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Tratado do Purgatório

Santa Catarina de Gênova

Tratado do Purgatório
© Santa Cruz - Editora & Livraria, 2019.
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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

AD241
Adorno, Catarina Fieschi
Tratado do Purgatório / Catarina Fieschi Adorno – 1ª ed. – São Caetano do Sul, SP: Santa Cruz
Editora e Livraria, 2019.

80 p.
ISBN 978-85-5932-030-5

1. Religião. 2. Igreja Católica. 3. Doutrina


I. Título
CDD: 236

Santa Cruz – Editora & Livraria


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Santa Catarina de Gênova

(Breve biografia) [1]


Catarina Fieschi Adorno nasceu em Gênova, em 1447. Teve por pai
Jacó de Fieschi, que morreu como vice-rei de Nápoles, durante o reinado de
Renato de Anjou, rei da Sicília. A família dos Fieschis foi ilustre na Itália
durante vários séculos. Seus chefes eram condes de Lavagna, no território
de Gênova. Foram durante muito tempo vigários perpétuos do império na
Itália, e tiveram posteriormente grandes privilégios na república de
Gênova, entre outros o de cunhar moedas. Essa família produziu célebres
generais durante as guerras que Gênova fez no Oriente contra os
venezianos. Deu à Igreja vários cardeais e dois papas: Inocêncio IV e
Adriano V. Santa Catarina teve três irmãos e uma irmã, que abraçou a vida
religiosa.
Com relação a Catarina, desde a mais tenra idade, dava mostras de sua
futura santidade. Com apenas oito anos de idade, afastou-se dos
divertimentos infantis, mostrando em todas as ações modéstia maravilhosa.
Aprendeu os mistérios da fé cristã e se esforçava por penetrar-lhes os
sentidos. Meditava-os com amor, fazia progressos admiráveis na via da
perfeição, obedecendo aos pais com uma docilidade exemplar, guardando o
silêncio e abstendo-se de toda conversa que não tratasse de Deus.
Em seu quarto havia um quadro que representava o Salvador descido
da cruz e deitado sobre os joelhos de sua mãe, quadro esse que
comumente chamamos de Nossa Senhora da Piedade. Catarina
contemplava frequentes vezes essa piedosa imagem, e ficava tão comovida,
que parecia querer exprimir em si mesma todas as dores de Cristo
moribundo. Em breve o coração se lhe encheu de violento desejo de sofrer
por amor de Jesus. Desprezando as delícias da casa paterna, deitava-se
sobre a palha, tendo como travesseiro um pedaço de pau. Escondia com
cuidado as austeridades aos olhos dos criados aos quais estava confiada.
Todavia, surpreenderam-na mais de uma vez meditando na paixão do
Salvador, e derramando abundantes lágrimas. Aos treze anos, quis deixar
o mundo e retirar-se para um mosteiro, para amar a Deus, à vontade. Suas
atenções se voltaram para as agostinianas de Gênova, com quem já se
encontrava sua irmã Limbânia. Mas sua pouca idade não permitiu às
religiosas que a recebessem.
Três anos depois, os Fieschi, que eram guelfos[2], obrigam Catarina a
casar-se com o nobre gibelino de Gênova, chamado Juliano Adorno. Era
para confirmar a reconciliação dessas duas poderosas famílias, há muito
tempo inimigas uma da outra. Seu marido, que era dado ao prazer, se
deixava arrastar pela ambição. Com dezesseis anos inicia assim sua vida
conjugal. Isso lhe causou mil aborrecimentos durante os dez anos que
passaram juntos. Ela os suportava com uma paciência admirável, e
encontrou nisso motivo para se santificar ainda mais. Adorno, perdulário
que era, dilapidou os bens seus e os que a virtuosa esposa lhe trouxera
com o casamento.
Catarina não sentiu tanto este fato, como se entristecia com a vida
desregrada do esposo. Pedia todos os dias por sua conversão a Deus. Suas
preces foram, por fim, escutadas. Adorno, arrependido dos desmandos, fez
penitência, entrou para a Ordem Terceira de São Francisco e morreu nos
mais vivos sentimentos e odor de piedade. Catarina tinha uma parente
próxima, chamada Tomasa de Fieschi, que ficou viúva pelo mesmo tempo
e que tomou o hábito das Dominicanas, morrendo como prioresa do
convento, em 1534.
Durante a vida matrimonial, após cinco anos de casada, a pedido das
amigas, Catarina relaxou um pouco a vida solitária e de penitência e passou
a frequentar as sociedades mundanas, sem, contudo, cometer faltas graves
contra Deus. Seu fervor primeiro não sofreu diminuição. Os prazeres do
mundo não lhe deixaram senão profundo desgosto. Consultou, então, sua
irmã religiosa, que lhe indicou um sábio confessor. Apenas se ajoelhou aos
pés dele, uma luz do alto a iluminou a respeito do estado de sua alma. Um
raio do amor divino lhe atingiu o coração, mostrando-lhe o horror de seus
pecados. Tal é a comoção sofrida, que, sem terminar a confissão, foi
necessária levá-la a casa. “Oh, Amor, não mais pecados!”, repete entre
lágrimas. Compungida, por ter relaxado e negligenciado sua vida piedosa,
estava disposta a confessar-se publicamente e a fazer as mais rigorosas
penitências. Jesus lhe apareceu, carregando a cruz, sangrando por todo o
corpo. Essa visão lhe causou tal impressão, que tudo quanto via lhe parecia
inundado do sangue de Cristo. Teve, desde então, desejo imenso de sofrer,
para se conformar à Paixão do Salvador. Essa conversão, não exatamente do
mal para o bem, mas do bem para o melhor, aconteceu-lhe em 1474, quando
tinha vinte e sete anos de idade.
Quatro anos de vida purgativa sofre Catarina, fazendo penitência de
seus pecados com severíssimas austeridades e longas orações. Mas ainda
então, como conta seu biógrafo, o Senhor a consola, sobretudo na oração,
como naquela ocasião em que “se sentiu atraída a inclinar-se sobre o peito
de seu amoroso Senhor, e alcançou a ver um caminho mais suave, que
descobria inumeráveis segredos de um amor que, com frequentes
êxtases, a consumava toda. Depois foi atraída ao lado do Crucificado, e ali
lhe foi mostrado o Sagrado Coração de Jesus, que parecia todo ele de
fogo. E finalmente foi aproximada à dulcíssima e suave boca de seu
Senhor; e ali lhe foi dado um beijo que a submergiu inteira naquela doce
divindade, onde, perdida de si mesma interior e exteriormente, dizia: Eu já
não, é Cristo quem vive em mim” (Vita 2).
Seu atrativo principal era a contemplação. Mas a isso juntou uma vida
ativa. Serviu durante vários anos os doentes, no grande hospital de Gênova,
com caridade e ternura incríveis. Não se deixou abater pelas repugnâncias
naturais que experimentava no começo. Superou-as, pouco a pouco, pela
paciência e pelo prazer de agradar a Jesus Cristo, servindo-o nos membros
sofredores. Sua caridade não se cingia ao recinto do hospital; estendia-se a
todos os doentes da cidade. Apenas os conhecia, procurava obter para eles
todos os socorros de que tinham necessidade. Seu amor por eles se revelou
principalmente durante a peste que fez, em Gênova, terríveis danos, nos
anos de 1497 e 1501.
Sua austeridade tinha qualquer coisa de espantoso. Estava de tal modo
acostumada a jejuar, que passou vinte e três quaresmas e outros tantos
adventos, sem tomar alimento. Recebia somente a comunhão todos os dias
e bebia de tempo em tempo um copo de água, ao qual misturava um pouco
de vinagre e de sal. As hóstias que, então, eram dadas aos leigos, quando
se ministrava a eucaristia, eram bem maiores do que as de hoje. Lê-se na
biografia da santa que, imediatamente após a comunhão, apresentavam-lhe
um cálice com vinho, como se faz ainda hoje na comunhão dos ordenados.
Era para facilitar-lhe engolir as partículas que ficavam na boca. Dessa
forma, Baillet se engana, dizendo que Catarina recebia a eucaristia, sob as
duas espécies. Essa recepção da eucaristia sob as duas espécies esteve em
uso durante vários séculos, mas como alguns pretendessem que ela fosse de
preceito, a Igreja Católica confirmou de início pela prática e depois por
decretos, o costume universal de comungar apenas sob uma espécie.
Santa Catarina de Gênova escreveu um maravilhoso diálogo entre a
alma e o corpo, o amor-próprio, o espírito, a humanidade e Nosso Senhor
Jesus Cristo. Esse diálogo é em três livros. Descreve a sequência das
operações divinas, pelas quais Nosso Senhor a conduziu, das imperfeições
de seu primeiro estado, à perfeição mais elevada.
Entre as provações por que Deus a fez passar, está a de não encontrar
muitas vezes ninguém que compreendesse seu estado e pudesse dar-lhe
conselhos, ou seja, ver-se privada muitas vezes de seu confessor, que a
compreendia e dos conselhos que ela corria a receber. Os últimos nove
anos de vida, passou-os sofrendo de uma doença invulgar, para a qual os
médicos não conseguiam encontrar remédio. Era como que um martírio e
uma crucificação contínuos. Nas festas dos santos, sentia todas as dores que
esses santos haviam sofrido. Nos últimos tempos, não podia tomar outro
alimento que a santa comunhão. No dia da Assunção da Santa Virgem do
ano de 1510, recebeu a extrema-unção, segundo desejava. Os anjos a
visitaram. Passou sete dias em alegria contínua. Acreditavam que tivesse
sarado. Mas, violentas convulsões voltaram a atacá-la. O demônio lhe
apareceu, em forma horrível. Como ela não pudesse falar, deu a entender
aos presentes que lhe fizessem o sinal da cruz sobre o peito e que jogassem
um pouco de água benta sobre o leito e no quarto. Após meia hora, a visão
assustadora desapareceu e ela recuperou a tranquilidade costumeira.
No dia 3 de setembro, o esposo celeste quis fazer-lhe sentir, tanto no
corpo como na alma, todas as dores de sua paixão. Ela estendeu os braços
em forma de cruz e disse bem alto estas palavras: “Que esta paixão seja
bem-vinda, bem como bem-vindo seja todo suplício que me enviar a amável
vontade de Deus. Pois há trinta e seis anos que me iluminais, ó meu amor;
e desde a primeira luz que recebi, até agora, desejo sofrer tanto
internamente como exteriormente. E dado que era meu desejo, jamais tive a
impressão de ter encontrado algum sofrimento. Mas, embora todas as
penas passadas e a dor exterior pareçam grande suplício, vossa
providência me transforma tudo em alegria interior. Eis-me aqui agora
chegada ao fim. Vou para vós com acabrunhante dor interna e externa,
oprimida da cabeça aos pés, a tal ponto que não creio que um corpo
humano, por robusto que seja, possa suportar este terrível tormento.
Parece-me que não somente um corpo de carne e osso sucumbiria, como
também um corpo de ferro e diamante seria aniquilado por essa violência.
É evidente que vós moderais tudo por vossa justa providência, que não
quer ainda que eu morra. E apesar de ter sofrido sem nenhum remédio
esses excessivos tormentos em meu corpo, encontro-me com o espírito
cheio de coragem. E estou de tal modo disposta, que não posso dizer que
estou sofrendo. Ao contrário, parece-me nadar em uma alegria contínua,
alegria tão grande e deliciosa, que não a posso exprimir, nem
compreender”.
A partir de 1499, em plena via unitiva, se multiplicam em Catarina os
fenômenos místicos, assim como as dores insuportáveis de uma
enfermidade que parece de origem sobrenatural.
No dia 14 de setembro de 1510, dia da Exaltação da Santa Cruz, falou
com mais ardor e com mais amor do que nunca. No dia seguinte, 15 de
setembro, um domingo, perguntaram-lhe se queria comungar. Arrebatada
em êxtase, ergueu um dedo para o céu, para significar que naquele
instante, exatamente, estava sendo chamada para o banquete celestial.
Depois, cantando com voz dulcíssima as últimas palavras de Jesus:
Senhor, em vossas mãos entrego minha alma; morre, consumada no amor
de Deus aos sessenta e três anos de idade, e seu corpo permanece até
hoje incorrupto.
A gente começou imediatamente a venerá-la como santa. Curas
milagrosas aumentaram a devoção popular. Vários desses milagres foram
constatados juridicamente. O papa Clemente XII a canonizou solenemente,
em 1737, por uma bula de 16 de junho, na qual faz o elogio de suas
virtudes e mesmo de seus escritos. E em 1944, Pio XII a constituiu patrona
secundária dos hospitais da Itália.

