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MARI, H. et alii. Andtise do discurso; fundamentos e priticus, Belo Horizonte: Nricleo de Anilise do Discurso-FALE/UFMG, 2001. UMA TEORIA DOS SUJEITOS DA LINGUAGEM' PATRICK CHARAUDEAU Paris XII se em conta a presstio que a antropologia, a sociologia e a psicologia social — disciplinas quais o termo lingiiistico 6, freqiientemente, acrescentado como sulixo — exercem sobre a ciéncia da linguagem, podemos perguntar se esta possui uma especificidade, um campo préprio. E légico que tal questo pode ser respondida com a seguranga do homem de ciéncia a qual nada parece abalar, em sua torre de marfim: “Do ponto de vista teérico, hoje, como a vinte anos atrds, a lingitistica é constitufda de um micleo duro e de una periferia mole. O micleo duro esté na gramatica gerativa Lf € 0 “nticleo duro”do micleo duro continua sendo o trdbalho de Chomsky e seus discipulos préximos, : foram colocadas a : como compreender um Entretanto, algumas quest6es fundamenta lingiifstica pelas disciplinas acima citada objeto de linguagem que se apresenta desprovido de sua dimensio psicossocial? O que sao essas descrigées de sistema que nao nos permitem dar conta da comunicagio humana? Como captar o fenémeno da significagado em uma anilise da linguagem que niio se interessa pelas condigées de produgio? O que pode significar uma sintaxe, t8o elaborada e rigorosa, mas incapaz de explicar as Este artigo teve sua primeira publicacio na revista Langages et Société, Paris, n. 28, Maison des Sciences de Homme, jun. 1984. ? Ruwet, N. Linguistique. in: Magazine Linéraire. nov. 1983. - n. 200/201, p. 44 23 expectativas psicossociais produzidas em um ato de linguagem? Sio €ssas questées que, ja ha alguns anos, esto conduzindo os estudos lingiiisticos rumo a noyas hipsteses que podem marcar a histéria da ciéncia da linguagem. B por isso que nos parece dificil concordar com Ruwet (1983) quando ele diz: nos trabalhos ‘fronteirigos' é que se encontra maior confusdio, menos rigor: estou me referindo, aqui, aos intimeros trabalhos realizados sobre a comunicagdo, um dos mitos de nosso tempo, e aos trabalhos — por veze: demagégicos — realizados sobre os niveis da lingua, da linguagem oral, etc.” Enfim, devemos olhar para o futuro sem complexos e sem receio de afirmar que os citados trabalhos tiveram o mérito de garantir uma abertura cientifica, contribuindo, conseqiientemente, para o progresso do espirito humano. Partindo da hipétese de que é possivel estudar a linguagem levando-se em conta sua dimensao psicossocial, gostariamos de mostrar que uma teoria do discurso nao pode prescindir de uma definigiio dos sujeitos do ato de linguagem. O Discurso Para comegar, consideremos algumas informagées sobre o termo discurso, Nio € nosso objetivo, aqui, definir o conceito de discurso, dado que é participando do conjunto de uma teoria que o discurso € por ela definida, Gostariamos, apenas, de delimitar 0 territério no qual ele pode se mover, o que nos permitird evitar algumas confusées, visto que o termo em questao € empregado em diversas acepgées. O discurso no deve ser assimilado & expressiio verbal da linguagem. A linguagem, mesmo sendo dominante no conjunto das manifestagées linguageiras, corresponde a um certo cédigo semiolégico’, isto é, a um conjunto estruturado de signos formais, do mesmo modo, por exemplo, que o cédigo gestual (linguagem do gesto) ou o cédigo Nes grafico, ir © cédigo semiolégico verbal oral do 24 ic6nico (linguagem da imagem). O discurso ultrapassa os cédigos de manifestagao linguageira na medida em que é 0 lugar da encenagiio da significagio, sendo que pode utilizar, conforme seus fins, um ou