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DADOS DE ODINRIGHT

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Tradução e notas:
FELIPE VALE DA SILVA
Edição e prefácio:
CID VALE FERREIRA
Preparação:
CRISTINA LASAITIS
Revisão:
BÁRBARA PARENTE
Projeto gráfico:
MARINA AVILA
Ilustração de capa:
CAROLINE MURTA
ISBN:
978-65-88218-81-5

Este material tem direitos de tradução e projeto gráfico e não pode ser reproduzido sem prévia
autorização das editoras. Copyright © 2022 by Editora Clepsidra e Editora Wish.
Apresentação
CID VALE FERREIRA

Embora tenha desfrutado de um crescente interesse de


leitores e pesquisadores nas últimas décadas, a literatura
de temática vampírica ainda apresenta lacunas
significativas no mapeamento de sua história,
especialmente devido ao grande número de obras
consideradas perdidas e aos inúmeros títulos jamais
reeditados e/ou traduzidos. Entre os países que reúnem
uma grande quantidade de contribuições ainda carentes de
projeção, a insuspeita Alemanha é um dos que mais
concentram títulos importantes que precisam ser
reencontrados, reeditados, traduzidos e devidamente
analisados. Essa situação de aparente descaso não deixa de
causar certa surpresa, uma vez que alguns dos primeiros
tratados, poemas e narrativas ocidentais a respeito de
vampiros foram justamente escritos em alemão. Além disso,
a presença do tema na arte germânica não foi apenas
pioneira, mas gozou também de notável prestígio,
emplacando inúmeras referências de influência
internacional, até seu protótipo goethiano ser eclipsado pela
publicação do conto “The Vampyre” (“O Vampiro”, 1819), de
John William Polidori, iniciador da longeva linhagem de
mortos-vivos de alta estirpe formada por Ruthven, Azzo,
Varney, Karnstein, Drácula etc.
O fato de o conto de Polidori ter exercido uma
avassaladora influência nas narrativas vampíricas alemãs
imediatamente posteriores à sua publicação pode ter
contribuído para que a crítica daquele país olhasse para
essa produção de uma maneira bem pouco lisonjeira. De
fato, o primeiro estudo de fôlego sobre a presença de
vampiros na produção alemã, Die Vampirsagen und ihre
Verwertung in der deutcher Literatur (1900), de Stefan
Hock, chega a taxar o grosso dessa tradição como mera
derivação e mesmo como plágio, o que qualquer
investigação menos intolerante pode identificar como um
inequívoco exagero.
Independentemente da frustração experimentada pelos
primeiros estudiosos da literatura vampírica alemã, seja lá
qual tenha sido sua expectativa, o trabalho recente de
pesquisadores como Christian Nikolaus Opitz e Oliver
Kotowski vem resgatando um panorama diversificado e
esquecido de uma tradição que o rigor germânico preferiu
tratar durante mais de um século como parte da “literatura
trivial” indigna de maior atenção acadêmica, o que
finalmente vem dando sinais de mudança. Suas antologias
são hoje um manancial precioso para os aficionados e
pesquisadores dedicados ao tema, que finalmente podem
debruçar-se sobre um material-fonte que permanecia sem
reedições, além de apresentarem paratextos indispensáveis
com considerações acerca de seu contexto de produção.
Um primeiro passo para entendermos o peso da
contribuição germânica para a literatura vampírica é
rememorar a constituição e a extensão do Sacro Império
Romano-Germânico (962-1806), que, nos séculos XVII e
XVIII, abarcava porções que iam do atual leste da França até
territórios que hoje integram a Polônia e a República Tcheca.
Nesse período, a diversidade étnica e linguística do império
facilitava uma prodigiosa integração com outras
populações, especialmente as advindas de culturas latinas,
eslávicas e balcânicas.
Grosso modo, poderíamos descrever os vampiros
plasmados na cultura germânica como um amálgama que
bebeu de diferentes veias desse corpo gigantesco: os
tratados que investigavam os cadáveres que permaneciam
incorruptos e/ou os enterrados vivos que pareciam ter
mastigado o forro de seus caixões (em tentativas
desesperadas de se exumarem), como os descritos na
Dissertatio Historico-Philosophica De Masticatione
Mortuorum (c. 1679), de Phillip Roth; o Nachzehrer folclórico
(uma pessoa morta sob circunstâncias extraordinárias,
como um acidente repentino ou o suicídio, que, direta ou
indiretamente, exercia uma influência nefasta e por vezes
fatal nos arredores de seu túmulo); e os vampiros
propriamente ditos alardeados pela notória e infame perícia
Visum et Repertum (1732), assinada pela junta médica
liderada por Johannes Fluchinger (ou Flükinger), que ao
mesmo tempo constatou o “estado vampírico” de cadáveres
exumados na Sérvia e reproduziu algumas das crendices
locais sobre o caráter contagioso dessa condição, tornando-
se o estopim de uma histeria vampírica de proporções
continentais.
Na poesia, temos na língua alemã um exemplar seminal
do tratamento da lenda em um poema de Heinrich August
Osselfender conhecido como “Der Vampyr” (“O Vampiro”,
1748) ou pelo seu primeiro verso (“Mein liebes Mägdchen
glaubet”), publicado no periódico Der Naturforscher, que
havia repercutido informações originalmente difundidas
pelo Visum et Repertum. Neste curto poema considerado
hoje o primeiro exemplar do gênero, o eu lírico propõe um
brinde de vinho aos vampiros e promete vingar-se sugando
o sangue da jovem que o rejeitara por imposição de sua
mãe, que temia o ataque de desmortos.
O tema só ganhou relevância poética, porém, quando
um gigante das letras alemãs, ninguém menos que Johann
Wolfgang von Goethe, deu início ao processo que se tornou
usual na época: o resgate de um enredo consagrado, que
surge remodelado de modo a carregar inequívocos traços
vampíricos. Em 1797, uma passagem do “Livro dos
Milagres”, do grego Flégon de Trales (século II), serve-lhe de
base para a criação da balada “Die Braut von Korinth” (“A
Noiva de Corinto”), na qual uma virgem falecida volta para
beber o sangue do ex-noivo e para saciar desejos carnais
não consumados que haviam sido sepultados com sua
morte precoce.
Graças a esse impulso, outros autores sentiram-se como
que autorizados a embrenhar-se nessa temática, mas
aquela que poderia ser considerada a primeira narrativa em
prosa sobre vampiros, um romance de três volumes
intitulado Der Vampyr (1801), de Ignaz Ferdinand Arnold,
deixou apenas poucos rastros de sua existência em
anúncios contemporâneos sobre sua publicação. Deduz-se,
portanto, que a obra não chegou a sair do prelo ou, caso
tenha circulado, que nenhum exemplar tenha sobrevivido,
configurando a maior de todas as lacunas aos interessados
em reconstituir a trajetória da assimilação da lenda pelos
literatos europeus.
Nos primeiros anos do século XIX, diversos outros
autores ofereceram suas contribuições ao tema em verso e
em prosa, especialmente no Reino Unido e na própria
Alemanha – como Southey, Stagg, o anônimo responsável
pelo romance Der Vampyr oder die blutige Hochzeit mit der
schönen Kroatin (1812), Tieck, Byron, Coleridge etc. –, até
que a The New Monthly Magazine publicou (atribuindo-o a
Lord Byron, de forma bastante oportunista) o supracitado
conto de John William Polidori, que havia se baseado em um
fragmento inacabado do poeta londrino (para quem
trabalhava como médico particular). Traduções e
adaptações do conto (com outras narrativas, dramas,
poemas e mesmo uma ópera) multiplicaram-se
rapidamente, e os autores empenhados em assimilar em
sua produção esse novo protótipo de vampiro (byroniano,
nobre e fatal) deram-lhe as mais diversas roupagens, do
tom satírico e mordaz do conto estadunidense “O Vampiro
Negro” (1819), de Uriah Derick D’Arcy, que trata de um
vampiro africano levado por um navio negreiro à Ilha de São
Domingos (Haiti), até derivações mais solenes perpassadas
de nostalgia medievalista que mesclaram o novo motivo
literário a fórmulas consagradas da Schauerliteratur e das
gothic tales, como o conto “Die Todtenbraut” (“A Noiva
Morta”, 1820), do prussiano Gottfried Peter Rauschnik.
Conforme os raros registros sobre Rauschnik, sabemos
que ele nasceu em 1778 ou em 1779, na cidade de
Königsberg (atual Kaliningrado). Depois de exercer a
medicina e desempenhar funções administrativas como
funcionário público, ele teria recebido uma herança que
antecipou sua aposentadoria e permitiu-lhe dedicar mais do
seu tempo a atividades como o jornalismo e a literatura.
