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Otalmologia - Vol. 36: pp.

141-145

Artigo Original

Síndrome de Dispersão Pigmentar:


Abordagens Diagnósticas e Terapêuticas
Ana Martinho Silva1, Rui Fialho1, Filipe Braz1, José António Dias2, José Fernandes2,
Arabela Coelho2, Luísa Coutinho-Santos3
1
Médico Interno de Oftalmologia – Instituto de Oftalmologia Dr. Gama Pinto
2
Assistente Hospitalar Graduado de Oftalmologia – Instituto de Oftalmologia Dr. Gama Pinto
3
Directora do Serviço de Oftamologia – Instituto de Oftalmologia Dr. Gama Pinto

RESUMO

Introdução: O Síndrome de Dispersão Pigmentar é uma doença autossómica dominante, ca-


racterizada pela disrrupção do epitélio pigmentar da íris e consequente deposição dos grânulos
de pigmento no segmento anterior do globo ocular. A acumulação destes grânulos de pigmento
na rede trabecular origina uma disfunção trabecular progressiva e hipertensão ocular, que pode
associar-se ou não a neuropatia óptica glaucomatosa. A idade de aparecimento é entre a terceira
e quarta década de vida, o que leva a que muitas situações não sejam diagnosticadas.
Material e Métodos: Apresentação de caso clínico.
Discussão: Doente de 46 anos de idade, com história de hipertensão ocular não controlada com análo-
gos das prostaglandinas. Discute-se a evolução do quadro clínico nos últimos nove meses, nomeada-
mente as alterações na camada de bras nervosas da retina, usando terapêutica médica isoladamente e
a necessidade de uma terapêutica mais invasiva, para estabilização da neuropatia óptica glaucomatosa.

Palavras-chave
Síndrome de Dispersão Pigmentar, Glaucoma pigmentar, OCT da CA.

Pigment Dispersion Syndrome: Diagnostic and Therapeutic Manage-


ment
ABSTRACT

Introduction: Pigment dispersion syndrome is an autosomal dominant inheritance disease, cha-


racterised by the disruption of the iris-zonular rubbing and pigment dispersion in the anterior
segment of the eye. The accumulation of pigment granules in the meshwork leads to the obs-
truction o the aqueous outfow and ocular hypertension that can cause optic nerve damage. The
glaucoma tends to occur between the third and fourth decade of life, and many are undiagnosed.
Material and Methods: Review of clinical case.
Discussion: Patient with 46 years-old, with a history of ocular hypertension, not controlled with
prostaglandins analogues. This article discusses the evolution of the clinical case over the last
nine months, namely the mutations in the retina nerve bre layer when using medical treatment
alone and the need of a more aggressive treatment to stabilize the optic nerve damage.

Key-words
Pigment Dispersion Syndrome, Pigmentary glaucoma, CA OCT.

Vol. 36 - Nº 2 - Abril-Junho 2012 | 141


Ana Martinho Silva, Rui Fialho, Filipe Braz, José António Dias, José Fernandes, Arabela Coelho, Luísa Coutinho-Santos

