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Radiohead: “In Rainbows”, o álbum da década

screamyell.com.br/site/2009/03/17/in-rainbows-o-album-da-decada

por Alexandre Matias


Vamos falar a verdade – o Radiohead só passou a existir a partir do segundo semestre de
1997, quando “OK Computer” definiu uma fronteira ainda inconsciente. Ali terminava a
carreira de uma banda do terceiro escalão da geração britpop, que se esforçava para suprir
a lacuna deixada pelo U2 à medida em que Bono e companhia mergulhavam na dance
music. Mesmo com algumas boas faixas em “The Bends”, o Radiohead era menos do que
nota de rodapé na história do rock, fadado a ser lembrado mais por “Creep” do que por
faixas infinitamente superiores, como “High and Dry”, “Fake Plastic Trees” ou “Just”. Até
que, em um disco, mudaram completamente a abordagem de sua música, sua própria
noção de importância e a consciência de perspectiva histórica. “OK Computer” era uma
coleção de faixas que soavam tão inquietas quanto clássicos do rock, devendo tanto ao
stress existencialista da geração X e à paranoia consumista dos anos 90 quanto aos discos
solo dos Beatles e os discos certos do rock progressivo. E toda poeira retrô que pairava
sobre as canções do último álbum da história do rock soa setentista ao mesmo tempo em
que flutua pós-moderna, como se letra e música fossem atiradas à ausência de gravidade e
humanidade de uma etapa cinzenta a seguir. Imagine o estado da banda ao conduzir
versões com 14 minutos de uma “Paranoid Android” ainda não gravada para o público da
primeira turnê americana de Alanis Morrissette, de quem foram o show de abertura.

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Mal sabíamos como aquele “OK Computer” seria definitivo: surrupiada de Douglas
Adams, a frase funcionava como um epitáfio para o mundo pop como o conhecíamos, de
artistas inatingíveis, canções que soam como hinos, discos para serem ouvidos de cabo a
rabo, a indústria fonográfica em particular e o mercado de entretenimento como um todo.
Tudo começaria a ruir naquele semestre. Ao mesmo tempo em que as letras da banda
pareciam concretizar-se, novas estradas digitais eram erguidas. A ausência de resistência
do título não era apenas um último suspiro, uma trégua final – também anunciava o início
de novas regras no jogo do pop. Afinal, o computador não era apenas a caixa cinzenta de
plástico que passaria a nos conectar através de uma rede neurológica planetária artificial,
mas também cada um de seus usuários. Ao ceder ao computador, a banda estava
encerrando também o ciclo de relação da banda com o ouvinte passivo, afinal, a partir dali
ele também inseriria dados na equação do sucesso de determinado artista que iam além
da simples compra de ingressos ou de discos.

O próprio Radiohead foi cobaia desta nova realidade ao ver o disco posterior a “OK
Computer” aparecer online antes de ter sido lançado. Três anos após ter subido degraus
consideráveis em importância no mundo pop graças a um único disco, o Radiohead
armava a contagem regressiva para o lançamento de um disco que a indústria esperava
ser campeão de vendas com notícias que diziam que o disco seria hermético e
experimental. E a expectativa aumentava quando gravações com as novas faixas tocadas
em shows começaram a aparecer na internet –que culminou com o próprio vazamento de
“Kid A” quase dois meses antes de seu lançamento oficial. Aquela novidade era uma
prática que já vinha acontecendo com artistas menores, mas, com a chegada do
Radiohead ao primeiro escalão do pop, abriu as possibilidades de ver a internet como vilã,
ao minar as possibilidades de um artista de grande porte vender ainda mais discos. O
resultado foi um esgar inicial à complexidade e densidade das canções, avessas ao
classicismo de “OK Computer”, que rendeu notícias anunciando a morte prematura do
disco. Mas foi o tempo necessário para o público digerir o álbum e seu conceito antipop
para que “Kid A”, contrariando todas expectativas, se tornasse um dos discos mais
vendidos do ano 2000 no mundo inteiro.

