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Textos de Literatura
Textos de Literatura
Borges, Jorge Luís, “Sobre o Rigor na Ciência”. In: Obras completas de Jorge Luis Borges.
Vol. II. Vários tradutores. São Paulo: Globo, 1999.
Alberto Caeiro/Fernando Pessoa
O mistério da poesia
Não sei o nome desse poeta, acho que boliviano; apenas lhe conheço um poema,
ensinado por um amigo. E só guardei os primeiros versos: ‘Trabajar era bueno en el sur…
E tendo guardado esses dois versos tão simples, aqui me debruço ainda uma vez
O poema era grande, mas foram essas palavras que me emocionaram. Lembro-me
delas às vezes, numa viagem; quando estou aborrecido, tenho notado que as murmuro para
mim mesmo, de vez em quando, nesses momentos de tédio urbano. E elas produzem em mim
De onde vem o efeito poético? É fácil dizer que vem do sentido dos versos; mas
não é apenas do sentido. Se ele dissesse: ‘Era bueno trabajar en el sur’ não creio que o
‘hacer’ usasse o passado, creio que isso enfraqueceria tudo. Penso no ritmo; ele sozinho não
dá para explicar nada. Além disso, as palavras usadas são, rigorosamente, das mais banais da
língua. Reparem que tudo está dito como os elementos mais simples: ‘trabajar, era bueno,
Isso me lembra um dos maiores versos de Camões, todo ele também com as
solene e alto às palavras de todo dia. Nesse poema sul-americano a ideia da canoa é também
um motivo de emoção.
Não há coisa mais simples e primitiva que uma canoa feita de um tronco de
árvore; e acontece que muitas vezes a canoa é de uma grande beleza plástica. E de repente me
ocorre que talvez esses versos me emocionem particularmente por causa de uma infância de
beira-rio e de beira-mar. Mas não pode ser: o principal sentido dos versos é o do trabalho; um
trabalho que era bom, não essa ‘necessidade aborrecida’ de hoje. Desejo de fazer alguma
Fala-se muito em mistério poético; e não faltam poetas modernos que procurem
esse mistério enunciando coisas obscuras, o que dá margem a muito equívoco e muita
bobagem. Se na verdade existe muita poesia e muita carga de emoção em certos versos sem
um sentido claro, isso não quer dizer que, turvando um pouco as águas, elas fiquem mais
profundas….
Rubem Braga
Fevereiro, 1949
FELIZ ANIVERSÁRIO
A família foi pouco a pouco chegando. Os que vieram de Olaria estavam muito bem vestidos
porque a visita significava ao mesmo tempo um passeio a Copacabana. A nora de Olaria
apareceu de azul-marinho, com enfeite de paetês e um drapeado disfarçando a barriga sem
cinta. O marido não veio por razões óbvias: não queria ver os irmãos. Mas mandara sua
mulher para que nem todos os laços fossem cortados – e esta vinha com o seu melhor vestido
para mostrar que não precisava de nenhum deles, acompanhada dos três filhos: duas meninas
já de peito nascendo, infantilizadas em babados cor-de-rosa e anáguas engomadas, e o menino
acovardado pelo terno novo e pela gravata.
Tendo Zilda – a filha com quem a aniversariante morava – disposto cadeiras unidas ao
longo das paredes, como numa festa em que se vai dançar, a nora de Olaria, depois de
cumprimentar com cara fechada aos de casa, aboletou-se numa das cadeiras e emudeceu, a
boca em bico, mantendo sua posição de ultrajada. “Vim para não deixar de vir”, dissera ela a
Zilda, e em seguida sentara-se ofendida. As duas mocinhas de cor-de-rosa e o menino,
amarelos e de cabelo penteado, não sabiam bem que atitude tomar e ficaram de pé ao lado da
mãe, impressionados com seu vestido azul-marinho e com os paetês.
Depois veio a nora de Ipanema com dois netos e a babá. O marido viria depois. E como
Zilda – a única mulher entre os seis irmãos homens e a única que, estava decidido já havia
anos, tinha espaço e tempo para alojar a aniversariante – e como Zilda estava na cozinha a
ultimar com a empregada os croquetes e sanduíches, ficaram: a nora de Olaria empertigada
com seus filhos de coração inquieto ao lado; a nora de Ipanema na fila oposta das cadeiras
fingindo ocupar-se com o bebê para não encarar a concunhada de Olaria; a babá ociosa e
uniformizada, com a boca aberta.
E à cabeceira da mesa grande a aniversariante que fazia hoje oitenta e nove anos.
Zilda, a dona da casa, arrumara a mesa cedo, enchera-a de guardanapos de papel colorido
e copos de papelão alusivos à data, espalhara balões sungados pelo teto em alguns dos quais
estava escrito “Happy Birthday!”, em outros “Feliz Aniversário!”. No centro havia disposto o
enorme bolo açucarado. Para adiantar o expediente, enfeitara a mesa logo depois do almoço,
encostara as cadeiras à parede, mandara os meninos brincar no vizinho para não desarrumar a
mesa.
E, para adiantar o expediente, vestira a aniversariante logo depois do almoço. Pusera-lhe
desde então a presilha em torno do pescoço e o broche, borrifara-lhe um pouco de água-de-
colônia para disfarçar aquele seu cheiro de guardado – sentara-a à mesa. E desde as duas
horas a aniversariante estava sentada à cabeceira da longa mesa vazia, tesa na sala silenciosa.
De vez em quando consciente dos guardanapos coloridos. Olhando curiosa um ou outro
balão estremecer aos carros que passavam. E de vez em quando aquela angústia muda: quando
acompanhava, fascinada e impotente, o voo da mosca em torno do bolo.
Até que às quatro horas entrara a nora de Olaria e depois a de Ipanema.
Quando a nora de Ipanema pensou que não suportaria nem um segundo mais a situação de
estar sentada defronte da concunhada de Olaria – que cheia das ofensas passadas não via um
motivo para desfitar desafiadora a nora de Ipanema – entraram enfim José e a família. E mal
eles se beijavam, a sala começou a ficar cheia de gente que ruidosa se cumprimentava como
se todos tivessem esperado embaixo o momento de, em afobação de atraso, subir os três
lances de escada, falando, arrastando crianças surpreendidas, enchendo a sala – e inaugurando
a festa.
Os músculos do rosto da aniversariante não a interpretavam mais, de modo que ninguém
podia saber se ela estava alegre. Estava era posta à cabeceira. Tratava-se de uma velha
grande, magra, imponente e morena. Parecia oca.
– Oitenta e nove anos, sim senhor! disse José, filho mais velho agora que Jonga tinha
morrido. – Oitenta e nove anos, sim senhora! disse esfregando as mãos em admiração pública
e como sinal imperceptível para todos.
Todos se interromperam atentos e olharam a aniversariante de um modo mais oficial.
Alguns abanaram a cabeça em admiração como a um recorde. Cada ano vencido pela
aniversariante era uma vaga etapa da família toda. Sim senhor! disseram alguns sorrindo
timidamente.
– Oitenta e nove anos!, ecoou Manoel que era sócio de José. É um brotinho!, disse
espirituoso e nervoso, e todos riram, menos sua esposa.
A velha não se manifestava.
Alguns não lhe haviam trazido presente nenhum. Outros trouxeram saboneteira, uma
combinação de jérsei, um broche de fantasia, um vasinho de cactos – nada, nada que a dona da
casa pudesse aproveitar para si mesma ou para seus filhos, nada que a própria aniversariante
pudesse realmente aproveitar constituindo assim uma economia: a dona da casa guardava os
presentes, amarga, irônica.
– Oitenta e nove anos! repetiu Manoel aflito, olhando para a esposa.
A velha não se manifestava.
Então, como se todos tivessem tido a prova final de que não adiantava se esforçarem, com
um levantar de ombros de quem estivesse junto de uma surda, continuaram a fazer a festa
sozinhos, comendo os primeiros sanduíches de presunto mais como prova de animação que
por apetite, brincando de que todos estavam morrendo de fome. O ponche foi servido, Zilda
suava, nenhuma cunhada ajudou propriamente, a gordura quente dos croquetes dava um cheiro
de piquenique; e de costas para a aniversariante, que não podia comer frituras, eles riam
inquietos. E Cordélia? Cordélia, a nora mais moça, sentada, sorrindo.
– Não senhor! respondeu José com falsa severidade, hoje não se fala em negócios!
– Está certo, está certo! recuou Manoel depressa, olhando rapidamente para sua mulher
que de longe estendia um ouvido atento.
– Nada de negócios, gritou José, hoje é o dia da mãe!
Na cabeceira da mesa já suja, os copos maculados, só o bolo inteiro – ela era a mãe. A
aniversariante piscou os olhos.
E quando a mesa estava imunda, as mães enervadas com o barulho que os filhos faziam,
enquanto as avós se recostavam complacentes nas cadeiras, então fecharam a inútil luz do
corredor para acender a vela do bolo, uma vela grande com um papelzinho colado onde estava
escrito “89”. Mas ninguém elogiou a ideia de Zilda, e ela se perguntou angustiada se eles não
estariam pensando que fora por economia de velas – ninguém se lembrando de que ninguém
havia contribuído com uma caixa de fósforos sequer para a comida da festa que ela, Zilda,
servia como uma escrava, os pés exaustos e o coração revoltado. Então acenderam a vela. E
então José, o líder, cantou com muita força, entusiasmando com um olhar autoritário os mais
hesitantes ou surpreendidos, “vamos! todos de uma vez!” – e todos de repente começaram a
cantar alto como soldados. Despertada pelas vozes, Cordélia olhou esbaforida. Como não
haviam combinado, uns cantaram em português e outros em inglês. Tentaram então corrigir: e
os que haviam cantado em inglês passaram a português, e os que haviam cantado em português
passaram a cantar bem baixo em inglês.
Enquanto cantavam, a aniversariante, à luz da vela acesa, meditava como junto de uma
lareira.
Escolheram o bisneto menor que, debruçado no colo da mãe encorajadora, apagou a chama
com um único sopro cheio de saliva! Por um instante bateram palmas à potência inesperada do
menino que, espantado e exultante, olhava para todos encantado. A dona da casa esperava com
o dedo pronto no comutador do corredor – e acendeu a lâmpada.
– Viva mamãe!
– Viva vovó!
– Viva d. Anita, disse a vizinha que tinha aparecido.
– Happy birthday! gritaram os netos, do Colégio Bennett.
Bateram ainda algumas palmas ralas.
A aniversariante olhava o bolo apagado, grande e seco.
– Parta o bolo, vovó! disse a mãe dos quatro filhos, é ela quem deve partir! assegurou
incerta a todos, com ar íntimo e intrigante. E, como todos aprovassem satisfeitos e curiosos,
ela se tornou de repente impetuosa: – parta o bolo, vovó!
E de súbito a velha pegou na faca. E sem hesitação, como se hesitando um momento ela
toda caísse para a frente, deu a primeira talhada com punho de assassina.
– Que força, segredou a nora de Ipanema, e não se sabia se estava escandalizada ou
agradavelmente surpreendida. Estava um pouco horrorizada.
– Há um ano atrás ela ainda era capaz de subir essas escadas com mais fôlego do que eu,
disse Zilda amarga.
Dada a primeira talhada, como se a primeira pá de terra tivesse sido lançada, todos se
aproximaram de prato na mão, insinuando-se em fingidas acotoveladas de animação, cada um
para a sua pazinha.
Em breve as fatias eram distribuídas pelos pratinhos, num silêncio cheio de rebuliço. As
crianças pequenas, com a boca escondida pela mesa e os olhos ao nível desta, acompanhavam
a distribuição com muda intensidade. As passas rolavam do bolo entre farelos secos. As
crianças angustiadas viam se desperdiçarem as passas, acompanhavam atentas a queda.
E quando foram ver, não é que a aniversariante já estava devorando o seu último bocado?
E por assim dizer a festa estava terminada.
Cordélia olhava ausente para todos, sorria.
– Já lhe disse: hoje não se fala em negócios! respondeu José radiante.
– Está certo, está certo! recolheu-se Manoel conciliador sem olhar a esposa que não o
desfitava. Está certo, tentou Manoel sorrir e uma contração passou-lhe rápido pelos músculos
da cara.
– Hoje é dia da mãe! disse José.
Na cabeceira da mesa, a toalha manchada de Coca-Cola, o bolo desabado, ela era a mãe.
A aniversariante piscou.
Eles se mexiam agitados, rindo, a sua família. E ela era a mãe de todos. E se de repente
não se ergueu, como um morto se levanta devagar e obriga mudez e terror aos vivos, a
aniversariante ficou mais dura na cadeira, e mais alta. Ela era a mãe de todos. E como a
presilha a sufocasse, ela era a mãe de todos e, impotente à cadeira, desprezava-os. E olhava-
os piscando. Todos aqueles seus filhos e netos e bisnetos que não passavam de carne de seu
joelho, pensou de repente como se cuspisse. Rodrigo, o neto de sete anos, era o único a ser a
carne de seu coração, Rodrigo, com aquela carinha dura, viril e despenteada. Cadê Rodrigo?
Rodrigo com olhar sonolento e entumescido naquela cabecinha ardente, confusa. Aquele seria
um homem. Mas, piscando, ela olhava os outros, a aniversariante. Oh o desprezo pela vida
que falhava. Como?! como tendo sido tão forte pudera dar à luz aqueles seres opacos, com
braços moles e rostos ansiosos? Ela, a forte, que casara em hora e tempo devidos com um bom
homem a quem, obediente e independente, ela respeitara; a quem respeitara e que lhe fizera
filhos e lhe pagara os partos e lhe honrara os resguardos. O tronco fora bom. Mas dera aqueles
azedos e infelizes frutos, sem capacidade sequer para uma boa alegria. Como pudera ela dar à
luz aqueles seres risonhos, fracos, sem austeridade? O rancor roncava no seu peito vazio. Uns
comunistas, era o que eram; uns comunistas. Olhou-os com sua cólera de velha. Pareciam ratos
se acotovelando, a sua família. Incoercível, virou a cabeça e com força insuspeita cuspiu no
chão.
