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Patioba, arnã mehexó paxixá nokoxi

Uhitué areneá arẽgá sũniatá hamiá bayxú


Haptxôy txuhap ayẽ bugaú muricí
Aymag fappet dxahá amix koxuk noytxanatxá
Ãgwi patioba ãgwi tokerê dxê anehô agwi
Armonẽ mê’á kigeme katubayá
Heruê heruê heruê heruá

Patioba, eu cheguei, vou entrar, alegre


Pular, brincar, dançar bonito
38 Depois vamos assentar ligeiro; silêncio
Tirar os livros para escrever, desenhar, pintar
Balançar essa é a casa da Caipora
Heruê heruê heruê heruá
MEMÓRIA
VIVA, SABERES
E FAZERES
Japira Pataxó

Aprendendo sobre as plantas,


meus parentes e suas histórias
O conhecimento das plantas, saber o modo de colher as folhas e
seus usos, de fazer os preparos e como usar eles, conhecer dos
banhos, saber quais as ervas boas e as venenosas – tudo isso
passou pelas gerações pataxó. Os mais velhos passam isso para
os mais novos, nem sempre explicando. É vivendo perto deles que
esse conhecimento vai passando e entra em nosso espírito. O que
aprendi em minha vida veio dos espíritos e da minha atenção e
curiosidade pelos mais velhos. Sempre gostei de conversar com os 39
mais velhos para ouvir o que eles falavam, de geração para gera-
ção. Eu ouvia suas falas e aquilo incorporava em mim, despertava
algo dentro de mim e os espíritos dos antepassados iam ficando
cada vez mais perto.
Toda vez que falo sobre as plantas ou cuido das pessoas,
esses espíritos se aproximam de mim. Muitas vezes, enquanto
escrevíamos este livro, eu me perdia, os espíritos me tomavam
e iam soprando os conhecimentos, muita coisa não sei como
aprendi. Tem coisa que fazia parte da minha avó e hoje faz parte do
meu espírito. Todas essas pessoas que me ensinaram vivem den-
tro de mim e seus espíritos me acompanham. O caminho que fiz
escrevendo este livro passa a força de todas essas pessoas e do
meu povo. As coisas que estão aqui fazem parte da minha história
e de todos os que me acompanham também.
Minha avó Maria Rosa era uma parteira que todo mundo
procurava para pegar filho e para fazer remédio. Ela viveu na nossa
Aldeia Mãe, Barra Velha, a mais antiga do nosso povo – as aldeias
que existem hoje são todas pedaços dela. Maria Rosa, ou Dona
Neném, sabia cuidar muito bem das crianças. Vinham procurar ela
de toda a região de Barra Velha para fazer parto e para cuidar das
crianças pequenas. Essa minha avó me ensinou muito. Via ela cui-
dando do povo, colhendo os matos. Não é sempre que as crianças
têm interesse em ficar ali perto dos mais velhos, mas eu sempre
fui curiosa com as minhas duas avós, Luzia, mãe do meu pai, e
com a velha Maria Rosa, mãe da minha mãe. Ficava perto delas,
atenta ao que faziam.
Maria Rosa fez a maior parte dos partos daquela região e
quase todos os meus filhos quem pegou foi ela. Quando ela me
ajudava no parto, eu também aprendia. Via o modo dela fazer
e ficava atenta. Aprendia os matos, as massagens, os óleos, as
rezas, a forma de colocar o corpo. Hoje em dia, quando acompa-
nho minhas filhas, noras ou outra mulher da comunidade que vai
ganhar neném no Hospital Luís Eduardo Magalhães, eu as ajudo
muito. Faço quase tudo e ajudo não só as que estou acompa-
nhando, mas também todas que estão por perto. Levo o meu óleo
de amesca, dou conselhos, encaixo o neném e na hora do médico
e da enfermeira, eles só pegam a criança mesmo. Minha avó sabia
