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MARI, H. et alii. Andlise do dis Horizonte: Nucleo de Andlise Jundamentos ¢ préticas. Belo Discurso-FALE/UFMG, 2001 UMA TEORIA DE ANALISE DO DISCURSO: A SEMIOLINGUISTICA Ida Liicia Machado FALE/UFMG Existe apenas uma tinica Anilise do Discurso (ou r simplesmente AD), sendo utilizada no ambito da pesquisa discursiva, no Brasil? Iniciamos este artigo com uma questo cuja resposta esta sugerida no proprio titulo, através do uso do artigo indefinido “uma”... pois, obviamente, sio varias as correntes de anilise que se apresentam, se entrecruzam no momento atual, em torno da disciplina que se convencionou chamar “Anilise do Discurso”. Alids, antes mesmo da reflexiio sobre a existéncia — ou niio - de uma “teoria-dominante” ja se nota, em alguns pesquisadores de diferentes filiagdes tedricas, uma grande preocupagdo com a polissemia do termo “discurso”. Observemos, a titulo de ilustragio apenas alguns casos, comegando por Maingueneau: este tedrico registra, em uma primeira abordagem, cinco definigées para o termo (1976: 11); mais tarde, retomando a questio, propde sete empregos possiveis de “discurso” (1991: 14,15); finalmente, dedica ao discurso todo um capitulo, intitulado Discours, énoncé, texte (1998: 37-43), onde explicita os empregos usuais “de ce qu'on appelle te discours.” (1998: 37). Imbufdo da mesma preocupagiio, Charaudeau (1988: 48) dé ao termo dois empregos, suscetiveis de recobrir duas realidades linguageiras, ou sej “Diune part, le terme discours correspond au “dispositif” de la mise en scene du langage qui détermine les régles d'un genre/../. D'une autre part, le terme discours 39 correspond aux représentations des systémes de valeurs qui circutent dans un groupe social donné/.../” No que diz respeito & pesquisa no Brasil, a indagagio: “o que é afinal de contas um discurso e como utilizar 0 conceito na perspectiva de uma andlise do discurso?” vai inspirar Pesquisadores como Coraccini (1991), De Caux (1993: 39) e Machado! (1997, 1999, 2000), entre outros. Voltando a questao inicial, 0 que nos interessa aqui € mostrar que sao possiveis varias abordagens no Ambito da-Anilise do Discurso, 0 que vird, sem diivida, contrariar as opinides de alguns colegas, também analistas do discurso que, quando escrevem sobre 0 tema, falam de uma AD, que seria, em sintese, 0 resultado das transformagGes/evolugdes da ADF (Andlise do Discurso Francesa), sem se preocupar com a existéncia de outras’ propostas de and ise, igualmente ricas, mas njio necessariamente ligadas a citada corrente. Tomemos como exemplo o que se passa, atualmente, no Niicleo de Andlise do Discurso da FALE/UFMG. Ao lado de teorias cujos fundadores (ém origens francesus e sufgas, coabitam, em paz, teorias cujos fundadores tém origens anglo-americanas. Na primeira vertente encontramos pesquisadores que seguem as transformagées operadas ao longo dos anos na ADF, outros que trabalham com as trouvailles “ducrotianas” (sobretudo no campo da Argumentagio), outros que encontram resposta para suas dtividas nos trabalhos de Bakhtin, na Teoria dos Atos de Fala, nas teorias desenvolvidas por Charaudeau ou Roulet... JA no segundo enfoque, a variedade também é grande, passando por interessamtes abordagens que vio enfatizar essas ou aquelas “descobertas” de pesquisadores inglo-americanos tais como, entre tantos, Grice, Goffman, Fairclough, Coulthard... Por vezes, vemos (rabalhos que entrecruzam diferentes teorias, sem que o resultado forme uma colcha de retalhos, mas um todo coerente e€ inovador, O que estamos querendo afirmar, com o exemplo do NAD, € que, no momento atual, nao se pode mais falar de AD sem que se especifique A 2m todos os nossos do Discurso, do Pos! uma discus iscurso, ims LE/UFMG, as au i@ sobre o termo, 40 qual ou a quais correntes 0 pesquisador em questio esta ligado ou es privilegiando em seus estudos. Falar simplesmente da AD como entidade tinica (ec, sobretudo, como o resultado das transformagées advindas da ADF, enquanto teoria fundadora) parece-nos insuficiente. Para melhor amparar nossas opinides, vamos lembrar Maingueneau (1995) que, ao dirigir o mimero 117 da revista Langages, ntimero este centrado sobre a AD, vista segundo diferentes visdes ou perspectiva de abordagens, intitulou-o Les analyses du discours en France. usando um plural bem revelador e democritico. Para explicar sua posicao, na Présentation (1995: 5) do referido mimero, Maingueneau elucida © Jeitor sobre o fato que, em margo de 1969, a revista em questo publicou um niimero intitulado Analyse du discours (no singular) inteiramente dedicado ao emergente grupo de pesquisadores da Ecole francaise d’analyse du discours, a famosa ADF, também chamada de modo mais reduzido AD: foi a tal Escola (que se ocupava exclusivamente do discurso politico) que foram dedicados outros ntimeros da revista Langages, ow seja: além do citado mimero 13, os nimeros 37, 41, 52, 55, 62, 71 e 81. E por essa raziio que Maingueneau (1995: 5) faz questio de bem demarcar © territério analitico com o qual esta trabalhando e/ou dirigindo, no caso do niimero 117: “Celui que nous présentons tradition: i rompt doublement avec cette - en substituant au singulier de “Vanalyse du discours” le pluriel “les analyses du discours - en ne plagant plus le discours politique au contre de sa refléxion. Nous entendons ainsi mettre en évidence une diversité de recherches que l’éclat de “I’Ecole francaise” a longtemps masqué, En France, l'analyse du discours ne saurait en effet se réduire aujourd'hui @ ce courant, dont les objectifs et les