O
Ao parecer, Santa Catarina não escreveu de sua mão nenhuma das
obras que se lhe atribuem, mas que estas são recopilações feitas por
amigos e por seus discípulos.
Dos anos 1520 aos anos 1525 parece datar o códice Dx, em que Ettore
Vernazza, segundo se crê, escreve ou recopila ao menos os primeiros
escritos da Opus Cateriniano.
Em 1551, partindo do Dx e amplificando dados e lembranças, se
publica em Gênova o livro da Vita mirabile et Dottrina de la Beata
Caterinetta da Genova, nel quale si contiene uma utile et catholica
dimostratione et dichiaratione del purgatório. Ao parecer nesta obra se
unem três escritos diferentes: Vita et Dottrina, que tinha sido redatado por
Cattaneo Marabotto, recolhendo dados autobiográficos de Catarina,
assim como seus ensinamentos e atos; Dialogo tra anima, corpo, amor
proprio, spirito, umanità e Dio; e o Trattato del Purgatório. Na
apresentação desta edição princeps da Obra Cateriniana se diz que foi
“recopilada por devotos religiosos”, concretamente por “seu confessor e um
filho espiritual”.
Em 1743 um devoto da santa publicou em Pádua uma nova edição, em
que se revisa e atualiza o texto.

OT P
O redator da Vita termina sua crônica dizendo que em Catarina se via
o céu, uma criatura celestial, “transformada completamente, perdida em
Deus”; e ao mesmo tempo o purgatório, um coração, consumido no fogo do
amor de Deus, em um corpo “martirizado”. Com efeito, o ensinamento de
Santa Catarina sobre o purgatório parte de uma experiência mística
verdadeiramente pessoal. Deus lhe fez padecer e entender as penas das
almas que estão no purgatório com uma extraordinária clarividência.

B
— Acta Sanctorum, Septembris V, Venezia 1770, 123-195.
— Umile da Genova, L’Opus catharinianum et ses auteurs; étude
critique sur la biographie et les écrits de sainte Catherine de Gênes, en
“Revue d’Ascétique et Mystique” XVI (1935) 351-370; Id., en
Dictionnaire de Spiritualité II, 2, 290-325.
— Tratado del Purgatorio, Barcelona, Balmes 1946, que reproduce la
versión “traducida del francés por un presbítero de Reus”, publicada en el
libro Vida de Santa Catarina de Gênova, Barcelona 1852.
— Cassiano Carpaneto da Langasco, Sommersa nella fontana del
Vamore. Santa Caterina Fieschi Adorno: I, La vita; II, Le opere, Marietti
1987.
— Vida dos Santos, Padre Rohrbacher. Volume V. Editora das
Américas. São Paulo 1959.

A
A antiga tradução[3] aludida do “presbítero de Reus”, embora tenha
boa qualidade espiritual, é demasiada livre.
Carpaneto (II, 94-121) oferece em sua edição duas versões, em
paralelo, do Tratado do Purgatório. A primeira é o texto do códice Dx,
datado de 1520-25, que é o texto mais antigo, o mais próximo, pois, a
Santa Catarina. Seu italiano tosco e descarnado é comovedor, pois parece
refletir ainda os esforços da mística genovesa para expressar suas altas
visões; mas resulta às vezes de difícil interpretação, e de mais difícil
tradução. A segunda versão é a do texto da edição paduana de 1743, muito
mais correta com suas ampliações e perífrase, mas escassamente fiável.
Eu por minha parte, ao realizar a presente tradução do Trattato del
Purgatório, preferi sujeitar-me normalmente ao códice Dx. E somente me
refugiei na versão de 1743 quando não achei modo de traduzir com
segurança o códice primeiro.
No texto que segue os subtítulos são do tradutor, e os números que vão
dividindo o escrito são os da edição de 1743.
Introdução

P ?
Muito menos do que convinha às almas daqueles que estão nele, e que
deveriam receber de nós mais frequentes e maiores ajudas. E muito menos
do que nos convinha a nós mesmos, pois guardaríamos nossa fidelidade ao
Senhor com muito mais cuidado, se fôssemos conscientes na fé de que
aquilo que neste mundo não tenhamos chegado a purificar de nossos
pecados com a ajuda da graça, haverá de ser purificado em nós somente por
Deus na outra vida, mediante as penas do purgatório.

M , ?
Qualquer um que vá passar uma temporada em um país costuma
interessar-se em ler previamente informações sobre o mesmo. Como é
possível, pois, que tantos católicos mostrem tão pouco interesse em
conhecer a misteriosa realidade do purgatório, estado pelo qual
provavelmente passarão muitos, antes de gozar plenamente de Deus no céu?
Será que apenas creem nele; pois dizer em tema tão grave e importante “já
nos inteiraremos quando estejamos nele” não passa de ser um engano
cínico.

E, ?
Sabemos pouco, mas esse pouco tem extraordinária importância, e
podemos conhecê-lo com a certeza da fé, com a fé da Igreja católica.
Dividimos em quatro capítulos a exposição presente.
— Em primeiro lugar, o Tratado do Purgatório de Santa Catarina de
Gênova será para nós um estímulo certamente poderoso, que nos ajudará a
penetrar este alto mistério.
— Em seguida faremos uma breve exposição do Catecismo[4] que virá a
precisar-nos qual é exatamente nossa fé sobre o purgatório.
― No terceiro capítulo descreveremos algumas considerações
morais[5] sobre o purgatório.
― E, finalmente, encerraremos este livrinho recordando a importância
da fé no purgatório.
Capítulo I
Tratado do Purgatório
Como Santa Catarina, por comparação com o fogo divino que sentia
em seu coração e que purificava sua alma, via interiormente e compreendia
como estão as almas no purgatório, para purificar-se antes de poder ser
apresentadas diante de Deus na vida celestial.[6]

E
1. — Esta alma santa, vivendo ainda na carne, se encontrava posta no
purgatório do fogo do divino Amor, que a queimava inteira e purificava de
quanto nela havia para purificar, a fim de que, passando desta vida,
pudesse ser apresentada diante da presença de seu doce Deus Amor. E
compreendia em sua alma, por meio deste fogo amoroso, como estavam as
almas dos fiéis no lugar do purgatório para purgar toda ferrugem e mancha
de pecado, que nesta vida não houvessem purgado.
E assim como ela, posta no purgatório amoroso do fogo divino, estava
unida a esse divino Amor, e contenta de tudo aquilo que Ele nela operava,
assim entendia acerca das almas que estão no purgatório.

A , D
2. — E dizia: As almas que estão no purgatório, segundo me parece
entender, não podem ter outra eleição que estar naquele lugar; e isto é assim
pelo mandato de Deus, que fez isto com justiça.
Elas, refletindo sobre si mesmas, não podem dizer: “Eu, cometendo tais
e tais pecados, mereci estar aqui”. Nem podem dizer: “Eu não gostaria de
tê-los cometidos, pois agora estaria no Paraíso”. E tampouco podem dizer:
“Aquelas saem do purgatório antes que eu”, ou bem “eu sairei antes
daquela”.
E é que não podem ter memória alguma, tanto para o bem como para o
mal, nem de si mesma nem de outros, mas que, pelo contrário, tem um
regozijo tão grande de estar cumprindo o mandato de Deus, e de que Ele aja
nelas tudo o que quer e como quer, que não podem pensar nada de suas
coisas. O único que veem é a operação da bondade divina, que tem tanta
misericórdia do homem para conduzi-lo para Si; e nada reparam em si
mesmas, nem de penas nem de bens. Se nisso pudessem reparar, não
estariam vivendo na pura caridade.
De resto, tampouco podem ver a suas companheiras que ali penam
por seus próprios pecados. Estão longe de ocupar-se nesses pensamentos.
Isso seria uma imperfeição ativa, que não pode dar-se naquele lugar, onde
os pecados atuais não são já possíveis. A causa de porquê sofrem o
purgatório a conheceram de uma só vez, ao partir desta vida; e depois já
não pensam mais nela, pois outra coisa seria um apego de propriedade
desordenada.
3. — Estas almas vivem na caridade, e não podendo desviar-se dela
com defeitos atuais, já não podem querer nem desejar outra coisa que o
puro querer da caridade. Estando naquele fogo purgatório, estão na
ordenação divina, que é a pura caridade, e já não podem desviar-se dela em
nada, pois já não podem atualmente nem pecar nem merecer.

