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A produção do sujeito-velho como


empresário de si: cadernos de saúde
fabricando modos de vida

The production of the elderly subject as businessman of


himself: health notebooks manufacturing ways of living

Patricia Haertel Giusti


Paula Corrêa Henning

RESUMO: O objetivo deste artigo é mostrar a articulação entre os saberes produzidos


para os velhos, os jogos de força que entram em operação para garantia de um
envelhecimento melhor e a subjetivação desses indivíduos. O corpus discursivo é
composto por enunciações sobre velhice presentes na mídia impressa e foi analisado a
partir do referencial foucaultiano. Percebe-se o atravessamento dos dispositivos
disciplinares, de segurança e de controle, na fabricação de um sujeito-velho empresário
de si mesmo.
Palavras-chave: Velhice; Mídia; Estudos foucaultianos.

ABSTRACT: The aim of this article is to demonstrate the relationship between the
knowledge produced for old people, the power games that come into operation to
ensure a better aging process and the subjectivity of these individuals. The discursive
corpus is composed by enunciations about aging in media press, and it was analyzed
from Foucault's referential. One realizes the crossing of disciplinary, security and
control devices in the manufacture of an elderly subject, businessman of himself.
Keywords: Oldness; Media; Foucault's studies.

Giusti, P.H., & Henning, P.C. (2015, abril-junho). A produção do sujeito-velho como empresário de si: cadernos de
saúde fabricando modos de vida. Revista Kairós Gerontologia,18(2), pp. 31-57. ISSN 1516-2567. ISSNe 2176-901X.
São Paulo (SP), Brasil: FACHS/NEPE/PEPGG/PUC-SP
32 Patricia Haertel Giusti, & Paula Corrêa Henning

Introdução

“Atitudes saudáveis”, “receitas de vitalidade”, “neurônios sarados”, “longa vida”.


As enunciações que apresentamos para iniciar este texto são algumas entre as mais diversas
que acompanham as reflexões sobre o processo de envelhecimento nos dias de hoje.
Pretendemos neste artigo propor uma discussão sobre a forma pela qual a mídia, e aqui,
mais especificamente a mídia impressa, apresenta o enunciado de velho-saudável na
contemporaneidade. As enunciações citadas ao longo do texto e as que iremos mostrar
fazem parte do corpus discursivo da pesquisa, tendo sido retiradas dos cadernos Viva Bem
e Vida, dos Jornais Diário Popular e Zero Hora, respectivamente. Tais jornais têm ampla
circulação no estado do Rio Grande do Sul, Brasil.
A recorrência de enunciações sobre velhice nos dias de hoje parece atrelar-se ao que
Bauman (2009) tem apresentado como “vida líquida”. Um jeito de viver que precisa ser
atualizado constantemente, que exige das pessoas velocidade e ações que se iniciam e
terminam rapidamente, que recomeçam se necessário.
Podemos observar que, numa sociedade líquido-moderna1, as orientações em
relação aos cuidados com a saúde, que são dadas às pessoas ao longo da vida e
especialmente reforçadas na terceira idade, entram nessa lógica de atualização, de reinícios,
colocando a população em xeque: ou se seguem as normativas para viver mais e melhor ou
a longevidade fica bastante distante, quase inalcançável. “A necessidade aqui é correr com
todas as forças para permanecer no mesmo lugar, longe da lata de lixo que constitui o
destinatário dos retardatários” (Bauman, 2009, p. 9).
Bauman afirma que a vida líquida é uma vida de consumo em que os indivíduos
precisam adquirir aquilo que de mais atual, adequado, moderno existe, para que
permaneçam convivendo em sociedade. O modo de chegar e viver a velhice nos dias de
hoje se aproxima cada vez mais dessa sociedade líquido-moderna. Os velhos buscam e
encontram formas de viver mais e melhor. Recorrem aos mais variados produtos, técnicas,
fórmulas, com o objetivo de sentirem-se úteis e produtivos no meio em que vivem.

1
A sociedade líquido-moderna apresentada por Bauman refere-se à época atual em que estamos vivendo. Uma época
de fluidez, de incertezas e inseguranças, em que as condições sob as quais agem seus integrantes mudam em um
tempo mais curto, mais rápido, do que aquele necessário para a consolidação das regras, dos hábitos e das formas
de agir (Bauman, 2009).

Giusti, P.H., & Henning, P.C. (2015, abril-junho). A produção do sujeito-velho como empresário de si: cadernos de
saúde fabricando modos de vida. Revista Kairós Gerontologia,18(2), pp. 31-57. ISSN 1516-2567. ISSNe 2176-901X.
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[...] Em um mundo repleto de consumidores e produtos, a vida flutua


desconfortavelmente entre os prazeres do consumo e os horrores da
pilha de lixo. A vida talvez seja sempre um “viver-para-a-morte”, mas,
para os que vivem na líquida sociedade moderna, a perspectiva de
“viver-para-o-depósito-de-lixo” pode ser a preocupação mais imediata e
consumidora de energia e trabalho (Bauman, 2009, p. 17) [grifos do
autor].

Na perspectiva de fugir do “viver-para-o-depósito-de-lixo” é que os indivíduos


aceitam e se moldam às condições prescritas por profissionais da saúde, que muitas vezes
utilizam a mídia para propiciar as orientações a ser seguidas pela população. O foco em
alcançar os indivíduos faz com que a proliferação do discurso da ciência em relação ao
envelhecimento esteja presente em diversos espaços para que cada um “escolha” aquilo
que irá consumir. Assim, pessoas com mais idade tornam-se consumidores e objetos de
consumo, desde que sigam as orientações indicadas por aqueles autorizados a falar, tais
como os médicos, os nutricionistas, os fisioterapeutas, etc.
Tomamos os estudos de Michel Foucault, filósofo francês do século XX, para
problematizar a constituição dos sujeitos velhos na atualidade, olhando especialmente
para a articulação que está posta entre os saberes produzidos para essa população, os
jogos de força que entram em operação para garantia de um processo de envelhecimento
melhor para o indivíduo e para o Estado e a subjetivação desses indivíduos. Para dar conta
dessa articulação é que trazemos um artefato midiático que dialoga com as pessoas no
intuito de educá-las para que, ao longo da vida, para si próprias e suas famílias, conheçam
formas de desenvolver atitudes capazes de fazê-las viver mais e com qualidade de vida.
As capas dos cadernos de saúde Vida e Viva Bem, no período de 2004 a 2010
reverberam a temática do envelhecimento, trazendo o discurso da geriatria e da
gerontologia, ciências estas que produzem conhecimento para que as pessoas cheguem e
vivam a fase da velhice de forma mais adequada e tranquila, além de apresentar inúmeras
situações e preocupações produzidas hoje através de leis, políticas, programas com
direcionamento no cuidado de saúde do ser humano e particularmente nas possibilidades
de mantê-lo vivo por mais tempo.
Como mencionamos, estamos trazendo a mídia impressa como uma amostra de
material que apresenta os saberes produzidos pelos geriatras e profissionais que estudam
e atuam na velhice.