varios cédigos semiolégicos. Nio pretendemos dizer, com isso, que existiria um estado do discurso anterior & produgéio da manifestagio e dela independente. E preciso que fique claro que toda encenagio discursiva depende das caracteristicas desses cédigos e de todos os cédigos nela envolvidos. O que propomos, entio, & que niio se .acepgao_desse termo somente ao caso da manifestagio verbal, considerando-a como a tinica manifestagio possivel. *Nio se deve confundir discurso com texto. B preciso considerar texto como.0 objeto que representa a materializagiio da encenagiio do ato de linguagem. Q texto & 0 resultado singular de um processo que depende de um. sujeito falante particular ¢ de circunstancias de produgio particulares.* Cada texto é, assim, atravessado por varios discursos ligados a géneros ou a situagdes diferentes. Por exemplo, o género Politico’ pode ser entrecruzado por um discurso diddtico ou por um discurso de humor, 0 Discurso nao deve ser compreendido segundo a tradigao lingilistica, ou seja, como a unidade que ultrapassa a frase. A relagio entre diversas frases nio constitui, necessariamente, a unidade- discurso. E Preciso, como veremos mais adiante, que uma.seqiiéncia_de_ frases corresponda—d.expectativa da troca linguageira entre parceiros em ci istAncias. bem determinadas. Mas, note-se, também, que uma frase, uma palavra, um gesto podem ser portadores de discurso, desde que satisfagam a condigio acima. Enfim, 0 discurso nio seri, aqui, considerado no sentido de Benveniste (1966: 238), com sua oposigao entre di: ou seja “dois planos diferentes de enunciagiio.” discurso diz respeito ao Conjunto da encenagiio da significagdo do qual ee * Nao confundir, também, texto & corpus; 0 corpus & um outro objeto, construido pela reunidio de diversos textos (textos estes que seguem certos Parmetros, cuja finalidade” é a de dar ao corpus um prinefpio de homogeneidade). * Tal posigio € questioniivel. Preferimos, na verdade, falar de ritual politico (vide “Le discours propagandiste”, in: Le Francais dans le monde. Patis, Hachette, n. 182, jan. 1984), 5 um dos componentes & enunciativo (discurso) e 0 outro enuncivo (histéria). Essas distingdes nao nos dao, ainda, uma definigio precisa do conceito de discurso, mas elas tém o mérito de colocar em evidéncia, por contraste, algumas de suas caracteristicas. O termo discurso pode ser, assim, utilizado em dois sentidos: ~Em um primeiro sentido, discurso estd relacionado_ao fendmeno da encenagiio do ato de linguagem. Esta encenagiio » depende de um dispositivo que compreende dois circuitos: im circuito externo, que representa o lugar do fazer psicossocial (0. situacional) e um circuito interno que representa o lugar da organizagéo do dizer. Reservaremos 0 termo discurso ao dominio do dizer. Sera feita, conseqiientemente, uma oposigiio entre encenagdo discursiva e encenagéo linguageira, na medida / em que a segunda, incluindo o aspecto situacional do ato de linguagem, engloba a primeira. Note-se que, mesmo possuindo um dispositivo préprio que Ihe confere autonomia, a encenagdo discursiva nio se constréi independentemente da encenagéo linguageira. A encenagdo discursiva promovera a realizagiio de géneros e de estratégias que nio estio, obrigatoriamente, ligados as circunstancias de produgio. Assim, 0 discurso didatico, em suas caracteristicas do dizer, niio estd, exclusivamente, ligado a situagio escolar — que chamaremos de ritual — e pode ser encontrado em outros tipos de situagio (politica, cientifica, das midias®, etc.); Em um segundo sentido, discurso pode ser relacionado a um \ conjunto de saberes partilhados, construido, na maior parte das vezes, de modo inconsciente, pelos individuos pertencentes a um dado grupo social. Os discursos sociais (ou imagindrios sociais) mostram a maneira pela qual as priticas sociais sfio representadas em um dado contexto socio-cultural e como sio racionalizadas em termos de valor: sério/descontraido, popular/ aristocratico, polido/impolido, etc. © O termo Midia, aqui, est: informagio (imprensa escrit sendo utilizado no sentido de veiculo de ‘dio, televisia). 