Com “Kid A”, o grupo virou as costas para o que havia pregado em “OK Computer” e
partiu para o que mais havia de vanguarda na época. Lembro da Wire, bíblia da música
experimental, estampar Thom Yorke em sua capa com um misto de admiração e culpa,
pois a banda de rock mais popular do planeta tinha levado para seu aguardado disco parte
do universo de exploração e experimentos endeusados pela revista. A música mais “fácil”
de “Kid A” não ajudava muito, ao criar um neologismo que fundia idiotice com
discothéque, numa crítica nada sutil à pista de dança. Pesado e de poucos amigos, “Kid A”
é um salto no escuro tão radical quanto os álbuns negros do Prince e do Metallica –
embora não tenha errado tanto quanto o primeiro nem acertado tanto quanto o último.
Em seu quarto disco, o Radiohead tinha deixado de ser uma banda pop aspirando o
Olimpo para assumir a expressão de uma esfinge, uma Mona Lisa de olhos tortos que ri
de/com/para algo – e você não sabe do quê.

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Os discos seguintes continuaram a trilha, abrindo-a para os lados. “Amnesiac” é o lado B
de “Kid A” e o disco ao vivo “I Might Be Wrong” compila as músicas dos discos anteriores
que poderiam ter feito o sucessor de “OK Computer” um disco palatável – mas
desimportante por ser muito parecido. Com “Hail to the Thief”, eles ampliam ainda mais
suas discussões ao assumir posições políticas ao mesmo tempo em que costuram o
experimentalismo com sua maior qualidade, as canções.

Sete anos depois do abismo “Kid A”, o grupo dá um passo ainda mais ousado – talvez até
mesmo que o de “OK Computer”. Tudo estaria resolvido em menos de um mês. Em
setembro de 2007, pouco se falava sobre o próximo disco do Radiohead e no mês seguinte
a banda dominava o imaginário mundial. Começou com o mínimo de barulho num site
chamado www.radiohead7lp.com, que computava uma contagem regressiva para alguma
coisa. Sim, era o sétimo disco do Radiohead que estava para ser lançado, mas logo a
própria banda vinha em seu site para dizer que não tinha nada a ver com aquela contagem
regressiva. Em alguns posts anteriores, o grupo apenas lançava mensagens enigmáticas,
criptografadas – uma delas foi traduzida como sendo MARCH WAX, o que levava a crer
que o próximo disco da banda sairia apenas em vinil, seis meses depois.

Ou não. Eis que o tal cronômetro chegou ao zero, revelando a frase – THE MOST
GIGANTIC LYING HOAX OF ALL TIME (O MAIS GIGANTE E MENTIROSO BOATO DE
TODOS OS TEMPOS, tudo em caixa alta mesmo) linkada a um vídeo do YouTube, que
nos fazia cair no clipe de “Never Gonna Give You Up”, de Rick Astley, num primeiríssimo
Rick Roll’d em larga escala. Ao mesmo tempo, o próprio site da banda revelava a seguinte
mensagem:

“Hello everyone.

Well, the new album is finished, and it’s coming out in 10 days;
We’ve called it In Rainbows.

Love from us all.


Jonny”

Dali você era redirecionado para o site InRainbows.com, que escreveria uma nova página
na história do capitalismo. No momento em que você optava por comprar o álbum, o site
lhe oferecia a opção de escolher o preço que queria pagar. Não era simples altruísmo:
assim, o que o Radiohead admitia era o fato de que, uma vez feito, o disco já estava
lançado – pagaria quem se dispusesse a faze-lo. Mais do que ter o preço avaliado pelo
comprador – o que é um conceito inovador em si –, “In Rainbows” foi dado de graça.
Quem quisesse, poderia pagar pela comodidade de receber, além das 10 faixas
disponibilizadas em MP3, um pacote com o disco em vinil em edição especial, que ainda
incluía um disco extra. Calibrando suas faixas com um bitrate específico (160 – ao
contrário dos 320, 192 ou 128 que são usados como padrões), eles logo dominavam a rede
com o mesmo disco em milhões de HDs diferentes. Ao contrário do vazamento
involuntário, que pode pular uma das etapas do processo de produção do disco e vir com
algo menos (títulos definitivos, masterização, ordem das músicas, etc.), “In Rainbows”

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chegou inteiro e ao mesmo tempo para todo seu público – e exatamente como queriam
seus autores. Em um fim de semana, o sétimo disco do Radiohead deixava de ser uma
conspiração decodificada por fãs para se tornar um novo paradigma para a cultura pop.