– Mamãe! gritou mortificada a dona da casa. Que é isso, mamãe! gritou ela passada de
vergonha, e não queria sequer olhar os outros, sabia que os desgraçados se entreolhavam
vitoriosos como se coubesse a ela dar educação à velha, e não faltaria muito para dizerem que
ela já não dava mais banho na mãe, jamais compreenderiam o sacrifício que ela fazia. –
Mamãe, que é isso! – disse baixo, angustiada. – A senhora nunca fez isso! – acrescentou alto
para que todos ouvissem, queria se agregar ao espanto dos outros, quando o galo cantar pela
terceira vez renegarás tua mãe. Mas seu enorme vexame suavizou-se quando ela percebeu que
eles abanavam a cabeça como se estivessem de acordo que a velha não passava agora de uma
criança.
– Ultimamente ela deu pra cuspir, terminou então confessando contrita para todos.
Todos olharam a aniversariante, compungidos, respeitosos, em silêncio.
Pareciam ratos se acotovelando, a sua família. Os meninos, embora crescidos –
provavelmente já além dos cinquenta anos, que sei eu! – os meninos ainda conservavam os
traços bonitinhos. Mas que mulheres haviam escolhido! E que mulheres os netos – ainda mais
fracos e mais azedos – haviam escolhido. Todas vaidosas e de pernas finas, com aqueles
colares falsificados de mulher que na hora não aguenta a mão, aquelas mulherezinhas que
casavam mal os filhos, que não sabiam pôr uma criada em seu lugar, e todas elas com as
orelhas cheias de brincos – nenhum, nenhum de ouro! A raiva a sufocava.
– Me dá um copo de vinho! disse.
O silêncio se fez de súbito, cada um com o copo imobilizado na mão.
– Vovozinha, não vai lhe fazer mal? insinuou cautelosa a neta roliça e baixinha.
– Que vovozinha que nada! explodiu amarga a aniversariante. – Que o diabo vos carregue,
corja de maricas, cornos e vagabundas! me dá um copo de vinho, Dorothy! – ordenou.
Dorothy não sabia o que fazer, olhou para todos em pedido cômico de socorro. Mas, como
máscaras isentas e inapeláveis, de súbito nenhum rosto se manifestava. A festa interrompida,
os sanduíches mordidos na mão, algum pedaço que estava na boca a sobrar seco, inchando tão
fora de hora a bochecha. Todos tinham ficado cegos, surdos e mudos, com croquetes na mão. E
olhavam impassíveis.
Desamparada, divertida, Dorothy deu o vinho: astuciosamente apenas dois dedos no copo.
Inexpressivos, preparados, todos esperaram pela tempestade.
Mas não só a aniversariante não explodiu com a miséria de vinho que Dorothy lhe dera
como não mexeu no copo.
Seu olhar estava fixo, silencioso. Como se nada tivesse acontecido.
Todos se entreolharam polidos, sorrindo cegamente, abstratos como se um cachorro
tivesse feito pipi na sala. Com estoicismo, recomeçaram as vozes e risadas. A nora de Olaria,
que tivera o seu primeiro momento uníssono com os outros quando a tragédia vitoriosamente
parecia prestes a se desencadear, teve que retornar sozinha à sua severidade, sem ao menos o
apoio dos três filhos que agora se misturavam traidoramente com os outros. De sua cadeira
reclusa, ela analisava crítica aqueles vestidos sem nenhum modelo, sem um drapeado, a mania
que tinham de usar vestido preto com colar de pérolas, o que não era moda coisa nenhuma,
não passava era de economia. Examinando distante os sanduíches que quase não tinham
levado manteiga. Ela não se servira de nada, de nada! Só comera uma coisa de cada, para
experimentar.
E por assim dizer, de novo a festa estava terminada.
As pessoas ficaram sentadas benevolentes. Algumas com a atenção voltada para dentro de
si, à espera de alguma coisa a dizer. Outras vazias e expectantes, com um sorriso amável, o
estômago cheio daquelas porcarias que não alimentavam mas tiravam a fome. As crianças, já
incontroláveis, gritavam cheias de vigor. Umas já estavam de cara imunda; as outras, menores,
já molhadas; a tarde caía rapidamente. E Cordélia, Cordélia olhava ausente, com um sorriso
estonteado, suportando sozinha o seu segredo. Que é que ela tem? alguém perguntou com uma
curiosidade negligente, indicando-a de longe com a cabeça, mas também não responderam.
Acenderam o resto das luzes para precipitar a tranquilidade da noite, as crianças começavam
a brigar. Mas as luzes eram mais pálidas que a tensão pálida da tarde. E o crepúsculo de
Copacabana, sem ceder, no entanto se alargava cada vez mais e penetrava pelas janelas como
um peso.
– Tenho que ir, disse perturbada uma das noras levantando-se e sacudindo os farelos da
saia. Vários se ergueram sorrindo.
A aniversariante recebeu um beijo cauteloso de cada um como se sua pele tão infamiliar
fosse uma armadilha. E, impassível, piscando, recebeu aquelas palavras propositadamente
atropeladas que lhe diziam tentando dar um final arranco de efusão ao que não era mais senão
passado: a noite já viera quase totalmente. A luz da sala parecia então mais amarela e mais
rica, as pessoas envelhecidas. As crianças já estavam histéricas.
– Será que ela pensa que o bolo substitui o jantar, indagava-se a velha nas suas
profundezas.
Mas ninguém poderia adivinhar o que ela pensava. E para aqueles que junto da porta ainda
a olharam uma vez, a aniversariante era apenas o que parecia ser: sentada à cabeceira da mesa
imunda, com a mão fechada sobre a toalha como encerrando um cetro, e com aquela mudez
que era a sua última palavra. Com um punho fechado sobre a mesa, nunca mais ela seria
apenas o que ela pensasse. Sua aparência afinal a ultrapassara e, superando-a, se agigantava
serena. Cordélia olhou-a espantada. O punho mudo e severo sobre a mesa dizia para a infeliz
nora que sem remédio amava talvez pela última vez: É preciso que se saiba. É preciso que se
saiba. Que a vida é curta. Que a vida é curta.
Porém nenhuma vez mais repetiu. Porque a verdade era um relance. Cordélia olhou-a
estarrecida. E, para nunca mais, nenhuma vez repetiu – enquanto Rodrigo, o neto da
aniversariante, puxava a mão daquela mãe culpada, perplexa e desesperada que mais uma vez
olhou para trás implorando à velhice ainda um sinal de que uma mulher deve, num ímpeto
dilacerante, enfim agarrar a sua derradeira chance e viver. Mais uma vez Cordélia quis olhar.
Mas a esse novo olhar – a aniversariante era uma velha à cabeceira da mesa.
Passara o relance. E arrastada pela mão paciente e insistente de Rodrigo a nora seguiu-o
espantada.
– Nem todos têm o privilégio e o orgulho de se reunirem em torno da mãe, pigarreou José
lembrando-se de que Jonga é quem fazia os discursos.
– Da mãe, vírgula! riu baixo a sobrinha, e a prima mais lenta riu sem achar graça.
– Nós temos, disse Manoel acabrunhado sem mais olhar para a esposa. Nós temos esse
grande privilégio – disse distraído enxugando a palma úmida das mãos.
Mas não era nada disso, apenas o mal-estar da despedida, nunca se sabendo ao certo o que
dizer, José esperando de si mesmo com perseverança e confiança a próxima frase do discurso.
Que não vinha. Que não vinha. Que não vinha. Os outros aguardavam. Como Jonga fazia falta
nessas horas – José enxugou a testa com o lenço – como Jonga fazia falta nessas horas!
Também fora o único a quem a velha sempre aprovara e respeitara, e isso dera a Jonga tanta
segurança. E quando ele morrera, a velha nunca mais falara nele, pondo um muro entre sua
morte e os outros. Esquecera-o talvez. Mas não esquecera aquele mesmo olhar firme e direto
com que desde sempre olhara os outros filhos, fazendo-os sempre desviar os olhos. Amor de
mãe era duro de suportar: José enxugou a testa, heroico, risonho.
E de repente veio a frase:
– Até o ano que vem! disse José subitamente com malícia, encontrando, assim, sem mais
nem menos, a frase certa: uma indireta feliz! Até o ano que vem, hein?, repetiu com receio de
não ser compreendido.
Olhou-a, orgulhoso da artimanha da velha que espertamente sempre vivia mais um ano.
– No ano que vem nos veremos diante do bolo aceso! esclareceu melhor o filho Manoel,
aperfeiçoando o espírito do sócio. Até o ano que vem, mamãe! e diante do bolo aceso! disse
ele bem explicado, perto de seu ouvido, enquanto olhava obsequiador para José. E a velha de
súbito cacarejou um riso frouxo, compreendendo a alusão.
Então ela abriu a boca e disse:
– Pois é.
Estimulado pela coisa ter dado tão inesperadamente certo, José gritou-lhe emocionado,
grato, com os olhos úmidos:
– No ano que vem nos veremos, mamãe!
– Não sou surda! disse a aniversariante rude, acarinhada.
Os filhos se olharam rindo, vexados, felizes. A coisa tinha dado certo.
As crianças foram saindo alegres, com o apetite estragado. A nora de Olaria deu um
cascudo de vingança no filho alegre demais e já sem gravata. As escadas eram difíceis,
escuras, incrível insistir em morar num prediozinho que seria fatalmente demolido mais dia
menos dia, e na ação de despejo Zilda ainda ia dar trabalho e querer empurrar a velha para as
noras – pisado o último degrau, com alívio os convidados se encontraram na tranquilidade
fresca da rua. Era noite, sim. Com o seu primeiro arrepio.
Adeus, até outro dia, precisamos nos ver. Apareçam, disseram rapidamente. Alguns
conseguiram olhar nos olhos dos outros com uma cordialidade sem receio. Alguns abotoavam
os casacos das crianças, olhando o céu à procura de um sinal do tempo. Todos sentindo
obscuramente que na despedida se poderia talvez, agora sem perigo de compromisso, ser bom
e dizer aquela palavra a mais – que palavra? eles não sabiam propriamente, e olhavam-se
sorrindo, mudos. Era um instante que pedia para ser vivo. Mas que era morto. Começaram a se
separar, andando meio de costas, sem saber como se desligar dos parentes sem brusquidão.
– Até o ano que vem! repetiu José a indireta feliz, acenando a mão com vigor efusivo, os
cabelos ralos e brancos esvoaçavam. Ele estava era gordo, pensaram, precisava tomar
cuidado com o coração. Até o ano que vem! gritou José eloquente e grande, e sua altura
parecia desmoronável. Mas as pessoas já afastadas não sabiam se deviam rir alto para ele
ouvir ou se bastaria sorrir mesmo no escuro. Além de alguns pensarem que felizmente havia
mais do que uma brincadeira na indireta e que só no próximo ano seriam obrigados a se
encontrar diante do bolo aceso; enquanto que outros, já mais no escuro da rua, pensavam se a
velha resistiria mais um ano ao nervoso e à impaciência de Zilda, mas eles sinceramente nada
podiam fazer a respeito: “Pelo menos noventa anos”, pensou melancólica a nora de Ipanema.
“Para completar uma data bonita”, pensou sonhadora.
Enquanto isso, lá em cima, sobre escadas e contingências, estava a aniversariante sentada
à cabeceira da mesa, erecta, definitiva, maior do que ela mesma. Será que hoje não vai ter
jantar, meditava ela. A morte era o seu mistério.
FELIZ ANIVERSÁRIO
A família foi pouco a pouco chegando. Os que vieram de Olaria estavam muito bem vestidos
porque a visita significava ao mesmo tempo um passeio a Copacabana. A nora de Olaria
apareceu de azul-marinho, com enfeite de paetês e um drapeado disfarçando a barriga sem
cinta. O marido não veio por razões óbvias: não queria ver os irmãos. Mas mandara sua
mulher para que nem todos os laços fossem cortados – e esta vinha com o seu melhor vestido
para mostrar que não precisava de nenhum deles, acompanhada dos três filhos: duas meninas
já de peito nascendo, infantilizadas em babados cor-de-rosa e anáguas engomadas, e o menino
acovardado pelo terno novo e pela gravata.
Tendo Zilda – a filha com quem a aniversariante morava – disposto cadeiras unidas ao
longo das paredes, como numa festa em que se vai dançar, a nora de Olaria, depois de
cumprimentar com cara fechada aos de casa, aboletou-se numa das cadeiras e emudeceu, a
boca em bico, mantendo sua posição de ultrajada. “Vim para não deixar de vir”, dissera ela a
Zilda, e em seguida sentara-se ofendida. As duas mocinhas de cor-de-rosa e o menino,
amarelos e de cabelo penteado, não sabiam bem que atitude tomar e ficaram de pé ao lado da
mãe, impressionados com seu vestido azul-marinho e com os paetês.
Depois veio a nora de Ipanema com dois netos e a babá. O marido viria depois. E como
Zilda – a única mulher entre os seis irmãos homens e a única que, estava decidido já havia
anos, tinha espaço e tempo para alojar a aniversariante – e como Zilda estava na cozinha a
ultimar com a empregada os croquetes e sanduíches, ficaram: a nora de Olaria empertigada
com seus filhos de coração inquieto ao lado; a nora de Ipanema na fila oposta das cadeiras
fingindo ocupar-se com o bebê para não encarar a concunhada de Olaria; a babá ociosa e
uniformizada, com a boca aberta.
E à cabeceira da mesa grande a aniversariante que fazia hoje oitenta e nove anos.
Zilda, a dona da casa, arrumara a mesa cedo, enchera-a de guardanapos de papel colorido
e copos de papelão alusivos à data, espalhara balões sungados pelo teto em alguns dos quais
estava escrito “Happy Birthday!”, em outros “Feliz Aniversário!”. No centro havia disposto o
enorme bolo açucarado. Para adiantar o expediente, enfeitara a mesa logo depois do almoço,
encostara as cadeiras à parede, mandara os meninos brincar no vizinho para não desarrumar a
mesa.
