Você está na página 1de 36

#30 Set.| Out.| Nov.| Dez.

| 2021

A Eritroblastose fetal
na obra Evolução
em dois mundos

Ética do médico Laborterapia, O conceito de


espírita no uso dependência saúde espiritual
das radiações química e pede a consideração
saúde mental de apoio espiritual
Editorial O conceito de saúde das relacionadas a uma abordagem integral do
espiritual vem sendo cada ser humano. Ademais, a busca de uma bioética
vez mais utilizado dentro personalista espírita que contempla a dignida-
da área da saúde, gerando de ontológica, a partir da fecundação, tem sido
uma reflexão sobre a ne- um dos principais pilares do paradigma médi-
cessidade de a dimensão co-espírita.
espiritual ser reconhecida A AME-Brasil tem se empenhado para que
como fator fundamental as conclusões filosóficas geradas a partir da
para o bem-estar geral, ao visão médico-espírita referente às questões
lado dos bem-estares físi- éticas aplicadas à vida possam nortear as ações
cos, mentais e sociais, am- práticas dentro da medicina.
pliando o modelo biopsi- A revista ainda traz os interessantes artigos
cossocial. “Laborterapia, dependência química e saúde
Neste número, Marcelo mental” e “Hipótese etiológica para a eritro-
Saad fomenta importan- blastose fetal na obra Evolução em dois mundos”.
te debate em torno dessa
questão, salientando a ne- Uma boa leitura!
cessidade de termos um
serviço de apoio espiritual
bem estruturado em condi-
Gilson Luís Roberto
ções de atender às deman- Presidente da AME-Brasil

Saúde & Espiritualidade é uma publicação da Associação Médico-Espírita do Brasil (AME-Brasil).


Diretoria AME-Brasil - Biênio 2021-2023:
Presidente: Gilson Luís Roberto
Vice-presidente: Kátia Maria Marabuco
1º Secretário: Fábio Nasri
2º Secretário: Ricardo José dos Santos
1ª Tesoureira: Márcia Regina Colasante Salgado
2º Tesoureiro: Paulo Rogério Dalla Colletta Aguiar
Conselho Editorial: Departamento de Comunicação AME-Brasil
Jornalista Responsável: Giovana Campos
Revisão Textual: Gaia Revisão Textual
Planejamento Gráfico: Dimitrius Gutierrez (JiMyM4rt3)
Os artigos assinados são de inteira responsabilidade de seus autores.
Associação Médico-Espírita do Brasil - Av. Pedro Severino, 323 – Jabaquara - São Paulo/SP - CEP: 04310-060 amebrasil@amebrasil.org.br
Seja um sócio correspondente
Com o objetivo de ampliar cada vez
mais o Movimento
Médico-Espírita no mundo,
a AME-Internacional está abrindo
espaço para a participação de sócios
correspondentes.
Essa é uma forma de todos
colaborarem, enviando-nos notícias,
textos e pesquisas, visando assim
estreitar o relacionamento entre nós.

Contamos com a sua participação


ativa na ampliação do Movimento
Médico-Espírita e na implantação de
novos paradigmas para a ciência.
Participe!

Cadastre-se já, acessando o site: www.amebrasil.org.br/sociocorrespondente.html


Outras informações na Associação Médico-Espírita do Brasil - Telefax: 55 11 5585-1703

LINKS PELO MUNDO


Confederação Espírita Colombiana British Union of Spiritist Societies
www.confecol.org www.buss.org.uk

Allan Kardec Studien - und Arbeitsgruppe Grupo Espírita Batuíra


ALKASTAR e.V. - Rutenweg 3 Editora Verdade e Luz
37154 - Northeim - Alemanha Email: vendas@verdadeluz.com
Tel.: 00 49 5111 914 95 02 URL: http://www.verdadeluz.com
www.alkastar.de Telefone (351) 21 412 1062
www.kongress-psychomedizin.com Telemóvel (351) 21 412 3337
www.psychomedizin.com Fax: (351) 412 3338
Morada: Rua Marcos Portugal 12A
Movimento Espírita Francofônico 1495-091 – Algés - Portugal
www.lmsf.org

ONDE ENCONTRAR LIVROS


ALEMANHA POLÔNIA SUÉCIA
Editora Lichttropfen E-mail: przemekgrzybowski@poczta.onet.pl e-mail: 4bergman@telia.com
Lichttropfen Verlag (contato em inglês, esperanto e polaco) Cidinha Bergman
Rutenweg 3
37154 - Northeim - Alemanha Editora Rivail NORUEGA
Telefone: 00 49 5551 914 95 02 www.rivail.pl - konrad.jerzak@rivail.pl e-mail: geeak@chello.no
www.lichttropfen-verlag.de (contato em polonês, esperanto, inglês, www.geocities.com/athens/oracle/8299
francês, português, espanhol)
REINO UNIDO - LONDRES LIVROS DO CEI NA EUROPA
www.roundtablepublishing-uk.com ESTÔNIA Edicei-Suisse - www.edicei.ch
www.buss.org.uk e-mail: august.kilk@mail.ee Edicei-Europa - www.edicei.eu

ITÁLIA FRANÇA EUA


e-mail: tinapt@tiscalinet.it Conseil Spirite Français www.ediceiofamerica.com
www.spiritisme.org e-mail: andreia.marshall@edicei.com
LUXEMBURGO e-mail: ca@conseil-spirite.fr
allankardeclux@yahoo.fr

R E V I S T A Saúde & Espiritualidade [3]


Sumário
07 19
Ética do médico Hipótese
etiológica para a
espírita no uso eritroblastose fetal
das radiações na obra Evolução
em dois mundos

24 29
Laborterapia, O conceito de
dependência saúde espiritual
química e saúde pede a
mental consideração de
apoio espiritual

R E V I S T A Saúde & Espiritualidade [5]


Abordagem
médico-espírita
na prática

[6] Set.| Out.| Nov.| Dez.| 2021


Ética do médico
espírita no uso das
radiações

Carmelindo Maliska1

“O verdadeiro homem do Mestre Jesus, quando respondeu ao fariseu


de bem é aquele que pratica a lei de justiça,
que era doutor da lei: “Amarás ao Senhor teu
de amor e caridade, na sua maior pureza.
Interroga a sua consciência sobre os próprios Deus de todo teu coração e ao próximo como a
atos, pergunta se não violou essa lei [...] se fez ti mesmo” (Mateus apud Kardec, 2011).
todo o bem que lhe foi possível, se não deixou
O indivíduo ético o é em qualquer ambiente e
escapar uma ocasião de ser útil, enfim, se fez
em qualquer situação. Quanto maiores o conhe-

A
aos outros tudo aquilo que queria que os outros
fizessem por ele” cimento e a área de influência abrangida pela
(Kardec, 2005, cap. XVII.3).
função que exerce, com mais esmero deve pautar
sua conduta por princípios éticos, particular-
As conceituações de ética e moral, no meio mente quando dirigente de instituição ou esta-
espírita, estão bem esplanadas em publicações belecimento que lida com materiais ou substân-
da AME-Brasil (Iandoli Jr., 2015). Resumindo, cias que possam causar dano aos humanos e aos
ética seria a teoria ou ciência do comporta- outros seres vivos.
mento moral dos homens em sociedade, em Diante desse contexto, destacamos que
que a espiritualidade serve de ferramenta e de aplicações médicas de radiações e substâncias
molde para nortear e consolidar a conduta do radioativas podem causar danos aos pacien-
espírita. A bioética pode ser definida como ética tes, aos profissionais e ao público em geral,
da vida, e para nós cristãos, sua base conceitual por isso exigem um procedimento responsá-
se relaciona diretamente com os ensinamentos vel e de acordo com os princípios da Bioética
1 Doutor em Medicina Nuclear pela UFRJ; presidente da AME-Niterói- da parte de quem as realiza. É dentro desses
-RJ; professor de Espiritualidade e Saúde na Universidade Iguaçu, princípios que desenvolveremos nosso tema.
Nova Iguaçu-RJ.

R E V I S T A Saúde & Espiritualidade [7]


Aplicações médicas que a revelou e fez a primeira fotografia obtida
das radiações pela passagem dos raios X por um segmento do
corpo humano. Esta foi uma das maiores desco-
Aspectos históricos bertas do gênio humano que mais trouxe bene-
fício à saúde do homem, que valeu a Röntgen o
prêmio Nobel de Física de 1901 (Santos, 1995).
Antes da descoberta dos raios X, o médico
Em Berlim, Emile Poincarè, eminente pes-
tinha que recorrer à laparotomia exploradora
quisador da fluorescência, inteirou-se da des-
para identificar a natureza de formações tumo-
coberta de Röntgen e, ao regressar a Paris, fez
rais localizadas no interior do corpo, percebi-
uma comunicação na Academia Francesa de
das por palpação e dor local. Os raios X permiti-
Ciências sobre os raios de Röntgen. Henry Bec-
ram a visualização do corpo por dentro, através
querel, que pesquisava o fenômeno da fluores-
de sua parede externa.
cência, tomou conhecimento da comunicação
Os raios X foram descobertos por Wilhelm
de Poincarè e, após discutir com ele se a fluo-
Conrad Röntgen, professor da Universidade
rescência também poderia impressionar cha-
de Würburg, Alemanha, enquanto estudava
a descarga elétrica em tubos de vidro em que pas fotográficas, atribuiu à “hiperfluorescên-
era feito vácuo, em presença de traços de gases cia” do Urânio o aparecimento de uma mancha
orgânicos. Grande parte desses tubos era fabri- na emulsão fotográfica, pensando tratar-se de
cada pelo cientista “Sir” William Crookes, que um efeito específico do urânio (Mould, 1998).
foi assíduo pesquisador da comunicação dos Somente mais tarde, Maria Sklodowska-
Espíritos. Röntgen pesquisava o que acontecia -Curie, em sua tese de doutorado na Sorbonne,
quando um feixe de elétrons (raios catódicos) pesquisou o fenômeno em profundidade. Iden-
era acelerado entre o polo negativo (catódio) e tificou a emissão de raios semelhantes aos raios
o polo positivo (anódio ou anticatódio), produ- de Röntgen pelo Urânio. Com a participação de
zindo luzes variadas. Esse fenômeno era estu- seu marido, Pierre Curie, quantificou e estudou
dado, na época, por muitos pesquisadores dos em profundidade a emissão das radiações pelos
fenômenos físicos (Santos, 1995). átomos de urânio e por outros átomos radioa-
Na noite de 8 de dezembro de 1895, tendo tivos, como o Rádio e o Polônio, denominação
coberto o tubo com papel preto, ao ligar os po- dada a este último em homenagem a sua ter-
los do tubo, observou que a tela pintada com ra natal, a Polônia. Maria Sklodowska-Curie foi
tinta fluorescente se iluminava. Perguntou-se quem criou o termo “radioatividade”, que de-
que raio era capaz de atravessar a parede de vi- fine o fenômeno físico. Lembrando que radio-
dro do tubo e o papelão preto, uma vez que os atividade é a propriedade que certos átomos
raios catódicos não atravessam o vidro, e a luz têm de emitir uma radiação com energia e rit-
é incapaz de atravessar o papelão preto. Colo- mo de emissão característicos de cada átomo,
cando sua mão entre o tubo e a tela, verificou transformando-se em outro elemento químico
que os raios atravessavam a “carne”, mas não (Mould, 1998; Martins, 2003).
atravessavam os ossos. Chamou ao incógnito Por esses estudos, Becquerel, Pierre e Ma-
fenômeno, que havia observado, de raios X. Em rie Curie receberam o prêmio Nobel de física de
seguida, fez uma radiografia da mão de sua es- 1903, e Marie Curie, sozinha, recebeu o Nobel
posa com uma “chapa” do fotógrafo da praça, de química de 1911. Marie Curie, porém, não sa-

