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MEMÓRIA E PARENTESCO

1. INTRODUÇÃO
2. DESENVOLVIMENTO
2.1.CONCEITUAÇÕES E PONDERAÇÕES INICIAIS

O esforço de compreensão das questões relacionadas ao tema das memórias e


parentesco requer um deslocamento sobre os tradicionais objetos dos estudos
antropológicos sobre parentesco.

Se na tradição antropológica a análise do parentesco foi construída conjuntamente com


tópicos como organização social e/ou família, desde as tradições fundadoras da
Antropologia como uma Ciência Moderna, para demonstrar a composição, vínculos,
filiação, divisão social dos trabalhos, heranças, sobretudo, a estrutura social ou os
grandes contextos que organizam os grupos com ou sem estado, a temática de
memória e parentesco revira a perspectiva por priorizar a dimensão políticas dos
eventos passados e suas reverberações nas biografias particulares.

Esta “virada” é muito bem demarcada pela antropóloga Janet Arsten, a partir de
conceitos como “relatedness”, que propõe atenção aos processos e relações do que é
“ser parente”, obviamente em contraposição aos laços biológicos ou às explicações
gerais de filiações.

A ideia é que o parentesco seja apreendido a partir de situações particulares, questões


políticas, as dimensões emocionais, os objetos que denotas e conotam memórias e
vínculos parentais. É, basicamente, o que Janet Arsten chama de “política da memória”.

As “políticas da memória” é a forma como pequenos processos cotidianos de


“relatedness” têm em larga escala importância política, ou, como as memórias pessoais
e familiares, ou seu esquecimento, podem contribuir para as narrativas maiores que
constituem, mantêm ou negam as relações sócio-culturais.

Os exemplos da potência desta abordagem podem ser vistos, por exemplo, na análise
dos eventos críticos, de violência e extermínios, diagnóstico de doenças, processos de
adoção, migrações, sobretudo dos excessos operados pelos Estados, pois é daí que o
parentesco emerge como um tipo particular de socialidade no qual certas formas de
temporalidade e de memória e certas disposições em direção ao passado, presente e
futuro são possíveis, enquanto outras são excluídas.

Portanto, as famílias, se é que em algum momento foi passível de uma definição


simples ou se em algum momento foi um espaço isento de forças políticas de outras
ordens, corta e é cortada por outras relações sociais, como mercado, políticas de
Estado, discurso médico-jurídico.

Em suma, os estudos de parentesco encontram nas abordagens etnográficas sobre as


memórias, hoje, uma postura metodológica atenta às significações práticas,
hierárquicas, morais, situacionais, por isso, não universais, do que é possível chamar de
organização social, família e parentesco.

Para uma melhor compreensão da entrada da temática das memórias nas análises de
parentesco, é necessário delimitar uma sequência de críticas antropológicas aos
clássicos demarcadores de parentesco.
2.2.DO “FIM DO PARENTESCO” ÀS POLITICAS DA MEMÓRIA

Foi a partir da segunda metade do século XX, que as críticas ao parentesco sacolejaram
não apenas o que se tinha sistematizado sobre este campo de estudos antropológicos,
mas também, a própria antropologia.

Como denúncia ao etnocentrismo dos modelos teórico-metodológicos da antropologia,


sustentada por David Schneider (1968), o parentesco é colocado sob desconfiança ao
ponto de ser equiparado à uma ilusão conceitual culturalmente marcada. Já não fazia
sentido em conceber o parentesco de um ponto de vista da propagação de vínculos
consanguíneos, apenas.

A família, os pares conjugais, o sexo reprodutivo e demais indicadores da oposição


biológico/social, passaram a ser, ao mesmo tempo, o foco da crítica e as explicações a
serem evitadas. Instaurou-se, a partir daí uma relação de evitamento com os
demarcadores biológicos do parentesco.

Com base nestes apontamentos críticos às designações biológicas do parentesco,


buscou-se compreendê-lo a partir de relações que poderíamos designar vínculos
parentais em situações específicas.

Não se trata de conceber o parentesco como uma ressonância da reprodução,


totalizante e universal, mas, compreendê-lo a partir dos conflitos, das situações que
denotam e conotam vínculos de amizades, por exemplo, sobretudo, desconstruindo os
locais que as mulheres (neste caso, esposas) ocupam nestas concepções naturalizantes
dos vínculos parentais.

As produções de Gayle Rubin (1986), Marilyn Strathern (1992), Judith Butler (2003),
Janeth Arsten (2004), dentre outras, são decisivas nos redimensionamentos dos ganhos
conceituais e epistemológicos, por isso, políticos, dos estudos de parentesco

Estas produções se organizaram, por exemplo, a partir da análise sobre a origem da


desigualdade feminina, que reverberou numa instigante crítica ao Estruturalismo de
Lévi-Strauss, já que aquele “momento” conceitual de separação entre a natureza e a
cultura e de emergência da sociedade - interpretado a partir das lógicas de circulação
extragrupal de mulheres -, é também um local de afirmação masculina em detrimento
das posições femininas (RUBIN, 1986).