méthodes initiaux appartiennent’ désormais 4 Uhistoire des idées.” Apés este esclarecimento, Maingueneau afirma que a Andlise do Discurso é, por asssim dizer, naturalmente envolvida pela heterogeneidade do objeto que ela examina, ou seja, 0 discurso. O 41 que leva este teérico a formular um brilhante enunciado sobre o assunto: “Jes études sur le discours sont aussi du discours.” Assim, a partir deste raciocinio, Mai igueneau pode afirmar, com toda Seguranga, que “Force est de reconnaitre qu'il n 'y a pas d'accés unique & ce discours mais une multiplicité d'approches gouvernées Par des préoccupations tres variées.” Charaudeau, em 1997, na conferéncia inaugural do / Simpdsio Internacional sobre Andilise do Discurso: controvérsias Perspectivas’, levantou as seguintes questées: “Quem pode /.../ ter a pretensdo (ou a distancia necessdria) de poder fazer 0 balanga de uma disciplina que tem apenas 40 anos? E como fazé-lo diante de seus Préprios colegas? Questdes que mostram também a Preocupaciio do teérico diante da impossibilidade de reduzir a andlise do discurso a uma tnica teoria. Alias, a questo foi enfocada no folder do referido Simpédsio e, mais tarde, no livro (Mari, H. et al. 1999) que dele resultou. Transcrevemos a seguir, parte de nossas reflexdes sobre a AD, nas quais o leitor poderd verificar que consideramos esta sigla nfo apenas como pertencente as teorias que continuaram a ADF, mas como indicadora de uma grande variedade de abordagens teérico-discursivas : “A diversidade de fontes, as dificuldades metodolégicas nao impediram wa certa evolugéo dispersiva da AD. Por esta razéio, ndo é mais possivel, no presente nromento, concebé-la, como tuna abordagem tinica e Sechada, centrada numa sé metodologia, num sé tipo de corpus e¢ organizada em torno de uma sé grande escola. A natureza diversa do objeto-discurso, os muiltiplos interesses que nele sdo projetados possibiliiam a existéncia de escolas distintas, a ampliagéo do quadro metodolégico e uma Sundamentagéo tedrica em pressupostos cada vez mais amplos, O resultado & wm elenco de abordagens cada vez mais apuradas e- orientadas para recortes_ temiiticos espectficos dos universos discursivos.” (Mari, H. et al. 1999) aed ? Congresso realizado na FALE/UFMG em 1997, Apés este longo predmbulo, voltemos ao titulo deste artigo: a i iscurso suscetivel de ser utilizada de acordo com os objetivos e os diferentes corpora dos pesquisadores. E sobre ela qué nos dedicaremos a seguir, expondo algumas de suas caracteristicas marcantes e mostrando, ainda que de modo rapido, algumas possibilidades de sua possivel aplicagio pratica. O QUE E SEMIOLINGUISTICA ? Digamos, para comegar, que esta corrente de estudos tem a particularidade de nio ser “pura” - alids, se 0 fosse, considerarfamos tal fato uma “falha”, em termos de AD ou, de forma mais abrangente, em termos de Ciéncias da Linguagem, ja que a “verdade”, como o disse sabiamente Carlos Drummond de Andrade, em um de seus poemas, € sempre dividida: ela tem pelo menos duas metades, diferentes uma da outra, sendo que todas as duas so igualmente belas: optamos por uma delas, segundo nossos caprichos, il miopias... Pedimos desculpas ao leitor por essa digressiio poética; 0 que queremos enfatizar com a alusiio da “verdade dividida” de Drummond, € que nao é possivel afirmar que nossa linha de pesquisa seja melhor e mais instigadora as reflexdes criticas que as linhas de Z, Y ou X: tudo depende do corpus que escolhemos, dos motivos que nos levam a tal escolha e dos objetivos que perseguimos. Alias, se formos buscar “pureza” ou “unicidade” em termos de invengio ou aplicagiio de conceitos, no campo da AD, teremos que remontar, sem diivida, 4 Antiguidade Classica. Assim, é normal que uma teoria — nio importa qual — tenha sido formada pelo amalgama de varias idéias: no caso da Semiolingiiistica, podemos avangar que nela percebemos certos conceitos fundadores vindos de alguns teéricos franceses (tais como: Benveniste, Greimas, Barthe: $s também, outros, de igual importincia, vindos de teéricos s (como Grice, Au Searle...) e, acima de todos eles, sem dtivida, a presenga das idéias sempre “inovadoras” de Bakhtin. Em outras palavi trata-se de uma teoria que nio despreza aquisigGes resultantes de pesquisas em etnometodologia, em antropologia, em sociologia, nem tampouco: aquisigdes da pragmatica e do dialogismo bakhtiniano. Enfim, & justamente por tais razGes, ou seja, por sua construgio que retine idéias criativas a outras 43 “pingagens” tedricas, é por esse seu lado “antropofagico”, que a consideramos, entre outras coisas, como uma metodologia bastante funcional. Mas, antes de analisar 0 porqué do aspecto critico-funcional da teoria em si mesma, acreditamos que hi de se considerar 0 sujeito- comunicante, 0 sujeito empirico, que se presta a realizar uma pesquisa e€ que escolhe a Semiolingiifstica em vez das teorias X, Y ou Z. Este sujeito deve, por definigio - na nossa opinifio ~ ter um espirito critico, ou seja, manter um olhar niio-conformista sobre o mundo, nio se deixando levar por idéias feitas; deve nele reinar algo de subversio, de ironia, face aos fatos e ditos do mundo, e é esse “algo” que levara tal pesquisador a examinar diferentes grupos de textos movido por um desejo de “desvendar” o que até entio nao havia sido desvendado, de confrontar diferentes opinides oriundas de diferentes culturas. Logo, assim agindo, o sujeito-pesquisador estard refletindo ou colocando em diivida idéias por demuais aceitas ou por demais implantadas ao ponto de se transformarem em dogmas, no nosso universo social. Alids, no podemos nos esquecer de que foi assim que a ADF de Pécheux nasceu, nos anos 60, na Franga: ela foi criada, entre outras coisas, pelo grande desejo de “desmascarar” os discursos da direita... Entretanto, embora os fundadores da ADF e¢ da Semiolingiiistica sejam franceses, as teorias se diferenciam. Apresentamos, a seguir, dois quadros, em forma de listas de itens, onde expomos, de forma telegrdfica, alguns pontos das duas teorias, numa tentativa de melhor compreendé-las. 44 Quadro 1: a ADF ADF: Pécheux e scus seguidores (Franga). No Bra: pesquisadores do sul do pais (entre outros). A ADF serviria, grosso modo, para desvendar a manipulagao} ideoldgica nos discu ‘ou seja, para ajudar a lutar contra esta.