Sua coletânea Päonien (1820) reúne em dois volumes uma
produção que se inspirava nas narrativas romanescas e nas
antigas sagas nórdicas para criar novas composições de
forte caráter romântico. Assim como Goethe explicitou
elementos vampíricos ao reconstruir a narrativa de
Philinnion, e assim como Polidori criou o vampiro de cariz
byroniano ao expandir e concluir o fragmento sobre
Augustus Darvell, Rauschnik baseou-se na Noiva Morta,
personagem tradicional do imaginário fantasmagórico
alemão, para compor “Die Todtenbraut”.
Dentre as inúmeras narrativas que deram forma literária
à lenda da Noiva Morta, a noveleta “Die Todtenbraut” (“A
Noiva Morta”, 1811), de Friedrich Laun, é indubitavelmente
a que alcançou maior destaque. Publicada no segundo
volume da coletânea Gespensterbuch (“Livro dos
Fantasmas”, em tradução livre), essa narrativa foi traduzida
para o francês por Jean-Baptiste Benoît Eyriès, que a incluiu
em sua antologia Fantasmagoriana (1812) – não por acaso,
justamente o livro que inspirou o concurso que deu origem
ao fragmento de Byron transformado posteriormente no
conto “The Vampyre” por Polidori. Na versão de Laun, a
Noiva Morta é um espectro auxiliado por um capelão
fantasma. Sua sina é tomar a forma de beldades falecidas
para tentar jovens noivos nas vésperas de seus
casamentos, buscando aquele que resistirá aos seus
avanços para, dessa forma, dissolver a maldição que a
aprisiona.
O impacto da noveleta foi notável e, além de ter sido
traduzida ao francês por Eyriès, ela também foi incluída pela
britânica Sarah Elizabeth Utterson em Tales of the Dead
(1813), que reunia versões abreviadas de cinco das oito
narrativas de Fantasmagoriana. Além disso, para ilustrar
outros marcos de sua trajetória, apenas no ano de 1833
essa noveleta inspirou outras duas importantes derivações:
um reconto homônimo por F. Selt (pseudônimo de Moritz
Gustav Bauschke) no primeiro volume da coletânea Sagen
aus Breslaus Vorzeit e uma continuação britânica por M. L.
Beevor, publicada como “A Second Story of the Death Bride”
(“Uma Segunda História da Noiva Morta”), veiculada no
periódico The Ladies’ Pocket Magazine.
Publicada nove anos depois do surgimento da versão de
Laun no Gespensterbuch, a derivação vampírica criada por
Rauschnik consta do segundo volume de Päonien e não
poderia ser considerada uma mera “cópia acrescida de
elementos vampíricos”, uma vez que reutiliza apenas
alguns dos elementos do enredo original. Sua narrativa
aborda a dificuldade da linhagem do conde de Zellenstein
em garantir a continuidade do seu sangue, já que os filhos
da família falecem misteriosamente um após o outro.
Quando apenas Leodogar, um desses filhos, permanece
vivo, ele recebe a visita inesperada da marquesa de Val
Umbrosa, que passa a ameaçar sua união com Eugenie, a
quem sua mão estava prometida.
Apesar de resgatar elementos tradicionais das histórias
de fantasma daquele país (alterando alguns de seus
elementos, como a fixação da marquesa em perseguir
apenas os membros de uma única família e a ausência de
informações sobre ela ter se apropriado da aparência de
jovens mortas), o conto inclui inovações notáveis, como a
jovem louca capaz de vislumbrar através das ilusões da
vampira e o cônego versado em artes arcanas que prefigura
investigadores do sobrenatural e caçadores de vampiros
como Martin Hesselius (personagem de Le Fanu) e Abraham
Van Helsing (de Stoker).
Até onde pudemos averiguar, não foram lançadas
outras traduções deste conto, o que faz com que esta
publicação seja a primeira a romper a barreira da língua
para disponibilizar essa joia esquecida para além da
germanofonia, uma amostra do nosso esforço em eliminar
as lacunas que ainda impedem uma apreciação mais
profunda e variada da literatura de inspiração vampírica.
Cid Vale Ferreira é bacharel em Letras, livreiro e editor. Desde 2016, é
sócio do Sebo Clepsidra, empresa que reúne uma editora independente
focada na literatura gótica e três sebos-livrarias no estado de São Paulo. À
frente da editora, coordena sua curadoria e o processo de edição e
produção. Em 2018 fundou a Coesão Independente, coletivo que reúne
mais de 100 editoras independentes. Como organizador, publicou Voivode:
Estudos Sobre os Vampiros (2003, Pandemonium) e As Trevas e Outros
Poemas de Lord Byron (2007, Saraiva).

BIBLIOGRAFIA SELECIONADA
BEEVOR, M. L. Uma Segunda História da Noiva Morta. Trad. Carlos Primati (São
Paulo: Sebo Clepsidra, 2021).
BRADLEY, Rory E. The Enlightening Supernatural: Ghost Stories in Late
Eighteenth Century. (Tese de Doutoramento em Estudos Germânicos) –
University of North Carolina. Chapel Hill, 2016.
LAUN, Friedrich. A Noiva Morta. In: EYRIÈS, Jean-Baptiste Benoît.
Fantasmagoriana: Antologia de Histórias de Aparições, Espectros, Redivivos,
Fantasmas etc. Trad. Sabrine Ferreira da Costa (São Paulo: Aetia Editorial/Sebo
Clepsidra, 2021, pp. 136-169).
_____. Die Todtenbraut. In: LAUN, Friedrich; APEL, Johann August.
Gespensterbuch. v. 2 (Leipzig: G. J. Goschen, 1811, pp. 1-72).
HOCK, Stefan. Die Vampirsagen und ihre Verwertung in der deutscher Literatur
(Berlim: Forschungen zur neueren Litteraturgeschichte, 1900).
KOTOWISK, Oliver (ed.). Lasst die Toten ruhen: Deutsche Vampirgeschichten aus
dem 19. Jahrhunderts (Stolberg: Atlantis, 2012).
OPITZ, Christian Nikolau (ed.). Die Totenbraut: Deutsche Vampirgeschichten des
19. Jahrhunderts (Viena: Spiegelberg, 2016).
POLIDORI, John William; SENA, Marina (org.). O Vampiro: Edição Comemorativa
de 200 Anos. Trad. Marina Sena, Felipe Vale da Silva e Bruno Anselmi
Matangrano (São Paulo: Aetia Editorial/Sebo Clepsidra, 2020).
RAUSCHNIK, Gottfried Peter. Die Todtenbraut. In: Päonien: eine Sammlung von
Erzählungen, Mährchen, Sagen und Legenden. Volume 2. Mainz: Florian
Kupferberg, 1820, pp. 194-243.
A noiva morta
DIE TODTENBRAUT

1820
GOTTFRIED PETER RAUSCHNIK

Há muitas horas, o velho conde de Zellenstein caminhava de


uma janela a outra, mirando indisposto o horizonte da
paisagem dominada pelo castelo, cujos contornos o
crepúsculo vindouro já ia cobrindo com seu véu. Leodogar,
seu único filho, deveria voltar de viagem naquele dia; sobre
si recaíam todas as esperanças do já encanecido chefe de
família por uma velhice alegre e pela continuação de sua
estirpe; portanto é fácil entender por que cada minuto de
espera intensificava a tortura de seu anseio.
Outrora, em uma época de maior robustez, o conde de
Zellenstein foi agraciado com três filhos promissores e uma
filha adorável, que transformavam, em conjunto com a
excelente noiva, sua casa em um paraíso conjugal e familiar.
A ele se abria o mais favorável dos panoramas no entardecer
de sua vida – um em que ele podia ter a esperança de
terminar com um séquito numeroso de netos alegres nos
braços de seus filhos afortunados. Para assegurar suas
expectativas, ele não abandonou nenhum desses filhos. Por
mais brilhantes que fossem as promessas que se lhe faziam
na corte e no exército por uma carreira honrosa, recusou o
cargo de camarista superior que lhe foi oferecido1, de modo
a não ser limitado por quaisquer dificuldades no gozo de sua
felicidade doméstica. Seus filhos deveriam um dia ter um
modo de vida semelhante – tal era seu plano.
Essa bela projeção não se concretizaria. Com seu filho
mais velho prestes a se casar, de repente a noiva deste
faleceu, e logo após o noivo. Não muito depois disso, foi-se o
segundo filho e, dali a um ano, a filha. Um véu impenetrável
pairava sobre a causa dessas mortes, o que por si só
impedia qualquer especulação razoavelmente
fundamentada. Os três filhos do conde, como a noiva do filho
mais velho, estavam todos bem de saúde ao serem
surpreendidos pela morte; nenhum traço de ferimento
violento era visível em seus corpos; tampouco qualquer sinal
de envenenamento ou de derrame foi identificado nos
cadáveres. Os médicos tiveram de admitir que seu
conhecimento era insuficiente para identificar a causa da
morte daquelas pessoas robustas.
