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Edição integral
Título do original:
Slapstick or Lonesome no more!
Copyright © Kurt Vonnegut, Jr.
Tradução de Ed Arten
ROMEO
Prólogo
•••
Havia muito pouco amor em seus filmes. Era frequente haver uma poética
situação de casamento, o que é diferente. Tratava-se, no entanto, de mais
uma prova — com possibilidades cômicas, desde que a ela todos se
submetessem de boa fé.
O amor jamais estava em questão. E talvez porque eu tenho sido tão
intoxicado e educado por Laurel e Hardy na minha infância, durante a
Grande Depressão, ache natural discutir a vida sem jamais falar de amor.
É algo que não me parece importante.
O que realmente parece importante? Lutar de boa fé com o destino.
•••
Tive algumas experiências com o amor, ou, pelo menos, acho que tive,
embora aquelas de que mais gostei possam ser facilmente descritas como
“decência mútua”. Por algum tempo tratei bem determinada pessoa, e essa
pessoa, por sua vez, me tratou igualmente bem. O amor nada tinha que ver
com isso.
Outra coisa: sou incapaz de distinguir entre o amor que tenho por gente
e o que sinto por cachorros.
Quando eu era criança e não estava vendo filmes cômicos ou ouvindo
os comediantes que trabalhavam no rádio, costumava passar um bocado de
tempo rolando nos tapetes com os afetuosos e nada críticos cachorros que
tínhamos.
E ainda faço isso. Os cachorros logo se cansam e ficam confusos e
desconcertados. Eu poderia continuar a vida toda.
Ai ô.
•••
•••
O amor está onde é encontrado. Acho que é tolice sair à sua procura, e
penso que muitas vezes isso pode ser prejudicial.
Eu gostaria de que as pessoas que, para seguir as convenções, declaram
que se amam dissessem umas às outras quando brigassem: — Por favor...
um pouco menos de amor e um pouco mais de respeito mútuo.
•••
Nós nos abraçamos talvez umas três ou quatro vezes — quase sempre em
aniversários, e muito desajeitadamente. Nunca nos abraçamos em
momentos de dor.
•••
•••
Uma vez eu disse ao meu irmão que, sempre que ia consertar qualquer coisa
na minha casa, acabava perdendo as ferramentas antes de terminar o
trabalho.
— Você tem sorte — replicou ele. — Eu sempre perco aquilo que estou
fazendo.
Demos risada.
•••
Mas, por causa do tipo de cérebro com que fomos dotados ao nascer, e a
despeito da desordem que caracteriza nossas mentes, Bernard e eu
pertencemos a uma enorme família. Podemos dizer que temos parentes
espalhados pelo mundo todo.
Ele é um irmão dos demais cientistas, onde quer que estejam. E eu sou
irmão de todos os escritores.
Isso é divertido e reconfortante para nós. É gostoso.
E é também uma sorte, porque os seres humanos precisam de todos os
parentes que possam ter — como possíveis doadores ou alvos, não
obrigatoriamente de amor, mas de respeito mútuo.
•••
•••
•••
Eles podiam andar pelo mundo todo quando eram jovens e, com frequência,
viviam aventuras maravilhosas. Mais cedo ou mais tarde, contudo, alguém
lhes diria que já era tempo de regressarem a Indianápolis e se aquietarem.
Eles obedeciam, invariavelmente — porque tinham vários parentes lá.
É claro que também havia boas coisas a serem herdadas — negócios
prósperos, casas confortáveis, fiéis empregados, crescentes montanhas de
porcelana, cristal e prataria, boas reputações de honestidade comercial,
bangalôs no lago Maxinkuckee, em cuja margem oriental minha família já
teve uma aldeia de casas de verão.
•••
Mas o prazer que a família encontrava em si própria foi permanentemente
lesado, creio eu, pelo súbito ódio que os americanos passaram a sentir por
tudo o que fosse alemão, quando entramos na Primeira Guerra Mundial,
cinco anos antes de eu nascer.
As crianças de nossa família não mais aprenderam alemão. Tampouco
foram encorajadas a admirar a música, a literatura, a arte ou a ciência
alemãs. Meu irmão e minha irmã foram criados como se a Alemanha fosse
um país tão estranho para nós quanto o Paraguai.
Retiraram-nos a Europa, exceto pelo que pudéssemos aprender na
escola.
Perdemos milhares de anos em um espaço de tempo muito curto — e
depois perdemos dezenas de milhares de dólares, que foram seguidos pelas
casas de verão e assim por diante.
E nossa família passou a ser muito menos interessante, especialmente
para si própria.
Assim, quando a Grande Depressão e uma Segunda Guerra Mundial
tinham terminado, foi fácil para meu irmão, minha irmã e eu próprio nos
afastarmos de Indianápolis.
E, de todos os parentes que lá deixamos, nenhum foi capaz de imaginar
uma razão pela qual devêssemos um dia voltar para casa.
Não mais pertencíamos a um determinado lugar. Passamos a ser peças
intercambiáveis da máquina americana.
•••
Sim, e a própria Indianápolis, que um dia já tivera seu modo todo particular
de falar inglês, bem como histórias, lendas, poetas, vilões e heróis só seus,
também se tornara, de sua parte, uma peça intercambiável da máquina
americana.
