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Ilana Rebello
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nificado – sentido genérico da língua para a significação – sentido
específico do discurso) e transação entre sujeitos, que veremos a
seguir, ao tecermos algumas considerações a respeito da teoria
Semiolinguística de Análise do Discurso, criada pelo pesquisador
da Universidade Paris XIII, Patrick Charaudeau.
A teoria Semiolinguística de Análise do Discurso trabalha
com a linguagem enquanto veículo social de comunicação. Cha-
raudeau (1983, p.14) afirma que a semiolinguística é semiótica
porque o objeto de que se ocupa só existe dentro de uma intertex-
tualidade dependente dos sujeitos da linguagem, em que se pro-
cura identificar possíveis significantes, e é linguística porque o ins-
trumento por meio do qual questiona esse objeto se constrói após
um trabalho de conceptualização estrutural dos fatos discursivos.
Os sujeitos da comunicação, para interpretarem o que
leem, ou ouvem recorrem não só ao signo verbal (morfemas, pala-
vras, frases etc.), o que interessa à linguística, mas também ao não
verbal, o que interessa à semiótica. Além disso, a Semiolinguística
é do discurso, porque o texto deve ser analisado em seu contexto
discursivo, do qual fazem parte outros textos pré-existentes a ele,
que circulam na sociedade em geral, ou num dado grupo social.
Assim, a Semiolinguística em Análise do Discurso aponta
para a impossibilidade de se pensar a experiência da linguagem,
distante dos sujeitos históricos. O discurso não é construído ape-
nas em torno do binômio estrutura/enunciado, mas apresenta
características individuais e sociais, ou seja, características de lín-
gua e de fala.
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ênfase nos assuntos vinculados à política e à economia, mas não
deixa de abordar outros temas, como ciência e tecnologia, saúde,
educação, cultura, comportamento etc. Na capa em análise,14
o tema central é política internacional, mais especificamente, a
triste peregrinação dos refugiados.
A imagem veiculada na capa não tem apenas função
atrativa, mas papel primordial na construção do sentido do texto
como um todo e na percepção do real que se pretende levar ao
público. Aqui, o acionamento da memória que recupera o con-
texto é de fundamental importância para garantir a leitura dos
elementos sígnicos da capa.
Dessa forma, a capa é o primeiro elemento de uma revista
que o leitor, possível comprador, tem contato, e uma boa imagem
será sempre importante, tendo em vista que poderá prender, ou
não, a atenção do leitor.
Na capa em questão, a cor predominante é o preto. A man-
chete é dividida pela foto que toma o centro da capa: “‘Deus, sendo
bom, fez todas as coisas boas. De onde então vem o mal?’ Santo
Agostinho, nas Confissões ‘O mal (e o bem) vem do homem’ Czeslaw
Milosz, poeta polonês ganhador do Nobel de Literatura”. A imagem
é a foto de Aylan, o menino sírio de três anos de idade, que mor-
reu afogado no Mediterrâneo e foi encontrado na praia de Bodrum,
na Turquia. Ele está deitado de bruços sobre a areia da praia e, ao
fundo, o mar. A disposição dos elementos, na capa, é a seguinte:
14 A capa da Revista Veja, de 09/09/2015, ed. 2442, ano 48, nº 36, está disponível em
<http://veja.abril.com.br/acervodigital/home.aspx>.
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significado e um processo de transação (base da construção do con-
trato de comunicação) entre o sujeito comunicante e o sujeito inter-
pretante-destinatário.
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Ao lado do processo de transformação, há o processo de
interpretação, ou seja, o acontecimento construído pela mídia é
também interpretado, reconstruído pela instância de recepção.
O processo de transformação ocorre sob a dependência
do processo de transação. A instância midiática constrói a capa,
ou seja, organiza os elementos sígnicos em função de como ela
imagina a instância receptora. Isso significa dizer que o texto é
construído em função de um TUd (tu-destinatário) que pode, ou
não, coincidir com o TUi (tu-interpretante), aquele que efetiva-
mente reinterpreta a notícia à sua maneira.