Giusti, P.H., & Henning, P.C. (2015, abril-junho). A produção do sujeito-velho como empresário de si: cadernos de
saúde fabricando modos de vida. Revista Kairós Gerontologia,18(2), pp. 31-57. ISSN 1516-2567. ISSNe 2176-901X.
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Poderíamos nos utilizar de outros tantos, que cotidianamente são colocados em nossa
rotina pessoal e profissional como programas de televisão, blogs, filmes, novelas, livros,
programas de rádio, revistas, redes sociais, entre outros que trazem a voz de
especialistas e produzem “verdades” que nos interpelam e fazem com que tenhamos
algumas escolhas e não outras para conduzir nossa forma de viver.
Entendemos o conceito de verdade a partir do referencial foucaultiano (2005,
2010a), que nos remete à ideia de uma produção discursiva capaz de constituir nossa
maneira de ser e agir na atualidade. Para Foucault, a verdade é o “conjunto das regras
segundo as quais se distingue o verdadeiro do falso e se atribui ao verdadeiro, efeitos
específicos de poder” (Foucault, 2010, p.13). Não se trava uma luta em defesa da
verdade, mas sim interessa a função político-econômica que ela desempenha.
Na correnteza dessa discussão, o autor destaca a relação que ocorre entre a
verdade e os sistemas de poder, no sentido de serem responsáveis por sua produção e
ainda de dar o apoio necessário, além de estar atrelada aos efeitos de poder
especialmente quando estes reproduzem a ou as verdades. Sandra Corazza contribui
com essa reflexão ao dizer:

[...] a verdade não é uma coisa a ser descoberta. A verdade não é uma
questão de identidade com o “real” ou com a natureza. Fundar, em vez
disso, uma epistemologia do verídico: o que conta como verdade ou
como verdadeiro? Como se define o que é verdadeiro, quem define e
sob que condições? Centrar-se não na verdade, mas nos seus efeitos.
Buscar não a verdade, mas as relações de poder que possibilitam sua
existência. Destacar não as condições lógicas e empíricas, mas as
condições históricas e políticas de produção da verdade. Buscar
descrever não a “verdade”, mas os seus regimes (Corazza, 2003, p.
15) [grifos da autora].

Nas reportagens em que estamos analisando os “regimes” de verdade são em sua


grande maioria reverberados por profissionais da área da saúde que utilizam pesquisas,
vivências e procedimentos para demonstrar os cuidados que devem ser tomados pelo
corpo especialmente na terceira idade.

Giusti, P.H., & Henning, P.C. (2015, abril-junho). A produção do sujeito-velho como empresário de si: cadernos de
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Podemos dizer, observando os estudos de Michel Foucault, que nem todas as


pessoas estão aptas para falar: “[...] ninguém entrará na ordem do discurso se não
satisfizer a certas exigências ou se não for, de início, qualificado para fazê-lo.” (Foucault,
2010c, p.37).
Os textos produzidos sobre o envelhecimento entram nesse jogo da legitimidade
discursiva e, por isso, são convidados nutricionistas, educadores físicos, fisioterapeutas,
médicos, biólogos, terapeutas ocupacionais para utilizar o espaço midiático, nesse caso, os
cadernos de saúde para ensinar como as pessoas devem agir no seu dia a dia. É nesse
material que percebemos a quantidade de produtos e possibilidades que existe no mercado
para o consumo da e na terceira idade. E mais, a quantidade de ofertas que fazem com que
o enunciado do velho-saudável seja reproduzido e atualizado constantemente.
Na sequência, apresentamos ao leitor alguns ensinamentos trazidos por Michel
Foucault ao longo de sua obra e que nos possibilitam pensar no processo de
envelhecimento nos dias de hoje. Observamos, a partir das enunciações presentes nos
cadernos de saúde, o sujeito-velho sendo governado por estratégias biopolíticas que,
através dos mecanismos de segurança e de controle, moldam a forma de viver de cada
um. Olhamos ainda para a produção do velho como um homo economicus, ou seja, aquele
que produz e, com sua fonte de renda, consome os produtos e serviços necessários para
seu dia a dia.

Modos de empresariar-se: saúde e verdade nos cadernos de saúde

O discurso sobre o envelhecimento produzido na contemporaneidade, as políticas


públicas de saúde produzidas para cuidar das pessoas, os inúmeros movimentos
arquitetônicos de organização das cidades e dos espaços públicos e privados para acolher
as pessoas com mais idade, a proliferação de leis e aparatos jurídicos preocupados com a
população de velhos, a diminuição dos asilos apenas como “depósito de velhos”,
acompanhados do crescimento expressivo de casas para idosos ou locais para que esses
indivíduos apenas passem o dia a fim de conviver com outras pessoas e realizar
atividades, são alguns dos elementos que constituem o dispositivo da velhice2.

2
Sobre dispositivo da velhice, ver em: Giusti, Haertel Patricia, Henning, Corrêa Paula. Dispositivo da Velhice: o dito
e o não dito na sua fabricação. In: Argumentum, Vitória (ES/Brasil), 6(1), jan./jun., 2014, pp. 208-222.

Giusti, P.H., & Henning, P.C. (2015, abril-junho). A produção do sujeito-velho como empresário de si: cadernos de
saúde fabricando modos de vida. Revista Kairós Gerontologia,18(2), pp. 31-57. ISSN 1516-2567. ISSNe 2176-901X.
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Diariamente essa rede de elementos entra em funcionamento, colocando os sujeitos-


velhos numa condição de participantes ativos desse processo.
A mídia, como interlocutor, encarrega-se de produzir e mostrar aos indivíduos
todo esse conjunto bastante heterogêneo de situações, capaz de fazer com que pessoas
de todas as idades e, especialmente, os mais velhos se convençam de entrar nesse jogo e
busquem as alternativas apresentadas como forma de conduzir suas próprias vidas.
Diariamente somos interpelados para que façamos um investimento em nosso próprio
corpo, para que ao observar as histórias e os exemplos de outros idosos sejamos
seduzidos para governar nossa forma de viver.
No Brasil, ao contrário de outros países desenvolvidos, as reflexões sobre o
processo de envelhecimento acontecem de forma lenta. Há pouco tempo o país acordou
em relação a essa questão e vem deixando o estigma de ser jovem para se constituir em
um território com um grande número de pessoas com mais de 60 anos.
A presença de muitos espaços que ainda abrigam os velhos “abandonados” pelas
famílias, especialmente aqueles com patologias crônicas e limitantes, a necessidade de
leitos hospitalares geriátricos em número expressivo, a formação de cuidadores de
idosos, e as políticas assistencialistas direcionadas praticamente ao tratamento mostram
que o Brasil ainda é um país pouco evoluído quando pensamos em uma velhice
diferenciada, mais própria dos dias de hoje, em que o idoso é preparado para cuidar de
si desde cedo, evitando problemas ao atingir idades mais avançadas.
Notamos que os brasileiros com mais de 60 anos estão bastante expostos ao
aparecimento de doenças, uma vez que podem ter apresentado, ao longo de sua vida,
condições de saúde, lazer, moradia, alimentação, entre outras, não tão adequadas e que
acabaram influenciando no acontecimento de alguma patologia. Essa forma de viver
tem sido esvaziada por toda uma discussão de saúde em prol de uma modificação, que
se deseja, do perfil das pessoas com mais idade. Há uma intensificação nas políticas que
atuam na população de velhos, buscando garantir uma melhoria geral nas condições de
vida desses indivíduos.

Giusti, P.H., & Henning, P.C. (2015, abril-junho). A produção do sujeito-velho como empresário de si: cadernos de
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Para acompanhar os avanços que vêm ocorrendo para a população de velhos,


especialmente pela produção de pesquisas científicas que visam ao cuidado desses
indivíduos, evitando o adoecimento, existe uma proliferação de ações que englobam a
coletividade como sistema de aposentadoria, criação dos conselhos de idosos do âmbito
municipal e estadual, inserção da temática do envelhecimento quando se planejam as
campanhas eleitorais, construção de espaços públicos habilitados para prática de
atividade física pelo idoso, criação das universidades para terceira idade e tantas outras
que, de uma forma global, são planejadas para que as pessoas cheguem nessa etapa da
vida em situação adequada para então usufruírem desse momento.
Essas estratégias que atuam sobre a vida das pessoas são, para Foucault (2008b,
2010b), uma forma de poder que regula e controla a vida social. O biopoder surge em
meados do século XVIII fazendo com que ocorra um deslocando do direito que “faz
morrer e deixa viver” – exercido pelo soberano – para se apoiar em um poder que “faz
viver e deixa morrer”. Este dispositivo de segurança tem como princípio a preocupação
com a vida e o futuro de uma população. Observamos que há um deslocamento a partir
do surgimento de novas tecnologias de poder; porém, é preciso que fique claro que não
há uma passagem do poder soberano para o disciplinar e do disciplinar para o biopoder.
O que ocorre é uma articulação e, especialmente, uma complementação entre essas
formas de poder. “A segurança é uma certa maneira de acrescentar, de fazer funcionar,
além dos mecanismos propriamente de segurança, as velhas estruturas da lei e da
disciplina” (Foucault, 2008b, p.14).