26 Os SUJEITOS DA LINGUAGEM Colocar os sujeitos da linguagem no centro teorias lingiiisticas é uma preocupagio recente e ainda nao generalizada. De fato, durante muito tempo — até o surgimento da Teoria da Enunciagiio — a lingua era considerada como um objeto abstrato, ¢ era necessdrio descrever seus sistemas internos. Além disso, 0 termo sujeito sé tinha uma realidade gramatical, e, ainda que na. retérica antiga a atividade da finguagem fosse considerada como arte da persuasio, esse sujeito nao estava presente como ser da enunciagao. Com as teorias estruturalistas e sua orientagao para a al comunicagio — reduzida e simplificada ao extremo pela teoria matemiatica da informagio — assim como a teoria gerativa de Chomsky, 0 ato de linguagem € 0 feito de um “locutor-ouvinte ideal” ¢ de um processo simétrico entre aquele que o produz e aquele que o recebe e o decodifica. Nao hd, portanto, lugar para a teoria dos sujeitos, uma vez que estes desaparecem na abstragiio ideal de um modelo de competéncia supostamente perfeito. Com a Teoria da Enunciagiio, a presenga dos responsdveis pelo ato de linguagem, suas identidades, seus estatutos e seus papéis, siio levados em consideragiio. Ja em Jakobson (1963), os conceitos de emissor € receptor encontram- se distinguidos e personalizados pelas fungées emotiva e conativa que thes sio associadas. Entretanto, € com Benveniste (1966) que se produz a primeira mudanga tedrica de importancia: “.., a subjetividade € a capacidade do locutor de se colocar como sujeito”. Ao dizer que 0 subjetivo & 0 ordenador da organizagio da linguagem, Benveniste da primazia & enunciagio sobre o enunciado e abre caminho para os novos estudos fundados sobre a oposigaio “Eu/Tu”. A Pragmitica vai ainda mais longe, uma vez que, sem se basear em uma verdadeira teoria dos sujeitos, leva em conta o estatuto linguageiro do sujeito falante para explicar os performativos: entre as condicgdes que definem a performatividade de um enunciado como “a sessio estd aberta”, estdo a de se ter 0 estatuto de presidente da sessao e a de ser o sujeito que pronuncia este enunciado. Embora essa posigio seja discutida mais adiante, gostarfamos, desde jé, de reconhecer 0 papel inovador desempenhado pela pragmiatica em relagiio as outras teorias da lingua. 27 Lembremo-nos também que, paralelamente ao desenvolvimento das teorias lingitisticas dos anos 60, a semidtica tentard distinguir, nos objetos iterdrios, varios tipos de enunciadores, destinadores, destinatérios, etc., sobretudo através dos trabalhos de Barthes. Enfim, tanto na Europa quanto nos Estados Unidos, sob a influéncia do desenvolvimento dos estudos*antropoldgicos e sociolégicos cada vez mais interessados pela linguagem, nasce um ponto de vista macro- sociolingiifstico que integra, a uma dada situagao linguageira, todos os membros do grupo social nela inseridos. Daf os termos de Participantes, atores, parcein que podem ser encontrados nos trabalhos de Bernstein (1971),Halliday (1973), Hymes (1974), Fishman (1971), Labov (1971) © Goffman (1974). Nao se pode dizer que 0 emprego desses termos seja de uma grande precisio, pois siio utilizados, as vezes, uns no lugar dos outros. De qualquer forma, eles * tm o mérito de obrigar toda teoria do discurso a se interrogar sobre a natureza dos seres sociais que participam das trocas linguagei: Antes de passarmos as defini ‘Ges, vejamos as hipdteses que constituem o quadro de nossa teoria exposta no livro Langage et Discours (Charaudeau, 1983). 