| Logo, a parte politico-ideolégica dessa andlise € bem valorizada. Fortes caracteristicas politicas. 1O Homem € um ser politico-pensante; em seu exercicio da palavra, ele deixa transparecer as formagées discursivas que! determinam seus ditos. Logo, enquanto sujcito-falante, cle &, de “outro”, no sentido “ideologia-dominante”’. Nota-se, nessa metodologia, auséncia de um instrumental tedrico- basico definido. Mas, por isso mesmo, virias abordagens sido permitidas, ou seja, é uma AD aberta quanto ao instrumental. |Atengiio: corre-se o risco de se cair em anilises muito dogmiticas le pouco lingiiis 45 (Franga). No Brasil: viirios pesquisadores do N.A.D. FALE/UFMG, ib. C./.A.D. da UFRI (entre outros). AAD serviria, grosso modo, pa sociais e suas variantes, de uma cultura para outra. Seria uma AD da linguagem, enquanto veiculo social de comunicagio. Fortes caracteristicas psicossociolégicas: os contratos, os saberes partilhados, o lado sécio-cultural dos sujeitos comunicantes bastante valorizados. O Homem € um ser social (sentido amplo da palavra), criado/condicionado pela sociedade/cultura do lugar onde vive. Logo, enquanto sujeito-falante, ele “repete” a voz do social, mas o lado psicossocial-situacional Ihe garante também uma individualidade. Nem completamente — individual, — nem completamento coletivo: um amalgama dos d Presenga de um forte instrumental tedrico. Abordagens que levam em conta o lado psicossocial e 0 lado linguageiro dos sujeitos-comunicantes nos diversos Atos de Linguagem. Atengaa: poce-se pensar (um pouco capidamente) que esta AD ignora o sujeito politico-histdrico (o que nio é verdade). De modo geral, examinando o quadro acima, vemos que, na Semiolingiiistica, 0 discurso & visto como “jogo comunicativo”, ou seja, 0 jogo que se estabelece entre a sociedade e suas produgées linguageiras. Nesse ponto de nosso raciocinio, pode surgir a questiio: “Na ética dessa teoria, Aue tanto valori: € este quem constrdi o discurso, ou & o discurso quem’ constréi 0 social?” Nossa resposta € simples: deve-se achar um equilibrio entre as partes. Seja como for, a reflexiio sobre a questio passa pela Pragmitica, pela Psicossociologia, pela Enunciagio, pela Retérica/Argumentagiio e, conforme o corpus 46 abordado, ou conforme os objetivos do ‘pesquisador, pela Sdcio- Ideologia (Charaudeau, 1995: 110). E preciso notar que o nome “Semioling ja 6 por si sd, revelador do que representa a teoria. Segundo Charaudeau (1995: 98), Sémio-, vem de sémiosis, lembrando que a construgio do sentido e sua configuragio se fazem por meio de uma relagio forma-sentido, relag&o esta que pode ocorrer em diferentes sistemas semioldgicos. Tal construgio esta sob a responsabilidade de um sujeito, movido por uma determinada intengio, ou seja, um sujcito que tem, em sua mente, um projeto visando influenciar alguém: tal projeto esta encaixado no mundo social no qual vivem e circulam os sujeitos-comunicantes. Quanto a presenga de “-lingiifstica” no nome, Charaudeau quis, com essa ocorréncia, lembrar ou enfatizar que a forma de agio pretendida pelo sujeito-comunicante & sobretudo constituida por um material linguageiro oriundo das linguas naturais. Pelo fato de sua dupla articulagao, da particularidade combinatéria de suas unidades (sintagmatico-paradigmit em virios niveis: palavra, frase, text tal material linguageiro impée um procedimento de semiotizagdo do mundo, £ como se realiza tal semiotizacdo do mundo? Através de um processo duplo que Charaudeau (op.cit.) assi Mundo a ser significado [ | Proc. Tran: onde “p. transf.” = processo de transformagdo e “p. tans.” = processo de transagdo. Os dios processos se efetuam segundo procedimentos diferentes, sendo, no entanto, soliddrios um do outro: isto se deve ao Principio de Pertinéncia, que exige um saber em comum, que 6, por assim dizer, “‘construido” no final da realizagio do processo de transformagao. Mundo Sujeito icado interpretante- destinatério 47 Utilizemos um exemplo para explicar os duplos processos. Imaginemos que, no decorrer de uma aula, o professor construa um processo de transformagéo centrado em um “Et voii inserido no final de um enunciado em portugués, enunciado este que carrega em si uma intengiio explicativa sobre determinada questiio. Quem garante que os interlocutores deste professor — ou seja, os alunos — saberiio “decifrar” o sentido final do enunciado em pauta? Isso acontecerd, mas s6 se eles cumprirem duas condigSes. Para comegar, terdio que saber francés, ou possuir alguns rudimentos desta lingua, para classificar mentalmente 0 “Er voila” como um sintagma oriundo da lingua francesa; em seg precisam também saber o contetido implicito que um “Er voilé”, colocado no final de um enunciado carrega, ou seja: “A explicagdo estd conclutda", “E tudo que quero/posso dizer sobre 0 assunto no momento”. Se as duas condigdes forem preenchidas, estard