Você está na página 1de 4

Gambito de Damas

Gabriela Guimarães Gazzinelli

“She reminded him of a juggler tossing knives; but the knives


were blunt and she knew they would never cut her.”

Edith Wharton

Sentia-se num delicado equilíbrio entre duas esinges especulares. Sentavam-se

impecáveis, uma voltada para a outra, a se olharem, sem piscar, poderiam ser irmãs de tão
igualmente senhoras de si. Havia garbo em cada prega de suas saias, nas ileiras de botões

perolados, no reluzir argênteo de anéis que deslizavam em dedos inos. Trocavam olhares
quase cúmplices, não fosse a demora durante a qual se mediam. Mediam-se para se

precaverem uma contra a outra, ou para acentuarem a semelhança minuciosamente


cultivada? Iguais até no langor dos braços repousando sobre o braço da poltrona com

premeditado descuido.
A ina tensão que criavam o impedia de se aproximar de qualquer uma delas, embora

se sentisse atraído por uma e por outra. Não que fossem rivais, nem declarada nem
implicitamente. Aprimoravam artes complementares. O lustre de uma era acentuado pelo

brilho da outra. Eram, assim, antes guardiãs de um mistério cujo acesso era negado ou
concedido por ambas. A duplicidade as tornava mais atraentes e sabiam disso. Ambas

tinham um ar extemporâneo, que sugeria o corte elegante de saias escuras, o luxo de leques
orientais em mãos enluvadas por rendas ricas. Pareciam duas damas diametrais no tabuleiro

de xadrez.
Embora muitos as tomassem por irmãs, não eram tão semelhantes isicamente que

justiicasse o paralelo, exceto talvez pelo porte e pela intensidade do olhar, tinham olhos
escuros e grandes. Ou será que, no fundo, era por se maquilarem com traços parecidos, o

1
delineador acentuando-lhes o tamanho? Mas a presença de ambas era siamesa. Uma

emanação invisível corria entre seus dois corpos. Quando no mesmo ambiente, se não
estivessem juntas, pareciam dividi-lo em metades espelhadas de desejos por dizer e verdes

fantasias (ainda que a duplicidade que conferissem ao espaço fosse ilusória ou imaginada,
como quiserem).

A igura das esinges lhe viera à mente, certa vez, quando chegara atrasado num
pequeno jantar em sua homenagem. Uma recebia e a outra fora convidada. Cada qual

reinava sobre uma cabeceira, articulando redes de cúmplices e inimigos no cintilar de seus
talheres. O seu lugar, exatamente equidistante das duas, mostrava a gentileza daquela que

era anitriã com a recebida. Ou pelo menos essa fora a impressão que ele tivera ao se
acomodar. Mas ainda que a cordialidade reinasse no plano das formalidades, subjacente,

uma oposição ecoava no tintinar de cálices à hora do brinde. Sem que soubessem, ele as
observava cheio de intenções sub-reptícias, atraído pela elegância com a qual se dispunham

de seus corpos. Ou talvez elas o soubessem muito bem e a aparente distração era encenada,
como tudo mais.

À sobremesa, a conversa era conduzida com naturalidade, talvez com excessiva


naturalidade. Ele começou, então, a perceber artifícios em tudo: no deslizar de suas iguras,

no arranjo das lores, nos sorrisos calculados, na disposição dos convidados à mesa, no
cardápio, na atenção que lhe dispensavam nem fria, nem invasiva, nos assuntos que

brotavam uns dos outros. A trama esmerada que elas elaboravam o inquietou naquela
madrugada mais do que nunca.

. . .
Era estranho como aquela ideia ixa da inseparabilidade das duas o possuíra. Não

conseguia mais se imaginar com uma sem a outra. Sonhou miríades de vezes que se
despiam por detrás de um biombo onde delicadas inlorescências brilhavam, alvas, contra o

fundo laqueado preto. Seriam manacás? Jasmins? Orquídeas rasqueiras? Elas despontavam
por cima, ombros e colos pálidos como as lores. Nuas, rostos lavados e cabelos soltos, se

tornavam idênticas e ele engasgava ao pronunciar seus nomes, com medo de ofender a uma

2
e a outra, trocando-os. Acordava no meio da noite apavorado.