E, para adiantar o expediente, vestira a aniversariante logo depois do almoço. Pusera-lhe
desde então a presilha em torno do pescoço e o broche, borrifara-lhe um pouco de água-de-
colônia para disfarçar aquele seu cheiro de guardado – sentara-a à mesa. E desde as duas
horas a aniversariante estava sentada à cabeceira da longa mesa vazia, tesa na sala silenciosa.
De vez em quando consciente dos guardanapos coloridos. Olhando curiosa um ou outro
balão estremecer aos carros que passavam. E de vez em quando aquela angústia muda: quando
acompanhava, fascinada e impotente, o voo da mosca em torno do bolo.
Até que às quatro horas entrara a nora de Olaria e depois a de Ipanema.
Quando a nora de Ipanema pensou que não suportaria nem um segundo mais a situação de
estar sentada defronte da concunhada de Olaria – que cheia das ofensas passadas não via um
motivo para desfitar desafiadora a nora de Ipanema – entraram enfim José e a família. E mal
eles se beijavam, a sala começou a ficar cheia de gente que ruidosa se cumprimentava como
se todos tivessem esperado embaixo o momento de, em afobação de atraso, subir os três
lances de escada, falando, arrastando crianças surpreendidas, enchendo a sala – e inaugurando
a festa.
Os músculos do rosto da aniversariante não a interpretavam mais, de modo que ninguém
podia saber se ela estava alegre. Estava era posta à cabeceira. Tratava-se de uma velha
grande, magra, imponente e morena. Parecia oca.
– Oitenta e nove anos, sim senhor! disse José, filho mais velho agora que Jonga tinha
morrido. – Oitenta e nove anos, sim senhora! disse esfregando as mãos em admiração pública
e como sinal imperceptível para todos.
Todos se interromperam atentos e olharam a aniversariante de um modo mais oficial.
Alguns abanaram a cabeça em admiração como a um recorde. Cada ano vencido pela
aniversariante era uma vaga etapa da família toda. Sim senhor! disseram alguns sorrindo
timidamente.
– Oitenta e nove anos!, ecoou Manoel que era sócio de José. É um brotinho!, disse
espirituoso e nervoso, e todos riram, menos sua esposa.
A velha não se manifestava.
Alguns não lhe haviam trazido presente nenhum. Outros trouxeram saboneteira, uma
combinação de jérsei, um broche de fantasia, um vasinho de cactos – nada, nada que a dona da
casa pudesse aproveitar para si mesma ou para seus filhos, nada que a própria aniversariante
pudesse realmente aproveitar constituindo assim uma economia: a dona da casa guardava os
presentes, amarga, irônica.
– Oitenta e nove anos! repetiu Manoel aflito, olhando para a esposa.
A velha não se manifestava.
Então, como se todos tivessem tido a prova final de que não adiantava se esforçarem, com
um levantar de ombros de quem estivesse junto de uma surda, continuaram a fazer a festa
sozinhos, comendo os primeiros sanduíches de presunto mais como prova de animação que
por apetite, brincando de que todos estavam morrendo de fome. O ponche foi servido, Zilda
suava, nenhuma cunhada ajudou propriamente, a gordura quente dos croquetes dava um cheiro
de piquenique; e de costas para a aniversariante, que não podia comer frituras, eles riam
inquietos. E Cordélia? Cordélia, a nora mais moça, sentada, sorrindo.
– Não senhor! respondeu José com falsa severidade, hoje não se fala em negócios!
– Está certo, está certo! recuou Manoel depressa, olhando rapidamente para sua mulher
que de longe estendia um ouvido atento.
– Nada de negócios, gritou José, hoje é o dia da mãe!
Na cabeceira da mesa já suja, os copos maculados, só o bolo inteiro – ela era a mãe. A
aniversariante piscou os olhos.
E quando a mesa estava imunda, as mães enervadas com o barulho que os filhos faziam,
enquanto as avós se recostavam complacentes nas cadeiras, então fecharam a inútil luz do
corredor para acender a vela do bolo, uma vela grande com um papelzinho colado onde estava
escrito “89”. Mas ninguém elogiou a ideia de Zilda, e ela se perguntou angustiada se eles não
estariam pensando que fora por economia de velas – ninguém se lembrando de que ninguém
havia contribuído com uma caixa de fósforos sequer para a comida da festa que ela, Zilda,
servia como uma escrava, os pés exaustos e o coração revoltado. Então acenderam a vela. E
então José, o líder, cantou com muita força, entusiasmando com um olhar autoritário os mais
hesitantes ou surpreendidos, “vamos! todos de uma vez!” – e todos de repente começaram a
cantar alto como soldados. Despertada pelas vozes, Cordélia olhou esbaforida. Como não
haviam combinado, uns cantaram em português e outros em inglês. Tentaram então corrigir: e
os que haviam cantado em inglês passaram a português, e os que haviam cantado em português
passaram a cantar bem baixo em inglês.
Enquanto cantavam, a aniversariante, à luz da vela acesa, meditava como junto de uma
lareira.
Escolheram o bisneto menor que, debruçado no colo da mãe encorajadora, apagou a chama
com um único sopro cheio de saliva! Por um instante bateram palmas à potência inesperada do
menino que, espantado e exultante, olhava para todos encantado. A dona da casa esperava com
o dedo pronto no comutador do corredor – e acendeu a lâmpada.
– Viva mamãe!
– Viva vovó!
– Viva d. Anita, disse a vizinha que tinha aparecido.
– Happy birthday! gritaram os netos, do Colégio Bennett.
Bateram ainda algumas palmas ralas.
A aniversariante olhava o bolo apagado, grande e seco.
– Parta o bolo, vovó! disse a mãe dos quatro filhos, é ela quem deve partir! assegurou
incerta a todos, com ar íntimo e intrigante. E, como todos aprovassem satisfeitos e curiosos,
ela se tornou de repente impetuosa: – parta o bolo, vovó!
E de súbito a velha pegou na faca. E sem hesitação, como se hesitando um momento ela
toda caísse para a frente, deu a primeira talhada com punho de assassina.
– Que força, segredou a nora de Ipanema, e não se sabia se estava escandalizada ou
agradavelmente surpreendida. Estava um pouco horrorizada.
– Há um ano atrás ela ainda era capaz de subir essas escadas com mais fôlego do que eu,
disse Zilda amarga.
Dada a primeira talhada, como se a primeira pá de terra tivesse sido lançada, todos se
aproximaram de prato na mão, insinuando-se em fingidas acotoveladas de animação, cada um
para a sua pazinha.
Em breve as fatias eram distribuídas pelos pratinhos, num silêncio cheio de rebuliço. As
crianças pequenas, com a boca escondida pela mesa e os olhos ao nível desta, acompanhavam
a distribuição com muda intensidade. As passas rolavam do bolo entre farelos secos. As
crianças angustiadas viam se desperdiçarem as passas, acompanhavam atentas a queda.
E quando foram ver, não é que a aniversariante já estava devorando o seu último bocado?
E por assim dizer a festa estava terminada.
Cordélia olhava ausente para todos, sorria.
– Já lhe disse: hoje não se fala em negócios! respondeu José radiante.
– Está certo, está certo! recolheu-se Manoel conciliador sem olhar a esposa que não o
desfitava. Está certo, tentou Manoel sorrir e uma contração passou-lhe rápido pelos músculos
da cara.
– Hoje é dia da mãe! disse José.
Na cabeceira da mesa, a toalha manchada de Coca-Cola, o bolo desabado, ela era a mãe.
A aniversariante piscou.
Eles se mexiam agitados, rindo, a sua família. E ela era a mãe de todos. E se de repente
não se ergueu, como um morto se levanta devagar e obriga mudez e terror aos vivos, a
aniversariante ficou mais dura na cadeira, e mais alta. Ela era a mãe de todos. E como a
presilha a sufocasse, ela era a mãe de todos e, impotente à cadeira, desprezava-os. E olhava-
os piscando. Todos aqueles seus filhos e netos e bisnetos que não passavam de carne de seu
joelho, pensou de repente como se cuspisse. Rodrigo, o neto de sete anos, era o único a ser a
carne de seu coração, Rodrigo, com aquela carinha dura, viril e despenteada. Cadê Rodrigo?
Rodrigo com olhar sonolento e entumescido naquela cabecinha ardente, confusa. Aquele seria
um homem. Mas, piscando, ela olhava os outros, a aniversariante. Oh o desprezo pela vida
que falhava. Como?! como tendo sido tão forte pudera dar à luz aqueles seres opacos, com
braços moles e rostos ansiosos? Ela, a forte, que casara em hora e tempo devidos com um bom
homem a quem, obediente e independente, ela respeitara; a quem respeitara e que lhe fizera
filhos e lhe pagara os partos e lhe honrara os resguardos. O tronco fora bom. Mas dera aqueles
azedos e infelizes frutos, sem capacidade sequer para uma boa alegria. Como pudera ela dar à
luz aqueles seres risonhos, fracos, sem austeridade? O rancor roncava no seu peito vazio. Uns
comunistas, era o que eram; uns comunistas. Olhou-os com sua cólera de velha. Pareciam ratos
se acotovelando, a sua família. Incoercível, virou a cabeça e com força insuspeita cuspiu no
chão.
– Mamãe! gritou mortificada a dona da casa. Que é isso, mamãe! gritou ela passada de
vergonha, e não queria sequer olhar os outros, sabia que os desgraçados se entreolhavam
vitoriosos como se coubesse a ela dar educação à velha, e não faltaria muito para dizerem que
ela já não dava mais banho na mãe, jamais compreenderiam o sacrifício que ela fazia. –
Mamãe, que é isso! – disse baixo, angustiada. – A senhora nunca fez isso! – acrescentou alto
para que todos ouvissem, queria se agregar ao espanto dos outros, quando o galo cantar pela
terceira vez renegarás tua mãe. Mas seu enorme vexame suavizou-se quando ela percebeu que
eles abanavam a cabeça como se estivessem de acordo que a velha não passava agora de uma
criança.
– Ultimamente ela deu pra cuspir, terminou então confessando contrita para todos.
Todos olharam a aniversariante, compungidos, respeitosos, em silêncio.
Pareciam ratos se acotovelando, a sua família. Os meninos, embora crescidos –
provavelmente já além dos cinquenta anos, que sei eu! – os meninos ainda conservavam os
traços bonitinhos. Mas que mulheres haviam escolhido! E que mulheres os netos – ainda mais
fracos e mais azedos – haviam escolhido. Todas vaidosas e de pernas finas, com aqueles
colares falsificados de mulher que na hora não aguenta a mão, aquelas mulherezinhas que
casavam mal os filhos, que não sabiam pôr uma criada em seu lugar, e todas elas com as
orelhas cheias de brincos – nenhum, nenhum de ouro! A raiva a sufocava.
– Me dá um copo de vinho! disse.
O silêncio se fez de súbito, cada um com o copo imobilizado na mão.
– Vovozinha, não vai lhe fazer mal? insinuou cautelosa a neta roliça e baixinha.
– Que vovozinha que nada! explodiu amarga a aniversariante. – Que o diabo vos carregue,
corja de maricas, cornos e vagabundas! me dá um copo de vinho, Dorothy! – ordenou.
Dorothy não sabia o que fazer, olhou para todos em pedido cômico de socorro. Mas, como
máscaras isentas e inapeláveis, de súbito nenhum rosto se manifestava. A festa interrompida,
os sanduíches mordidos na mão, algum pedaço que estava na boca a sobrar seco, inchando tão
fora de hora a bochecha. Todos tinham ficado cegos, surdos e mudos, com croquetes na mão. E
olhavam impassíveis.
Desamparada, divertida, Dorothy deu o vinho: astuciosamente apenas dois dedos no copo.
Inexpressivos, preparados, todos esperaram pela tempestade.
Mas não só a aniversariante não explodiu com a miséria de vinho que Dorothy lhe dera
como não mexeu no copo.
Seu olhar estava fixo, silencioso. Como se nada tivesse acontecido.
Todos se entreolharam polidos, sorrindo cegamente, abstratos como se um cachorro
tivesse feito pipi na sala. Com estoicismo, recomeçaram as vozes e risadas. A nora de Olaria,
que tivera o seu primeiro momento uníssono com os outros quando a tragédia vitoriosamente
parecia prestes a se desencadear, teve que retornar sozinha à sua severidade, sem ao menos o
apoio dos três filhos que agora se misturavam traidoramente com os outros. De sua cadeira
reclusa, ela analisava crítica aqueles vestidos sem nenhum modelo, sem um drapeado, a mania
que tinham de usar vestido preto com colar de pérolas, o que não era moda coisa nenhuma,
não passava era de economia. Examinando distante os sanduíches que quase não tinham
levado manteiga. Ela não se servira de nada, de nada! Só comera uma coisa de cada, para
experimentar.
E por assim dizer, de novo a festa estava terminada.
As pessoas ficaram sentadas benevolentes. Algumas com a atenção voltada para dentro de
si, à espera de alguma coisa a dizer. Outras vazias e expectantes, com um sorriso amável, o
estômago cheio daquelas porcarias que não alimentavam mas tiravam a fome. As crianças, já
incontroláveis, gritavam cheias de vigor. Umas já estavam de cara imunda; as outras, menores,
já molhadas; a tarde caía rapidamente. E Cordélia, Cordélia olhava ausente, com um sorriso
estonteado, suportando sozinha o seu segredo. Que é que ela tem? alguém perguntou com uma
curiosidade negligente, indicando-a de longe com a cabeça, mas também não responderam.
Acenderam o resto das luzes para precipitar a tranquilidade da noite, as crianças começavam
a brigar. Mas as luzes eram mais pálidas que a tensão pálida da tarde. E o crepúsculo de
Copacabana, sem ceder, no entanto se alargava cada vez mais e penetrava pelas janelas como
um peso.
– Tenho que ir, disse perturbada uma das noras levantando-se e sacudindo os farelos da
saia. Vários se ergueram sorrindo.