entio realizando o processo de transagao, processo que depende da intercompreensio entre os os da finguagem. Lembremo-nos do postilado de intencionalidade de Searle que, para Charaudeau, é a base do ato de linguagem, sem no entanto nos esquecermos do postilado de pertinéncia de Sperber e Wilson, ou seja: falar a propésito, sabendo de antemiio que o sujeito-interpretante sera capaz de “decodificar” nossos atos de linguagem. Isto é, se realmente for desejado que a comunicacio tenha efeito, atinja o outro, o ouvinte, no caso especifico da citada “situagio aula”. Seniio, 0 “£1 voila” passara para 0 sujeito- interpretante talvez apenas como uma tentativa do sujcito- comunicante de tornar mais “charmosa” sua comunicagio... ou entio, como uma forma de torn: menos explicita e mais “misteriosa”! Assim, como o diz Charaudeau (1995: 101), um ato de linguagem carrega em si uma intencionalidade (a dos parceiros da troca comunicativa); inserido em determinada situagdo, portador de um propésito sobre 0 mundo, o ato de linguagem esté na dependéncia da identidade desses parceiros, resultando de um desejo de influéncia por parte do sujeito-comunicante. Notemos que, na concepgiio generosa de Bakhtin, o “eu” se constréi em colaboragiio. Mas tal colaboragiio pode ser impedida por forcas sociais. Ora, Charaudean, por assim dizer, usa esta idéia, mas dando- the um nova roupagem: a colaboragdo entre parceiros € forgada pela vida em sociedade. Assim, 0 ato de linguagem é comandado pelas circunstén is do discurso € sua construgio leva em conta o 48 explicito e 0 implicito da linguagem; ele é um dispositivo, dentro do qual se encontra o sujeito-falante (escrevendo ou falando), guiado por um sujeito-comunicante. Nele se manifestam, pois, quatro sujeitos comunicacionais, sendo dois situacionais, externos e dois discursivos, internos*. Os sujeitos ditos “externos ‘0 Eue (eu-comunicante) € 0 Tui (tu-interpretante): trata-se de seres historicamente determinados, parceiros re: da troca linguageira que tém uma_ identidade (psicolégica e social) e que estio ligados por um “contrato de comunicagiio”. CONTRATO E MISE-EM-SCENE A relagao contratual depende assim de componentes mais ou menos objetivos, tornados pertinentes pela expectativa que & prépria a cada ato linguageiro, pois esté implicita em todos uma “aposta”, um desafio, langado ao outro’. Segundo Charaudeau (1996: 35), siio trés estes componente: (i) o Comunicacional - que diz respeito observagiio do quadro fisico da situagio interacional: qual a posigio (fisica) dos parceiros da comunicagiio? Esto um em face do outro, esto se vendo ou nio ? Siio dois ou mais de dois? Que canal (oral ou grafico) esta sendo utilizado? (ii) o Psicossociat - que se refere ds percepgdes que os parceiros da comunicagio véem ou sentem uns nos outros: idade, sexo, profissao, relagio de parentesco, estados emocionais, etc. (iii) 0 Intencional - que se refere a uma espécie de conhecimento a priori que cada um dos parceiros possui (ou constréi para si) a respeito do outro, seu interlocutor; no caso, os parceiros da comunicagio fazem, cada um, apelo aos seus > Para melhor compreensio do quadro enunciativo em questiio, proposto por Charaudeau, enviamos o leitor ao artigo deste autor, traduzido para o portugués e publicado neste mesmo volume. Até um simples “Bom dia!” langado a um desconhecido (para introduzir uma pergunta que busca uma informagio, por exemplo) vem carregado de uma certa expectativa que poderin ser “taduzida” por: “Esse ato de linguagem vai dar certo ow io?" (= 0 cumprimento sera respondido ou ignorado? ) 49 Tespectivos imagi partilhados entre eles. ios culturais ou a saberes supostamente Como vimos, a base da Semiolingiiistica est4 na agdo comunicativa que envolve uma sittagdo de comunicagdo (0 quadro fisico e mental no qual se acham os parceiros da troca linguageira). Tais parceiros sio determinados por uma identidade (psicoldgica on social) e sio ligados por um contrato de comunicagiio. Aqui estéo alguns exemplos de contrato de comunicagiio: © prélogo de Gargantua, de Rabelais, a capa de uma revista como por exemplo, a revista brasileira Raga (Ed. Simbolo). Quem compra Raga espera ler sobre a comunidade negra e nao sobre a comunidade escandinava. E a capa, com sua foto, com seus dizeres (titulos de reportagens), exibe, por assim dizer, este contrato comunicativo. Outro tipo de contrato interessante & 0 estabelecido pelos editoriais de algumas revistas femininas brasileiras. Além de funcionar como uma sintese do contetido, vaio confirmar o contrato da capa e consolidar as bases contratuais entre a leitora e a editorialista. E como se esta dissesse, em sintese, algo do género: ‘Cara leitora, vocé comprow a revista Boa Forma (Ed, Simbolo), entdo, vai ler matérias sobre regimes, “mathagdo” e coisas do género.” Mas, para fazer 0 contrato comunicacional “funcionar”, € necessdrio que o Eu-comunicante (Eur) e o Tu-interpretante (Tui) se abram a inclusio de outros sujeitos na cena enunciativa: o Euc aciona um Eue (eu-enunciador) que se dirige, em primeira instancia, para um Tid (sujeito-destinatirio idealizado). Ambos, Eue e Tud sio seres do “mundo das palavras”. Ao tocar neste mundo, tocamos no que Charaudeau, desde 1983, propde chamar de mise en scéne. O quadro enunciative da Semiolingiiistica mostra que todo ato de linguagem, seja ele falado ou escrito, é, afinal de contas, uma representagio comandada pelos sujeitos externos, Citemos um caso para ilustrar as naturais trocas de mise en scéne, no mundo da linguagem em sociedade: X, um professor, nao vai falar do mesmo