Apenas mais um lugar habitado por automóveis, e com uma orquestra
sinfônica e tudo o mais. Ah, sim — e uma pista de corrida de cavalos.
Ai ô.
•••
Meu irmão e eu ainda voltamos lá para assistir a enterros, claro. Fomos lá
no último mês de julho para os funerais do tio Alex Vonnegut, o irmão mais
moço do nosso falecido pai — praticamente o último dos parentes da velha
guarda, daqueles patriotas americanos que não temiam a Deus e cujas almas
eram europeias.
Ele tinha oitenta e sete anos de idade. Não tinha filhos. Formara-se por
Harvard. Era corretor de seguros aposentado. E era cofundador da seção de
Indianápolis dos Alcoólatras Anônimos.
•••
Seu necrológico no Indianapolis Star dizia que ele próprio não tinha sido
alcoólatra.
Essa negativa foi, pelo menos em parte, uma delicadeza nascida do
passado. Sei que ele bebia, embora o álcool jamais tivesse prejudicado
seriamente seu trabalho ou o deixado fora de si. Um dia ele parou de beber
de estalo. E certamente deve ter se apresentado nas reuniões dos AA, como
todos os seus membros têm que fazer, com seu nome — seguido pela
corajosa confissão: “Sou um alcoólatra”.
Sim, e a gentileza do jornal, negando que ele jamais tivesse tido
qualquer problema com o álcool, trazia em si a antiquada intenção de
preservar da mácula o resto de nós que usamos o mesmo nome.
Teríamos, todos, problemas para conseguir bons casamentos em
Indianápolis, ou conseguir bons empregos, se houvesse certeza de que
tínhamos tido parentes alcoólatras, ou que, como minha mãe e meu filho,
haviam sido pelo menos temporariamente insanos.
Até mesmo o fato de que minha avó materna morreu de câncer foi
mantido em segredo.
Imaginem só uma coisa dessas.
•••
De qualquer forma, tenho certeza de que, se tio Alex, o ateu, foi parar
diante de São Pedro nos portões do céu, se apresentou assim:
“Meu nome é Alex Vonnegut. Eu sou alcoólatra”.
Melhor para ele.
•••
Imagino também que a solidão o levou a procurar os AA tanto quanto o
receio de se envenenar pelo álcool. Quando seus parentes morreram,
desapareceram ou simplesmente se tornaram peças intercambiáveis da
máquina americana, ele saiu procurando novos irmãos e irmãs, e sobrinhos
e sobrinhas, e tios e tias, e assim por diante, os quais encontrou nos
Alcoólatras Anônimos.
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Quando eu era criança, ele costumava me dizer o que eu devia ler, cuidando
de verificar depois se eu lera mesmo. Também se divertia me levando a
visitar parentes que eu nunca soubera que existiam.
Tio Alex me contou uma vez que fora espião americano em Baltimore
durante a Primeira Grande Guerra, fazendo-se amigo de germano-
americanos que moravam lá. Sua missão era descobrir agentes inimigos.
Nunca descobriu nada, pois não havia o que descobrir.
Ele me contou também que foi investigador em Nova York por algum
tempo — até que seus pais lhe disseram que já era hora de voltar para casa
e se casar. Foi quando descobriu um escândalo envolvendo enormes
despesas para a manutenção do túmulo de Grant, o qual, na verdade,
requeria muito pouca manutenção.
Ai ô.
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Telefonei então para meu irmão em Albany. Ele estava prestes a fazer
sessenta anos. Eu tinha cinquenta e dois.
Claro que não éramos mais garotos.
Mas Bernard ainda desempenhava o papel do irmão mais velho. Foi ele
quem providenciou nossas passagens na TWA, e o nosso carro no aeroporto
de Indianápolis e o nosso quarto com duas camas em um Ramada Inn.
A cerimônia, tal como os funerais de muitos outros parentes próximos e
de nossos pais, foi uma coisa tão secular, tão carente de ideias sobre Deus,
ou a vida depois da morte, ou, até mesmo, a respeito de Indianápolis,
quanto o nosso Ramada Inn.
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Meu irmão e eu já tínhamos assumido o comando de sua casa. Depois da
morte de Alice, seus três filhos mais velhos, com idades variando de oito a
catorze anos, realizaram uma reunião de que nenhum adulto pôde participar.
Quando saíram da sala pediram que atendêssemos a dois pedidos apenas:
que ficassem juntos e que pudessem conservar seus dois cachorros. O filho
mais novo, que não esteve presente à reunião, era um bebê com cerca de um
ano de idade.
Daí em diante, os três mais velhos foram criados por mim e minha
mulher, Jane Cox Vonnegut, juntamente com nossos três filhos, em Cape
Cod. O bebê, que ficou conosco por algum tempo, foi adotado por um
primo do pai, que é agora juiz em Birmingham, no Alabama.
Os três mais velhos ficaram com os cachorros.
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Ainda me lembro do que um dos filhos dela, aquele que se chama “Kurt”,
tal como eu próprio e meu pai, me perguntou quando íamos de Nova Jersey
para Cape Cod, com os dois cachorros na parte de trás do carro. Ele tinha
cerca de oito anos.