A dor dos infelizes pais frente a essas enormes perdas é
algo que só podemos imaginar. A cada novo luto, uma doce
esperança se extinguia, e a perspectiva sombria de uma
velhice sem filhos se intensificava. Buscaram em vão
consolo e tranquilidade; os frios pêsames de seus amigos,
muitas vezes advindos unicamente das leis da cortesia,
passaram a ser-lhes um incômodo, e só o medo de perder
Leodogar, o último filho remanescente, pôde levar a
condessa a escrever a um velho tio – cônego em um distante
principado eclesiástico2 –, pedindo-lhe conselhos sobre como
evitar a temida perda do então filho único.
O cônego já estava em idade avançada, e sua natureza
era, para qualquer um que entrasse em contato consigo, um
mistério profundo e inexplicável. Com a vasta renda de suas
prebendas3 e uma fortuna pessoal imensa, ele vivia com a
severidade de um monge cartuxo4 sem, ao que parecia,
atribuir qualquer valor a atos de piedade religiosa. Ele
possuía uma grande e preciosa coleção de livros, os mais
excelentes instrumentos ópticos e mecânicos, um
observatório belamente decorado, ricas coleções de arte e
tudo que um estudioso e amante da arte pudesse considerar
necessário. Ainda assim, nunca uma palavra sobre arte ou
ciência escapava de seus lábios; pelo contrário, ele evitava
cuidadosamente iniciar uma conversa sobre esses temas.
Frio e retraído, teria sido considerado um misantropo por
excelência caso um só traço de ressentimento ou aspereza
tivesse sido encontrado em suas ações. Não tinha amigos ou
inimigos e, com a mesma expressão gélida com que
recusava um pedido que não podia nem queria cumprir,
prestava favores quando julgava melhor. Ninguém jamais
havia notado nele um traço de paixão, e já havia rejeitado
duas vezes o posto de bispo. Era considerado um iniciado
nas ciências secretas, mas, para fundamentar essa
suposição, faltavam dados mais sólidos. Ninguém poderia
dizer o que amava ou odiava; sua vida era como uma escrita
hieroglífica cuja cifra fora perdida.
Cada vez que uma morte na casa do conde, sob
circunstâncias intrigantes, era informada ao cônego, ele
dava a mesma resposta lacônica: que os filhos restantes
deveriam ser enviados em viagens ou a algum lugar no
exterior, já que ficar na casa dos pais não lhes seria
apropriado. Esse conselho, sem base em nenhuma causa,
nunca foi atendido. Mas então, quando ele escreveu “enviem
Leodogar em uma viagem sem demora caso não queiram
enterrar o último ramo de sua dinastia com ele”, os infelizes
pais foram impactados pelo medo de perder sua derradeira
esperança e seguiram o conselho do velho tio de, por mais
difícil que fosse para seu coração, separar-se do filho amado,
que então partiu em viagem.
Leodogar passara três anos na Suíça, França e Itália
quando a desolação de sua casa se tornou tão insuportável
para o velho conde que ele pediu ao filho que regressasse.
Isso aconteceu apesar da proibição expressa do velho
cônego, que declarara decididamente – Leodogar ainda não
tinha permissão para entrar novamente na casa paterna. Os
pais, porém, tinham saudades demais do filho para que ele
continuasse obedecendo a uma ordem injustificada daquele
velho críptico. O conde escreveu a Leodogar, que se
encontrava em Nápoles, e incumbiu-o de retornar o mais
rápido possível. Leodogar, por sua vez, ficou feliz em atender
ao chamado de sua amada terra natal.
Com ainda mais impaciência, e um anseio ainda mais
doloroso do que aquele de seus pais, aguardava a senhorita
Eugenie, filha adotiva da condessa, pelo retorno de
Leodogar. Tendo ficado órfã em tenra idade, foi levada para a
casa dos Zellenstein, onde se tornou muito próxima à
condessa, e, como criança, foi criada com o maior zelo. A
jovem adolescente vinha desenvolvendo aquele encanto raro
que, embora não encante à primeira vista, aos poucos acaba
por deixar uma impressão mais profunda e duradoura. Seu
porte era esbelto como a de um choupo jovem; sua tez
trazia aquela fusão delicada de neve-da-montanha e do
ardor das rosas5; sua voz era do puro metal prateado; seu
talhe, animado por emoções profundas, e a boca,
indescritivelmente bela. Portanto, com certeza se poderia
encontrar todas essas vantagens individualmente em
demais donzelas num grau ainda mais suave, mas a fusão
admiravelmente harmoniosa de todos esses detalhes no
todo imaculado doava a Eugenie uma graça que a tornava
irresistível a qualquer homem que a conhecesse. A
delicadeza era uma qualidade predominante de seu corpo;
delicada no modo de pensar, o mesmo poderia ser dito de
sua índole.
Mesmo na primeira infância, ela testemunhou o
sofrimento incomensurável de sua mãe amada. Sendo então
arrancada, em função da morte, do círculo de seus
companheiros de brincadeiras e parentes amados, passou a
desfrutar pouco da vida social, criando um mundo ideal em
que viveu e com o qual se associou mais do que com o
mundo real. Ela timidamente evitava os prazeres inebriantes
dos círculos mais abastados; seus sentimentos eram feridos
pela futilidade e crueldade da grande massa de nobres, e a
solidão tornou-se para si uma necessidade. A condessa de
Zellenstein, notando essa inclinação da filha adotiva para o
devaneio6 e temendo suas consequências, não se absteve de
fazer o possível para remediá-la. Isso fez com que Eugenie,
que apesar de tudo a amava como a uma mãe, vivesse
muitas horas sombrias, contra sua vontade. O conde
Leodogar, um jovem um tanto enérgico, embora bondoso,
conhecia os sentimentos de sua bela prima melhor do que
sua mãe e, lançando mão de sua simpatia, esforçou-se por
reconciliá-la com suas circunstâncias. Ele se tornou o
confidente de Eugenie, seu caro amigo e, por fim, seu
amante. Eugenie se apavorou quando percebeu em si certa
inclinação para Leodogar, e quis afastar-se dele.
Há muito ela nutria a ideia de ir a um mosteiro para
dedicar sua vida exclusivamente à devoção em piedosa
autocontemplação. Ela considerava a vida monástica
apropriada ao seu estado de espírito, além de altamente
digna. Gradualmente assumiu a crença de que não haveria
salvação para si além do mosteiro. Ela via seu amor como
pecaminoso e procurou combatê-lo. A amabilidade de
Leodogar, mais a força do afeto dela por ele, superou a sua
força no cumprimento de seu propósito. Ela lutou com o
coração sangrando, embora não tenha saído vitoriosa por ter
sido obliterada por seu afeto. Assim que ela pôde reconhecer
sua essência, tal afeto tornou-se poderoso demais. Antes,
sua vontade de realizar o que fora reconhecido como bom
sob todas as circunstâncias levou-a a se afastar de seu
amado e a esquecer uma paixão que ela considerava
repreensível entre os muros sagrados do convento. Com
quase quinze anos, ela fugiu para um mosteiro próximo,
desejando ser ali admitida. A condessa, profundamente
consternada com a fuga e desinformada de qualquer amor
por parte de Leodogar, imediatamente conduziu-o ao
mosteiro para persuadir que a cara fugitiva regressasse. Ela
aprovou o amor de Leodogar, conhecendo o elevado valor
moral da donzela e, portanto, desejou vê-la um dia como
esposa de seu filho. Ela não queria usar a força sobre
Eugenie para dissuadi-la de sua decisão: ela estava
acostumada a guiar seus filhos apenas mediante seu amor,
deixando então para Leodogar persuadir a jovem de volta.
A pia visionária teve de enfrentar uma dura batalha
entre seu suposto senso de dever e sua inclinação, e, se esta
venceu no final, foi apenas porque ela acreditou na garantia
do amante de que ele nunca poderia ser feliz sem ela, e
porque as mortes ocorridas na família Zellenstein até então
haviam tornado um dever seu auxiliar os pais enlutados com
seu consolo. Quando ela voltou do mosteiro aos braços de
Leodogar, disse-lhe: “Estou fazendo, meu amigo, um grande
sacrifício em prol de si, uma vez que abandono o único
caminho no qual só esperava encontrar a paz para minha
alma. Mas não me arrependo caso isso lhe trouxer
benefícios. Tenha em mente, porém, e nunca se esqueça de
que eu, a pobre e fraca garota, não posso viver sem esforço
em um mundo que me é estranho. Se for infiel a mim, você
estará roubando todo o apoio da minha vida e romperá meu
coração”. Leodogar acalmou-a com os votos de amor
ardente e, dali em diante, ela cedeu à sua inclinação.
Então, depois de uma separação de três anos de
Leodogar, ela aguardava, com doloroso anseio, encontrar o
prenunciado. Lágrimas de temor deslizaram de seus olhos
quando o dia destinado à sua chegada findou e ele ainda
não havia chegado.