Anos mais velho, riria um pouco amargo do seu sofrimento de então. Eis os
desgostos da juventude, um homem entre duas mulheres como aquelas. Por que sofrera

tanto? Mas levou anos para que pudesse rir do que se passara.
. . .

Enim, resolveu retribuir os inúmeros convites e atenções delas com um jantar


íntimo, a três. Não era um convite de todo benevolente. Planejou embriagá-las para ver as

máscaras caírem e dar im à sua fantasia geminada que, para ele, adepto dos bons costumes,
era monstruosa. A comida era pouca e leve, e as garrafas de vinho, esvaziadas ao longo da

noite, foram se enileirando sobre o aparador.


Pouco a pouco, decompôs-se a elegância glacial que lhes era tão característica. Já

não pesavam palavras ou circunscreviam gestos. Uma delas pôs-se a fumar, um ar de tédio e
descaso em seu rosto. Uma certa irritação se apoderou de sua atraente quietitude, dando-

lhe brusquidão aos movimentos. Insinuava-se, mostrava os dentes. Sorria um pouco


sardônica e economizava as ínimas fórmulas de polidez que habitualmente proliferavam em

suas falas.
A outra entregara-se ao mutismo da timidez sua infância. Se vigiara sua melancolia

durante noites e noites, naquela, desarmada, deixou-se transigurar numa sombra fugaz que
atravessava o salão e se esquecia na contemplação do grão da madeira. A voz perdeu sua

inlexão grave e medida e se tornara trêmula e baixa. A boca, roxa pelo vinho, os olhos
grandes, assombrados, denotavam uma fragilidade até então bem ocultada.

Uma se entregava à volúpia e a outra permanecia silenciosa, de forma que uma se


aproximou dele, rompendo a distância preservada até então, enquanto a outra se retirou

para o minúsculo jardim urbano e foi ter com os bonsais e estrelas pusilânimes. Tocava as
mínimas romãs rosadas. Sonâmbula, murmurava versos eólicos.

Ao ocuparem espaços assimétricos, deram a entender que escolhesse sem que


precisassem dizer tanto. Mas ele continuou hesitante. Como um pêndulo, passava do salão

ao jardim, do luar ao sofá. Enquanto na sala, pressentia a silhueta palpitante no jardim.

3
Quando no jardim, via de relance a avidez da outra reclinada no sofá.

Naquela noite, com medo de perder uma delas, perdeu ambas. Não sabia, ao certo, se
realmente violara um preceito sagrado ao deixar transparecer suas incertezas, ou se cada

murmúrio, cada passo havia sido arquitetado de antemão e ele era apenas mais uma peça
que sucumbia nos enredos artiiciais cheios de convenções especiosas, que elas

aperfeiçoavam.
. . .

Na manhã seguinte, ele as avistou juntas, a semelhança recomposta, mas entre ele e
elas caíra uma reserva, a intimidade não era mais permitida. Elas evitavam o encontro de

seus olhos e seus corpos recuavam do abraço que ele lhes oferecia. No mais, conduziam-se
com uma cordialidade ferina. Quando inevitável, glosavam sobre as amenidades mais

supericiais, como se não passassem de estranhos cerimoniosos constrangidos àquela


conversa por eventos fortuitos.

Mesmo depois de alguns meses, era tomado por arroubos de desassossego. Tentou se
reaproximar inúmeras vezes, desculpar-se pelo que izera. Mas elas, gêmeas marmóreas,

desviavam os olhos como se dissessem, esinges alheias: agora só te resta lançar-te de um


despenhadeiro.
Com o passar dos anos, perdeu-as de vista. Soube depois que uma partira para

aprimorar sua música alhures. No decorrer de pouco tempo, a outra, como não poderia

deixar de ser, partiu também. Ia seguir os estudos, alimentava esperanças de se dedicar à

literatura. Distantes, as lembranças perderiam o corte.

Você também pode gostar