[8] Set.| Out.| Nov.| Dez.| 2021


bia que os raios emitidos pelos átomos radioa- – mecanismos de transporte, ciclo energético
tivos, assim como os raios X, podem causar mal etc. Em medicina, os radiotraçadores são as fer-
à saúde. Ela e sua filha Irène Curie, que também ramentas básicas para estudar a função normal
pesquisava a radioatividade, morreram de leu- e patológica de órgãos e tecidos, sendo usados
cemia ainda relativamente jovens. pela medicina nuclear e imagem molecular em
diagnóstico e tratamento.
Aspectos gerais das radiações A radiação é definida como a propagação de
energia, sob a forma de onda eletromagnética
As radiações ionizantes, como os raios X e ou de partículas subatômicas, no espaço ou em
as radiações emitidas por elementos radioa- meio material, como o corpo humano. A radia-
tivos – radioisótopos ou radionuclídeos – são ção ionizante é a que tem energia suficiente
amplamente usadas como fontes externas no para arrancar um elétron das camadas externas
diagnóstico (radiografias e tomografia compu- ao núcleo do átomo. A ionização cria um par de
tadorizada), tratamento (radioterapia), para íons: o elétron ejetado pela radiação (sinal -) e
o “melhoramento” genético de vegetal (irra- o restante do átomo, faltando um elétron (sinal
diação de grãos e sementes), na indústria, na +). A ionização leva à perda das ligações quími-
cas do átomo, que agora é um íon (+), levando
esterilização de materiais médicos, gamagra-
à quebra de moléculas (Wilks, 1984; Valverde;
fia para verificar a integridade das estruturas
Leite; Maurmo, 2010). As principais radiações
metálicas de navio, aviões, dutos etc. e como
ionizantes usadas em medicina são os raios X,
radiotraçadores, universalmente usados nos
as radiações gama, beta e, mais recentemente,
estudos do metabolismo de novos fármacos e
as radiações alfa.
do funcionamento das células e suas organelas

R E V I S T A Saúde & Espiritualidade [9]


As radiações γ gama e X são fótons de alta Efeito biológico das radiações
energia capazes de atingir um indivíduo a vá-
rios metros de distância. Ambas têm grande
Para ocorrer efeito nocivo a um indivíduo
poder de penetração nos materiais e no corpo
exposto a uma radiação, há necessidade que ele
humano. Os raios X são produzidos em apare- seja por ela atingido e que ocorra transferência
lhos que somente produzem e emitem raios X de energia da radiação para o seu organismo.
quando são acionados. Os raios gama são emi- Chama-se efeito direto quando a radiação in-
tidos pelo núcleo dos átomos radioativos. Os terage diretamente com moléculas vitais como
raios X e gama diferem apenas em sua origem DNA, levando a danos em sua estrutura e fun-
– os raios X têm sua origem nos elétrons que ção. O efeito indireto ocorre quando a radiação
giram entorno do núcleo, e os raios gama são interage com a água do citoplasma das células,
emitidos pelo núcleo de átomos radioativos – produzindo radicais livres. Dentre os principais
têm relativamente pequeno poder de ionização radicais livres estão os produtos da radiólise
(Valverde; Leite; Maurmo, 2010). da água, o hidroxil, que, por reações com ou-
As radiações beta são partículas com carga tros radicais produz peróxido de hidrogênio – a
elétrica – elétrons – emitidas pelo núcleo de água oxigenada – e outros radicais altamente
átomos radioativos; têm pequeno alcance no reativos, levando a lesões moleculares (Travis,
ar e pequena capacidade de penetração nos te- 1979).
cidos biológicos, sendo barradas por alumínio Os efeitos citotóxicos das radiações são tan-
ao vidro. Seu poder de ionização é, geralmente, to mais deletérios quanto a molécula atingida
maior que as radiações gama e X. seja mais importante para a vida da célula e do
As radiações beta + (ou pósitron) são usadas organismo. A radiolesão do DNA pode ser sim-
em exame de medicina nuclear na tomografia ples ou dupla; esta é a mais prejudicial e pode
por emissão de pósitron (PET – Positron Emission levar a célula à morte. No entanto, logo após
Tomography).2 ocorrer a lesão do DNA, as células põem em
As radiações alfa, também de origem nucle- ação mecanismos enzimáticos de reparo. Quan-
ar, têm grande poder de ionização, porém per- do a reparação é correta, a célula volta à per-
correm pequena distância no ar e têm peque- feita função, mas se o reparo ocorre de forma
incorreta, pode levar a mutações ou à morte da
na capacidade de penetração nos tecidos, não
célula (Segreto; Segreto, 2006).
atravessando sequer a camada queratinizada
A resposta está relacionada com a capaci-
da pele (a epiderme), sendo barradas por uma
dade de a célula reparar ou não as lesões ra-
folha de papel (Valverde; Leite; Maurmo, 2010).
dioinduzidas. Desde os estudos de Bergonnié e
Tribondeau, no início do século XX, observou-
2 O pósitron (beta+ ou elétron+), após ser emitido por um átomo -se que os tecidos (células) com maior taxa de
radioativo (emissor de pósitron), ao interagir com um elétron (-) orbi-
mitose – epitélio de revestimento das criptas
tal de um átomo, de molécula do organismo, ocorre o fenômeno da
desmaterialização com a transformação da massa das duas partículas intestinais e certos tipos de câncer – e os menos
(pósitron e elétron negativo) em dois fótons de radiação gama (que é diferenciados (e com alta taxa de mitose) – te-
energia pura), cada um com energia de 0,511 MeV (megaelétron-volt)
que corresponde à massa de um elétron (SAHA, 2001). Ao contrário, cido hemocitopoiético, espermatogônias – são
o fenômeno da materialização ocorre quando um fóton de radiação mais sensíveis à radiação ionizante. Os mais di-
gama ou X, muito energético – com energia igual ou maior que 1,02
MeV, que corresponde à massa de 2 elétrons –, é freado pelo campo
ferenciados (e com taxa de mitose baixa ou au-
eletromagnético do núcleo de um átomo, transformando-se em 2 sente), como os eritrócitos, espermatozoides,
elétrons (um (-) négatron e um (+) ou pósitron.

[ 10 ] Set.| Out.| Nov.| Dez.| 2021


tecido nervoso e muscular, são mais resistentes na as decisões, em algumas ocasiões baseadas
à radiação. Numa amostra de sangue integral, em interesses materiais, por vezes até desu-
os eritroblastos são as células mais danifica- manos, que põem em risco, de dano físico ou
das, e os eritrócitos maduros praticamente não moral, populações humanas e de outros seres
são afetados pela radiação (Travis, 1979; Saha, vivos.
2001).
Durante a gestação, é ilegal a exposição de-
liberada do concepto a radiações ionizantes de Bioética na aplicação das
uso médico. Os conhecimentos atuais sobre os radiações em diagnóstico
efeitos biológicos das radiações ionizantes no
homem e, particularmente, na gestação foram O radiodiagnóstico – denominação atual da
adquiridos por estudos realizados em animais, radiologia convencional –, a tomografia com-
de diversas espécies, de análises histopatológi- putadorizada (TC), a cinecoronariografia e a
cas em gestações malsucedidas e em acidentes radiologia intervencionista são, dos exames
e catástrofes nucleares, como a que ocorreu radiológicos, os que mais expõem o paciente à
com a explosão de uma bomba atômica lançada radiação X (OPAS, 1987). É falta de ética o ra-
sobre a população, inclusive mulheres grávidas diologista e o técnico em radiologia descurar do
em vários estágios da gestação, na cidade japo- uso dos meios físicos de proteção que reduzem
nesa de Hiroshima, em 1945, na Segunda Guerra a quantidade de raios X recebida pelo paciente;
Mundial, com a justificativa dos Estados Unidos de posicionar corretamente o paciente e che-
de aplacar a capacidade ofensiva do Exército ja- car se todos os parâmetros do aparelho estão
ponês e pôr fim à guerra. corretos, para não ter que repetir o exame, de
Outra oportunidade de estudar o efeito das evitar que a radiação atinja as gônadas do pa-
radiações ionizantes no ser humano foi a ca- ciente e cientificar-se de que a paciente – mu-
tástrofe causada pelo acidente nuclear na cen- lher – não esteja grávida e que o feixe de raios X
tral nuclear de Chernobyl – na então União das esteja dentro dos limites mínimos de exposição
Repúblicas Soviéticas Socialistas (URSS) –, em do paciente à radiação.
1986, e em outros acidentes nucleares e radio- Os paradigmas da radioproteção (proteção
lógicos, como o acidente radiológico de Goiânia, radiológica), pela natureza aleatória da intera-
em 1987 (Alexiévich, 2015). Sabe-se que na fase ção das radiações com a matéria viva, têm como
embrionária, o concepto é mais radiossensível base a premissa de que não há dose absorvida de
que na fase de feto. O período em que ocorre radiação ionizante abaixo da qual não há efeito
a organogênese é crítico em relação à ocorrên- biológico. Desse fato advém a determinação de
cia de malformações, como ausência de órgãos que é ilegal e estritamente proibido submeter-se a
ou membros. A maior causa de morte pré-natal uma radiação ionizante um ser vivo – humano
por radiações ocorre na fase de implantação do ou animal – sem que essa exposição à radiação
ovo. O não conhecimento da existência da gra- traga um real benefício para o próprio ou para
videz, nessa fase da gestação, isenta de culpa a outros indivíduos – em estudos controlados
mulher e o médico pelo uso de radiações ioni- com o objetivo de reduzir exposições futuras.
zantes nesse período (Travis, 1979).
A bioética, ao propor analisar, refletir e
prescrever determinada conduta moral, conde-