C
4. — Não creio que seja possível encontrar uma alegria comparável
ao de uma alma do purgatório, como não seja aquela que tem os santos no
Paraíso. E este contentamento cresce cada dia pela influição de Deus
nessas almas; isto é, aumentado mais e mais à medida que se vão
consumindo os impedimentos que se opõem a essa ação.
A ferrugem do pecado é impedimento, e o fogo a vai consumindo.
Assim é como a alma vai se abrindo cada vez mais à divina influência. Se
uma coisa que está coberta não pode corresponder à reverberação do sol,
não por defeito do sol, que continuamente ilumina, mas pela cobertura que
se lhe opõe, eliminada a cobertura, fica a coisa descoberta ao sol. E tanto
mais corresponderá à irradiação luminosa, quanto mais se tenha
eliminado a cobertura.
Pois assim sucede com a ferrugem do pecado, que é como a cobertura
das almas. No purgatório se vai consumindo pelo fogo, e quanto mais se
consuma, tanto mais pode receber a iluminação do sol verdadeiro, que é
Deus. E tanto cresce a alegria, quanto mais falta a ferrugem, e se descobre
a alma ao divino raio. Um cresce e o outro diminui, até que se termine o
tempo. E não é que vá diminuindo a pena; o que diminui é o tempo de
estar sofrendo-a.
E pelo que se refere à vontade desta alma, jamais ela poderá dizer que
aquelas penas são penas; até tal ponto está conforme com o mandato de
Deus, com a qual essa vontade se une em pura caridade.

S
5. — Apesar do que foi dito, sofrem estas almas penas tão extremas,
que não há língua capaz de expressá-las, nem entendimento algum as pode
compreender minimamente, a não ser que Deus o mostrasse por uma graça
especial. Eu creio que a mim a graça de Deus me mostrou, embora depois
eu não seja capaz de expressá-lo. E esta visão que me mostrou o Senhor
nunca mais se afastou de minha mente. Tratarei de explicá-la como puder, e
me entenderão aqueles a quem o Senhor lhe der a entender.

P
6. — O fundamento de todas as penas é o pecado, seja o original ou os
atuais. Deus criou a alma pura, simples, limpa de toda mancha de pecado,
com um certo instinto que a leva a buscar nele a felicidade. Porém, o
pecado original a afasta dessa inclinação, e mais ainda quando se acrescenta
os pecados atuais. E quanto mais se desvia assim de Deus, mais se vai
fazendo maligna, e menos Deus a ela se comunica.

S
Toda a bondade que possa haver no homem é por participação de Deus.
Ele se comunica às criaturas irracionais, segundo sua vontade e ordenação,
e nunca lhes falta. Ao contrário, à alma racional se lhe comunica mais o
menos, segundo a acha purificada do impedimento do pecado.
Por isso, quando uma alma se aproxima ao estado de sua primeira
criação, pura e limpa, aquele instinto beatífico para Deus se lhe vai
aparecendo, e se lhe aumenta com tanto ímpeto e com tão veemente fogo
de caridade — o qual a impulsa para seu último fim — que lhe parece algo
impossível ser impedida. E quanto mais contempla esse fim, tanto mais
extrema lhe resulta a pena.
7. — Sendo isto assim, como as almas do purgatório não tem culpa de
pecado algum, não existe entre elas e Deus outro impedimento que a pena
do pecado, a qual retarda aquele instinto, e não lhe deixa chegar à perfeição.
Pois bem, vendo as almas com absoluta certeza quanto importam até os
mais mínimos impedimentos, e entendendo que por causa deles
necessariamente se vê retardado com toda justiça aquele impulso, daqui
lhes nasce um fogo tão extremo, que vem a ser semelhante ao do inferno,
mas sem a culpa. Esta é, a culpa, a que faz maligna a vontade dos
condenados ao inferno, aos quais Deus não se comunica com sua bondade.
E por isso elas permanecem naquela desesperada vontade maligna,
contrários à vontade de Deus.

I
8. — Aqui se vê claramente que a vontade perversa enfrentada contra
a vontade de Deus é a que constitui a culpa e, perseverando essa má
vontade, persevera a culpa.
Os que estão no inferno saíram desta vida com a má vontade, e por
isso sua culpa não foi perdoada, nem pode já sê-lo, pois uma vez saídos
desta vida, já não pode mudar-se sua vontade. Com efeito, ao sair desta vida
a alma fica fixa no bem ou no mal, segundo se encontra então sua livre
vontade. Está escrito, Ubi te invenero, isto é, na hora da morte, segundo
tenha a vontade no pecado ou arrependimento do pecado, ibi te iudicabo
[onde eu te encontre, lá eu te julgarei; cf. aprox. Eclesiastes 11, 3[7]]. Este
juízo é irrevogável, pois depois da morte já não há possibilidade de mudar a
posição da liberdade, que ficou fixada tal como se achava no momento da
morte.
Os do inferno, tendo sido achados no momento da morte com a
vontade no pecado, tem consigo infinitamente a culpa, e também a pena. E
a pena que têm não é tanta como mereceriam, mas em todo caso é pena sem
fim. Os do purgatório, pelo contrário, tem só a pena, mas como estão já sem
culpa, pois lhes foi cancelada pelo arrependimento, têm uma pena finita, e
que com o passar do tempo vai diminuindo, como já disse antes.
Oh, miséria maior que toda outra miséria, tanto maior quanto mais
ignorada pela humana cegueira!

P D
9. — A pena dos condenados não é já infinita na quantidade, já que a
suave bondade de Deus faz chegar o raio de sua misericórdia até o inferno.
É certo que o homem, morto em pecado mortal, merece pena infinita e
padecê-la em tempo infinito. Mas a misericórdia de Deus fez que somente
seja infinito o tempo da pena, e limitou a pena na quantidade. Poderia sem
dúvida ter-lhes aplicado uma pena maior que aquela que lhes foi dada.
Oh, que perigoso é o pecado feito com malícia! O homem dificilmente
se arrepende dele, e não arrependendo-se dele, permanece na culpa. E
persevera o homem na culpa enquanto persiste a vontade do pecado
cometido ou de cometê-lo.

C D
10. — Mas pelo contrário, as almas do purgatório têm sua vontade
totalmente conformadas com a vontade de Deus. Por isso Deus, a essa
vontade conformada, corresponde com sua bondade, e elas permanecem
contentas, enquanto à vontade, já que é purificada do pecado original e
atual.
E enquanto à culpa, aquelas almas permanecem tão puras como quando
Deus as criou, já que saíram desta vida arrependidas de todos os pecados
cometidos, e com vontade de nunca mais cometê-los. Com este
arrependimento, Deus perdoa imediatamente a culpa, e assim não lhes resta
senão a ferrugem e a deformidade do pecado, as quais se purificam depois
no fogo com a pena.
E assim, purificadas de toda culpa e unidas a Deus pela vontade,
estas almas veem a Deus claramente, segundo o grau em que Ele a elas
se manifesta; e veem também quanto importa gozar de Deus, e entendem
que as almas foram criadas para este fim. Esta conformidade atrai a alma
para Deus por instinto natural com tal força, que não podem expressar-se
razões, nem figuras ou exemplos que sejam suficientes para dizê-lo, tal
como a mente sente com efeito e compreende por sentimento interior.
Não obstante, eu tentarei com um exemplo expressar algo do que
minha mente entende.

O
11. — Imaginemos que em todo o mundo não houvesse senão um só
pão; suponhamos que com ele houvesse de matar a fome de todos os
homens, e que estes, somente com vê-lo, ficassem saciados. Pois bem,
tendo o homem por natureza, quando está são, instinto de comer, se não
comesse, e não pudesse adoecer nem morrer, teria cada vez mais fome; pois
o instinto de comer nunca lhe é retirado. E se o homem soubesse então que
só aquele pão pode saciá-lo, ao não o ter, não poderia ter a fome saciada.
E este é o inferno que sentem os que têm fome, já que quanto mais se
aproximam a este pão sem poder vê-lo, tanto mais se lhes desperta o desejo
natural; pois este, por instinto, se dirige a este pão no que consiste todo seu
contentamento. E se estivesse certo de não ver mais esse pão, nisso
consistiria o inferno que têm todas as almas condenadas, privadas de toda
esperança de nunca jamais ver esse pão, que é o verdadeiro Deus Salvador.
As almas do purgatório, pelo contrário, padecem essa fome, porque
não veem o pão que poderia saciá-las, mas têm a esperança de vê-lo e de
saciar-se dele completamente; e assim padecem tanta pena quanto desse pão
não podem saciar-se.

A
12. — Outra coisa que vejo claramente é que assim como o espírito
limpo e puro não encontra outro lugar senão em Deus para seu repouso,
pois para isso foi criado, do mesmo modo a alma em pecado não tem para si
outro lugar que o inferno, que Deus lhe assignou como seu lugar próprio.
Por isso, no instante em que o espírito se separa de Deus, a alma vai a seu
lugar correspondente, sem outro guia que a que tem a natureza do pecado. E
isto sucede quando a alma sai do corpo em pecado mortal.
E se a alma naquele momento não encontrara aquela ordenação que
procede da justiça de Deus, sofreria um inferno maior do que o inferno é,
por achar-se fora daquela ordenação que participa da misericórdia divina,
que não dá à alma tanta pena como merece. E por isso, não achando lugar
mais conveniente, nem de menores males para ela, se arrojaria ali dentro,
como a seu lugar próprio.