“In Rainbows” ainda tem outro mérito – o de mostrar que download gratuito não
pressupõe pirataria, como desinformava a guerra de nervos promovida pela indústria do
disco no início da década, quando insistia em jogar na internet a culpa da má gestão de
seus próprios negócios nos anos 90 e trata-la como vilã. Assim, se uma incauta geração
inteira baixava MP3 como se não houvesse amanhã, outra, precavida, comprava seus MP3
com medo de prejudicar seus artistas favoritos. O Radiohead deu a esta última a chance
de baixar não apenas uma música, mas um disco inteiro, de um artista estabelecido – de
graça, sem dor.

O feito transformou o Radiohead em novo paradigma digital. Não apenas o universo


musical, mas todos conscientes do papel da internet ouviram falar da nova estratégia da
banda, que em uma semana, teve mais de um milhão de downloads só do site oficial,
dominou a parada da Last.fm e apresentou-se para gente que nunca tinha sequer parado
para ouvir o grupo. Além de impulsionar uma safra de artistas a adotar o formato.

Há quem desmereça o feito como mero recurso técnico feito para distrair a atenção da
essência artística – reação usada para esvaziar os efeitos de “Guerra nas Estrelas” ou de
“Dark Side of the Moon”, a cor em “O Mágico de Oz”, a pompa de “Sgt. Pepper’s”, o timbre
de João Gilberto, a falta de respostas em Lost ou a filosofia de araque em Matrix. Os
detratores do pop desvinculam tais elementos de suas obras originais de forma a torná-los
ridículos para quem acompanha o fenômeno de fora, sem perceber que é justamente esse
o elemento responsável por ampliar o público para longe do nicho, rumo às massas. E por
mais óbvio que pareça ter sido o salto dado por “In Rainbows”, ele foi crucial, pois
quebrou o parâmetro linear de produção da era analógica, que inevitavelmente faria o
disco ser lançado mesmo em março de 2008, caso a banda entregasse o disco à gravadora,
e não ao público. A sensação de desnorteamento foi tamanha, que havia quem
considerasse o lançamento digital do disco um híbrido improvável batizado de
“vazamento oficial” – sem perceber a contradição no termo. Como provocação, a banda
ainda marcou o lançamento oficial do CD para o primeiro dia de 2008 – como se
perguntasse a quem falou em “vazamento oficial” de quando é que eles vão datar o CD,
2007 ou 2008? Endossando a provocação, o Radiohead ainda fechou um acordo com a
CurrenTV de Al Gore para transmitir um show gravado no estúdio da banda no último dia
de 2007. Poucas horas antes do disco chegar às prateleiras das lojas do mundo, milhares
de fãs da banda em todo o planeta cantavam todas as músicas de um disco que ainda não
existira fisicamente, apenas de forma digital.

Mas o fato é que todo esse rebuliço não seria tão importante caso “In Rainbows” não fosse
bom. Tanto que logo depois o Nine Inch Nails lançou um disco de forma ainda mais
ousada – tanto em termos mercadológicos quanto em se tratando de narrativa – e
ninguém mal ouviu falar do disco. Por que é ruim? Não, afinal de contas, o trabalho de
Trent Reznor é sério. Mas por que não se conecta de forma tão intensa com a própria
época como o do Radiohead.

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E chamar “In Rainbows” de um bom disco é exagerar na modéstia. “In Rainbows” é o
melhor álbum dos anos 00.

Pois todo experimentalismo da virada do milênio já havia sido digerido pela própria
banda. Expurgando a possibilidade de se repetir ao cogitar discos de vanguarda em vez de
álbuns de rock, o Radiohead aos poucos abandona a experimentação e o improviso, rumo
ao artesanato cancioneiro. As texturas e timbres alienígenas de “Kid A”/”Amnesiac”
surgem nas entrelinhas, nos arranjos, nos detalhes de “In Rainbows” – que é,
essencialmente, uma continuação de “OK Computer”. Há uma linha de raciocínio que
inclusive busca ligar ambos discos e fãs do grupo são instigados a procurar sentido em
coincidências como o fato dos dois discos serem batizados com expressões com duas
palavras, uma com duas letras e outra com oito. Já cogitaram até mesmo que a audição
entrelaçada das faixas dos dois discos abre uma nova dimensão entre suas canções – mas
o efeito é mais lúdico do que racional e poderia funcionar com quaisquer faixas dos
últimos discos da banda (sinal da coesão de sua sonoridade). Mas há ainda quem veja
coincidências nos detalhes – e há uma ênfase no número 10 que sugere alguma referência
à linguagem binária no Código Radiohead. Além dos discos terem 10 faixas cada (“OK
Computer” tem doze, sendo que uma, “Fitter Happier”, é um interlúdio), “OK Computer”
e “In Rainbows” foram lançados com 10 anos de diferença entre si – e o último lançado
exatamente no dia 10 de outubro (o mês 10) de 2007. E mais: o fato do título dos discos
começarem com as letras “O” e “I” também seria outro aceno ao código binário. “Down is
the New Up” – parece que tem mesmo algo aí.