Nuvens tempestuosas sombrias haviam se instalado no
horizonte naquela tarde – o ar estava opressivamente
abafado, um silêncio monótono reinava na natureza, e
relâmpagos pálidos isolados vez ou outra iluminavam a
escuridão cinza que se alastrava sobre a terra. Os lustres do
corredor foram acesos, e a família permaneceu em silêncio,
perdida em uma lúgubre expectativa. Então, o idoso
mordomo Hubert, que se aposentara havia tempos, entrou
no saguão, pedindo para falar a sós com o conde. O ancião,
aborrecido como estava, ordenou ao velho em tom ríspido
que expressasse seu pedido, pois não tinha segredos com a
mulher e com a sobrinha. Surpreso com a hostilidade pouco
familiar de seu mestre, o velho relatou que na antiga cripta
da família em uma colina perto do castelo havia sido
avistado um estranho brilho, que provavelmente não se
podia atribuir a qualquer causa natural, já que todos,
sobretudo à noite, evitavam o lugar insólito7. O conde
vociferou com o velho, chamando-o de sonhador
supersticioso. De repente, porém, pausou suas invectivas,
pois, olhando na direção da capela funerária, ele próprio
avistou o tal brilho. Então passou a ponderar a causa do
fenômeno; o velho Hubert olhou para Eugenie e, em seguida,
tomado por um horror mudo, virou-se para a porta e saiu
pelo corredor. O conde, correndo atrás dele em consternação
absoluta, descobriu, não sem muita insistência, que o
homem havia visto uma figura sepulcral, envolta em mantos
mortuários, no local que Eugenie ocupara.
O relógio da torre já havia batido nove horas e toda
esperança da chegada de Leodogar há muito desvanecera,
quando então foi possível notar buzinas de postilhão,
chicotes estalando e várias lanternas brilhando. Por fim, um
coche parou em frente ao portal do castelo. Todos correram
para receber aquele que chegava, e Leodogar mergulhou
nos braços acolhedores de sua amada.
A alegria do reencontro foi, da parte dos pais e de
Eugenie, tão mais intensa quanto mais tempo se esperou em
vão pela chegada de Leodogar, vindo por uma estranha
coincidência. Seu caminho o levara, a saber, à propriedade
de um nobre e, quando ele próprio passou por uma igreja,
pôde ouvir nitidamente seu nome ser chamado.
Imediatamente estacou, mas, circundando a igreja, não
encontrou quem porventura o teria chamado. Já querendo
retomar sua jornada – crendo que seus sentidos o tinham
enganado – ele ouviu o chamado mais uma vez. Sua busca
reiterada foi em vão, embora dessa vez os próprios criados
também houvessem escutado aquela voz. Ao partir em
retirada sem ter descoberto seu interlocutor, o chamado foi
entoado pela terceira vez. A igreja estava trancada, e não
havia qualquer outro lugar onde alguém pudesse se
esconder; evidentemente ele imaginou que aquele que o
chamava se escondera dentro da igreja. Por conseguinte,
enviou um criado até o zelador para que pedisse as chaves
da igreja. O zelador, um senhor idoso e imperioso, foi até lá
pessoalmente e garantiu ao viajante que não haveria
ninguém na igreja – que tais provocações provavelmente
provinham de espíritos ensandecidos, não tão incomuns por
ali desde tempos imemoriais, sobretudo depois de uma
jovem que morreu noiva, mais de trinta anos antes, ter sido
enterrada na seção ao fundo da igreja, designada como o
mausoléu de sua família. O conde Leodogar pediu que a
igreja fosse aberta e que o caixão da jovem lhe fosse
mostrado.
O zelador da igreja então deu ensejo a uma longa e
maravilhosa história do destino da falecida, após a qual
Leodogar questionou, emocionado: “Pobre flor aquela cuja
primavera desbota tão cedo! Quem vai compensar para si a
parcela perdida do prazer de viver?”. Então ouviu-se um
gemido profundo e doloroso que pareceu sair do caixão e
abalou significativamente todos os presentes. Todos logo
deixaram a igreja horrorizados. O zelador pediu a Leodogar
um tempo para conversarem, e Leodogar aceitou o convite
com a maior boa vontade – ele realmente precisava
descansar após o susto que havia tomado. Tanto seu
anfitrião quanto ele tentaram explicar os horríveis gemidos
assim que seu sangue esfriara, e não hesitaram em tomá-lo
pela brincadeira de mau gosto de algum criado atrevido. O
chamado por três vezes não pôde absolutamente ser
interpretado de forma natural, e por isso o patrono da igreja
se agarrou ao dado de que coisas estranhas aconteciam com
frequência nas proximidades da igreja.
Essa história, que Leodogar recitou durante a refeição da
noite, misturou uma gota de amargura ao cálice de alegria
daquele reencontro, já que tanto os pais quanto a noiva
pensaram em uma relação infeliz do terrível chamado à vida
de Leodogar, o que os encheu de pressentimentos
assustadores. O último rastro de alegria se foi quando
Leodogar perguntou ao pai por que ele havia montado
aquela estranha iluminação do mausoléu e o que as três
figuras dançando ao lado dele significavam. O velho conde
mirou-o com espanto e devia-lhe uma resposta; a condessa,
percebendo o que se passava com o marido, rapidamente
desviou a conversa para outros assuntos. Eugenie, por sua
vez, estava pálida e absorta, retomando a cor e a fala depois
de muito tempo.
Leodogar sentiu-se indizivelmente feliz após seu
regresso. Sua amada terra natal, da qual esteve distante por
anos, adquiriu novos encantos para si. Ele visitou todos os
lugares das brincadeiras de sua infância, todas as paragens
favoritas de sua juventude, e a memória de uma mocidade
contente que passou por lá embelezava esses locais. Em
suas viagens, ele acumulou uma riqueza de conhecimento e
experiência, de ideias inovadoras e imagens; sua mente foi
treinada, sua imaginação apurada e expandida, seus
sentimentos refinados, sua força mental e física fortalecida.
Ele tinha gozado da vida no sentido mais nobre possível –
tinha entrado em contato com o grande mundo sem perder
pureza moral; sido um observador atento e solidário dos
fenômenos da vida humana, traçando assim uma filosofia de
vida cuja sábia aplicação poderia torná-lo feliz e contente.
Naquele momento, ele desejava viver em invejável
independência as alegrias simples da natureza, das Musas,
de sua família e do amor conjugal; nada mais era necessário
para realizar seu plano que ele já não tivesse ou que teria
sido impossível de obter. Nenhum relacionamento se
impunha entre ele e seus desejos, nenhuma preocupação de
importância o atormentava, nenhum desejo impróprio
destruía sua calma: dos braços do amor ele acenava para
uma sina feliz.
Os pais deleitaram-se muito com a presença do filho, a
quem amavam com uma ternura indizível, visto que só ele
restara entre todos os filhos, mostrando-se digno do seu
amor. Ele havia amadurecido e se vertido em um homem
robusto e vicejante, saudável de corpo e alma, além de
possuir uma feliz mistura de temperamentos que doava a
todas as suas ações o ritmo adequado. Um senso de humor
vivaz e uma disposição serena conferiam ao seu
comportamento aquela graça que conquista ao jovem todos
os corações – é desnecessário dizer o quanto isso
impressionava seus pais.
O fato de Eugenie, a noiva amorosa e querida, ter sido
abençoada pela proximidade do querido noivo não necessita
de confirmação. Ela era uma daquelas almas gentis que não
podem viver sem o apego a um objeto amado. Em sua
infância, uma terna mãe preenchia todo o seu coração – a
donzela em flor entregou-se totalmente aos sentimentos
religiosos e fez da sua padroeira o alvo do seu amor.
Leodogar afastou-a disso e da inclinação da moça para seu
próprio âmago. O coração dela dividiu-se entre a devoção e
o amor, mas este último triunfou; então Eugenie entregou-se
tão intimamente que todo o seu ser parecia pertencer a um
único sentimento. No entanto, o amor da donzela assumiu o
caráter de seu temperamento; ela não era tempestuosa e
brilhante, mas mais gentil, compenetrada e sincera – e assim
pôs-se a fiar-se à crença na vida eterna. O amor de Eugenie,
ao rever o tão esperado Leodogar, não desatou a precipitar
lágrimas de alegria; ele não acometia o peito ondulante, não
brilhava nos olhos ardentes. Apenas um rubor ligeiramente
intensificado cintilava com um brilho suave nas maçãs
delicadas do rosto; apenas o tom prateado suave de uma
disposição alegre emergia do peito daquele cisne casto;
apenas a lágrima de alegria reluzente desenrolava o olho
violeta; e aninhada silenciosamente contra seu amado, ela
então se rendeu a seus sentimentos até Leodogar
surpreendê-la com sua história, despertando seu medo. Suas
premonições e pressentimentos sempre foram nutridos por
sua tendência predominante para o devaneio; ela gostava de
socializar em cemitérios e em meio a sepulturas, vivia mais
no futuro (onde moldara para si uma pura vida da mente) do
que no presente, para o qual raramente encontrava um lado
bom. Além disso, muitas vezes misturava lágrimas de
nostalgia melancólica com seus prazeres, pois, a partir delas,
a alegria pura de um riso parecia quase bárbara. Leodogar
amava Eugenie com ternura, sem compartilhar daquilo que
ela sentia; tudo se mostrava a ele apenas sob a luz rosada
da alacridade; ele encontrava-se em paz com a natureza e
com as pessoas, e sua alegria seguia imperturbada por
qualquer antipatia.