modo que fala em uma situagiio de trabalho, diante de seu médico: no consultério deste , expondo um problema de satide, sua mise en scéne linguageira -— e seu papel de sujeito-comunicante — vaio mudar em relacao ao papel que X adota em suas aulas. Saindo do consultério médico, X encontra um velho amigo da época em que cle morava no interior de So Paulo: uma nova 50 { mudanga na mise en scéne comunicativa de X, se impée. E obvio que se X guardasse sempre a mesma mise en scéne usada em seu trabalho, na sala de aula, icar bem nem com seu médico nem com seu velho amigo: no maximo, passaria por uma pessoa aborrecida, enfatuada. Nos termos de Sperber ¢ Wilson (1979: 81), nao seria “pertinente”. A terminologia mise en scéne de Charaudeau € bastante fel verdade, todos nossos atos de linguagem tém um lado “teatral” se quisermos ser bem sucedidos em nossas comunicagées cotidianas, na vida em sociedade, temos de estar sempre atentos para produzir a encenagiio adequada... Enfim, tudo se explica, se pensarmos que a AD no seu sentido amplo, enquanto disciplina, toma por base trés tipos de discursos bem “representativos”, no sentido teatral da palavra: o discurso teatral, 0 discurso juridico e 0 discurso hidico. Logo, todos os atos de linguagem por nés enunciados ao longo de um dia, ao longo de uma vida, siio ou serio construidos a partir de dados tirados de nossas condigées de seres histérico-sociais, vivendo uma determinada situagio, em um determinado espago e tempo. Estes seres sociais, ao se comunicar, irfio engendrar, por sta vez, seres de palavra (se a comunicagio for oral) ou seres de papel (se ela for escrita). Resumindo. O que seria cntio comunicar, nesta concepgio? Seria proceder a uma mise en scéne. Assim como o diretor de uma pegit teatral usa os espagos cénicos, a decoragio, a luz, os efeitos sonoros, os atores, um determinado texto — para produzir efeitos de sentido em um ptiblico — assim o locutor, querendo comunicar, scja pela fala, seja por escrito, seja por gestos, desenhos - usaré os componentes do dispositivo de comunicagdo, em fungio dos efeitos que visa provocar em seu interlocutor. Um dos pontos fortes da Semiolingiifstica 6, em nossa opiniao, o fato de cla considerar o ato de linguagem como resultante de uma espécie de “jogo”, ou seja: o ato de linguagem se mantém em uma constante manobra de equilibrio e de ajustamento entre as normas de um dado discurso e a margem de manobras permitida pelo mesmo dis . Tais manobras discursivas vaio dar lugar A produgdo de estratégias, por parte dos sujeitos comunicante e interpretante. Nas palavras de Charaudeau (1983: 94): 31 “Tout texte serait le produit d'un Projet de Parole de la part d'un sujet particulier qui sait par ailleurs (de fagon plus ou moins consciente) quvil est. en partie, surdeterminé par wt Contrat de Parole. Et la liberté de ce sujet se trouve précisément soit dans la marge de manoeuvre que lui laisse ledit contrat /../ soit dans Uacte de subversion, voire de transgression, de cel £m outros termos, veriamos assim 0 problema: hi um sujeito que cria seu texto a partir de dados extraidos de sua cultura, de suas convicgdes e de seu ethos, entim, do universo discursivo que the é€ préprio, a ele, sujeito-individual tinico, Mas, essas convieg6es vio encontrar eco no sujeito coletivo e social, cujos gestos e palavras determinados por uma ideologia de vida ou, se preferirem, por contratos sociais dominantes. Nem completamente livre, nem completamente submisso, eis como vemos tal sujeito, evoluindo num mundo dominado pelas priticas e trocas linguageiras. UM EXEMPLO DE APLICAGAO PRATICA DA TEORIA SEMIOLINGUISTICA, Antes de passar a referida aplicagio, gostariamos de deixar bem claro que a AD (e, por consegiiinte, como uma de suas virias teorias, a Semiolingiiistica), enquanto disciplina e instrumental de pesqui se destina, a priori, 4 imerpretagio de textos isolados. A pesqui: AD trabalha com um dado corpus, ou seja, com um conjunto de textos pertencentes a um mesmo tipo ou género, determinado pelo Contrato de comunicagdo. Assim, pode-se trabalhar com diferentes grupos de textos tais como: os publicitirios, os politicos, os diditicos, os literérios, enfim, textos ligados As praticas soci: representadas em diferentes formatos lingiifsticos. da linguagem O que caracteriza tal tipo de abordagem, & 0 estudo das particularidades de construgdo ¢ funcionamento do discurso-objeto da analise, onde sio enfatizados aspectos da construgio tipolégica do discurso xdo. A. orientagio da anidlise pode ser a sintetizada: trata-se de uma busca de “regularidades discursivas”, a partir dos pontos de vista enunciativo, descritivo, narrativo e argumentativo, colocados em relagio com as identidades e papéis 52 pressupostos/atribuidos aos parceiros da comunicagio. — As regularidades contribuem para deter (i) as marcas de identidade dos sujeitos e das diferentes vozes (polifonia) que am em seus ditos; (ii) os universos de referéncia ¢ de crengas, que caracte! imagindrios is destes sujeitos (iii) as maneiras de falar e/ou escrever, segundo as situagdes de comunicagiio. E entio necessdrio que se faga, segundo os diferentes objetivos e 0 objeto de estudo de cada pesquisador, um ajustamento entre o corpuslorientagio da pesquisa. Ou seja: os meios escolhidos para a amillise serao especificados segundo 0 corpus escolhido ¢ as hipdteses estabelecidas. Resumindo: © ponto de partida para toda anilise que se pretend: “Semiolingiifstica” & constituido por situagées € corpus “dialdgicos ou por situagdes ou corpus “monoldgicos”, corpus estes examinados como