A
13. — Assim sucede no que se refere ao purgatório. A alma separada
do corpo, quando não se acha com aquela pureza em que foi criada, vendo-
se com tal impedimento que não pode remover-se senão por meio do
purgatório, ao ponto se arroja nele, e com toda vontade.
E se não encontrasse tal ordenação capaz de remover-lhe esse
impedimento, naquele instante se formaria um inferno pior do que é o
purgatório, vendo ela que não podia unir-se, por aquele impedimento, a
Deus, seu fim. Este fim lhe importa tanto que, em comparação dele, o
purgatório se parece a nada, embora já se tem dito que se parece ao inferno.

A
14. — E ainda hei de dizer que, segundo vejo, o paraíso não tem por
parte de Deus nenhuma porta, mas que ali entra quem ali quer entrar,
porque Deus é todo misericórdia, e se volta para nós com os braços abertos
para receber-nos em sua glória.
E vejo também perfeitamente que aquela divina essência é de tal
pureza e claridade, muito mais do que o homem possa imaginar, que a alma
que em si tivesse uma imperfeição, ainda que fora mínima como um
fragmento de pó, se arrojaria imediatamente em mil infernos, antes de
encontrar-se ante a presença divina com aquela mancha mínima.
E entendendo que o purgatório está precisamente disposto para tirar
essa mancha, ali se arrojaria, como já disse, parecendo-lhe achar uma
grande misericórdia, capaz de tirar-lhe esse impedimento.

I
15. — A importância que tem o purgatório é algo que nem língua
humana pode expressar, nem a mente compreender. Eu vejo nele tanta pena
como no inferno. E vejo, sem embargo, que a alma que se sentisse com tal
mancha, o receberia como uma misericórdia, como já disse antes,
considerando-o como um nada, em certo sentido, em comparação daquela
mancha que lhe impede unir-se a seu amor.
Parece-me ver que a pena das almas do purgatório consiste mais em
que veem em si algo que desagrada a Deus, e que o fizeram
voluntariamente, contra tanta bondade de Deus, que em quaisquer outras
penas que ali possam encontrar-se. E digo porque, estando elas em graça,
veem a verdadeira importância do impedimento que não lhes deixa
aproximar-se de Deus.

C
16. — E assim me ratifico nisto que pude compreender inclusive nesta
vida, a qual me parece de tanta pobreza que toda visão de aqui de baixo,
toda palavra, todo sentimento, toda imaginação, toda justiça, toda verdade,
me parece mais mentira que verdade. E de quanto consegui dizer fico mais
confusa do que satisfeita. Mas se não me expresso em termos melhores, é
porque não os encontro.
Tudo o que aqui foi dito, em comparação do que capta a mente, é nada.
Eu vejo uma conformidade tão grande de Deus com a alma, que, quando
Ele a vê naquela pureza em que a criou, lhe dá em certo modo atrativo um
amor fogoso, que é suficiente para aniquilá-la, embora ela seja imortal. E
isto faz que a alma de tal maneira se transforme em seu Deus, que não
parece senão que seja Deus.
Ele continuamente a vai atraindo e acendendo-a em seu fogo, e já não
lhe deixa nunca, até que a tenha conduzido àquele seu primigênio ser,
isto é, àquela perfeita pureza na qual foi criada.

O
17. — Quando a alma, por visão interior, se vê atraída por Deus com
tanto fogo de amor, que redunda em sua mente, se sente toda derreter no
calor daquele amor fogoso de seu doce Deus. E vê que Deus, somente por
puro amor, nunca deixa de atraí-la e levá-la à sua total perfeição.
Quando a alma vê isto, mostrando-se Deus com sua luz; quando
encontra em si mesma aquele impedimento que não lhe deixa seguir aquela
atração, aquela mirada unitiva que Deus lhe dirigiu para atraí-la; e
quando, com aquela luz que lhe faz ver o que importa, se vê retardada para
poder seguir a força atrativa daquela mirada unitiva, se gera nela a pena
que sofrem os que estão no purgatório.
E não é que façam consideração de sua pena, embora em realidade seja
grandíssima, mas que estimam sobremaneira oposição que em si encontram
contra a vontade de Deus, ao que veem claramente aceso de um extremado
e puro amor para com elas. Ele os atrai tão fortemente com aquele seu
olhar unitivo, como se não tivesse outra coisa que fazer senão isto.
Por isso a alma que isto vê, se achasse outro purgatório maior que o
purgatório, para poder tirar mais rápido aquele impedimento, ali se lançaria
dentro, pelo ímpeto daquele amor que faz conformes a Deus e à alma.

A
18. — Ainda vejo mais. Vejo proceder daquele amor divino para a
alma certos raios e fulgures ígneos, tão penetrantes e tão fortes, que
pareceriam ser capazes de aniquilar não somente o corpo, mas também a
alma, se isto fosse possível.
Duas operações realizam estes tais raios na alma: primeiro a purificam,
e segundo a aniquilam.
Ocorre isto como com o ouro que, quanto mais o fundem, de melhor
qualidade se torna; e tanto poderia ser fundido, que chegaria a ver-se
aniquilado em toda sua perfeição. Este é o efeito do fogo nas coisas
materiais. A alma, pelo contrário, não pode ser aniquilada em Deus, mas
sim nela mesma; e quanto mais seja purificada, tanto mais vem a ser
aniquilada em si mesma, enquanto que permanece em Deus como alma
purificada.
O ouro, quando é purificado até os vinte quatro quilates, já depois não
se consome mais, por muito fogo que lhe apliquem, pois não pode
consumir-se senão a imperfeição desse ouro. Assim é, pois, como age na
alma o fogo divino. Deus lhe aplica tanto fogo, que consome nela toda
imperfeição e a conduz à perfeição de vinte quatro quilates — cada um
em seu grau de perfeição.
E quando a alma está purificada, permanece toda em Deus, sem nada
próprio em si mesma, já que a purificação da alma consiste precisamente na
privação de nós em nós. Nosso ser está já em Deus. O qual, quando conduz
a Si mesmo a alma deste modo purificada, a deixa já impassível, pois não
resta nela nada por consumir.
E se, então, fosse esta alma purificada mantida ao fogo, não lhe seria já
penoso, porque viria a ser para ela fogo de divino amor, que lhe daria vida
eterna, sem contrariedade alguma, como as almas bem-aventuradas, mas
já nesta vida, se isto fosse possível estando no corpo. Embora não creio que
Deus tenha na terra almas que estejam assim, senão para realizar alguma
grande obra divina.

P , D
19. — A alma foi criada com toda a perfeição de que ela era capaz,
vivendo segundo a ordenação de Deus, sem contaminar-se de mancha
alguma de pecado. Mas uma vez que ela se contaminou pelo pecado
original, e depois pelos pecados atuais, perde seus dons e a graça, fica
morta, e não pode ser ressuscitada senão por Deus.
Já ressuscitada pelo batismo, fica nela a má inclinação, que a inclina e
conduz, se ela não resiste, ao pecado atual, e morre assim outra vez.
Deus volta a ressuscitá-la com outra graça especial, mas ela fica tão
emporcalhada e convertida para si mesma, que para voltar a seu primeiro
estado, àquele em que Deus a criou, serão precisas todas estas operações
divinas, sem as quais a alma nunca poderia retornar à perfeição do estado
primeiro, em que Deus a criou.
E quando esta alma se acha em transe de recuperar seu primeiro estado,
é tal a inflamação de seu desejo para transformar-se em Deus, que esse é
seu purgatório. E não é que ela veja o purgatório como purgatório, mas que
aquela inclinação acesa e impedida é o que se torna para ela purgatório.
Este último estado do amor é o que faz esta obra sem o homem, porque
se encontram na alma tantas imperfeições ocultas, que se o homem as
visse, se afundaria na desesperação. Mas este último estado do amor as vai
consumindo todas, e Deus lhe mostra esta sua operação divina, a qual é a
que causa nela aquele fogo de amor que lhe vai consumindo todas aquelas
imperfeições que devem ser eliminadas.

I
20. — Aquilo que o homem julga como perfeição, ante Deus é
deficiência. Por certo, todas aquelas coisas que o homem realiza, segundo
como ele as vê, as sente, as entende e as quer, inclusive aquelas que têm
aparência de perfeição, todas elas estão manchadas. Para que essas obras
sejam completamente perfeitas, é necessário que ditas operações sejam
realizadas em nós sem nós, e que a operação divina seja em Deus sem o
homem.
E estas tais operações são aquelas que Deus, Ele só, faz nessa última
operação do amor puro e limpo. E são estas ações para a alma tão
penetrantes e inflamadas que o corpo, que está com ela, parece que está
incendiado; como se estivesse posto em um grande fogo, que não lhe
deixasse nunca estar tranquilo, até a morte.

A ,
Verdade é que o amor de Deus, que redunda na alma, segundo entendo,
lhe dá um gozo tão grande que não se pode expressar; mas este
contentamento, ao menos às almas que estão no purgatório, no lhes retira
sua porção de pena. E é aquele amor, que está como retardado, o que causa
essa pena; uma pena que é tanto mais cruel quanto é mais perfeito o amor
de que Deus a faz capaz. Assim pois, gozam as almas do purgatório de um
contento grandíssimo, e sofrem ao mesmo tempo uma grandíssima pena; e
uma coisa não impede a outra.

A
21. — Se as almas do purgatório pudessem purificar-se apenas pela
contrição, em um instante pagariam a totalidade de sua dívida. Com efeito,
o ímpeto de sua contrição é grande, pela clara luz que lhes faz ver a
importância daquele impedimento. Mas este deve ser pago integralmente,
e Deus não o condoa nem em uma mínima parte, pois assim está exigido
por sua justiça.

E , D
Por parte da alma, esta não tem já escolha própria, e já não alcança a
ver senão o que Deus quer; e não quer tampouco ver mais, senão o que
assim está estabelecido.
22. — E essas almas, se os que estão no mundo oferecem alguma
esmola para que diminua o tempo de sua prova, não estão em condições
de voltar-se para elas com afeto, a não ser que deixem em tudo que Deus
faça, o qual responde como quer. Se elas pudessem voltar-se, isto seria
um apego desordenado, que lhes tiraria do querer divino, o que para elas
seria um inferno.
Estão, pois, as almas do purgatório completamente abandonadas a
tudo o que Deus lhes dê, seja de gozo ou de pena; e já nunca mais podem
volver-se para si mesmas, tão profundamente estão as almas transformadas
na vontade de Deus, e o que esta disponha isso é o que lhes contenta.
T
23. — E se fosse apresentada ante Deus uma alma que ainda tivera uma
hora por purgar, se lhe infligiria com isso um grande dano, ainda mais
cruel que o purgatório, pois não poderia suportar aquela suprema justiça e
suma bondade. E ademais seria algo inconveniente por parte de Deus.
Esta pena intolerável afligiria a alma quando visse que sua
satisfação oferecida a Deus não era plena, embora só lhe faltasse um
piscar de olhos de purgação. Com efeito, antes que estar na presença de
Deus não totalmente purificada, preferiria arrojar-se ao instante em mil
infernos, se pudesse tomar esta decisão.