O aperfeiçoamento das chamadas novas tecnologias de reprodução fornece outras


situações etnográficas que desestabilizam o parentesco. Strathern (1992) acompanha a
diversidade de discursos sobre as tecnologias reprodutivas e como elas complexificam
as posições dentro de uma “família”, já que agora é possível existir reprodução sem
relações sexuais.

É a partir deste “mote”, como coloca Cláudia Fonseca (2011), em seu estudo sobre
como a antropologia do direito e a teoria da biopolítica oferecem elementos que
facilitam a compreensão de certos impasses relacionados à família (idem), que torna-se
imprescindível acompanhar relações outras que, imersas em suas situacionalidades,
imprimem sentimento, termos, e demais dimensionamentos de parentesco; é possível,
pergunta a autora: (...) “operar com noções de parentesco sem um discurso moral que
embasa as relações sociais?” (Id. p.18).

A ideia é, portanto, adentrar por situações etnográficas que não têm junções óbvias ou
tradicionais entre relatedness, memória e política. A perspectiva sobre memória e
parentesco, se apreendida a partir da perspectiva antropológica, é melhor
demonstrada a partir de pesquisas particulares, como veremos a seguir.

Para tal explanação leva-se em consideração um compilado de pesquisas sobre a


temática da memória e parentesco organizado num livro pela própria Janeth Arsten,
como também, na sequência, um destaque para o papel da memória nas pesquisas
antropológicas brasileiras sobre parentesco.

2.3. MEMÓRIA E PARENTESCO


No artigo de Empson sobre os Buryat, parentesco e lugar relacionam-se de um modo
bastante peculiar. Na Mongólia, o movimento é um aspecto essencial da vida, contudo
a separação entre pessoa e lugar não é vista como uma falha de relações. Neste
contexto, a ausência é um meio através do qual as pessoas se relacionam. Empson faz
uma bela leitura sobre a rememoração da ausência como um meio através do qual se
revela, aos outros, o conhecimento sobre os próprios parentes.

Outro exemplo, pode ser visto na etnografia de Laura Bear sobre as famílias anglo-
indianas de Kharagpur, por exemplo, mostra como os amigáveis fantasmas domésticos
contêm uma visão particular do passado e possuem uma influência determinante no
presente, materializando as conexões entre as gerações e a localidade de Kharagpur. A
autora assinala que ao se traçar a cultura material do parentesco é preciso estar atento
a tipos específicos de reificações experienciais envolvidas. Neste caso, os fantasmas
domésticos tornam-se provas irrefutáveis de conexões com o passado.

Ainda sobre a questão, a pesquisa de Michael Lambek sobre Alice Alder, uma
curandeira suíça, retoma as relações entre o parentesco e os atos e as práticas que
fazem parentesco. O autor enfatiza que lembrar é uma prática moral. Para ele, quando
um amigo ou parente lhe pergunta se você se lembra de algo e você responde “eu me
lembro”, isso demonstra a afirmação de um relacionamento social em sua
temporalidade mais profunda e, nesse sentido, a memória é dialógica e expressa uma
ética do cuidado, o que, para Lambek, não seria diferente do parentesco.

Por fim, a etnografia sobre as memórias de eventos críticos, pela história pessoal de
Janeth Asrten, a autora trata das relações entre memórias e parentesco a partir do
Holocausto. Destaca-se, nesta pesquisa, a potência dos documentos para acionar as
lembranças de eventos políticos e sentimentos de pertencimento, como também de
luta política pelo não esquecimento de situações catastróficas.

Como apontado no início desta sessão, as pesquisas antropológicas sobre parentesco


atualmente se aproximam deste redimensionamento que a memórias cotidianas
redefinem parentescos e políticas.
2.4.MEMÓRIA E PARENTESCO: ETNOGRAFIAS BRASILEIRAS

A noção de paisagem é trazida aqui para explorar as memórias das redes de parentesco e
vizinhança das famílias quilombolas de Vargem Grande, habitantes do Parque Estadual da
Pedra Branca, no Rio de Janeiro. A percepção nativa da paisagem se distancia das políticas
ambientais, da contemplação e do lazer para se transformar no registro das vidas, atividades
e itinerários das gerações passadas, que deixaram suas marcas e pegadas nela.
Contrariamente à paisagem-objeto, compreendida como uma entidade externa e separada,
que se observa à distância, o caso oferece a perspectiva de uma relação mais simétrica entre
paisagem e moradores, desafiando a separação ontológica entre sujeito e ambiente. Nesta
definição, lugares constituem pessoas e vice-versa; pessoas e lugares constituem paisagens.

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