Enquanto o processo de transformação compreende as ope-
rações de identificação (identidades nominais), qualificação (identida-
des descritivas), ação (identidades narrativas) e causação (os seres
agem em razão de certos motivos), o processo de transação rea-
liza-se segundo quatro princípios: de alteridade, de pertinência, de
influência e de regulação (Charaudeau, 2007a, p. 14-16).
Assim, no primeiro processo, no de transformação, para sig-
nificar o mundo em direção ao outro, o sujeito comunicante deve estru-
turar o seu texto segundo um certo número de categorias que são,
elas próprias, expressas por formas –, a identificação, a qualificação, a
representação dos fatos e das ações, a explicação de sua razão de ser e de fazer
e a relação. Nesse primeiro processo, assim, o sujeito comunicante
realiza várias operações linguageiras que consistem em dar conta
de um modo de existência dos seres do mundo. Tais operações são:
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Na capa, a maioria dos substantivos é atualizada por meio
de artigos definidos – as coisas, o mal, o bem, do homem.
A segunda operação é a de qualificação.
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III. operação de representação de fatos e ações – por meio de
verbos e advérbios, sinaliza as mudanças de estado
dos seres. Os seres são transformados em “identida-
des narrativas”.
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“discurso narrativizado”, “discurso evocado”. (3) A
maneira pela qual quem cita avalia o enunciado
citado para integrá-lo (dizer “ele finge que” é pressupor
que o propósito citado é falso...).
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Outro ponto importante a ser observado é que, se o locu-
tor relator retoma o discurso de outrem, todo discurso reportado é
polifônico e, dependendo da mensagem, será também intertextual.
Daí que a compreensão de textos depende da experiência de vida
do leitor, das vivências, das leituras anteriores. Determinadas obras
só se revelam por meio do conhecimento de outras. Como afirma
Orlandi (2000, p. 18), “todo discurso nasce em outro (sua matéria-
-prima) e aponta para outro (seu futuro discursivo). Por isso, na rea-
lidade, não se trata nunca de um discurso, mas de um continuum”.
Nas manchetes em foco, há o uso da intertextualidade
explícita, já que é feita menção à fonte da citação. Por mais
que a revista utilize a intertextualidade explícita, tendo em
vista que faz a citação com a identificação da fonte, quando se
retoma o discurso de outrem, o objetivo é contestar uma ideia
ou reforçá-la. Na argumentação, a intertextualidade explícita é
um recurso de autoridade.
Assim, ao estabelecer uma relação de intertextualidade, o
autor provoca uma interação entre o sentido dos dois textos, o que
permite, por sua vez, a construção de um terceiro sentido para o
texto desencadeador da intertextualidade.
Ainda na quarta operação de causação, é importante
destacar a utilização de operadores lógicos, sinalizando que os
seres agem ou sofrem a ação em razão de certos motivos que são
demarcados por meio de elementos coesivos, como preposições,
conjunções, pronomes relativos e outros tipos de conectores, como
certos advérbios e locuções prepositivas.
Assim, na capa, a operação de relação é demarcada expli-
citamente pelo conector conclusivo “então”.
Pelo exposto, nomes, atributos, modalidades, processos
e conectores são elementos discursivos encarregados de trans-
formar a língua em discurso. Essas categorias não funcionam de
forma isolada, pelo contrário, constituem textos e estes, por sua
vez, são organizados em função dos objetivos do eu-comunicante.
Nesse sentido, a escolha do modo de organização do discurso
levará em conta os objetivos visados, o lugar social e os papéis dos
participantes. Além disso, essa escolha normalmente é feita com
base no tipo de texto que se quer construir.