Estávamos nós dois sozinhos. Seus irmãos já tinham seguido antes.
— Os garotos lá são bonzinhos? — perguntou ele.
— São, sim — respondi.
Ele agora é piloto da aviação comercial.
Todos são agora uma coisa ou outra — menos crianças.
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Enquanto meu irmão e eu esperávamos que o avião levantasse voo para
Indianápolis, ele me presenteou com uma anedota de Mark Twain — a
respeito de uma ópera que Twain vira na Itália. Twain disse que nunca
ouvira algo como aquilo “... desde a ocasião em que o orfanato se
incendiara”.
Demos risadas.
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Ele me perguntou polidamente pelo meu trabalho. Acho que respeita minha
vocação, mas não a entende bem.
Eu disse que estava cheio de tudo, mas que sempre estivera cheio do
meu trabalho. Aproveitei para citar um comentário atribuído à escritora
Renata Adler, que odeia escrever, de que um escritor é uma pessoa que
detesta escrever.
Disse-lhe também que meu agente, Max Wilkinson, me escrevera o
seguinte, depois de eu ter me lastimado da profissão desagradável que
seguira: “Prezado Kurt — jamais conheci um ferreiro apaixonado por sua
bigorna”.
Demos risada de novo, mas acho que a piada passou meio despercebida
para meu irmão. A vida dele sempre foi uma interminável lua de mel com
sua bigorna.
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Acendi um cigarro.
Bernard não fuma mais, porque é importante que ele viva muito. Ainda
tem dois garotos pequenos para criar.
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Sim, e enquanto meu irmão mais velho meditava sobre as nuvens, a mente
com que fui dotado imaginava a história contida neste livro. É a respeito de
cidades desoladas, canibalismo espiritual, incesto, solidão, desamor, morte,
e assim por diante. Ela me apresenta, e à minha linda irmã, como monstros,
e assim por diante.
O que é natural, já que imaginei tudo a caminho de um enterro.
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Estou descalço. Visto uma toga púrpura, feita com cortinas encontradas no
Americana Hotel.
Sou ex-presidente dos Estados Unidos da América. Fui o último
presidente, o mais alto de todos, e o único que veio a se divorciar enquanto
na Casa Branca.
Moro no primeiro andar do Empire State, com minha neta de dezesseis
anos, que se chama Melody Papa-Figo-2 von Peterswald, e seu amante,
Isadore Framboesa-19 Cohen. Temos o prédio todo só para nós.
Nosso vizinho mais próximo mora a um quilômetro e meio de distância.
Acabo de ouvir um de seus galos cantar.
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Nosso vizinho mais próximo é Vera Esquilo-5 Zappa, mulher que ama a
vida e nisso é melhor do que qualquer outra pessoa. É uma fazendeira forte,
cheia de vida e que trabalha duro, com seus sessenta e poucos anos de
idade. Parece um hidrante. Tem escravos, a quem trata muito bem. Ela e os
escravos criam gado, porcos, galinhas e cabras, plantam milho e trigo,
verduras, frutas e uvas ao longo das margens do rio East.
Eles construíram um moinho de vento para moer os cereais, um
alambique para destilar o brandy, um fumeiro, etc., etc.
— Vera — disse-lhe outro dia —, se você nos escrevesse uma nova
Declaração da Independência seria a Thomas Jefferson dos tempos atuais.
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Algo que vivo dizendo atualmente: “Ai ô”. É uma espécie de soluço senil.
Vivi demais.
Ai ô.
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A gravidade está muito fraca hoje. Tive uma ereção por causa disso. Todos
os homens têm ereções em dias assim. Uma consequência automática da
quase imponderabilidade. Na maioria dos casos pouco têm que ver com
erotismo, sendo que nada têm que ver com isso na vida de um homem da
minha idade. São experiências hidráulicas — resultados de um
encanamento confuso, e pouco mais.
Ai ô.
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A gravidade está tão fraca hoje que acho que poderia correr até o topo do
Empire State com uma tampa de bueiro e arremessá-la em Nova Jersey.
Seria sem dúvida um aperfeiçoamento da façanha de George
Washington jogando um dólar de prata do outro lado do Rappahannock. E
ainda existe gente que insiste em dizer que não existe o que se chama
progresso.
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Às vezes sou chamado “o Rei dos Candelabros”, porque tenho mais de mil.
Mas gosto mais do meu primeiro sobrenome, que é “Narciso Silvestre-
11”. E escrevi um poema sobre ele e sobre a própria vida, claro:
Quem lerá isso? Só Deus sabe. Melody e Isadore não, claro. Como
todos os outros jovens desta ilha, eles não sabem ler ou escrever.
Não têm curiosidade a respeito do passado humano, nem sobre a vida
no continente.
No que lhes diz respeito, a mais gloriosa realização de todo aquele
mundo de gente que habitou esta ilha foi morrer, para que pudéssemos ter
tudo só para nós.
Pedi-lhes uma noite destas que me dissessem quais tinham sido os três
seres humanos mais importantes da história. Protestaram, dizendo que a
pergunta não fazia sentido.
Insisti, dizendo que pensassem juntos e me dessem qualquer resposta,
que foi o que fizeram. Mostraram-se muito zangados com esse exercício.