1. O ato de linguagem’ & um fendmeno que combina o dizer e 0 fazer, O fazer € 0 lugar da instancia situacional que se auto-define pelo spago_que ocupam os responsiveis deste ato (ver, mais adiante, parceiros). O dizer & o lugar da instancia discursiva que se. auto- define como uma encenagdo da qual participam seres de palavra (ver, mais adiante, protagonistas). Esta dupla realidade do dizer e do fazer nos leva a considerar que o ato de linguagem é uma totalidade que se compée de um circuito externo (fazer) e de um circuit interior (dizer), indissocidveis um do outro. 2. Todo ato de linguagem corresponde a uma dada expectativa de significagio*. O ato de linguagem pode ser considerado como uma — 7 Bsse termo nio é, aqui, ido no sentido que Ihe dé a Pragmitica, mas sim em um sentido enso, uma vez que ele designa o conjunto da realidade linguage: * Devemos lembrar que utilizam (Langage et Discours, p. 18 ¢ termo como sendo oposto a sentido ification", in: Cahiers de 28 interagiio” de intencionalidades cujo motor seria o principio do jogo: “Jogar um lance na expectativa de ganhar.”"° © que nos leva a afirmar que a encenaciio do dizer depende de uma atividade estratégica (conjunto de estratégias discursivas) que considera as determinagées do quadro situacional. 3) Todo ato de linguagem é 0 produto-da.agiio de seres psicossociais que. sdo testemunhas, mais ou menos conscientes, das praticas sociais e das representagdes imaginirias da comunidade a qual pertencem, Isso nos leva a colocar que o ato de linguagem nao € totalmente consciente e & subsumido por um certo ntimero de rittais socio- linguageiros. Esse conjunto de hipdteses define nosso quadro teérico, que pode ser tepresentado, pela seguinte figura: Fazer-Situacional Circuito interna — Dizer circuito externo — Fazer Relagio Contratual Vejamos, pois, as denominagdes por nés acima utilizadas ¢ suas respectivas defini¢ées: Lexicologie n. 2\, Paris, Didier, 1972), em uma acepgio diversa da de Ducrot (Les mots du discours, Paris Editions de Minuit, 1980). ° Todo ato de linguagem em seu duplo proceso de produgéo e de interpretagdo € uma interagdo. Esse termo nio é, Pois, reservado somente ara a situagiio dialdgica. ° Essa analogia com a teoria do jogo & também utilizada por analistas da conversagao € por certos psicossacidlogos: 29 L. Sujeitos: das diferentes acepgdes do dicionario'' reteremos apenas a Ultima: “Philo. Psycho. (empr. all. Kant). Ser pensante, considerado como a sede do conhecimento (em oposigdo a objeto)”, em um sentido mais restrito. O sujeito pode ser considerado como um lugar de produgio da significagio linguageira, para o qual esta significagaio retorna, a fim de constitui-lo. O sujeito niio € pois nem um individuo preciso, nem um ser coletivo particular: trata-se de uma abstragiio, sede da producio/interpretagao da significagdo, especificada de acordo com os lugares que ele ocupa no ato linguageiro. Falaremos, entio, no que nos concerne, de sujeito comunicante, de sujeito enunciador, de sujeito destinatdrio e de sujeito interpretante. 