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Nas capas da Veja, encontram-se, normalmente, diferen-
tes modos (narrativo, descritivo, argumentativo). Charaudeau
(2012b) não faz distinção entre argumentar e expor. Quando fala
de textos científicos, por exemplo, o autor diz que esses são orga-
nizados segundo um modo em que predomina o argumentativo
(explicativo). Dessa forma, na capa em análise, nas manchetes, há
o predomínio do modo argumentativo (explicativo), com constru-
ções de caráter mais referencial. Essas sequências além de serem
mais explicativas, com poucas palavras, procuram atrair o leitor.
É importante ainda destacar que, por trás desse teor explicativo,
escondem-se intenções argumentativas.
Assim, na manchete, há o modo descritivo, quando se
nomeiam e qualificam os seres – “Deus, bom, coisas boas, mal,
homem”, há o modo narrativo quando se representam fatos e
ações – “Deus fez coisas boas”, “O mal (e o bem) vem do homem”,
há o modo argumentativo quando se expõe uma asserção de par-
tida (“De onde vem o mal?”), uma asserção de passagem (“Deus,
sendo bom, fez coisas boas.”) e uma asserção de chegada (“O mal
(e o bem) vem do homem”).
Entre os modos de raciocínio elencados por Charaudeau
(2012b, p. 213-220), na manchete da capa, há a explicação prag-
mática. Segundo Charaudeau (2012b, p. 215), a explicação “se
baseia em A1 para chegar a uma conclusão A2, mas desta vez
A2 representa a origem, o motivo, a razão e até a causa mental
(mesmo que dependa da experiência) da tomada em consideração
de A1, através de uma inferência”.
Na capa, a explicação para a origem do mal se baseia na
afirmação de um poeta que é ratificada pela revista. A causa não
é uma hipótese, uma suposição, mas uma realidade presentificada
pela foto. Ou seja, a explicação para a origem do mal é resultado
da experiência real.
Além desses três modos de organização do discurso,
Charaudeau (2012) acrescenta o modo enunciativo, aquele que
comanda os outros modos, dando conta da posição do locu-
tor com relação ao interlocutor, numa relação de influência
(modalidade alocutiva); com relação a si mesmo, pondo em evi-
dência o ponto de vista do sujeito (modalidade elocutiva) e com
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relação aos outros, retomando o discurso da terceira pessoa
(modalidade delocutiva).
Numa primeira análise, percebe-se que a revista faz uso
da modalidade delocutiva, tendo em vista cita Santo Agostinho e
o poeta polonês Czeslaw Milosz. No entanto, na primeira man-
chete, há uma interpelação clara ao leitor, com a indagação “De
onde então vem o mal?”, o que configura a modalidade alocutiva.
O locutor age sobre o interlocutor (leitor da revista), obrigando-o
a responder e/ou a reagir (relação de influência). O locutor tem o obje-
tivo levar o sujeito-interpretante a se identificar com uma imagem
ideal do destinatário, que deve ser o ator de um “fazer”.
Por mais que a revista forneça uma resposta para a per-
gunta, num primeiro momento, propõe ao leitor uma reflexão,
induzida, é claro, pela imagem que ocupa praticamente o centro
da capa. A resposta só é fornecida no final da capa, abaixo da
foto, sendo até redundante. A foto induz qualquer um a pensar
que o mal vem do homem, já que o menino de três anos da foto
só morreu afogado por estar fugindo da guerra, com a família,
em busca de paz e de condições para a sobrevivência. Além disso,
o mal provocado pelo homem é intensificado quando se pensa
que primeiro o menino e a família fogem do homem mau que
faz a guerra; segundo que são “roubados” por um homem mau,
vítima também da guerra, que propõe uma travessia de mar sem
qualquer segurança e terceiro que não são acolhidos pelo homem
mau (alguns governantes), os quais poderiam socorrer as pessoas
vítimas da guerra antes que elas se lançassem em uma travessia de
mar completamente arriscada.
Dessa forma, transformar um mundo bruto em um
mundo significado não é uma tarefa tão simples, pelo contrá-
rio, depende do arranjo estabelecido entre as várias categorias
de língua, a fim de direcionar o olhar do leitor para o que se
quer divulgar.
