como todas as crencas, se organizaram sob a forma de sistema no qual podemos diferenciar trés crengas basicas e cinco derivadas, tais como se apresentam no diagrama da figura 14, Nele pode ser observado 0 posicionamento das trés crengas centrai s duas contextualistas, tanto as que fazem referéncias ao ambiente fisico hitpsilestereotipos netuma-oreve-digressaoshistorical 9192 oariza, 0250 2.2. Una rove cgresséo itica~ Etorestinos quanto as que aludem ao ambiente social, e uma tese individualista, na qual se postula a transmissao das caracteristicas hereditdrias. Destas crengas se derivam outras crengas que constituem as explicacdes e os arrazoados que fundamentaram as teorias implicitas acolhidas por vérias civilizagdes da antiguidade e, uma vez modificadas, transformadas, simplificadas ou complexificadas, se difundiram pelos varios continentes e épocas até chegarem praticamente intactas aos nossos dias. Perret penne ToC) Tere fire ee) PO Figura 14: crencas no mundo antigo 2.3.2.2. Os esteredtipos na antiguidade Identificadas as teorias implicitas a partir das quais as crencas estereotipadas se desenvolveram, passamos a analisar as formas particulares pelas quais os esteredtipos se manifestaram nas relacdes concretas entre os povos da antiguidade. © perfodo ao qual estamos nos referindo se estende por um interregno de quase quatro mil anos e inclui um némero substancial de civilizagGes, distribuidas em muitos rincdes do planeta. Quase nada sabemos sobre algumas destas civilizages e 0 pouco que podemos antecipar a respeito dos esteredtipos cultivados entre elas se constitu em especulagées escassamente documentadas. hitpsilestereotipos netuma-oreve-digressaoshistorical 20192 aria, 02389 2.2. Una rove cgresséo itica~ Etorestinos Entre os historiadores parece ser consensual a tese de que as primeiras civilizacdes se originaram na regio que se convencionou denominar Mesopotamia. Sobre uma destas civilizagoes primeiras, a suméria, quase nada sabemos além do fato dos sumérios terem elaborado uma das primeiras modalidades de escrita, a cuneiforme. Talvez os legados mais significativos deixados pelos sumérios para os estudiosos dos esteredtipos se refiram, em primeiro lugar, ao reconhecimento de que foram os responsaveis por cunhar a palavra dlcool e, além disso, e bem mais importante, que deixaram para a posteridade, e para alegria de ndo poucos, as primeiras receitas de cerveja sobre as quais temos noticias (Roberts, & Westwad, 2013). | Figura 15: homem carregando uma caixa (provavelmente com cervejas!), Mesopotamia, cultura suméria, entre 2900-2600 antes do presente (acervo hitpsilestereotipos netuma-oreve-digressaoshistorical 21192 oait1i22, 02:59 2.3. Uma breve digressio histrica ~ Esteredtipos do The Metropolitan Museum of Art - imagem de dominio publico) ReputacSo por reputagdo, também nos chegaram umas tantas informagées sobre o esplendor da civilizacao babilénica, sendo muito usual, mesmo em circulos nos quais a educagdo formal nao se destaca, o uso corrente da expressao 0 ouro da Babildnia, embora quase nada saibamos sobre estes deslumbrantes tesouros, a ndo ser o que fomos informados pelo ilustre Raul Seixas. Ainda na Mesopotamia, uma das primeiras civilizacbes a despontar esté associada com a numinosa cidade de Ur, insepardvel da saga do gigante Gilgamesh, um personagem frequentemente adotado pelos roteiristas de cinema, televisdio e histérias em quadrinhos, além de muito apreciado pelos criadores e aficionados de videogames dada a quantidade de vezes que o gigante guerreiro aparece em jogos eletrénicos, como é 0 caso da série Civilization, do classico Final Fantasy e dos menos conhecidos Tales of Phantasia e Devil May Cry 4, apenas para citar alguns poucos titulos. Posteriormente, cerca de 2300 anos antes do presente, instaura-se a civilizacao acadiana que, para muitos historiadores, representa a primeira estrutura politica a ser referida no auténtico significado do termo como um Estado. Esta civilizag3o se tornou particularmente importante na dimensao organizacional, pois suspeita-se que ai tenha se estabelecido os principios da separagao formal entre as autoridades religiosas e as seculares, entre o poder secular ¢ o religioso. Se atualmente testemunhamos um crescimento acentuado da influéncia de agentes politicos religiosos nos parlamentos, no judicidrio e no poder executivo de inumeros estados modernos e a consequente assungao de um fundamentalismo religioso sem disfarces ou retoques, podemos imaginar o quanto os antigos ainda podem nos ensinar e 0 quanto somos menos civilizados do que gostamos de nos imaginar. Egipcios, nubios e etiopes As bacias hidrograficas e os vales dos grandes cursos d’égua desempenharam um papel extraordindrio na expanso da populacao humana. O Nilo, um rio que se estende por quase cinco mil quilémetros, exerceu um papel decisivo na vida das civilizagdes egipcias e dos seus vizinhos, os nuibios. As cataratas ao longo do curso do rio dificultavam a navegagdo, o que inibia os contatos entre as duas civilizagdes. Este hitpsilestereotipos netuma-oreve-digressaoshistorical 22192 aria, 02389 2.2. Una rove cgresséo itica~ Etorestinos isolamento era quebrado apenas pela implementacao de rotas comerciais e, claro, pelas guerras de conquistas. Os contatos entre egipcios e nubios permitiram o desenvolvimento de representacdes mutuas, sendo relevantes os marcadores relativos & cor da pele. Os nibios, estabelecidos em uma regido mais equatorial e mais sujeita 4 acdo dos raios solares, ostentavam uma pele um pouco mais escura que os vizinhos egipcios ou, pelo menos, eram assim apresentados nas inumeras representacées pictéricas que nos chegaram, conforme observado na figura 16. Figura 16: rei nlbio presta homenagem a faraé egipcio (acervo do The Metropolitan Museum of Art ~ imagem de dominio publico) Se, conforme assinalamos na se¢ao anterior, pouco sabemos sobre a civilizacao suméria e outras civilizacdes antigas, em contrapartida somos bem mais informados sobre os egipcios, algo devido a industria cultural e a enorme fascinacaio exercida pelos faraés, por Elizabeth Taylor a interpretar Cledpatra com uma cobra bem fotogénica a deslizar pelo colo e, claro, pelas intimeras mumias que, de quando em vez, retornam para causar calafrios nas salas de cinema. Acentue-se, no entanto, que o interesse pela civilizacao egipcia nao é um fendémeno dos nossos dias, pois j4 despertara admiracao entre estudiosos antigos. Nas palavras de Herédoto (485 - 425 antes do presente), o famoso historiador grego, em um ponto 0 egipcios em nada diferiam dos outros povos; eles também denominavam barbaros a todo e qualquer povo que nao falasse a lingua egipcia, ainda que o préprio