[...] podemos usar o termo ‘biopolítica’ para abarcar todas as


estratégias específicas e contestações sobre as problematizações da
vitalidade humana coletiva, morbidade e mortalidade, sobre as formas
de conhecimento, regimes de autoridade e práticas de intervenção que
são desejáveis, legítimas e eficazes (Rabinow, & Rose, 2006, p.28).

A nação brasileira, observando a transição epidemiológica que mostra que daqui


a alguns anos seremos o sexto país do mundo em número de idosos, tem lançado
diversas estratégias biopolíticas para a população de idosos. Como mencionamos, essas
ações estão disponíveis para o ser humano e são disseminadas diariamente para que
cada um e todos entrem nesse jogo de manutenção da vida.

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Para cada uma das proposições feitas pelo Estado, existe uma série de alternativas, de
possibilidades que podem ser consumidas pelas pessoas com mais idade, em um
primeiro momento, independentemente de sua classe social.
Na esteira das estratégias biopolíticas apresentadas por Michel Foucault,
observamos a presença da sociedade de controle pensada por Deleuze (1992).
Entendemos a presença dos mecanismos de controle como um realce às tramas de
segurança que estamos envolvidos nos dias de hoje. Da mesma forma que estudamos,
nas obras foucaultianas, a modificação de uma sociedade disciplinar para uma
biopolítica, em Deleuze vemos também uma discussão sobre essa alteração,
evidenciando marcas distintas de uma sociedade disciplinar e de uma sociedade de
controle. Nas palavras do autor: “não cabe temer ou esperar, mas buscar novas armas”.
(Deleuze, 1992, p. 220).
Assim, quando observamos o referencial deleuziano sobre sociedade de controle,
percebemos uma discussão comparativa em busca de novas estratégias, que nos
mostram que a sociedade disciplinar, marcada pelos confinamentos, dá espaço a um
novo cenário, que aponta, por exemplo, que as fábricas, um local onde os indivíduos
eram vigiados na individualidade, são substituídas pelas empresas, que são vistas como
uma forma de modular os seres humanos a partir de desafios, metas e consequentemente
vigiá-los pela quantidade produzida. Ocorre, com isso, uma segmentação na população,
classificando-a em determinados públicos.

Os novos dispositivos de poder segmentam a população em faixas


etárias, grupos ou identidades, valorizam a competição entre os
indivíduos e exaltam a rivalidade como emulação motivadora. Os
saberes agora provêm da comunicação e do marketing, além da área
de gestão empresarial, direito do consumidor e da genética. Esses
novos dispositivos não eliminam, mas articulam, intensificam e
transformam os precedentes – disciplinares e biopolíticos de
segurança (Tótora, 2011, p.97).

O excerto acima destaca a articulação que observamos na contemporaneidade


quando nos referimos às estratégias que direcionam nossa forma de viver.

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Somos diariamente rodeados por mecanismos disciplinares, de segurança e de


controle que, associados, governam os indivíduos, a população e a determinados
segmentos de públicos. Todos estamos amarrados por essas relações de poder. É preciso
explicitar que estamos trazendo à tona a problematização de um autor que, a seu modo,
corrobora com Foucault, no sentido de evidenciar que vivemos numa sociedade que
utiliza os mecanismos de segurança e de controle para atuar sobre a vida das pessoas.
Apresentaremos a seguir algumas enunciações presentes em nosso corpus de
análise que trazem à tona a problematização que estamos propondo. O material
analisado, como foi mencionado, foi extraído de cadernos de saúde, ambos de
publicação semanal presentes em dois jornais de grande circulação regional (Pelotas
(RS) e região sul) e estadual (Rio Grande do Sul). O caderno Viva Bem, presente no
Jornal Diário Popular apresenta diversas temáticas ligadas à saúde e o bem-estar das
pessoas. Normalmente, em suas reportagens, profissionais da área da saúde são
chamados para apresentarem soluções para os problemas que afetam o dia a dia dos
indivíduos. No caderno Vida, do Jornal Zero Hora, também somos convidados a discutir
e conhecer as mais variadas situações que envolvem as condições de saúde e doença nos
dias de hoje. Além da fala de profissionais, muitos exemplos de pessoas que viveram e
superaram determinada situação são mostradas, e ainda há um espaço dentro do próprio
caderno mais comercial que traz oportunidades para que as pessoas consigam ter uma
vida mais adequada em termos de cuidados com a saúde.
Recortamos, desses dois cadernos de saúde, as reportagens presentes na capa,
por entendermos esta a produção principal daquela semana no referido caderno.
Trabalhamos com as capas em um período de sete anos, iniciado em 2004, ano em que a
temática do envelhecimento torna-se mais visível pela regulamentação apresentada no
Estatuto do Idoso. Neste artigo nos reportamos a algumas capas, que foram selecionadas
para dar conta da articulação entre o saber/poder e o assujeitamento da população de
velhos na contemporaneidade, explorando os elementos que constituem o dispositivo da
velhice. As reportagens apresentam um conjunto de signos que nos mostram os
acontecimentos atuais no âmbito do envelhecimento e nos levam a analisá-los a partir
de algumas ferramentas presentes no referencial foucaultiano. Vamos a elas então!

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Após o banho, a professora aposentada Maria Bocorny, 92 anos,


sempre se veste bem, mesmo que seja para passar o dia em casa, o que
não ocorre com frequência. Se não está envolvida com o trabalho, está
no teatro, assistindo a um espetáculo de música, passeando ou
viajando – hobby mantido por toda a vida. Há mais de duas décadas,
Maria, que mora sozinha, trabalha como voluntária na Pousada da
Luz, Lar do Idoso, instituição que ajudou a erguer. É responsável pela
contabilidade, por procurar novos sócios e atualizar as doações, entre
outras atividades. – Não estou muito contente com a minha cabeça.
Tenho esquecido muitos nomes e palavras – diz. Para manter o
raciocínio afiado, Maria, que fundou a Organização Mundial de
Educação Pré-Primária e o Jardim de Infância Criança Alegre, não
dorme antes de ler e faz palavras-cruzadas todos os dias, mas reclama
da inclusão de assuntos no passatempo relativos às novelas e ao
futebol, temas que não acompanha (Vida, Zero Hora, 28/05/2005,
p.4).

No excerto descrito na matéria do caderno Vida, intitulada Como desfrutar a


maturidade, observamos o depoimento de uma senhora de 92 anos referente às
atividades que desenvolve em seu dia a dia. É perceptível o grande número de tarefas
que desempenha desde aquelas que envolvem sua produtividade, relacionadas a
atividades ocupacionais até as que produzem sua distração e bem-estar. No testemunho
observamos na enunciação Se não está envolvida com o trabalho, está no teatro [...],
passeando ou viajando [...] a recorrência de uma preocupação com seu corpo e sua
mente. Um investimento próprio em ações que a colocam em uma condição de
disponibilidade para consigo e com outras pessoas.
Nessa mesma matéria o geriatra Valdeci Oliveira Santos Rigolin, professor da
Faculdade de Medicina de Marília, em São Paulo, destaca que o segredo é manter as
capacidades que estão boas, reabilitar o que for possível e prevenir o que pode causar
danos. Essa orientação vem ao encontro das práticas que estão sendo realizadas pela
senhora que referimos acima. O manter-se ativo, ocupado, com sentimento de utilidade,
tem sido as recomendações de maior destaque ofertadas pelos profissionais que
trabalham com a velhice.

