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O DIA QUE JÚPITER ENCONTROU SATURNO (Nova história colorida)

Para Valdir Zwetsch, e Maria Rosa Fonseca


Gente, espelho de estrelas, reflexo do esplendor.
Caetano Veloso: “Gente”

Foi a primeira pessoa que viu quando entrou. Tão bonito que ela baixou os olhos, sem
querer querendo que ele também a tivesse visto. Deram-lhe um copo de plástico com
vodca, gelo e uma casquinha de limão. Ela triturou a casquinha entre os dentes, mexendo o
gelo com a ponta do indicador, sem beber. Com a movimentação dos outros, levantando o
tempo todo paradançar rocks barulhentos ou afundar nos quartos onde rolavam carreiras e
baseados, devagarinho conquistou a cadeira de junco junto à janela. A noite clara lá fora
estendida sobre a Henrique Schaumann, a avenida poncho & conga, riu sozinha. Ria
sozinha quase o tempo todo, uma moça magra querendo controlar a própria loucura,
discretamente infeliz. Molhou os lábios na vodca tomando coragem de olhar para ele, um
moço queimado de sol e calças brancas com a barra descosturada. Baixou outra vez os
olhos, embora morena também, e suspirou soltando os ombros, coluna amoldando-se tensa
ao junco da cadeira. Só porque era sábado e não ficaria, desta vez não, parada entre o
som, a televisão e o livro, atenta ao telefone silencioso. Sorriu olhando em volta, muito bem,
parabéns, aqui estamos. Não que estivesse triste, só não sentia mais nada. Levemente,
para não chamar a atenção de ninguém, girou o busto sobre a cintura, apoiando o cotovelo
direito no peitoril da janela. Debruçou o rosto na palma da mão, os cabelos lisos caíram
sobre o rosto. Para afastá-los, ela levantou a cabeça, e então viu o céu. Um céu tão claro
que não era o céu normal de Sampa, com uma lua quase cheia e Júpiter e Saturno muito
próximos. Vista assim parecia não uma moça vivendo, mas pintada em aquarela, estatizada
feito estivesse muito calma, e até estava, só não sentia mais nada, fazia tempo. Quem sabe
porque não evidenciava nenhum risco parada assim, meio remota, o moço das calças
brancas veio se aproximando sem que ela percebesse. Parado ao lado dela, vistos de
dentro, os dois pintados em aquarela - mas vistos de fora, das janelas dos carros
procurando bares na avenida, sombras chinesas recortadas contra a luz vermelha. E de
repente o rock barulhento parou e a voz de John Lennon cantou every day, every way is
getting better and better. Na cabeça dela soaram cinco tiros. Os olhos subitamente
endurecidos da moça voltaram-se para dentro, esbarrando nos olhos subitamente
endurecidos do moço. As memórias que cada um guardava, e eram tantas, transpareceram
tão nitidamente nos olhos que ela imediatamente entendeu quando ele a tocou no ombro.

- Você gosta de estrelas?


- Gosto. Você também?
- Também. Você está olhando a lua?
- Quase cheia. Em Virgem.
- Amanhã faz conjunção com Júpiter.
-Com Saturno também.
- Isso é bom?
- Eu não sei. Deve ser.
- É sim. Bom encontrar você.
- Também acho.
(Silêncio)
- Você gosta de Júpiter?
- Gosto. Na verdade, "desejaria viver em Júpiter onde as almas são puras e a transa é
outra”.
- Que é isso?
- Um poema de um menino que vai morrer.
- Como é que você sabe?
- Em fevereiro, ele vai se matar em fevereiro.
- Hein?

(Silêncio)
- Você tem um cigarro?
- Estou tentando parar de fumar.
- Eu também. Mas queria uma coisa nas mãos agora.
- Você tem uma coisa nas mãos agora.
- Eu?
- Eu.

(Silêncio)
- Como é que você sabe?
- O quê?
- Que o menino vai se matar.Sei muitas coisas. Algumas nem aconteceram ainda.
- Eu não sei nada.
- Te ensino a saber, não a sentir. Não sinto nada, já faz tempo.
- Eu só sinto, mas não sei o que sinto. Quando sei, não compreendo.
- Ninguém compreende.
- Às vezes sim. Eu te ensino.
- Difícil, morri em dezembro. Com cinco tiros nas costas. Você também. Do poema “Vazio
na carne”, de Henrique do Valle.
- Também, depois saí do corpo. Você já saiu do corpo? (Silêncio)
- Você tomou alguma coisa?
- O quê?
- Cocaína, morfina, codeína, mescalina, heroína, estenamina, psilocibina, metedrina.
- Não tomei nada. Não tomo mais nada.
- Nem eu. Já tomei tudo.
- Tudo?
- Cogumelos têm parte com o diabo.
- O ópio aperfeiçoa o real.
- Agora quero ficar limpa. De corpo, de alma. Não quero sair do corpo.

(Silêncio)
- Acho que estou voltando. Usava saias coloridas, flores nos cabelos.
- Minha trança chegava até a cintura. As pulseiras cobriam os braços.
- Alguma coisa se perdeu.
- Onde fomos? Onde ficamos?
- Alguma coisa se encontrou.E aqueles guizos?
- E aquelas fitas?
- O sol já foi embora.
- A estrada escureceu. Mas navegamos.
- Sim. Onde está o Norte?
- Localiza o Cruzeiro do Sul. Depois caminha na direção oposta.