Herédoto, como um bom grego, considerasse barbaro a todo aquele que ndo compartilhasse a lingua e a cultura grega. Se este era 0 caso, por outro lado entre os gregos era corrente a interpretacao de que os egipcios nao se assemelhavam fisicamente a nenhum outro povo e nem adotavam quaisquer costumes estrangeiros, preservando a prépria ancestralidade (Isaac, 2004). O barbarismo dos eg(pcios, tal como interpretado pelos gregos, se expressava nas praticas cotidianas que adotavam, absolutamente estranhas a outros rincées, pois era dito que na terra do Nilo enquanto as mulheres se dedicavam ao comércio e urinavam em pé, os homens, indolentes, permaneciam sentados em casa, ndo se levantando hitpsilestereotipos netuma-oreve-digressaoshistorical 23192 oariza, 0250 2.2. Una rove cgresséo itica~ Etorestinos nem mesmo para verter 4gua, Como se no fosse o suficiente, acreditava-se que os egipcios se aliviavam fora de casa e se alimentavam no interior das residéncias, no mesmo espaco onde mantinham intimeras criaturas de estimacao, algo execravel em outras terras, O costume considerado mais estranho a época era a devocao mais do que religiosa aos bichos de estimagao, acolhendo-se o costume de condenar a pena capital o incauto causador da morte, mesmo que acidental, de algum animal sagrado (Gruen, 2011). No plano religioso, além da zoolatria, os egipcios também eram alvos de uma acusagiio que horrorizava muitos povos da antiguidade, ainda que os acusadores também adotassem 0 mesmo costume de oferecer vitimas humanas em sacrificio aos deuses. No caso egipcio, porém, a acusacdo era particularmente grave pois se as vitimas habituais eram os estrangeiros, imagine-se, pois, a hospitalidade com que se premiava 0 incauto visitante atrevido o suficiente para colocar os pés naquelas terras. Em um terreno mais ameno, a Histéria universal de Diodoro Siculo (90 - 30 AP) relata um costume interessante dos egipcios que pode estar na base dos esteredtipos contempordneos sobre uma categoria profissional frequentemente alvo de crencas estereotipadas. Ele se referia a interdicdo imperante nos tribunais egipcios que os abstinha de acolher relatos orais, pois todas as provas deveriam ser apresentadas por escrito, dado que um defensor dotado de eloquéncia e de destacada capacidade retérica poderia comover, e até mesmo levar as légrimas, um magistrado experiente e beneficiar injustamente um acusado sobre o qual recafa claramente uma acusacao veridica. Para minorar os riscos inerentes a uma boa retérica, 0 acusador deveria elaborar um documento escrito, expondo as queixas e acusacdes, 0 que e como ocorrera 0 evento e 0 tipo de dano ou injuiria proporcionado pelo ato. Por sua parte, 0 defensor deveria recolher 0 documento apresentado pelo acusador, responder, também por escrito, a toda e qualquer acusacao, indicando porque o seu cliente nao poderia ser responsabilizado pelos atos de que era acusado ou, caso reconhecesse a falta, indicar os atenuantes que obsequiariam a aplicaco de uma sentenca mais leniente. Oferecia-se, posteriormente, a possibilidade da réplica para o acusador, da tréplica para o defensor, até a sentenga ser finalmente lavrada pelos tribunais (Diodoro Siculo, 2001, pardgrafos 75 a 79). Na antiguidade, os esterestipos estavam fortemente sedimentados em crengas sobre 0 determinismo ambiental. Ao discorrer sobre a qual povo caberia a primazia de ter habitado o planeta € do qual todos os outros derivariam, Diodoro Siculo acena com o hitpsilestereotipos netuma-oreve-digressaoshistorical paige oariza, 0250 2.3. Uma breve cgressohstérica— Estrestipos argumento de que 0 povo que estivesse mais perto do sol por certo deveria receber esta distingdo, pois a luz do sol ao aquecer o planeta e secar a terra impeliria o pronto florescer da vida. E qual povo estaria mais préximo ao sol sendo os etiopes, cujo nome significa precisamente aquele que tem a face tostada pelo sol? Figura 17: estétua grega, representando um jovern etiope, provavelmente entre os séculos Ill Il antes do presente (acervo do The Metropolitan Museum of Art imagem de dominio publico) Os esterestipos sobre os africanos foram influenciados por um debate de consideravel peso na antiguidade greco-romano em torno do simbolismo das cores © quanto este simbolismo poderia ser associado as caracteristicas fisicas e psicolégicas dos diferentes povos. Este simbolismo gravitava em torno da dicotomia hitpsilestereotipos net'uma-oreve-digressaoshistorical 2si92 oait1i22, 02:59 2.3. Uma breve digressio histrica ~ Esteredtipos branco negro e se manifestava em um conjunto de oposicdes binarias: a luz e as trevas; o dia e a noite; a alva limpeza e a enodoada sujeira; a nitida clareza e a opaca escuridao; 0 alvorecer da vida e o denegrir da morte. Alguns destes simbolismos ainda se encontram presentes no nosso linguajar cotidiano e tém sido combatidos por um movimento de oposicao ao racismo que ainda se insinua na nossa linguagem cotidiana (Bagno, 1999; Labov, 2008; Oneill, & Massini-Cagliari, 2019). Este simbolismo no deve ser interpretado, no entanto, como um indicador da existéncia de intensos esteredtipos negativos sobre a cor da pele. A se considerar as evidéncias apresentadas por muitos historiadores (Isaac, 2004; Snowden, 1999), os esteredtipos sobre os africanos na antiguidade eram relativamente positivos ou, pelos menos, se mostravam bem menos negativos do que os atribuidos pelos gregos aos persas ou pelos romanos aos cartagineses. De guerreiros valorosos e justos nos relatos homéricos até uma representagao equilibrada entre os satiricos romanos, a representacao dos africanos na antiguidade em nada se confundia com a versio extremamente negativa vigente nos tiltimos séculos. Gregos A civilizagao minoica, denominacao supostamente derivada do Rei Minos, a quem se atribui a paternidade do Minotauro, floresceu em Creta, a maior das ilhas gregas, desenvolvendo-se durante centenas de anos até desaparecer por razées que ainda hoje intrigam os historiadores. Habeis no cultivo das vinhas e da oliva, os produtos mais caracteristicos do Mediterraneo, e famosos pela producdo artistica e pelo artesanato, especialmente pelos vasos que marcaram época, foram considerados os responsdveis por introduzir os ideais civilizadores na Grécia continental. hitpsilestereotipos netuma-breve-digressao-istrical 26192 oait122, 02:69 2.3. Uma breve digressio histrica ~ Esterestipos Figura 18: jarra de terracota de origem micénica, 1400 a 1300 antes do presente (acervo do The Metropolitan Museum of Art - imagem de dominio puiblico) Um dos primeiros registros da antiguidade classica a chamar a atengdo para a questo das diferengas entre as pessoas é a alegoria poética "0 trabalho e os