M
24. — Agora que vejo claramente estas coisas na luz divina, me vem
um desejo ardente de gritar com um grito tão forte, que pudesse espantar a
todos os homens do mundo, dizendo-lhes: Oh, miseráveis! Por que vos
deixais cegar assim pelas coisas deste mundo, que para uma necessidade
tão importante, como na que vos haveis de encontrar, não tomais
previsão alguma? Estais todos amparados sob a esperança da misericórdia
de Deus, que já disse é tão grande; mas não vês que tanta bondade de Deus
vai a tornar-vos juízo, por ter atuado contra sua vontade? Sua bondade
deveria obrigar-vos a fazer tudo o que Ele quer, mas não deve vos dar a
esperança de cometer o mal impunemente. A justiça de Deus não pode
falhar, e é preciso que seja satisfeita de um modo ou de outro plenamente.
Não te confies, pois, dizendo: eu me confessarei e conseguirei depois a
indulgência plenária, e ao momento me verei purificado de todos meus
pecados. Pensa que esta confissão e contrição, que são precisas para receber
a indulgência plenária, é coisa tão difícil de conseguir que, se o soubesses,
tu tremerias com grande temor, e estarias mais certo de não a ter que de
podê-la conseguir.

P
25. — Vejo que as almas do purgatório entendem estar sujeitas a duas
operações. A primeira é que padecem voluntariamente aquelas penas,
conscientes de que Deus teve para com elas muita misericórdia, tendo em
conta o que mereciam, sendo Deus quem é. Se sua imensa bondade não
atemperasse com a misericórdia a justiça, que se satisfaz com o sangue de
Jesus Cristo, um só pecado houvera merecido mil infernos perpétuos. E por
isso padecem essa pena com tanta vontade, que não quereriam lhes fora
reduzida nem em um grama, tão convencidos estão de que a merecem
justamente, e que está bem-disposta. Assim, enquanto à vontade, tanto se
podem queixar de Deus como se estivessem na vida eterna.
A outra operação é a do gozo que experimentam ao ver a ordenação de
Deus, disposta com tanto amor e misericórdia para com as almas. E estas
duas visões as imprime Deus naquelas mentes em um instante. Elas, como
estão em graça, podem entendê-las segundo sua capacidade; e isso lhes dá
um grande contentamento que não vem a faltar-lhes nunca, mas que vai
acrescentando-se à medida que se aproximam de Deus.
E estas visões não as têm as almas em si mesmas, nem por suas
próprias forças, mas as veem em Deus, em quem têm sua atenção muito
mais fixa que nas penas que estão padecendo, e das que não dão maior
importância. E a razão é que por mínima que seja a visão que se tenha de
Deus, ela excede a toda pena ou gozo que o homem possa captar; e
embora exceda, não lhe tira, contudo nada em absoluto desse
contentamento.

E
26. — Esta forma purificativa que vejo nas almas do purgatório, é a
mesma que estou sentindo em minha mente, sobretudo faz dois anos; e
cada dia a sinto, e cada vez mais claramente. Vejo que minha alma está
em seu corpo como em um purgatório, de modo semelhante ao verdadeiro
purgatório, na medida, contudo, em que o corpo possa suportá-lo sem
morrer; e isto sempre vai crescendo até a morte.
Eu vejo ao espírito abstraído de todas aquelas coisas, inclusive das
espirituais, que lhe poderiam dar alimento, como seria alegria e
consolação. E é que já não está em disposição de saborear alguma coisa
espiritual, nem por vontade, nem por inteligência, nem por memória, de
modo que possa dizer: “Isto me dá mais contentamento do que aquele
outro”.

J
Meu interior se encontra de tal modo assediado, que todas aquelas
coisas que mantinham a vida espiritual e corporal lhe foram retirados pouco
a pouco. Ao ser-lhe retiradas conheceram que não eram senão umas ajudas,
e ao reconhecê-las como tais, de tal modo as vai desprezando que todas
elas se vão desvanecendo, sem que nada as retenha. E é que o espírito tem
já em si o instinto de tirar tudo o que pode impedir sua perfeição, e está
disposto a agir com tal crueldade que se deixaria colocar no inferno com tal
de conseguir sua intenção.
E assim vai despojando ao homem interior de todas as coisas que
poderiam alimentar-lhe, e o assedia tão sutilmente que não lhe deixa passar
a mais mínima imperfeição, sem que ao ponto seja descoberta e aborrecida.
E esse mesmo assédio faz que meu espírito tampouco possa suportar
que aquelas pessoas que me são próximas, e que vão ao parecer para a
perfeição, se sustentem em criatura alguma. Quando os vejo cevados em
coisas que eu já desprezei, não posso senão afastar-me para não os ver, e
ainda mais quando são pessoas especialmente próximas a mim.

J
28. — O homem exterior, por sua parte, se vê tão desassistido pelo
espírito, que já não encontra coisa sobre a terra que possa recreá-lo,
segundo seu instinto humano. Já não lhe resta outra consolação que Deus,
que vai agindo tudo isto por amor e com grande misericórdia para
satisfazer sua justiça. E entender que isto é assim lhe dá uma grande
alegria e uma grande paz.
Não por isto, sai de sua prisão, nem tampouco o pretende, até que
Deus faça o que seja necessário. Sua alegria está em que Deus esteja
satisfeito, e nada lhe seria mais penoso que sair da ordenação de Deus, tão
justa a ver e tão misericordiosa.
Todas estas coisas as vejo e as toco, mas não sei encontrar as palavras
convenientes para expressar o que quereria dizer. O que eu disse, o sinto
agir dentro de mim espiritualmente.

M - , -
29. — A prisão em que me parece estar é o mundo, e a cadeia que a ele
me sujeita é o corpo. E a alma, iluminada pela graça, é a que conhece a
importância de estar privado, ou ao menos retardado, por algum
impedimento que não lhe permite conseguir o seu fim. Ela é tão delicada, e
recebe certamente tal dignidade de Deus pela graça, que vem a fazer-se
semelhante e participante dele, que a faz uma coisa consigo pela
participação de sua bondade.
E assim como é impossível que venha Deus a sofrer alguma pena,
assim lhes sucede àquelas almas que se aproximam dele, e tanto mais
quanto mais se aproximam dele, pois mais participam de suas propriedades.
Ora, o retardo que a alma sofre lhe causa uma pena, e esta pena e retardo
fazem-lhe desconforme àquela propriedade que ela tem por natureza.
E não podendo gozar dela, sendo dela capaz, sofre uma pena tão
grande quanto nela é grande o conhecimento e o amor de Deus. E quanto
está mais sem pecado, mais lhe conhece e estima, e o impedimento se faz
mais cruel, sobretudo porque a alma permanece toda ela recolhida em
Deus e, ao não ter nenhum impedimento externo, conhece sem erro.
30. — Assim como o homem que se deixa matar antes que ofender a
Deus, sente o morrer e lhe dá sofrimento, mas a luz de Deus lhe dá um zelo
seguro que faz estimar o honor de Deus mais que a morte corporal; assim a
alma que conhece a ordenação de Deus, tem mais em conta essa ordenação
que todos os tormentos, por terríveis que possam ser, interiores o exteriores.
E isto é assim porque Deus, por quem se fazem estas obras, excede a toda
coisa que possa imaginar-se ou sentir-se.
Todas estas coisas que fui expondo, a alma não as vê, nem delas fala,
nem conhece delas com propriedade ou dano; mas que as conhece em um
instante, e não as vê em si mesmas, porque aquela atenção que Deus lhe dá
de si mesmo, por pequena que seja, de tal modo absorbe a alma que excede
a todas as coisas, das que já não faz caso.
Enfim, Deus faz perder aquilo que é do homem, e no purgatório o
purifica.
Síntese da Doutrina de Santa Catarina
1. ― Na morte, ao ver-se a alma separada do corpo, se arroja ali
onde lhe corresponde estar: céu, inferno ou purgatório. Concretamente, se
ainda fica nela algo que purificar, experimenta a necessidade do
purgatório, isto é, do purificatório.
2. ― Ao purgatório vai a alma que carece já de culpa, mas que ainda
não eliminou totalmente os maus vestígios deixados em seu ser pelo
pecado. Estes, ao não estar suficientemente apagados nesta vida pela
penitência, constituem a pena temporal que deve ser purgada, pois são o
impedimento que retarda, que faz ainda impossível, a união com Deus no
céu.
3. ― Embora com relativa frequência alude Santa Catarina à
necessidade de que se cumpra a justiça divina, o purgatório, em sua
descrição, se manifesta mais como uma exigência ontológica do próprio ser
da alma, do que como uma pena jurídica, merecida por causa dos pecados.
4. ― A alma perde toda atenção de si mesma ou de suas companheiras
de purificação, absorta no amor de Deus e, alheia a todo valor de tempo ou
espaço, vive abandonada às operações divinas que a vão purificando.
5. ― O fogo do amor de Deus é o que precisamente vai consumindo na
alma toda ferrugem ou mancha de pecado. O sofrimento do purgatório é,
pois, antes de tudo a pena de dano, muito mais que a pena de sentido, isto é,
muito mais que “quaisquer outras penas que ali possam encontrar-se”.
Com efeito, o mais terrível para a alma é o dilaceramento interior produzido
por um amor que, por causa desses impedimentos ainda não completamente
aniquilados, se vê retardado na ânsia de sua perfeita posse de Deus. E
quanta mais purificação, mais intenso o amor e mais cruel a dor. Amor e
dor parecem crescer assim no purgatório em acelerado progresso. O
purgatório é, pois, um crescendo de amor e dor que conduz ao céu, à
felicidade perfeita.
6. ― Há nas almas do purgatório um gozo imenso, parecido ao do céu,
e uma dor imensa, semelhante ao do inferno; e um não impede o outro.
Capítulo II
Catecismo sobre o Purgatório

O ?
Purgatório é o lugar onde vão as almas dos que morrem em graça de
Deus, sem haver inteiramente satisfeito por seus pecados, para ser ali
purificadas com terríveis tormentos.