(Silêncio)
- Você é de Virgem?
- Sou. E você, de Capricórnio?
- Sou. Eu sabia.
- Eu sabia também.
- Combinamos: terra.
- Sim. Combinamos.
(Silêncio)
- Amanhã vou embora pra Paris.
- Amanhã vou embora pra Natal.
- Eu te mando um cartão de lá.
- Eu te mando um cartão de lá.
- No meu cartão vai ter uma pedra suspensa sobre o mar.
- No meu não vai ter pedra, só mar. E uma palmeira debruçada.

(Silêncio)
- Vou tomar chá de ayahuasca e ver você egípcia. Parada ao meu lado, olhando de perfil.
- Vou tomar chá de datura e ver você tuaregue. Perdido no deserto, ofuscado pelo sol.
- Vamos nos ver?No teu chá. No meu chá.
(Silêncio)
- Quando a noite chegar cedo e a neve cobrir as ruas, ficarei o dia inteiro na cama
pensando em dormir com você.
- Quando estiver muito quente, me dará uma moleza de balançar devagarinho na rede
pensando em dormir com você.
- Vou te screver uma carta e não mandar.
- Vou tentar recompor teu rosto sem conseguir.
- Vou ver Júpiter e me lembrar de você.
-Vou ver Saturno e me lembrar de você.
- Daqui a vinte anos voltarão a se encontrar.
- O tempo não existe.
- O tempo existe, sim, e devora.
-Vou procurar teu cheiro no corpo de outra mulher. Sem encontrar, porque terei esquecido.
Alfazema?
- Alecrim. Quando eu olhar a noite enorme do Equador, pensarei se tudo isso foi um
encontro ou uma despedida.
- E que uma palavra ou um gesto, seu ou meu, seria suficiente para modificar nossos
roteiros.

(Silêncio)
- Mas não seria natural.
- Natural é as pessoas se encontrarem e se perderem.
- Natural é encontrar. Natural é perder.
- Linhas paralelas se encontram no infinito.
- O infinito não acaba. O infinito nunca é.
- Ou sempre.(Silêncio)
- Tudo isso é muito abstrato. Está tocando Kiss, kiss, kiss. Por que você não me convida
para dormirmos juntos.
- Você quer dormir comigo?
- Não.
- Porque não é preciso?
- Porque não é preciso.
(Silêncio)
- Me beija.
- Te beijo.

Foi a última pessoa que viu ao sair. Tão bonita que ele baixou os olhos, sem saber sabendo
que ela também o tinha visto. Desceu pelo elevador, a chave do carro na mão. Rodou a
chave entre os dedos, depois mordeu leve a ponta metálica, amarga. Os olhos fixos nos
andares que passavam, sem prestar atenção nos outros que assoavam narizes ou
pingavam colírios. Devagarinho, conquistou o espaço junto à porta. Os ruídos coados de
festas e comandos da madrugada nos outros apartamentos, festas pelas frestas, riu
sozinho. Ria sozinho quase sempre, um moço queimado de sol, com a barra branca das
calças descosturada, querendo controlar a própria loucura, discretamente infeliz. Mordeu a
unha junto com a chave, lembrando dela, uma moça magra de cabelos lisos junto à janela.
Baixou outra vez os olhos, embora magro também. E suspirou soltando os ombros, pés
inseguros comprimindo o piso instável do elevador, Só porque era sábado, porque estava
indo embora, porque as malas restavam sem fazer e o telefone tocava sem parar. Sorriu
olhando em volta. Não que estivesse triste, só não compreendia o que estava sentindo.
Levemente, para não chamar a atenção de ninguém, apertou os dedos da mão direita na
porta aberta do elevador e atravessou o saguão gelado, saindo para a rua. Apoiou-se no
poste da esquina, o vento esvoaçando os cabelos, e para evitá-lo ele então levantou a
cabeça e viu o céu. Um céu tão claro que não era o céu normal de Sampa, com uma lua
quase cheia Júpiter e Saturno muito próximos. Visto assim parecia não um moço vivendo,
mas pintado num óleo de Gregório Gruber, tão nítido estava ressaltado contra o fundo da
avenida, e assim estava, mas sem compreender, fazia tempo. Quem sabe porque não
evidenciava nenhum risco, a moça debruçou-se na janela lá em cima e gritou alguma coisa
que ele não chegou a ouvir. Parado longe dela, a moça visível apenas da cintura para cima
parecia um fantoche de luva, manipulado por alguém escondido, o moço no poste agitando
a cabeça, uma marionete de fios, manipulada por alguém escondido.De repente um carro
freou atrás dele, o rádio gritando “se Deus quiser, um dia acabo voando”. Na cabeça dele
soaram cinco tiros. De onde estava, não conseguiria ver os olhos da moça. De onde estava,
a moça não conseguiria ver os olhos dele. Mas as memórias de cada um eram tantas que
ela imediatamente entendeu e aceitou, desaparecendo da janela no exato instante emque
ele atravessou a avenida sem olhar para trás.

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