Mas, principalmente, há a música – e ela se mostra a princípio hermética. “In Rainbows”


abre fechando-se com uma rajada de beats tortos, primos da gravadora Warp, que tanto
bateu no grupo no início da década. “Como posso terminar onde comecei?”, pergunta-se
Yorke, sem se preocupar em nos dar as boas vindas. “15 Step” aparentemente nos guia
para outro beco sem saída experimental. Mas aos 40 segundos, deixa a guitarra jazzista de
Jonny Greenwood superpor-se à percussão esquizofrênica – e a de Ed O’Brien logo surge
funcionando como segunda voz, junto com uma sinuosa linha de baixo e uma melodia
direta e reta, oposta a seus versos de abertura. “Tudo estava bem/ O que aconteceu? O
gato comeu sua língua?”, pergunta o vocalista sobre a mudez espiritual de nosso tempo.
“Etc. etc./ Fatos ou o que for”. O clima apático e tenso parece dissolver-se numa
melancolia pós-milênio que filtra todo o disco – um sentimento que é um vazio
existencialista parente da apatia cantada por Kurt Cobain e de um blues robô, que une
Kraftwerk, Daft Punk, Aphex Twin e Brian Eno numa espécie de eletrônica autoral, em
que o ritmo tem mais sentido do que sensação. Mas se essa sensação oca era a mesma que
causava desespero e náusea em “OK Computer”, em “In Rainbows” ela parece menos
caótica e mais precisa – como se tivesse completado um ciclo (os “15 passos” seriam um
programa?).

“Bodysnatchers” segue dura e rock, com seu riff distorcido conduzindo o ritmo como um
cavalo selvagem, acompanhado em seguida por toda a banda. Esta alterna entre o pique
inicial (cuja letra revela seu protagonista catatônico – “pisque seus olhos/ Uma vez para
‘sim’/ Duas vezes para ‘não’/ Eu não faço ideia do que você esteja falando”) e uma clareira

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de ritmo, quase zen, quando uma guitarra saída de um disco do Cure ou um teclado
fantasmagórico sublinha os gemidos de Yorke. “A luz apagou pra você?/ Pra mim,
apagou/ É o século 21”, canta numa performance, que vai do grunhidos ao sussurro, sua
voz tão solta na parte final da canção como qualquer outro instrumento da banda, tão
importante à formação sonora quanto as três guitarras, os teclados ou a cozinha decidida
– e é ela quem encerra a faixa repetindo “eles estão vindo!”, como se impressionada com a
coesão e força da usina de som que lidera, logo depois de concluir “eu estou vivo”.

“Nude”, conhecida pelos fãs de shows com outro título, “Big Ideas”, começa superpondo
vocais, samples de corais, cordas sintéticas para criar um clima de catedral, que é logo
esvaziado – deixando apenas Yorke com o baixo de Colin Greenwood e a bateria de Phil
Selway, criando uma atmosfera bucólica e tranquila (embora a letra cante que por mais
que você se apronte,“sempre algo estará faltando”), em que as duas guitarras entram
como se fossem uma só, alternando detalhes dedilhados como nas baladas mais
hipnóticas do Velvet Underground ou as canções mais pastoris do Pink Floyd. E logo essa
estrutura instrumental serve como base para as mesmas cordas, samples e vocais que
abriram a canção voltarem – e quando Yorke deixa sua voz soar sem letra, há um minuto
do fim, estamos ouvindo um dos trechos musicais mais bonitos de nossa época, quase
uma revelação sentimental, sentimentos que só a música consegue traduzir – palavras
falham.