Foi doloroso para eles.
Finalmente apareceram com uma resposta. É Melody quem fala pelos
dois quase sempre, e foi isso o que ela me disse, com toda a seriedade: —
Você, Jesus Cristo e Papai Noel.
Ai ô.
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Quando não lhes faço perguntas, eles são felizes como mariscos.
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Nasci aqui mesmo na cidade de Nova York. Não era então um “Narciso
Silvestre”. Fui batizado Wilbur Rockefeller Swain.
Além disso, não estava sozinho. Tinha uma gêmea. Chamada Eliza
Mellon Swain.
Fomos batizados no hospital, e não numa igreja, e não estávamos
cercados por parentes e amigos de nossos pais. O problema era que Eliza e
eu éramos tão feios que nossos pais ficaram com vergonha.
Éramos monstros, e esperavam que não vivêssemos muito. Tínhamos
seis dedos em cada mãozinha e outros seis em cada pezinho. Também
tínhamos mamilos extras — dois pares para cada um de nós.
Não éramos mongoloides idiotas, embora tivéssemos o cabelo preto e
grosso típico dos mongoloides. Éramos algo novo. Éramos,
neandertaloides. Tínhamos o aspecto de seres humanos adultos e fósseis,
mesmo na infância — maciços sobrecenhos, testas onduladas e mandíbulas
como pás de escavadeira.
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Nossos pais eram duas pessoas tolas, bonitas e muito jovens chamadas
Caleb Mellon Swain e Letitia Vanderbilt Swain, née Rockefeller. Eram
fabulosamente ricos e descendiam de americanos que tudo fizeram para
arruinar o planeta, em um delírio idiota — transformando obsessivamente
dinheiro em poder, depois poder em dinheiro e, de novo, dinheiro em poder.
Mas Caleb e Letitia eram pessoalmente inofensivos. Papai era muito
bom no jogo de gamão, diziam, e regular em fotografia colorida. Mamãe
empenhava-se na Associação Nacional para o Progresso da Gente de Cor.
Nenhum dos dois trabalhava. Nenhum se formara em universidade, embora
ambos houvessem tentado.
Escreviam e falavam lindamente. Adoravam-se. Mostravam-se
humildes por se terem saído tão mal nos estudos. Eram gentis.
E não posso culpá-los pelo abalo que sentiram por serem pais de dois
monstros. Qualquer um se abalaria por gerar Eliza e eu.
•••
E Caleb e Letitia foram tão bons pais quanto eu, quando chegou a minha
vez. Eu não podia suportar meus próprios filhos, embora fossem normais
em todos os sentidos.
Talvez eu tivesse gostado mais deles se fossem monstros como Eliza e
eu.
Ai ô.
•••
•••
Carpinteiros, eletricistas e encanadores foram levados para lá para
transformar aquilo em uma espécie de paraíso para Eliza e para mim. Foi
colocado um grosso revestimento de borracha sob os tapetes que iam de
parede a parede, para o caso de cairmos. Nossa sala de jantar foi ladrilhada
e recebeu valetas no chão, para que nós e a sala pudéssemos receber uma
boa lavada após cada refeição.
O mais importante talvez fossem as duas cercas que ergueram ali,
encimadas por arame farpado. A primeira fechava o pomar. A segunda
isolava a mansão dos olhos curiosos dos trabalhadores que tinham de vir ao
pomar de vez em quando para cuidar das macieiras.
Ai ô.
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•••
Sim, e foi fácil para nossos pais comprar a lealdade desses fósseis vivos.
Foram-lhes destinados modestos salários, que pareciam enormes para eles,
já que em seus cérebros os lobos de fazer dinheiro eram muito primitivos.
Receberam bons apartamentos na mansão e aparelhos de TV em cores.
Foram estimulados a comer como imperadores, mandando a conta do que
desejassem para meus pais. Tinham muito pouco que fazer.
Ou melhor, não tinham muito em que pensar. Foram colocados sob o
comando de um jovem clínico-geral que morava na aldeia, o Dr. Stewart
Rawlings Mott, que ia nos ver todos os dias.
O Dr. Mott, que por sinal era texano, era um rapaz melancólico e
introvertido. Até hoje não sei o que o induziu a se afastar tanto dos seus e
de sua terra — para exercer a medicina numa aldeia esquimó do Vermont.
Uma curiosa nota nesta história, que provavelmente não tem maior
significado: o neto do Dr. Mott se tornaria o rei de Michigan durante o meu
segundo mandato como presidente dos Estados Unidos.
Tenho que soluçar de novo: Ai ô.
•••
Juro que, se viver até o fim desta autobiografia, revisarei tudo e cortarei
todos os “ai ô”.
Ai ô.
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Essa foi uma das poucas ocasiões, exceto quando do falecimento de Papai,
em que ele e Mamãe estiveram separados por mais de um ou dois dias. E
Papai escreveu uma graciosa carta para Mamãe, que descobri na mesinha de
cabeceira dela após a sua morte.
Deve ter sido a única correspondência que trocaram pelo correio.
“Minha amada Tish”, escreveu ele. “Nossos filhos ficarão muito felizes
aqui. Podemos nos orgulhar. O arquiteto pode se orgulhar. Os operários
podem se orgulhar.