A aniversariante recebeu um beijo cauteloso de cada um como se sua pele tão infamiliar
fosse uma armadilha. E, impassível, piscando, recebeu aquelas palavras propositadamente
atropeladas que lhe diziam tentando dar um final arranco de efusão ao que não era mais senão
passado: a noite já viera quase totalmente. A luz da sala parecia então mais amarela e mais
rica, as pessoas envelhecidas. As crianças já estavam histéricas.
– Será que ela pensa que o bolo substitui o jantar, indagava-se a velha nas suas
profundezas.
Mas ninguém poderia adivinhar o que ela pensava. E para aqueles que junto da porta ainda
a olharam uma vez, a aniversariante era apenas o que parecia ser: sentada à cabeceira da mesa
imunda, com a mão fechada sobre a toalha como encerrando um cetro, e com aquela mudez
que era a sua última palavra. Com um punho fechado sobre a mesa, nunca mais ela seria
apenas o que ela pensasse. Sua aparência afinal a ultrapassara e, superando-a, se agigantava
serena. Cordélia olhou-a espantada. O punho mudo e severo sobre a mesa dizia para a infeliz
nora que sem remédio amava talvez pela última vez: É preciso que se saiba. É preciso que se
saiba. Que a vida é curta. Que a vida é curta.
Porém nenhuma vez mais repetiu. Porque a verdade era um relance. Cordélia olhou-a
estarrecida. E, para nunca mais, nenhuma vez repetiu – enquanto Rodrigo, o neto da
aniversariante, puxava a mão daquela mãe culpada, perplexa e desesperada que mais uma vez
olhou para trás implorando à velhice ainda um sinal de que uma mulher deve, num ímpeto
dilacerante, enfim agarrar a sua derradeira chance e viver. Mais uma vez Cordélia quis olhar.
Mas a esse novo olhar – a aniversariante era uma velha à cabeceira da mesa.
Passara o relance. E arrastada pela mão paciente e insistente de Rodrigo a nora seguiu-o
espantada.
– Nem todos têm o privilégio e o orgulho de se reunirem em torno da mãe, pigarreou José
lembrando-se de que Jonga é quem fazia os discursos.
– Da mãe, vírgula! riu baixo a sobrinha, e a prima mais lenta riu sem achar graça.
– Nós temos, disse Manoel acabrunhado sem mais olhar para a esposa. Nós temos esse
grande privilégio – disse distraído enxugando a palma úmida das mãos.
Mas não era nada disso, apenas o mal-estar da despedida, nunca se sabendo ao certo o que
dizer, José esperando de si mesmo com perseverança e confiança a próxima frase do discurso.
Que não vinha. Que não vinha. Que não vinha. Os outros aguardavam. Como Jonga fazia falta
nessas horas – José enxugou a testa com o lenço – como Jonga fazia falta nessas horas!
Também fora o único a quem a velha sempre aprovara e respeitara, e isso dera a Jonga tanta
segurança. E quando ele morrera, a velha nunca mais falara nele, pondo um muro entre sua
morte e os outros. Esquecera-o talvez. Mas não esquecera aquele mesmo olhar firme e direto
com que desde sempre olhara os outros filhos, fazendo-os sempre desviar os olhos. Amor de
mãe era duro de suportar: José enxugou a testa, heroico, risonho.
E de repente veio a frase:
– Até o ano que vem! disse José subitamente com malícia, encontrando, assim, sem mais
nem menos, a frase certa: uma indireta feliz! Até o ano que vem, hein?, repetiu com receio de
não ser compreendido.
Olhou-a, orgulhoso da artimanha da velha que espertamente sempre vivia mais um ano.
– No ano que vem nos veremos diante do bolo aceso! esclareceu melhor o filho Manoel,
aperfeiçoando o espírito do sócio. Até o ano que vem, mamãe! e diante do bolo aceso! disse
ele bem explicado, perto de seu ouvido, enquanto olhava obsequiador para José. E a velha de
súbito cacarejou um riso frouxo, compreendendo a alusão.
Então ela abriu a boca e disse:
– Pois é.
Estimulado pela coisa ter dado tão inesperadamente certo, José gritou-lhe emocionado,
grato, com os olhos úmidos:
– No ano que vem nos veremos, mamãe!
– Não sou surda! disse a aniversariante rude, acarinhada.
Os filhos se olharam rindo, vexados, felizes. A coisa tinha dado certo.
As crianças foram saindo alegres, com o apetite estragado. A nora de Olaria deu um
cascudo de vingança no filho alegre demais e já sem gravata. As escadas eram difíceis,
escuras, incrível insistir em morar num prediozinho que seria fatalmente demolido mais dia
menos dia, e na ação de despejo Zilda ainda ia dar trabalho e querer empurrar a velha para as
noras – pisado o último degrau, com alívio os convidados se encontraram na tranquilidade
fresca da rua. Era noite, sim. Com o seu primeiro arrepio.
Adeus, até outro dia, precisamos nos ver. Apareçam, disseram rapidamente. Alguns
conseguiram olhar nos olhos dos outros com uma cordialidade sem receio. Alguns abotoavam
os casacos das crianças, olhando o céu à procura de um sinal do tempo. Todos sentindo
obscuramente que na despedida se poderia talvez, agora sem perigo de compromisso, ser bom
e dizer aquela palavra a mais – que palavra? eles não sabiam propriamente, e olhavam-se
sorrindo, mudos. Era um instante que pedia para ser vivo. Mas que era morto. Começaram a se
separar, andando meio de costas, sem saber como se desligar dos parentes sem brusquidão.
– Até o ano que vem! repetiu José a indireta feliz, acenando a mão com vigor efusivo, os
cabelos ralos e brancos esvoaçavam. Ele estava era gordo, pensaram, precisava tomar
cuidado com o coração. Até o ano que vem! gritou José eloquente e grande, e sua altura
parecia desmoronável. Mas as pessoas já afastadas não sabiam se deviam rir alto para ele
ouvir ou se bastaria sorrir mesmo no escuro. Além de alguns pensarem que felizmente havia
mais do que uma brincadeira na indireta e que só no próximo ano seriam obrigados a se
encontrar diante do bolo aceso; enquanto que outros, já mais no escuro da rua, pensavam se a
velha resistiria mais um ano ao nervoso e à impaciência de Zilda, mas eles sinceramente nada
podiam fazer a respeito: “Pelo menos noventa anos”, pensou melancólica a nora de Ipanema.
“Para completar uma data bonita”, pensou sonhadora.
Enquanto isso, lá em cima, sobre escadas e contingências, estava a aniversariante sentada
à cabeceira da mesa, erecta, definitiva, maior do que ela mesma. Será que hoje não vai ter
jantar, meditava ela. A morte era o seu mistério.
ANDRADE, Carlos Drummond. Sentimento do mundo.
São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
Motivo Retrato
Irmão das coisas fugidias, Eu não tinha estas mãos sem força,
não sinto gozo nem tormento. Tão paradas e frias e mortas;
Atravesso noites e dias Eu não tinha este coração
no vento. Que nem se mostra.
tureza. mas cria uma outra natureZ<1. gerada por um c,:.;cesso de que se liga ele nH)do mais homo!!êne(1 COIll a palavra (C.rlO, COIll-
car:íter divino c destinada a uma completude autúnoma. preendido este como objeto nl<ltcri;d l' COIIClC[O. Inserido IllIlll
Entretanto, o título proposto aeopla criaçt70 a outra palavra processo de produç;10. o lc.\!o fica cquil';lr,ldo ,I um produto dI)
que aponta para outras teorias. mais recentes. I~ a palavra texto. mundo industrial. como um guarda-chuva ou uma m,íquinil dc
costura.
Ao introduzir-se a palavra (exlO. remete-se para a matcrialidadc
du escrito, e atenua-se o incf<Ívcl da palavra criaçt7o, Forma-se as- Outras duas palanas poderi;lm ainda substituir. lH:sse univer-
sim um título de compromisso. de conciliação entre o "divino" da so vocabular. ,IS três anteriores: scri;lIn as pal,lvr;ls rt'{JU',I'('II(({(:C;Ol'
!!Cnese e o "humano. demasiadamentc hUlTlano" do objeto criado. expresstlIJ. Mas. para uS<Í-las. dcvcríamos rclirar ,I 1,;1I,IH<I (CX(O e
Como. porém. as alianças contaminam. o pniprio texto. aqui re- deixar ,lpenas ";] representaç:io liter;:ri;l" ou "a cxpress;lo lill'-
sultante de uma criação. torna-se um objeto algo miraculoso, co- r,íria", E esse fato ilOS mostra que j<Í eSI;lIlIO$ (:1\1outras C<lte,l!ori;ls
discursivas e enl outr,lS \'isadas ll'(íric;ls.
mo uma pomba surgida dc uma cartola.
fOI) {Ii{
\:' l-.} ~() - .•...
y
mazia do sentido sobre o dito. medida que à simples sensação da falta sc acrcseen[;lm as espLCU-
E agora, como ficamos? O que faz o escritor? Cria? Inventa? " lações racionais sobre como as coisas deveriam ser c n,IO S,IO.
Produz? Representa? Exprime? A respeito de cada um desses "~'o Quando digo qúe o mtindo não é satisfalório. pensa-se logo
verbos manifestei urna margem de reserV<l. que é característica de (concordando) no mundo atual. lIesde as amcaças de guerra nu-
um certo mal-estar da teoria- literária alual. pouco propensa às clear até os problemas gritantes de nossa realidadc brasileira, tvlas
definições categóricas e totalizantes. mais desconfiada dc scus seria ilusório pensar que nos c<lbe o doloroso privilégio de vivcr
pressupostos filosóficos e mais cética a respeito de suas possibili- um real insatisfatório. Todos os momentos da história do homelll
d<ldes "científicas". foram vividos como insatisfal<Írios ou mcsmo insuporl<íl'eis,
Esse mal-estar terminológico não deve, entretanto, desenco- Flaubert gostava de lembrar S<lO Policarpo, um rwírtir do século 11
rajar-nos. As palavras lIevcl11 ser revisitadas. reexaminadas e ex- de nossa era, que dizia: "tvleu Deus. em que século me lileslL's
ploradas. elas nos ajudam na aproximação 1I0 saber que buscamos nascer!", Dezessete séculos mais ta rde. o escri lor Ira ncês rc lom;l-
na medida mcsma em que conhecemos seus pressupostos e seus va essas palavras como suas, Cem anos lIepois. eu comcntci com
limites. E essa foi minha intenção ao examiná-Ias aqui, de modo Osrnan Lins essa citação de Policlrpo/Flauberl. O escritor bra-
forçosamente sumário, Q,i~x~o. invenção. produçã(?2._ rep'!:esen- sileiro concordou C()~llela. élcrcsccntando por SU;I conla: "Em quc
~~5~~ .~?'PJe~Jiio-:--q u ai q uc ~'~~sKU2~I~~'~rjã JiPJ~iilli!.SLd~s g,?s- século e em qlle IlIgl/r me fizestes nélscer!", Podemos arrematar
t:rl/as. com as qUals se tenta captar o fazer lIterárIO, pode ser por com 130rges em sua fina ironia. dizendo ;1 rcspcito de ;d~uL;m:
nós agora retomada, contanto que explicitel110s o modo como as "Coube-lhe, como a todos. maus tcmpos p;lra l'i\Tr",
estamos retomando. O que torna o real de nosso momento histórico mais agulla-
A literatura, felizmente. continua existindo, apesar de não mente insatisfatório éa maior complexidade de dados de quc dis-
acreditarmos mais na possibilidade de a linguagem representar ou pomos, aumentando nossa capacidade lIe conhecer c. paradoxal-
expressar um real prévio, criar, inventar ou produzir um objeto mente, impedindo-nos de chegar a uma vis,lo de conjunto, O que
que seja auto-suficiente ou. pelo contrário. reabsorvido e utilizado há, e já houve em doses. mais confortadoras para o homem. S;IO
pelo real concreto, A literatura parte d~l)}.u~ce_ill....9!L~retende di- modos de reagir à insatisfação que o mundo nos causa: pela re-
zer. falha sempre ao-JízTiu--:-iiúls--âüTiliwr lIiz outra cOlSã,"ÕeSVen- ligião. aceitando os desígnios da providência c remctendo () mun-.