Ainda descrevendo a semiotização de mundo na capa da
revista em análise, no segundo processo, no de transação, o sujeito
interpretante se encontra diante do problema de ter que reconhe-
cer, para certos fins, um mundo já significado por um outro, deco-
dificando-o (forma-sentido), por meio de um ato de interpretação.
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O processo de transação é a base do contrato de comunica-
ção, em que os sujeitos da comunicação fazem, cada um, apelo
aos seus respectivos imaginários culturais ou a saberes suposta-
mente partilhados entre eles. Diante disso, conclui-se que todo
processo de comunicação se constrói por meio de uma interação
real ou suposta entre dois parceiros e deve satisfazer as condi-
ções já apontadas por Charaudeau (2007a, p. 15) de legitimidade
(princípio de alteridade – todo processo de comunicação pressupõe
uma interação entre um eu que fala, um tu que escuta e um ele
de quem se fala), de credibilidade (princípio de pertinência – para
que a mensagem seja entendida, é necessário que os elementos
envolvidos tenham um saber comum acerca do que se fala) e de
captação (princípio de influência – cada um dos elementos ligados
pelo ato de comunicação procura influenciar o comportamento
do outro e de regulação – os elementos do ato de comunicação
devem buscar um equilíbrio, uma troca de informações), para
realizar finalmente um texto.
Assim, em todo ato de comunicação, há um sujeito que
se define por sua identidade e pelas próprias restrições da situa-
ção. Por exemplo, nas capas de revista, há um eu-comunicante que
tem uma identidade social, por exemplo, o papel de jornalista,
de editor, de fotógrafo, de designer etc. Essa identidade social é
atribuída e reconhecida institucionalmente, mas não imutável.
Ou seja, as identidades emergem em cada contato comunicativo,
dependendo do contexto do ato de linguagem.
Por outro lado, cada sujeito apresenta uma identidade dis-
cursiva, projetada nas práticas discursivas. Por exemplo, a voz que
enuncia numa capa de revista, ou seja, o eu-enunciador, pode se pro-
jetar como de “direita”, de “esquerda”, “feminista”, “machista”
e assim por diante, dependendo da intenção e das estratégias que
emprega na sua prática linguageira.
A revista Veja tenta passar uma imagem de um veículo de
comunicação sério, objetivo e imparcial. No entanto, na capa em
análise, o eu-enunciador projeta uma imagem discursiva de alguém
indignado e, ao mesmo tempo, sensibilizado com a situação dos
refugiados. Essa imagem discursiva fica evidente quando analisa-
mos as estratégias empregadas. Ou seja, para ser reconhecido e
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alcançar seus objetivos, o eu-comunicante vale-se de estratégias dis-
cursivas – de legitimação, de credibilidade e de captação.
As estratégias de legitimação não se confundem com a legi-
timidade, que é uma conquista atribuída antecipadamente pela
situação de comunicação. Por exemplo, um padre tem legitimi-
dade para ministrar uma missa, um juiz tem legitimidade para
realizar um casamento e assim por diante. Aqui, as estratégias
de legitimação dizem respeito àquelas estratégias utilizadas pelo
sujeito, a fim de mostrar ao sujeito destinatário que está apto a
desempenhar uma determinada identidade social.
Por exemplo, para se destacar de outras revistas, a Veja
procura legitimar-se como um veículo de comunicação sério,
objetivo, imparcial, fidedigno etc. Quem compra a revista
espera ler não informações fabricadas, inventadas, sem caráter
científico, mas matérias fundadas na pesquisa, na investigação,
provenientes de fontes sérias, confiáveis. Assim, a revista precisa
mostrar ao seu interlocutor que sua fala e sua maneira de expor
os fatos correspondem à posição de autoridade que seu status
lhe confere.
Atuando com a estratégia de legitimação, as estratégias
de credibilidade e de captação ajudam também na construção da
identidade discursiva.