dias’, provavelmente escrito no século Vill antes do presente, cujo ponto de partida reside numa analogia entre a qualidade dos metais e cada uma das racas humanas (versos 109 a 201). Apresenta-se, no alvorecer da historia, um modelo de hierarquizacdo das qualidades com a raca de ouro ocupando posicao privilegiada em uma ordem superior na qual se vivia uma eterna primavera e todos usufrufam do mel a gotejar incessantemente de frondosos arvoredos. Para que lavrar? Para que trabalhar se os hitpsilestereotipos netuma-oreve-digressaoshistorical 2ri92 oariza, 0250 2.3. Uma breve cgressohstérica— Estrestipos deuses suprem o necessdrio para a eterna felicidade? Este paraiso duraria pouco, pois os deuses gregos sempre se caracterizaram pela instabilidade emocional e, no meio de uma pugna entre Pandora e Prometeu, Zeus, impaciente, decidiu punir essa raga primeva, dizimando-a. Surge a raca dos homens de prata; se os homens de ouro desfrutavam a eterna primavera, os de prata se encontravam sujeitos aos ciclos de frio e calor, obrigando-se a construirem abrigos para se protegerem das incleméncias do clima. Se a raga de ouro vivia numa eterna juventude e a morte se aproximava apenas quando o doce embalo dos sonhos sinalizava o fim da vida, os de prata foram obrigados a esperar o fim da vida a magoar as maos ao ritmo do arado e a sulcar os campos para dele retirar 0 alimento que j4 ndo mais brotava das arvores. Essa raca, dominada pelo orgulho tao caro aos gregos, deixa de prestar reveréncia aos deuses sendo extinta por um outro ato discricionario divino e da lugar a outra ainda menos consagrada, a raca dos homens de bronze. Bronze nao € prata, muito menos ouro, 0 que a destitufa da nobreza caracteristica das ragas superiores. Os homens de bronze se esmeravam nas lutas com armas feitas do mesmo bronze que moldava o carater com 0 qual eram distinguidos e, de tanto lutarem uns contra os outros, pereceram. Por fim, no ponto mais baixo da escala, Hesiodo se referiu 8 raga dos homens de ferro entre os quais miseravelmente se incluiu ao afirmar que preferia ter perecido antes ou vivido depois dessa raga infame, cuja vida se restringia a vaguear sem rumo em um mundo marcado pelas mentiras, enganos, maldades e vergonhas. Para Vernant (1990), a obra de Hesfodo acena, na antiguidade classica, para uma ordem na qual a hierarquia ocupa um papel decisivo; descender significa antes de qualquer coisa mergulhar na desordem e na decadéncia. Na obra As origens do pensamento grego 0 mesmo Vernant postula diferencas dignas de nota entre os sistemas de pensamento da civilizacdo micénica que ocupa o lugar deixado pela cultura minoica e a civilizagdo dos dérios. A realeza micénica representava uma aristocracia constitufda por guerreiros orientados por demonstracées individuais de coragem e destemor, qualidades que se mostraram insuficientes para livré-los das indimeras invasdes as quais estiveram sujeitos durante séculos. Ao analisar a mentalidade dos gregos, Vernant (2002) comparou a organizacao social micénica contrastando-a com a organizacao social implementada a partir da ascenséio dos dérios, uma civilizagao orientada por uma visio de mundo mais centrada nas agdes e nas decisdes coletivas, politicamente definidas nos acordos obtidos no espago ptiblico da Agora e organizada militarmente a partir de uma estrutura de tropas que avancava ou se defendia sob formagao cerrada, algo que a diferenciava dos atos intrépidos e corajosos, porém, desembestados e inécuos, dos guerreiros micénicos. hitpsilestereotipos netuma-oreve-digressaoshistorical 28192 oariza, 0250 2.2. Una rove cgresséo itica~ Etorestinos Desde os tempos antigos, as diferencas hierdrquicas entre os individuos vinham sendo observadas; donde a origem da preocupagao de diferenciar seres humanos em fungo de suas caracteristicas particulares. Uma destas diferenciacdes envolve uma concepcao hierarquizadora composta por trés classes de pessoas: as nascidas para comandar e, portanto, regidas pelo cérebro; as que eram talhadas para o campo de batalha e dominadas pelas paixdes; e as escravas, subordinadas Unica e exclusivamente aos apelos do ventre, cuja satisfagao se restringia exclusivamente a comer e a fornicar. Podemos supor que muitas destas tipologias pioneiras se difundiram ao longo dos séculos e, ndo apenas tenham chegado aos nossos dias, como também refletiam um estado de espirito geral da sociedade ateniense de entio a respeito dos fatores que determinavam as relagées entre as cidades-estados. Os atenienses cultivavam uma forte ojeriza a qualquer estrangeiro, sendo extremamente restritivos em relagao a definicdo de um verdadeiro ateniense: aquele nascido em Atenas, e filho de pais e mes atenienses. Fora deste universo marcado pela pureza em relacdo & prépria denominaco, sobravam os escravos e os barbaros (Delacampagne, 1995). O declinio da civilizagao helenistica favoreceu a formaco de esteredtipos bastante negativos sobre os gregos. Os romanos estabeleceram uma distingdo fundamental entre a cultura grega classica e as suas incomensuraveis contribuigées intelectuais e os gregos da época em que viviam, cujos atributos pouco lisonjeiros serviam para reafirmar a tese de que qualquer sociedade, mesmo a mais bem civilizada, poderia se degradar com a passagem do tempo. Para se ter uma vaga ideia das diferengas entre os costumes da elite romana e os das classes privilegiadas gregas, a ostentacdo de uma reluzente barba, pratica quase obrigatéria entre os gregos, era explicitamente rejeitada entre as classes superiores do Império Romano. Muitos romanos se insurgiram contra os costumes gregos € 0 uso da lingua grega no dia a dia de Roma, 0 que pode ser interpretado como uma atitude de afirmagao da latinidade em relacdo 8 entéo decadente cultura helenistica (Isaac, 2004). Fenicios e persas Em um mundo cujas fronteiras geograficas comecaram a se tornar voléteis, Tratado sobre o ar, dgua e os lugares, supostamente atribuido a pena de Herédoto, estabelece uma distingao essencialista entre Oriente e Ocidente, fundamentando-a em arrazoados ambientalistas. Por viverem em climas mais suaves e prazerosos do que hitpsilestereotipos netuma-oreve-digressaoshistorical pare oariza, 0250 2.2. Una rove cgresséo itica~ Etorestinos os europeus, faltariam aos asidticos coragem, tenacidade e energia. Os efluvios do bom clima os tornariam menos propensos as atividades guerreiras e os condenariam a terem uma constituicao fisica e de caréter bem mais fragil que a dos europeus, moldados sob climas mais carregados (Cairus, 2012). As diferencas entre estas duas visdes de mundo, Oriente e Ocidente, se refletem nas batalhas e escaramucas frequentes no século IV antes do presente, entre os