D
O purgatório pode considerar-se ou como um estado da alma que é
purificada, ou como um lugar e sítio destinado a estas purificações das
almas. O purgatório como estado é uma verdade de fé. Isto é, que é dogma
de fé que há um estado das almas intermédio entre esta vida e o paraíso da
glória. Sempre foi assim acreditado pela Igreja e seus Santos Padres.
Tanto, que o mesmo Calvino, que negava a existência do purgatório,
confessava que, até vir os protestantes, todos os Padres e Doutores da
Igreja por espaço de mil e seiscentos anos assim unanimemente haviam
acreditado. Embora dizia que estavam enganados. Estupenda presunção.
A Igreja creu sempre que, ademais de almas ditosas e condenadas, há
outras nem condenadas nem bem-aventuradas; que estas sofriam e
necessitavam de consolo, auxílios, sufrágios…; que a causa de estar assim
eram os pecados cometidos nesta vida; que tais almas iriam por fim para a
glória mais ou menos em breve, segundo a dívida e segundo nossos
sufrágios. Isto é o purgatório.

P
Semelhante ao inferno, se padecem ali dois tipos de penas. Uma de
dano e outra de sentido.
P
É carecer da vista de Deus; não entrar na glória. Não padecem isto
eternamente como no inferno; mas sim temporalmente. E é pena muito
grande pelo grande desejo que tem de ver a Deus. Pode-se comparar seu
estado ao de um prisioneiro, ao de um desterrado, ao de um órfão ou
desamparado. E pelo o que estes sofrem se vê o que sofrerão os do
purgatório em muito maior grau.

P
Ademais padecem alguma pena de sentido, isto é, algumas aflições
positivas, e semelhantes à dores sensíveis que aqui padecemos. Não é fácil
determinar de que tipo são estas penas, nem sequer se são de uma ou
várias. Parece que as há de vários tipos, e embora não seja de fé, é
persuasão dos Doutores em geral que uma destas penas é de fogo, que,
segundo alguns, não se diferencia em qualidade do fogo do inferno.

I
Não se pode assegurar quanto seja. Todos os Doutores estão
conformes em assegurar que no purgatório há penas gravíssimas, penas
mais graves que todas as desta vida. Conhecidas são as ponderações dos
Santos Padres. “Este fogo — diz Santo Agostinho — supera quantas
penas o homem padece nesta vida e quantas pode padecer”. “Penso —
escrevia São Gregório — que aquele fogo transitório é mais intolerável que
todas as tribulações deste mundo”. E São Cesáreo de Arles: “Dirá
alguém: não me importa deter-me algo no purgatório, com tal que ao
fim saia para a vida eterna. Irmãos caríssimos, não digais isso; porque
esse fogo do purgatório será mais duro que quantas penas se podem ver,
sentir ou pensar”. Estas e outras não menos temerosas sentenças dos Santos
Padres dão ideia do gravíssimo estado das almas do purgatório, pelo menos
das que estão sentenciadas à pena do fogo, que, segundo a generalidade
dos Doutores, é a pena principal do purgatório.
P ?
Creem muitos Doutores, e com bastante fundamento, que não todas as
almas do purgatório estão sujeitas precisamente à pena do fogo; mas a
outras das várias que a justiça de Deus, com sua sabedoria, pode decretar. E
disputam sobre a intensidade destas penas. Muitos dizem que todas as penas
que há no purgatório são tão graves, que a menor delas é mais dolorosa
que a maior que há no mundo. Outros, embora concedam que as maiores do
purgatório são mais graves que as mais graves deste mundo, sem embargo,
creem que há outras muitas inferiores às grandes dores desta vida.
Certamente, não entendemos nós a importância do pecado venial, e por
isso não podemos julgar bem dos castigos que merece; mas tampouco se
pode negar que há almas que servem a Deus com muitíssimo esmero,
apenas faltam em nada e se purificam com muitas obras de penitência; as
quais, sem embargo, é possível que tenham algo de que purificar-se antes de
entrar ali onde não se sofre nenhuma mácula. Ora, destas almas se faz
difícil pensar que Deus Nosso Senhor as atormente com penas maiores
que as maiores deste mundo, sabendo como sabemos que a misericórdia
divina se excede sempre em remunerar e fica aquém no castigar.
Ademais, de não poucas revelações parece deduzir-se com
fundamento, que algumas almas têm um purgatório muito suave; e em
particular os Doutores aduzem sempre a respeito uma visão de que fala São
Beda, o Venerável, em que aparecem alguns no purgatório com vestiduras
brancas e resplandecentes, e em lugar luzente e ameno.

P ?
Semelhante purgatório tão suave e breve somente podem esperá-lo
aqueles cristãos exatos e fervorosos que cometem muito poucas faltas, ou
as purificam com obras de virtude e penitência.
Sobretudo, horroriza o purgatório que terão todos esses infelizes que
passam a vida sem pensar em emendar a sua consciência, de diversão em
diversão, de prazer em prazer, de luxo em luxo, sem ter cuidado senão de
si mesmos; e lhes parece que com que se confessem em sua última
enfermidade, já igualaram sua morte com a daqueles que serviram a Deus
com humildade, perseverança e fervor.

Q ?
Em primeiro lugar, os pecados veniais. Porque pelo pecado venial não
se perde a graça de Deus, nem fica o homem excluído da glória, mas como
no céu não pode entrar nada manchado, é preciso pagar e purificar-se deste
pecado. É questão difícil de resolver quando se perdoa o pecado venial de
quem morre com ele. Parece que pode dizer-se que as almas dos justos,
enquanto se separam do corpo, se dirigem arrebatadas de grande amor
para Deus; com o qual se extingue nelas todo afeto desordenado, se lhe
havia. Com isto se lhes perdoa todo pecado venial imediatamente, se bem
tenha que pagar por ele algumas penas. Se lhes perdoam enquanto à culpa,
os pecados veniais aos justos que morrem, quase no mesmo morrer, do
mesmo modo que nesta vida, por um ato de caridade, oposto aos pecados
cometidos em vida. Mas como já depois da morte não é tempo de merecer,
esse ato de amor tira neles o impedimento da culpa venial, mas não merece
a absolvição da pena nem diminuição dela como nesta vida mereceria.
Além dos pecados veniais, são causa de purgatório os mortais
perdoados. Porque quando alguém se confessa e recebe a absolvição dos
pecados mortais, se lhe remite a pena do inferno, mas não toda a pena
temporal da vida pelos pecados mortais; se não se paga nesta vida, é preciso
pagá-la no purgatório.

L
Pode-se crer que há um lugar debaixo da terra, próximo do outro
inferno [dos condenados], embora separado dele, onde de lei ordinária vão
as almas a purificar-se. Mas, ademais, por especiais disposições de Deus,
parece poder afirmar-se que algumas almas estão em outros lugares, por
razões que a Providência às vezes oculta, às vezes manifesta. E certamente,
Deus concede mais vezes às almas do purgatório que às do inferno
comunicar-se com os fiéis deste mundo. E ainda para alguns, por suas
especiais faltas, lhes impôs especiais lugares para purificar-se, a julgar
por algumas aparições.

T
Não sabemos tampouco quanto tempo estarão detidas as almas no
purgatório até antes do dia do Juízo. Mas também parece certo que podem
durar muitos anos, pois a Igreja admite sufrágios para muito tempo. E é
muito de temer que estejam no purgatório muito tempo os que dilataram sua
conversão até a última hora, vivendo sempre em culpas e vícios até então.

S
Seguramente pode isto afirmar-se, por ser muitos os que diariamente
morrem. Dos quais muitos, sem dúvida, se salvarão; mas é fácil que tenham
que pagar alguma pena temporal devida.

E
As almas do purgatório estão seguras de sua salvação. Lutero, que tudo
perturbava, dizia que não. Mas no dia do juízo particular se dirá a cada
qual sua sentença, e então saberão as almas sua sorte futura. Lutero também
é o autor daquele disparate que assegura que as almas estão pecando
continuamente de raiva e de horror no purgatório. Ao contrário, estão
muito resignadas e esperando sua saúde. Deus lhes permite não poucas
vezes sair a aparecer-se a seus amigos e parentes, para pedir sufrágios.

S
Chamam-se sufrágios as orações e boas obras que os fiéis oferecem a
Deus para que perdoe às almas parte ou toda a pena que tem que pagar.
Chama-se sufrágios porque não tem Deus nenhum compromisso de aceitar
nossas boas obras em favor das almas, nem é infalível que as aceite. Nós as
oferecemos, e com elas apresentamos a Deus nosso sufrágio, nosso voto e
desejo de que por aquelas obras que nós cedemos e oferecemos em favor
das almas se digne livrá-las do purgatório. Mas que Deus aceite ou não o
que nós oferecemos, e que o aceite por tais almas ou por outras, isso
depende de sua misericórdia e livre disposição. São secretos os juízos de
Deus neste ponto. E por isso devemos instar em orar e oferecer mais e mais
sufrágios, para mover a misericórdia divina.

T
Três gêneros de boas obras que ajudam e consolam às almas podemos
assinalar.

A
Estas têm muita eficácia em favor das almas. A Igreja tem muitíssimas
e belíssimas preces para orar por elas, no Ofício de Defuntos, na Missa, nas
exéquias. Estas orações têm mais força diante de Deus quando se fazem de
ofício por seus ministros, não porque estes sejam melhores ou piores, mas
por serem orações, como oficiais da Igreja toda, litúrgicas.

A
Nesta conta entram primeiro as penitências feitas expressamente para
satisfazer a Deus pelos pecados, como jejuns, cilícios, disciplinas,
incomodidades, privações, etc. Ademais, todos os sofrimentos ordinários,
embora sejam involuntários, como enfermidades, desgraças, contrariedades,
inclemências do tempo, cansaços do trabalho, e ainda as circunstâncias da
vida que Deus nos deu, como pobreza, tristeza, humilhação, trabalho, etc.,
levados com resignação.