-J;ilU]l ~)~nUõ'maIsr~alllo
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fatôrio, 1\las dizer que a ohra liteníria compensa assim, positiva- sIm. dIZer as cOisas e 'aceitar pcrdc-Ias, dIstanCIa-bis c alc Illcsmo
mentc. as falhas do real kvar-nos-ia a uma vis<1o idílica da literatu-
anulá-Ias, /\ linguagcm ni'io podc subslituir o Illundo, ncm ao
ra: supor quc todas as n,llTati\'as e todos os poemas apresentam mcnos represenl<í-Io ,(,li
d.c cor.rcspondência: I'ielmenle, l'mle
c~)isa ser;í apenas cv(icá~li),
.represcnlad;l ,por tal aludir
si~no, a AS_/'
ele
um mundo mais belo. mais prazeroso do que o mundo real. A li- através ele um pacto que implica a perda do rc;lI concreto,
teratura seria cntão aquele famoso "sorriso da sociedade", e o es- \ A lingu,lgem tem uma funçiio rdercnciaJ c uma prclenstlO
critor uma incorrigívd Poliana ou UIlI inofensivo sonhador. ./ , represcntaliv,l. Entrcl'lnl(). o IllUllLio l'Ii"Lil! pcl<l linguagcm nuncl
As obras estão aí para desmenti-Io. Que dizer daquelas narra- esl<Í tolalmcntc ,ldcquado ao rc,lI, Narr<lr uma histúria, Ill_esnll'.
tivas que nos mostram Urll mundo ainda mais terrível do que esse.
q 1~1~'U:.sl~~I,~i,l:.ll)"I7çúÜ:Y]íiÚ""h~_J2U;~~· pessoas
j,í t<1o insatisfatório. quc nos cerca? E daqueles poemas que mani- nunca contam o Illcsmo fal,o da mesnlil forma: a simples cscolha
fcstam urna dor ou um pavor ainda maiores do que os quotidiana- dos pnrmclllires.a sc.:rcm n,lITados, a (lrdcn,lç,lo dos fatos e o ,in-
mente nos assaltam? E csse é o modo de ser histórico da literatura '\l
!
guio de quc eles si'io cllcar'ldos. (udo isso l'Iia a possibilidade dc
co~lp()r'inca'.-'~:~~-J.-:.'-ll-'a-~-(~-_~~~~-,S-)_ COE=~e:r~ mil e uma hislúrias. das quais Ilcnhum;1 sl'r;í <I "rcal", Sempre cs-
-Ura. ncssàs-í."J, .H1SOl;gatlvas Te-se ,nnda l11alS claramente a IIlSatls- j lar,í faltando. na hisl(íria. <l1~(l dl! rc,lI: c 1ll1lil,IS vezcs se cs(ar;í
ração causada pela falta. Áccntuar o quc estú mal. torná-Io per- ~ criando. na histlÍria, algo quc f,lIla\',1 no rcal. Uu mclllllr. algo que,
ceptível e generalizado até o insuporlúvel. é ainda sugerir. indire- t
ao se produzir na hislúria. rcvel<l,uma illlpcrdo;ivl'i fal~l~1no real. ~
tamentc, o q uc devcria sc r e não é . Escrever um poem,l é l,imbcm. PCllJ tem:l, Ill<lgnlilcar um llU
,.•' .' ')-'
. ,.!. -, , Na sua .~
gênese
--'-~---e na sua realizaçüo. a literatura a. 011la-.--
sempre • v;írius aspectos dl! 1'C,i1.dcsprczando outros: l'cl,1 forma. rilmar as
" \:I 7'.\., '".I ~
pará'o 'ue
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~em __.•••..••
nós.
_ Ela emprcende dIzer as palavras como um convitc a rilmar o mundo, criar harmonias de f
, :.,' coisas como são. faltantes, ou como deveriam scr. completas, som c de sentido que n<1ose percehclll na linguagem correnle: ins-
" . ".
(
.
--
Trágica ou epifânica. negativa ou positiva, ela estéí sempre dizendo
:~
, ljue
" !__
1
: -
---
2 rea!JwQ.~~,_
=. ~.--~~-'''"''-._....... ....• '.......... -'- .... - - -
taurar o que Valéry define COIllO a "hcsilaç,10 cntre_ C! ,~onl e o SCIl-
tido", Na mônada do pocma. o mundo fica momentancamcilic
10·1 IO,'i
Ç)
( cifrado, a captação do particular insinuando que uma plenitude do , ou o poema e são suas linhas de força invisíveis. até o lavor minu-
. mundo é de~ejável e possível. ~Ti,aso do estilo, que consiste em colocar as r'alanas cm determina-
O hurizonte da literatura é sempre o real que se pretende re- da ordem, pesando como numa balança os sons c os ritmos. A for-
presentar-em sua dolorosa condiç;lo de falta ou reapresentar nu- ma buscada pelo escri.t9r'é"'não apenas essa forma sensívcl íiãõíã:
._ _._, ~ .- ,_ _ __ •• _'_. ,.:... __ - •• _ •• - __ .o~ ---_
ma proposta alternativa de cOlllplelude. Mas. por ser linguagem, a , Teriafiaade do Iscurso-maso aõ"mesrno f'enipo. a forma do sentido.
literatura nunca pode ser realista. O chamado realismo nada mais f , nõ arranjo )LIsta' as'rcfêrg-nci,is',-n7t-'cxriõr;lç~o-d;ls éOrl~(aç()~s. ;\
é do que um conjunto de efeitos, baseados el11 convenções que t 1~~irrCo'§là-~r.é~i~j~ ,f,': ~C_~l rdLi~)~.aIn<;!lt.e t ~,!ll]
ad ãj)7lra
variam historicamente. Céline assim explicava sua experiência, f 'colher,
I ,.""'''' no ••real,
'" veruades
.",,_. .__que
••...• não
>- '--', se vêem
~-, ,',-" •..0'" 'QP.S q~l_c
a ulho ..vistas,
'obri am a reformular o'prórrio real.-_
ele parcce torto pelo deito da rclraçao: entao, se qUIsermos que ' - Só poJ'êser-;;CritZ;j: nqucl~-(íue ~onhecc c aceita esse pcrcur-
ele pareça reto, lemos de quebr;í-lo antes de mergulhá-Io na água. so enviesado do real às palavras e das palavras ao real. aquele quc
aparentemente realIsta: ~uando se m=rgulh,~ um bast.ão na ágUa,)'
~ssa
------ ág,ua que
-~ obriga •.•••a~ entortar _ o real..•__rara que
.~ ~_ •.•• ele volte a
...-._••'_';.o~_. 1.'
sabe que seu caminho é o indireto. Dizia Clarice Lis[Jector:
ser Q.~ -realmente era, é a IlIlguagem li~!.ária. Já dizia
Words\Vorth: "A [Joesia é 'lm11\:;'/íiigüilgcj;]'JJStz;rcid;'::-Qualq uer Escrever é o modo de qucm tem a palavra como iSC1:a )ala ,-~t
linguagem dCfo)-niii-ã"SColsas:'e a ling~prénaaocscritor, para cando o quc
,",":;.-\ ••.~ •••.•
niio é pal'1\'fa..;.Um;1,-cz quc SCPL'SCOU
~_:..;.'~~,--,<"''''''.~~:;''-,.r-.':!,"-''~:'': ,
,I cl1lrclinh,l,
._
po-
dar verdade;ls coisas. assume decididamente seu estatuto de ar- dia-se com aliVIO Jogar a palavra lora, "',Ias,11 ccssa a analogia: a nao,
tifício e de ilusão. Daí a importância da forma e sua relação com a
Jalavra. ao ~ morder
.•.. -..;:..~""" -
a isca, incorporou-a,
",~~-,"--
.•..
~
verdade. na literatura.
Para se pensar essa relação da literatura com a verdade, vale a Saber que o escritor só atinge o "dcveras" como um "fingi-
pena lembrar os vari,riveis sentidos da palavra miro. Para os povos dor" (Fernando Pessoa), só alcança a verdade através de uma téc-
primitivos, o mito é a história verdadeira ror excelência; em nica, é ter consciência da gravidade de seu ofício: um fazer que
muitos desses [JOvos. são os relatos do quotidiano que são chama- !J.0 ~~s.~~e_(: n~.~,~~._~I.~~~~~SI,~~:
() que se COrl(lffm'f;~~larZJi'-
dos de "históri<JS falsas'o, Em nossa civilização. ao contrário, mito {) ma nau e um mero obJclO ornameHtal. l1]as Ulll objillLQ.!.lde o n:al
se dá a ver. O compromisso do CSCril(;r'C'õiíl~undo I~;;;r:)r
tomou oMais
tirosa. sentido
do que
de coisa
duas [Juramente
concepções imaginária
diferentes e.daportanto,
verdade. men-'
dois modos diferentes de buscá-l<í. Muito diverso de um devaneio
são {{V
,.1
fl't•... 'li;nc'(;;'~I:;;-misso com a forma: é o que Roland Barthes chamou
de "responsabilidade da forma",
fantasioso. o mito é um sistema simbólico rigorosamente forma- A simples denúncia, pela linguagcm. do que vai mal no mun-
lizado. O modo literária de buscar a verdade continua sendo o do, não tem a eficácia conscguida pelo trabalho da forma na lite-
modo simbólico do mito. ratura. Os artifícios do escritor revelam. ao rneslllo lempo. o quc
Contrariamente ao quc pensam os que têm uma concepção falta no mundo e aquilo que ncle- devcria eslar. FeI,1 força de SU,1
meramente instrulllental da linguagem~ a fonnQiizQÇào ejorati- articulação. contra[JoSta ú "desordem asi;ítica do mundo real"
vamcnte chamada de artifício),
~~-.._,.-c'.''''''. .---~'.'
n<llitera~n;~
" •..•. __ ,,~_~ __ ,_ •.•.
_
6:11í"ê;;ação'efirrí
_.__ ~_~_ •..• ~.-. . .
(Sorges). a obra literária dcmonstra que o hOlllcm é capaz de unl<l
ll~~~ uma ce;:.\.i!-'(er(~~:~~l~J}~o .....
L!~lr5)Elll~~..in~disp~nsá- harmonia maior. Mesmo as obras cuja tern,ílic;1 é a dcsordem c a
~.r.~~.0~:. 0l)g_~~h.~~~.
~~!J}5!JJ.l,!;1,S.~~ que.{(nº~)
A.:~~~!~j~!l~!!.~.5?,,~~':.r~~t~r
...p.JL.~I<Í.~q.u.s.h!.~i;!--ilguçada .valõ.~_~_s,~ --1~'1i\lhtt-
ahre .t~'i<~has]2'
~ laz:~_u.~,-i~!.an Q~.oY_9~.~11ge~;.~12~aJeorclenaç~:?~?..m,~~~.o. E
I
í
falta. quando possuem essa i'orça da forma. Clllnprclll uma funç;lo
positiva. Nietzsche dizia: "Todas ,IS cois<ts hoas siio fortes estimu-
lantes em favor da vida: é a!i,ís o caso dc t(ld(l~!I_
" ) por esse art1llcl0 da_toj'IDa que a literatura atinge uma verdade do ~
.'
}',
", ( rC~.:..,~:.rp'or -ii'ii~~giress;o verd,~~_<9iec li} -e~~ç~ií~~~iz~1:!Fiaube'iJ
'd~ia que nunc'a cõ fundo que escandaliza mas a formü:"-""':-:-::-:-:;;-'- rentemente uma ,lção alienante do real. I'ois. quando esse Illullllo
. ·~)\-tnra5aITll)uã,,-oTõril1a seexerce "em-iodos oÇ'níveis da obra
... ··'iteníria. desde as grandes estruturas. que sustentam a narrativa
justa.
invenlado
Por Ulll
ele outro
é se [Joderoso
erg.ue
lado, com arival edaquele
perturbadora
inventar que accil<ív,\\11OS
celtoa
arresenLHr quc lhe dü COIllOreal.
a for\11a
(1 illl'xistl'nte é só apaj
.,:'dl ).'}~
, ( : 106 107
,
.) j
-
Já Arist6teles, em sua teorra da_ representação poética, defendia
não a veracidade mas a verossimilhança: No
pli'a ato
e asdeintenções
recriação primitivas
da obra pela leitura, sãoa proposta
cio autor superadas, inicial
Entre se oam-l
di- . o
)'i; J .\) r.0~.~~~r"e.[e~êàrlJoSS-íbliLd·;ile~Er;,alfZã'd.~~do:e,a~.,s é autor (por melhores que sejam), e sim sua cap:lcidadc de imprimir
,- -nesse sentido que a htemtura pode ser e c rcvoluclOnana: por n obra aquele impulso poderoso e aquela ahcrtura estimulante
, () nHÍliTer'V'íva aú(opià: nãõ' cônio 'o irrí~lgini{rio"<illlP,(;s~Ívél~m'a~' co- que convide o leitor a prosseguir sua criação, Todavi;1. assim como
o T1TGõ~lsna-gíiiáverpósSível.0"-'-- ", ", .. ,. o autor nüo é o dono absoluto da obra, que o ullrapassa. o leilor
·l-'-!(;-t'iXricc~Lispector observava: "Escrever é tnntas vS?~~~r-
.,; §e do ue nunca existiu". Lembrm::::~e do que nuncn existiu é não também nüo pode ler a prelensão de ser sober;lIlO em sua leilur:l. /
Aleilara <5um aprendizado de alenç:lo. de sensihilidade e dc in- ,
'cOl';-formar·se C(;111() mUlldo e suas histlÍrias. não considerar o real
venção. A grande obra não pode ser lida de qualquer maneira, ao (
, como o inelut;ívet; é afirmar
que as coisas poderiam ter sido ou-
tras. poderão ser outras. A função revolucionária da literatura não
consiste em emitir mensagens revolucionárias, mas em levantar, cri tas ciquela~
bel-prazer linhas subjetividade
da pura de força quc dopodem
leilor.serporquc
moduladas c prolon;
nela estão ins-{
gadas .. mas nao anuladas.
por suas reordenações e invenções. uma dúvida radical sobre a fa- Na circulação entre a proposta que é a ohra e sua recepção
talidade do real. sobre o determinismo da histlÍria. É o que diz pe'lo leitor cria-se não propriamcnle um mundo paralelo, repre-
Miguel Torga. emadminíveis versos: "Canta, poeta. canta!! Violen- sentado, e sim uma vis:lo valorativa do mundo em que vivcmos,
ta o silêncio conformado.! Cega com outra luz a luz do din.! Desns- Assim, a obra liter:íria é construç;lo do rcal e convite reiler:Hlo ao
sossega o mundo sossegado.! Ensina a cada alma a sua rebeldia". seu ultrapassamento. Essa comprecnsão permitida pela obra
Assim COlllO a literaturn não representa fielmente o real, tam- !ileníria é diversa da compreensão racional. visada pelos discursos
b<5m não age diretamente
•....
sobre ele. ~:::;,.~-..-_.-._--.-
A falta p(~de.. ~~ ser -.-.~
di Ia..•..,...-
m'ls _.não
.•.•..-
", instrumcntais da eiênci;l e da filosofia: é uma inteligC'ncia scnsí\'el.