gregos e os persas. Figura 19: Anfora em terracota, retratando uma cena da Guerra de Tréia, provavelmente século Vantes do presente (acervo do The Metropolitan Museum of Art imagem de domtt jo ptblico) hitpsilestereotipos netuma-oreve-digressaoshistorical 30192 oariza, 0250 2.2. Una rove cgresséo itica~ Etorestinos Discute-se, amitide, a origem do sentimento de xenofobia ainda que, para alguns estudiosos, a xenofobia nao representasse necessariamente, nesta época, a desqualificago dos inimigos (Gruen, 2011). No caso da civilizagao grega, a xenofobia se sustentava na distincdo entre a civilizacao helenistica e os seus valores de liberdade, poder de decisdo e democracia em contraposicao aos regimes despéticos orientais, regidos pelas nogées discrepantes de opressao, servidao e barbarismos. Teriamos de um lado, nés, os civilizados e, no campo oposto, eles, os desclassificados, aqueles que fomentam e convivem com a tirania. A diferenciacao entre nés, os civilizados, e eles, os tiranos, seria a mais corriqueira nas relagdes entre os povos no alvorecer da hist6ria? Como ampliar esta afirmacao e incluir povos como caracteristicas semelhantes nao exatamente bélicas? Consideremos os fenicios (Quinn, 2018) e assumamos que os estereétipos sobre os fenicios cultivados na antiguidade nos levam a acreditar que se tratava de um povo nascido a bordo de impressionantes embarcagées tingidas de negro a singrar todos os mares do mundo conhecido. Capazes de fundar assentamentos onde fosse necessario e empreender inumeras jornadas comprando aqui e vendendo acold, eles granjearam fama em todo o mundo conhecido. hitpsilestereotipos netuma-oreve-digressaoshistrical 31192 oait122, 02:69 2.3. Uma breve digressio histrica ~ Estereétipos © 3 Figura 20: brinco e dois pingente fenicios, entre séculos Ve Il antes do presente (acervo do The Metropolitan Museum of Art - imagens de dominio publico) Comerciar significa barganhar e barganhar nao esta separado de levar vantagem, dai a aproximacao milenar entre os labores do comércio e a desconfianga entre as partes. Os fenicios conviviam com esta dupla fama de serem navegadores eximios e comerciantes traicoeiros, raramente dispostos a arcar com algum prejuizo nas transagdes. Esta fama acabou por firmar um dos principais esterestipos sobre os fenicios na Antiguidade, o de serem avaros. Um outro esterestipo muito impopular na Antiguidade, mas também atribuido aos fenicios, era a pratica religiosa de oferecer sacrificios humanos, embora eles se defendessem assegurando que tal ritual nao Ihes pertencia com exclusividade, sendo amide adotado por outras civilizagdes (Mazza, 1988). hitpsilestereotipos netuma-oreve-digressaoshistorical 32192 oariza, 0250 2.2. Una rove cgresséo itica~ Etorestinos No contexto da sociedade asiatica do século V antes do presente os esterestipos estavam fortemente vinculados com povos cujas relagées eram fortemente marcadas por conflitos e os persas eram conhecidos como eximios guerreiros. Nos campos de batalha, segundo Herédoto, os exércitos persas eram imbativeis e se distinguiam por nele porfiarem os mais portentosos e corajosos soldados de toda a Asia (Isaac, 2004). Algum tempo depois, no entanto, os persas nao passavam de afeminados e despreziveis aos olhos dos gregos. Afinal, como esta representacao se transformou e, dois séculos depois, predominou a interpretagao de que se tratava de um povo afeminado, degenerado e covarde? Na guerra, o doce sabor da vitéria nunca se confunde com o fel da boca dos derrotados. Por mais que os historiadores da Antiguidade tenham procurado preservar a saga heroica de comandantes militares como Xerxes ou Ciro e dos seus poderosos exércitos, estas narrativas no conseguiram se sobrepor a uma outra, na qual os derrotados foram dilapidados em vida e tiveram as suas memérias destrocadas apés as cinzas. As crengas coletivas passaram a festejar a vitéria da Europa, da razo e da democracia sobre a tirania ea irracionalidade dos barbaros asiaticos (Isaac, 2004). Os gregos representavam os ideais europeus e, uma vez derrotados os persas, a expanso da civilizacao europeia por outras terras seria uma mera questdo de tempo. As crencas ambientalistas forneciam impeto a esse discurso, aceitando que o clima tornaria os europeus mais aptos para o combate e a dominacdo enquanto os asidticos, corruptos e amaciados pela riqueza, pela dissolugao moral, fisicamente degenerados pelos governos despéticos e afeminados pela tepidez do clima, jamais poderiam se opor ao extraordindrio destino que aguardava a civilizagao europeia. A representacao dos persas entre os romanos pouco difere da elaborada pelos gregos, cingindo-se a reproduzir as acusa¢ées tradicionalmente levantadas contra os inimigos de guerra. Traicoeiros, truculentos, pérfidos, brutais, selvagens, dissolutos, impetuosos, insolentes, corruptiveis... a lista de adjetivos é enorme; um a mais ou outro a menos, pouco bastaria para desqualificé-los o suficiente. Romanos e cartagineses O estudo dos esteredtipos sobre os romanos na Antiguidade deve ser entendido como uma via de mao dupla, na qual se festeja a conquista e 0 ideal de um império de fronteiras interminaveis forjado as custas de batalhas e subordinacao de povos valorosos, porém de qualidades inferiores j4 que foram derrotados, e 0 temor de que a vida dos valentes romanos nestes locais de dissolug’io e de imoralidade poderia acarretar 0 enfraquecimento dos soldados do exército hitpsilestereotipos netuma-oreve-digressaoshistorical 33192 911/22, 02:59 2.3. Uma breve cgressohstérica— Estrestipos imperial e trazer 4 Roma, o centro do mundo, imigrantes que patrocinariam cultos estranhos, costumes dissolutos e hdbitos nefastos. Figura 21: jovem aristocrata romano, estétu a em bronze, entre 27 e 14 antes do sfart presente (acervo do The Metropolita 1agem de di Gregos, judeus, asiaticos e todos os povos considerados inferiores representavam uma ameaca a integridade do império e nao poucos tribunos, retéricos e politicos se dedicaram a acentuar o quanto os atributos negativos dos estrangeiros eram perigosos, o que permitiu construir uma narrativa na qual se festejava a superioridade dos romanos e de Roma e os perigos da proximidade com os povos submetidos. A Roma eterna, cujas fronteiras alcangavam os limites do desconhecido, sofria da propria grandeza, das conquistas e dos germes invisiveis importados nas bagagens hitpsilestereotipos netuma-oreve-digressaoshistorical 34192 arr22, 02:59 2.3. Uma breve cgressohstérica— Estrestipos dos soldados de volta dos campos de batalha e infestados no batalhao de submetidos trazidos sob grilhdes. O grande temor dos romanos era o de que a grandeza do império poderia ser a razao da prépria