INTRODUÇÃO de grânulos de pigmento que se vão depositar no segmento


anterior do globo ocular. Há, também, acumulação destes
O Síndrome de Dispersão Pigmentar (SDP) foi descrito grânulos de pigmento na rede trabecular. As células trabe-
em 1949 por Sugar e Barbour. O mecanismo de dispersão culares endoteliais fagocitam os grânulos de pigmento, o
do pigmento foi sugerido por Campbell em 1979: atrito que pode levar à sua lesão e morte celular por sobrecarga
entre o epitélio pigmentar da íris e a zonula e cápsula an- da capacidade fagocítica. Por outro lado, os macrófagos fa-
terior do cristalino. É uma doença autossómica dominante gocitam os pigmentos e detritos e obstruem os canais de
com penetrância variável, com mutação ao nível do braço drenagem do humor aquoso.
longo do cromossoma 7 (7q35-q36). Quinze por cento dos A disfunção trabecular progressiva e hipertensão ocular
doentes com SDP desenvolvem glaucoma pigmentar (GP) podem associar-se ou não a neuropatia óptica glaucoma-
ao m de 15 anos após o diagnóstico inicial deste síndrome. tosa. A idade de aparecimento é entre a terceira e quarta
O GP é uma forma rara de glaucoma secundário de ângulo década de vida, o que leva a que muitas situações não sejam
aberto. diagnosticadas.
O SDP é igualmente comum em ambos os sexos. No en- Os doentes com GP são assintomáticos, geralmen-
tanto a sua expressão fenotípica é cerca de três vezes mais te ambos os olhos são atingidos e em 80% dos casos são
frequente nos homens do que nas mulheres. É também mais míopes. Observam-se depósitos de pigmento da íris no en-
frequente nos jovens, míopes de raça branca. Nos homens, a dotélio da córnea, na região central, dispondo-se vertical-
idade média de aparecimento de glaucoma é aos 35 anos de mente, formando o fuso de Krukenberg. Existem defeitos
idade e nas mulheres cerca de dez anos mais tarde. Há uma de transiluminação na média periferia da íris, defeito que
tendência para a gravidade da doença diminuir ou desapa- desaparece se o atrito deixar de se vericar, por preenchi-
recer na sexta ou sétima década de vida. mento dos espaços com pigmento. Podem observar-se de-
Quanto às características anatómicas, os olhos são pósitos de pigmento na superfície da íris e sobre a cápsula
maiores que a média, a inserção da íris no corpo ciliar é anterior do cristalino e, ainda, abaulamento posterior da íris
mais posterior, a íris tem maior espessura, o que vai pro- periférica. A rede trabecular encontra-se homogeneamente
mover uma acção bombeadora da íris: são geradas forças pigmentada.
que permitem o movimento do humor aquoso da câmara A pressão intraocular (PIO) é muitas vezes normal no
posterior (CP) para a câmara anterior (CA), com os movi- SDP. A PIO inicialmente é muito instável, por isso uma úni-
mentos de pestanejar, criando o gradiente de pressão inver- ca medição não exclui hipertensão intraocular e glaucoma.
so – Mecanismo de bloqueio pupilar inverso. Assim, a íris O exercício físico intenso e midríase farmacológica po-
apoiada no cristalino, comporta-se como uma válvula uni- dem precipitar o aumento da PIO, provocando edema da
direccional, da CP para a CA. O aumento de pressão na CA córnea com visão turva e halos em torno das luzes.
provoca o abaulamento posterior da média periferia da íris, O tratamento médico do GP instituído é realizado com
que favorece o atrito mecânico do epitélio pigmentar da íris hipotensores oculares isolados ou em associação, nomea-
contra a zonula e face anterior do cristalino, com libertação damente análogos das prostaglandinas, beta-bloqueantes,
inibidores da anidrase carbónica, alfa-agonistas. Os mióti-
cos têm a vantagem de diminuir a PIO e eliminar o abau-
lamento posterior da íris, diminuindo o contacto irido-
-zonular. Têm a grande desvantagem de tornar este jovens
ainda mais míopes, tornando-se muito difícil tolerar esta
medicação.
Quando a terapêutica médica falha decide-se fazer tra-
beculoplastia LASER ou trabeculectomia. A iridotomia
periférica LASER é uma opção terapêutica adjuvante com
muito bons resultados.

CASO CLíICO

M.N.M., 46 anos, sexo feminino, raça caucasiana, re-


Fig. 1 | Mecanismo de bloqueio pupilar inverso. ferenciada para a consulta de glaucoma, com história de

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Síndrome de Dispersão Pigmentar: Abordagens Diagnósticas e Terapêuticas

hipertensão ocular não controlada com análogos das prosta-


glandinas, desde há 3 meses.
AF irrelevantes.