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Encontrar ocupações que satisfaçam os idosos para que eles permaneçam desenvolvendo-
as, a fim de garantir suas capacidades, reabilitar algumas funções e prevenir qualquer
incômodo é o desafio posto para esse momento.
Em sua obra Nascimento da Biopolítica (2008a), Michel Foucault dedica uma aula
para discutir o neoliberalismo americano e o europeu, a teoria do capital humano e a
redefinição do homo oeconomicus como empreendedor de si mesmo. Trazemos alguns
aspectos apresentados nessa aula para mostrar como as situações que são produzidas para
a velhice, nos dias de hoje, estão diretamente associadas a esse conceito de homo
oeconomicus e especialmente como somos convidados para cada vez mais nos tornarmos
uma empresa, ou seja, investirmos em nós mesmos como fonte de garantia para uma vida
melhor.
Ao longo da escrita, Foucault (2008a), apresenta alguns elementos do liberalismo
americano, formado no século XVIII, destacando três pontos: o primeiro mostra que o
liberalismo foi convocado como princípio fundador e legitimador do Estado; o segundo
que teve recorrência nas discussões e opções políticas dos Estados Unidos e o terceiro que
o não-liberalismo se apresentou como um corpo estranho na introdução de objetivos
socializantes. “O liberalismo, nos Estados Unidos, é toda uma maneira de ser e de pensar.
É um tipo de relação entre governantes e governados, muito mais que uma técnica dos
governantes em relação aos governados”. (Foucault, 2008a, p.301).
Na sequência, o autor vai demonstrando as características do neoliberalismo como
uma arte de governar necessária para que as estratégias biopolíticas entrem em operação e
deem conta de uma série de acontecimentos que ocorrem ao logo da vida das populações.
Apresenta a teoria do capital humano como um dos elementos da concepção neoliberal
americana. Por intermédio dessa discussão, mostra que a economia passa a ser analisada a
partir da programação estratégica da atividade dos indivíduos, colocando o trabalhador
como um sujeito economicamente ativo. Ressurge o homo economicus, com um
deslocamento na concepção:

O homo economicus é um empresário, e um empresário de si mesmo.


Essa coisa é tão verdadeira que, praticamente, o objeto de todas as
análises que fazem os neoliberais será substituir, a cada instante, o homo
oeconomicus parceiro de troca por um homo oeconomicus empresário
de si mesmo, sendo ele próprio seu capital, sendo para si mesmo a fonte
de [sua] renda [grifos do autor] (Foucault, 2008a, p.311).

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Na concepção clássica do homo economicus observávamos um homem com


necessidade de troca, em que era necessário analisar seu comportamento e sua utilidade
para verificar a possibilidade de ser um dos parceiros da troca. A nova configuração
desse sujeito apresenta um homem de consumo, aquele que produz, que faz do próprio
consumo uma atividade empresarial capaz de produzir sua satisfação. Temos um
homem consumidor em alguns momentos e produtor em outros. Essa alteração na
concepção do homo economicus desencadeia a teoria do capital humano, apresentada
nos estudos foucaultianos (2008a) a partir do momento em que se percebe que o salário
recebido está atribuído a determinado capital e que esse capital é dependente da
produção do indivíduo. Por isso, a denominação de capital humano.
Avançando na discussão de capital humano, é necessário observar sua
composição através dos elementos adquiridos e inatos. Esses últimos, em algumas
situações, podem também ser denominados de hereditários. Os elementos hereditários
representam especialmente a carga genética herdada de nossos antecedentes, e podem
ser responsáveis por antecipar as probabilidades de situações de doença que podemos
desenvolver.

Em outras palavras, dos interesses atuais da aplicação da genética às


populações é possibilitar reconhecer os indivíduos de risco e o tipo de
risco que os indivíduos correm ao longo de sua existência. Vocês me
dirão: também nesse caso não podemos fazer nada, nossos pais nos
fizeram assim. Sim, claro, mas, a partir do momento em que se pode
estabelecer quais são os indivíduos de risco e quais são os riscos para
que a união de indivíduos de risco produza um indivíduo que terá esta
ou aquela característica quanto ao risco de que será portador, pode-se
perfeitamente imaginar o seguinte: que os bons equipamentos
genéticos – isto é, [os] que poderão produzir indivíduos de baixo risco
ou cujo grau de risco não será nocivo, nem para eles, nem para os
seus, nem para sociedade -, esses bons equipamentos genéticos vão se
tornar certamente uma coisa rara, e na medida em que será uma coisa
rara poderão perfeitamente [entrar], e será perfeitamente normal que
entrem, em circuitos ou em cálculos econômicos, isto é, em opções
alternativas (Foucault, 2008a, p.313).

Giusti, P.H., & Henning, P.C. (2015, abril-junho). A produção do sujeito-velho como empresário de si: cadernos de
saúde fabricando modos de vida. Revista Kairós Gerontologia,18(2), pp. 31-57. ISSN 1516-2567. ISSNe 2176-901X.
São Paulo (SP), Brasil: FACHS/NEPE/PEPGG/PUC-SP
A produção do sujeito-velho como empresário de si: cadernos de saúde fabricando modos de vida 43

As palavras de Foucault expostas nessa citação nos provocam a pensar que,


mesmo antes do nascimento dos indivíduos, precisamos estar atentos para produzir um
bom capital humano genético, aquele que acompanhará os mecanismos disciplinares e
de segurança estando permanentemente governados por estes e que terá na sua
constituição uma minimização em termos de apresentar determinadas patologias. Além
disso, estamos rodeados de estudos que mostram a constituição genética de cada pessoa,
aquilo que ela poderá desenvolver ao longo da vida e, ainda, a intensidade e o momento
de aparecimento de determinadas patologias. Tudo isso, obviamente, com o intuito de
fazer com que cada um busque este conhecimento de si e após procure alternativas
capazes de prevenir o que está por vir.
Na reportagem O futuro em teste do caderno Vida, do Jornal Zero Hora, de 01 de
maio de 2010, é possível acompanhar que estamos vivendo uma revolução quando
falamos de diagnosticar precocemente algumas doenças. A matéria discute os avanços
apresentados pela ciência após as descobertas do Projeto Genoma Humano, finalizado
em 2003, especialmente demonstrando uma maior facilidade de acesso à realização de
exames genéticos responsáveis por verificar a propensão a determinadas patologias.

No passado, esses exames chegaram a custar US$ 20 mil. Agora são


oferecidos por US$ 1 mil. Pela internet, você acessa um dos sites que
oferecem o teste, paga usando cartão de crédito e recebe pelo correio
um kit para coleta de DNA. [...] O médico Sérgio Pena, do Gene –
Núcleo de Genética Médica em Belo Horizonte, um dos maiores
especialistas na área no país decidiu testar um desses serviços
oferecidos pela internet. Ele enviou uma amostra à empresa islandesa
deCODEme Genetics. Por US$ 985, o deCODEme realizaria uma
avaliação do risco genético para algumas doenças comuns. O kit com
a coleta do material foi enviado pelo correio. Além de informar sobre
a cor dos olhos, grupo sanguíneo, tolerância à lactose e ao álcool, o
relatório apontou que o médico tem um risco 1,08 vezes maior do que
o da população geral para desenvolver doença renal crônica, 1,4 vezes
para obesidade, 1,4 vezes para asma e artrite reumatoide (Vida, Zero
Hora, 01/05/2010, p.3).

Ao medir o risco de desenvolver determinadas doenças, acredita-se que seja


possível evitá-las ou ao menos minimizá-las.

