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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

Disciplina: Teorias em Psicologia do Desenvolvimento


Docente: Ana Paula Soares da Silva
Discentes: Carolina Jacomini – 11297430; Lívia Carniel – 11793872;
Lucas Ramazzotto – 8754465

Atividade sobre Wallon - Território do Brincar

No presente trabalho, nós nos debruçamos uma vez mais sobre o documentário
“Território do Brincar” (Meirelles & Reeks, 2018), a fim de articular aspectos envolvidos nas
brincadeiras e interações das crianças com o desenvolvimento humano a partir da lente
teórica de Wallon. De forma geral, essa teoria parte da ideia de sujeito enquanto um ser
afetado pelo mundo em uma dupla história: o decorrer de seu amadurecimento biológico,
dado no desenvolvimento do corpo e do cérebro, e de sua vivência no ambiente social no qual
ela está inserida. Isso porque, segundo o autor, as funções psíquicas supõem um componente
orgânico, ao mesmo tempo em que o objeto da ação mental provém do ambiente social.
Sendo assim, para que crianças sejam capazes de brincar como no documentário, manipular
seus brinquedos, construir suas casinhas, mexer em suas panelinhas, juntar galhos e folhas e
interagir umas com as outras em diversos papéis, é necessário que estas tenham desenvolvido
certas capacidades biológicas, psíquicas e sociais, além de uma determinada relação com seu
próprio corpo e sua ideia de eu, mundo e outros, afetada pelas relações sociais e a cultura na
qual ela está inserida.
Com isso, uma grande questão envolvida no desenvolvimento, conforme posto pela
teoria, é a constituição do Eu psíquico, integrando seu aspecto motor, afetivo e cognitivo. É a
partir dessa tríade que a pessoa tem contato com os mundos exterior e interior, possibilitando
que as crianças estejam envolvidas em um mundo repleto de sensações e emoções,
possibilidades de movimentação e uso da inteligência e conhecimentos sociais, tendo o corpo
como base material organizadora dessa constituição do Eu. Assim, para que interajam com o
mundo ao seu redor, ao mesmo passo que são afetadas por ele, uma gama imensa de
processos desenvolvimentais, construídos e em construção, permitem que as crianças
brinquem das formas mostradas no documentário, a partir da constituição de um Eu psíquico
nesta dupla e complexa história.
Partindo deste ponto, delimitamos com mais especificidade a cena compreendida
entre os minutos 5’40” e 17’17”, possibilitando um aprofundamento da análise dos processos
que podem ser depreendidos a partir dela. Na cena, as crianças brincam de casinhas de
diferentes formas: estando sozinhas ou em grupo, construindo as casinhas ou interagindo com
uma casinha já montada, interagindo com materiais da natureza, tais quais folhas e galhos, ou
com objetos domésticos como panelas, colheres, bacias e outros brinquedos, como bonecas.
Além disso, algumas brincam com café, folhas e feijão para cozinhar, ou utilizam terra e
panelinhas de brinquedo, também sendo mostradas brincando de varrer e cuidando de bebês
representados por bonecas. Ainda que a descrição seja breve, torna-se explícito como as
brincadeiras das crianças nos permitem analisar como sua relação com o mundo e consigo
mesmas, e o papel desse processo na constituição de um Eu psíquico, são aspectos
complexos. Cada forma de se movimentar, expressar suas emoções e utilizar sua inteligência
durante as brincadeiras diz muito a respeito de seu desenvolvimento. Em um processo
reflexivo, retomamos uma frase de Heloísa Dantas apresentada na aula que esclarece para nós
como observar atentamente o brincar pode ser um forma de se investigar esses processos:

“A ótica walloniana constrói uma criança corpórea, concreta, cuja eficiência


postural, tonicidade muscular, qualidade expressiva e plástica dos gestos
informam sobre seus estados íntimos” (Heloísa Dantas, notas de aula, 2021)