“Por mais curtas que possam ser as vidas de nossos filhos, nós lhes
teremos concedido as dádivas da dignidade e da felicidade. Criamos um
delicioso asteroide para eles, um pequeno mundo com uma mansão e o
resto coberto por macieiras.”
•••
Ele regressou depois para o seu próprio asteroide — em Turtle Bay. Daí em
diante, também seguindo os conselhos tios médicos, ele e Mamãe nos
visitariam uma vez por ano, sempre no dia do nosso aniversário.
A pedra com que foi construída sua casa ainda está de pé, e ainda é
aconchegante e protegida. É lá que nossa vizinha mais próxima, Vera
Esquilo-5 Zappa, abriga seus escravos.
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•••
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O Professor Swain foi, destacadamente, o mais inteligente dos antepassados
de que temos notícia, incluindo-se aí os Rockefeller, Dupont, Mellon,
Vanderbilt, Dodge e todos os demais. Graduou-se pelo Massachusetts
Institute of Technology aos dezoito anos de idade, indo organizar o
Departamento de Engenharia Civil da Universidade de Cornell aos vinte e
dois. A essa época já possuía diversas patentes importantes relativas a
pontes ferroviárias e mecanismos de segurança, as quais, sozinhas, já
seriam o bastante para fazer dele um milionário.
Mas não se sentia satisfeito. E por isso criou a Companhia de Pontes
Swain, a qual planejou e supervisionou a construção das pontes ferroviárias
de todo o mundo.
•••
Ele era um cidadão do mundo. Falava muitos idiomas e era amigo pessoal
de muitos chefes de Estado. Mas quando chegou a hora de construir um
palácio só seu, colocou-o entre as macieiras de seus ignorantes
antepassados. E era a única pessoa que gostava daquela construção incrível
até o dia em que Eliza e eu aparecemos. Fomos tão felizes ali!
•••
•••
Também partilhávamos outro segredo com o professor — que descobrimos
ao mexer em alguns documentos da casa. Seu sobrenome materno não era
“Roosevelt”. Ele o adotara a fim de parecer mais aristocrático quando se
matriculara no MIT.
O nome que constava de sua certidão de batismo era Elihu Witherspoon
Swain.
Suponho que tenha sido graças a seu exemplo que Eliza e eu um dia
resolvemos dar a todo o mundo novos sobrenomes.
Capítulo 4
Quando o Professor Swain morreu, era tão gordo que não sei como pôde
caber em qualquer uma de suas passagens secretas. Elas eram muito
estreitas. Eliza e eu cabíamos, mesmo com nossos dois metros de altura —
porque os tetos eram muito altos.
Sim, e o Professor Swain morreu de tão gordo, em sua mansão, durante
um jantar que deu em honra de Samuel Langhorne Clemens e Thomas Alva
Edison.
Bons tempos aqueles.
Eliza e eu achamos o cardápio. Começava com sopa de tartaruga.
•••
Nossos criados comentavam entre si, de vez em quando, que a casa era mal-
assombrada. Ouviam espirros e estalos nas escadas onde não havia escadas,
assim como portas abrindo e fechando onde não havia portas.
Ai ô.
•••
•••
Imaginem: estávamos nos centros das vidas daqueles que cuidavam de nós.
Eles podiam ser heroicamente cristãos aos seus próprios olhos se Eliza e eu
continuássemos a ser indefesos e detestáveis. Se nos tornássemos
abertamente inteligentes e autoconfiantes, eles passariam a ser auxiliares
banais e inferiores. Se fôssemos capazes de sair para o mundo, eles
perderiam seus apartamentos, suas TVs coloridas, a ilusão de ser uma
espécie de médicos e enfermeiras, além dos empregos muito bem pagos.
Então, desde o começo de tudo, e sem saber ao certo o que estavam
fazendo, eles nos imploravam mil vezes por dia para que continuássemos
indefesos e detestáveis.
Só houve um pequeno progresso na escala das realizações humanas que
eles desejavam que fizéssemos. Desejavam com todas as forças que nos
tornássemos capazes de ir ao banheiro.
E nós? Concordamos alegremente.
•••
Mas podíamos ler e escrever inglês desde os quatro anos. Somos capazes de
ler e escrever em francês, alemão, italiano, latim e grego antigo aos sete
anos. Além da álgebra, claro.
Havia milhares de livros na mansão. Aos dez anos de idade já tínhamos
lido todos eles, à luz de velas, na hora da sesta ou quando íamos dormir à
noite — nas passagens secretas, ou, muitas vezes, no mausoléu de Elihu
Roosevelt Swain.
•••
•••
Hesito até hoje entre pensar que o Dr. Mott gostava de Eliza e de mim,
sabia como éramos espertos e desejava nos proteger das crueldades do
mundo, e pensar que ele fosse um idiota.
Depois que Mamãe morreu, descobri que a arca ao pé de sua cama
estava atulhada com os pacotes dos relatórios bissemanais do Dr. Mott
acerca da saúde de Eliza e da minha. Ele falava das quantidades cada vez
maiores de comida que ingeríamos e expelíamos. Falava, também, de nossa
incansável alegria e de nossa resistência natural às doenças da infância.