2. Parceiros: de uma maneira geral, reteremos do diciondrio'? — ainda que nio expressa nestes termos — a nogiio de “pessoas associadas”, em uma relagio de fazer-valer reciproca: tai i por isso mesmo, dignas umas das outras (reconhecimento-mituo). Na interagio Tinguageira, vemos dois parceiros: 0 sujeito comunicante (EUc) e 0 sujeito interpretante (TUi), implicados no jogo que Ihes é proposto por uma_refagéo contratual. Essa relagio contratual nao se baseia nos estatutos sociais dos parceiros, do lado de fora da situagio linguageira. Ela depende do. “desafio” construido no e pelo ato de linguagem, desafio este que contém uma expectativa (0 ato de linguagem vai ser bem sucedido ou niio?). Isso faz com que os parceiros sé existam na medida em que eles se reconhegam (€ se “constriam”) uns aos outros com os estatutos que eles imaginam. E 0 caso de encontros entre parceiros em lugares como, por exemplo, bares ou restaurantes; nessas situagdes, os estatutos dos parcciros nao vio depender tanto de categorias profissionai hierarquizadas (patrao/empregado; intelectual/artista/comerciante, etc.), vio depender mais de um estatuto de competéncia atribuido no momento dos ditos encontros sobre os temas em torno dos quais vai girar a conversacio (futebol, politica, moda, etc.). A relagio contratual depende, portanto, de Componentes mais ou menos objetivos, tornados pertinentes pelo jogo de expectativas que envolve o ato linguageiro. " Petit Robert. " Id.,ib. 30° Estes componentes siio de trés tipos: — comunicacional, concebido como o quadro fisico da situagaio interacional: os parceiros estio presentes? Eles se véem? Sio tinicos ou muiltiplos? Que canal - oral ou grafico — é por cles utilizado? ete. (Charaudeau, 1973)." — psicossocial, concebido em termos dos estattos que os Parceiros. sfo suscetiveis de reconhecer um no outro: idade, sexo, categoria socio-profissional, posigio hierdrquica, relagao de parentesco, fazer parte de uma gio de cariter priblico ou privado, etc. — intencional, concebido como um conhecimento a priori que cada um dos parceiros possui (ou constréi para si mesmo) sobre © outro, de forma imagindria, fazendo apelo a saberes Supostamente partilhados (intertextualidade)."* O componente intencional se apoia sobre duas questées que constituem os princfpios de base de sua realizagio: O que esta sendo colocado em questio, com qual intengdo de informagiio? De que maneira isso esté sendo veiculado, ou, qual sera a intengio estratégica de manipulagio? '* O sujeito comunicante (EUc) € 0 parceiro que detém a iniciativa no processo de interpretagio. Ele encena o Dizer em fungiio dos trés componentes acima — é no componente intencional que se integram as hipdteses de saber que este sujeito é levado a construir sobre o sujeito interpretante (TUi) - © através da percepgio que tem do ritual linguageiro no qual esta envolvido. Temos af o lugar de fala do EUc, sendo que 0 resultado dessa sua atividade esta centrado nas estratégias discursivas, que siio suscetiveis de produzir efeitos de discurso."° "3 *Réflexion pour une typologie des discours”, in: Etudes de linguistique appliquée. Paris. Didier. 1973. jul. n.11. "" Diremos, mais voluntariamente, interdiscursividade. 'S Esse termo pode ser tomado em um sentido mais amplo, j4 que todo ato de linguagem traz em si a idéia de “arriscar-se a jogar um lance para ganhar", '© Distinguiremos, entio, os efeitos possiveis dos efeitos produzidos (de acordo com o sujeito interpretante). 31 O sujeito interpretante (TUi) & 0 parceiro que tem a iniciativa do processo de interpretagiio. Ele constréi uma interpretagaio — que pode ser muda ou se exprimir por uma interagio qualquer — em fungao dos mesmos trés componentes - com as hipdteses de saber que ele & levado a elaborar sobre 0 suijeito comunicante (EUc) —, e através da percepciio do ritual linguageiro. Entretanto, nao ha simetria entre ividades do EUc e do TUi. Se o resultado do processo de produgiio pode ser estudado através das caracteristicas da enacio do dizer, configurada no texto, o resultado do proces