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Atividade I - Mundos Indígenas

Aluna: Lívia Regina Machado

Fui criada pela minha avó, é dela toda força que carrego comigo, com ela aprendi a fazer
tranças no meu cabelo, a cozinhar, a fazer pães, chás e a não andar descalço no chão frio.
Todos os meus costumes, minhas crenças foram aprendidas com ela, os causos que ela
contava a mim e ao meu irmão eram histórias fantásticas e perpassavam desde a sua
infância até a criação de minha mãe e tios. Vó Regina, ou melhor, mãe Regina, foi minha
referência de mulher, de mãe e de força. A algum tempo, comecei a repensar minha
relação com a minha avó para além de uma gratidão pela criação e pelos ensinamentos,
questionamentos que suscitou uma curiosidade sobre minhas origens, e encontrei
recentemente em um texto de Jaider Esbel Makuxi para além da curiosidade, uma sede
em identificar e ressignificar meu papel como mulher preta na sociedade, pois segundo
Makuxi (2022, p.18) ‘’Rastrear suas raízes mais profundas é um exercício que se faz
quando se decide pela hora de enfrentar de fato as camadas de soterramento que a
tentativa de apagamento depositou sobre os corpos coletivos.’’
A partir desta leitura então, comecei a me lembrar dos ensinamentos de minha avó e a
me perguntar de fato quais são minhas raízes, para mim mãe Regina é toda a minha
ancestralidade, carrego comigo seu nome, seus ensinamentos e costumes e para além
disso a minha autoidentificação como mulher preta. Dessa maneira, ao adentrar a
exposição e conhecer um pouco mais sobre o universo Xacriabá e suas relações com o
território fui diretamente transportada a minha infância, aos chás de tancagem que minha
avó me dava quando a garganta estava doendo, aos refogados de capim do mato que fazia
no almoço, ela sempre sabia qual planta era boa para quê e exatamente onde ela cresceria
em nosso quintal e nos lotes vagos pela região. A sensorialidade é aflorada pelo toque e
pelo olfato ao me deparar com ervas e raízes medicinais no espaço, minha mãe Regina
nos dava as coordenadas e eu e meu irmão corríamos para o meio do mato para buscar
aquilo que seria um chá milagroso, um refogado ou até mesmo para espantar o mau-
olhado. O momento em que pude tocar e sentir o cheiro dessas plantas me foi muito
querido, mãe Regina sofreu a vida inteira de problemas de visão por conta de doenças
como o glaucoma e a catarata, então ela sempre recorreu muito ao cheiro e ao toque para
identificar qual era a planta certa para determinada preparação. Memórias tão queridas
que só agora depois de adulta consigo identifica-las como parte de uma simbologia maior,
e ressignificá-las com uma maturidade maior e de um costume mais amplo e de
questionar: onde será que mãe Regina aprendeu isso? Será que em sua pobre infância
maltratada pelo trabalho excessivo na roça e sem estudos ela foi ensinada quais plantas
eram boas e onde encontra-las? Que deixar o chinelo virado traz mal agouro e morte a
mãe? Quem a ensinou? Onde ela aprendeu?
Após à visita a exposição mundos indígenas e em especial ao mundo dos Xacriabás e
suas relações com o corpo e o territórios estes questionamentos não me abandonam, só se
intensificaram, poderia mãe Regina ter aprendido diretamente com eles? Ou alguém de
seu meio familiar poderia ter aprendido com eles e repassado estes costumes? Ouve
alguma interação dela com alguém deste povo? Não pretendo de forma alguma forçar
algum tipo de parentesco ou de contato direto com esses povos, e nem relativizar seus
costumes, ao contrário estes são tão singulares e específicos, mas estão muitas vezes
introduzidos em nossa realidade, mas não damos a devida importância e quando
procuramos entende-los e quase sempre de um ponto de vista hegemônico. A relação que
tive com minha avó sempre foi muito próxima, sempre quis aprender tudo que ela poderia
me ensinar, ela era meu guia e para além disso, a relação com pessoas mais velhas a mim
sempre foi muito confortável e agradável. Ao ler o texto do catálogo a autora Celia
Xakriabá traz essa relação com os mais velhos, muito evidenciada em sua fala ao
relacionar com as pessoas mais velhas, seu sentimento de pertencimento para com o
território e para além, com o movimento indígena.

Foto: Mãe Regina (2020) Foto: Mãe Regina (2021)


Adiante, quando a exposição traz a cerâmica para além de um objeto, mas como uma
extensão do território, questionei novamente a relação que mãe Regina tinha com seus
objetos de estima, como vasos, louças e cumbucas, uma delas em especial dada a ela pela
mãe quando se casou era feita do fruto de árvore. Essa cumbuca, era um objeto expositivo
na cozinha de mãe Regina, e quando perguntávamos o que era ou para que servia ela nos
contava a mesma história, que pouco antes do seu casamento, sua mãe colheu o fruto da
cumbuca próximo de casa e o preparou de forma que fosse um presente para ela utilizar
em sua nova casa. Mãe Regina até utilizou no começo, mas logo depois a guardou como
recordação e lembrança da sua época de solteira em que morava com sua mãe. Lendo o
texto de Célia, entendi que essa cumbuca carregada de afetividade, representava também
uma passagem de tempo, um acontecimento e um território. Mãe Regina viveu sua
infância e adolescência em Colatina no Espírito santo e sempre nos contava saudosa de
como era o lugar de sua infância, como à terra era boa para plantar, qual época do ano ela
plantava milho com os irmãos e qual época era boa para abater porcos, para além, qual
lua era boa para cortar o cabelo, ou para plantar determinada coisa.
Visitar a exposição mundos indígenas me fez repensar varias dinâmicas familiares e em
minha relação com meu próprio corpo, com a minha ancestralidade representada na figura
de mãe Regina e como o meu mundo interno está em convergência com diversos outros
mundos. Ser e existir vai além de minha singularidade como Lívia Regina, ser Lívia, ser
Regina, ser mulher, ser preta, ser mineira, ser filha, neta, esposa, irmã... Tudo isso me
atravessa e eu continuo me questionando no intuito de me tornar um ser humano melhor
e principalmente honrar a passagem de mãe Regina por este mundo.

Referências:
• MAKUXI, Jaider Esbell. Autodecolonização – uma pesquisa pessoal no além
coletivo. Cadernos do Lepaarq, v. XIX, n.37, p. 17-25, Jan-Jun. 2022.
• Exposição mundos indígenas / (organizadoras) Ana Maria R. Gomes...[et al.]. --
Belo Horizonte: Espaço do Conhecimento UFMG, 2020.

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