elementos construidos com fins comunicativos, ou, em outros termos, ligados a uma o de comunicagio”. Assim, s pretendemos analisar 0 processo narrativo nos romances de Stendhal, vamos considerd-los como documentos ‘escritos que visam a uma forma de comunicagio entre os parceiros “escritor/leitores”. O mesmo se dard se resolvermos analisar 0 “eu-aqui-agora” de editorialistas de diferentes jornais: iremos, igualmente, considerar a situagio de comunicagiio que esté na base da claboragio/difusio de tais documentos. /dem, ibidem, se formos trabalhar sobre as modalizagées de dois sujeitos falantes, numa situagio de conversagao. Em todos os casos sera de suma importancia para nossa anilise a nogio de mise en scéne por nés discutida mais acima: seja em um 5 O termo “Dialégico” esti aqui sendo usado para indicar: parceiros da comunicagdo que estiio — fisicamente falandia — in praesentia. Entram entio entrevistas, os debates, as conversagies, as dis Ges, cle. 10 modo, o terme “Monoldgico” aparece aqui para indicar: parceiros da comunicagio que estio — fisicamente falando — in absentia. Entram entio nesse caso: todos os textos escritos ( s, editoriais, livros...) sos (publicidades, clesenhos...) assim como também a comuni 'sfio ow internet (excetuando-se 0 caso bem especifico, nesta tiltima, dos chats). romance, em um editorial de imprensa, seja em uma conversagiio cotidiana, ha que se considerar os atos de linguagem produzidos nessas diferentes situages como encenagGes préprias para melhor fazer veicular um determinado propésito. No entanto, logo apds esse predmbulo, gostarfamos de propor uma espécie de “exercicio”, ou seja, a leitura/interpretagaio de uma crénica “isolada”; 0 objetivo de tal “exercicio” sendo o de ilustrar alguns dos Pontos que levantamos sobre a teoria em questo e que se acham melhor explicitados no artigo Uma teoria dos sujeitos da linguagem, de Charaudeau, por nés traduzido ¢ publicado neste volume. Escolhemos, para tanto, uma das mui crénicas escritas por Machado de Assis, com o pseudénimo “Gil”, no Didrio do Rio de Janeiro, no século XIX (vide Anexo no final do artigo). Esclarecemos desde ja que esta crénica seré por nés considerada como um macro ato de linguagem, Nesse sentido, ela dependerd - no que diz respeito a sua consirugio - de um dispositivo que compreende dois circuitos: 0 circuito externo, que representa o local do Fazer-psicossocial (ou seja, 0 local do “situacional”) e um circuito interno que representard o local da organizagiio do Dizer. A crénica sera entio vista como uma combinagiio do Fazer ¢ do Dizer. Vejamos mais de perto como este processo se da, insistindo sobre o fato de que o Fazer pertence a um Circuito que & exterior, que precede e, por assim dizer, “comanda” o circuito do Dizer. Comecemos por uma aplicagio dos sujcitos enunciativo de Charaudeau (op.cit): ja crénica no quadro Buc Eue €--. > Tud Tui 4 4 4 L Machado | Cronista Leitor virtual Leitor reat **Mundo das palavras *Mundo psicossécio-cultural 54 onde, Euc: Machado de Assis, enq} anto cronista do Didrio do Rio de Janeiro. Machado de Assis-Euc, & 0 parceiro que detém a iniciativa do processo de comunicagio. Assim, ele precede 4 encenagio do Dizer, em fungao dos trés componentes que regem a relagdo contratual: {i) 0 comunicacional; (ii) 0 psicossocial (situacional); (iii) o intencional (discursivo). Examinemos cada um dos casos: (i) O comunicacional Enquanto participantes de uma troca comunicativa (Machado é um EU que escreve para um TU, nos termos da troca benvenistiana), Machado-Euc acha-se diante de um parceiro in absentia. O EU de Machado nao esté diante desse parceiro, ele o imagina. A comunicagao entre EU X TU é€ aqui “diferenciada”, ji que divulgada por um vefculo “monolégico”: o texto escrito de imprensa. (ii) O psicossocial ou situacional Diz respeito aos elementos da situaciio, ao espago externo das limitagdes do ato de linguagem a ser elaborado; 0 psicossocial ou situacional vai determinar a especificidade e a estrutura do contrato de comunicagiio propriamente dito. Quais siio entio os elementos dessa situagio? Para comegar, Machado é um EU que possui 0 estatuto de cronista e de escritor. No presente caso, ele adota ou assume 0 contrato de cronista-jornalista: quem assumir a leitura de Machado-cronista, vai se deparar entio com o género “crénica” ¢ nao com um conto, ou com um romance. Ora, a crénica, enquanto género, obedece a certos rituais: cla fala de acontecimentos e de pessoas reais, porém permite a natural inclusio das opinides do autor (enquanto ser do mundo) a respeito dos fatos por ele narrados. Mas vejamos a definigio de crénica, no Aurélio: “Texto jornalistico redigido de forma livre ¢ pessoal, ¢ que tem como tema fatos ou idéias da‘atualidade, de teor artistico, as politico, esportive, etc., ow simpl cotidiana.” mente relativos a vida O Euc respeita pois os limites impostos pelo contrato-crénica yai ai, por exemplo, falar sobre a ambigiiidade de seu personagem Capitu ou sobre o furtivo pai de Helena. Ele vai tratar do fatual, conferindo a este seu estilo préprio de tecer comentarios, ou seja: através da ironia. Ele nio (iti) O intencional Refere-se a um espago intermediirio, ou ainda, a uma intersegio entre as limitagdes do contrato e as estratégias discursivas que vio ser efetivadas. Enquanto Euc, 0 Machado-cronista imagina/idealiza seu leitor, fazendo apelo aos saberes partilhados que circulam em sociedade, Ousaremos dizer que um cronista, em tal situagio poderd talvez (de modo consciente ou ndo) pensar consigo: “Como posso agradar e/ou convencer met leitor