~9JS~12!i~, Ainda Flaubert: "S~.:2·~s' fcil'lis piiIj dizêJg. que se opera cm nossa mente como em nosso corpo. pelo podcr
nüo par.1 tê-Io;'. O que a literatura pode. e faz, <5ampliar nossa com· de uma linguagem e111que as palavras eVOC:lI11ohjetos. mas SÜO.
pr~eal. por um processo que consiste em destruÍ-lo e re- ao mesmo tempo. objdos se nsÍ\'l:is e ;110 meSnlll sel)suais.
constrUÍ-Ia, alribuindo-Ihe valores que. em si, ele não lemo Como Assim. a literatura IlllI 1 C:l cst;,í afaslada do rc,J1. Trabalh:lr o
"
loJa arte "representativa". aliás. Comentando um filme sobre o j imagilHírio pela lingu:g!.em n,IO é scr C:lplur,ldo I)elo imagin:írio.
garimpo, que lhe foi moslrndo. um velho garimrciro observou: "Tu- mas caplurar. ;llravés uo illlagin,írio. \'erd,l(ks do re;J1 que n;lo se
do o que está lá, a genle já conhece: mas no filme ludo transpareee dão a ver fora de uma ordem silllb<ilica, ,\ IU~:J do re,J1. ou scu
c a gente reconhece" (U Estado de S. Paulo, .( de mnio de IlJ7K). oposto, o realismo, nunca se efetuam tol<J1lllcnte na liter:llur:1.
pois as duas atitudes têm o real como hori/onle e a ling.uagem co-
mo mediação. A linguagem é obsuículo. 11\1C:lminl1o do real. f.lJ:1S
( A criaçüo liter<Íria é um processo que tem dois p,ólos:. 0. es- é também possibilidade de fund:í-Io. Fora da ordem da lingua~em.
lerilor c o Ieilor. Â obra literária só cXlste. de falo (' IIldeflnlda- o real é apenas C'IOS. Como lembra Oct:l\'jo 1',1/. "a palaHa não S(l
\mente, enquanto recriada pela leitura. ofício que deve ser tão ali- diz o mundo. 'mas tamb<5m o funda - ou II tr:Jnsforma", Pre-
'vo quanto o do escritor. tendendo subslituir o real ou. pelo contnírio. l'Slll'lh,í-lo. scmpre <5
Nesse processo. o escritor é o deseneadendor. mas não o dono a ele que a literatura se refere. Tanto a fuga CllnlO o mergulho·
bsoiuto, como certo romantismo remancscentc quer fazer crer. obrigam-nos aTcr esse rcal. a question,í-Io e a ITin\'cnt:í-lo.
108 1M
Como todas as atividades humanas (a partir da própria fala),
ali-teratura nasce da vivência da falta e da aspiraçãc à comple-
tud:e. Essa compJetude. a literatura não nos pode dar. O que ela .';'
nos ,pode dar. isso sim. é uma forma de conhecimento que satisfaz:
não )uma verdade abstrata e dada. mas Ullla verdade corporificada
e em obra.
Cls inúmeros saberes carreados pela literatura são meros pre-
textos para um saber maior: o saber lia falta. e a permanente
manute nçào do desejo de supri-Ia. O mundo deixa a desejar, as
palavras estão sempre em falta: a literatura o diz. insistente e ple-
namente.[ IS184]
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110
POEMAS GREGÓRIO DE MATOS “À cidade da Bahia”
“As pombas”
Poeta fui e do áspero destino
Senti bem cedo a mão pesada e dura.
Vai-se a primeira pomba despertada...
Conheci mais tristeza que ventura
Vai-se outra mais... mais outra... enfim dezenas
E sempre andei errante e peregrino.
De pombas vão-se dos pombais, apenas
Raia sanguínea e fresca a madrugada...
Vivi sujeito ao doce desatino
E à tarde, quando a rígida nortada Que tanto engana, mas. tão pouco dura;
Sopra, aos pombais de novo elas, serenas, E ainda choro o rigor da sorte escura,
Ruflando as asas, sacudindo as penas, Se nas dores passadas imagino.
Voltem todas em bando e em revoada...
Porém, como me agora vejo isento
Também dos corações onde abotoam, Dos sonhos que sonhava noite e dia,
Os sonhos, um por um, céleres voam, E só com saudades me atormento;
Como voam as pombas dos pombais;
“O Assinalado”
[Cruz e Sousa]
AUGUSTO DOS ANJOS
Já o verme – este operário das ruínas – De olho na mídia Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
Que o sangue podre das carnificinas O beijo, amigo, é a véspera do escarro.
Come, e à vida em geral declara guerra, A mão que afaga é a mesma que apedreja.
Anda a espreitar meus olhos para roê-los, Se a alguém causa inda pena a tua chaga
E há de deixar-me apenas os cabelos, Apedreja essa mão vil que te afaga.
Na frialdade inorgânica da terra! Escarra nessa boca que te beija!
Antes, o mundo não existia
Ailton Krenak
KRENAK, Ailton. Antes, o mundo não existia. In: NOVAES, Adauto (org.). Tempo e
história. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
POE, Edgar Allan. Poemas e Ensaios. (Trad. Oscar Mendes e Milton Amado). São
Paulo: Globo, 1999. 3. ed. revista.
A Filosofia da Composição
Charles Dickens, numa nota que agora está à minha frente, aludindo a uma análise que
fiz, certa vez, do mecanismo, de Barnaby Rudge, diz "De passagem, sabe que Godwin escre-
veu seu Caleb Williams de trás para diante? Envolveu primeiramente seu herói numa teia de
dificuldades, que formava o segundo volume, e depois, para fazer o primeiro, ficou procu-
rando um modo de explicar o que havia sido feito".
Não posso pensar que esse seja o modo preciso de proceder de Godwin, e, de fato, o que
ele próprio confessa não está completamente de acordo com a idéia do sr. Dickens. Mas o
autor de Caleb Williams era muito bom artista para deixar de perceber a vantagem procedente
de um processo, pelo menos, um tanto semelhante. Nada é mais claro do que deverem todas
as intrigas, dignas desse nome, ser elaboradas em relação ao epílogo, antes que se tente
qualquer coisa com a pena. Só tendo o epílogo constantemente em vista, poderemos dar a um
enredo seu aspecto indispensável de conseqüência, ou causalidade, fazendo com que os
incidentes e, especialmente, o tom da obra tendam para o desenvolvimento de sua intenção.
Há um erro radical, acho, na maneira habitual de construir uma ficção. Ou a história nos
concede uma tese, ou uma é sugerida por um incidente do dia, ou, no melhor caso, o autor
senta-se para trabalhar na combinação de acontecimentos impressionantes, para formar
simplesmente a base da narrativa, planejando, geralmente, encher de descrições, diálogos ou
comentários autorais todas as lacunas do fato ou da ação que se possam tomar aparentes, de
página a página.
Eu prefiro começar com a consideração de um efeito. Mantendo sempre a originalidade
em vista, pois é falso a si mesmo quem se arrisca a dispensar uma fonte de interesse tão
evidente e tão facilmente alcançável, digo-me, em primeiro lugar: "Dentre os inúmeros
efeitos, ou impressões a que são suscetíveis o coração, a inteligência ou, mais geralmente, a
alma, qual irei eu, na ocasião atual escolher?" Tendo escolhido primeiro um assunto
novelesco e depois um efeito vivo, considero se seria melhor trabalhar com os incidentes ou
com o tom - com os incidentes habituais e o tom especial ou com o contrário, ou com a
especialidade tanto dos incidentes, quanto do tom - depois de procurar em torno de mim (ou
melhor, dentro) aquelas combinações de tom e acontecimento que melhor me auxiliem na
construção do efeito.
Muitas vezes pensei quão interessantemente podia ser escrita uma revista, por um autor
que quisesse, isto é, que pudesse, pormenorizar, passo a passo, os processos pelos quais
qualquer uma de suas composições atingia seu ponto de acabamento. Por que uma publicação
assim nunca foi dada ao mundo é coisa que eu não sei explicar, mas talvez a vaidade dos
autores tenha mais responsabilidade por essa omissão do que qualquer outra causa. Muitos
escritores, especialmente os poetas, preferem ter por entendido que compõem por meio de
urna espécie de sutil frenesi, de intuição estática; e positivamente estremeceriam ante a idéia
de deixar o público dar uma olhadela, por trás dos bastidores, para as rudezas vacilantes e
trabalhosas do pensamento, para os verdadeiros propósitos só alcançados no último instante,
para os inúmeros relances de idéias que não chegam à maturidade da visão completa, para as
imaginações plenamente amadurecidas e repelidas em desespero como inaproveitáveis, para
as cautelosas seleções e rejeições, as dolorosas emendas e interpolações; numa palavra, para
as rodas e rodinhas, os apetrechos de mudança no cenário, as escadinhas e os alçapões do
palco, as penas de galo, a tinta vermelha e os disfarces postiços que, em noventa e nove por
cento dos casos, constituem a característica do histrião literário.
Bem sei, de outra parte, que de modo algum é comum o caso em que um autor esteja
absolutamente em condições de reconstituir os passos pelos quais suas conclusões foram
atingidas. As sugestões, em geral tendo-se erguido em tumulto, são seguidas e esquecidas de
maneira semelhante.
Quanto a mim, nem simpatizo com a repugnância acima aludida nem1 em qualquer
tempo, tive a menor dificuldade em relembrar os passos progressivos de qualquer de minhas
composições; e, desde que o interesse de uma análise, ou reconstrução, tal como a que tenho
considerado um desiderato, é inteiramente independente de qualquer interesse real ou
imaginário na coisa analisada, não se deve encarar como falta de decoro de minha parte,
mostrar o modus operandi pelo qual uma de minhas próprias obras se completou. Escolhi “O
Corvo”, como a mais geralmente conhecida. É meu desígnio tornar manifesto que nenhum
ponto de sua composição se refere ao acaso, ou à intuição, que o trabalho caminhou, passo a
passo, até completar-se, com a precisão e a seqüência rígida de um problema matemático.
Deixamos de parte, por ser sem importância para o poema per se, a circunstância, ou
digamos, a necessidade que, em primeiro lugar, deu origem à intenção de compor um poema
que, a um tempo, agradasse ao gosto do público e da crítica.
Comecemos, pois, a partir dessa intenção.
A consideração inicial foi a da extensão. Se alguma obra literária é longa demais para
ser lida de uma assentada, devemos resignar-nos a dispensar o efeito imensamente importante
que se deriva da unidade de impressão, pois, se se requerem duas assentadas, os negócios do
mundo interferem e tudo o que se pareça com totalidade é imediatamente destruído. Mas,
visto como, ceteris paribus, nenhum poeta pode permitir-se dispensar qualquer coisa que
possa auxiliar seu intento, resta a ver se há, na extensão, qualquer vantagem que
contrabalance a perda de unidade resultante. Digo logo que não há. O que denominamos um
poema longo é, de fato, apenas a sucessão de alguns curtos; isto é, de breves eleitos poéticos.
É desnecessário demonstrar que um poema só o é quando emociona, intensamente, elevando a
alma; e todas as emoções intensas, por uma necessidade psíquica, são breves. Por essa razão,
pelo menos metade do Paraíso Perdido é essencialmente prosa, pois uma sucessão de
emoções poéticas se intercala, inevitavelmente, de depressões correspondentes; e o conjunto
se vê privado, por sua extrema extensão, do vastamente importante elemento artístico, a
totalidade, ou unidade de efeito.
Parece evidente, pois, que há um limite distinto, no que se refere à extensão para todas as
obras de arte literária, o limite de uma só assentada, e que embora em certas espécies de
composição em prosa, tais como Robinson Crusoe (que não exige unidade), esse limite pode
ser vantajosamente superado, nunca poderá ser ele ultrapassado convenientemente por um
poema. Dentro desse limite, a extensão de um poema deve ser calculada, para conservar
relação matemática com seu mérito; em outras palavras, com a emoção ou elevação; ou ainda
em outros termos, com o grau de verdadeiro efeito poético que ele é capaz de produzir. Pois é
claro que a brevidade deve estar na razão direta da intensidade do efeito pretendido, e isto
com uma condição, a de que certo grau de duração é exigido, absolutamente1 para a produção
de qualquer efeito.
Tendo em vista essas considerações, assim como aquele grau de excitação, que eu não
colocava acima do gosto popular nem abaixo do gosto crítico, alcancei logo o que imaginei
ser a extensão, conveniente para meu pretendido poema: uma extensão de cerca de cem
versos. De fato, ele tem cento e oito.
Meu pensamento seguinte referiu-se à escolha de uma impressão, ou efeito, a ser obtido;
e aqui bem posso observar que, através de toda a elaboração, tive firmemente em vista o
desejo de tornar a obra apreciável por todos. Seria levado longe demais de meu assunto
imediato, se fosse demonstrar um ponto sobre o qual tenho repetidamente insistido e que,
entre poetas, não tem a menor necessidade de demonstração; refiro-me ao ponto de que a
Beleza é a única província legítima do poema. Poucas palavras, contudo, para elucidar meu
verdadeiro pensamento, que alguns de meus amigos tiveram inclinação para interpretar mal.
O prazer que seja ao mesmo tempo o mais intenso, o mais enlevante e o mais puro é, creio eu,
encontrado na contemplação do belo. Quando, de fato, os homens falam de Beleza, querem
exprimir, precisamente, não uma qualidade, como se supõe, mas um efeito; referem-se, em
suma, precisamente àquela intensa e pura elevação da alma - e não da inteligência ou do
coração - de que venho falando e que se experimenta em conseqüência da contemplação do
Belo. Ora, designo a Beleza como a província do poema, simplesmente porque é evidente
regra de arte que os efeitos deveriam jorrar de causas diretas, que os objetivos deveriam ser
alcançados pelos meios melhor adaptados para atingi-los. E ninguém houve ainda bastante
tolo, para negar que a elevação especial a que aludi, é mais prontamente atingida num poema.
Quanto ao objetivo Verdade, ou a satisfação do intelecto, e ao objetivo Paixão, ou a excitação
do coração, são eles muito mais prontamente atingíveis na prosa, embora também, até certa
extensão, na poesia. A Verdade, de fato, demanda uma precisão, e a Paixão uma familiaridade
(o verdadeiramente apaixonado me compreenderá), que são inteiramente antagônicas daquela
Beleza que, asseguro, é a excitação ou a elevação agradável da alma. De modo algum se
segue, de qualquer coisa aqui dita, que a paixão e mesmo a verdade não possam ser
introduzidas, proveitosamente introduzidas até, num poema, porque elas podem servir para
elucidar ou auxiliar o efeito geral, como as discordâncias em música, pelo contraste; mas o
verdadeiro artista sempre se esforçara, em primeiro lugar, para harmonizá-las, na submissão
conveniente ao alvo predominante, e, em segundo lugar, para revesti-las, tanto quanto
possível, daquela Beleza que é a atmosfera e a essência do poema.