Giusti, P.H., & Henning, P.C. (2015, abril-junho). A produção do sujeito-velho como empresário de si: cadernos de
saúde fabricando modos de vida. Revista Kairós Gerontologia,18(2), pp. 31-57. ISSN 1516-2567. ISSNe 2176-901X.
São Paulo (SP), Brasil: FACHS/NEPE/PEPGG/PUC-SP
44 Patricia Haertel Giusti, & Paula Corrêa Henning

Este tem sido um dos maiores investimentos da ciência nos últimos tempos. Seja na
individualidade, como mostramos no excerto acima, ou em nível populacional mais
amplo, temos sido atravessados por solicitações de exames e de orientações que nos
conduzem a rotinas de acompanhamento médico, nutricional, de educadores físicos, em
prol de um cuidado maior com nossa saúde. Precisamos garantir um capital humano
rico em saúde, ativo e produtivo, que na continuidade de sua atividade laboral consiga
gerar renda para si e com isso se tornar consumidor daquilo que deseja para viver mais e
melhor.
Olhando agora para as reflexões que mostram os elementos adquiridos, que
também constituem o capital humano, Foucault (2008a) nos convida a analisar os
investimentos educacionais e culturais feitos nas crianças especialmente. As ações e
atividades realizadas pelos pais para cuidar dos filhos por um período maior, a bagagem
cultural proporcionada, a melhoria das condições relativas à saúde dos indivíduos e a
garantia da mobilidade para que os sujeitos possam se qualificar e obter uma melhor
renda são considerados investimentos capazes de constituir um capital humano.
Juntos, elementos inatos e adquiridos dão conta de formar um capital humano
capaz de qualificar o processo de produção, de inventar e desenvolver tecnologias, de
descobrir coisas importantes e com isso gerar inovação. Dessa forma, todo o
investimento feito nas pessoas é para que ocupem uma melhor posição e
consequentemente adquiram uma renda melhor. Essa condição é determinante na
orientação de políticas econômicas, sociais, culturais e educacionais que são construídas
para que cada vez mais as pessoas, aqui no caso os idosos, consigam usufruir de um
cenário de utilidade maior, que proporcione espaços de trabalho, de lazer, de saúde,
adequados para essa população.
Talvez para a geração de idosos que existe hoje no Brasil ainda não se tenha
grandes efeitos dos estudos genéticos que podem desenvolver o capital humano a partir
dos elementos hereditários, mas com certeza para as próximas gerações de velhos muito
já se tem discutido e produzido para que, antes mesmo do nascimento, exames e
procedimentos sejam possíveis de realizar para que tenhamos uma criança cada vez
mais saudável, um adulto bastante ativo e produtivo e consequentemente um velho com
condições de viver mais e melhor.

Giusti, P.H., & Henning, P.C. (2015, abril-junho). A produção do sujeito-velho como empresário de si: cadernos de
saúde fabricando modos de vida. Revista Kairós Gerontologia,18(2), pp. 31-57. ISSN 1516-2567. ISSNe 2176-901X.
São Paulo (SP), Brasil: FACHS/NEPE/PEPGG/PUC-SP
A produção do sujeito-velho como empresário de si: cadernos de saúde fabricando modos de vida 45

É o que se deseja, é o investimento que se faz para que todos conheçam as alternativas
propostas pela ciência, em relação especialmente às ações de prevenção de patologias
que existem e, sempre que possível, realizem.
Se observarmos a produção do sujeito-velho enquanto constituído por elementos
adquiridos, é possível dizer que muito tem se falado e mostrado para que novamente,
desde antes do nascimento, todos sejamos conduzidos a reproduzir técnicas e formas
que garantam uma vida longe das doenças. E, durante toda a vida, somos direcionados a
continuar executando esses cuidados com a saúde. São essas orientações e dicas para
eliminação das patologias, ou melhor, para saber conviver com algumas delas, levando
uma vida melhor, que também funcionam com objetivo de colocar o sujeito-velho numa
condição de capital humano.
Quando retomamos a reportagem apresentada no caderno Vida, Como desfrutar
a maturidade (Vida, Zero Hora, 28/05/2005), especificamente o excerto analisado em
páginas anteriores, fica evidente a presença do velho como um homo economicus na
aposentada Maria Bocomy, ou seja, o desenvolvimento de um capital humano atrelado a
elementos que foram adquiridos e que contribuíram para que esta senhora de 92 anos se
mantenha ativa, produtiva e ainda satisfeita com sua rotina de vida. É perceptível ainda
o quanto o processo de envelhecimento está sendo gerenciado por uma arte de governar,
rodeada de estratégias biopolíticas que transformam os indivíduos em consumidores e
objetos de consumo. Temos na atualidade uma série de produtos e oportunidades
destinadas aos velhos, para que esses conheçam e, para além disso, comprem e utilizem.

Digital ou analógico? Novos medidores de pressão convivem com


aparelhos tradicionais. Não só a medicina alerta contra a hipertensão.
O mercado de equipamentos médico-hospitalares também. [...]
equipamentos auxiliam o paciente a prevenir da doença que a OMS
classifica como a epidemia mundial (atinge 20% da população adulta)
foram o grande “xodó” da maior feira do gênero da América Latina –
a Feira Hospitalar de São Paulo, realizada em junho, de 14 a 17 (Viva
Bem, Diário Popular, 05/07/2005, p.1).
O tempo voa. Em busca de freios para o envelhecimento já se buscou
de tudo. [...] para se manter jovem pelo máximo de tempo possível, a
fórmula é dieta saudável e exercícios físicos regulares (Vida, Zero
Hora, 28/03/2009, p.5).

Giusti, P.H., & Henning, P.C. (2015, abril-junho). A produção do sujeito-velho como empresário de si: cadernos de
saúde fabricando modos de vida. Revista Kairós Gerontologia,18(2), pp. 31-57. ISSN 1516-2567. ISSNe 2176-901X.
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Aracnobeleza – peeling de enzima de aranha rejuvenesce a pele.


O resultado, descreve o especialista, é uma pele mais jovial, hidratada
e com muita luminosidade. – Marcelo Bellini – professor da
Sociedade Brasileira de Medicina Estética e membro da Sociedade
Brasileira de Dermatologia (Viva Bem, Diário Popular, 30/08/2005,
p.1).

As enunciações que apresentamos evidenciam o mercado existente para a


população de velhos. Equipamentos de fácil acesso que podem ser manuseados pelo
próprio idoso ou seu familiar/cuidador e que possibilitam o monitoramento de uma
função orgânica importante no funcionamento do corpo, disponibilidade de alimentos
ricos em substâncias importantes para a terceira idade, apresentados das mais variadas
formas, para que a população possa escolher aquilo que pode e deseja consumir,
academias privadas, com profissionais habilitados no cuidado dos idosos ou academias
para terceira idade em praças e parques presentes nos municípios, disponíveis a partir de
políticas públicas, além de uma variedade de clínicas, consultórios, estéticas que trazem
produtos, técnicas e fórmulas que garantem deixar o corpo mais adequado nessa fase da
vida são alguns dos artefatos mostrados pela mídia impressa que acionam os sujeitos-
velhos para consumirem e engajarem-se a favor de um envelhecimento saudável. Vale
dizer, a favor de uma captura do velho enquanto um empresário de si mesmo.
Ao observar as diferentes modalidades de oferta para a população de idosos
presentes nas reportagens citadas, vale destacar que, de uma forma ou de outra,
procuram alcançar todas as classes sociais. Obviamente aquelas que possuem uma
maior renda dispõem de produtos e recursos de melhor qualidade e que talvez tenham
resultados mais rápidos e mais efetivos. Mas o que está em jogo é a oferta de alguma
possibilidade para todas as pessoas. É mostrar que o discurso da longenvidade está
presente independentemente da classe social, gênero, raça etc.

Verifica-se na vertente discursiva neoliberal que as desigualdades dos


competidores são o ponto de partida e de chegada. Para gerir tais
desigualdades faz-se necessário arbitrar os efeitos conflituosos das
disputas através de instituições judiciárias segundo regras previamente
fixadas na lei (Tótora, 2011, p.91).