Mesmo aquele entusiasmo beirando a melancolia de
Eugenie não lhe afetava os sentimentos rudemente. Ele
considerava seu ânimo apropriado para o gentil coração
feminino que ainda não encontrara uma esfera de atividade
na vida doméstica, esperando que o excesso de
sentimentalidade desaparecesse por si só no casamento,
quando os deveres de esposa e mãe se tornassem deveres
dela – aí ela se sentiria indescritivelmente feliz com o
pensamento de seus bens. Mas quem se encontraria em sua
posição e não amaria a donzela tão ricamente adornada com
as mais belas qualidades de mente e coração, assim como
com encantos físicos? Com tal pureza da alma, tal delicadeza
das sensações, tal riqueza da mente, combinada com tanta
bondade, Eugenie conquistaria o coração de qualquer
homem. Leodogar adorava sua bela noiva e ansiava pelo
momento em que a uniria a si para sempre. Ele queria
marcar o dia do casamento para breve, mas a isso tanto
seus pais quanto Eugenie se opunham. Eles não queriam
violar o decoro, de forma que a cerimônia de casamento foi
adiada para dali a três meses. Esse tempo pareceu uma
eternidade ao amante, mas o adiamento de sua felicidade
não lhe era insuportável, já que nenhum instinto de
sensualidade selvagem o estimulava, e ele gostava do
tempo em que convivia com a noiva.
Um mês inteiro se passou para os amantes sob
sentimentos alegres, e cada hora de sua união praticamente
constante tornava ainda mais um o preferido do outro. Com
o maior júbilo, os pais de Leodogar constataram como tal
confirmação, cada vez mais íntima, da bela aliança lhes
asseguraria uma velhice feliz e deram graças ao seu destino
– que, depois de tanto luto, ainda assim lhes prometia uma
rica colheita de alegrias para o futuro. Essas quatro pessoas
afortunadas estavam tão satisfeitas em suas relações, e
suas perspectivas de alegrias num futuro próximo
ocupavam-nas de forma tão exclusiva que qualquer visita
que tivessem de fazer ou aceitar por imposição de sua
posição social causava certo incômodo. Sua fortuna
silenciosa não admitia testemunhas incapazes de participar
ali de alma plena, de forma que elas restringiram todas as
relações sociais, até onde fosse possível, a uns poucos
amigos leais que gozavam de sua satisfação com um
coração sincero.
Por esse motivo, a família não se sentiu de todo contente
quando, certa vez, sentada no caramanchão do jardim tarde
da noite, uma dama estrangeira os mandou chamar e pediu
abrigo pela noite – isso porque sua carruagem de viagem
havia quebrado não longe do castelo. Quiseram levantar
para receber a estrangeira, mas esta já havia se precipitado,
seguida por seus criados, arvoredo adentro, pondo-se no
meio do casal de condes. Envolta em longos e largos véus, a
figura daquela dama pareceu quase fantasmagórica sob o
crepúsculo sombrio da noite, despertando um tremor
involuntário em todos. A escuridão não permitia mais
reconhecer os contornos e os traços de seu rosto, mas
quando ela se pôs a falar, o que se ouviu foi uma voz
encantadora e melodiosa – ouviu-se expressões seletas que
não punham dúvidas acerca de sua nobreza. O velho conde
perguntou seu nome para poder lhe dar mostras da honra
que ela merecia; ela se chamava marquesa de Val Umbrosa8,
vinda dos Estados Pontifícios.
Embora a família Zellenstein sentisse que sua cômoda
tranquilidade havia sido interrompida temporariamente com
a chegada da distinta estrangeira, imperava naquela casa
muito da verdadeira hospitalidade e muita boa vontade para
que estranhos logo notassem, do modo mais remoto, que
seriam bajulados em uma visita. O conde e a condessa
apressaram-se em deliberar as ordens necessárias em prol
do conforto da hóspede, pedindo à marquesa que se sentisse
em casa. Conduziram-na ao castelo, onde acabava de ser
preparada a mesa de banquete.
Ao se entrar no salão de jantar e ver o brilho das velas
alumiando a estrangeira, podia-se perceber um rosto
surpreendente por sua beleza incomum. Esperava-se ver
nela a tez morena das italianas, mas ela tinha a coloração
delicada de uma mulher do Norte – apenas seus olhos eram
negros, como os da maioria das damas romanas; ademais,
ela detinha o porte orgulhoso de seus compatriotas. A
marquesa soube conquistar todos os membros da família por
meio de sua conduta e logo ganhara o coração de todos. Os
bons modos não permitiam que ela fosse questionada acerca
de suas origens, de suas circunstâncias e do propósito de
sua viagem, mas ela acomodou o desejo de seus anfitriões
de descobrirem algo a respeito, dizendo o seguinte:
Sua mãe nasceu na Alemanha. Ela perdeu o esposo – ele
era o último de sua linhagem – logo após o casamento,
tomando posse de uma vasta fortuna. A vontade de
conhecer a pátria de sua mãe, pela qual tinha grande
carinho, seria a motivação de sua jornada; ela havia decidido
visitar as cortes alemãs mais distintas e estava a caminho de
Berlim – da propriedade dos Zellenstein até lá ela ainda
tinha mais de quarenta milhas a percorrer.
A condessa de Zellenstein sentiu-se inspirada a sugerir à
amável estrangeira que descansasse alguns dias por ali. Ela
aceitou de bom grado, já que, como assegurou, realmente
precisava descansar. A breve conversa durante o jantar fora
suficiente para convencer todos os membros da família de
que a presença da estrangeira, em vez de interferir nas
tranquilas alegrias domésticas, proporcionaria certa
variedade a elas, incrementando-as. Assim, consideraram
bem-aventurada a sua companhia.
Quando a família se reuniu na manhã seguinte para o
café da manhã, a marquesa mencionou que, ao examinar
sua bagagem, deu-se conta de ter perdido uma caixa
contendo joias de valor significativo e papéis importantes da
família. Já que não poderia ter sido perdida ou roubada,
provavelmente fora deixada em seu local de estadia anterior
em uma cidade austríaca enquanto faziam as malas – assim,
ela deveria enviar todos os seus servos lá para buscar a
caixa e, caso estivesse mesmo perdida, buscar auxílio
judicial para reavê-la. As medidas a se tomar foram
aprovadas, e ela foi consolada pela perda que, aliás, não
parecia incomodá-la tanto.
As coisas não foram tão tranquilas na casa dos
Zellenstein enquanto a marquesa esteve ali presente. O
decoro exigia que fizessem companhia à dama; então eram
convocados mais uma vez e se empenhavam para conhecer
mais a graciosa estrangeira. Todas as pessoas de
nascimento igualmente nobre naquela casa queriam
participar dos assuntos dela, e assim se seguia festa após
festa, da qual a signora Val Umbrosa sempre era a rainha.
Lá, fosse nos corredores bem iluminados, girando em uma
dança rápida, ou então entre uma seleção dos rapazes mais
espirituosos onde era homenageada como uma princesa,
aquele parecia ser o seu ambiente – ela encantava cada
coração masculino, despertando em cada mulher inveja,
mas também admiração. As Graças pareciam servir-lhe em
sua toalete, cingido-a com a cinta de Cípria9. Um Gardel10
teria perdido para sua dança, uma Ninon11 teria se curvado à
sua perspicácia, e se ela se parecesse com um Beaumont12
em termos de decência e estrito comportamento moral,
parecia possuir a despretensão de uma donzela em flor que
nunca pensou em impressionar o coração de um homem.
Eugenie, que sempre estava nas proximidades,
aparentemente passou a aparecer sob uma luz desfavorável.
Ela sempre detestou celebrações extravagantes, e agora
duas vezes mais, já que elas se amontoavam em cima dos
dias felizes de seu amor e afastavam seu amado de si por
muitas horas. A italiana era muito superior a ela em termos
mundanos – de prazer pela vida e das sedutoras artes
femininas, que se calculam com base no agrado –, da
mesma forma que a violeta delicadamente perfumada é
comparada a uma rosa resplandecente, que reivindica o
prêmio entre todas as flores do jardim.
O período designado para a estada da marquesa na
propriedade dos Zellenstein passou, mas seus criados ainda
não haviam retornado. Naturalmente, dadas as
circunstâncias, solicitaram que ela estendesse sua presença,
e, naturalmente também, ela aceitou o convite. A propósito,
o conde, sua esposa e Leodogar ficaram muito satisfeitos
com a estadia mais longa de sua encantadora convidada.