Encarando, então, a Beleza como a minha província, minha seguinte questão se referia ao
tom de sua mais alta manifestação, e todas as experiências têm demonstrado que esse tom é o
da tristeza. A beleza de qualquer espécie, em seu desenvolvimento supremo, invariavelmente
provoca na alma sensitiva as lágrimas. A melancolia é, assim, o mais legitimo de todos os
tons poéticos.
Estando assim determinadas a extensão, a província e o tom, entreguei-me à indução
normal, a fim de obter algum efeito artístico agudo que me pudesse servir de nota-chave na
construção do poema, algum eixo sobre o qual toda a estrutura devesse girar. Passando
cuidadosamente em revista todos os efeitos artísticos usuais, ou, mais propriamente,
situações, no sentido teatral não deixei de perceber de imediato que nenhum tinha sido tão
universalmente empregado como o do refrão. A universalidade desse emprego bastou para me
assegurar de seu valor intrínseco e evitou-me a necessidade de submetê-lo à análise.
Considerei-o, contudo, em relação a sua suscetibilidade de aperfeiçoamento e vi logo que
ainda se achava num estado primitivo. Como é comumente usado, o refrão poético, ou
estribilho, não só se limita ao verso lírico, mas depende, para impressionar, da força da
monotonia, tanto no som., como na idéia. O prazer somente se extrai pelo sentido de
identidade, de repetição. Resolvi fazer diversamente, e assim elevar o efeito, aderindo em
geral à monotonia do som, porém continuamente variando na da idéia: isto é, decidi produzir
continuamente novos efeitos, pela variação da aplicação do estribilho, permanecendo este, na
maior parte das vezes, invariável.
Assentados tais pontos, passei a pensar sobre a natureza de meu refrão. Desde que sua
aplicação deveria ser repetidamente variada, era claro que esse refrão deveria ser breve, pois
haveria insuperáveis dificuldades na aplicação de qualquer sentença extensa. Em proporção à
brevidade da sentença estaria, naturalmente, a facilidade da variação. Isso imediatamente me
levou a uma só palavra como o melhor refrão.
Suscitou-se, então, a questão do caráter da palavra. Tendo-me inclinado por um refrão, a
divisão do poema em estância surgia, naturalmente, como corolário, formando o refrão o
fecho de cada estância. Não cabia dúvida de que tal fecho, para ter força, devia ser sonoro e
suscetível de ênfase prolongada; e tais considerações inevitavelmente me levaram ao o
prolongado, como a mais sonora vogal, em conexão com o r como a consoante mais
aproveitável.
Ficando assim determinado o som do refrão, tornou-se necessário escolher uma palavra
que encerrasse esse som e, ao mesmo tempo, se relacionasse o mais possível com a
melancolia predeterminada corno o tom do poema. Em tal busca, teria sido absolutamente
impossível que escapasse a palavra "never more". De fato, foi ela a primeira que se
apresentou.
O desiderato seguinte era um pretexto para o uso continuo da palavra "never more"
(nunca mais). Observando a dificuldade que já encontrara em inventar uma razão
suficientemente plausível para sua continua repetição, não deixei de perceber que essa
dificuldade nascia somente da presunção de que a palavra devia ser contínua ou
monotonamente pronunciada por um ser humano. Não deixei de perceber, em suma, que a
dificuldade estava em conciliar essa monotonia com o exercício da razão por parte da criatura
que repetisse a palavra. Daí, pois, ergueu-se imediatamente a idéia de uma criatura não
racional, capaz de falar, e muito naturalmente foi sugerido de início, a de um papagaio, que
foi logo substituída pela de um Corvo, como igualmente capaz de falar e infinitamente mais
em relação com o tom pretendido.
Eu já havia chegado à idéia de um Corvo, a ave do mau agouro, repetindo
monotonamente a expressão "Nunca mais", na conclusão de cada estância de um poema de
tom melancólico e extensão de cerca de cem linhas. Então, jamais perdendo de vista o
objetivo - o superlativo ou a perfeição em todos os pontos -, perguntei-me: "De todos os
temas melancólicos, qual, segundo a compreensão universal da humanidade, é o mais
melancólico?" A Morte - foi a resposta evidente. "E quando", insisti, "esse mais melancólico
dos temas se torna o mais poético?" Pelo que já explanei, um tanto prolongadamente, a
resposta também aí era evidente: “Quando ele se alia, mais de perto, à Beleza; a morte, pois,
de uma bela mulher é, inquestionavelmente, o tema mais poético do mundo e, igualmente, a
boca mais capaz de desenvolver tal tema é a de um amante despojado de seu amor”.
Tinha, pois, de combinar as duas idéias, a de um amante lamentando sua morta amada e a
de um Corvo continuamente repetindo as palavras "Nunca mais". E tinha de combiná-las
tendo em mente meu propósito de variar, a cada vez, a aplicação da palavra repetida, mas a
única maneira inteligível de tal combinação era a de imaginar o Corvo empregando a palavra,
em resposta às perguntas do amante. E então aí vi imediatamente, a oportunidade concedida
para o efeito do qual eu tinha estado dependente, isto é, o efeito da variação da aplicação. Vi
que poderia fazer da primeira pergunta, apresentada pelo amante - a primeira pergunta a que o
Corvo deveria responder "Nunca mais" -, que poderia fazer dessa primeira pergunta um lugar-
comum da segunda uma expressão menos comum, da terceira ainda menos, e assim por
diante, até que o amante, arrancado de sua displicência primitiva, pelo caráter melancólico da
própria palavra, pela sua freqüente repetição e pela consideração da sinistra reputação da ave
que a pronunciava, fosse afinal excitado à superstição e loucamente fizesse perguntas de
espécie muito diversa. Perguntas cujas respostas lhe interessavam apaixonadamente ao
coração, fazendo-as num misto de superstição e daquela espécie de desespero que se deleita
na própria tortura, fazendo-as não porque propriamente acreditasse no caráter profético, ou
demoníaco da ave (que a razão lhe diz estar apenas repetindo uma lição aprendida
rotineiramente), mas porque experimentaria um frenético prazer em organizar suas perguntas
para recebei, do esperado "Nunca mais", a mais deliciosa, porque a mais intolerável, das
tristezas. Percebendo a oportunidade que assim se me oferecia, ou, mais estritamente, que se
me impunha no desenrolar da composição, estabeleci na mente o climax, ou a pergunta con-
clusiva: aquela pergunta de que o "Nunca mais" seria, pela última vez, a resposta; aquela
pergunta em resposta à qual o "Nunca mais" envolveria a máxima concentração possível de
tristeza e de desespero.
Aí, então, pode-se dizer que o poema teve seu começo pelo fim por que devem começar
todas as obras de arte, porque foi nesse ponto de minhas considerações prévias que, pela
primeira vez, tomei do papel e da pena para compor a estância:
Nas duas estâncias que se seguem, esse desígnio é ainda mais evidentemente
solicitado:
Daí para a frente, o amante não mais zomba, não mais vê qualquer coisa de fantástico na
conduta do Corvo. Fala dele como “horrendo, torvo, ominoso e antigo”, sentindo "da ave,
incandescente, o olhar" queimá-lo "fixamente". Essa revolução do pensamento, ou da
imaginação, da parte do amante, destina-se a provocar uma semelhante da parte do leitor,
levar o espírito a uma disposição própria para o desenlace, que é agora completado tão rápida
e diretamente quanto possível.
Com o desenlace conveniente, com a resposta do Corvo, "Nunca mais", à pergunta final
do amante, sobre se ele encontraria sua amada em um outro mundo, o poema, em sua fase
evidente, que é a da simples narrativa, pode ser considerado como completo. Até aí, tudo está
dentro dos limites do explicável do real. Um corvo, tendo aprendido rotineiramente a dizer
apenas "Nunca mais" e tendo escapado à vigilância de seu dono, é levado à meia-noite, em
meio à violência de uma tempestade, a buscar entrada numa janela, pela qual se vê ainda a luz
brilhar: a janela do quarto de um estudante, ocupado entre folhear um volume e sonhar com
uma adorada amante morta. Sendo aberta a janela, ao tumultuar das asas da ave, esta pousa no
sítio mais conveniente, fora do alcance imediato do estudante, que, divertido pelo incidente e
pela extravagância das maneiras do visitante, pergunta-lhe, por brincadeira e sem esperar
resposta, por seu nome. O Corvo, interrogado, responde com seu costumeiro "Nunca mais",
frase que logo encontra eco no coração melancólico do estudante, que, dando expressão, em
voz alta, a certos pensamentos sugeridos pelo momento, é de novo surpreendido pela
repetição do "Nunca mais" do Corvo. O estudante adivinha então a real causa do
acontecimento, mas é impelido, como já explanei, pela sede humana de autotortura e, em
parte, pela superstição, a propor questões tais à ave que só lhe trarão, ao amante, o máximo da
volúpia da tristeza, graças á esperada frase "Nunca mais". Levando até o extremo essa
autotortura, a narração, naquilo que denominei sua fase primeira ou evidente, tem um fim
natural e até ai não ultrapassou os limites do real.
Mas nos assuntos assim manejados, por mais agudamente que o sejam, por mais vivas
riquezas de incidentes que possuam, há sempre certa dureza ou nudez que repele o olhar
artístico. Duas coisas são invariavelmente requeridas: primeiramente, certa soma de
complexidade, ou, mais propriamente, de adaptação; e, em segundo lugar, certa soma de
sugestividade, certa subcorrente embora indefinida de sentido. Esta última, afinal, é que dá a
uma obra de arte tanto daquela riqueza (para tirar da conversação cotidiana um termo eficaz)
que gostamos demais de confundir com o ideal. É o excesso do sentido sugerido1 é torná-lo a
corrente superior, em vez da subcorrente do tema, que transforma em prosa (e prosa da mais
chata espécie) a assim chamada poesia dos assim chamados transcendentalistas.
Mantendo essas opiniões, ajuntei duas estâncias que concluem o poema, sendo sua
sugestividade destinada a penetrar toda a narrativa que as precede. A subcorrente de
significação torna-se primeiramente evidente no verso
Deve-se observar que as palavras "o peito" envolvem a primeira expressão metafórica no
poema. Elas, com a resposta "Nunca mais", dispõem a mente a buscar uma moral em tudo
quanto foi anteriormente narrado. O leitor começa agora a encarar o Corvo como simbólico,
mas não é senão nos versos finais da última estância que se permite distintamente ser vista a
intenção de torná-lo um emblema da Recordação dolorosa e infindável:
E lá ficou! Hirto, sombrio, ainda hoje o vejo, horas
a fio, sobre o alvo busto de Minerva, inerte sempre
[em meus umbrais.
No seu olhar medonho e enorme o anjo do mal, em
[sonhos, dorme,
e a luz da lâmpada, disforme, atira ao chão a sua
[sombra.
Nela, que ondula sobre a alfombra, está minha alma e,
[presa à sombra,
Não há de erguer-se, ai! nunca mais!
Ao lado, o tabelião, na blusa de pijama e chinelos, jogava gamão com o farmacêutico, figura
seca e encurvada, num grande nariz.
Dr. Antero tornou a estender a vista sobre a praça. Tirou o charuto melado da boca, cuspindo
peles de fumo:
— Há vinte anos que conheço esta terra, e não muda! Já vinte! A mesma coisa. Agora pior,
parece.
— Muito bem!
1
Dr. Antero falava por fado. No momento até aprovava aquela falta de progresso: saturado
da capital, todo ele repousava na paz dormente do lugarejo.
O tabelião lembrou-se de que estava na hora do café, e dali mesmo, curvando-se um pouco,
gritou para dentro de casa através do corredor úmido e escuro:
— Vai já.
Os olhos ergueram-se do gamão e o dono da casa girou a cabeça para ver melhor:
— Vem mesmo.
Um velho mirrado e de pele escura puxava um jumento pelo cabresto, entre dois soldados
do destacamento. Atrás vinham alguns moleques, guardando distância, já enxotados pelos
soldados.
— Que há?
— Doutor, me solte pelo amor de Deus! Eu peço a vosmecê pela sua bondade. Não fiz nada,
acredite.
Esqueceu-se o jogo. Já havia gente nas calçadas e janelas das outras casas. D. Belinha trouxe
a bandeja com café e ficou esquecida também, nas pontas dos pés, para olhar por cima do ombro
de Dr. Antero. Alguém derrubou o tabuleiro de gamão: bozó, pedras e dados por baixo das cadeiras.
2
— Um momento. Mas, afinal? — tornou Dr. Antero.
— Mas me chamo Inácio2! Que eu não posso atender por um nome desse.
Houve risos em volta e os olhos se detiveram num 3lobinho que quase cobria a vista
esquerda do velho.
— De quem?
— Meu velho, pra que você fez isso! — disse Dr. Antero, já sorvendo o café e perdendo
um pouco do primeiro entusiasmo.
— Não tava no meu propósito. Eu peço aos senhores. Me soltem, que eu não tenho
paciência de ser preso. Nunca fui. É o que eu digo aos meninos lá em casa.
Riram muito com a frase. O tabelião divertia-se, vermelho e todo sacudido pela novidade.
Sungava as calças com os cotovelos e comentava em volta de um para outro:
3
— Hem? Hem? Que tal? Esta é boa! “Não tenho paciência...” Como é que ele diz?
— Eles soltam logo, meu velhinho — adiantou D. Belinha, fazendo sinal ao marido para
conter-se.
O velho apanhava numa das mãos o chapéu de palha desfiado nas abas, o cabresto do
jumento enrolado na outra. Pés descalços. Os cotos de unhas negros, comidos pela terra, lembravam
nós. Calcanhares gretados. As calças de morim ralo e sujo, curtas nas pernas e com joelheiras. No
pescoço fino e de pele engelhada uma medalha barata num cordão sebento. Os olhos miúdos e
escuros confundiam-se com a pele, lá dentro, um deles diminuído pelo lobinho.