derrota, sendo imprescindivel acender todos 05 sinais e ativar todos os alertas sobre os perigos que vém de fora. O que corromperia mais do que usufruir sem limites as riquezas dos vencidos? Como manter a dignidade se o luxo poderia ser encontrado em todos os sitios? Como permanecer na retiddo moral se um punhado de vicios estava ao alcance, na dobra de cada esquina? O que seria de Roma, a eterna Roma, se os seus valorosos cidadaos se deixassem arrastar pelos prazeres do mundo e mergulhassem na degenerescéncia imoral dos conquistados? Os esterestipos sobre os estrangeiros sao decisivos na construcao da imagem e da elaboracao dos esterestipos referentes ao préprio povo; se os romanos sabiam nao ser tao numerosos quanto os hispanos, artisticos quanto os gregos, espertos quanto os fenicios ou fortes quanto os gauleses, néo encontravam dificuldades em se reconhecerem, e em serem reconhecidos, como 0 povo escolhido para se impor sobre todas as nacées (Isaac, 2004), Figura 22: relevo em bronze de um legionério romano submetendo um bérbaro, século II (acervo do The Metropolitan Museum of Art - imagem de dominio publico) hitpsilestereotipos netuma-oreve-digressaoshistorical 36192 oariza, 0250 2.2. Una rove cgresséo itica~ Etorestinos Na Roma antiga, os cartagineses foram objeto de uma intensa estereotipia. A reputagao deste povo, oriundo dos fenicios, também os distinguia como arrojados marinheiros, hdbeis em estabelecer assentamentos e empreender negécios. Os negociantes sao frequentemente objeto de esteredtipos e a associacao entre os termos fenicios e negécios pode ter criado a reputacao de que se tratava de um povo sem palavra, sempre voltando atrds naquilo previamente combinado, donde a expresso punica fides, popularizada pelos romanos para se referir a quem nao honra a palavra empenhada Depois de trés guerras contra os cartagineses, entre 264 e 146 antes da era moderna, naturalmente comecaram a circular entre os romanos a crenga de que todo os cartagineses, e ndo apenas os soldados regulares, eram particularmente cruéis, como também eram os seus comandantes que no vacilavam em ordenar aplastar o corpo dos inimigos capturados sob as enormes patas dos elefantes de campanha. A esta acusago se acrescentava a suposicdo de que, em algumas circunstancias, adotavam o costume do canibalismo e a pratica religiosa de imolar vitimas humanas, sacrificando- as aos deuses (Isaac, 2004). Voltando a expresso punica fides que supostamente retrata os cartagineses, pode-se assinalar que ela contribuiu muito mais para moldar a identidade social dos romanos, utilizando as caracteristicas negativas dos outros como contraponto aquilo que consideravam positivo na prépria identidade. Se os romanos se viam como respeitadores dos tratados, acusavam os cartagineses de nao os levarem a sério. quando as circunstancias 0 exigiam; se os romanos se viam como seres civilizados, consideravam os cartagineses traicoeiros; se se viam como sinceros, aqueles eram enganadores, infquos e soberbos. De onde vieram estes esterestipos? Uma interpretacdo possivel se assenta no entendimento de que a destruicao de Cartago na terceira guerra punica foi absolutamente prescindivel, pois o dominio do Mediterraneo pelos romanos jé se cristalizara. Como justificar 0 ato de dizimar uma civilizago? Como enfrentar as admoestacées dos estrangeiros de que uma civilizacao foi desnecessariamente destrufda? Simplesmente mediante o vilipéndio infligido aos derrotados, a partir do desenvolvimento de argumentos acusatérios destinados a arrasar a reputacdo e a humanidade dos vencidos (Gruen, 2011). hitpsilestereotipos netuma-oreve-digressaoshistorical 36192 oartt22, 02:59 2.3. Uma breve digressio histrica ~ Esteredtipos Figura 23: Captura de Cartago, por Cipido Africano, segundo a representagdo do artista Giovanni Battista Tiepolo, 1725-1729 (acervo do The Metropolitan Museum of Art - imagem de dominio puiblico) Gauleses, germanos e bret6es Atentativa de dominar outros povos parece ser um terreno fértil para a criagdo e difusdo de esterestipos, particularmente sobre aqueles que contrapdem uma intensa resisténcia a serem conquistados. Os esteredtipos cultivados pelos romanos a respeito dos gauleses, contra os quais Julio César lutou durante quase uma década, reforcam este entendimento. Eles eram retratados como altos, fortes e musculosos, 0 que explicaria a resisténcia as investidas das forcas romanas; a0 mesmo tempo, eram reputados como beberrées convictos, orgulhosos, dissimulados, nada confidveis, irasciveis, pouco persistentes e absolutamente sujeitos as influéncias supersticiosas dos druidas e bardos. Estas caracteristicas negativas justificavam porque jamais teriam conseguido se furtar a serem submetidos, mesmo sendo fortes e valorosos. hitpsilestereotipos netuma-breve-digressa-istrical 37192 oartt22, 02:59 2.3. Uma breve digressio histrica ~ Estereétipos Figura 24: combate entre um grego e um gaulés, relevo em terracota, séculos Il oI! a.ne, (acervo do The Metropolitan Museum of Art ~ imagem de dominio publico) A relagao dos romanos com os germanos, um conjunto de tribos que viviam de forma quase némade, em harmonia com a natureza, forjados pelo gelo e pela neve e em condigéo de quase pobreza, tornou-se particularmente desarmoniosa apés a conquista da Gélia e a aproximagao dos romanos com os territérios situados além das margens do rio Reno. Os constantes ataques e as incursées ferozes de algumas tribos germanas contribufram para a formacao de esteredtipos que os caracterizavam como gente pouco confidvel e inimigos sorrateiros, Séneca, o poeta, estabeleceu uma analogia entre os germanos e os animais, sugerindo que a vida livre e selvagem caracteristica dos germanos os aproximariam muito mais de bichos como lobos e ledes do que dos humanos, entes bem mais faceis de serem submetidos e governados (Isaac, 2004). Apés discorrer genericamente sobre os germanos, valorizando-os pelos ideais de pureza, simplicidade, por viver a vida em comunh3o com a natureza e 0 respeito as mulheres e a prole, o historiador Cornélio Tacito (1952) descreveu as particularidades de algumas tribos da Germania. Aos catos acusou de adotarem o costume de deixarem crescer 0 cabelo e a barba até terem abatido a um inimigo no campo de batalha; daf a origem da expresso popular barba, cabelo e bigode. Sobre os cheruscos asseverou que se faziam notar pela covardia e estultice, atributos que os tornavam diferentes dos suevos, que eram apenas sujos e preguicosos. Muitos cuidados deveriam ser tomados em um fortuito encontro com os hitpsilestereotipos netuma-oreve-digressaoshistorical 38192 oariza, 0250 2.2. Una rove cgresséo itica~ Etorestinos fenos, um bando de salteadores, selvagens