As coisas que ele relatava, contudo, eram do tipo das que um aprendiz
de carpinteiro não teria problema em detectar — como, por exemplo, que,
aos nove anos, nós dois tínhamos mais de dois metros de altura.
Fosse qual fosse a altura consignada em seus relatórios, entretanto, um
dado permanecia constante — nossa idade mental oscilava entre os dois e
os três anos.
Ai ô.
•••
O Dr. Mott, juntamente com minha irmã, é uma das poucas pessoas a que
estou realmente sequioso de ver na outra vida. Morro de vontade de lhe
perguntar o que realmente pensava de nós quando crianças — de que ele
suspeitava, e o quanto sabia.
•••
•••
Gostaria de saber também qual era sua mágoa. Eliza e eu, quando crianças,
vivíamos tão enrolados um no outro que raramente nos dávamos conta das
condições emocionais das outras pessoas. Mas sem dúvida nenhuma
ficamos impressionados com a melancolia do Dr. Mott. Por isso mesmo,
deve ter sido algo bem profundo.
•••
Perguntei uma vez a seu neto, o rei de Michigan, Stewart Papa-Figo-2 Mott,
se ele tinha alguma ideia de por que o Dr. Mott achava a vida um negócio
tão triste. — A gravidade ainda era normal — observei. — O céu ainda não
deixara de ser azul para ser amarelo, nunca mais voltando ao azul antigo.
Os recursos naturais do planeta ainda não tinham chegado ao fim. O país
ainda não fora despovoado pela gripe albanesa e pela Morte Verde.
“Seu avô tinha um bom carrinho e uma boa casinha e uma boa clínica e
uma bela mulherzinha e uma bela filhinha”, continuei. “E mesmo assim ele
vivia se lastimando!”
Minha entrevista com o rei, a propósito, teve lugar em seu palácio
situado no lago Maxinkuckee, no norte do Estado de Indiana, onde
antigamente era a Academia Militar Culver. Pela lei eu ainda era o
presidente dos Estados Unidos da América, mas já tinha perdido o controle
de tudo. Não havia mais Congresso, ou Tribunais Federais, Tesouro,
Exército ou coisa alguma desse gênero.
Havia talvez apenas umas oitocentas pessoas em toda a Washington. E
eu tinha sido reduzido a um único empregado quando fui apresentar meus
respeitos ao rei de Michigan.
Ai ô.
•••
•••
O rei ficou impaciente quando o pressionei para falar mais a respeito de seu
avô, o Dr. Mott.
— Pelo amor de Deus — disse-me ele. — Qual é o americano que sabe
de alguma coisa a respeito de seu avô?
•••
Naquele tempo ele era um jovem e ascético soldado, muito magro e
submisso. Quando minha neta, Melody, veio a conhecê-lo, tinha se
transformado em um velho gordo e obsceno enrolado em mantos
incrustados de pedras preciosas.
•••
•••
Que é felicidade?
No caso de Eliza e no meu, felicidade era estarmos perpetuamente na
companhia um do outro, com muitos criados e comida boa, morando numa
mansão tranquila e cheia de livros, num asteroide coberto de macieiras. E
crescendo como metades especializadas de um só cérebro.
Embora nos agarrássemos e nos abraçássemos muito, nossas intenções
eram puramente intelectuais. É verdade — Eliza amadureceu sexualmente
aos sete anos. Eu, porém, não entraria na puberdade senão no meu último
ano na Escola de Medicina de Harvard, com vinte e três anos. Eliza e eu
usávamos o contato corporal apenas para aumentar a intimidade de nossos
cérebros.
Geramos assim um único gênio, que morria logo que nos separávamos,
e que ressuscitava no momento em que nos juntávamos.
•••
•••
Sim, era eu que lia tudo. E agora me parece que não há um só livro
publicado em qualquer das línguas indo-europeias antes da Primeira Guerra
Mundial que eu não tenha lido em voz alta.
Mas era Eliza quem memorizava tudo, e quem dizia o que teríamos de
aprender em seguida. Era Eliza que tinha a capacidade de reunir ideias
aparentemente sem relação a fim de obter uma nova. Era Eliza que
justapunha.
•••
•••
•••
•••
Ai ô.
Capítulo 7
Que bom teria sido — especialmente para Eliza, que era uma menina, se
fôssemos uns patinhos feios — se pouco a pouco tivéssemos nos tornado
bonitos. Mas simplesmente ficávamos mais horrorosos a cada dia que
passava.
Havia umas poucas vantagens em ser um homem de dois metros de
altura. Eu era respeitado como jogador de basquete no colégio e na
faculdade, muito embora tivesse ombros estreitos e uma voz de flauta. Eu
nem sequer tinha os primeiros indícios de barba, ou pelos pubianos. Sim, e
mais tarde, quando minha voz já tinha engrossado e fui candidato a senador
por Vermont, pude dizer nos cartazes, ignorando meus dedos e mamilos
extras: “É preciso um grande homem para fazer grandes coisas!”
Mas Eliza, que era exatamente tão alta quanto eu, não podia esperar
uma acolhida agradável em parte alguma. Não havia papel convencional
concebível para uma mulher com doze dedos nas mãos e outros doze nos
pés, quatro seios, um cérebro neandertaloide semigenial, e que pesava um
quintal e tinha dois metros.