ver com suas mãos a altura do bebê na barriga, sabia ajeitar a
criança para ela nascer. Dona Neném tinha esse conhecimento das
parteiras boas, massageava para encaixar o neném na cadeira e
depois sabia desencaixar para ele nascer. Hoje em dia, os médicos,
pelo menos os que conheci, somente tocam para ver a dilatação.
As parteiras cuidam mais do parto e das crianças, as pajés, como
40 eu, podem até saber sobre parto e dos cuidados das crianças, mas
cuidam mais das pessoas crescidas. Por conta dessa minha avó,
mesmo sendo pajé, sei muito dos saberes do parto. Com a minha
outra avó, Luzia, aprendi as rezas: a de espanto, zipra, ventre-caído
e espinhela caída. Acompanhava ela por suas andadas na mata e
aprendi como pegar e ver os matos.
Outra pessoa com quem muito aprendi foi meu pai, Alfredo
Braz Salvador, filho de Dona Lu-zia. Ele foi uma liderança muito
importante do povo Pataxó. Foi vice-cacique de Tururim e, juntos,
foram responsáveis pelos primeiros reconhecimentos da amplia-
ção da nossa terra. Os dois e outras lideranças iam a pé a Brasília,
levavam meses para ir e voltar. Assumiu como liderança da aldeia
junto com Tururim na década de 1970 e foi muito importante para
o forta-lecimento do nosso povo, eles que conquistaram o reco-
nhecimento da terra que virou a Aldeia Boca da Mata. Meu pai não
era pajé, mas sabia muito das nossas tradições e conhecimentos.
Eu gostava muito de andar junto dele, seguia pelas matas e com
ele descobri muitos remédios, vendo ele fazer para si mesmo ou
para ajudar outras pessoas.
Diferente das minhas avós e do meu pai, com quem tive
muito contato, meu tio Karuncha Dendê, pajé de Barra Velha, vivia
distante de nós. Lembro de quando era pequena e esse meu tio,
brincalhão, colocava medo em mim e nos meus irmãos dizendo que
era o Bicho-Homem1. Depois, quando cresci, fui até sua casa junto
com meu marido Jonga e lá contamos para ele que eu era pajé.
Ele ficou feliz, disse que era muito importante o caminho que eu
tinha esco-lhido. Nós indígenas temos essa força que passa pelas
gerações, mesmo não tendo vivido tão próximos, essa força de
Karuncha passou para mim. Por isso, considero ele um mestre, uma
pessoa que sempre me passa segurança e força no que eu faço.
Jonga foi meu companheiro de vida, a pessoa que mais me
acompanhou nesses fazeres da cura. Ficamos juntos desde que eu
tinha 14 anos e passamos uma vida juntos. Ele gostava muito de
contar suas histórias e foi um cacique e uma liderança respeitada.
Quando tem reuni-ão das lideranças, os caciques sempre se recor-
dam dele. Ao longo de toda sua vida, foi um companheiro forte e
presente. Jonga nasceu e cresceu nas redondezas de Barra Velha, na
beira do Rio Jambreiro. Foi criado nas matas, aprendeu muito com
seu avô materno os remédios, as orações e as simpatias. Eu sempre
soube muito dos matos da restinga, Jonga, que por muito tempo
caçou para alimentar nossa família, sabia das ervas e das cascas
da mata fechada. As-sim, sempre teve um pouco de divisão desses
saberes: eu cuidava das ervas de capoeira, res-tinga e beira-mar e
ele sabia das cascas da mata fechada. Jonga sempre teve o sonho
de que os conhecimentos das plantas pataxó estivessem em um 41
livro. Quando comecei esse trabalho, ele me acompanhou, fomos
juntos pegando toda a força desse conhecimento para colocar neste