No exame oftalmológico destaca-se:


MAC O: 10/10 com -1,00 Dpt
Segmento anterior ODE: depósitos de pigmento da
íris no endotélio da córnea, na região central, dispondo-se
verticalmente, formando o fuso de Krukenberg (Fig. 2A).
Câmara anterior profunda, deposição de pigmento na su-
perfície da íris (Fig. 2B e 2C), defeitos de transiluminação
radiais na média periferia da íris, abaulamento posterior da
íris periférica (Fig. 7).
Fundo ocular: Relação E/D 3-4/10 OD e 4-5/10 OE
(Fig. 3A e 3B). ig. 2C | Aglomerado de pigmento sobre a superfície da íris.

ig. 2A | Fuso de Krukenberg.

ig. 3A | Fundo Ocular OD.

ig. 2B | Pigmento sobre a superfície da íris. ig. 3B | Fundo Ocular OE.

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Ana Martinho Silva, Rui Fialho, Filipe Braz, José António Dias, José Fernandes, Arabela Coelho, Luísa Coutinho-Santos

Pressão intraocular: Plano de actuação: manter a terapêutica e solicitar repe-


Tonometria de contorno dinâmico (PASCAL): tição de PEC e Gdx, para controlo da evolução da doença.
OD= 20,7 mmHg ;OE = 20,1 mmHg, Próxima consulta dentro de 4 meses.
APO = 3,8 ODE, Q=2.
Tonometria aplanação Goldmann:
OD = 19 mmHg e OE = 18 mmHg.
Espessura central da córnea:
OD 525µm, OE 535µm.
Gonioscopia: ângulo irido-corneano aberto, de grau
4 (Classicação de Shaer), rede trabecular homogenea-
-mente pigmentada (Fig. 4).

Fig. 4 | Gonioscopia. ig. 5 | Gdx OD (em cima) e Gdx OE (em baixo) - agravamento
da lesão da camada de bras nervosas ODE.

O estudo comparativo da polarimetria de varrimento


LASER (GDX), revelou uma diminuição da densidade de
bras nervosas, nos quadrantes superior e inerior ODE
(Fig. 5).
A perimetria estática computorizada (PEC), exame fun-
cional gold standard, mostrou constrição do campo visual
periférico em ambos os olhos, esboçando escotoma anelar
(Fig. 6A e 6B).
Realizou-se tomograa de coerência óptica (OCT) da
câmara anterior (CA), utilizando Visante®, onde se obser-
vou um abaulamento posterior da média periferia da íris
bilateralmente (Fig. 7).
Foi diagnosticado Glaucoma Pigmentar, realizou-se Iri-
dotomia LASER ODE e foi medicada com dorzolamida e
maleato de timolol. Após a iridotomia LASER vericou-se
aplanação da íris (Fig.8). A medição da PIO, com tonóme-
tro de aplanação de Goldmann, às 24horas, 1º mês, 4º mês
após iridotomia: OD 16, 18, 16 mmHg respectivamente;
OE 14, 16, 15 mmHg, respectivamente. Fig. 6A | PEC OD.

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Síndrome de Dispersão Pigmentar: Abordagens Diagnósticas e Terapêuticas

DISCUSSÃO

Apesar da baixa taxa de conversão do Síndrome de Dis-


persão Pigmentar em Glaucoma Pigmentar, estes doentes
precisam de ser acompanhados regularmente (3 a 4 vezes/
ano) como indivíduos suspeitos de glaucoma.
A progressão do glaucoma pigmentar é rápida e surge
numa faixa etária jovem, por isso não podemos tomar uma
atitude expectante, sendo muitas vezes necessário tomar
uma atitude terapêutica mais agressiva, para estabilização
da neuropatia óptica.

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ig. 8 | OCT da CA pós-iridotomia.

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