•••
•••
Houve uma época de nossa infância em que realmente achávamos que
éramos felizes por não sermos felizes. Sabíamos, através de todas as
novelas românticas que eu lera com minha voz esganiçada e muitos gestos,
que as pessoas bonitas tinham sua intimidade destruída por estranhos que se
apaixonavam por elas.
Não queríamos que isso nos acontecesse, já que juntos nós dois
compúnhamos não apenas um cérebro único, como também um universo
totalmente habitado.
•••
Mas pelo menos tenho uma coisa a dizer a favor de nossa aparência: nossa
roupa era a melhor que o dinheiro podia comprar. Nossas espantosas
medidas, que mudavam radicalmente quase que de mês em mês, eram
remetidas com regularidade pelo correio, de acordo com instruções de
nossos pais, a alguns dos melhores alfaiates, sapateiros, costureiros e
camiseiros do mundo.
As enfermeiras que nos vestiam demonstravam um entusiasmo infantil,
mesmo que jamais fôssemos a parte alguma, em nos preparar para
imaginários eventos sociais próprios de milionários — chás, exposições de
cavalos, férias em centros de esqui, escolas caríssimas, ou para uma noitada
de teatro aqui em Manhattan, completada por uma ceia com muito
champanha.
E assim por diante.
Ai ô.
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•••
Papai falava com Mamãe a respeito de algo que lera numa revista, no dia
anterior. Parecia que cientistas da República Popular da China estavam
experimentando fazer seres humanos menores, para que não precisassem
comer tanto ou vestir roupas tão grandes.
Mamãe contemplava o fogo. Papai teve de repetir a história dos
chineses. Da segunda vez, ela respondeu, vagamente, que achava que os
chineses podiam fazer qualquer coisa que quisessem.
Apenas um mês antes, os chineses haviam mandado duzentos
exploradores a Marte — sem usar qualquer veículo espacial.
Nenhum cientista ocidental foi capaz de descobrir como a coisa tinha
sido feita. Por seu lado, os chineses não deram maiores detalhes.
•••
Mamãe disse que fazia muito tempo que os americanos não descobriam
nada.
— De uma hora para outra — comentou ela —, tudo passou a ser
descoberto pelos chineses.
•••
•••
Era o tipo da conversa boba. Com aquele nível de animação tão baixo era
como se nossos jovens e belos pais de Manhattan estivessem enterrados em
mel até o pescoço. Pareciam estar, como Eliza e eu sempre achávamos, sob
a influência de uma maldição que os obrigasse a falar apenas de coisas que
não lhes interessassem.
E, na verdade, estavam mesmo amaldiçoados. Só que Eliza e eu não
tínhamos adivinhado de que se tratava: que eles se viam estrangulados e
paralisados pelo desejo de que seus próprios filhos morressem.
Mas sou capaz de jurar por eles, embora a única prova de que disponho
seja o meu sentimento: nenhum dos dois, nem Papai nem Mamãe, jamais
deu sequer a entender para o outro que desejava nossa morte.
Ai ô.
•••
•••
E não se passaram muitos segundos antes que Mamãe dissesse com toda a
clareza a quem odiava, desvanecendo a nossa tola convicção de que ela
estava se referindo aos chineses.
— Odeio Wilbur Rockefeller Swain e Eliza Mellon Swain — foi o que
ela disse.
Capítulo 10
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•••
Para que fique claro que não estou implorando simpatia, permitam-me que
diga que Eliza e eu éramos tão emocionalmente vulneráveis naquele tempo
como uma montanha de granito.
Precisávamos tanto do amor de um pai e de uma mãe quanto um peixe
precisa de uma bicicleta.
Assim, quando Mamãe falou mal de nós, e até desejou que
morrêssemos, nossa reação foi intelectual. Gostávamos de resolver
problemas. Talvez seu problema pudesse ser resolvido por nós — não com
o nosso suicídio, claro.
Ela acabou por se recuperar. Preparou-se para outros cem aniversários
com Eliza e comigo, caso Deus assim o quisesse, para testá-la. Mas, antes,
afirmou:
— Caleb, eu daria qualquer coisa pelo menor indício de inteligência,
pelo mais elementar brilho de humanidade nos olhos de qualquer um dos
gêmeos.
•••
•••
Ai ô.
Capítulo 11
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Nossa mãe não desceu para tomar café. Ficou na cama, petrificada.
Papai desceu sozinho. De pijama, a barba por fazer. Mesmo jovem
como era, parecia entorpecido e abatido.
Eliza e eu nos espantamos ao ver que sua aparência não era feliz. Nós o
cumprimentamos não só em inglês, como também nas várias línguas que
conhecíamos.
Afinal, ele respondeu numa das línguas estrangeiras:
— Bonjour — disse.
— Sentai-vos! Sentai-vos! — disse, brincando, Eliza.
O coitado sentou-se.
•••
Estava doente de culpa, claro, por ter permitido que seres humanos
inteligentes, sua própria carne e seu sangue, tivessem sido tratados como
idiotas tanto tempo. Pior: sua consciência e seus conselheiros disseram-lhe
que o certo era ele não poder nos amar, já que éramos incapazes de
sentimentos, e já que não havia nada em nós, objetivamente, que qualquer
pessoa em seu juízo perfeito pudesse amar. Mas agora era seu dever nos
amar e ele achava que não poderia.