1 O Bicho-homem é um protetor das matas que vive no fundo da floresta. Ele é


muito alto e seu corpo é cober-to por pelos misturado com folhas. Essa entidade,
sempre gritava de dentro da mata fechada quando via al-guém tirando madeira,
colocando medo em quem entrasse. Quando ele via alguém na mata ia atrás da
pessoa, quebrando no peito os galhos, por ele ser muito alto geralmente vemos
somente suas pernas, compridas, o corpo fica na altura da copa das árvores e se
confunde com as árvores.
livro. O livro cumpre o seu sonho. Dentro deste livro, muitos conhe-
cimentos e falas são de Jonga, parte dele escrevemos juntos. A
presença dele fica aqui nessas histórias, neste livro que é parte das
memórias e conhecimentos de Jonga que, até seu falecer, escreveu
e me acompa-nhou na trajetória de registrar nossos conhecimentos
da restinga, do beira mar, do brejo, da capoeira e a da mata atlântica.

"Isso aqui é para quando crescerem,


se lembrarem de mim"
Eu me lembro de coisas de quando era muito pequena. Quando
tinha cerca de três anos, morávamos perto do Porto do Boio, um
lugar muito conhecido na região de Barra Velha. À noite, meu
pai e minha mãe saíam para pescar e me levavam junto com
as minhas irmãs. Essa região era muito visagenta2, minha mãe
acompanhava meu pai e nos levava porque ela tinha medo de
ficar só em casa. Na canoa, ele colocava uma esteira para nos
deitarmos. Ele levava uma gamela grande, enchia ela de areia, por
cima punha a lenha e acendia o fogo. Com esse clarão na canoa,
iam pescar. Lembro de ser bem pequena e ver esse fogo até dor-
mir e na volta da pescaria eu já estava sonhando. Essas memórias
de infância são muito fortes.
Foi na minha infância que aprendi a maioria das coisas com
os mais velhos. Durante parte dela, moramos perto da minha avó
materna Maria Rosa, perto do mar. Depois que saímos de lá, fui
voltar a ter mais contato com ela só através dos partos. Quando eu
tinha três ou quatro anos, meu avô paterno faleceu e isso fez com
que minha avó Luzia viesse morar conosco. Minha avó Luzia fiava
o tucum para vender para os pescadores de Caraíva fazerem rede
de pesca. Ela saía para tirar o tucum e eu ia com ela. Afundáva-
42 mos na capoeira para catar tucum, eu tinha muito medo das onças
que caçavam nas redondezas. Quando enchíamos os sacos com
as folhas do tucum, voltávamos para a aldeia. Nessas andanças,
essa minha avó colhia ervas medicinais. Muitas delas não eram
especialmente desconhecidas, eram conhecimentos que estavam
com todos os Pataxó, mas foi com essas andanças na mata que
fui passando a conhecer melhor muitas plantas. Lembro que ela
sempre colhia o araticum e a capeba, essas plantas se usam para

2 [N.O.] Uma região suscetível a visagens e aparições.


muita coisa, mas ela usava para fazer banho para sua irmã que
sempre tinha dor de cabeça. Ela também tinha costume de colher
a macela para fazer os travesseiros para nós que éramos crian-
ças – essa erva é muito cheirosa e ajuda a dormir. Quando dava o
entardecer, ela começava a tirar o cabelo do tucum, pegava o fuso
e ia fazer o tucum virar linha e, com essa linha feita, ela a enrolava
em bolos de um quilo. Eu a ajudava a tirar o tucum e ela ia me
contando histórias e me dizia sempre: “Isso aqui é para quando
crescerem, se lembrarem de mim”.
Quando as mulheres iam ter neném, elas ficavam em casa
fechadas só com a parteira. Esse é um momento de muita intimi-
dade e, quanto menos gente, melhor. Lembro que quando tinha
onze anos, uma parente veio para nossa casa esperando que minha
avó Luzia ajudasse no parto, mas essa avó não gostava de fazer
parto. Essa parente chegou às seis horas da manhã e logo man-
damos alguém ir buscar nossa avó Neném para que ajudasse no
parto. Pouco depois, minha avó chegou e começou a preparar as
coisas. Como ela não podia sair para colher os matos, já estava
passando os óleos e fazendo as massagens na moça, me pediu
então para ajudar. Eu saía correndo para pegar as ervas que ela
me falava. Primeiro ela usava um banho de manga, mentrasto e
quiabo, falava que esse banho é para ver se é a hora de nascer
mesmo. Se for, a dor aumenta; se não for, ela vai aquietar. Além
desses matos, tinha outros que também usava no parto como o
artimijo, o algodão, o mastruz e o trançai. Eu os colhia, preparava
o banho e entregava para ela na porta. Das minhas irmãs, era eu a
que mais tinha curiosidade e, por isso, a ajudava. Essa já era minha
sina para trabalhar a medicina.
Minha avó não me deixava entrar para ver o que fazia, mas
como eu era bastante curiosa, aprendi muita coisa mesmo assim.
Quando o neném nasceu – lembro muito bem que era um menino
–, minha avó deu a criança para a mãe e passou os banhos para a
placenta descer. Só depois que a placenta saiu é que ela cortou o 43
cordão. A mãe dessa parente não aceitou muito bem sua gravidez
e ela não tinha condições de dar suporte para a criança. Com isso,
depois de dois meses que o filho nasceu, ela ficou deprimida. Foi
então que minha avó Neném e eu passamos a cuidar dela até ela
melhorar. Minha avó passava os banhos e eu fazia. Aquele que mais
usava para cuidar da depressão era o banho de cipó-alho com ara-
ticum e aroeira. A velha Neném foi conversar com a mãe da moça,
que acabou acolhendo a filha. Depois de um mês cuidando dela e
com ela tendo se resolvido com a mãe, ela ficou boa.
Antigamente, esses conhecimentos das ervas e da medicina
não eram passados através da fala, tinha que viver com os mais
velhos e ajudar eles nas coisas que faziam para poder aprender.
Vendo e ajudando minhas avós e os mais velhos foi que aprendi
muitas das coisas que eu sei e faço. Quando vou andar nas matas,
sempre acabo com um buquê de mato, casca ou cipó. Esse cos-
tume vem da minha avó Neném que sempre tinha na mão um
punhado de ervas que tinha colhido. Vou percebendo com o tempo
que muitas coisas das minhas avós ficaram marcadas em mim.
Além dos mais velhos, a vivência na mata aproximava a gente dos
espíritos. A visão que o pajé tem, muitas vezes, são os espíritos
que dão. Acho que muito mato eu sei de olhar é por conta da Cai-
pora, que também deve me ajudar a andar na mata e ver os matos.