interpretagaio sé pode ser captado de duas formas: seja através do texto da inte: jo, por mais interessante que seja, sé pode ser parcial), seja de forma psico- experimental, isto é, testando-se os sujeitos interpretantes (na verdade, temos, af, uma outra abordagem — ainda que complementar — situada na fronteira do campo linguageiro). Protagonistas: das definigdes do diciondrio Petit Robert reteremos as nogées de “papel” ¢ de “importante”, mas nao o sentido, por demais restrito, ligado ao universo da tragédia grega. Na_ interagaio linguageira, somos confrontados com dois protagonistas: 0 sujeito enunciador (EUe) e o sujeito destinatario (TUd), que se definem como seres de fala da encenagio do dizer, produzida pelo EUc ¢ interpretada pelo TUi. Estes seres de fala assumem diferentes faces de acordo com os papdéis que lhes sio atribuidos pelos parceiros do ato de linguagem em fungao da relagiio contratual. Tais papéis siio concebidos como componentes da relagiio contratual e alguns deles correspondem aos trés componentes da relagiio contratual: comunicacional, psicossocial e intencional. Esses trés componentes siio vistas, aqui, como. indices semioldgicos da encenagio do dizer, enquanto que outros correspondem ao que chamaremos atitudes discursivas. Essas atitudes formam um dispositivo bastante complexo, que niio podemos descrever nos limites deste artigo, ¢ onde intervém, s6 para © ter uma idéia, atindes enunciativas (alocutive, elocutivo, delocutivo, ow seja, os tradicionais atos de fala), atitudes enuncivas (os modos de organi narrativo e argumentativo), atitudes de By 0 valores (ético, pragmitico e hedénico), aritudes de verdades (real, ficcional) e atitudes de credibilidade (sério, familiar, etc.). UM EXEMPLO: “A PERFORMATIVIDADE” Durante muito tempo, foi comumente admitido que havia na lingua verbos performativos e que seria possivel elaborar uma lista deles (prometer, ordenar, permitir, declarar, etc.). Mas, como esses verbos dependiam do dispositivo de enunciagio, foi preciso que se descrevesse as condigdes da realizagio performativa: os referidos verbos, além de seu semantismo particular (descrevem a jo que o locutor declara realizar), deveriam ser empregados no presente do indicativo e na primeira pessoa do singular. Assim, o enunciado “eu te ordeno que P”, era assinalado como performativo em opasigiio a “ele The ordena que P”, ou “eu the ordenava que P”, etc. Depois, 4 medida que foram sendo levados em conta contextos nos quais o verbo performativo — apesar de s boas condigées de emprego — nao realizava o ato que descrevia (caso dla ironia), alguns lingilistas propuseram qualificar tais verbos como “potencialmente performativos” (Roulet, 1978) ou, entio, apelaram para os “marcadores das leis do discurso” (Anscombre, 1977). A essas observagées sucessivas, que nos demonstram que a performatividade niio esta inscrita na lingua, poderiamos acrescentar que, em muitos casos, ocorrem realizagées de atos enunciativos sem que a férmula lingiiistica utilizada os descreva de algu modo: citemos 0 caso de um presidente de sessio que, para declarar que ela estd aberta, diga, apenas, um simples “Bom!”