R E V I S T A Saúde & Espiritualidade [ 11 ]


Esse procedimento exige rigoroso consenti- usa radiações não ionizantes são a ultrassono-
mento livre e esclarecido e cumprimento de grafia (USG) e a imagem por ressonância mag-
todos os preceitos éticos. A aplicação de radia- nética (IRM) (Medeiros; Bitelli; Bitelli, 2006).
ção ionizante fora dessas condições constitui Aqui também se aplica o princípio de fazer o
grave transgressão da bioética, estando o infra- possível mesmo não sendo o ideal, isto é, para
tor sujeito às penalidades legais (Valverde; Lei- a obtenção da informação diagnóstica, quando
te; Maurmo, 2010; Coutinho; Kury-Guimarães, não se dispõe de exame não radioativo – por ra-
2012). zões técnicas ou sociais –, realizar o exame com
As normas para aplicação segura das radia- radiação ionizante.
ções – normas de radioproteção – emanam de Outra consequência do primeiro princípio
órgãos internacionais e são aplicadas em nosso da radioproteção é que não há limite para a
meio sob a supervisão de órgãos oficiais, como quantidade de exames com radiações ionizan-
a Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN) tes a que um paciente possa ser submetido,
e a Agência Nacional de Vigilância Sanitária contanto que, em seu julgamento, o médico
(ANVISA) (OPAS, 1987; CNEN, 2013). Essas nor- considere necessária sua realização. Aqui tam-
mas seguem como paradigma três princípios bém os princípios éticos devem prevalecer so-
básicos, conforme será descrito abaixo. bre os interesses de qualquer natureza.
O primeiro princípio é a justificação, que diz Quando os responsáveis por clínicas de
que a aplicação biológica de radiações ionizan- diagnóstico por imagem perguntam ao pacien-
tes somente pode ser validada se o benefício de te na marcação de um exame que usa raios X,
seu uso for superior ao eventual risco. Na prá- como uma tomografia computadorizada (TC),
tica médica, grave transgressão da bioética é por exemplo, se ele é alérgico a iodo, induzin-
a opção deliberada de solicitar exame que usa do, sem que o paciente se aperceba, a fazer dois
raios X ou gama quando estejam disponíveis exames de TC, uma simples e outra contrasta-
exames que usam radiações não ionizantes e da, isso é considerado transgressão grave da
que forneçam a mesma informação diagnósti- bioética. Na segunda TC, o paciente é subme-
ca. Os exames disponíveis em nosso meio que tido a uma dose grande de iodo na veia, à dose

[ 12 ] Set.| Out.| Nov.| Dez.| 2021


dobrada de radiação ionizante e ao pagamento Por sua vez, o médico, ao pedir o exame,
de uma TC a mais – geralmente indenizada pelo tem responsabilidade perante os princípios da
plano de saúde –, mesmo que o médico tenha radioproteção e da bioética. Ao solicitar o exa-
pedido uma TC simples. O contraste iodado me radiológico, o médico e o dentista devem
apenas reforça a imagem da trama vascular e, indicar de forma clara a modalidade do exame,
eventualmente, uma retenção do contraste no a hipótese diagnóstica, o motivo do exame e a
espaço extravascular, nem sempre importante localização – lateralidade etc. – do órgão a ser
para a informação esperada pelo clínico. A re- radiografado, pois isso evitará repetições des-
petição do exame usando meio de contraste io- necessárias ou a realização de novo exame,
dado pode ser decidido eticamente quando for para corrigir a distração ou a falta de clareza
necessária pelo médico radiologista. É também ao solicitar um exame (Medeiros; Bitelli; Bitelli,
considerada transgressão da bioética quando 2006).
o clínico, levianamente ou por outro motivo, Orientados pelos órgãos fiscalizadores e
solicita rotineiramente o exame simples e com normalizadores do uso de radiações, os novos
contraste, mesmo que o segundo exame não aparelhos devem vir equipados com filtros, co-
acrescente real contribuição ao diagnóstico de limadores e demais itens para reduzir a expo-
seu paciente (Medeiros; Bitelli; Bitelli, 2006). sição do paciente a nível de irradiação estrita-
O segundo princípio da radioproteção é a mente necessária à obtenção de uma imagem
otimização, que se refere às ações que devem de boa qualidade. Outra maneira de reduzir a
sempre ser adotadas para manter as exposições dose é substituir o sistema fotográfico pela ra-
às radiações tão baixas quanto possível (em in- diografia digital, que, sem prejuízo da resolu-
glês “ALARA” – As Low As Reasonably Achievab- ção e da qualidade da imagem radiográfica, usa
le). É falta de ética o responsável por instalação quantidade menor de raios, reduzindo a expo-
usar radiações ionizantes em exames médicos e sição do paciente à radiação. Portanto, a per-
manter equipamentos desatualizados quanto à manência de aparelhos desatualizados em uso
proteção radiológica: não dotados dos itens re- constitui conduta não condizente com a bioé-
comendados pelos órgãos fiscalizadores – para tica (Saha, 2001; Medeiros; Bitelli; Bitelli, 2006).
reduzir a exposição desnecessária do paciente à Da mesma forma, é importante a proteção
radiação –, como filtros que eliminam radiações do técnico ou do médico que realiza o exame,
não úteis e os colimadores que limitam o campo através de aventais, com chumbo em sua com-
de irradiação no corpo do paciente; aparelhos posição, e o cuidado de ficar atrás de biombo
sem manutenção ou com manutenção precária, plúmbico, em setor (ângulo) e distância segu-
com fuga de radiação X do cabeçote, irradiando ros. Comete transgressão da bioética o respon-
desnecessariamente pacientes e trabalhadores. sável que não fornece os equipamentos de ra-
É falta contra a ética o técnico realizar exames dioproteção do profissional.
de forma descuidada, levando com frequência à O terceiro princípio básico da radioprote-
repetição do exame – determinando dose dupla ção prevê limite de dose de radiação para os
de radiação para o paciente. A repetição do exa- profissionais que trabalham com radiações,
me é a maior causa de aplicação de radiações denominados, pelas normas de radioproteção,
ionizantes desnecessárias ao paciente (Saha, indivíduos ocupacionalmente expostos, e para o
2001; Medeiros; Bitelli; Bitelli, 2006). público em geral, uma vez que sua exposição

R E V I S T A Saúde & Espiritualidade [ 13 ]


às radiações não tem como objetivo receber o te; Maurmo, 2010; Coutinho; Kury-Guimarães,
benefício do diagnóstico, ou seja, não se expõe 2012; Medeiros; Bitelli; Bitelli, 2006).
por indicação médica. Para esses profissionais Acompanhantes deverão permanecer em
é crítico o cumprimento dos limites de dose de sala de espera livre de qualquer radiação ioni-
radiação recebida em determinado período. zante. Essa sala deve, quando contígua à área
Quando excedida a dose de radiação tolerada radioativa, ter as paredes revestidas com mate-
para os indivíduos ocupacionalmente expostos rial absorvente de radiações com eficácia ade-
num determinado período, ele deverá ser afas- quada à energia das radiações usadas no ser-
tado da atividade exposta à radiação pelo tem- viço médico (Coutinho; Kury-Guimarães, 2012;
po necessário para compensar a dose recebida CNEN, 2013).
a mais. Somente pessoal treinado e autorizado A medicina nuclear, por usar pequenas do-
pode operar os equipamentos que emitem ra- ses de substâncias radioativas como traçadoras
diações ionizantes e manipular substância ra- da dinâmica das moléculas e do metabolismo
dioativas, em diagnóstico e tratamento, sempre do organismo, é um método funcional por ex-
sob a supervisão de um médico especialista – celência; daí chamar-se medicina nuclear e
em medicina nuclear ou radioterapia – ou de imagem molecular. A função do órgão é estuda-
um supervisor de radioproteção credenciado da por meio de um átomo ou substância radio-
pela CNEN. O treinamento e a reciclagem de ativa – radiotraçador ou radiofármaco –, que
indivíduos ocupacionalmente expostos devem traça o comportamento bioquímico de seu aná-
ser feitos ao menos uma vez ao ano, mesmo logo não radioativo. Por exemplo, como iodo é
sendo estagiário ou residente (Valverde; Lei- essencial na síntese dos hormônios da tireoide,

[ 14 ] Set.| Out.| Nov.| Dez.| 2021


a função dessa glândula pode ser evidenciada Tudo isso pode lavar ao aumento desnecessário
pelo acompanhamento do iodo radiativo como da exposição à radiação, tanto do paciente como
traçador. Para estudar a atividade metabólica de acompanhantes e profissionais. É responsa-
de tecidos e de neoplasias, usa-se, como radio- bilidade do médico nuclear e do enfermeiro a
traçador, a glicose (deoxiglicose) marcada com orientação para o paciente como proceder em
Flúor-18 (PET com FDG-18F) usado para avaliar relação à presença de fontes de radiação após o
o metabolismo dos tecidos e órgãos – ativida- exame de medicina nuclear, de acordo com as
de tumoral, seu grau de malignidade – e indicar características de decaimento radiativo e bio-
o tecido persistente após resseção de tumores lógico de cada radiofármaco (Cruz et al., 2006;
(Cruz et al., 2006; Perkins, 2013). Perkins, 2013).
A dose adequada de radiofármaco adminis-
trada ao paciente, geralmente por via venosa
ou oral, deve ter medida sua atividade radioa-
Bioética nas aplicações das
tiva (quantidade de radiação) antes de ser ad- radiações em terapia
ministrada. O médico, com licença da CNEN, é
o responsável técnico pelo funcionamento do Em pacientes submetidos a exames diag-
serviço, pela anamnese do paciente, análise e nósticos, o efeito das radiações deve ser o me-
pelo resultado dos exames (cintilografia, SPECT nor possível; já nas aplicações terapêuticas, o
ou PET); o radiofarmacêutico é responsável efeito biológico das radiações alfa, beta, gama
pela preparação do radiofármaco; a enfermei- e X é a ferramenta usada no tratamento de pa-
ra, com habilitação no uso de radiação em seres cientes com vários tipos de câncer. Geralmen-
humanos, se responsabiliza pela administração te, a radioterapia usa grandes doses de radiação
do radiofármaco e pelo cuidado do paciente; ionizante que variam de acordo com a morfo-
e o técnico (tecnólogo) é responsável pela ca- logia, localização, as características biológicas
libração do aparelho e realização do exame. A – histopatológicas e imunológicas – do tumor e
proteção radiológica é feita pelo serviço de ra- a presença ou não de metástases.
dioproteção chefiada por um físico, supervisor A radioterapia – telerradioterapia – usa,
de radioproteção pela CNEN (2013). como fontes de irradiação externa do paciente,
Na medicina nuclear, quem emite a ra- raios X produzidos em aparelho de raios X con-
diação é o paciente, e não o aparelho; daí ter vencional, com energia de até 100 kV; são usa-
como característica o cuidado com o paciente dos para irradiação superficial de lesões de pele
que se torna radioativo durante o período do de até 3 cm de profundidade – como queloides,
exame. Qualquer descuido durante todas as hemangiomas e carcinomas basocelulares. Esse
etapas, pelos diversos profissionais, bem como tipo de irradiação vem sendo substituído pela
a calibração rotineira do aparelho, para evi- eletroterapia, isto é, por feixe de elétrons com
tar erro ou repetição do exame, constitui uma grande energia, produzidos em aceleradores de
séria agressão à bioética. O paciente não deve partículas, para tratar lesões com profundidade
estar acompanhado de criança ou grávida; e o de até 5 cm (Scaff, 1979). Raios X com alta ener-
paciente injetado não pode sair da sala reser- gia, produzidos em aceleradores de elétrons
vada, destinada para isso, e ir para a sala de es- – cíclotrons – são amplamente usados para ir-
pera – dos acompanhantes – para bater papo radiação de tumores localizados internamen-
com familiares ou usar o banheiro comum. te. Os raios X produzidos nessas máquinas são