As estratégias de credibilidade são mobilizadas quando o
sujeito locutor (aqui, a revista) quer que acreditem nele, no seu
projeto de linguagem. Para tanto, pode construir uma imagem de
si, um ethos, de uma revista séria, que faz ponderações, que sabe
pesar os prós e os contras, que prova aquilo que diz, que relata
fatos comprovados etc.
Assim, para ter credibilidade, o sujeito locutor pode ado-
tar diferentes atitudes discursivas, como de neutralidade, de distan-
ciamento e de engajamento.
Assumindo uma atitude de neutralidade, o sujeito locutor
procura apagar, em seu discurso, qualquer traço de subjetividade,
de julgamento pessoal ou de parcialidade. Para mostrar essa
suposta e quase impossível neutralidade, a revista procura inse-
rir em suas matérias dados estatísticos, depoimentos e entrevistas,
atribuindo ao outro a responsabilidade do dizer.
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Na capa, ao atribuir a autoria das informações das man-
chetes a Santo Agostinho e ao poeta polonês, a revista procura
se esconder por trás da máscara discursiva de neutralidade. No
entanto, como é sabido, ao reportar a fala de outro, faz-se com
o objetivo de reafirmar ou contestar uma ideia e isso por si só já
é uma tomada de posição. Além disso, a própria escolha da foto
mostra o posicionamento da revista diante do fato noticiado.
A segunda atitude, a de distanciamento, está muito ligada
à atitude de neutralidade, tendo em vista que, nessa segunda, o
sujeito locutor procura mostrar uma atitude fria, controlada, assu-
mindo uma identidade discursiva de um especialista que analisa
um fato sem expor sentimentos. Por mais que esse seja um obje-
tivo pretendido pelos veículos de informação, esse distanciamento
é quase nulo. A Veja, por exemplo, sempre deixa muito explícita a
sua ideologia, a ideia que quer vender ao leitor.
A capa de uma revista antecipa para o leitor alguns dados
dos fatos que serão noticiados. Essa antecipação, normalmente,
direciona o olhar do leitor para determinados aspectos, influen-
ciando a interpretação. Se o leitor não tiver atento, pode interpre-
tar as matérias a partir da ideologia da revista. Assim, na capa em
análise, o objetivo da Veja é mostrar que o homem, mesmo criado
por um Deus bom, é um ser mau. O bem é suplantado quando se
vê a foto da criança morta. Vale ressaltar que a foto jornalística,
por tentar imitar o real, é uma forma de credibilidade, ou seja,
o fato não é uma invenção, mas aconteceu, e a foto acaba sendo
uma prova desse real.
E, por último, a terceira atitude que o sujeito locutor pode
adotar na luta pela credibilidade é a atitude de engajamento. O sujeito
locutor adota conscientemente, em seu discurso, uma posição. Essa
atitude é verificada, normalmente, na mídia informativa, mesmo
que, a princípio, essa não seja a ideia que se queira passar.
Além da estratégia de credibilidade, na construção da
identidade discursiva, o sujeito locutor se vale da estratégia de
captação. A revista não está em posição de autoridade perante o
seu leitor, não pode obrigá-lo a comprar a revista e muito menos
a concordar com as ideias veiculadas. Nesse caso, para captar a
atenção do sujeito destinatário, o veículo de comunicação pode
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manipulá-lo discursivamente, apelando para o seu lado emocio-
nal (efeitos de pathos). Na captação, o sujeito locutor também pode
se valer de três atitudes – a polêmica, a sedução e a dramatização.
Na atitude polêmica, quem comunica surpreende o interlo-
cutor com questionamentos ou objeções a respeito das ideias em
foco. Na atitude de sedução, muito presente nos textos publicitários,
quem comunica propõe ao leitor um mundo imaginário, no qual
ele – sujeito destinatário – desempenharia papel de beneficiário.
E, por último, na atitude de dramatização, o sujeito locutor apela
diretamente para as emoções do sujeito destinatário, descrevendo
fatos e dramas da vida.