T
Atos de virtude, e sobretudo, as Missas, as esmolas, as obras de
caridade e de misericórdia, os Ofícios divinos. E costuma ser uso antigo
renovar estes ofícios funerais em certos períodos, como o terceiro dia, em
lembrança da Ressurreição de Nosso Senhor; o nono, por devoção aos nove
coros angélicos, a quem a Igreja encomenda os moribundos e defuntos; o
quadragésimo, em lembrança dos quarenta dias que duraram os funerais de
Moisés, e, sobretudo, o aniversário.
O escapulário do Carmo levado em vida é bem sabido que é muito
eficaz para obter pronta saída do purgatório ao sábado seguinte; mas
para isso é preciso guardar a castidade própria de cada estado e rezar o
Ofício Parvo ou aquelas orações nas quais os que têm autoridade comutem
esta oração.

I
Um dos melhores modos de sufrágios pelas almas são as indulgências.
Indulgências são a remissão da pena temporal devida pelos pecados, que,
perdoada a culpa, no Sacramento ou por contrição, faz a Igreja fora do
Sacramento, concedendo aos fiéis parte do tesouro que ela tem formado das
satisfações infinitas de Cristo, das abundantes da Virgem e das que os
Santos deixavam, porque lhes sobrava depois de pagar as penas que por
suas faltas eles deviam. Estas indulgências são uma espécie de regalo que
a Igreja faz a certos fiéis com certas condições, aplicando-lhes o valor
satisfatório de outros. E concede que se possam oferecer também a Deus
pelas almas. Hoje todas as indulgências, a não ser que se diga
expressamente o contrário em alguma, são aplicáveis às almas. O Rosário e
o Terço têm muitas, o escapulário do Carmo, o azul da Imaculada, muitas
orações, jaculatórias e obras pias têm muitas indulgências. É de notar que
quando se diz tantos dias de indulgência, não significa que serão
diminuídos a uma alma outros tantos dias do purgatório, mas unicamente
que se concede o valor satisfatório equivalente a outros tantos dias de
penitência canônica, como se fazia antigamente conforme os cânones; e se
é aceita por Deus, se perdoa à alma tanto quanto se lhe houvera perdoado se
em tantos dias houvera feito aquela penitência.

V
Com este nome se designa o que também se chama ato heroico em
favor das almas. É o oferecimento que fazem alguns devotos das almas a
Deus de todo o valor satisfatório das próprias obras. De tal modo, que
quem o faz oferece tudo quanto está de sua parte, a que todas a suas obras
feitas nesta vida, e o mesmo as indulgências ganhas, etc., não lhe valham
para tirar-lhe a ele penas do purgatório, mas que tudo cede para as almas,
comprometendo-se ele a pagar tudo o que deva no purgatório. Este ato é
muito meritório, e por ele se ganha muito mérito diante de Deus, ainda
quando se perca para si mesmo muita satisfação, se Deus aceita em favor
das almas. A Igreja concedeu a este voto muitas indulgências e graças. É de
notar que quem o faz pode dispensar-se a si mesmo do voto quando
quiser.
Capítulo III
Considerações Morais
O dogma do purgatório é um dos mais instrutivos e fecundos em
consequências práticas para nossa vida católica. Oferecemos em seguida
algumas considerações morais que podem ser muito úteis para a meditação
pessoal.

C
Inumeráveis são as vantagens espirituais que nos dá a frequente e
séria meditação das penas do purgatório. Eis aqui algumas das mais
importantes:
1. — Dá-nos uma ideia muito alta da santidade e majestade divinas.
Nada manchado pode comparecer diante dele.
2. — Recorda-nos a gravidade do pecado, manifestando-nos a
desordem, com frequência inadvertida, das culpas veniais, que tão
terrivelmente haverá que expiar no purgatório se não fazemos a devida
penitência nesta vida.
3. — Aumenta consideravelmente nossa esperança de conseguir a
vida eterna. Se não houvesse purgatório, quem poderia aspirar a entrar na
glória com tantas imperfeições e pecados? Mas as purificações de depois da
morte são um grande motivo para levantar nossos olhos ao céu cheios de
arrependimento e de esperança.
4. — Faz-nos penetrar no mistério da comunhão dos santos e nos une
espiritualmente aos seres queridos que se foram, a quem podemos ajudar
ainda com nossos sacrifícios e orações. Com frequência, ao morrer um ser
querido nos sentimos cheios de remorsos por não lhe ter demonstrado
melhor durante sua vida o afeto que sentíamos por ele. Eis aqui um meio
excelente de reparar nosso esquecimento e ingratidão: oferecer-lhe um
grande número de sufrágios, que agradecerá no purgatório muito mais que
todas as demonstrações afetivas que houvéramos podido fazer-lhe
durante sua vida.
5. — Ao excitar nossa caridade com os defuntos, aumentam
consideravelmente nossos méritos ante Deus e nos enriquece a nós muito
mais que a eles. Nossa recompensa será verdadeiramente esplêndida, tanto
mais quanto maior for nossa caridade e generoso desprendimento.
6. — Faz-nos compreender cada vez melhor o sentido da vida
presente, a vaidade e vazio das coisas terrenas, a necessidade da reparação e
da penitência, a grande importância do sofrimento e da cruz, a eficácia
soberana do Santo Sacrifício da Missa.
7. — Enfim, o pensamento do purgatório nos aproxima do céu. O
purgatório, com efeito, não é a antessala do inferno, mas o vestíbulo da
glória; não é um inferno provisional, mas um simples intervalo antes de
entrar no céu. No purgatório reina a dor, certamente; mas também a
caridade mais intensa e profunda; e com ela o sossego, a tranquilidade e a
paz. No horizonte brilham já, para as almas do purgatório, as primeiras
luzes da eternidade bem-aventurada.

M
Podemos e devemos fazer tudo quanto esteja de nossa parte para
evitarmos as terríveis purificações de além-túmulo ou para diminuir sua
intensidade e duração. Deus não quer que vamos ao purgatório. Prefere
que reparemos nossas culpas aqui na terra, para que não se dilate um só
instante nossa entrada no céu na hora da morte. A vida do cristão deveria
ser tal, que no momento mesmo de morrer estivesse ele preparado para a
visão beatífica imediata. O purgatório é um último esforço da misericórdia
de Deus para acolher em seu seio às almas imperfeitas, que rechaçaria
eternamente sua justiça divina.
Eis aqui os principais meios para evitar o purgatório:

1º — F
Por menor e leve que seja. ― No momento do juízo, à luz do céu
divino, nós daremos conta de sua espantosa gravidade. E descobriremos em
nós uma infinidade de manchas e defeitos que agora se nos escapam ou
que apenas lhes concedemos importância: “Em aposento onde entra tanto
sol, não há teia de aranha escondida”, dizia Santa Teresa.

2º — F
Teremos que fazer forçosamente, queiramos ou não, nesta vida ou na
outra. Tudo deve ser reparado, até o último centavo. Mas a diferença é
enorme entre fazê-lo nesta vida ou na outra. Porque aqui na terra, com a
penitência voluntária, podemos oferecer a Deus uma verdadeira satisfação
por nossas culpas; coisa que não podemos fazer no purgatório, onde as
penas têm tão só o caráter de expiação. Com dores muito mais suportáveis,
mas oferecidas a Deus com amor, em espírito de penitência, unidos aos
sofrimentos redentores de Jesus e de Maria, podemos saldar neste mundo
todas as nossas contas com a divina justiça, aumentando ao mesmo tempo
nossos merecimentos para o céu.
No purgatório, pelo contrário, com dores incomparavelmente mais
terríveis, não mereceremos absolutamente nada; aquela purificação não tem
valor algum meritório e deixa a alma no mesmo grau de méritos que tinha
ao começá-la. Se tivéramos fé viva, como a tinham os santos, a dor para o
católico teria maiores atrativos que o prazer para o gentio.
Por isso os santos se engenhavam em crucificar-se de mil maneiras.
Não estavam loucos: viam, simplesmente, com claridade. O sofrer passa;
mas o ter sofrido bem não passará jamais. São Pedro de Alcântara,
aparecendo depois de sua morte a Santa Teresa de Jesus, disse-lhe radiante
de luz: “Bendita penitência, que tão grande glória me alcançou!”.

3º — C
O Senhor nos diz no Evangelho que com a mesma medida que
medirdes sereis medidos (Mt. 7, 2) e que são bem-aventurados os
misericordiosos, porque eles alcançarão misericórdia (Mt. 5, 7).
Santo Agostinho chega a dizer que nem todas as almas do purgatório
recebem os sufrágios que são oferecidos por elas, mas unicamente
aquelas que durante sua vida se fizeram credoras a eles.
E embora estas palavras possam interpretar-se em um sentido mais
benigno, não cabe dúvida que o grau de nossa caridade atual para com as
almas do purgatório será um índice e expressão do grau em que seremos
atendidos quando lá estivermos. Quanta gente que não compreende assim e
que se horroriza, por exemplo, do ato heroico de caridade em favor das
almas do purgatório, que, em realidade, a ninguém enriquece tanto como ao
que o faz com verdadeira generosidade.

4º — C
Outro aspecto da caridade que se apoia no mesmo princípio que
acabamos de invocar. A Sagrada Escritura nos diz expressamente que a
esmola expia os pecados. E Cristo nos diz no Evangelho que aceitará como
feito a Ele mesmo o que fizermos pelo menor dos seus irmãos; e nos diz
também que aproveitemos os bens terrenos para granjearmos amigos nos
eternos tabernáculos. Mas a maioria dos homens não compreendem estas
coisas, e preferem fazer-se a ilusão de que são ricos setenta anos neste
mundo antes de ser efetivamente milionários no outro para toda a
eternidade.