R E V I S T A Saúde & Espiritualidade [ 15 ]


muito energéticos – superando a energia que cumprir as normas da legislação. Como não há
corresponde à massa de 2 elétrons, isto é, 1,02 remuneração para os dias de internação, aos
milhões de elétrons-volts (MeV) (Scaff, 1979). exames – cintilografias e bioanálise – destina-
As radiações gama, que têm características dos ao planejamento seguro da dose de radia-
físicas iguais aos raios X, são emitidas em irra- ção, não há otimização da dose, e os riscos de
diadores de Cobalto-60 (“bomba de cobalto”) efeitos colaterais não são eliminados. Por di-
ou de Césio-137. A irradiação por radiações ficuldade de verificação, há a possibilidade de
gama desses irradiadores também é usada para profissionais sem escrúpulos que, para reduzir
a irradiação profunda. Os irradiadores de Co-60 custos, ministram subdoses do radiofármaco
também utilizam radiação com energia maior terapêutico, com graves consequências para o
de 1,02 MeV (Scaff, 1979). tratamento de pacientes críticos (Segreto; Se-
As altas doses de radiação podem danificar greto, 2006).
tecidos saudáveis ao redor dos tumores trata- No Brasil, os radiofármacos mais usados em
dos por radiações. Graças aos avanços tecnoló- terapias com emissores de partículas beta são: o
gicos, esse efeito indesejável é reduzido com o Iodo-131, sob a forma de NaI, para hipertireoi-
uso da TC no planejamento da dose. Para au- dismo e carcinoma de tireoide, e, na forma de
mentar ainda mais a precisão da radioterapia, metaiodobenzilguanidina, para neuroblastoma
delimitando a irradiação apenas à parte do e feocromocitoma; o Samário-153 (ligado a um
tumor em atividade, está ainda em fase inicial fosfato) para dor óssea metastática e ligado à
o uso de imagens funcionais – SPECT-TC e PE- Hidroxiapatita para artropatia hemofílica em
T-TC – fundidas à imagem anatômica, no pla- grandes articulações; o Lutécio-177 (ligado ao
nejamento da irradiação, visando aumentar o análogo da somatostatina) é usado para tratar
efeito danoso nas células malignas e afetando tumores neuroendócrinos (Velasques-Oliveira,
o mínimo possível os tecidos sãos do paciente. 2015).
O desleixo e a opção econômica na atualização A exposição de familiares próximos e outros
do equipamento, com enorme benefício para a com conhecimento e consentimento para atuar
saúde do paciente, devem ser considerados em como voluntários é considerada exposição mé-
termos da bioética. dica, e não está sujeita aos limites de dose.
Na terapia por radionuclídeos com altas do- A radioimunoterapia utiliza anticorpos
ses de radiação ionizante, o radiofármaco deve marcados com radioisótopos emissores beta.
ter intensa captação no tecido alvo e rápida ex- São exemplos de radioimunoterápicos usados
creção, sem redistribuição para outros tecidos no tratamento de Linfomas não Hodgkin o tosi-
ou cavidades. O órgão-alvo é identificado atra- tumomab (Bexxar), marcado com Iodo (I-131),
vés de imagens cintilográficas, e são quantifica- e o Ibritumomab tiuxetan (Zevalin), marcado
das as fases de captação, retenção e eliminação com Ítrio (Y-90) (Velasques-Oliveira, 2015).
do radiofármaco em função do tempo (Velas- Terapias de câncer da tireoide, com radioio-
ques-Oliveira, 2015). do, representam um risco potencial para fetos e
Doses altas de Iodo-131 para tratar câncer crianças. Deve ser dispensado cuidado especial
de tireoide e outros exigem internação em local para evitar a aproximação de mulheres grávi-
isolado e seguro – quarto terapêutico. Na prá- das, bebês em amamentação e crianças, bem
tica, os pacientes são internados apenas para como o contato com saliva e outros produtos

[ 16 ] Set.| Out.| Nov.| Dez.| 2021


excretados pelo paciente que recebeu dose de Há falta de ética no planejamento e na exe-
Iodo-131 para tratamento do câncer e suas me- cução da atividade quando os responsáveis pela
tástases (Velasques-Oliveira, 2015). instalação radioativa obstaculizam a tomada de
Os radioisótopos emissores alfa, por sua medidas para otimizar a dose de radiação rece-
mínima penetração e elevado poder de ioniza- bida pelo paciente, evitando efeitos colaterais
ção – efeito deletério diretamente nas células para ele e a proteção radiológica dos trabalha-
tumorais –, são ideais para a terapia, sendo que dores e familiares.
diversos deles já são usados conjugados a anti- Em geral, os rejeitos radioativos, eliminados
corpos. Bem recentemente foi lançado o Rádio com as excretas dos pacientes, após diluídos o
(Ra-223), um emissor alfa puro, sob a forma de máximo possível – descargas repetidas da água
cloreto. O Ra é um elemento químico da famí- dos vasos sanitários –, entram na rede de esgo-
lia do Cálcio e do Estrôncio, que participa do to comum, onde sofrerão diluições ainda maio-
metabolismo ósseo. Trata-se de radiofármaco res, até atingir índices de radiação menores que
usado no tratamento da dor óssea em pacientes os exigidos pelos órgãos normalizadores nacio-
com metástases ósseas de câncer de próstata – nais e internacionais. A responsabilidade pelo
inicialmente câncer resistente à castração – e controle da diluição dos rejeitos radioativos do
que deverá, em breve, estar sendo empregado paciente é do médico especialista responsável
no alívio da dor óssea em metástases óssea de (Medeiros; Bitelli; Bitelli, 2006).
outros tumores, como o câncer de mama. Por Em todas as situações em que indivíduos
sua penetração micrométrica, esse radiofárma- estejam expostos a radiações ionizantes, a con-
co exige poucos cuidados quanto à blindagem e duta segundo os princípios da Bioética, além da
grande cuidado quanto à contaminação. observância das normas de proteção radiológi-
Depois da alta hospitalar, de tratamento ca, deve nortear as ações de todos os envolvidos
com Iodo-131, Samário-153 e outros emissores no uso de radiações, principalmente com fins
beta e gama, a proteção radiológica volta-se médicos, de acordo com os princípios da Bioéti-
para os familiares, principalmente crianças, ca, que em última instância é a conduta do ho-
visitantes eventuais na casa do paciente, vizi- mem de bem, conforme nos ensina O Evangelho
nhos, colegas de trabalho, transporte público, segundo o Espiritismo, de Allan Kardec.
sujeitos aos limites de dose para indivíduos do
público (Velasques-Oliveira, 2015).
Referências

R E V I S T A Saúde & Espiritualidade [ 17 ]


ALEXIÉVICH, S. Voces de Chernóbil – crónica del PERKINS, A. C. Ethical, green and sustainable nuclear
futuro. 2. ed. Buenos Aires: Penguin, 2016. medicine. European Journal of Nuclear Medicine
and Molecular Imaging, n. 40, p. 979-981, 2013. Doi:
COMISSÃO NACIONAL DE ENERGIA NUCLEAR https://doi.org/10.1007/s00259-013-2420-0.
(CNEN). Requisitos de segurança e proteção
radiológica para serviços de medicina nuclear. Rio de SAHA, G. B. Physics and Radiobiology of Nuclear
Janeiro: CNEN, 2013. Disponível em: http://appasp. Medicine. 2. ed. New York: Springer-Verlag, 2001.
cnen.gov.br/seguranca/normas/pdf/Nrm305.pdf.
Acesso em: 20 set. 2021. SANTOS, C. A. Raios X: descoberta casual ou criterioso
experimento. Ciência Hoje, v. 19, n. 114, p. 26-35, 1995.
COUTINHO, A. M. N.; KURY-GUIMARÃES, A. I. C.
Proteção radiológica e dosimetria. In: HIRONAKA, F. SCAFF, L. A. M. Bases físicas da radiologia:
H. et al. Medicina nuclear: princípios e aplicações. São radiodiagnóstico e radioterapia. São Paulo: Sarvier,
Paulo: Atheneu, 2012. 1979.

CRUZ, M. G. A.; REBELO, A. M. O.; GUTFILEN, SEGRETO, H. R. C.; SEGRETO, R. A. efeito biológico
B.; MALISKA, C.; FARIAS, C. S. O. et al. Manual de das radiações ionizantes. In: BITELLI, T. Física e
medicina nuclear. Rio de Janeiro: UFRJ-CCS, 2006. dosimetria das radiações. 2. ed. São Paulo: Atheneu;
São Camilo, 2006. p. 229-255.
IANDOLI JR., D. Ética e moral. Saúde &
Espiritualidade n. 16, abr.-jun. 2015. TRAVIS, E. L. Radiobiologia médica. Madrid: Editorial
AC, 1979.
KARDEC, A. O Evangelho segundo o Espiritismo.
Tradução de Guillon Ribeiro. 130. ed. Rio de Janeiro: VALVERDE, N.; LEITE, T.; MAURMO, A. Manual de
FEB, 2011. ações médicas em emergências radiológicas. Rio de
Janeiro: Eletronuclear, 2010.
______. O Evangelho segundo o Espiritismo.
Tradução de J. Herculano Pires. 60. ed. São Paulo: VELASQUES-OLIVEIRA, S. Terapias com
LAKE, 2005. radionuclídeos. In: CONGRESSO DE FÍSICA MÉDICA
DO IFGW DA UNICAMP, 4, Campinas-SP, 2012. Anais
MARTINS, R. A. As primeiras investigações de Marie [...], Campinas, SP, 2015.
Curie sobre elementos radioativos. Revista da SBHC,
v. 1, p. 29-41, 2003. Disponível em: https://www.sbhc. WILKS, R. Principles of Radiological Physics.
org.br/arquivo/download?ID_ARQUIVO=169. Acesso Edinburgh: Churchill Livingstone, 1984.
em: 20 set. 2021.