disto ou daquilo? Em termos de informagao, 0 que posso the dizer, que ele ainda néo saiba? Como captar sua atengdo para essa minha crénica?” Machado é um Exe que vai tomar a iniciativa quanto ao processo de produgiio de seu texto: para fazé-lo, aciona um Ee. Este, aos poucos, ao descrever um fato politico, vai “recheando-o” com a saborosa ironia machadiana. Como bom escritor e jornalista, Machado de Assis € um grande observador da sociedade de sua época, sabe que temas agradam ou podem seduzir 0 leitor. No caso, 0 tema “critica a politica do governo”, indica o componente intencional escolhido pelo Exc. Vamos ousar de novo, fazendo Semiolingiiisti cinio: m mergulho nas aguas da ica, e imaginar que o Euc pode ter partido do seguinte i) levarei em conta os saberes partilhados: meu leitor sabe que escrevo sobre politica ¢ sabe também o que penso do atual governo. ii) Sei qual é o “ritual linguageiro” que o tema que vou tratar (demtincia de mais uma corrupgio que se prepara) subtende. iii) Unirei pois (i) © (ii) (saberes partilhados + rituais linguageiros) para produzir certos efeitos de discurso no meu leitor, Mas, de mint arte, enquanto Etc, s6 posso controlar os 56 efeitos possiveis, pois, mesmo conhecendo de longa data meu leitor, niio posso controlar sua fidelidade ao meu texto. Ha que se pensar também no novo/eventual leitor. Voltemos ao quadro: nele veremos entiio que Machado/Euc escreve para um Twi (sujeito interpretante): trata-se do leitor real, leitor de sua crénica no jornal, leitor que recebera os “efeitos do discurso” por ele propostos. O processo dle interpretacio do texto cabera assim, ao Tui, Lembremos ainda que a crénica, aqui considerada como um macro ato de linguagem, repctimos, “joga” com os possiveis interpretativos, Todo ato de linguagem é¢ portador, como jd o dissemos de wna expectativa (em francés “d’ un enjeu”). Entrando no segundo quadrado do quadro, ow seja, no mundo do Dizer, veremos entio a presencga de um Eue que se dirige a um Tud. Este Eve (eu-enunciador) tem a fungiio de “operador” das estratég discursivas (do Euc, isto é, das estratégias por ele elaboradas). O que af assistimos, nada mais é que a colocagio em pritica do Projeto de Palavra do Euc. Em outros termos: temos entio um sujeilo- enunciador, ou, no caso do texto, um cronista-contador de hi politicas, que toma a palavra e diz “eu”. Esta presenga do “eu’ verificével através: - de certas marcas pronominais ¢ verbais tais como: mim, até parece ver 0 pimo no poteire”, “A gente fe (pemiiltimo e tiltimo pardgrafos da crénica, sendo que os grifos sao nossos); - dos intimeros modalizadores, frases nominais, pontuaca enfim, todas as marcas que denunciam o estilo do cronista- politico, enquanto soma de um Eve com um Eue. Citemos alguns dos modalizadores mais evidentes: a) 0 uso clo francés, a alusiio 4 fibula do Corvo e¢ da Raposa, de La Fontaine; b) as imimeras metadforas (o caso do Corvo com seu queijo é uma delas) presentes no texto, tais como as que aparecem no pentiltimo pardgralo (eves, pintinhos, poleiros que subentendem enfim, a confusio de um “galinheiro”: a vida politica no Brasil) Cabe enfatizar que tanto 0 ue quanto o Tud evoluem num mundo de palavras, mundo escrito, situado entre cfeitos do real & efeitos da bid ficgdo (Charaudeau, 1983, 1992). Assim, o tema abordado (a vaga no Senado) é bem real, mas o modo de abordé-lo oscila entre o real e a fabula/ficgaio: dai o apelo feito & voz de La Fontaine. Chamamos tal Procedimento de “colocagio de estratégias discursivas no texto”. ALGUMAS ESTRATEGIAS DESSA CRONICA DE MACHADO DE ASSIS Para convencer seu leitor sobre 0 que expde, 0 Euc coloca entio em cena um Eue que brinca, com bastante gosto, com os enunciados que vai expondo. O macro ato de linguagem que € a crénica é assim composto, grosso modo, pela presenga da ironia através de inclusdes de vozes de outrem. Tentaremos, a seguir, — identificar algumas aparigées dessa voz “alheia”: i) O “outro” esté presente em expressées cristalizadas, Pertencentes a uma certa vox populis: “...1d0 gorda posta...” “...outono da vida...” (1° pardgrafo); aparece também em enunciados exclamativos do tipo clichés mundanos-sociais: “E ido bom ter uma cadeira no Senado!” (altimo pardgrafo); “A tal ponto chega a ciéncia politica!” (iltimo enunciado do peniiltimo pardgrafo); iii) a presenga da voz de outrem é facil de se identicar, pela alusiio feita ao fabulista-narrador La Fontaine (e ai temos também a soma de Eve + Ene, vindos de outra situagio, de outro pais e de outra época). Observemos alguns casos: encanta mais ‘par son plumage que par son ramage’...", ijoHlargo bico” (2° parigrafo) e “maitre corbeau” (3° pardgrafo). Ori be-sc que o corvo da fibula foi tolo, abrindo © bico: assim a Folha Oficial esti também sendo tola, divulgando o que nao deveria divulgar! Todos os enunciados citados, pertencentes a vozes outras que a do narrador, por ele empregados em outro contexto assumem a fungao de “palavras bivocais” como o diz Bakhtin (1970: 254): mots dautrui, introduits dans notre discours saccompagnent immanquablement de notre attitude propre et de notre jugement de valeur, autrement dit deviennent ‘.../ Notre langue quotidienne est pleine de mots dans d'autres encore, nous introduisons nos orientations personnelles, différentes ou hostiles.” E 0 que faz nosso cronista: utili introduzir sua orientagao prépria, as palavras de outrem para nelas Entretanto, 0 que foi dito corresponde a apenas uma ironia machadiana, Pois ocorréncias localizadas ela estd presente da primeira 4 tiltima linha do texto, e sobre form: