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SEQUÊNCIA 2
O Mostrengo
O texto abre com uma referência ao mostrengo (v. 1) e fecha aludindo a “El-Rei D. João Segundo!”
(v. 27). São exatamente eles os representantes das duas forças que se contrapõem no texto: o poder e os
perigos do mar (forças da natureza), representados pelo primeiro, e a determinação dos portugueses,
representada pelo segundo.
Ambos, mostrengo e rei, ocupam no texto um lugar de destaque. Um e outro são referidos, ao longo
do poema, por três vezes (notar as múltiplas referências cabalísticas ao número três: são três estrofes de
3 x 3 versos cada, o mostrengo voou três vezes, ambos os intervenientes dialogam três vezes…). Isso
acontece, quanto ao mostrengo, nos versos 1, 12, 24, e quanto ao rei, nos versos 9, 18, 27.
Os três versos em que é referida a pessoa do rei ocupam no poema a posição de refrão, facto que
coloca desde logo D. João Segundo em posição de superioridade em relação ao mostrengo. Ao mos-
trengo, além das referências aludidas, é dado ainda o privilégio de titular o poema, saindo assim valo-
rizada a vitória de El-Rei sobre ele.
Mas a contraposição de ambos, mostrengo e rei, não é feita diretamente. O mostrengo habita o mar,
“está no fim do mar” (notar o tom de enigma e a simbologia de fim – ele mora no ponto que se julgava
ser o fim, na lonjura, no desconhecido), é o senhor do mar e dos seus segredos (“Nas minhas cavernas
que não desvendo,/Meus tetos negros do fim do mundo”, vv. 6-7 – notar como o mar é apresentado
fechado no sentido do espaço e sem fim no sentido da profundidade, indiciando mistério), tem poder
sobre o mar (“o que só eu posso”, v. 14), identifica-se com o mar tenebroso e desconhecido (“moro onde
nunca ninguém me visse/E escorro os medos do mar sem fundo”, vv. 15-16 – notar a expressividade do
verbo escorrer, sugerindo que o mostrengo simboliza o mar, e a aliteração em m e o imperfeito do con-
juntivo visse, sugerindo a intenção do mostrengo em desejar continuar desconhecido).
Ao encontro desse poderio oculto, parte D. João Segundo, mas não diretamente, através de um
intermediário que enviou em seu nome – o homem do leme. O confronto é pois estabelecido entre o mos-
trengo e este último, que representa o rei e, na pessoa do rei, todo o povo português.
D. João II é a vontade, o homem do leme é o seu agente. Este navega numa nau (vv. 3, 10, 11, 19, 20, 22,
26), à roda da qual vai volutear três vezes (notar a insistência no n.º 3 cabalístico) o mostrengo. A sua
figura aparece construída à imagem da do Adamastor de Camões, mas não representa um monstro
disforme, como nos Lusíadas (V, 37-60), mas antes toma o aspeto semelhante ao de um morcego: voa
(v. 2), chia (v. 4 – notar a intenção de exprimir a voz do morcego e o seu nervosismo, por ver o seu domí-
nio ameaçado, através da musicalidade do verso: de sons como: u, ô, u, ê, ê, i, a), habita cavernas (v. 6) e
tetos negros (v. 7), roça nas velas da nau (v. 10), vê as quilhas de alto (v. 11), é imundo e grosso (v. 13 –
note-se que o adjetivo grosso é aproveitado de Camões).
Como se vê, Pessoa não se limitou a seguir o modelo camoniano, não se contentou com imitar os
traços do monstro do Cabo das Tormentas – antes apresenta dele uma perspetiva pessoal. Identificar
sem mais a figura do Adamastor com a do Mostrengo não será possível até porque a viagem de Vasco
da Gama, durante a qual aparece aos marinheiros portugueses o Adamastor, ocorre no reinado de
D. Manuel, enquanto que, no texto, é determinante a vontade de D. João Segundo – sem dúvida o
monarca mais expedito e esclarecido na causa do império.
Mas apesar dessas diferenças, ambas as personagens representam o mar desconhecido, os segredos
ocultados, o medo, os perigos que os portugueses se viram obrigados a enfrentar.
EXP12 © Porto Editora
Voltando ao mostrengo, pelos círculos que tece em roda da nau (vv. 3, 4, 12, 13, 25), ele parece querer
asfixiar os portugueses com a sua presença. Os argumentos de autoridade que evoca mais não preten-
dem que provocar neles o medo e levá-los a voltar para trás, a desistir do empreendimento começado.
2 Expressões • Português • 12.° ano Textos Informativos Complementares
Mas, diante da garbosidade do mostrengo, o homem do leme revela a humildade de quem tem consciên-
SILVA, Lino Moreira da, 1989. Do Texto à Leitura (Metodologia da Abordagem Textual)
Com a Aplicação à Obra de Fernando Pessoa. Porto: Porto Editora