MEDEIROS, R. B.; BITELLI, R. U. B.; BITELLI,


T. Proteção radiológica. In: BITELLI, T. Física e
dosimetria das radiações. 2. ed. São Paulo: Atheneu;
São Camilo, 2006. p. 369-401.

MOULD, R. F. The discovery of radium in 1898 by


Maria Sklodowska-Curie (1867-1934) and Pierre Curie
(1967-1906) with commentary on their life and time.
The British Jounal of Radiology, v. 71, p. 1229-1254,
1998.

ORGANIZACIÓN PANAMERICANA DE LA SALUD


(OPAS). Protección del Paciente en Radiodiagnóstico.
Informe de la Comisión Internacional de Protección
Radiológica, 1987. (Cuaderno Técnico n. 3.)

[ 18 ] Maio| Jun.| Jul.| Ago.| 2021


Hipótese
etiológica
para a
eritroblastose
fetal na obra
Evolução em
dois mundos

N
Décio Iandoli Jr.1
Maria Luiza Brasileiro2

No livro No mundo maior, de André Luiz e É importante mencionar, ao abordarmos


Chico Xavier, encontramos no capítulo X a ten- esse tópico, que a maioria das mulheres subme-
tativa dos nossos amigos espirituais em ajudar tidas ao aborto provocado padece tanto quanto
uma jovem que mantém fixa a ideia de provocar o Espírito reencarnante. Concretizam tal ato
aborto, pois não tolera a possibilidade de ficar devido à ignorância em relação às leis espiritu-
malvista pela sociedade e pelo próprio pai, que ais, por serem vítimas da sociedade, da família,
poderia expulsá-la de casa. Inconscientemente, também ignorantes, ou até mesmo de compa-
ela odeia o Espírito reencarnante, que a preju- nheiros inconsequentes. Portanto, devem ser
dicou gravemente em existência anterior. As acolhidas com muito amor, principalmente nas
medidas utilizadas por Calderaro e André Luiz casas espíritas.
não surtem efeito, nem mesmo o diálogo com
Se algum dos nossos leitores tiver cometido
a genitora desencarnada faz a jovem protago-
esse lamentável engano no passado, não deve
nista desse capítulo desistir do ato que acaba
entregar-se à culpa, nem deixar o coração entre-
ceifando a oportunidade do reencarnante e da
gue a sentimentos de autopunição, pois trata-
própria jovem de superarem as dificuldades do
-se de atitude inútil e improdutiva. A finalidade
passado.
deste artigo é discutir uma possível relação entre
1 Médico ligado ao movimento médico-espírita há mais de 25 anos.
a eritroblastose fetal3 e algumas situações de
Especialista em Cirurgia Geral, Cirurgia do Aparelho Digestivo e
Endoscopia, com doutorado em Medicina pela UNIFESP, tem sua 3 Destruição das hemácias (células encontradas no sangue, também
produção acadêmica voltada para a medicina e espiritualidade. É o chamada de eritrócitos) fetais pelos anticorpos maternos, decorrente
atual presidente da AME-MS e vice-presidente da AME-Internacional. de incompatibilidade sanguínea materno-fetal, em que os anticorpos
2 Tecnóloga em gestão em saúde. Acadêmica do último semestre do maternos ultrapassam barreira placentária agindo contra as células
curso de Enfermagem da UNIFASB Oeste da Bahia. Trabalhadora do sanguíneas fetais como um corpo estranho, causando diversas mani-
Grupo Espírita Joanna de Ângelis, em Barreiras, Bahia. festações clínicas.

R E V I S T A Saúde & Espiritualidade [ 19 ]


aborto provocado, ampliando nossa percepção placentária e agem contra antígenos eritrocitá-
da realidade das consequências a serem supera- rios fetais, ocorrendo uma reação antígeno-an-
das diante de situação semelhante. ticorpo, promovendo hemólise4 eritrocitária,
Entender o engano que é o aborto e suas con- determinando diversas manifestações clínicas
sequências é importante para que todos evitem da doença, como anemia fetal, hipóxia e hidro-
tal erro. Para os que já o cometeram, fica o con- pisia fetal (Montenegro; Rezende, 2010). Quan-
vite para perdoar-se e erguer-se, recordando do não identificada e tratada, leva ao aborta-
a lição do mestre Jesus: “Que atire a primeira mento espontâneo frequentemente a partir da
pedra aquele que estiver livre de pecados”. Cheio segunda gestação.
de misericórdia, o Mestre convida-nos à prática A eritroblastose fetal foi mencionada pela
primeira vez em 1932, na primeira metade do
do bem, trazida a nós pelas palavras do apóstolo
século XX, descrita como anasarca5 do concep-
Pedro: “Cultivemos ardente caridade uns para
to ou hidropisia fetal, que era o sinal mais evi-
com os outros, porque a caridade cobre uma
dente do quadro, associado à presença de ane-
multidão de pecados”.
mia e hepatoesplenomegalia.6
No livro Evolução em dois mundos, no
Em 1940, as experiências de Landstainer e
capítulo XIV da segunda parte, André
Wiener com o macaco Rhesus demonstraram um
Luiz apresenta-nos a seguinte proposição: paralelo entre a produção de anticorpos contra
o antígeno de superfície das hemácias do ani-
Temos ainda a considerar que a
mulher sintonizada com os deveres mal e os eritrócitos humanos, caracterizando
da maternidade na primeira ou, às as tipagens sanguíneas Rh positivo e negativo,
vezes, até na segunda gestação, quando correlacionando tal descoberta mais tarde, en-
descamba para o aborto criminoso, na
geração dos filhos posteriores, inocula
tre a produção materna de anticorpos relacio-
automaticamente no centro genésico e nados ao sistema Rh e a DHPN,7 avaliando-se o
no centro esplênico do corpo espiritual as sangue de 12 gestantes Rh negativo com o mal
causas sutis de desequilíbrio recôndito, a obstétrico, cujos parceiros eram Rh positivo.
se lhe evidenciarem na existência próxima
pela vasta acumulação do antígeno que lhe Entretanto, no Brasil, a publicação pioneira foi
imporá as divergências sanguíneas com de Rezende em 1944 com o tema “Eritroblasto-
que asfixia, gradativamente, por meio da se fetal: um problema obstétrico”, por ocasião
hemólise, o rebento de amor que alberga
carinhosamente no próprio seio, a partir
do seu concurso à cátedra de clínica obstétrica
da segunda ou terceira gestação, porque da escola de medicina e cirurgia do Rio de Ja-
as enfermidades do corpo humano, como neiro (ANM, 2021).
reflexos das depressões profundas da alma, Somente em 1954 ficou comprovado que
ocorrem dentro de justos períodos etários.
mulheres Rh negativo, a partir da segunda ges-
tação de conceptos Rh positivo, tinham abor-
A doença hemolítica perinatal ou eritroblas- tamento espontâneo causado por anticorpos
tose fetal caracteriza-se por afecção generali- maternos, com a primeira gestação, habitual-
zada, acompanhada de anemia, destruição das mente, poupada.
hemácias e presença de suas formas jovens ou
4 Ruptura da membrana das hemácias podendo causar sérios proble-
imaturas (eritroblastos) na circulação periféri- mas de saúde, como anemia grave.
ca do feto, decorrente originariamente de in- 5 Acúmulo de líquido anormal no feto gerando edema decorrente,
nesse caso, do rompimento das células sanguíneas e da anemia
compatibilidade sanguínea materno-fetal, em severa.
que anticorpos maternos atravessam a barreira 6 Aumento anormal do fígado e do baço.
7 Doença hemolítica perinatal.

[ 20 ] Set.| Out.| Nov.| Dez.| 2021


A convergência entre o texto de Chico Xa- A doença é, segundo Zugaib (2020), uma
vier, que psicografou tal capítulo em Pedro Le- das poucas condições em medicina em que se
opoldo em 1958, e a descrição dessa enfermi- conseguiu esclarecer todas as etapas evoluti-
dade, que só foi melhor caracterizada em 1963 vas, desde sua fisiopatologia até o tratamento
com a introdução de uma terapêutica eficaz, e prevenção. Hoje, sabemos que o organismo
nos leva a concluir que ambos se referem a da mãe tende a criar uma memória imunoló-
mesma doença. gica ou sensibilização na primeira gestação e
Em estudo mais recente, Bowman, Pollock que, em uma nova exposição ao antígeno na
e Penston (1986) evidenciam que 75% das ges- segunda gestação, este ultrapassará a barreira
tantes apresentam hemorragia feto-materna placentária quando em contato com sangue do
no decorrer da gestação (fator de grande pos- concepto, aderindo à membrana dos eritrócitos
sibilidade para a sensibilização em casos de in- fetais e provocando hemólise. Ainda por razões
compatibilidade sanguínea entre o binômio), desconhecidas, sabemos que quanto maior o in-
aumentando com a evolução da gestação com tervalo entre a sensibilização na primeira ges-
porcentagens que evoluem de 3%, no primei- tação para a segunda gestação, maior probabili-
ro trimestre, para 12%, no segundo, e 45%, no dade de ocorrência e gravidade da doença.
terceiro trimestre. Esse estudo ainda nos reve-
la que pacientes que abortam também correm
risco de sensibilização ao fator Rh, sendo ain-
da maior nos casos de abortamento induzido
(4,5%) do que nos abortamentos espontâneos
(2%).