Giusti, P.H., & Henning, P.C. (2015, abril-junho). A produção do sujeito-velho como empresário de si: cadernos de
saúde fabricando modos de vida. Revista Kairós Gerontologia,18(2), pp. 31-57. ISSN 1516-2567. ISSNe 2176-901X.
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A produção do sujeito-velho como empresário de si: cadernos de saúde fabricando modos de vida 47

O Estatuto do Idoso tem sido o instrumento jurídico que garante aos indivíduos
com mais de 60 anos um acesso mais “igualitário” às condições de saúde, moradia,
alimentação, lazer e trabalho. Políticas complementares que aparecem diariamente vão
dando sustentação e operacionalizando os direitos contidos no Estatuto. Programas
governamentais especialmente na área da saúde destinados às pessoas com mais idade
têm sido rotina na atualidade. As residências multiprofissionais em saúde do idoso, as
ligas acadêmicas de geriatria, o programa de orientação para o trabalho – PET Saúde do
Idoso são alguns exemplos do investimento público em ações que facilitam o acesso
daquelas pessoas com menores condições financeiras. O que estamos queremos mostrar
é que mesmo o recurso financeiro sendo um facilitar para uma velhice saudável, o
Brasil vem se preparando para que todos entrem nessa lógica de investir no próprio
corpo. Mesmo que em número reduzido, as atividades estão disponíveis para todos!
Na reportagem de capa do Jornal Zero Hora, O tempo voa (Vida, Zero Hora,
28/03/2009), mencionada anteriormente nesse artigo, verificamos a condição financeira
sendo apresentada como um dos obstáculos presentes na velhice. Após a aposentadoria,
uma redução no orçamento doméstico pode trazer estresse e escassez de recursos em
momentos de doença, por exemplo. Nessa mesma matéria, porém, é apresentado ao
leitor o que se deve fazer entre os 60 e 80 anos e acima de 80 anos. Uma lista de
cuidados que inclui orientações para realização de exercícios regulares, de controle de
peso, de efetivação de vacinas contra gripe e pneumonia, de estimulação de convívio
com amigos e familiares entre outras atividades mostram que é possível que as pessoas
desenvolvam práticas sem dispor de um grande investimento financeiro. Basta
novamente que cada um deseje seguir as dicas que estão sendo apresentadas nos
cadernos de saúde, cuidando de sua saúde, gerenciando seu corpo. E, se segui-las, terão
a condição de produzir renda e, consequentemente, adquirir com mais facilidade esses
serviços.
A quantidade de serviços disponíveis para que cada indivíduo torne-se
empresário de si é algo rotineiro em nossas vidas. Não questionamos a importância
deles, nem mesmo se devem ou não existir. Nossa problematização se dá em pensar de
que modo essa trama discursiva, apresentada na mídia impressa, nos molda, nos
interpela e nos constitui como sujeitos velhos – ou em alguns casos, como futuros
sujeitos velhos. Que escolhas são feitas na velhice e também ao longo da vida? De que
forma somos conduzidos para essas escolhas?

Giusti, P.H., & Henning, P.C. (2015, abril-junho). A produção do sujeito-velho como empresário de si: cadernos de
saúde fabricando modos de vida. Revista Kairós Gerontologia,18(2), pp. 31-57. ISSN 1516-2567. ISSNe 2176-901X.
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48 Patricia Haertel Giusti, & Paula Corrêa Henning

Esses questionamentos estão cada vez mais presentes em nosso dia a dia. Parece que
viver em uma sociedade líquido-moderna de consumidores tem nos tornado atores em
busca de uma felicidade fácil, que está ao alcance de todos. “Os consumidores
satisfeitos, ocupados em cuidar de seus interesses particulares, vão esplendidamente
bem, obrigado...” (Bauman, 2009, p.63).
Outras capas dos cadernos de saúde reforçam essa problemática que estamos
apresentando. Muitos serviços são criados para que o capital humano idoso mantenha-se
em investimento constante. A informação do aparecimento de novas técnicas que
envolvem o envelhecimento são constantemente explicitadas nos veículos de
comunicação e fazem com que os indivíduos busquem seus direitos, a fim de garantir o
pertencimento nesse mundo, onde todos desejam viver mais e melhor. Citamos algumas
dessas capas: Um presente para você (Vida, Zero Hora, 24/12/2005), Beleza e
juventude, do sonho à perfeita realidade (Viva Bem, Diário Popular, 12/03/2008),
Neurônios sarados (Vida, Zero Hora, 21/04/2007), Evolução médica ontem hoje (Vida,
Zero Hora, 24/02/2007), Células-tronco – grupo da UFPel pleiteia laboratório para
desenvolver pesquisas (Viva Bem, Diário Popular, 13/09/2005), Ginástica para o
cérebro (Vida, Zero Hora, 22/04/2006), Pele saudável – Previna-se de problemas
futuros e saiba como se proteger do sol intenso (Viva Bem, Diário Popular,
04/01/2005)
Se analisarmos o título das reportagens percebemos o convite que é feito para
abrir o caderno de saúde e mergulhar nas orientações e dicas que são trazidas ao longo
dos textos. Observar as inovações presentes para a população de velhos nos faz refletir
sobre a modificação que tivemos ao longo dos tempos de uma sociedade disciplinar,
confinada em espaços como a escola, a fábrica, as casernas, os hospitais para uma
sociedade biopolítica, que utiliza mecanismos de segurança associado a mecanismos de
controle a partir da proliferação de informações especialmente pelo uso da máquina
cibernética e dos computadores. O acesso facilitado a essas informações coloca os
indivíduos, especialmente os com mais idade, na condição de buscar o conhecimento
sobre os cuidados que devemos ter em relação à saúde e que de uma forma ou de outra
devemos segui-los. “O homem não é mais o homem confinado, mas o homem
endividado” (Deleuze, 1992, p. 224).

Giusti, P.H., & Henning, P.C. (2015, abril-junho). A produção do sujeito-velho como empresário de si: cadernos de
saúde fabricando modos de vida. Revista Kairós Gerontologia,18(2), pp. 31-57. ISSN 1516-2567. ISSNe 2176-901X.
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Nas capas que citamos existe uma disseminação de elementos que são
apresentados todos os dias à população.

O discurso da ciência, especialmente daquelas que se dedicam a pesquisar sobre o


envelhecimento, tem se tornado potente e feito com que cada indivíduo,
independentemente do local em que trabalha, mora, estuda, realiza suas atividades de
lazer, esteja permanentemente em dívida com sua saúde. São milhares de orientações e
dicas destinadas ao cuidado com o corpo e com a mente mostradas para que alguma
delas, se não for possível todas, seja praticada pelos indivíduos.

Sem o uso adequado de protetores solares, a pele pode ser exposta a


inúmeras reações provocadas pela radiação UV, podendo causar
eritemia, envelhecimento precoce, manchas, reações alérgicos e em
casos mais graves, câncer de pele, que a cada ano vem aumentando
significativamente em todo o mundo (Viva Bem, Diário Popular,
04/01/2005, p.1).
Exercícios físicos, atividades culturais e intelectuais e uma dieta
equilibrada contribuem para a manutenção de uma mente saudável
durante o avanço da idade (Vida, Zero Hora, 22/04/2006, p.5).

Os dois excertos apresentados fazem parte das reportagens Pele saudável –


Previna-se de problemas futuros e saiba como se proteger do sol intenso (Viva Bem,
Diário Popular, 04/01/2005) e Ginástica para o cérebro (Vida, Zero Hora, 22/04/2006),
respectivamente. O material produzido nessas duas matérias e outros tantos que
poderiam ser apresentados aqui apontam a forma pela qual devemos viver. São
mecanismos biopolíticos que estão presentes em nosso dia e que, como foi mencionado,
agem para governar e nos conduzir à prática de hábitos saudáveis. Somos interpelados
para utilizarmos o filtro solar diariamente, com maior intensidade quando estamos
expostos por um maior tempo ao sol, para praticarmos algum tipo de atividade física,
para frequentarmos lugares agradáveis, culturais, para realizarmos uma alimentação rica
em proteínas, fibras, cálcio... Esses são apenas alguns convites que estão intrínsecos na
rotina da maioria das pessoas. O discurso é permanente, porque quase não podemos
escapar!