variadas (por exemplo, reui de dois conjuntos de enunciad contrastantes, que apontam para conclusées diferentes; uso de figuras tais como a metéfora, a hipérbole, a repetigao...) Machado de A: um escritor naturalmente dotado para a ironia: existe nele uma ironia que precede seu texto, vinda de seu poder de observagio face 4 sociedade em que vive, aos comportamentos dos seres sociais que nela se movimentam. Deixaremos pois um estudo mais aprofundado da ironia situada no FAZER e da ironia situada no DIZER de Machado, para outro artigo’. Esta raépida andlise visou, dentro da perspectiva Semiolingiiistica, mostrar que ha uma forma de argumentagio dominante nesta crénica: a argumentagdo pela ironia. A estratégia discursiva visada seria, entiio, a de provocar um pequeno riso amargo no leitor, sacudi-lo de seu torpor burgués. Esse efeito foi obtido por um constante ajustamento entre a mise en scéne do DIZER e a relagiio contratual do FAZER. Em sintese, a comunicagiio machadiana se ampara inteiramente neste tipo de argumentagiio. Finalmente, ao realizarmos a aplicagio acima, ilustramos somente algumas das muitas possibilidades de andlise que a Teoria Semiolingiiistica oferece, assim como também, apenas algumas das muitas ironias que a crénica machadiana contém. 7 Cabe, ainda, lembrar que em varias de suas crénicas, pode entre o Euc ¢ 0 Eue do quadro enunci segunda parte deste artigo. ive por nés mostrado no inicio da 59 CONCLUSAO Gostarfamos de concluir citando Charaudeau (1996: 40) que lembra que: “Para evitar que uma ling sja, de um certo ponto de vista, ingénua, é necessdrio que sua teoria e seus instrumentos de andlise sejam centralizados sobre a descoberta dos jogos de significagdo psicossocial dos atos de linguagem que se trocam numa comunidade sociocultural. E na carga seméntica dos vocdbulos, por meio dos modos de organizagéio discursiva que os integram, € numa situagdo de intercdémbio, que se podem levantar as marcas desses jogo: Voltamos a repetir que 0 ponto forte de sua teoria esta justamente na possibilidade de se poder fazer um levantamento das marcas dos “jogos” linguageiros, em situaciio de comunicagiio, levando em conta nao apenas o produto concreto da enunciagao, mas também a situagio Psicossocial que determinou que um certo ato de linguagem - e niio um outro - fosse proferido naquele justo momento. O interessante da teoria Semiolingiifstica, enfim, é que ela, com sua diversificagao de sujeitos, acaba por abranger tanto idéias como as de Ducrot ¢ Austin - que enfatizam o poder das palavras, em um mundo a elas interno- quanto idéias de Bourdieu (1982), que preconizam a legitimidade situacional e/ou institucional dos sujeitos comunicantes. 60 ANEXO 10 DE NOVEMBRO DE 186! Vagou uma cadeira no senado. E a que pertenceu ao eleito por Mato-Grosso Jofio Anténio de Miranda, que acaba de falecer, levando consigo a experiéncia e o conhecimento do egofsmo de um artido politico.Tao gorda posta fez arregalar o olho a mais de um; ¢ eis que todos quantos gozam da inefiivel ventura de andarem entradetes no outono da vida comegam a fazer valer os seus direitos ¢ os seus servigos, Fala-se de muitos, ¢ chega-se até a indicar todas as possibilidades. A Folha Oficial que toma seu papel ao sério, sem Teparar que encanta mais par son plumage que par son ramage, nao se arreceou de comprometer no futuro 0 queijo do experiente, e' abriu o largo bico para dizer que entre muitos candiadatos um havia que merecia exclusivamente os sufrdgios dos eleitores. Deve-se supor que é esse o escolhido do partido do governo, que & sempre o legitimo partido. Um outro candidato, ministro como 0 que foi apresentado por maitre corbeau, nao fara concorréncia, porquanto, depois de ter naufragado em dois diques, no Mi ranhao e no Rio de Janeiro, nao quer arriscar-se a fazer uma figura triste neste pais, que é o das lindas figuras, Além destes dois, havia um que se 0 governo quisesse podia fazé-lo triunfar, o Sr. Sérgio de Macedo, homem que, afora a missio diplomitica, 0 cargo de ministro e o exercicio de deputado, tem dado conta da mio, saindo-se brilhantemente em toda a empresa que comete. Tais € outros sio os ovos que estio incubando, agasalhados pelas asas protetoras daquela remota e passiva provincia de Mato Grosso: estdo sim, mas a ansiedade de surpresa niio se dar no fim do termo legal de incubagiio; j4 se conhece 0 ovo que hé de gerar, e a mim até me parece ver o pinto no poleiro. A tal ponto chega a ciéncia politica! E tao bom ter uma cadeira no senado! A gente faz o seu testamento, e ocupa o resto do tempo em preocupagées higiénicas, a bem de dilatar a vida e gozar por mais tempo das honrarias inerentes ao posto de principe do império/.../ Gil (MACHADO DE ASSIS, Comentarios da semana, Diario do Rio de Janeiro. In: Crénicas, 1° volume (1859-1863). 61 REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS. BAKHTINE, M. La poétique de Dostoievski. Paris, Ed.du Seuil, 1970. BOURDIEU, P. Ce que parler veut dire. P: Fayard, 1982. CHARAUDEAU, P. Langage et Discours, Paris, Hachette, 1983. CHARAUDEAU, P. La critique cinématographique: faire voir et faire parler. La Presse-Produit-Production-Réception. Paris, Didier Erudition, 1988- pp. 47-70. CHARAUDEAU, P. Grammaire du Sens et de t'Expression. Paris, Hachette, 1992, CHARAUDEAU, P. “Une analyse sémiolinguistique du Discours". In: Langages n° 117, 1995, pp. 96-111. CHARAUDEAJ, P. “Para uma nova aniilise do discurso". CARNEIRO, A.D. (org.) O Discurso da Midia. RJ, Of. do Autor, 1996, pp. 5-43. CHARAUDEAU, P. 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