Apenas um rosto se obscureceu, um par de olhos se turvou
vez ou outra à presença da estrangeira. Contudo, ninguém o
percebeu, pois a suave melancolia de seu rosto dificilmente
parecia distinguir-se da serenidade de uma alma quieta e
humilde, de modo que era assim que todos a viam. Eugenie
percebeu com nitidez os olhares ardentes que a italiana
lançava sobre Leodogar; viu como este último era atingido
por tais olhares, baixando os olhos para o chão, para depois
os erguer e os fazer deslizar sobre o talhe perfeito da
estrangeira. Não lhe escapou como ele foi voluntariamente
dominado pelos encantos da marquesa, tornando-se
distraído e pensativo; disso ela não esperava nada de bom.
Entretanto, nobre demais para reclamar do sentimento de
seu amante – que era natural a ponto de ser perdoável –, e
bondosa demais para ofendê-lo com ciúmes, ela se trancou
em seu medo e passou a controlar seu comportamento de
forma a nada revelar sobre o que se passava consigo.
Quando Leodogar ainda era um menino, a filha de um
magistrado, que perdera os pais muito cedo, foi entregue
aos cuidados do pastor pelo presbítero. O conde Zellenstein
e sua família estavam ligados à Igreja Católica, embora a
maioria dos residentes de seu domínio fosse luterana,
incluindo o pastor, que, considerado pelo conde como um
clérigo digno, frequentemente ia ao castelo na condição de
hóspede bem-vindo. A pedido expresso do conde, ele às
vezes trazia consigo seus filhos disciplinados, inclusive
Emilie, a filha pequena do magistrado. Assim desenvolveu-se
uma familiaridade entre os filhos do conde e os do pastor,
que crescia a cada dia e acabou rendendo uma amizade
íntima que perdurou mesmo quando todos já eram adultos.
Desde o início, a pequena Emilie se mostrou ligada ao
jovem conde Leodogar, que, por sua vez, não recuou por
qualquer frieza, provocação ou devassidão e que, por pouco
que tenha feito no início, terminou sendo lisonjeiro. Sua
inclinação silenciosa, que nunca degenerou em intrusões,
cresceu com o passar dos anos e, embora Emilie se
afastasse mais de Leodogar como uma donzela perspicaz,
seu amor por ele aumentava – e tanto mais ela teve de se
ensimesmar. Por mais que ela pudesse aceitar a diferença de
estamento entre si e o jovem conde, ainda nutria uma
esperança secreta de um dia tornar-se sua, que alimentava
por uma imaginação vivaz capaz de diminuir todos os
obstáculos que a impediam de ligar-se a ele.
Leodogar, então um garoto de dezenove anos, tocado
pela ternura muda (embora eloquente) de Emilie, esteve a
ponto de retribuir seu amor, quando então apareceu Eugenie
e tomou para si seu afeto. Emilie perdeu toda a esperança,
por fim, deixando-se consumir por uma dor silenciosa.
Quando Eugenie partiu para o mosteiro, os desejos de Emilie
despertaram mais uma vez; sua esperança foi renovada.
Porém, quando Leodogar, suplicante, induziu Eugenie a
retornar e retribuir seu amor – quando ela mesma expressou
os sentimentos pelo amado como infinitos –, o coração da
pobre Emilie se partiu. A dor amorosa que suportara em
silêncio por tanto tempo arruinou sua sanidade, e ela
retomou as noções, ideias e atitudes da infância.
A loucura de Emilie era pacífica contanto que ela fosse
deixada em liberdade. Ela vagava pela região, perdida em si
mesma, como se estivesse pensando sobre algo com afã,
parecendo completamente intocada por quaisquer
impressões do mundo exterior. Ocasionalmente, ela se
aproximava das pessoas, questionando-as repetidamente:
“Não é mesmo que ela é mais bonita e melhor do que eu, e
por isso ele só pode amá-la?”. E então irrompia em um leve
choro. Isso dava testemunho da beleza de sua alma, que
nem mesmo a loucura poderia destruir por completo – ela
não odiava sua afortunada rival, mas antes gostava de sua
companhia e se deixava repreender por Eugenie mais do que
por qualquer pessoa, dando-lhe ouvidos quando a proibiam
de fazer algo impróprio. Porém, ela delirava no sentido de
Eugenie não ser uma pessoa, mas um espírito desencarnado
que só assumiu a forma humana para que Leodogar pudesse
amá-lo. Além disso, o cuidado que ela tinha em se vestir
bem e decentemente era um testemunho da delicadeza
primordial de sua disposição. Outra coisa notável a seu
respeito era o fato de sua loucura lhe abrir todo um novo
sentido interior, que às vezes se expressava com efeitos
completamente incompreensíveis. Por isso, muitas vezes ela
previa algo que um senso saudável certamente não poderia
ter previsto. Ou então, às vezes, ela sabia exatamente o que
estava acontecendo longe de si, e não raro descobria coisas
profundamente ocultas com grande clareza. Eugenie
tolerava de bom grado a infeliz, pois ela parecia fazer-lhe
bem, e quando Leodogar voltou de suas viagens, ela foi
autorizada a continuar visitando-o, desde que se calasse e
se ocupasse apenas de seu violão ou de brincadeiras
infantis, o que a levava a se sentar aos pés de Eugenie ou
Leodogar.
A chegada da signora Val Umbrosa, que ocasionou uma
série de festanças e visitas, separou Emilie de Eugenie e
Leodogar por vários dias, deixando-a muito triste. Ela fez
várias tentativas de contato com aquelas duas pessoas
queridas, e, quando isso não era possível por causa da
presença de estranhos – algo que sempre evitou –,
invariavelmente voltava para casa triste. Por fim, certa
manhã ela foi ao jardim do palácio, onde encontrou os
namorados sentados em um caramanchão. A marquesa, que
costumava ser a terceira pessoa entre eles, ainda não havia
se levantado, pois, seguindo o costume italiano, dormia
muito. A louca saudou os amigos com uma alegria infantil,
fazendo gentis objeções ao distanciamento deles. Eugenie
lhe disse que uma estrangeira estava no castelo e que ela
teria que se acostumar com aquela presença caso quisesse
estar perto de seus amigos. “Ai”, respondeu ela, “ficarei feliz
em aguentar tudo se pelo menos puder ficar com vocês.”
Ela já havia ido ao castelo em diversas ocasiões sem
ainda ter conhecido a estrangeira, pois só escolhera as
primeiras horas da manhã para as suas visitas, quando ainda
não era possível ver a italiana. Certa vez, porém, foi
impedida de ir tão cedo como de costume, chegando lá
tarde e encontrando a marquesa sentada entre Leodogar e
Eugenie. Mal Emilie se aproximou dos três quando avistou a
estranha com olhos selvagens, caindo ao chão com um
berro. Tentaram reanimá-la, e quando, por fim, ela abriu os
olhos, logo cobriu o rosto com as duas mãos e gritou: “Ai de
vocês! Como conseguem ficar perto desse fantasma, que
estende as garras até seus corações para separá-los?!”. A
italiana lançou um olhar ameaçador para Emilie e disse: “É
de bom-tom que eu me afaste daqui, onde podem me
insultar impunemente”. Leodogar respondeu: “Não se
zangue, signora, ela é uma pobre louca que, pelo menos,
não a insulta deliberadamente”. “Sim, estou louca”, disse
Emilie, “mas isso não me impede de ver que aquela mulher
horrível traz a desgraça em seu encalço.” A marquesa então
deixou a sala em silêncio, desgostosa. Eugenie tentou
convencer Emilie a desistir das concepções de sua
imaginação atiçada, mas esta balançou a cabeça e disse:
“Mas olhem para ela com atenção! Vocês verão os traços de
sua morte; não sentem o bafejo de podridão que sopra dela?
Ai, eu imploro, fujam dessa cobra com lindas escamas que
está incubando seu declínio!”. Leodogar disse que ela não
poderia mais acompanhar a si e a Eugenie, uma vez que se
permitia proferir tal abuso contra uma estranha; ele
igualmente a aconselhou a ficar longe enquanto estivesse
presente a senhora – se é que ela tivesse amor pela própria
vida. “Ai, não tenho medo por mim”, respondeu ela, “pois se
ela pudesse me matar, não seria um grande infortúnio; mas
ela estende sua mão podre e defunta em direção a suas
vidas verdejantes – isso é o que me preocupa. Mas eu
também posso ficar e me calar na companhia dessa
horrorosa – só não me proíbam de estar entre vocês!”
A signora Val Umbrosa demonstrou claro desgosto por
Emilie e pediu que a removessem dali para sempre, pois
nada seria menos agradável do que o olhar de uma louca.
Mas Eugenie respondeu com firmeza: “Esta pobre mulher é
minha amiga; apesar de sua loucura, ela encontra alento
para sua dor indizível em nossa companhia. Espero, sra.
marquesa, que seus sentimentos me desculpem se eu não
roubar à pobre o último consolo que lhe foi deixado neste
mundo solitário”. Como Leodogar também concordou com
essa afirmação, a dama acabou aceitando ter Emilie por
perto.