Passando os saberes dos matos


Sempre passei os conhecimentos dos matos para quem vem à
minha casa. Quando as pessoas vêm pedindo ajuda, passo tam-
bém os conhecimentos de como se cuidar. Quando a Universidade
Federal do Sul da Bahia (UFSB) começou a convidar os mestres
para dar aulas, eu participei, foi quando conheci a professora
Rosângela de Tugny. Nessa época, Araraui, meu filho, me acompa-
nhou nos encontros e fui tendo que construir uma forma de ensi-
nar esses saberes. Em um encontro, eu passava os conhecimentos
das plantas, suas qualidades, histórias e preparos e, enquanto isso,
Araraui desenhava as plantas no quadro. Ao fim de cada encon-
tro, pedia para que os estudantes escolhessem uma planta que eu
havia ensinado, buscassem e a trouxessem para a próxima aula.
Essa experiência foi muito boa, não foram muitos encontros, mas
foi importante para que eu mesma pensasse em como ensinar as
coisas que aprendi de outra forma. Não foi em uma sala de aula
que aprendi o que sei sobre as plantas.
44 Depois disso, no ano de 2017, fui participar, junto com alu-
nos da universidade, de um projeto na Escola Indígena Pataxó de
Coroa Vermelha. Foi quando conheci Victor André Miranda e Ana
Belizário. Lá, junto com os professores Diana Bonfim, Cátia Souza,
China (Jelevaldo Santos), Edenildo Lopez e Ajuru (Clarivaldo Fer-
reira), começamos o trabalho de ensinar os alunos sobre as plan-
tas medicinais enquanto construíam uma horta medicinal. Nessas
aulas, usei a mesma forma de ensinar que tinha construído para
as aulas que dei na universidade. Mas, dessa vez, ainda tínhamos
a horta, onde iríamos plantar os matos medicinais. No início, os
alunos não davam muita importância para o que eu passava para
eles, mas, com cada encontro, foram se interessando. Quando
conseguimos levar os estudantes para andar e ver as plantas que
existiam ali na restinga, em torno da escola, ficaram empolgados,
foram se interessando pelas plantas e passaram a me escutar
com mais atenção.
Vivemos em uma aldeia urbana em Coroa Vermelha. Os
meninos mais novos, muitas vezes, já não têm contato com seus
avós. Seus pais ou sabem pouco ou não os ensinam sobre as
plantas e, por isso, foi difícil tomar a atenção desses meninos. No
início, os alunos traziam plantas repetidas, se confundiam com os
nomes e os usos. Com o tempo, porém, ficaram mais espertos,
começaram a olhar para os quintais dos vizinhos e a pedir plantas.
A diversidade de plantas que traziam aumentou e eles mostra-
vam mais curiosidade. Conseguimos fazer duas excursões com os
alunos, uma à Aldeia da Jaqueira e outra a Novos Guerreiros. Numa
estudamos a mata atlântica e noutra a restinga. Essas andanças,
buscando plantas e contando histórias, foram momentos muito
importantes para passar esses saberes. A força das plantas ajuda
os alunos a aprender. Às vezes, vocês podem passar por certas
plantas e pensar que para nada elas servem, mas eu, quando olho
os matos, já vejo as ervas para chá, banho e garrafada. Vejo porque
sei, mas também porque as plantas me chamam, são como um
ímã. Elas me mostram seus saberes e sua força. Andar na mata e
na restinga foi importante por isso também, para que os meninos
ficassem mais espertos com a força dos matos. Essa força é que
entra em nosso espírito. Assim como minha avó passou a força
dela e das plantas para mim, eu passei essa força para os meninos.
Em 2018, fui outra vez à UFSB, dessa vez como convidada
para dar uma aula para os alunos das artes. Quem me acompa-
nhou nessas aulas foi Jonga, que contou como me ajudava no meu
trabalho. Muitas vezes, quem saía para colher as plantas para mim
era ele. Jonga falou a importância do meu trabalho, que mantinha
vivos esses conhecimentos, e falou sobre como ensinar nas esco-
las pataxó era algo muito importante para nosso povo. Consegui- 45
mos um espaço na cozinha da UFSB para que eu mostrasse como
fazer os preparos. Já tinha realizado na escola indígena duas ofici-
nas de preparos – em uma fizemos os chás e em outra os banhos,
e tinha sido uma boa experiência para os alunos aprenderem como
usar as plantas, pois só a palestra não é suficiente. Para os alunos
das artes, penso que mostrar os cheiros e as cores dos óleos foi
importante. A minha medicina tem o que ensinar para esses alu-
nos. Os preparos são cheios de cheiros, cores e texturas.
Na universidade, minha vontade de fazer um livro aumen-
tou. Percebi que levar só a palavra não era suficiente, eu tam-
bém não conseguia levar nas mãos. O livro tenta apresentar esse
conhecimento, mostrar para o povo como sabemos dos remédios,
para conhecerem a nossa medicina. Quero levar esses conheci-
mentos adiante, mostrar a força e as sabedorias dos Pataxó.