Nas capas de revista e, mais especificamente, na Veja, per-
cebe-se a utilização dessas três atitudes de captação. Com jogo de
cores, fotos impactantes e efeitos gráficos, a Veja tenta seduzir o lei-
tor para comprar a revista. A capa, sendo a embalagem da notícia,
precisa se destacar entre as concorrentes, conquistar não apenas
o leitor de banca, mas aquele que compra o produto e o faz assi-
duamente. A Veja tenta fazer com que o leitor interprete o tema
proposto da edição por meio da visibilidade constituída na capa.
Quando a Veja propõe ao leitor uma manchete interroga-
tiva, de certa forma, polemiza o fato, mesmo que induza o raciocí-
nio do leitor para uma determinada conclusão. E a dramatização
aparece explicitamente na utilização da foto. A Veja não poderia
escolher foto melhor, tendo em vista que a imagem exposta foi
mostrada nos noticiários e chocou o mundo. Em meio à correria
da vida, as pessoas parecem acostumadas a ver adultos passando
por necessidades, sendo agredidos ou mortos, mas a imagem de
uma criança sensibiliza muito mais, mexe com as emoções mais
profundas do ser. Causa comoção. Que mãe não imaginou que
poderia ser o filho naquela situação!?
Um dado relevante na análise das capas da Veja é a impor-
tância do diálogo entre texto verbal e texto visual. Na Veja, a ima-
gem não tem apenas função atrativa, mas papel primordial na
construção do sentido do texto como um todo e na percepção do
real que se pretende levar ao público.
Assim, a revista Veja assume a função de levar aos leitores
a compreensão sobre o mundo. Os temas e a forma como a revista
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os organiza, hierarquizando-os (os que merecem destaque e os
que não devem nem ser divulgados) constituem também indica-
dores da forma como a revista direciona o olhar do leitor. Não é o
leitor quem escolhe o que quer saber, mas a revista. O que não é
de interesse da revista não tem espaço na publicação.
A capa da edição põe em evidência o “fazer sentir”, tendo
em vista que o leitor não tem acesso à informação em seu estado
bruto, mas à encenação da informação que produz efeitos de dra-
matização. O objetivo é chamar a atenção do leitor. A capa, então,
ao mesmo tempo em que apela para as emoções, ou seja, para o
“fazer sentir”, precisa também, a fim de atender a função do con-
trato de comunicação estabelecido socialmente para esse gênero,
“fazer saber”, assumindo uma máscara de possível neutralidade.15
Dessa forma, as organizações que têm por objetivo infor-
mar estruturam-se como empresas, como “fábricas de informa-
ção”, no dizer de Charaudeau (2012a, p. 12). Encontram-se em
concorrência num mercado que as “obriga” a distinguir-se uma
das outras e, para isso, acionam estratégias quanto à maneira de
reportar os acontecimentos, comentá-los, ou mesmo, provocá-los.
Nesse contexto, a revista Veja configura-se como um pro-
duto do campo jornalístico, cuja legitimidade está em não apenas
produzir e divulgar informações, mas atualizar a realidade e reno-
var a apreensão do mundo. Como o próprio nome indica, a Veja
mostra o que julga importante saber, de uma maneira particular,
não transparente.
Portanto, linguagem verbal e não verbal são organizadas
de modo a formarem não uma pura descrição, mas uma interpre-
tação, ou um conceito sobre algo ou alguém. Não há isenção total
ao recortar uma imagem ou uma cena do mundo real, tendo em
vista que há um sujeito que está por trás da câmera, cujas escolhas
são definidas pelo seu modo de ver o objeto retratado. Para ven-
der bem, uma revista precisa conquistar o leitor.
Hernandes (2012, p. 49-81), utilizando-se de pressupostos
da Semiótica Discursiva de Greimas, cita três estratégias para se
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conquistar o leitor, que vão ao encontro das ideias discutidas aqui.