R E V I S T A Saúde & Espiritualidade [ 21 ]


André Luiz menciona o centro esplênico do
corpo espiritual, especificamente quando irá
tratar da descrição do processo fisiopatológi-
co, sendo esse o centro de força relacionado ao
sistema hemático, com correlação direta com o
baço, órgão onde ocorre a hemólise com maior
intensidade. André Luiz utiliza-se do termo
“vasta acumulação do antígeno”, dando a ideia,
já comprovada pela medicina, de que o tempo
da presença do antígeno no organismo mater-
no pode agravar a resposta imunológica e a ma-
nifestação da doença.
Ainda na mesma obra, no capítulo XVII,
em que André Luiz trata da desencarnação em
formas diversas, revela-nos que criaturas res-
ponsáveis (no sentido consciencial) arruínam
ou aniquilam o próprio corpo, impondo-lhe
morte prematura com plena desaprovação da
consciência, determinando processos degene-
rativos e desajustes, remetendo-se a doenças
secundárias como o fenômeno da incompatibi-
lidade materno-fetal, o qual a etiologia reside
na estrutura complexa da própria alma. Alega-
-nos ainda o benfeitor que homens e mulheres
que corromperam os próprios centros genési-
cos pela delinquência emotiva ou pelos crimes
reiterados do aborto provocado, em pretéritos
próximos, recuperam-se regenerando a si mes-
mo por amoroso devotamento, lutando e cho-
rando no amparo aos filhinhos condenados à
morte ou atormentados desde o berço.
Qual seria, então, uma das formas mais sim-
ples e eficazes de profilaxia da eritroblastose
fetal? Evitarmos o abortamento provocado,
agravante mais agudo e grave da doença, so-
mando ainda mais um dos inúmeros motivos
que temos para abolir tal prática da nossa socie-
dade. E qual seria o tratamento possível, além
das medicações que procuram dessensibilizar a
mãe? A terapêutica proposta pelo ensinamen-
to espírita, a fim de corrigir os consequentes

[ 22 ] Set.| Out.| Nov.| Dez.| 2021


Referências

ACADEMIA NACIONAL DE MEDICINA (ANM). Jorge


Fonte de Rezende. [2021?]. Disponível em: https://
www.anm.org.br/jorge-fonte-de-rezende/. Acesso em:
4 out. 2021.

BOWMAN, J. M.; POLLOCK, J.


M.; PENSTON, L. E. Feto maternal
transplacental Hemorrhage during pregnancy and after
delivery. Vox Sang, v. 51, n. 2, p. 117-121, 1986. Doi:
10.1111/j.1423-0410.1986.tb00226.x

CAMPOS, M. V. X. Correlação de títulos de anticorpos


anti-D e desfecho gestacional adverso em gestantes
com antecedente de doença hemolítica perinatal. 2015.
Dissertação (Mestrado em Ciências) – Universidade de
São Paulo, São Paulo, 2015.
distúrbios genésicos na mulher que abortou,
com preces, fluidoterapia (passes e água flui- EMMANUEL (Espírito). Amor. In: EMMANUEL
(Espírito). Pensamento e vida. Psicografado por
dificada), trabalho no bem e, principalmente, o
Francisco Cândido Xavier. 7. ed. Brasília: FEB, 1983. p.
autoperdão na compreensão de que o erro se 136-139.
deu por ignorância dos elementos envolvidos
no processo, e não pela intenção de prejudicar LANDSTAINER, K.; WIENER, A. S. An Agglutinable
Factor in Human Blood Recognized by Immune
ou lesar ninguém. Ao abandonar a culpa, repara
Sera for Rhesus Blood. Experimental Biology and
assim a responsabilidade
Albuquerque, pelos
C. F. M.¹, Silva, seus
C. A. A.² atos, ten- Medicine, v. 43, n. 1, p. 223, 1940. Doi: https://doi.
do como melhor plano terapêutico aquele que org/10.3181/00379727-43-11151.
contempla todas as dimensões do ser: física,
LUIZ, A. (Espírito). Aborto criminoso. In: LUIZ, A.
mental e espiritual.
(Espírito). Evolução em dois mundos. Psicografado
Nesta como em muitas outras situações de por Francisco Cândido Xavier e Waldo Vieira. 21. ed.
dor onde nossos atos do passado vêm nos ensi- Brasília: FEB, 2003a. p. 193-197.
nar a verdade, o que realmente fará a diferença
______. Desencarnação. In: LUIZ, A. (Espírito).
é o amor regado pelo acolhimento do outro e
Evolução em dois mundos. Psicografado por Francisco
de nós mesmos, assim como nos exemplificou Cândido Xavier e Waldo Vieira. 21. ed. Brasília: FEB,
o Mestre Jesus em todas as oportunidades que 2003b. p. 205-208.
teve. O mesmo amor também é citado pelo ben-
______. Dolorosa perda. In: LUIZ, A. (Espírito). No
feitor Emmanuel, que o conceitua como sendo
mundo maior. Psicografado por Francisco Cândido
o reflexo de Deus enraizado em nós no impulso Xavier. 15. ed. Brasília: FEB, 1988. p. 140-153.
de solidariedade entre os homens. Se é o amor
um reflexo de Deus, só pode compadecer-se de MONTENEGRO, C. A. B.; REZENDE, J. Doenças
próprias da gravidez. In: MONTENEGRO, C. A. B.;
todos, e não violentar ninguém. Segundo ele,
REZENDE, J. Obstetrícia. 11. ed. Rio de Janeiro:
para que a vida e o pensamento de todos nós Guanabara Koogan, 2010. p. 491-507.
retratem suas pegadas de luz, o Mestre divino
deixou-nos sua fórmula inesquecível: “amai- ZUGAIB, M. Doença hemolítica perinatal. In: ZUGAIB,
M. Obstetrícia. 4. ed. Barueri, SP: Manole, 2020. p.
-vos uns aos outros como eu vos amei”.
802-816.

R E V I S T A Saúde & Espiritualidade [ 23 ]


Laborterapia,
dependência química e
saúde mental

D
Valterdes F. P. Soares1,2
chadas ou em locais específicos em situações de
De acordo com o dicionário: laborterapia
dependência química, sistema prisional e asi-
é o tratamento de enfermidades nervosas e
los, entre outros, para diminuir a ociosidade. O
mentais, pelo trabalho. Mesmo que terapêutica
objetivo é que a pessoa se realize e se gratifique
ocupacional. Podemos conceituar ainda como o
através do trabalho intelectual e físico (artísti-
tratamento de doenças psicoemocionais atra-
co ou manual). Esse trabalho não é remunera-
vés do trabalho, terapia ocupacional. Dentro da
do, o que traz bastante discussões sobre a for-
Psicologia, podemos utilizar técnicas artísticas,
ma como é realizado em algumas instituições. O
como arteterapia, como ferramenta e proces-
propósito dessa terapia está relacionado à ideia
so terapêutico. O movimento, como a dança e
de que o trabalho é um fator de saúde mental.
o teatro, pode ser uma ferramenta potente na
Emitiremos aqui uma visão pessoal de uma
melhora de quadros ansiosos, depressivos, en-
nova forma de ver a laborterapia e suas conse-
tre outros.
quências, apoiada em vários estudos científicos
A clínica ampliada como proposta psico-
e na visão espírita.
terapêutica enxerta a arte, o movimento e as
Segundo autores contemporâneos, os com-
dinâmicas como instrumentos de tratamento.
portamentos pró-sociais espontâneos são um
Geralmente, é desenvolvida em instituições fe-
critério de saúde mental e ilustram uma adapta-
1 Mestre em Saúde Pública na área de Dependência Química e Espiri-
tualidade; médico especialista em Psiquiatria; membro da Associação ção social profícua que valoriza o outro (Harris,
Médico-Espírita do Piauí (AME-PI). 2003, p. 527). O cientista Stephen Post (2005) é
2 Texto elaborado a partir de trechos de minha dissertação de mes-
trado em Saúde Pública (Soares, 2019).
um dos autores que apontam ser significativa a

[ 24 ] Set.| Out.| Nov.| Dez.| 2021


convergência de evidências, advindas de várias Jorge Moll, neurocientista brasileiro, e seus
ciências, em apoio à hipótese de que emoções, colaboradores (2006), que pesquisam a neuro-
atitudes e ações que valoram a interação posi- logia e sua associação a ações altruístas vividas
tivada junto ao outro operam de forma eficiente pelos sujeitos, mostram seu efeito na região
na saúde e até na longevidade do sujeito dessa mesolímbica.3 A ressonância magnética funcio-
inter-relação. O autor chegou a essa conclusão nal (fMRI), feita em seus estudos, revelou que
após realização de um estudo de avaliação de fazer uma doação altruísta ativou a via meso-
dados de pesquisas existentes sobre altruísmo. límbica, o centro de recompensa do cérebro4,
A prova de que “fazer aos outros” faz bem que é responsável pela euforia mediada pela
ao doador (Post, 2006) dignifica e coloca o su- dopamina. Em resumo, suas pesquisas mostram
jeito em novo lugar pessoal e social, e entender que quando as pessoas fazem ações com bondade
isso em saúde coletiva parece ser importante para outras – o que nomeia como altruísmo –,
para lidarmos com o adoecer como experiên- ativa-se aquela parte do cérebro que nos permite ex-
cia humana. A experiência de ajudar os outros perimentar prazer, o que nos fornece um ponto-
fornece significado, senso de valor próprio e -chave para o que é certamente um fenômeno
sentido para a existência, além de um papel so- humano complexo.
cial que faz o sujeito se implicar em produzir Há muito tempo, os benefícios terapêuti-
sua saúde pessoal e coletiva e viver mais, con- cos de ajudar os outros já foram aceitos pelas
sequentemente, em nível reflexivo e prático, a pessoas comuns e pelos estudiosos das diversas
autoria de suas escolhas. culturas humanas. Esse conceito foi formaliza-
O Dr. Albert Schweitzer (apud Goldim, 2007), do inicialmente por Riessman (1965), em um ar-
um dos precursores da Bioética, explanava que tigo altamente citado e várias vezes reimpres-
os que dentre nós, seres humanos, poderão ser so, que apareceu no Serviço Social (Post, 2006).
realmente felizes são aqueles que procuraram Riessman conceituou o princípio da “helper the-
e descobriram como servir (Post, 2006). Os pes- rapy” (terapia de ajuda, tradução nossa) emba-
quisadores da felicidade, colocando essa discus- sado em suas observações de vários grupos de
são em novos patamares, hoje concordariam autoajuda, onde ajudar os outros é considerado
com tal afirmação (Seligman, 2002 apud Post, primordial para ajudar a si mesmo. Riessman
2006). Poderíamos dizer que situar-se nessa observou que o ato de ajudar o Outro pode curar
região é estar implicado na produção de nosso o ajudante mais do que a pessoa que foi ajudada
mundo interior e em sua manifestação fenomê- (Post, 2006).
nica, atuando de maneira a não deixar a razão Nos primórdios dos anos 1970, algumas re-
emancipadora ser obscurecida em nossos atos e vistas científicas de psiquiatria repararam no
relacionamentos. princípio da “helper therapy”, pois pesquisado-
Myers e Diener (1995, p. 19, tradução nossa), res de destaque mostraram em seus estudos que
no que lhes dizem respeito, afirmam: “Fazer o
3 Refere-se ao sistema límbico, que compreende uma série de estrutu-
bem nos faz sentir bem. O altruísmo aumenta ras relacionadas, principalmente, com a regulação do comportamento
nossa autoestima. Ele tira nossos olhos de nós emocional (Machado; Haertel, 2006).
4 Centro de recompensa do cérebro, ou circuito de recompensa cere-
mesmos, deixa-nos menos preocupados com a bral, está envolvido na sensação de prazer e nas propriedades refor-
própria pessoa, aproxima-nos da autoconsciên- çadoras de comportamentos fundamentais para a preservação da
espécie, tais como sexo e alimentação. Este circuito é composto pelas
cia que caracteriza o estado de fluxo”. seguintes áreas cerebrais: área tegmentar ventral, núcleo accumbens
e córtex pré-frontal (Paraventi; Chaves, 2016).