e miserdveis. Em relacdo aos helusios e oxiémes, mesmo considerando o relato um tanto lendario, nao deixou de acenar quao estranho seria se defrontar com estes estranhos seres de cabeca e rosto humanos e membros de feras. Figura 25: Escultura romana de um jovem identificado como 0 cherusco Arminius, by shakko ~ FAKE, CC BY-SA 3.0, hhetps://commons. wikimedia.org/w/index,php?curid=7336889 Importante assinalar, no entanto, que os estudiosos da obra de Tacito aludem que os argumentos a respeito dos germanos se referiam muito mais a fantasia dos romanos do que as caracteristicas préprias dos povos da Germénia; 0 que ndo difere muito do uso que tem sido feito das representacdes estereotipadas até nos nossos dias. Como nao poderia deixar de ser, por conta da expansao do Império Romano, os habitantes da Bretanha também foram objeto de esteredtipos a se considerar a adverténcia de Cicero a Atico para nado adquirir escravos na Bretanha, pois estes seriam to estupidos, incapazes e desprovidos de qualquer possibilidade de aprender que nao se prestariam a fazer parte de um lar civilizado (Biesanz & Biesanz, 1972). hitpsilestereotipos netuma-oreve-digressaoshistorical 30192 oait1i22, 02:59 2.3. Uma breve digressio histrica ~ Esteredtipos Judeus Segundo Delacampagne (1995), uma das primeiras diatribes contra os judeus registradas na histéria se deve ao sacerdote egipcio Manetone, que em 275 antes do presente escreveu, em grego, uma Historia do Egito, no qual registra que os judeus expulsos do Egito eram portadores da lepra, entéo reputada como uma doenga hereditaria. Esta representagao alcanga o século |, época em que jé estava estabelecido o esteredtipo, comum entre os gregos e posteriormente entre os romanos, dos judeus como um povo imundo, marcados por um odor caracteristico que causava nuseas aos olfatos mais sensiveis. Figura 26: Ester, mando ao Rel Xerxes da Pérsia para finalizar 0 massacre do povo Vil (acervo do The Metro judeu, 6leo sobre tela de Museum of Art - imagem de dominio publico) Os judeus foram objeto de intimeros esterestipos cultivados no Império Romano, particularmente na época do cerco a Jerusalém pelas tropas romanas no ano 70. A interpretagdo predominante era a de que a percepcao dos romanos sobre os judeus nao era nem a de fobia, nem a de acolhimento e sim a de uma relativa indiferenca vez que se tratava de um povo até interessante, embora nao tanto quanto os egipcios ou 0s fenicios. Um interesse maior pelos judeus se tornou manifesto apenas com a difusdo e a popularizac’o do cristianismo em razdo deles passarem a ser vistos como hitpsilestereotipos netuma-oreve-digressaoshistorical 40192 oariza, 0250 2.2. Una rove cgresséo itica~ Etorestinos um dos poucos povos que se furtaram a onda da cristianizacao e preservaram religiso € os costumes autéctones (Bohak, 1997) O determinante demogréfico pode ser considerado um elemento importante na elaboracao dos estereétipos dos romanos sobre os judeus; ao contrario de outros grupos nacionais e étnicos cujo quantitativo nao era digno de nota, os judeus representavam uma comunidade numericamente importante entre os estrangeiros residentes na cidade de Roma (Isaac, 2004). Ao chamar a atengdo pelo tamanho da comunidade, pelo envio corriqueiro de contribuigées financeiras para o Templo de Salomo em Jerusalém, pela auséncia sistemdtica de contato com outros grupos, pela natureza relativamente diferenciada das praticas alimentares e pelo exotismo dos ritos religiosos como guardar o Sabbath e circuncidar os filhos, desenvolveu-se 0 esteredtipo de que se tratava de um povo antissocial, que se afastara dos deuses e marcado por uma inclinacdo toda prépria para a luxtria. Os seus ritos eram vistos como desqualificados e as restricdes alimentares objeto de zombarias, como bem se retrata nas obras de Cornélio Tacito e de Séneca, nas quais esses habitos eram reputados como perniciosos, a se considerar as palavras colocadas na boca do poeta por Santo Agostinho (Gruen, 2011). No contexto especifico do Mediterraneo, registra-se uma das medidas mais antigas de discriminago no Concilio de Elvira, celebrado no século IV na Hispania romana, no qual se proibia aos cristdos, sob pena de serem excluldos da comunidade crista, compartilhar a mesa com os judeus, uma medida menos dura, se comparada com outtras, nas quais se ameacava de excomunhdo a todo cristo que permitisse um judeu benzer a colheita ou atrevido o suficiente para estabelecer lacos matrimoniais com um judeu. Muitas praticas discriminatérias em relacdo aos judeus sobreviveram durante a ocupagao muculmana da Europa e persistiram mesmo com a reconquista crist, época a partir da qual comega a aparecer a ideia de se conduzir testes de pureza racial para identificar aqueles em que nao corria o puro sangue europeu nas veias. Esta pratica atravessou parte da idade moderna, tendo sido abolida apenas em 1835 (Delacampagne, 1995). Numa tentativa de discorrer sobre uma das marcas registradas do racismo no mundo antigo e medieval, Delacampagne indagou sobre a época em que surge 0 antissemitismo na Europa medieval e, mesmo acenando para algunas datas mais marcantes, nos deixa sem resposta. Teria sido no inicio do cristianismo, quando os evangelhos foram escritos, a exemplo do de Sao Joo, no qual o judafsmo servia de hitpsilestereotipos netuma-oreve-digressaoshistorical 4192 oariza, 0250 2.2. Una rove cgresséo itica~ Etorestinos contraponto a formalizagéo da doutrina crista? Ou teria sido em 313, quando o cristianismo se torna religiao de estado? Ou na Galia, entre 558 e 629, quando os judeus se viram forcados a se batizar e foram alvos de intimeros episédios de violéncia? Ou entao no século XIll, quando Luls IX estabeleceu um estatuto especial relativo aos judeus, acusando-os de praticarem homicidios rituais ou de profanarem a héstia sagrada dos catélicos? Ou ainda no século XIV, com os assassinatos seletivos da populago judia em Navarra e na Andaluzia? Ou apenas no século XVIII, quando os discursos religiosos e moralizadores que até ento serviam de fundamentos para a discriminagao cederam lugar a arrazoados que consideravam o povo judeu biologicamente inferior e corrompido pela prépria natureza? A resposta exata para esta questo, claro, nao é decisiva, pois cada alternativa oferece diferentes interpretacdes e ajudaram a amalgamar uma constelagao de crencas estereotipadas. Estes estereétipos decerto contribuiram para oferecer legitimidade a um numero substancial de politicas de exclusdo e segregaco, cujos exemplos mais marcantes esto associados com as recorrentes expulsdes dos judeus: da Franca em 1182, 1306, 1322 e 1394; da Inglaterra, em 1290; da Alemanha, em 1343. Em que medida este conjunto