Ressaltamos, assim, que o brincar, em toda sua expressão corpórea e concreta,


também informa sobre os processos de desenvolvimento em construção e construídos que
permitem que as crianças possam brincar da maneira que brincam. Dessa forma, podemos
pensar como as possibilidades de se movimentar, ou manter-se em determinadas posturas, são
capacidades do corpo fundamentais para que a brincadeira ocorra como nas cenas. No início
do período selecionado, as crianças ora brincam sentadas, ora em pé, utilizam-se dos braços e
de suas mãos com habilidade para pegar, equilibrar e amarrar galhos e outros objetos em suas
construções. Além disso, a expressão do primeiro garoto que brinca sozinho, bem como a
direção de sua cabeça, sua postura e a forma como visa os galhos, também informa sobre seu
envolvimento com a brincadeira. Além disso, o cuidado e atenção das crianças com como
equilibram os objetos, junto de suas expressões, demonstram o comprometimento nessa
exploração do mundo ao seu redor. Nota-se que elas interagem com ele por meio do
movimento, que é ato e efeito, isto é, permite que ajam no mundo e se expressem e também
tenham contato com o efeito do mundo nelas, sendo afetadas por ele.
Ademais, toda essa destreza corporal, bem como o interesse e a capacidade para ter
contato com esse mundo exterior, se movimentando nele e interagindo com objetos,
demonstra a presença de alguns processos de desenvolvimento, por exemplo, na constituição
de um Eu corporal e orgânico. Isso porque, como dito anteriormente, Wallon enfatiza que é
na relação com o mundo e com os outros que a criança passa a entendê-los como diferentes
do eu, colaborando para construção da percepção de que seu corpo é seu, o que permite a ela
interagir com esse mundo exterior das formas como vemos no trecho. Assim, o movimento,
tão importante para o autor, é um aspecto que é elaborado ao longo do desenvolvimento da
criança e permite que, em suas brincadeiras, elas sejam afetadas por esse mundo e também se
atuem nele.
Indo além, outro aspecto fundamental na teoria walloniana, relacionado a esse ser
afetado pelo mundo, envolve as emoções. No momento posterior a essa cena inicial, vemos
uma criança pequena desequilibrando os galhos de uma casinha montada por outras crianças,
o que faz com que eles caiam em cima de si. Apesar da criança estar de costas, percebemos
um som de choro e movimentação de sua barriga demonstrando uma respiração acelerada,
além de sua paralisação na posição até que uma outra criança venha em seu auxílio e a ajude
a sair dali, montando a casinha novamente. Dessa forma, podemos analisar como a criança é
afetada pelos elementos desse ambiente, sendo a emoção uma forma de reação a ele, tanto
como expressão, como também uma vinculação com esse mundo por emoções positivas ou
negativas. Refletimos, a partir disso, a respeito da importância da afetividade na teoria, já que
a relação da pessoa com o ambiente mobiliza reações, o que implica em formas de vinculação
com ele.
Ademais, o aspecto expressivo das emoções também recebe grande destaque quando
pensamos na menina que vem correndo ajudar essa criança diante de sua reação com a queda
da casinha. Podemos considerar que a forma como a criança se expressa na situação colabora
para que receba ajuda, o que nos permite analisar como as expressões das emoções são
aspectos que possibilitam uma forma de interação entre os seres humanos. Por conseguinte,
fica explícito tanto o papel da emoção na mobilização do outro para as necessidades do
sujeito, como o caráter próprio-plástico dessa atividade, pois pode ser modificada para os
outros dependendo da cultura e das interpretações que certas expressões geram, mobilizando
determinadas formas de agir. Ou seja, se a criança demonstrasse uma expressão diferente
talvez ela não fosse compreendida como alguém a ser ajudado, o que implica que a própria
forma como nos expressamos vai sendo transformada pela relação com o mundo. Assim, ao
longo da cena percebemos como as crianças são capazes de expressar suas emoções enquanto
brincam, envolvendo-se na dinâmica e sendo afetadas pela forma como ela se desenrola,
também possibilitando as interações de umas com as outras nessas vinculações, mobilizações
do outro e compartilhamento dessa expressividade que se modifica ao longo do
desenvolvimento e executa uma função fundamental na construção de diversos processo e da
constituição do Eu que interage com o mundo.
Cabe ressaltar também outro aspecto interessante dessas brincadeiras: quando
brincam, na tentativa de equilibrar adequadamente os objetos, amarrá-los e organizá-los, as
crianças fazem uso de sua inteligência na superação do desafio de construir as casinhas.
Analogamente, quando brincam de cuidar de bebês e cozinhar, elas inclusive expressam
verbalmente conhecimentos culturalmente adquiridos sobre como executar essas tarefas,
mostrando como a inteligência e o pensar são desenvolvidos no brincar. Além disso, também
a forma como algumas delas usam da comunicação verbal, não mais dependentes apenas do
corpo, são também resultados desses processos de desenvolvimento de sua inteligência. O
domínio e uso da linguagem demonstram a construção de importantes processos de
desenvolvimento envolvidos nesse aspecto. Explicita-se, assim, como apresentado em aula,
que a inteligência não se manifesta apenas em suas formas utilitárias, mas também em sua
manifestação lúdica, de modo que o brincar das crianças são expressões válidas do
desenvolvimento de sua inteligência.
Diante de todo o exposto, explicita-se como a teoria walloniana articula a afetividade,
a motricidade, a inteligência e o próprio Eu em uma perspectiva integrada e contextualizada
ao meio em que o sujeito está inserido. São estes os aspectos fundamentais dessa concepção
de desenvolvimento, que são organizados para que as crianças se adaptem às exigências de
seu ambiente. Dessa forma, diante dos conflitos que surgem, as crianças vão desenvolvendo
seus modos de sociabilidade em fases alternantes mais focadas na construção do eu ou na
construção do mundo. No caso das cenas, a forma como a maioria das crianças interage com
o ambiente ao redor nos permite analisar diversos processos relacionados a essa abertura à
exploração desse ambiente externo. A maioria delas aparenta estar em um momento de maior
curiosidade para com o mundo exterior, montando casinhas com empenho, na busca por
galhos, folhas e outros objetos para amarrá-los e equilibrá-los, na interação com os elementos
de seu ambiente e, principalmente, interação com as outras crianças, que são algumas
características da interação com o mundo que sinalizam para o estágio categorial do
desenvolvimento, conforme discutido por Wallon (2005).