R E V I S T A Saúde & Espiritualidade [ 25 ]


ajudar os outros era benéfico em uma varieda- • ajudantes (voluntários em atuação jun-
de de contextos, inclusive entre adolescentes to ao outro) relatam uma sensação física
fazendo aulas para crianças (Rogeness; Badner,
distinta associada à ajuda;
1973). Assim, o “cuidar do outro” oportuniza ao
• cerca de metade dos sujeitos dessas pes-
sujeito deslocar seu olhar acostumado a reagir
sem maior reflexão e modificar a percepção de quisas relataram que experimentaram
seu autovalor. Sustentar-se na abstinência ne- um sentimento “alto” ou gratificante;
cessita do trabalho para formação de vínculos • 43% se sentiram mais fortalecidos e mais
e “voltar-se para perceber o outro”, vivenciando enérgicos;
outras dimensões da vida.
• 28% se sentiram aquecidos afetivamente;
Ora, estudos vêm de longe e já anuncia-
vam um olhar atento ao trabalho voluntário e • 22% mais calmos e menos deprimidos;
o altruísmo que ele gera. Por exemplo, Allen • 21% experimentaram mais sentimentos
Luks (1988), em uma pesquisa com milhares de autovalor;
de voluntários nos Estados Unidos, descobriu • 13% experimentaram menos dores e so-
que as pessoas que ajudavam outras pessoas
frimentos.
consistentemente relataram melhor saúde do
A essa substituição de estados emocionais
que seus pares na mesma faixa etária, e muitos
menos favoráveis para estados de emoções
afirmaram que essa melhora na saúde começou
mais edificantes e prazerosas, Luks (1988) cha-
quando eles começaram a se voluntariar.
mou de “the helper’s high”.
Nesses estudos em que os sujeitos vivencia-
Estudos dessa natureza sempre menciona-
vam trabalhos voluntários, observava-se fre-
ram o valor e reconhecimento do grupo de au-
quentemente que:
toajuda Alcoólicos Anônimos, o que não deixa

[ 26 ] Maio| Jun.| Jul.| Ago.| 2021


de ser um trabalho voluntário. Pesquisadores Dessa forma, ajudar aos outros induz a emo-
da Brown University Medical School (Pagano ções positivadas, associadas a compaixão e cui-
et al., 2004) concluíram que entre os indivíduos dado e deslocam padrões de pensamento e sen-
estudados, aqueles que estavam ajudando ou- timento antigos (Ângelis, 2009), como rumina-
tros alcoolistas eram significativamente menos ção de ressentimento, medo, rancor e mágoa.
propensos a recair no ano seguinte ao trata- Atividades altruístas estão associadas, ainda, a
mento. Os voluntários tiveram uma pontuação um melhor cuidado de si, o que faz reverberar
bem maior em satisfação com a vida e vontade o cuidado do outro em novos padrões de ser e
de viver e apresentaram menos sintomas de de- estar convivendo socialmente. Desse modo, o
pressão, ansiedade e somatização. engajar-se no cuidado e na atenção vividos na
Para não deixar de mencionar, pesquisas so- forma de voluntariado é uma forma de experiên-
bre voluntariado e depressão realizadas entre cia de estabelecimento de vínculo e de cuidado com
1986 e 1994, com 3.617 adultos com 25 anos ou o outro, chave em auxiliar a viabilização do pro-
mais avaliaram a depressão por meio de uma pósito de pequenas metas. Nesse caminho, os
escala de autorrelato. O que os autores cha- atos cotidianos sistemáticos de cuidado com o
maram de “voluntariado consistente” foi rela- outro vão se tornando, mediante também o au-
cionado à sistemática ação junto ao outro, com toconhecimento que a espiritualidade produz,
efeito na redução da depressão em todas as fai- potentes forças para uma transformação capaz
xas etárias e, particularmente, naqueles com 65 de dar sentido à vida.
anos ou mais (Musick; Wilson, 2003). Para a manutenção da abstinência é preciso,
Post (2006) conclui em seus estudos que porém, superar os hábitos e impulsos repetiti-
estados psicológicos e saúde mental aperfeiço- vos, que trazem padrões muito arraigados no
ados parecem emergir do altruísmo. Mecanis- sujeito, padrões anteriores que se relacionam
mos podem incluir redução de comportamen- ao consumo. Assim, a espiritualidade vem a ser
tos de saúde desadaptativos e autoabsorção, o passo mais seguro e potente por remeter o su-
maior senso de significado ou propósito, maior jeito a atuar e se relacionar com outras pessoas,
competência social e consequente apoio social. formando vínculos e exercendo o altruísmo, re-
Os sistemas imunológico e nervoso se co- tirando disso o prazer num nível mais sublime
municam entre si, estabelecendo uma relação de sentimento.
clara e direta entre emoções e doenças, segun- Espera-se, dessa maneira, brotar posterior-
do Sternberg (2001). O valor da experiência de mente uma espiritualidade que se anuncia na
ajuda parece ser causativo, por exemplo, em relação com a transcendência e que parece ser
um estudo de dados da “pesquisa de vidas em atravessada pelo cuidado, pela afetuosidade e
mudança dos americanos”, pois se descobriu pelo amor ao Outro. Nesse campo, gravita o lu-
que aqueles que se voluntariaram, em 1986, gar de Deus e de uma espiritualidade amorosa,
relataram em 1989 que tinham níveis mais al- capaz de iniciar e manter um estado superior
tos de felicidade, satisfação pessoal, autoesti- de consciência, fomentador da desejada absti-
ma, saúde física, além de taxas mais baixas de nência.
depressão do que os não voluntários (Thoits;
Hewitt, 2001).

R E V I S T A Saúde & Espiritualidade [ 27 ]


Referências PAGANO, M. E. et al. Helping other alcoholics in
alcoholics anonymous and drinking outcomes: findings
ÂNGELIS, J. (Espírito). Encontro com a paz e a saúde. from project MATCH. Journal of Studies on Alcohol, v.
Salvador: Leal, 2009. 65, n. 6, p. 766-773, 2004.

GOLDIM, J. R. Albert Schweitzer. 2007. Disponível PARAVENTI, F.; CHAVES, A. (coords.). Manual de
em: https://www.ufrgs.br/bioetica/schweitz.htm. psiquiatria clínica. São Paulo: Roca, 2016.
Acesso em: 20 set. 2021.
POST, S. G. It’s Good to be Good? How? Benevolent
HARRIS, J. C. Social neuroscience, empathy, brain Emotions and Actions Contribute to Health. 2006.
integration, and neurodevelopmental disorders.
Physiology & Behavior, v. 79, n. 3, p. 525-531, 2003. ______. Altruism, happiness, and health: It’s good
to be good. International Journal of Behavioral
LUKS, A. Helper’s high: volunteering makes people feel Medicine, v. 12, n. 2, p. 66-77, 2005.
good, physically and emotionally. Psychology Today, v.
22, n. 10, p. 34-42, 1988. RIESSMAN, F. The “Helper” Therapy Principle. Social
Work, v. 10, n. 2, p. 27-32, 1965. Doi: http://dx.doi.
MACHADO, A. B. M.; HAERTEL, L. M. org/10.1093/sw/10.2.27.
Neuroanatomia funcional. 3. ed. São Paulo: Atheneu,
2006. ROGENESS, G. A.; BEDNAR, R. A. Teenage Helper: A
Role in Community Mental Health. American Journal
MOLL, J. et al. Human fronto-mesolimbic networks of Psychiatry, v. 130, n. 8, p. 933-936, 1973. http://
guide decisions about charitable donation. Proceedings dx.doi.org/10.1176/ajp.130.8.933.
of The National Academy of Sciences, v. 103, n. 42, p.
15623-15628, 2006. STERNBERG, E. M. The balance within: The science
connecting health and emotions. London: Macmillan,
MUSICK, M. A.; WILSON, J. Volunteering and 2001.
depression: the role of psychological and social
resources in different age groups. Social Science & SOARES, V. F. P. Influência da espiritualidade
Medicine, v. 56, n. 2, p. 259-269, 2003. na experiência de abstinência do indivíduo com
transtorno por uso de substância (TUS). 2019.
MYERS, D. G.; DIENER, E. Who Is Happy? Dissertação (Mestrado em Saúde Pública) –
Psychological Science, v. 6, n. 1, p. 10-19, 1995. Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2019.

THOITS, P. A.; HEWITT, L. N. Volunteer work and


well-being. Journal of Health and Social Behavior, p.
115-131, 2001.

[ 28 ] Maio| Jun.| Jul.| Ago.| 2021


O conceito de
saúde espiritual
pede a consideração de
apoio espiritual

E
Marcelo Saad1

Entre 2020 e 2021, escrevi quatro artigos Relação do bem-estar religioso-


relacionados à importância do apoio espiri- espiritual com a saúde
tual para a saúde. Todos estão publicados em
inglês e alguns têm acesso restrito median- Numerosos estudos já demostraram uma re-
te pagamento. Dessa forma, poucos colegas lação entre o bem-estar espiritual e a saúde fí-
brasileiros teriam oportunidade de acompa- sica e mental, qualidade de vida e longevidade.
nhar as ideias lançadas nessas publicações. Na maioria das pesquisas, essa associação é cau-
Por essa razão, o texto a seguir é uma compi- sal, positiva, estatisticamente significante e cli-
lação das informações contidas nesses arti- nicamente relevante. O grau de benefício dessa
associação pode ser comparável aos benefícios
gos, que estão citados nas referências ao final.
alcançados pelo consumo de frutas e vegetais.
Por meio das vias psiconeuroimunoendócrinas,
1 Médico; doutor em Ciências da Reabilitação pela Universidade Fede-
ral de São Paulo (UNIFESP); membro diretor da Associação Médico-
o bem-estar espiritual pode modular o estres-
-Espírita de São Paulo (AME-SP). se e promover melhores funções fisiológicas.