Giusti, P.H., & Henning, P.C. (2015, abril-junho). A produção do sujeito-velho como empresário de si: cadernos de
saúde fabricando modos de vida. Revista Kairós Gerontologia,18(2), pp. 31-57. ISSN 1516-2567. ISSNe 2176-901X.
São Paulo (SP), Brasil: FACHS/NEPE/PEPGG/PUC-SP
50 Patricia Haertel Giusti, & Paula Corrêa Henning

A reflexão sobre o homem endividado apresentado por Deleuze (1992) e as


considerações que trouxemos até o momento nos remetem a pensar o quanto tem sido
feito para que o biopoder continue a operar, para que estratégias sejam modificadas,
renovadas e se necessário criadas em prol de manter a população capturada. Podemos
retomar o que trouxemos sobre os mecanismos de controle e neste contexto entendê-los
como uma forma de reforçar o governamento da vida das pessoas. A sociedade de
controle pensada por Deleuze, a partir da sociedade de normalização desenvolvida por
Foucault, talvez seja uma possibilidade de ampliar o escopo da biopolítica. “São as
sociedades de controle que estão substituindo as sociedades disciplinares. “Controle” é
o nome que Burroughts propõe para designar o novo monstro, e que Foucault reconhece
como nosso futuro próximo” [grifos do autor] (Deleuze, 1992, p.220).
Dessa forma, observamos que a inserção de mecanismos de controle
responsáveis por uma vigilância contínua, em meio aberto através de comunicações
instantâneas sobre determinados tipos de públicos, são importantes para dar conta dos
indivíduos na contemporaneidade. “Talvez seja possível dizer que, enquanto os
dispositivos de seguridade multiplicam a fabricação de riscos, os dispositivos de
controle multiplicam a fabricação de públicos.” (Saraiva, Veiga-Neto, 2009, p.195). Ao
olhar para os indivíduos que estamos estudando, podemos pensar em diversos públicos
sendo constituídos: o público de idosos que lê jornal, o público de idosos que pratica
atividade física, o público de idosos que vai ao shopping e assim por diante. Uma
multiplicidade de pessoas unidas pelo tempo, que são governadas por relações de poder
e que, para continuarem sendo exercidas, precisam se adaptar à forma como vivemos
nos dias de hoje.
Podemos falar aqui do noopoder, um desdobramento do poder sobre a vida que
segundo Lazzarato (2006) está presente na contemporaneidade, visto a necessidade de
estarmos rodeados de mecanismos de controle. O noopoder (idem) tem sido descrito
como um novo tipo de poder, extremamente positivo, que é ativado pelo desejo dos
mais variados públicos e tem funcionado a partir de exemplos. “O noopoder age sobre
as mentes com o objetivo de formar a opinião pública, isto é, o noopoder se exerce pela
modulação da memória e da atenção.” (Saraiva, & Veiga-Neto, 2009, p.196). Assim, os
dispositivos de segurança e o noopoder, como novos elementos de governamentalidade,
entram na lógica de um capitalismo de concentração, para a produção, e de propriedade.

Giusti, P.H., & Henning, P.C. (2015, abril-junho). A produção do sujeito-velho como empresário de si: cadernos de
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“É um capitalismo de sobre-produção. Não compra mais matéria-prima e já não vende


produtos acabados: compra produtos acabados, ou monta peças destacadas. O que ele
quer vender são serviços, e o que quer comprar são ações.” (Deleuze, 1992, p.223).
Trazemos agora mais uma série de enunciações que corroboram com as
discussões que estamos apresentando, especialmente nesse entrelaçamento de formas de
poder e da constituição de um sujeito-velho na contemporaneidade. Os depoimentos
fazem parte da reportagem Asilo da nova década, presente no Caderno Vida, do Jornal
Zero Hora, em 19 de março de 2008. Nessa matéria são apresentadas ao leitor as
mudanças no comportamento da terceira idade, trazendo que situações como viver para
os netos, dedicar-se aos serviços domésticos e jogar bingo estão dando lugar a novos
prazeres como trabalhos voluntários, viagens e novas profissões.

O artesanato como profissão


“A vida toda eu fiz artesanato. Fui professora de artes, inclusive. Não
vejo motivos para interromper essa atividade. Eu não consigo me
sentir velha para isso. Não me vejo assim. Pinto porcelana, telas,
monto chaveiros, enfim. Faço de tudo um pouco. Dou muitas coisas,
mas outras eu vendo. É um trabalho que não só me distrai, mas
também ajuda a incrementar o meu orçamento. Faço o que gosto e
ainda ganho dinheiro. Não posso parar.” Nadir Bruffato, 81 anos,
artesã (VIDA, Zero Hora, 19/03/2008, p.3).
Não só escrever, mas publicar poesias
“Eu já escrevi mais de 1,5 mil poesias. Continuo escrevendo todos os
dias. O dia que eu não faço isso, parece que estou doente. O meu
projeto para esse ano é chegar ao número de 2 mil poesias. Quando
atingir essa meta, vou lançar mais um livro, quem sabe na Feira do
Livro do próximo ano. Ao todo, já tenho seis livros editados. Para
muitos, pode ser um bom número. Mas para mim, ainda é muito
pouco.” Arlette Sacramento, 78 anos, poeta (VIDA, Zero Hora,
19/03/2008, p.3).
A idosa que ajuda os idosos
“Com o esforço de toda uma vida, eu consigo viver em uma casa
geriátrica bem estruturada, mas não são todos os idosos que têm essa
condição.

Giusti, P.H., & Henning, P.C. (2015, abril-junho). A produção do sujeito-velho como empresário de si: cadernos de
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52 Patricia Haertel Giusti, & Paula Corrêa Henning

Em função disso, realizo um trabalho voluntário há 24 anos no Lar


Otília Chaves. Até hoje, não passo uma semana sem ir lá. Participo
das comemorações, ajudo a angariar fundos e organizo eventos. É um
trabalho que me completa e não me traz nenhum prejuízo, só
felicidade!” Ilda Adreani, 84 anos, voluntária do Lar Otília Chaves,
asilo localizado em Porto Alegre (RS) (VIDA, Zero Hora, 19/03/2008,
p.3).

As declarações trazidas nessa reportagem nos remetem a pensar que essas


senhoras fazem parte de um determinado público que disciplinado, conhecedor das
estratégias que atuam sobre a vida, investem em seu próprio corpo e mente para
garantirem a qualidade de vida no avançar da idade. São exemplos de pessoas que
vivem em um lar geriátrico e que utilizam seu tempo como investimento em si próprias.
Que buscam alternativas prazerosas no sentido de manterem-se ocupadas e
independentes social e financeiramente. Que controlam todos os passos dados em prol
da garantia de viver mais. São essas enunciações que chegam à casa de cada um dos
leitores dos cadernos de saúde, tentando persuadi-los para que sigam os modelos
apresentados. Nesses três exemplos observamos a predominância de atividades simples,
de baixo investimento financeiro, capazes de ser reproduzidas por inúmeras pessoas. É
claro que não podemos desconectar a possibilidade de que essas senhoras tenham
recebido, ao longo da vida, instruções de como chegar à velhice de forma mais
adequada, uma vez que hoje apresentam condições de agirem como demonstram. É isso
que se deseja, mostrar o sujeito-velho saudável e fazer com que as pessoas reflitam
sobre as condutas que o levaram a essa condição.
Na correnteza dessas reflexões e para mostrar a potência que a temática do
envelhecimento vem tomando em uma sociedade biopolítica, mostramos uma
reportagem, que não está no corpus discursivo, mas que corrobora com nossas
discussões, produzida no Jornal Zero Hora em 27 de julho de 2012, intitulada A velhice
em boas mãos – Desafio futuro, que traz a preocupação de alguns pesquisadores sobre o
aumento populacional para os próximos anos e a falta de preparo do Brasil para dar
conta dessa inversão da pirâmide etária. “Basta observar para perceber que nossas
cidades e equipamentos não apresentam condições adequadas para a circulação de
idosos” – aponta Bibiana Graeff, doutora em Direito e professora de Direitos Humanos

Giusti, P.H., & Henning, P.C. (2015, abril-junho). A produção do sujeito-velho como empresário de si: cadernos de
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e Envelhecimento no curso de Gerontologia da Universidade de São Paulo (USP).