O disco retoma à contagem de tempo antes da bateria assumir o ritmo incessante kraut
que funciona como tela em branco para três guitarras superporem dedilhados,
completando-se em “Weird Fishes/Arpeggi”. Não consigo dissociar não apenas essa faixa,
mas diversos momentos de “In Rainbows”, da descoberta do violão feita pelo Legião
Urbana em seu segundo disco – até porque a própria trajetória do Radiohead ultrapassa
um arquétipo vivido pelo grupo de Renato Russo, que é quando uma banda guitarreira
descobre a eficácia da harmonia em detrimento do ritmo e a sutileza do instrumento
acústico em contraste à histeria elétrica. “Weird Fishes” é parente bastarda de “Andréa
Doria” e “Plantas Debaixo do Aquário”, as mesmas texturas instrumentais, mesma
sensação de esperança disfarçada de desespero, mesma abordagem temática do mar
(Andréa Doria era o nome de um barco italiano que afundou em 1956, perto de Nova
York).

De andamento quase fúnebre, “All I Need” é outra bomba-relógio – ela parece prenunciar
uma música tensa e solene, quando, na verdade, é a balada mais pop que o grupo já fez;
uma canção pronta para aquecer corações, escorada em um arranjo com cara de Björk:
bateria minimal, piano soturno, efeitos sonoros, ecos, muitos vazios. Ela termina em
“Faust Arp”, uma microcanção em que o arranjo de cordas a deixa com ar ainda mais
pastoril, nickdrakeano, onde o grupo faz valer seu anglicismo.

A linda “Reckoner” é outra música que vai sendo construída lentamente entre nossos
ouvidos, cada camada de instrumento sendo disposta de forma didática, nos ajudando a
ouvir o que cada um faz na banda e nos explicando sentimentalmente o que é que precisa
nos afeiçoar em uma canção para que ela torne-se universal – neste caso, apenas o
andamento e a melodia, todo o resto é acessório. O vocal de Thom em especial deixa a

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aparente psicopatia de lado e atinge seu grande momento – em especial quando, na
segunda parte da faixa, canta consigo mesmo e entoa, quase em segredo, o nome do disco.
“House of Cards” não deixa cair – e vai pela mesma fórmula da canção anterior nos
fisgando sem pensar. Desta vez o ritmo é determinado pela guitarra, que é apenas seguida
pela bateria, deixando Thom Yorke ter seu outro grande momento, cantando em tom
grave, oposto ao falsete de “Reckoner”. Há tanta referência – e reverência – ao folk dos
anos 70 quanto à música ambient da virada do milênio, em outra canção irretocável.

“Jigsaw Falling Into Place” é o grande momento do disco, como se fosse uma “Paranoid
Android” amadurecida em dez anos – as mudanças entre as faces da música são menos
abruptas e suas diferentes caras soam complementares, não antagônicas. Ela aponta para
uma certeza que toma conta do disco – de que estamos finalmente vendo as coisas do jeito
que elas são. Caem as máscaras erguidas pela comunicação e aos poucos conseguimos ver
quem é quem, como se o ataque de pânico de OK Computer fosse substituído por uma
sabedoria cínica, algo Tyler Durden, um sociopata disposto a derrubar tudo por dentro –
a princípio o tom é sóbrio:

“Logo que você segura minha mão


Logo que você anota o número

Logo que as bebidas chegam

Logo que eles tocam sua música favorita


A mágica desaparece”

A letra continua dissecando toda a tensão da sociedade moderna do mesmo jeito em que a
banda cresce – instrumentos acústicos e vocais que cantarolam começam a ser trocados
por berros, solos de guitarra e cordas dramáticas e a música ganha um volume e
densidade que no início era apenas referido. A letra invade um outro país das maravilhas
de Alice, de paredes que perdem forma e gatos que sorriem mas também de ruído, ritmo e
câmeras de circuito fechado. “Nunca fui lá/ Só fingi que fui”, “antes que você entre em
coma/ Antes que você fuja de mim”, “Pra que servem instrumentos?/ Palavras são armas
de cano serrado”, Yorke nos induz ao transe dervixe inglês antes de sentenciar que o
quebra-cabeças começa a fazer sentido: “As peças se encaixam/ Não há nada a ser
explicado”, canta como um guru psicodélico que guia um novato em uma viagem
alucinógena – mas a viagem que a banda propõe é justamente abandonar o excesso de
referências que polui e superlota nossas cabeças para “desejar que o pesadelo se vá”, pois
“você tem uma luz e pode senti-la”. E ele não está sendo esotérico, como dá pra perceber.