de acontecimentos contribuiu para a formagao do esteredtipo do judeu errante e reforcou no imaginario da antiguidade as crencas sobre um povo maldito, condenado a vagar sem rumo a procura de uma inalcangdvel terra prometida? Bérbaros e vandalos Se o mais comum na elaboragdo dos esteredtipos sobre os povos da antiguidade era vincular determinadas caracteristicas psicolégicas com os nomes dos grupos sociais aos quais aquelas eram associadas, dois casos merecem destaque particular, o dos barbaros e 0 dos vandalos. © conceito de vandalismo permanece até hoje associado as noges de crueldade e destruicao, ainda que, na sua origem, se referisse apenas aos vandalos, um povo que viveu no norte da Africa e que se dedicava a fazer incursdes e ataques a algumas regides do mediterréneo com uma certa frequéncia, sendo muito conhecido o cerco & cidade de Hippo, onde vivia Agostinho, o santo. O termo barbaro possui uma conotacao diferente, pois se com os vandalos encontramos uma situa¢o na qual um substantivo evolui até se transformar em adjetivo, 0 termo barbaro, ainda que tenha uma histéria prévia, foi popularizado pelos gregos para se referir ao balbucio incompreensivel dos estrangeiros marcado por sons guturais em nada semelhante aos maviosos sons do linguajar grego. Um outro indicador do barbarismo de alguns povos era se deixarem submeter a governos hitpsilestereotipos netuma-oreve-digressaoshistorical 42192 aria, 02389 2.2. Una rove cgresséo itica~ Etorestinos despoticos e ndo terem desenvolvido um regime politico to sofisticado quanto a democracia grega. Com o passar do tempo, o termo mudou de concepgao, cristalizando-se em definitivo na antiguidade classica ao ser associado aos povos ndo subordinados & civiliza¢do imposta pela pax romana, em particular, as tribos germénicas que frequentemente invadiam e conquistavam porgées do Império. Romano. Figura 27: 0 poeta Ovidio, exilado, encontra acolhida entre os bérbaros cintios, por Eugene Delacroix, 1862 (acervo do The Metropolitan Museum of Art - imagem de dominio piiblico) Indianos A ocupacao da India se inicia ha cerca de 3.500 anos, a partir de um fluxo populacional oriundo da Asia Central e que se estabelece no vale do Rio Indo. A civilizacao harappiana floresceu durante entre 2500 e 1600 antes do presente, em seguida refluiu provavelmente em decorréncia de fatores climaticos, até sucumbir sob 0 peso das armas dos invasores némades arianos. As informagées que dispomos sobre os arianos sao bem mais abrangentes que as disponiveis sobre os harappianos, particularmente por estarem registradas em um conjunto de escritos que se convencionou denominar Vedas, nos quais podem ser encontrados alguns indicadores sobre a vida na sociedade indiana no periodo classico. hitpsilestereotipos netuma-oreve-digressaoshistorical aie aria, 02389 2.3. Una rove cgresséo istéca~ Etorestinos A visdo de ser humano dos invasores se assentava em uma diferenciaco quadripartite, organizada a partir de uma analogia com as diferentes partes do corpo humano (Flaherty, 1990; Venchi, 2020). Na parte superior, a boca, associada, aos brémanes, os humanos dedicados 8 recitaco dos mantras, aos cuidados rituais e & meditago. Os troncos e os bracos se associavam com a categoria dos guerreiros, os xétrias, cujo papel era oferecer protecdio aos rituais e, consequentemente, aos bramanes. A parte inferior do corpo, representada pelas pernas, estava associada com os vaixds, um termo genérico que se refere aos agricultores, comerciantes e escultores e, por fim, no ponto mais baixo da escala, os pés, a parte mais suja do corpo, representada pelos sudras, os intocaveis. il Figura 28: dancarinos, placa em terracota, periodo Shunga, Século | a.n.e. (acervo do The Metropolitan Museum of Art (imagem de dominio puiblico) hitpsilestereotipos netuma-oreve-digressaoshistorical asso oariza, 0250 2.2. Una rove cgresséo itica~ Etorestinos Na india ariana o termo mleccha era adotado para se referir aos sons desagradaveis emitidos por todos aqueles que ndo dominavam o sanscrito. De acordo com Thapar (1971), tratava-se de uma estranha situagao, na qual um grupo sedentério era considerado inferior a um outro que se encontrava em condicao de nomadismo. Com o avangar do tempo e estabelecido 0 dominio territorial e politico pelos arianos, 0 termo barbaro assumiu uma conotacao mais ampla, pasando a ser utilizado tanto para aludir a grupos linguisticos cuja linguagem era incompreensivel, como também para se referir aos povos que viviam em florestas ou em regides remotas, a exemplo dos habitantes do Himalaia. A relaco das estranhas ragas cujas vidas transcorriam ao largo da civilizagao foi recenseada pelo gedgrafo grego Megastenes que viajou pela india no século IV antes do presente. Além dos pigmeus j4 conhecidos dos gregos pela obra de Homero, Megéstenes se referiu a outros povos fabulosos: um que tinha os pés com oito dedos virados para trés; um povo da montanha, cujas vestes eram feitas com animais e que tinham a cabeca de cachorro em lugar da humana; uma raca de povos némades que no lugar das narinas apresentam apenas uns orificios e falavam sibilando como as cobras; um povo que vivia nos confins das montanhas, nao era dotado da cavidade oral e se alimentava apenas dos odores das plantas e raizes que conseguiam aspirar (McCrindle, 2008). Ao longo do tempo, o termo barbaro, de modo semelhante ao que ocorrera na cultura ocidental, amplia os alvos de referéncia, passando também a ser utilizado para aludir, no contexto do sistema de castas, a toda e qualquer pessoa associada as categorias consideradas impuras, assim como também para se referir aos invasores estrangeiros, particularmente hunos e, posteriormente, turcos, que, por sua parte, consideravam os pagaos indianos um tipo de gente feia, escura e servil (Armstrong, 1996). Conclusées sobre os esteredtipos na antiguidade Para sintetizar algumas destas crencas estereotipadas e facilitar o acompanhamento do até aqui assinalado incluimos um grafo (figura 29), no qual visualizamos as relacdes entre os entes sociais objeto de julgamento estereotipado e algumas das principais teorias implicitas aplicdveis a estes grupos durante a antiguidade. Os fundamentos a partir dos quais as teorias foram elaboradas sugerem 0 quanto elementos inerentes ao ambiente, particularmente as diferengas entre o Ocidente e 0 Oriente e entre a Europa e a Asia, ocuparam um papel destacado na elaboracao das teorias implicitas. Além deste elemento contextual, também assinalamos o papel decisivo hitpsilestereotipos netuma-oreve-digressaoshistorical 4si92 aria, 02389 2.2. Una rove cgresséo itica~ Etorestinos desempenhado pelas teorias implicitamente acolhidas a respeito das