R E V I S T A Saúde & Espiritualidade [ 29 ]


Esse efeito está relacionado, principalmente, a Alguns líderes de seitas e fanáticos religio-
uma melhor função imunológica, hormonal e sos podem, em alguns momentos, colocar o
cardiovascular. paciente entre a medicina e a ética religiosa.
Uma estrutura de crenças sólida traz sig- Um sistema de crenças disfuncional pode in-
nificado, objetivo e conectividade por meio do centivar o paciente a utilizar o poder da fé
fortalecimento, do conforto, do bem-estar, da como substituto ao cuidado clínico. Um en-
segurança e do idealismo. O resultado é um en- frentamento religioso negativo causa angústia
frentamento religioso positivo no modo de li- espiritual e comportamento defensivo, o que
dar com as doenças. Essa abordagem pode ser afeta as decisões de tratamento e bem-estar. As
ainda mais importante durante a pandemia de visões particulares sobre santidade da vida po-
Covid-19. Permanecer espiritualmente saudá- dem levar à distanásia, isto é, a persistência em
vel tem potencial para aumentar os parâmetros tratamento fúteis em condições terminais.
físicos e a resistência a infecções. Há efeitos do
enfrentamento espiritual na fisiologia, sobre- Introduzindo o conceito de
tudo no sistema imunológico. saúde espiritual
Por outro lado, elementos da religiosi-
dade podem prejudicar a saúde. Algumas “Saúde é um estado de completo bem-estar
interpretações doutrinárias podem ser no- físico, mental e social, e não apenas a ausência
civas, em particular quando partes de es- de doença ou enfermidade”. Essa definição foi
crituras são posicionadas fora de contexto. adotada pela Organização Mundial da Saúde

[ 30 ] Maio| Jun.| Jul.| Ago.| 2021


(OMS) desde sua Constituição. Em 1999, a 52ª propósito, transcendência e conexão. O apoio
Assembleia da entidade aprovou uma emen- espiritual refere-se à atenção profissional aos
da para inserir o bem-estar espiritual em seu mundos subjetivos de preocupações existen-
conceito de saúde. Embora essa alteração não ciais derivadas de percepções, suposições, sen-
tenha sido implementada, a sua mera propos- timentos e crenças sobre a relação do sagrado
ta já mostra a importância do assunto. Assim, a com sua doença e/ou com sua recuperação ou
saúde espiritual deve ser considerada uma di- possível morte. Por essa razão, geralmente es-
mensão do bem-estar geral, ao lado dos físicos, tão fora do escopo da atuação do psicólogo ou
mentais e sociais, ampliando o modelo biopsi- do assistente social.
cossocial com um 4º componente. Por outro lado, reconhecemos que existem
Há algumas razões básicas para considerar muitos obstáculos para explorar o conceito de
a saúde espiritual ao pensar sobre o equilíbrio saúde espiritual. Barreiras gerais relacionadas
integral. Primeiramente, o termo “saúde espiri- à espiritualidade em saúde incluem: falta de es-
tual” existe e tem sido usado: em julho de 2021, paço privado e de tempo, falta de formação ina-
uma busca na base de dados Pubmed (https:// dequada, estar “fora do meu papel profissional”
pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/) revelou 420 publi- e medo do profissional em impor crenças ou ul-
cações com esse termo exato no título, resumo trapassar limites. Os médicos também temem
ou nas palavras-chave. Além disso, uma neces- enfrentar atos de preconceito de seus colegas
sidade espiritual é distinta daquelas emocionais ou gestores.
e sociais: a primeira tem a ver com significado,

R E V I S T A Saúde & Espiritualidade [ 31 ]


Agentes do cuidado espiritual prontuário e participar de discussões multipro-
fissionais. O atendimento poderia ser feito indi-
Apesar da existência de leis federais que ga- vidualmente (com privacidade e customização
rantem a qualquer paciente o acesso ao apoio para uma consulta por vez) ou coletivamente
espiritual, não há regulamentações sobre como (como em pequenos grupos de pessoas com ca-
essa atividade deva ser realizada. Isso se torna racterísticas comuns).
um desafio constante para o profissional de Em casos em que o nível de complexidade
saúde, que precisa disponibilizar a forma mais da necessidade foi maior, o atendimento de-
abrangente de cuidado baseada nos valores dos mandará a capacitação e a experiência de um
pacientes, o que inclui atender às questões le- líder religioso comunitário que possa ir ao
vantadas por convicções de fé. hospital. Há práticas religiosas que apenas um
O apoio espiritual é comumente associado ministro ordenado poderia oferecer, como a
à pessoa do capelão. O papel dos capelães pro- oração denominacional, os rituais sagrados e
fissionais de saúde é muito bem estruturado na símbolos religiosos; leitura e interpretação de
América do Norte e em alguns países europeus. escrituras religiosas ou outras leituras inspira-
No entanto, em muitos outros países (como o doras; manter sua conexão com a comunidade
Brasil), o capelão é apenas um ministro de uma de fé; e oferecer sacramentos, aconselhamento
congregação religiosa que trabalha em uma ins- ou absolvição.
tituição de saúde. Ele não tem toda a educação
pastoral clínica desejável em um capelão pro- Quem deveria pagar pelo apoio
fissional certificado. Além disso, poucos hospi- espiritual?
tais contam com um capelão institucional com
uma disponibilidade imediata para atendimen- Já que o bem-estar espiritual está direta
to, e os poucos capelães que fazem esse serviço e positivamente associado a melhores parâ-
não têm uma formação adequada para prover metros de saúde física e mental, qualidade de
assistência em um modelo interfé. Felizmente, vida e longevidade, o apoio espiritual deveria
existem outras formas de apoio espiritual. ser considerado como cuidado fundamental. A
Os profissionais da saúde poderiam iniciar dimensão espiritual é um componente-chave
com uma breve triagem das necessidades es- do bem-estar geral e assume funções multidi-
pirituais dos pacientes, detectar problemas mensionais e únicas. Acreditamos que o apoio
que podem impactar o tratamento e acionar espiritual é necessário demais para depender
os recursos disponíveis na instituição. Um vo- apenas da boa vontade da instituição de saúde
luntário treinado poderia apoiar essa iniciativa ou da feliz alocação de um capelão de uma con-
e oferecer um suporte independentemente de gregação de fé.
afiliação religiosa, conectando o assistido à sua O apoio espiritual deveria ser incluído em
referência espiritual original. Esse agente trei- uma abordagem integral de saúde, sendo dis-
nado em um modelo interfé poderia atender al- ponibilizado aos clientes com outras inter-
gumas necessidades universais. venções reconhecidamente benéficas, como
Tal como um capelão hospitalar, esse vo- psicoterapia e fisioterapia. Desse modo, quem
luntário teria algum treinamento para atuar deveria pagar por esse serviço é o seguro de
no ambiente de saúde e poderia escrever em saúde e/ou o Sistema Único de Saúde (SUS).

[ 32 ] Set.| Out.| Nov.| Dez.| 2021


Vislumbramos a necessidade de profissionali- • identificar o que é significativo para si e
zação do apoio espiritual para que o serviço seja abrir espaço para isso;
pago ou reembolsado por essas instituições. • cultivar otimismo, esperança, gratidão
e bom humor;
Cuidados espirituais em ateus e
agnósticos • buscar a grandiosidade nos pequenos
milagres do dia a dia;
Muitas pessoas nutrem sua espiritualidade • praticar ações filantrópicas com solida-
por meio de religiões formais ou sistemas de riedade e compaixão;
crenças, enquanto outras fortalecem sua di- • encontrar expansão da consciência em
mensão espiritual com elementos não religio-
uma forma secular de meditação.
sos. Algumas pessoas não têm uma crença espe-
cífica, e o termo “espiritual-mas-não-religioso”
é uma autodesignação de afiliação religiosa Conclusão
cada vez mais popular. Ao contrário do que ge-
ralmente se pensa, ateus e agnósticos também As quatro dimensões da saúde (física, men-
podem ter crenças genéricas e questões sobre tal, social e espiritual) são assim divididas ape-
significado e propósito. nas para fins didáticos. No entanto, tal divisão é
Tudo o que é “espiritual” foi por muito tem- importante para enfatizar cada uma e não per-
po considerado inseparável da religião, e a ex- der de vista a necessidade de abordagens múl-
pressão “espiritualidade secular” é um conceito tiplas. Assim como os componentes físico, men-
relativamente novo. Assim, as iniciativas para tal e social estão inter-relacionados, podemos
o bem-estar espiritual deveriam incluir tanto supor que há também interações destes com a
elementos religiosos como laicos. As formas se- saúde espiritual. As evidências acumuladas so-
culares de apoio espiritual podem ter uma re- bre a relação entre bem-estar espiritual e saúde
lação tão forte com a saúde mental como as re- permitem afirmar que esse serviço deva ser in-
ligiosas. A seguir, alguns exemplos de recursos serido em uma abordagem integral do cuidado.
não religiosos para a saúde espiritual: A importância do apoio espiritual é grande de-
mais para depender apenas de iniciativas insti-
• sentir-se conectado a algo maior, que
tucionais isoladas ou da disponibilidade de um
desperte o amor incondicional; capelão. Os seguros de saúde e o SUS teriam o
• estar aberto à inspiração originada das dever de prestar esse serviço juntamente com
intuições e da voz interior; outras terapias já contempladas.
• investir no crescimento moral por meio
da reflexão pessoal e de escolhas de vida;
• obter força com base em pontos de vista
filosóficos e humanísticos;
• passar mais tempo com a natureza, a arte
e as práticas contemplativas;

R E V I S T A Saúde & Espiritualidade [ 33 ]


Referências ______; ______. Religion and health: most of times,
an excellent combination. Einstein, v. 19, eCE6382,
SAAD, M. Spiritual Well-Being Affects Emotional and 2021b. Doi: https://doi.org/10.31744/einstein_
Physical Health. Alternative and Complementary journal/2021CE6382.
Therapies, v. 27, n. 3, p. 109-110, 2021. Doi: https://
doi.org/10.1089/act.2021.29328.msa. ______; ______. Should Spiritual Care Be Covered
by Health Care Insurance and Health Systems?
SAAD, M.; MEDEIROS, R. Advocating for the Journal of Pain and Symptom Management, v. 60, n.
concept of spiritual health. The American Journal of 6, p. e27-e28, 2020. Doi: https://doi.org/10.1016/j.
Emergency Medicine, v. 45, p. 563-564, 2021a. Doi: jpainsymman.2020.09.028.
https://doi.org/10.1016/j.ajem.2020.11.080.

[ 34 ] Maio| Jun.| Jul.| Ago.| 2021


Links AME-BRASIL

www.facebook.com/ame.brasil @ame_brasil www.youtube.com/user/videosamebr

R E V I S T A Saúde & Espiritualidade [ 35 ]


REVISTA
Saúde &
Espiritualidade
www.amebrasil.org.br
Biênio 2021-2023

[ 36 ] Set.| Out.| Nov.| Dez.| 2021

Você também pode gostar