“Videotape”, devagar quase parando, encerra o disco com a melancolia de um velho VHS,
Thom Yorke vê-se póstumo ainda querendo ater-se à vida que acabou de perder (“quando
eu chegar às portas do céu/ Isso estará gravado em vídeo/ Mefistófeles logo abaixo/
Tentando me puxar”), nos fazendo pensar em nostalgia e como nos apegamos mais ao
passado do que ao presente. Os acordes congelados ao piano são emoldurados por ruídos
e texturas, sem nunca superpor-se à canção.

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“In Rainbows” é um conjunto perfeito de 10 canções perfeitas. Elas conversam entre si
exatamente como falam das sensações que todos sentimos nos dias de hoje – um medo
opressor cuja natureza é indeterminada, a tensão de ser humano – animal ou racional? –
na medida em que a civilização entra em colapso, uma sensação vazia que se sobrepõe ao
excesso de tudo. São os mesmos sentimentos desenhados em “OK Computer”, o que muda
é a relação da banda com eles – se no primeiro disco parecia espantar-se e cogitar o
suicídio, neste percebe que todo o ruído e poluição é só a casca de uma pseudo-realidade
– e que o que há por trás do excesso de informações e caos de consciência que distorce
nossa rotina é muito simples, claro e fácil.

Alie isso ao fato de “In Rainbows” não ser um disco de inéditas. Conhecidas de seu
público através de shows, todas as faixas já haviam aparecido mais de uma vez e já tinham
vídeos no YouTube, letras em sites de fã e sequências de acordes em repositórios online
de canções cifradas para violão. Não era seu ineditismo que as tornava especiais em “In
Rainbows” – mas a forma em que elas foram dispostas, sua produção, seus arranjos, o
sentido que fizeram umas juntas às outras. Uma outra leva de músicas ainda podia ter se
juntado à coleção inicial mas terminou como uma espécie de conteúdo extra – o segundo
disco do vinil duplo vendido através do site – mas que, quis o destino, não era “In
Rainbows”.

“In Rainbows” é um conceito fechado, uma declaração de princípios, um manifesto


estético. Mais do que um disco que assumiu-se digital por natureza e copiável por
definição, é uma coleção de canções que não apenas traduzem certas sensações que
permeiam nosso dia a dia, como faz isso com estilo, bom gosto, senso de importância e
perspectiva histórica. Uma obra que ainda faz valer a existência de um formato, a prova
de que o fim do CD não pressupõe o fim do álbum. E, por tudo isso, é o disco mais
importante da década.

Nos anos 90, o Radiohead não chegou perto deste título pois seus padrões foram
estabelecidos logo no início – e “OK Computer” teria de competir com obras-primas como
“Blue Lines”, “Nevermind”, “Check Your Head”, “Loveless”, “The Chronic”,
“Screamadelica” e “BloodSugarSexMagick”. A década seguinte também talhou seu modus
operandi de cara – e, desde o início, descartou o álbum como formato. Medidos em
canções, os anos 00 esvaziaram o formato álbum de diferentes formas – de bandas que
movimentam-se exclusivamente por singles (como toda a geração novo rock nascida após
os Strokes) a artistas que se lançam por etapas, adicionando elementos extra à medida em
que envolvem o ouvinte (pense nas carreiras de Dangermouse, Jack White, Marcelo
Camelo ou Nick Cave – e suas muitas camadas de apresentação ao público). Quando o
Radiohead se propôs a lançar “In Rainbows” como o lançou, sabia onde queria estar.

A expectativa para os shows do Radiohead no Brasil essa semana não é à toa: estamos às
vésperas de assistir à maior banda do planeta hoje tocar o show da turnê do disco da
década.

– Alexandre Matias é jornalista, escreve no Trabalho Sujo, integrante d’O Esquema

8/9
Leia também
– “Pablo Honey”, por Eduardo Palandi (aqui)
– “The Bends”, por Renata Honorato (aqui)

– “Ok Computer”, por Tiago Agostini (aqui)

– “Kid A”, por Luís Henrique Pellanda (aqui)


– “Amnesiac”, por Marco Tomazzoni (aqui)

– “Hail To The Thief”, por Marcelo Costa (aqui)

9/9

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