Outrossim, o modo como é estabelecido o contato de umas crianças com as outras em


suas interações e brincadeiras é um aspecto essencial da compreensão de seu
desenvolvimento, pois assim como Wallon (1975) aponta, esse outro é um “parceiro perpétuo
do eu em sua vida psíquica". Assim, quando as crianças interagem colaborando entre si na
montagem das casinhas, observando-se, conversando e executando papéis diferentes em uma
mesma brincadeira, como cozinhar, varrer, dar banho e secar, ficam marcados certos
processos de desenvolvimento na constituição do Eu a partir desse outro. Por sua vez, este
envolve exatamente a delimitação daquele, nessa oposição permitida pelo contato com o
não-eu (dialética do outro). Com isso, esse exercício do outro que permite ao Eu aparecer é
potencializado pelas práticas grupais dessas brincadeiras, pois cada um tem um papel e um
lugar em seu conjunto, permitindo que, conforme Nadel-Brulfert (1986), o outro seja o
iniciador de práticas sociais, como as próprias crianças demonstram ao brincar vivenciando
papéis como o de cuidar do ambiente doméstico. Concomitante a isso, acrescenta-se também
como a presença de outras crianças para brincar nas cenas implicam em recursos de interação
que constituem o meio dessas crianças e influenciam seu desenvolvimento, além, é claro, do
próprio espaço físico e das ideias que ali circulam.

Por fim, um último comentário a ser colocado envolve discutir, assim como
Nadel-Brulfert (1986), a tendência de se considerar crianças como seres em construção, como
se fossem projetos inacabados e incompletos. No entanto, diante das cenas, a riqueza de suas
brincadeiras e a dinâmica que se desenrola no brincar de casinha são marcadas não pela falta
de um por-vir, mas pela presença e complexidade de diversos processos que constituem a
criança naquela etapa de sua vida. Nota-se, conforme explicitado pelo autor, que em cada
fase do desenvolvimento estão presentes tanto processos já construídos como processos em
construção. Com isso, embora a criança seja um ser em transformação caracterizada por um
vir-a-ser, em sua idade atual elas brincam utilizando de todos seus órgãos e recursos, o que
assegura a atividade presente enquanto que as outras massas que se desenvolverão a
posteriori ainda não tem razão de ser. Quando brincam, as crianças utilizam todo seu
repertório atual de forma adaptativa para que executem as atividades que executam e, a partir
disso, os conflitos nesta constituição servirão de impulso para seu desenvolvimento. Assim,
nas brincadeiras das cenas que observamos, as crianças demonstram grandes potencialidades
em seus processos em construção, da mesma forma que não são meramente seres
“incompletos”, mas pessoas concretas com processos construídos e já em ação, afetadas e
afetando o mundo enquanto se constituem enquanto Eu psíquico, marcadas por sua
complexidade.
REFERÊNCIAS

Meirelles, R. & Reeks, D. (Diretores). (2018). Território do Brincar


[Documentário Online]. Maria Farinha Filmes; Alana. Disponível em:
Território do Brincar

Werebe, M. J. G.; Nadel-Brulfert, J. (1986). Proposições para uma leitura de


Wallon: em que aspectos sua obra permanece atual e original? Em M.
J. G. Werebe & J. Nadel-Brulfert (orgs.). Henri Wallon. São Paulo:
Ática. (p.7-36)

Wallon, H. (2005). A Pessoa. Em Henri Wallon. A evolução psicológica da


criança. Lisboa: Edições 70. (p.201-208)

Wallon, H. (1975). O papel do outro na consciência do eu. Em Henri Wallon.


Psicologia e Educação da infância. Lisboa: Estampa. (p. 149-162)

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