Emilie então encontrava a estranha com mais frequência
e a observava num profundo silêncio; sendo ela tímida,
porém, sentava-se com algum afazer feminino, algo que
nunca fizera anteriormente. Ou então ela cantava uma
música com seu violão – alguma que se relacionasse
principalmente com o estado de seu coração e que fazia seu
peito se sentir muito aliviado. Então pediam-lhe para tocar
algo, mas em vão: ela apenas balançava a cabeça
silenciosamente a cada pedido. Quando foi pressionada com
mais intensidade para descobrir o motivo pelo qual se
recusava tão obstinadamente a cantar, ela disse baixinho:
“Como posso cantar quando a morte está na sala? Isso seria
um sacrilégio que me custaria muito e poderia até me fazer
enlouquecer!”. Eugenie perguntou: “E onde está a morte?”.
Ela respondeu: “Você não vê? Lá está ela sentada ao lado de
Leodogar. Claro que ela traz uma cobertura muito graciosa, e
vocês, cegos, deixam-se enganar. Mas ela não me engana:
só consigo ver a caveira sorrindo através dessas feições
sorridentes!”. Eugenie olhou ameaçadoramente e colocou o
dedo na boca, mas então uma lágrima caiu e, para escondê-
la, rapidamente deixou o aposento.
A inclinação de Leodogar pela marquesa aumentava a
cada dia e era notada por todos. Os pais o alertaram, sua
noiva pranteou; ele, porém, a princípio se enganou sobre a
natureza de seus sentimentos e, quando não pôde mais
duvidar deles, esforçou-se para enganar os seus entes
queridos fingindo estar sendo apenas amigável, e que se
ligara à estrangeira apenas em função de sua conversação
espirituosa. Ninguém o contestou, esperando que sua
melhor natureza prevalecesse em meio a essa confusão;
mas ele ficava cada vez mais cativado pelos encantos da
romana e já conseguia, sem corar, fazer comparações entre
Eugenie e a marquesa em plena consciência – a primeira, é
claro, passou a parecer menos favorável a seus olhos.
Eugenie, notando-o, abriu mão de tudo, para sempre. A dor
que se apoderou de si com a perda de Leodogar consumiu-a
fatalmente, logo naquele terno início da vida; a dor roçou
seu rosto e uma palidez mortal o turvou. Seu andar
habitualmente flutuante tornou-se vacilante; a tristeza
quebrou uma pétala atrás da outra em sua coroa, e ela
visivelmente estava se precipitando para um túmulo em
breve. Entretanto, nenhuma reprovação saiu de seus lábios –
nenhum olhar sombrio – nenhuma lágrima caiu na presença
do infiel. Ela suportou sua dor em silêncio e era uma imagem
comovente de rendição silenciosa. A condessa chamou a
atenção do filho para a figura esvaecida de Eugenie,
declarando-o como resultante de sua frieza, mas ele foi
malévolo o suficiente para dizer: “Se Eugenie está doente
por ciúmes, então não é boa o bastante para ser minha
esposa, pois ela fará a mim e a si infelizes. Se ela sofre de
debilidades físicas com as quais a medicina não pode lidar,
tanto pior, porque a continuação de nossa estirpe depende
de meu casamento”. A mãe o deixou, profundamente
indignada, não dando continuidade às suas intervenções, já
que ele tinha razão, de forma terrível, naquele julgamento
de raciocínio frio e calculista.
Ao conde e à sua esposa, a ideia de seu filho se casar
com a marquesa Val Umbrosa, a quem inicialmente
rejeitaram com despeito, logo se tornou mais tolerável, já
que adorariam carregar netos em seus colos. Assim, eles
superaram a relutância que nutriram pela marquesa desde o
momento em que ela afastou o coração do filho de Eugenie,
passando a tratá-la amistosamente. Desde o aparente
declínio em suas forças, Eugenie não parecia mais nutrir
pretensões por Leodogar; pelo contrário, ela até concedeu a
candidatura à estrangeira. Leodogar, em contrapartida, vez
e outra quis iniciar uma conversa com Eugenie sobre a
questão, porém ela gentil, mas firmemente, rejeitou todas
suas justificativas, usando sua fraqueza como pretexto para
tal. Ela tampouco evitava a companhia de Leodogar e da
estrangeira, e mesmo Emilie aparecia ficar mais silenciosa a
cada dia.
Leodogar, cujo estado de espírito às vezes se tornava
muito instável, como é o caso de qualquer pessoa com a
consciência pesada, em uma ocasião insistiu
impetuosamente que Emilie cantasse uma canção. Ele se
recusou a aceitar um não, pondo-se a esbravejar até que ela
se levantou de sobressalto e exclamou: “Bem, você está me
forçando a cantar – é você quem perde se meu canto cair
sobre você como um mau agouro!”. Ela buscou o violão de
outro aposento (onde esteve guardado sem uso por muito
tempo), golpeou sobre as cordas acordes selvagens e então
cantou quase sem tonalidade uma canção cujo conteúdo era
uma advertência contra a malícia da italiana, a quem ela
chamava de “demônio sanguinolento”.
Quando ela terminou de cantar, a marquesa lançou-lhe
um olhar penetrante que fez até Leodogar estremecer.
Emilie, por sua vez, endireitou-se e exclamou: “Olhe para
mim com ameaças e me mate, se puder; eu não tenho medo
de você, seu fantasma infernal! Eu só apelo para os iludidos
que se deixam enganar por seu invólucro e não conseguem
contemplar a ruína que chega às pressas!”. Então pegou seu
violão e quebrou-o no chão, dizendo: “Quebrem, cordas
insípidas! Nunca mais precisarei de vocês, já que não
conseguiram abrir esses corações!”. Em seguida deixou o
aposento, soluçando. A italiana reclamou com Leodogar
sobre o insulto que mais uma vez recebera da louca, e ele
prometeu que Emilie nunca mais seria admitida no castelo.
Eugenie, testemunha ocular dessa cena, ficou
profundamente abalada. Ela desconfiava de algo insólito
sem saber como expressar tal suspeita. Ela sentiu sua força
vital se exaurir e, convencida de que o fim estava próximo,
solenemente devolveu suas reivindicações por Leodogar à
mãe dele. Pediu que a levassem a um mosteiro para que
pudesse passar suas últimas horas de devoção sem
perturbação. Seu desejo foi atendido e, sem se despedir de
Leodogar verbalmente, foi levada, carregada nos ombros de
criados de confiança. Choraram por ela muitas pessoas
necessitadas ante quem ela sempre fora um anjo prestativo.
No dia subsequente à partida de Eugenie, o tão esperado
cônego finalmente chegou – sua volta havia sido atrasada
em função da eleição de um novo bispo. Ele era então um
ancião de oitenta anos, e todo o seu ser pertencia a tempos
havia muito idos, dos quais ele ocasionalmente, no presente,
despontava como um estranho exótico. A cabeça soberba
envolta em cachos prateados erguia-se, tal qual um pico
nevado sobre os Alpes, acima da maioria dos membros vivos
de sua linhagem, e parecia zombar do tempo que tudo
destrói, mas não deu conta de fazer prostrar sua potente
cérvix ao solo. Um par de olhos flamejantes brilhava naquele
rosto enrugado – cada um dos quais parecia penetrar o
âmago de quem mirava. Seu brilho radiante era algo que só
um homem decente poderia suportar.
Logo após sua chegada, ele pediu à condessa que lhe
contasse a história do amor de Leodogar por Eugenie e,
desgostoso, balançou a cabeça anciã. Em seguida, foi até o
convento onde Eugenie se encontrava e, depois de
conversar consigo, pediu que também Emilie fosse trazida –
com ela conversou por um longo tempo, sozinhos. Por sorte,
o jovem conde e a estrangeira não estavam presentes
quando o cônego chegou; ele até mesmo evitou encontrá-los
por alguns dias. Por fim, quis vê-los e foi ao parque por onde
estavam passeando. Deparou com eles quando saíam de um
caminho sombreado por árvores e entravam em um
descampado ensolarado. Leodogar teve vontade de abraçá-
lo, mas o cônego relutou, lançando um olhar severo e
punitivo para o casal. “Quem és tu?”, inquiriu à trêmula
marquesa, “uma alma penada é o que não és; pois, fosse tal,
não poderias me enganar com teu invólucro. Também não
podes pertencer aos vivos, pois a sombra parcial e pálida
que o teu corpo projeta o atesta. Em nome de Deus, diz-me
quem és!”
A marquesa empalideceu; justo naquele instante uma
nuvem cobriu o sol, então ela se aprumou e disse: “Eu
jamais teria imaginado que me tornaria objeto de ridículo e
aversão neste lugar; ora sou um fantasma, ora coisa insólita;
ora sou maltratada por loucos, ora por velhos desvairados; é
esta a tão elogiada hospitalidade dos alemães?”. Então
Leodogar tomou a palavra e pediu a seu tio que tratasse
aquela dama como sua noiva amada e, como tal, mostrasse-
lhe o respeito do qual ela era, com justiça, merecedora.
“Garoto”, exclamou o cônego com raiva, “dizendo-me o que
devo fazer!? Logo se esclarecerá quem ela é.” Ele foi embora
em silêncio, fechando-se em seus aposentos.