Aos que se foram e aos que virão


Neste livro, está a força que colhi das plantas e dos espíritos que
me acompanham. Assim como enquanto aprendia com minhas
avós meu espírito crescia, espero que, com este livro, eu consiga
passar essa força adiante. Os mais novos encontrarão aqui muitas
histórias, descobrirão as plantas, suas qualidades, seus preparos
e as formas de cuidado. Com esse conhecimento, espero que eles
busquem seus avós para mostrar o livro e encontrar saberes que
talvez não foram escritos. Apresento aqui parte importante da
sabedoria pataxó, mas não ela toda. Muitos jovens podem ler este
livro para os mais velhos que não sabem ler e, nessa conversa, irão
aprender muito. Devem ir atrás das plantas que estão nele e com
elas aprenderão também. Este livro abre essa pesquisa para os
que lerem. Espero que ele leve os mais jovens a buscarem esses
conhecimentos e não deixem que sejam esquecidos.
Meu tio Karuncha Dendê, tempos atrás, participou de uma
pesquisa sobre as plantas medicinais pataxó que era o trabalho de
doutorado de um pesquisador americano. Quando ele terminou o
trabalho, se mandou e nunca mais voltou para apresentar o que
fez para os velhos. Desde então, meu tio ficou muito triste com
tudo isso, se sentiu usado. Este livro escrito por mim também tem
essa função, a de mostrar esse conhecimento como nosso, dos
Pataxó. Tenho o conhecimento do que estou escrevendo. Muitos
pesquisadores só escreveram, mas eu tenho o conhecimento de
como fazer e de como usar. Eles não conseguem saber o que a
46 gente sabe, eles só escrevem. Este livro sai de dentro de mim,
de dentro da minha memória, do meu saber e fazer. O branco fez
escutando o índio e escrevendo, mas este livro não, ele sai de
minha memória e dos espíritos.
Esses conhecimentos não podem ser esquecidos, por isso
devem ser registrados por nós. Acabam os velhos e ninguém pega
nada. Essas pessoas se vão e levam coisas que não saberemos
mais – pode ser uma reza, uma história, uma planta, algo que leva-
ram e não passaram adiante. Um neto meu vai pegar esse livro no
futuro e vai saber de todas essas coisas. Ele pode estar estudando
em uma faculdade e vai ter esse saber da avó dentro dele, vai dizer
que a avó fez um livro e vai atrás dessa história. Passo aqui esses
saberes de geração para geração.
Quero dedicar este livro para aqueles que se foram e deixa-
ram essa parte para trás. Minha avó Maria Rosa foi uma velhinha
guerreira com quem todo mundo tinha confiança, sabia cuidar das
paridas e pegar as crianças. Essa força dela está aqui e eu passo
adiante. Meu companheiro de vida, Jonga, sempre me acompanhou
nos meus fazeres de cura e na escrita deste livro. Para eles e todos
os mais velhos que se foram, eu passo aqui nossos saberes adiante.

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