caracteristicas dos individuos e de como elas foram adotadas para estabelecer diferenciacbes no interior de uma mesma sociedade. Estas caracteristicas foram interpretadas como atributos transmitidos e herdados pelas gera¢Ges posteriores e contribufram para a formulagao de teorias implicitas ainda mais especializadas a respeito das caracteristicas particulares dos varios povos. Assinalamos, ademais, a importancia das teses hierarquizadoras e como elas levaram ao entendimento de que, tanto os individuos quanto os povos, poderiam ser posicionados ao longo de uma escala na qual se estabelece a diferenciacao entre os melhores, nascidos para dominar e, os demiais, sujeitos a um destino funesto que Ihes reservara apenas o direito de ocupar os Sitios inferiores. ‘pcos "wlosor Figura 29: grafos com as relagées entre grupos e esteredtipos na antiguidade Os fundamentos a partir dos quais as teorias foram elaboradas sugerem o quanto elementos inerentes ao ambiente, particularmente as diferencas entre o Ocidente eo Oriente e entre a Europa e a Asia, ocuparam um papel destacado na elaboracdo das teorias implicitas. Além deste elemento contextual, também assinalamos o papel decisivo desempenhado pelas teorias implicitamente acolhidas a respeito das caracteristicas dos individuos e de como elas foram adotadas para estabelecer hitpsilestereotipos netuma-oreve-digressaoshistorical 6192 oariza, 0250 2.2. Una rove cgresséo itica~ Etorestinos diferenciagées no interior de uma mesma sociedade. Estas caracteristicas foram interpretadas como atributos transmitidos e herdados pelas geragdes posteriores e contribuiram para a formulacao de teorias implicitas ainda mais especializadas a respeito das caracteristicas particulares dos varios povos. Assinalamos, ademais, a importancia das teses hierarquizadoras e como elas levaram ao entendimento de que, tanto os individuos quanto os povos, poderiam ser posicionados ao longo de uma escala na qual se estabelece a diferenciagao entre os melhores, nascidos para dominar e, os demais, sujeitos a um destino funesto que Ihes reservara apenas 0 direito de ocupar os sitios inferiores. 2.3.3. Mundo medieval Denomina-se medieval o perfodo que se estende por quase mil anos, cujo marco inicial foi a queda do Império Romano no ano 47. 0 perfodo medieval pode ser considerado uma era de paradoxos, pois se pode ser considerada a idade da fé, face a imensa espiritualidade que marcou o perfodo, como se depreende pela construcao de catedrais de imponente beleza, pelos incessantes peregrinos a se espalharem nas estradas e caminhos e os inuimeros cruzados a tentarem resgatar o célice sagrado na longinqua Terra Santa, também pode ser qualificada como uma época de corrup¢aio das instituigées, de culto 4 morte, de obscenidades e de xenofobia (Hughes, 2006). Isto se refletiu no surgimento de termos e expressdes, de base religiosa, cunhadas com a finalidade de desqualificar o outro, em particular, aqueles que se dedicarem & reforma da Igreja Catélica. O termo perversao exemplifica bem esta tendéncia, ao aludir a uma condigao oposta a conversdo. O perverso é aquele que pela sua propria natureza ndo pode ser considerado um membro da comunidade crista (Hughes, 2006). Esta é a marca decisiva dos barbaros no mundo medieval. As crengas sobre os barbaros, como vimos, ocuparam uma posicao central no imagindrio dos povos da antiguidade, sendo utilizadas para estabelecer a diferenciacao dos habitantes de um ideal mundo civilizado em contraposi¢a0 aos povos que viviam fora dos limites da sociedade helenista e, posteriormente, do mundo abarcado pelo Império Romano. Jones (1971), numa monografia dedicada ao estudo da imagem dos barbaros na Europa medieval indica que, uma vez socobrado o poder politico do Império Romano entre os séculos V e VII, 0 sentido habitual atribuido até entao ao termo barbaro se hitpsilestereotipos netuma-oreve-digressaoshistorical 47192 oariza, 0250 2.2. Una rove cgresséo itica~ Etorestinos tornou insustentavel. A manutengo desta classificacdo imporia que a Europa como um todo, dominada por povos como os germanos, os ostrogodos, os visigodos, os vandalos e os francos, tivesse de ser considerada barbara. Isso, claro, tornaria o termo sem sentido, pois a persist€ncia do uso tradicional obrigaria tais povos a aplicarem o termo barbaro em referéncia a si mesmos, o que seria um contrassenso. Com a crescente conversao dos reis e da populacao da Europa ao cristianismo e a forte influéncia exercida pelas instituigdes e praticas religiosas nos costumes e na sociedade, 0 termo barbaro logo conhece um deslize no significado e passa ase referir sobretudo aos pagdos. Com isso, perde o carater cultural com o qual estava investido na antiguidade classica e ganha uma forte conotagao religiosa, passando a ser utilizado para fazer alusdo os povos ndo subsumidos pela fé crista. No entanto, essa nova concepcao nao impediu a preservacao das antigas associagdes seménticas, imputando aos barbaros atributos psicolégicos extremamente negativos como as nogGes de brutalidade, ferocidade e traicao. A partir de entdo, o termo passa a aludir principalmente aos eslavos, aos vikings e aos sarracenos; ou seja, aqueles povos ainda situados fora da crescente zona de influéncia do cristianismo. Segundo o mesmo Jones, no periodo tardio da Idade Média o termo conheceu mais um deslize de significado passando a ser aplicado aos infiéis muculmanos numa acepgao por certo confusa, pois poderia tanto se referir aos povos berberes habitantes do norte da Africa quanto aos turcos, cuja imagem se tornara particularmente negativa no final da Idade Média devido aos relatos de mercadores gregos e italianos que acompanharam in loco 0 cerco e a tomada de Constantinopla Qual seja o significado assumido, o principal contexto no qual o termo continuou a ser adotado nao diferia de forma significativa do encontrado no mundo antigo, referindo- se ao conflito de longa duracao entre os que se viam como civilizados e aqueles que eram percebidos como alheios ao alcance da civilizacao, a exemplo das tribos germénicas nos séculos VI e VII, dos mongéis nos séculos XIll e XIV, e dos infiéis otomanos durante 0 periodo das cruzadas. Conforme assinala Bethencourt (2020), na época das cruzadas, um periodo no qual as invasées e as execugées dos infiéis se tornaram motivo de honra e orgulho, os esteredtipos visuais eram amitide adotados para, resguardada uma certa distancia fisica, identificar os inimigos, em especial aqueles que representavam uma ameaca existencial imediata. Um encontro fortuito com uma expedicao viking entre os anos hitpsilestereotipos netuma-oreve-digressaoshistorical 48192

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