Era grande o seu ar de aflição, dirigindo-se a todos os lados, com apelos gerais:
Repetia-se, pedinte:
Voltavam a rir:
- Ora, veja!
O jumento4 soprava forte nas narinas, baixando a cabeça, ou dava com a pata traseira para
tanger as moscas que lhe mordiam a pisadura na cilha.
O soldado mais novo insistia em que a prisão fosse feita. O outro quase não falava.
Limitava-se a soltar cusparadas de lado: nariz vermelho, gordo, o casquete colocado ridiculamente
no alto da cabeça, o cinto frouxo na barriga. Piscava e comia os beiços, num tique comum aos que
bebem. Dava a impressão de que tudo aquilo para ele era uma grande maçada.
Obedecia.
O grupo retomou a marcha. Já iam distantes, e aqui na calçada o tabelião, rindo e enquanto
procurava pelo chão um dos dados:
4
— “Me soltem, que eu não tenho paciência de ser preso.”
— É assim mesmo. Talvez ele tenha bebido, e foi violento — concluiu Dr. Antero, voltando
à espreguiçadeira.
Vindo da luz, Inácio enxergava pouco ali dentro. Apertava os olhos, pondo a cabeça de lado
para orientar-se. Acocorou-se a um canto, onde os olhos miúdos brilhavam. Por fim, foi-se
acostumando à sombra: a cela era espaçosa e alta, chão de tijolo úmido, em cima um travejamento
forte e antigo. Passou o dedo no tijolo e provou o barro vermelho, supondo que ali tinham guardado
sal noutros tempos. Descobriu um caixão perto da janela, e acomodou-se melhor. Revia os seus: a
filha, a mulher e os meninos. Dizia-lhes sempre: “Nunca fui preso, e filho meu não me dá esse
desgosto. Está no bom comportamento de cada um.” Não sabia por que, insistia o rosto da filha,
que tinha os seus olhos pequenos, o cabelo apanhado num cocó. Encarregava-se de levar-lhe o
prato de comida5 no roçado. Ficavam os dois no canto da cerca, sob a sombra do cajueiro, enquanto
ele almoçava. O rosto da filha agora encarava-o de perto, em cima, sem compreender, o olhar
espantado.
Levantou-se e deu várias passadas na cela. Parou em frente a janela. Os olhos ficavam no
plano do peitoril, e podia avistar o jumento, que cochilava paciente, o cabresto muito curto, os
caçuás ainda na cangalha. De quando em quando dava com a pata traseira para a frente, tangendo
varejeiras.
Ao fundo, a calçada alta, com batentes, de um trecho do mercado. O sol declinava, filtrando-
se horizontal e vermelho na luz branda da tarde, e punha na parede da cela retângulos da grade.
5
Inácio aproximou o caixão da janela e alçou-se até o peitoril. O menino que ia passando em
frente à cadeia as sustou-se vendo aquele braço escuro a acenar-lhe entre as barras de ferro:
— Hem?
— Que é?
— Olhe, solte ali aquele jumento. Ele é meu. Quer se deitar e não pode. Tire o cabresto e
me dê.
— Vai embora.
Quando no outro dia pela manhã o soldado empurrou a porta pesada, Inácio pendia
enforcado da grade da janela, o nó apertando-se no terceiro varão, o caixão caído ao lado.
—Oh!
O rosto estava arroxeado e intumescido, a língua de fora, os pés, esticados para baixo,
roçavam a parede. O lobinho parecia tragicamente maior.
Presos, soldados, gente das casas vizinhas e, dentro em pouco, uma multidão à porta da
cadeia.
A frase tomou conta das consciências. Pelas nove horas, o tabelião, ao assinar uma escritura,
6
ainda repetia, arrastando a pena no papel:
Já o trem de Dr. Antero partira. Tentou a leitura de uma revista, que atirou de lado. Ergueu-
se, foi ao carro- restaurante, tornou à sua cadeira. Olhou pela janela. Um açude, bois que pastavam,
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carnaubeiras e, logo a seguir, a ponte de ferro. As rodas do carro matraqueavam nos trilhos num
ritmo que reproduzia a frase inesperada:
— “Me soltem, que eu não tenho paciência de ser preso. Me soltem, que eu não tenho
paciência de ser preso.”
7
Tassos Lycurgo
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Sem alegria nem cuidado, nosso pai encalcou o chapéu e decidiu um adeus
para a gente. Nem falou outras palavras, não pegou matula e trouxa, não fez a alguma
recomendação. Nossa mãe, a gente achou que ela ia esbravejar, mas persistiu
somente alva de pálida, mascou o beiço e bramou: — "Cê vai, ocê fique, você nunca
volte!" Nosso pai suspendeu a resposta. Espiou manso para mim, me acenando de vir
também, por uns passos. Temi a ira de nossa mãe, mas obedeci, de vez de jeito. O
rumo daquilo me animava, chega que um propósito perguntei: — "Pai, o senhor me
leva junto, nessa sua canoa?" Ele só retornou o olhar em mim, e me botou a bênção,
com gesto me mandando para trás. Fiz que vim, mas ainda virei, na grota do mato,
para saber. Nosso pai entrou na canoa e desamarrou, pelo remar. E a canoa saiu se
indo — a sombra dela por igual, feito um jacaré, comprida longa.
Nosso pai não voltou. Ele não tinha ido a nenhuma parte. Só executava a
invenção de se permanecer naqueles espaços do rio, de meio a meio, sempre dentro
da canoa, para dela não saltar, nunca mais. A estranheza dessa verdade deu para.
estarrecer de todo a gente. Aquilo que não havia, acontecia. Os parentes, vizinhos e
conhecidos nossos, se reuniram, tomaram juntamente conselho.
Nossa mãe, vergonhosa, se portou com muita cordura; por isso, todos
pensaram de nosso pai a razão em que não queriam falar: doideira. Só uns achavam o
entanto de poder também ser pagamento de promessa; ou que, nosso pai, quem sabe,
por escrúpulo de estar com alguma feia doença, que seja, a lepra, se desertava para
outra sina de existir, perto e longe de sua família dele. As vozes das notícias se dando
pelas certas pessoas — passadores, moradores das beiras, até do afastado da outra
banda — descrevendo que nosso pai nunca se surgia a tomar terra, em ponto nem
canto, de dia nem de noite, da forma como cursava no rio, solto solitariamente. Então,
pois, nossa mãe e os aparentados nossos, assentaram: que o mantimento que tivesse,
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No que num engano. Eu mesmo cumpria de trazer para ele, cada dia, um
tanto de comida furtada: a idéia que senti, logo na primeira noite, quando o pessoal
nosso experimentou de acender fogueiras em beirada do rio, enquanto que, no
alumiado delas, se rezava e se chamava. Depois, no seguinte, apareci, com rapadura,
broa de pão, cacho de bananas. Enxerguei nosso pai, no enfim de uma hora, tão
custosa para sobrevir: só assim, ele no ao-longe, sentado no fundo da canoa,
suspendida no liso do rio. Me viu, não remou para cá, não fez sinal. Mostrei o de
comer, depositei num oco de pedra do barranco, a salvo de bicho mexer e a seco de
chuva e orvalho. Isso, que fiz, e refiz, sempre, tempos a fora. Surpresa que mais tarde
tive: que nossa mãe sabia desse meu encargo, só se encobrindo de não saber; ela
mesma deixava, facilitado, sobra de coisas, para o meu conseguir. Nossa mãe muito
não se demonstrava.
Mandou vir o tio nosso, irmão dela, para auxiliar na fazenda e nos negócios.
Mandou vir o mestre, para nós, os meninos. Incumbiu ao padre que um dia se
revestisse, em praia de margem, para esconjurar e clamar a nosso pai o 'dever de
desistir da tristonha teima. De outra, por arranjo dela, para medo, vieram os dois
soldados. Tudo o que não valeu de nada. Nosso pai passava ao largo, avistado ou
diluso, cruzando na canoa, sem deixar ninguém se chegar à pega ou à fala. Mesmo
quando foi, não faz muito, dos homens do jornal, que trouxeram a lancha e
tencionavam tirar retrato dele, não venceram: nosso pai se desaparecia para a outra
banda, aproava a canoa no brejão, de léguas, que há, por entre juncos e mato, e só
ele conhecesse, a palmos, a escuridão, daquele.
Minha irmã se casou; nossa mãe não quis festa. A gente imaginava nele,
quando se comia uma comida mais gostosa; assim como, no gasalhado da noite, no
desamparo dessas noites de muita chuva, fria, forte, nosso pai só com a mão e uma
cabaça para ir esvaziando a canoa da água do temporal. Às vezes, algum conhecido
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nosso achava que eu ia ficando mais parecido com nosso pai. Mas eu sabia que ele
agora virara cabeludo, barbudo, de unhas grandes, mal e magro, ficado preto de sol e
dos pêlos, com o aspecto de bicho, conforme quase nu, mesmo dispondo das peças de
roupas que a gente de tempos em tempos fornecia.
Nem queria saber de nós; não tinha afeto? Mas, por afeto mesmo, de
respeito, sempre que às vezes me louvavam, por causa de algum meu bom
procedimento, eu falava: — "Foi pai que um dia me ensinou a fazer assim..."; o que
não era o certo, exato; mas, que era mentira por verdade. Sendo que, se ele não se
lembrava mais, nem queria saber da gente, por que, então, não subia ou descia o rio,
para outras paragens, longe, no não-encontrável? Só ele soubesse. Mas minha irmã
teve menino, ela mesma entestou que queria mostrar para ele o neto. Viemos, todos,
no barranco, foi num dia bonito, minha irmã de vestido branco, que tinha sido o do
casamento, ela erguia nos braços a criancinha, o marido dela segurou, para defender
os dois, o guarda-sol. A gente chamou, esperou. Nosso pai não apareceu. Minha irmã
chorou, nós todos aí choramos, abraçados.
Minha irmã se mudou, com o marido, para longe daqui. Meu irmão resolveu
e se foi, para uma cidade. Os tempos mudavam, no devagar depressa dos tempos.
Nossa mãe terminou indo também, de uma vez, residir com minha irmã, ela estava
envelhecida. Eu fiquei aqui, de resto. Eu nunca podia querer me casar. Eu permaneci,
com as bagagens da vida. Nosso pai carecia de mim, eu sei — na vagação, no rio no
ermo — sem dar razão de seu feito. Seja que, quando eu quis mesmo saber, e firme
indaguei, me diz-que-disseram: que constava que nosso pai, alguma vez, tivesse
revelado a explicação, ao homem que para ele aprontara a canoa. Mas, agora, esse
homem já tinha morrido, ninguém soubesse, fizesse recordação, de nada mais. Só as
falsas conversas, sem senso, como por ocasião, no começo, na vinda das primeiras
cheias do rio, com chuvas que não estiavam, todos temeram o fim-do-mundo, diziam:
que nosso pai fosse o avisado que nem Noé, que, por tanto, a canoa ele tinha
antecipado; pois agora me entrelembro. Meu pai, eu não podia malsinar. E apontavam
já em mim uns primeiros cabelos brancos.
Sou homem de tristes palavras. De que era que eu tinha tanta, tanta culpa?
Se o meu pai, sempre fazendo ausência: e o rio-rio-rio, o rio — pondo perpétuo. Eu
sofria já o começo de velhice — esta vida era só o demoramento. Eu mesmo tinha
achaques, ânsias, cá de baixo, cansaços, perrenguice de reumatismo. E ele? Por quê?
Devia de padecer demais. De tão idoso, não ia, mais dia menos dia, fraquejar do vigor,
deixar que a canoa emborcasse, ou que bubuiasse sem pulso, na levada do rio, para se
despenhar horas abaixo, em tororoma e no tombo da cachoeira, brava, com o
fervimento e morte. Apertava o coração. Ele estava lá, sem a minha tranqüilidade. Sou
o culpado do que nem sei, de dor em aberto, no meu foro. Soubesse — se as coisas
fossem outras. E fui tomando idéia.
Sem fazer véspera. Sou doido? Não. Na nossa casa, a palavra doido não se
falava, nunca mais se falou, os anos todos, não se condenava ninguém de doido.
Ninguém é doido. Ou, então, todos. Só fiz, que fui lá. Com um lenço, para o aceno ser
mais. Eu estava muito no meu sentido. Esperei. Ao por fim, ele apareceu, aí e lá, o
vulto. Estava ali, sentado à popa. Estava ali, de grito. Chamei, umas quantas vezes. E
falei, o que me urgia, jurado e declarado, tive que reforçar a voz: — "Pai, o senhor
está velho, já fez o seu tanto... Agora, o senhor vem, não carece mais... O senhor
vem, e eu, agora mesmo, quando que seja, a ambas vontades, eu tomo o seu lugar,
do senhor, na canoa!..." E, assim dizendo, meu coração bateu no compasso do mais
certo.
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Ele me escutou. Ficou em pé. Manejou remo n'água, proava para cá,
concordado. E eu tremi, profundo, de repente: porque, antes, ele tinha levantado o
braço e feito um saudar de gesto — o primeiro, depois de tamanhos anos decorridos! E
eu não podia... Por pavor, arrepiados os cabelos, corri, fugi, me tirei de lá, num
procedimento desatinado. Porquanto que ele me pareceu vir: da parte de além. E
estou pedindo, pedindo, pedindo um perdão.
Sofri o grave frio dos medos, adoeci. Sei que ninguém soube mais dele. Sou
homem, depois desse falimento? Sou o que não foi, o que vai ficar calado. Sei que
agora é tarde, e temo abreviar com a vida, nos rasos do mundo. Mas, então, ao
menos, que, no artigo da mo rte, peguem em mim, e me depositem também numa
canoinha de nada, nessa água que não pára, de longas beiras: e, eu, rio abaixo, rio a
fora, rio a dentro — o rio.