. Nao vamos propor, aqui, uma argumentagiio detalhada sobre a questiio, Gostariamos, apenas, de fazer uma série de consideragées que nos permitam provar que a performatividade nao é um fendmeno da lingua, mas, sim, um fenémeno que diz respeito 4 encenagiio do ato de linguagem com seus dois circuitos — externo ¢ interno — ¢ seus sujeitos correspondentes — parceiros ¢ protagonistas. A condigio que determina que o sujeito falante tenha o poder de executar 0 ato que ele descreve em sua enunciagao, depende, para nds, da relagiio contratual que existe no circuito externo, entre os dois 33 parceiros EUc e TUi. O “eu”, marca gramatical, nao remete, entio, ao sujeito enunciador (EUe), mas ao sujeito comunicante (EUc).” E necessirio acrescentar, entretanto, uma outra condigio: o EUc deve levar em conta se 0 TUi tem capacidade para poder fazer o que Ihe é sugerido pelo ato de fala, seniio nao haverd, efetivamente, performat jade. Dizer, por exemplo, “eu ordeno que vocé levante ¢ ande”, a um paralitico, nao resultaria em nada (a menos, é claro, que 0 EUc tenha a capacidade de fazer milagres, o que iria transformar o poder fazer do TUi). Dito de outra forma, para que haja performatividade, é necessdrio que os dois parceiros mantenham uma relagiio contratual na qual eles reconhecam, mutuamente, a existéncia desse poder fazer. A condigio de sinceridade proposta por Grice (1975) depende igualmente de uma relagio contratual (ponto de vista intencional). Assim, varias encenagées linguageiras siio possiveis com um mesmo enunciado, tal como: “Eu prometo ir 4 festa”. Vejamos algumas encenagoes: a) EUc se compromete a fazer algo > EUe promete e TUd & solicitado a crer nisso. Se TUi acreditar, de fato, no que ouve, havera um efeito performative (E. P.) para EUc e para TUi. Porém, se TUi acreditar no que ouve, o E. P. nao se dara. b) EUc nifio quer se comprometer a fazer algo — EUe, no entanto, promete e TUd € solicitado a crer nisso. Se TUi acreditar, de fato, no que ouve, haverd um E. P. para ele, mas niio para EUc (que sabe que nao esté dizendo a verdade mas, sim, contemporizando). c) EUc nao quer se comprometer a fazer algo > EUe promete, mas TUd & chamado a crer (presenga de um indice que propiciara essa niio-crenga). Se TUi, por sua vez, nao acreditar no que ouve, nio haverd efeito performativo. TUi sera, entao, conivente com EUc. "7 Ducrot d em 1977, © locutor enquanto locutor (EUc) do locutor gui personagem (EUe) no artigo “Illocutoire et performatif”. in: Revue Linguistique et Sémiologie 4, P.U.1.., 1977. 34 Os exemplos de encenagiio a dos nos levam a afirmar que, na andlise do discurso, s6 & po: ular de efeito performutivo (E. P.), salvo se 0 conjunto do dispositive do ato de linguagem € o lugar que nele ocupam os quatro sujeitos assegurarem ou nao tal efeito. vel O fato de que uma férmula verbal qualquer, que nao seja performat em si (no sentido inicial) possa contribuir para produzir a realizagiio de uma agio enunciativa, mostra que esta nao necessariamente ligada ao emprego de uma férmula especifica. Vejamos 0 caso do enunciado “eu gostaria que vocé viesse esta noite” dito por um pai a sua filha: se 0 pai (EUc) no tem costume de dar ordens a sua filha e exerce essa relagio de autoridade por meio de uma “negociagiio”, e, se a filha em questo (TUi) sabe bem disso, é quase certo que tl enunciado produzira o efeito e a realizagiio da ordem, 0 que nio poderia ser determinado pelo uso de “eu gostaria que” em outra circunsténe a Pensamos, assim, que a realizaciio de uma agi produzida por diferentes estratégias discut chegam até a mascarar o fazer pelo dizer. enunciativa pode ser ivas, sendo que algumas Enfim, a andlise de algumas seqiiéncias interacionais permite evidenciar que, cada vez que o EUc utiliza uma férmula explicita (eu ordeno, eu prometo, eu permite, etc.), Tudo se passa, do ponto de vista da estratégia discursiva, como se a validade da relagio contratual estivesse sendo colocada em dtivida, mesmo quando todas as condigdes sfio aparentemente preenchidas para produzir o eft performativo. Um pa que quisesse expulsar de seu escritério um funciondrio que ali veio para fazer uma reivindicagao, Ihe diria: “Saia daqui, agora!” Se o funciondrio