5º — P
Condição indispensável para que também nos seja perdoada as injúrias
que cometamos. Está demasiado claro no Evangelho para que alguém possa
dizer-se enganado; como nos portemos com o próximo, assim se portará
Deus conosco, sobretudo no que se refere ao perdão das injúrias (Mt. 6, 14-
15).
Apenas se pode pensar como pode albergar um cristão em seu seio o
espírito o desejo de vingança. Que cegueira! Não adverte o desgraçado que
ao não querer perdoar a seu inimigo se constitui automaticamente em
verdugo de si mesmo, e que, ao tratar de vingar-se dele, em realidade se
crava uma punhalada em seu próprio coração. E tudo por umas palavras
mal-humoradas, por um pleito terreno, quase sempre por questão de
dinheiro — ainda que sejam vários milhões é igual: tudo é asco e lixo ante
a salvação da alma —, que terão que deixar tudo dentro de muito pouco à
borda de seu sepulcro! Supondo que se salvem — e não se salvarão se não
perdoam de todo coração antes de morrer —, terão que pagar em um
terrível purgatório sua resistência e obstinação em não ter querido perdoar
em seguida aquelas injúrias recebidas, incomparavelmente menores que as
que eles fizeram a Deus.

6º — G
Expusemos mais acima quanto contribuem as indulgências para abater
e ainda suprimir totalmente as penas do purgatório. Pois bem, essa mesma
virtude pode ter já em vida a nosso favor. O tesouro espiritual da Igreja,
constituído pelos infinitos méritos e satisfações de Jesus Cristo e pelos da
Santíssima Virgem e dos Mártires e santos, é inesgotável. A Igreja dispõe
deles não só em favor das almas do purgatório, mas também dos fiéis deste
mundo que com as devidas condições pratiquem as obras piedosas que ela
assinala. Jubileus, indulgências plenárias ou parciais, contêm um acúmulo
imenso de satisfação e de expiação por nossos pecados ante a justiça divina.
A bênção papal na hora da morte e a indulgência plenária outorgada a
variados atos religiosos que nesse momento se pratiquem, não têm outro
fim senão preparar a alma para sua pronta entrada no céu, quiçá sem
passar pelo purgatório.

7º — O S S M , C ,
.
O que expusemos ao tratar dos sufrágios em favor das almas do
purgatório, tem aqui também valor para satisfazer em vida por nossas
dívidas e diminuir as penas que nos corresponderiam no purgatório.
Especialmente o Santo Sacrifício da Missa, de infinito valor satisfatório e
expiatório. Encomendar a celebração da Santa Missa por nossos pecados,
ouvi-la com devoção, unindo nossa intenção à do sacerdote, à de Jesus
Cristo no altar, que é a mesma da cruz; oferecer junto com os nossos
pequenos sacrifícios, nossas tribulações e penas e nossa própria vida,
aceitando de antemão a morte que Deus nos tenha destinada, oferecendo-a
em sufrágio de nossos pecados; tudo isso, unido ao sacrifício do Calvário,
que se renova na Santa Missa, tem uma virtude incomensurável para
diminuir ou evitar nossa permanência no purgatório.

8º — C S
É igualmente grande a virtude de satisfação e expiação por nossos
pecados que possui a confissão sacramental, não somente pelo que em si
mesma supõe humilhação e sacrifício a manifestação de nossas culpas,
confessadas com verdadeiro arrependimento em ordem a obter a absolvição
das mesmas, mas principalmente pelo cumprimento da penitência que o
confessor nos impõe, que se dirige diretamente a satisfazer e expiar em tudo
ou em parte a pena devida pelos nossos pecados e, por conseguinte, a
diminuir a que nos corresponderia no purgatório.
É lamentável que muitos fieis não tenham ideia clara da virtude de
penitência que nos impõe o confessor, e que alguns prefiram confessar-se
com quem se contenta com impor penitências pequeníssimas, quase como
por cumprir. Ainda estas tão desproporcionadas com o castigo que merecem
nossas culpas já perdoadas, têm bastante mais eficácia, em virtude do
mesmo sacramento, para satisfazer à justiça divina, que as penitências e
sacrifícios privados que nós pratiquemos. A penitência sacramental obra ex
opere operato, em virtude dos méritos e satisfações de Jesus Cristo
vinculados ao sacramento por Ele fundado. Os sacrifícios privados agem
somente na medida de nossa devoção e da importância dos mesmos.

9º — D N S
Os santos afirmam unanimemente que a Santíssima Virgem assiste com
ternura maternal a seus verdadeiros devotos na hora da morte, alcançando-
lhes a perseverança final e um vivíssimo arrependimento de seus pecados,
que lhes desconta em grande parte a pena temporal devida por eles. E se
algo fica ainda para o purgatório, intercede por eles ante seu divino Filho
para apressar-lhes a hora da libertação.
Em ordem ao purgatório, as devoções marianas mais eficazes e as que
ela mais agradece são a reza piedosa e diária do santo Terço, riquíssimo em
indulgências tanto plenárias como parciais, e o santo escapulário do Carmo
dignamente levado em vida e na hora da morte.
Por meio destas práticas realizadas com perseverança e bom espírito,
podemos desde agora satisfazer por nossas culpas, abater o tempo do
purgatório e adiantar o momento de nossa entrada na glória.
Capítulo IV
Importância da fé no purgatório
Embora já tenha ficado suficientemente afirmada a importância
fundamental da fé no purgatório, quero acrescentar algumas observações.
O amor de Deus se manifesta em toda sua grandeza quando pensamos
que seu empenho em nos deificar, iniciado na criação de nossa alma e no
batismo, se não se realiza suficientemente nesta vida, segue operando na
outra, mediante o purgatório, para transformar-nos plenamente nele.
Para não pecar, nós pecadores temos de recordar muitas vezes o
purgatório. Temos de guardar extrema fidelidade à graça de Deus, se não
queremos resisti-la como maus e imbecis com pecados que, por leves que
sejam, produzem em nós deformidades que fazem impossível a perfeita
união com Deus.
Para fazer penitência, temos de recordar aos pecadores que, por
muita que seja a misericórdia de Deus e por total que tenha sido a
remissão de nossa culpa teremos de purificar-nos largamente no
purgatório de todos aqueles vestígios de nossos pecados dos que não nos
tenhamos purificado suficientemente neste mundo pela penitência.
Para exercitar a devida caridade para com os fiéis defuntos é necessário
que a fé no purgatório esteja viva e operante. De outro modo, facilmente se
pensa que, uma vez cumpridos com os doentes graves e agonizantes todos
os deveres da caridade — noites em vela, gastos, remédios, auxílios
morais, etc.—, uma vez mortos, “já nada se pode fazer por eles”; com o
que não é raro que caiam no esquecimento. A fé cristã, pelo contrário, nos
diz que podemos e devemos fazer muitíssimo em favor de nossos queridos
fiéis defuntos.
E se não fazemos mais por eles, não é somente porque nos falta a
caridade, mas porque somos “homens de pouca fé” (Mt. 14, 31; Lc. 12, 28).
Antigamente o povo católico tinha mais piedade para com as almas do
purgatório, porque tinha uma fé mais firme e esclarecida no purgatório e na
validez dos sufrágios oferecidos pelos defuntos: rezava diariamente por
eles, especialmente pelos familiares — o toque “de animas” nas paróquias
—, e oferecia-se por eles com mais frequência Missas e penitências
pessoais. Hoje se considera de mal gosto — muito “negativo” — pensar
ou falar da morte, e facilmente deixamos a nossos fiéis defuntos sem os
sufrágios que por eles deveríamos oferecer a Deus, e que por sua
misericórdia são eficacíssimos.
A Igreja, sem embargo, não cessa de estimular-nos a rogar e a oferecer
sacrifícios por eles. Concretamente, cada dia o faz no memento pelos
defuntos.
Não deixemos, pois, de fazer agora por nossos fiéis defuntos o que,
quando nós estivermos no purgatório, queremos que os fiéis vivos da terra
façam por nós.
E ainda mais, tenhamos verdadeira devoção pelos fiéis defuntos, que já
estão confirmados na graça. Eles já chegaram à visão beatífica, à certeza da
salvação, em Cristo Nosso Senhor.
Nós, pelo contrário, ainda estamos a caminho para o Céu…
SUMÁRIO
SANTA CATARINA DE GÊNOVA (BREVE BIOGRAFIA)
O
OT P
B
A
INTRODUÇÃO
P ?
M , ?
E, ?
CAPÍTULO I — TRATADO DO PURGATÓRIO
E
A , D
C
S
P
S
I
P D
C D
O
A
A
A
I
C
O
A
P , D
I
A ,
A
E , D
T
M
P
E
J
J
M - , -
SÍNTESE DA DOUTRINA DE SANTA CATARINA
CAPÍTULO II — CATECISMO SOBRE O PURGATÓRIO
O ?
D
P
P
P
I
P ?
P ?
Q ?
L
T
S
E
S
T
A
A
T
I
V
CAPÍTULO III — CONSIDERAÇÕES MORAIS
C
M
1º — F
2º — F
3º — C
4º — C
5º — P
6º — G
7º — O S S M , C , .
8º — C S
9º — D N S
CAPÍTULO IV — IMPORTÂNCIA DA FÉ NO PURGATÓRIO
Non nobis Domine, non nobis,
sed nomini tuo da gloriam!

[1] Adaptado e aumentado a partir de: Vida dos santos, Padre Rohrbacher. Vol. V, Editora das
Américas. São Paulo, 1959.
[2]
Guelfos e gibelinos — Nos séculos XIII e XIV, a Itália divide-se entre os partidários do papa, a
parte Guelfa (os partidários de Otão IV) e a parte Gibelina (partidários dos Hohenstaufen, liderados
por Frederico II), defensora do imperador; os guelfos predominam em Florença, Milão, Bolonha,
Mântua e Ferrara; os gibelinos em Siena, Pisa, Rimini, Modena, Pavia e Cremona; no fim do século
XV, os guelfos assumem-se como aliados do rei de França, enquanto os gibelinos se inclinam para
Carlos V.
[3]
Refere-se à tradução espanhol, a qual nos serviu de texto.
[4]
A explicação do Catecismo está tomada de Puntos de Catecismo, do Padre Remigio Vilariño
Ugarte, S. J. 9ª ed. Editorial “El Mensajero del Corazón de Jesús”, 1947.
[5]
Teología de la Salvación, Antonio Royo Marín, b.a.c. — 1959.
[6]
Capítulo 41 do Ms. Dx.
[7]
“Quando tomba uma árvore para o sul ou para o norte, lá onde cai, fica”.

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