Nessa mesma matéria destacamos outros dois aspectos. O primeiro em relação a mais
um exemplo apresentado na mídia. Uma senhora de 88 anos que mora em um
residencial geriátrico, com objetivo de garantir sua privacidade, que pratica pilates duas
vezes por semana, que vai ao shopping, caminha nos parques e ainda se comunica por
email com seus netos que moram fora do país.
O segundo, a demonstração de duas práticas realizadas em outros países que
possibilitam uma melhoria de vida na velhice: o serviço de Day Care, presente na rotina
de americanos e japoneses, cuja proposta está em disponibilizar espaços com atividades,
cuidado e atenção para que os idosos possam passar o dia enquanto seu familiar está
trabalhando; e os Condomínios para idosos, uma proposta do governo canadense, de
acesso facilitado financeiramente, para que os mais velhos possam morar em um local
com supervisão médica e ainda desfrutar de atividades de lazer.
Os diversos signos emitidos nessa reportagem nos remetem a questionar em que
cenário cada um de nós está vivendo, especialmente quando planejamos nossa velhice.
O quanto o Brasil carece de avanços para que possamos ter mais idosos ativos e
produtivos, com condições de gerar renda. Ainda pensar se as estratégias de segurança
atreladas aos mecanismos de controle apresentados por Deleuze têm sido suficientes
para captura dos mais variados públicos de idosos. Essas e outras questões nos deixam
inquietas. O que temos certeza é o que o enunciado do velho-saudável vem sendo
constantemente produzido através da mídia e que, independentemente do local onde
estamos e da classe social a que pertencemos, somos convidados a consumir e agir de
forma correta com o nosso corpo e nossa mente, para que seja possível envelhecer de
forma adequada, com qualidade de vida.
Talvez possamos pensar que o Brasil se constituirá ainda, por um tempo, de uma
população de velhos dispendiosos, que precisarão de investimentos do Estado que os
coloquem em condições de uma vida mais longa e que a formação de públicos, como a
senhora de 88 anos que foi entrevistada na reportagem que acabamos de apresentar, seja
uma construção possível a partir da permanente visibilidade do discurso produzido pela
ciência que estuda o envelhecimento. Talvez a modulação do cérebro no sentido de
reproduzirem aquilo que será bom para si próprio seja nesse momento para um público
pequeno, que possui condições de consumir os melhores serviços para essa faixa etária.

Giusti, P.H., & Henning, P.C. (2015, abril-junho). A produção do sujeito-velho como empresário de si: cadernos de
saúde fabricando modos de vida. Revista Kairós Gerontologia,18(2), pp. 31-57. ISSN 1516-2567. ISSNe 2176-901X.
São Paulo (SP), Brasil: FACHS/NEPE/PEPGG/PUC-SP
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Talvez isso pouco importe, pois hoje somos preparados para buscar as alternativas que
estão sendo oferecidas, mesmo que estas não estejam ao alcance de todos, o que está em
jogo é que todo o sujeito-velho a seu tempo seja um empresário de si. O caminho está
dado e o que sabemos é que novas e outras estratégias surgirão para que, quem sabe, de
forma mais acelerada, tenhamos a população de idosos ativos, produtivos, saudáveis.

Considerações finais

As reportagens de capa sobre velhice presentes nos cadernos Vida e Viva Bem
parece que deram conta de mostrar como a mídia tem sido potente nas discussões sobre
a constituição do sujeito-velho em uma sociedade denominada líquido-moderna. Os
saberes produzidos pela geriatria e pela gerontologia são apresentados nas páginas desse
artefato midiático em um formato de guia para que as mais variadas pessoas possam
entendê-lo e tomarem como objetos em sua vida. Por se tratarem de dicas oriundas de
profissionais que dedicam seu tempo no estudo do envelhecimento, são frequentemente
aceitas e atendidas, fazendo com que cada um de nós se transforme em um
empreendedor de si. Os cuidados com a saúde ficam na responsabilidade do sujeito que
é “livre” para suas escolhas. O investimento feito por cada um talvez seja a garantia de
uma vida mais prolongada.
As enunciações também conseguiram nos fazer refletir sobre os jogos de força
que estão presentes nessa fase da vida. Os dispositivos disciplinares, de segurança e de
controle encontram-se articulados na composição do velho-saudável. Ao trazer o
discurso das ciências que estudam o envelhecimento, as reportagens apontam
fortemente para formas de ser e viver a velhice nos dias de hoje. A biopolítica como
uma estratégia de poder está presente em todos os momentos, reforçando a ideia de que
o cuidado com a saúde deve ser permanente, acontecendo desde cedo, desde o
nascimento.
O sujeito-velho como homo economicus também se faz presente nas matérias
produzidas nos cadernos de saúde. Observamos um crescente investimento dos
indivíduos sobre seus corpos. Os sujeitos entram, aceitam e assumem esse jogo do viver

Giusti, P.H., & Henning, P.C. (2015, abril-junho). A produção do sujeito-velho como empresário de si: cadernos de
saúde fabricando modos de vida. Revista Kairós Gerontologia,18(2), pp. 31-57. ISSN 1516-2567. ISSNe 2176-901X.
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mais. Consomem o que podem e o que não podem em busca de alternativas que os
mantenham bem e vivos.
Nessa lógica percebemos que os mecanismos de controle reforçam os de
segurança e criam outras estratégias biopolíticas que são fundamentais para o
funcionamento das sociedades contemporâneas. Os aparatos tecnológicos para o
desenvolvimento dos indivíduos vão surgindo e colocam o velho na condição de ser
espelho daqueles que chegam à velhice em bom estado mental e físico.
Parece-nos, então, que mesmo com uma possível escassez de brasileiros que
podem consumir o que está posto como mais atual e adequado para alcançar a
longevidade, faz-se necessário caminhar na direção de um público de idosos, em que
cada ação individual reflete na constituição do sujeito-velho desejado, aquele que faz
suas escolhas, seus investimentos pensando em seu próprio bem-estar. Aquele que deixa
a condição de dispendioso, e se une aos demais, a partir do entrelaçamento
proporcionado pelos mecanismos disciplinares e de segurança que vão pouco a pouco,
por meio de investimentos próprios e do Estado, moldando a forma pela qual cada idoso
deve conduzir sua rotina pessoal, profissional e de lazer.
O que nos resta aqui é reforçar nossos questionamentos sobre todos esses
mecanismos que são produzidos em prol de um processo de envelhecimento que almeja
o viver mais e melhor. Olhar para as enunciações que nos foram apresentadas e pensar o
quanto essas estão presentes em nosso dia a dia, o quanto direcionam nossas escolhas
em buscar serviços para o constante cuidado com o corpo e ainda, o quanto fizemos em
prol de não correr o risco de escapar do dispositivo da velhice. Para nós não resta
dúvida: somos subjetivados e tramados por este potente dispositivo que nos captura,
ensinando modos de ser e viver a velhice no cenário contemporâneo.

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Recebido em 20/05/2015
Aceito em 20/06/2015

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Patricia Haertel Giusti - Fisioterapeuta. Mestre em Saúde e Comportamento.


Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Educação em Ciências: Química da
Vida e da Saúde da Universidade Federal do Rio Grande. Professora da Universidade
Católica de Pelotas (RS) - UCPel.
E-mail: phgiustia@gmail.com

Paula Corrêa Henning - Pedagoga. Mestre e Doutora em Educação. Professora


Adjunta do Instituto de Educação e dos Programas de Pós-Graduação em Educação
Ambiental e Educação em Ciências da Universidade Federal do Rio Grande – FURG.
E-mail: paula.c.henning@gmail.com

Giusti, P.H., & Henning, P.C. (2015, abril-junho). A produção do sujeito-velho como empresário de si: cadernos de
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