No dia seguinte, veio do mosteiro a notícia de que
Eugenie havia falecido. O conde e a condessa lamentaram o
empalidecer precoce daquela delicada flor; lamentaram que
um destino hostil a tivesse impedido de associar-se a
Leodogar. O cônego, presente nessa declaração, exclamou:
“Não acuse o destino, mas a tolice de seu filho; não aquele,
mas só este causou a morte da pia garota. Apesar disso, eu
não queria culpá-los agora, pois, como diz-me um vago
pressentimento, outro duro golpe os atingirá!”. O casal de
condes ficou muito abalado com tal declaração oracular. O
cônego, contudo, pediu-lhes que ficassem quietos e
aceitassem resignadamente aquilo que não podiam mudar,
visto que uma grande desgraça muitas vezes tem de
acontecer para prevenir outra ainda maior. Aquele foi um
consolo doloroso, que não conseguiu acalmar os corações
hesitantes dos pais ansiosos.
O cônego não comunicara aos pais de Leodogar seu
ceticismo acerca da humanidade da estrangeira, disposto a
evitar que o medo deles excitasse algo inesperado. Ele, por
sua vez, trancou-se e passou um dia entre os manuscritos
que trouxera consigo. Na mesma noite, depois de pesquisar
intensamente, ao que parece, ele foi ter com os pais de
Leodogar e questionou-os acerca da tal estrangeira. Os dois
haviam saído para um passeio e ainda não haviam voltado,
embora já fosse tarde. Os pais expressaram preocupação
ante a possibilidade de um acidente ter acontecido com eles,
quando de repente Emilie entrou correndo na sala com os
cabelos desgrenhados e os olhos arregalados, gritando:
“Salve o seu Leodogar, o fantasma vai matá-lo!”.
“Deus”, exclamou o conde, “ele não está presente; onde
devo procurá-lo?”
“Negativo”, disse Emilie, “ele está aqui no castelo.
Apresse-se, o monstro já puxa o fio de sua vida e logo o
romperá.” Ela então pegou um castiçal e a mão do cônego,
pondo-se a sair. O prelado a amainou e disse: “O que relatas
é verdade. Mas como irás tu, criatura fraca, lutar contra um
mensageiro dos poderes abismais?”. Ele entrou em seus
aposentos e voltou imediatamente com uma tocha acesa,
acompanhando, junto ao conde, a garota que seguira
adiante. Todos foram ao quarto do jovem conde, e o cônego,
segurando a tocha, foi o primeiro a entrar.
Leodogar jazia despido na cama, e, curvado sobre ele,
com a cabeça apoiada em seu peito, havia uma figura
humanoide envolta em mortalhas. O cônego foi até a cama e
tocou a figura com um anel. Ela, gemebunda, endireitou o
corpo e encarou o cônego com olhos opacos. A figura era a
mais horrível de se olhar – todos os traços do rosto incolor
estavam rígidos, sem vida; os olhos eram mortos e sem
brilho; a boca sem lábios estava ensanguentada, e o manto
cadavérico estava manchado com algumas gotas de sangue.
“Quem é você, monstro que invade as casas de paz e para
elas leva assassinato, alimentando-se do sangue de seus
corações?”, questionou o cônego. “Você, poderoso, bem
sabe”, respondeu a terrível criatura com voz rouquenha.
“Quem lhe deu o poder de aproximar-se deste homem
para deteriorá-lo?”
“A maldição de meu ancestral foi pronunciada sobre esta
família e sobre seu pecado.”
“Foi assim que você dizimou os outros ramos desta
árvore genealógica?”
“Sim.”
“Qual é a localidade onde seu corpo amaldiçoado está
enterrado?”
A figura não queria responder, então o prelado retrucou
em voz alta: “Devo proferir sobre si a palavra que subjuga os
espíritos? Mais uma vez pergunto: onde está a tumba que
guarda seu receptáculo?”.
Com um suspiro profundo, a criatura fantasmagórica
respondeu: “Na igreja de Palmensee”13. Só então o monstro
conseguiu se desvencilhar dos imperativos do cônego, que
em seguida foi até Leodogar e tentou reanimá-lo de sua
profunda síncope. Isso foi feito com muito esforço e, quando
finalmente abriu os olhos, sentiu-se exausto. Foi encontrada
uma ferida em seu peito, que a noiva sinistra fizera depois
de colocá-lo para dormir e da qual sugou seu sangue.
Médicos foram trazidos com a maior pressa para restaurar o
jovem conde e socorrer seus pais aterrorizados; a vida
fugidia do jovem, porém, só conseguiram conter por mais
algumas horas. Por seu cadáver os desolados pais choraram
no dia seguinte.
O cônego providenciou o funeral de seu sobrinho,
buscando acalmar o casal infeliz pela perda do último – ai
deles! – e querido filho. Seus esforços surtiram pouco efeito.
Mais sucesso que ele obteve Emilie, cuja insanidade havia
desaparecido até o último vestígio e que então passou a
ficar sempre perto dos velhos sem filhos para chorar consigo
a morte de Leodogar, consolando-os. Foi bom para os
corações empobrecidos ter um ser solidário ao seu encalço –
alguém que chorasse pelo mesmo objetivo, que honrasse e
compartilhasse sua dor, e talvez Emilie fosse a única capaz
de livrá-los do desespero.
Quando o cônego sentiu que sua presença com o casal
de condes tornara-se desnecessária, foi até Palmensee para
confirmar o ardil mais pernicioso da vampira que assassinou
seu sobrinho – e, como era de se suspeitar, que igualmente
assassinou os irmãos deste a fim de acertar suas contas. Ele
mandou abrir os caixões do mausoléu, com o aval do bispo,
e encontrou em um deles um corpo no qual não era visível o
menor vestígio de decomposição, embora tivesse
permanecido na cripta por mais de trinta anos.
Então era aquele o terrível monstro que não pertencia
nem à vida nem à morte; a quem fora permitido o retorno do
tenebroso reino da putrefação para que se alimentasse do
sangue dos vivos e se nutrisse de flores frescas da juventude
a fim de inibir a destruição do próprio corpo. O prelado
mandou que cravassem uma estaca no peito da fera, e
sangue quente jorrou da ferida. Então cremou-se o cadáver,
e a maldição, que um destino funesto depositara sobre
aquele corpo morto – embora não inteiramente morto –, foi
destruída.
Das Ende
1 Cargo reservado às pessoas da alta nobreza para servirem diretamente ao rei ou imperador, como seu
braço direito. (Esta e todas as notas subsequentes são do tradutor.)
2 No original, Hochstift. No Sacro Império Romano-Germânico, referia-se a um certo território cujo líder
máximo era um bispo, não um príncipe.
3 Rendimentos próprios de altos cargos do clero.
4 A Ordem da Cartuxa é uma ordem semieremítica, de orientação contemplativa, estabelecida por São
Bruno em 1084.
5 No original, Blütenschnee, planta nativa da América do Norte de nome científico Euphorbia marginata.
Possui uma flor cujo período de brotação se dá antes de a neve do inverno derreter por completo, daí
seu nome popular. Foi catalogada pela primeira vez durante a Lewis and Clark Expedition (1803-1806),
duas décadas antes da escrita do conto. É bastante improvável que houvesse muitos exemplares da
planta disponíveis na Europa.
6 No original, Schwärmerei, uma das palavras-chave do tipo psicossocial do indivíduo romântico,
popularizado pela própria tendência literária da qual Rauschnik fez parte. Designa pessoas mais
propensas a arroubos sentimentais, alta imaginatividade e inabilidade em se adaptar às convenções
sociais.
7 No original, unheimlich, conceito singular da tradição de horror alemão, cujo uso programático se inicia
três anos antes do lançamento de Rauschnik, com as Nachtstücke de E. T. A. Hoffmann (1776-1822).
8 Val Umbrosa é uma abadia na região da Toscana, Itália. Rauschnik usou essa grafia nas duas primeiras
menções ao nome (Päonien: eine Sammlung von Erzählungen, Mährchen, Sagen und Legenden. Volume
2. Mainz: Florian Kupferberg, 1820, pp. 215 e 219), mas erroneamente o grafou “Val Unbrosa” da terceira
ocorrência em diante. Mantivemos a primeira grafia.
9 Alcunha dada à deusa Afrodite.
10 Maximilien (1741-1787) e Pierre Gardel (1758-1840) foram dois dançarinos franceses de renome.
11 Na corte de Louis XIV da França, dizia-se que Ninon de Lenclos (1620-1705) era mestra da
eloquência.
12 Provável referência a Francis Beaumont (1584-1616), dramaturgo da Renascença inglesa, famoso por
suas peças de fundo moralizante e contribuições com John Fletcher (1579-1625).
13 Palmensee significa “Lagoa das palmeiras”, o que, como localização europeia, certamente é fictícia.
Palmeiras crescem em território europeu somente na praticamente inabitada ilha Capraia (ligada à
província de Livorno, Itália) e em Côte d’Azur, na França.
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