A estratégia inicial para conquistar o leitor é de ordem sensível,
como é o caso das imagens, das fotos grandes nas capas de revis-
tas. A imagem deve levar o leitor a querer saber o que aconteceu
– estratégia de arrebatamento. Além disso, em uma revista, a capa não
precisa, como no jornal, ser uma síntese da edição. Normalmente,
a capa destaca o assunto mais importante, o mais comentado
durante a semana e que é o chamariz para a venda.
Então, após esse primeiro estágio, a ideia é conquistar o
leitor, provocando-lhe um estado de disforia, de insatisfação, de
tensão, provocado pela falta de um saber, de uma curiosidade
ainda não solucionada. Uma boa revista, então, precisa levar o
leitor, após esse estado de insatisfação, a uma situação de euforia
e de satisfação com o consumo da revista – estratégia de sustentação.
Tal estratégia é mais da ordem passional.
E, por último, é preciso tornar o leitor em um consumidor
assíduo – estratégia de fidelização. Uma editora não busca um leitor
de banca, mas aquele que efetivamente compra o produto. Dessa
forma, o leitor precisa ser levado, mesmo que inconscientemente,
a criar um vínculo com a revista, satisfazer-se com o seu conteúdo,
com a forma de transmitir os fatos etc. Essa última estratégia, ape-
sar de envolver sentimentos, é mais da ordem racional.
E nessa conquista e fidelização do leitor, a capa é usada
para vender a revista. É uma espécie de vitrine e precisa ser irre-
sistível. A capa põe em evidência o “fazer sentir”, tendo em vista
que a encenação da informação produz efeitos de dramatização.
O objetivo é chamar a atenção do leitor. É o que Hernandes
(2012, p. 48) chama de estratégia de arrebatamento, visível na
superfície visual (a exemplo das cores empregadas, dos contrastes,
das comparações...) e também na superfície textual (quando, por
exemplo, exibem-se notícias que comovem e estimulam o engaja-
mento empático do público).
Por exemplo, na capa em análise, o preto é a cor que pre-
domina. Segundo Chevalier e Gheerbrant (2012, p. 740), o preto,
“simbolicamente, é com mais frequência compreendido sob o seu
aspecto frio, negativo. [...] O preto é a cor do luto; não como o
branco, mais de uma maneira mais opressiva. [...]”.
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Assim, percebe-se, na capa, que o preto dá o tom da tragé-
dia. A única luz, a natural, ilumina apenas o menino. Esse contraste
nas cores reforça a informação da manchete, de que o mal vem do
homem. O único ser iluminado é a criança, o bem criado por Deus.
Contrastando com o preto, há o branco no logo da revista
e o cinza nas manchetes. A luz, o foco incide sobre a foto do
menino. O logo com letras grandes e cheias, na cor branca, é quase
como um grito para que o leitor “Veja” a cena.
Em relação à fotografia, segundo Barthes (1990), mesmo
sendo uma imagem única, fixa, também é polissêmica. A fotogra-
fia não é o real, mas é uma imagem que se assemelha a algo da
realidade, o seu original, um “analogon”, no dizer de Barthes. Por
trás de uma aparente neutralidade imposta pela fotografia, escon-
dem-se outros sentidos que interferem na interpretação do fato.
A imagem fotográfica apresenta uma primeira men-
sagem, a mensagem denotada, em contraposição à mensagem
conotada, à leitura “cultural”, realizada a partir das informa-
ções contextuais.
Nesse sentido, na fotografia de imprensa, há a coexis-
tência de duas mensagens, uma denotada, que procura imitar o
real, que mostra o instante da captura da imagem e outra cono-
tada, que mostra a imagem a partir de escolhas, de edições etc.