nfo o fizesse, 0 patriio poderia acrescentar; “Eu estou mandando o senhor sair!” e, talvez, pudesse mesmo explicitar as condigdes de enunciagiio dizendo: “Sou eu, s superior, quem est Ihe falando!” Mas, as trés ultimas [6rmulas niio passa nas quais se institui um sujeito des resultado ficando na dependéncia da reagiio do TUi. Ao contrario, nfio se concebe que, no decorrer de um 2 o EUc enuncie algo como: “Eu ordeno que vocés dinheiro!” A impressiio de esciirnio que é-sentida em casos desse lipo 35 (bastante explorada em filmes cémicos, como alguns de Woody Allen) se deve 4 forga da ameaga que a relagio contratual representa (0 assaltante esta armado). Nesse caso, ela seria contemplada com um enunciado breve, do tipo: “O dinheiro! A relagio, inversamente proporcional, entre o emprego da forma performativa explicita e o E. P. do ato de linguagem leva a adotar uma terminologia que pode dar lugar a confusdes. Assim, distinguiremos: - 0 ato de linguagem que, como foi dito no inicio deste artigo, diz respeito 2 totalidade da encenagio linguageira com seus dois circuitos, externo ~ o da relagio contratual entre parcciros — e interno — o da encenacito do dizer, com seus dois protagonistas. — o ato de fala que diz respeito exclusivamente a encenagiio do dizer, por meio de qualquer férmula verbal que seja, desde que ela assinale um ato enunciativo dando um determinado papel ao EUe e ao TUd. O ato de fala _niio representa, entio, 0 todo do ato de linguagem. - a estratégia discursiva que leva em conta o efeito possivel produzido pelo ajustamento (0 jogo) entre a encenagiio do dizer (0 ato de fala) ¢ a relagiio contratual do fazer. Nessis condigGes, 0 conceito de ato performative parece ser initil no Ambito da andlise do discurso, visto que tal conceito desaparece sob a descrigio sempre particular do efeito estratégico produzido pelo ajustamento entre o dizer e 0 fazer. Concluiremos mostrando, rapidamente, 0 sentido atribuido a outras denominagies que ja mencionamos: — locutor/interlocutor servirio para designar os parceiros EUc e TUi, quando estes estiverem em situagio de comunicagio dialégica utilizando o — scriptorfeitor designario os mesmos parceiros a mencionados, quando a situagio de comunicagio for dialdgica, quando o canal for grafico ou escritural. Deixaremos a terminologia avores i sociologia — pois esse termo poderia trazer uma certa confusiio em uma teoria do discurso, a menos 36 que o liguemos aos participantes da etnografia da comunicagio ¢ da etnometodologia - pois trata-se de um ponto de vista macro- sociolégico que escapa ao que nés consideramos como a expectativa do ato de linguagem. O conceito de Ator poderia, na entanto, ser utilizado para designar um terceiro implicado em um ato de linguagem. Emissor/Receptor serio deixados de lado, pois podem transmitir uma falsa idéia do que seja um ato de linguagem. Enfim eu/tu nado serio considerados, ji que nos enviam, de modo bem restrito, as pessoas gramaticais, ainda que Benveniste tenha tido cuidado para evitar essa possivel confusio. (Tradugiio de Ida Lucia Machado, Renato de Mello e Williane Viriato Rolim ) REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS ANSCOMBRE, J.C. La problématique de Millocutoire dérivé. In: Langage et Société 2, 1977. BENVENISTE, E. Problemes de linguistique générale, 1. Paris, Gallimard, 1966, BERNSTEIN, B.Class, codes and control, vol.|. London, Routlege and Keagan Paul, 1971. CHABROL, C. Réflexions & propos de I"interaction et de linterlocution dans les médias. In: Sociologie du Sud-Est, n.37-38, Aix en Provence, 1983. CHARAUDEAU, P. Le In: Le frangais dans te monde. 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