Segundo Joly,
quem já fabricou qualquer imagem sabe disso, mesmo
com relação a tirar a fotografia mais comum. Fazer
uma imagem é primeiro olhar, escolher, aprender. Não
se trata “da reprodução de uma experiência visual, mas
da reconstrução de uma estrutura modelo”, que tomará
forma de representação mais bem adaptada aos objetivos
que estabelecemos para nós [...]. (JOLY, 2012, p. 60)
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Na capa da Veja em análise, há uma fotografia. As fotos de
Aylan, o menino sírio de três anos de idade que morreu afogado
no Mediterrâneo e foi encontrado na praia de Bodrum, na Tur-
quia, divulgadas pela mídia, conseguiram não apenas captar um
momento, mas eternizar emoções intensas. Que poder tem uma
foto para provocar tantas emoções?
A primeira mensagem, a denotada, exibe uma criança
deitada de bruços sobre a areia da praia e, ao fundo, o mar. A ima-
gem passa de um processo de desumanização (como um mundo
a significar) a um processo de humanização (como um mundo já
significado). O corpo é identificado.
Numa leitura mais aprofundada, a partir de códigos
semiológicos, percebe-se uma mensagem conotada. Na foto, as
roupas de passeio grudadas no corpo do menino indicam que elas
estão molhadas. O corpo totalmente paralelo ao chão, em linha
horizontal, enfatiza a dimensão estática (corpo sem vida), em
oposição ao movimento das ondas do mar se aproximando, num
movimento de ir e vir. Não é a imagem de alguém que resolve
deitar-se sobre a areia, mas de alguém que é molhado pelo mar e,
pela inércia do corpo, é mais especificamente a imagem de uma
criança trazida pelas ondas do mar.
Assim, o corpo sozinho na praia, numa posição em que
muitas crianças dormem, inerte, é a própria imagem do aban-
dono, da total fragilidade do ser humano frente às forças da natu-
reza. Com certeza, aquele corpo não pertence àquele lugar.
A foto é apresentada dentro de um quadro, delimitado
pelo fundo preto da capa, convidando o leitor para uma leitura
centrípeta, dentro dos limites da fotografia. O enquadramento
horizontal mais fechado dá ideia de proximidade. O menino
fica bem próximo do leitor, é possível ver detalhes, como, por
exemplo, que as roupas estão molhadas. Os únicos elementos
presentes na fotografia são o menino, em primeiro plano, a areia
e o mar.
As linhas que conduzem o olhar do leitor distribuem-se
de maneira equilibrada. O menino colocado na horizontal, com
o fundo neutro e com ambos os lados do corpo em posições prati-
camente iguais é um exemplo de simetria numa fotografia. E essa
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simetria é útil para chamar a atenção do leitor para o elemento
mais importante.
Segundo Sousa (2002, p. 79-80), o fotógrafo pode esco-
lher alguns ângulos para captar a imagem, como plano normal – a
tomada da imagem faz-se paralelamente à superfície; plano picado
– a tomada da imagem faz-se de cima para baixo (essa técnica é
chamada por outros estudiosos de câmera alta ou plongée – mergu-
lho, em francês) e plano contrapicado – a tomada de imagem faz-se
de baixo para cima (câmera baixa ou contra-plongée).
Na fotografia da capa da Veja, o ângulo de tomada da
foto paralelo à superfície oferece uma visão mais “objetiva” sobre
a realidade representada. Além disso, em vez de fotografar o
menino de frente, a escolha por focalizá-lo de costas contribui
para inserir o mar na cena e reforçar a fragilidade da criança.
Reflexão
Transformar um mundo bruto em um mundo significado
não é fácil; depende de muitas escolhas que influenciarão e, por
que não dizer, determinarão a interpretação dos fatos.
Como afirma Charaudeau (2010b, p. 10), no ato de
comunicação há:
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uma imagem ou uma cena do mundo real, tendo em vista que
há um EU que está por trás da câmera, por trás da manchete, da
notícia etc., cujas escolhas são definidas pelo seu modo de ver o
objeto retratado.
Em qualquer texto, tudo é captado, selecionado e filtrado
pela “lente” de quem o produziu.
Além disso,
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