Não era culpa de Papai ou de Mamãe. Não era culpa de ninguém. Era
tão natural quanto respirar para todos os seres humanos, e todas as criaturas
de sangue quente, desejar uma morte rápida para dois monstros. Chegava a
ser um instinto.
E agora Eliza e eu tínhamos elevado aquele instinto a um nível
intolerável de tragédia.
Sem saber o que estávamos fazendo, Eliza e eu estávamos colocando a
tradicional maldição que os monstros lançam sobre as criaturas normais.
Estávamos pedindo admiração.
Capítulo 12
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Em quatro dos seis dias que se passaram desde que comecei a escrever, a
gravidade esteve regular — aquilo que costumava ser nos velhos tempos.
Ontem estava tão forte que mal pude me levantar da cama, um ninho de
trapos no saguão do Empire State. Quando tive que ir ao poço do elevador
que uso como banheiro, atravessando minha floresta de candelabros, me vi
forçado a rastejar.
Ai ô.
Bem, a gravidade estava fraca no primeiro dia e hoje está de novo. Tive
uma ereção novamente, tal como Isadore, o amante de minha neta Melody.
Tal como acontece com todos os homens da ilha.
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Posso desejar a Melody aquilo que nossos pais desejaram a Eliza e a mim:
uma vida curta, mas feliz, em um asteroide.
Ai ô.
•••
Sim, e como já disse, Eliza e eu poderíamos ter tido uma vida longa e feliz
em nosso asteroide, se um dia não tivéssemos exibido nossa inteligência.
Poderíamos estar ainda na mansão queimando as árvores, a mobília, os
corrimões e os painéis de madeira das paredes para nos aquecer, babando e
balbuciando quando aparecessem estranhos.
Poderíamos ter criado galinhas. Cultivado uma pequena horta. E ter nos
divertido com nossa sempre crescente sabedoria, sem ligar a mínima para
sua possível utilidade.
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•••
Estão planejando uma festa para o meu centésimo primeiro aniversário,
daqui a um mês.
Às vezes escuto disfarçadamente o que falam. É difícil a gente se livrar
de um velho hábito. Vera Esquilo-5 Zappa está fazendo fantasias novas
especialmente para a ocasião — não só para ela própria como também para
seus escravos. Vera tem montanhas de tecido em seus depósitos em Turtle
Bay. Os escravos usarão pantalonas cor-de-rosa e sandálias douradas, foi o
que ouvi dizer. E turbantes de seda verde com plumas de avestruz.
Vera fará sua entrada sentada numa liteira, foi o que eu soube, cercada
por escravos carregando presentes, comida, bebidas e archotes, e afastando
os cães selvagens com o clangor de sinetas.
Ai ô.
•••
Tenho que ter muito cuidado com a bebida na minha festa de aniversário. Se
eu beber demais, poderei deixar escapar o segredo: que a vida que nos
espera depois da morte é infinitamente mais monótona que a atual.
Ai ô.
Capítulo 15
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•••
Bem cedo, contudo, viemos a sofrer os primeiros problemas advindos da
separação. Alguns dos exames exigiam que ficássemos separados por vários
cômodos. Quanto mais aumentava a distância entre Eliza e mim, mais eu
sentia como se minha cabeça estivesse se transformando em madeira.
Tornava-me burro e inseguro.
Conversando com Eliza, ela me disse que sentira coisa bem semelhante:
— É como se meu crânio estivesse recheado de xarope de panqueca.
E, corajosamente, tentamos nos divertir em vez de nos amedrontar com
as crianças apáticas em que nos transformávamos ao nos separar. Fingimos
que não tinham nada que ver conosco e até inventamos nomes para elas:
Betty e Bobby Brown.
•••
E o momento agora é tão oportuno quanto qualquer outro, creio eu, para
contar que, ao ler o testamento de Eliza, morta em uma avalancha marciana,
descobrimos que ela queria ser enterrada onde quer que morresse. Sua
sepultura devia ser assinalada por uma lápide simples, onde seria gravada a
seguinte informação, e nada mais:
•••
Sim, e foi a última especialista a nos examinar, uma psicóloga chamada
Dra. Cordelia Swain Cordiner, quem decretou que Eliza e eu deveríamos
ficar permanentemente separados, ou seja, que nos tornássemos para
sempre Betty e Bobby Brown.
Capítulo 16
•••
Tenho uma Enciclopédia britânica aqui no Empire State, e é por isso que
sou capaz de citar o nome completo de Dostoiévski.
•••
•••
A Dra. Cordiner tinha tanta raiva de todo o dinheiro e poder de nossa
família que não creio que percebesse o quanto éramos feios e enormes. Para
ela éramos apenas dois meninos ricos e estragados.
— Eu não nasci em berço de ouro — disse-nos ela, não uma, mas
muitas vezes. — Era frequente não sabermos quando comeríamos de novo.
Vocês têm ideia do que seja isso?
— Não — dizia Eliza.
— Claro que não — dizia a Dra. Cordiner.
E assim por diante.
•••
Sendo uma paranoica, para ela era especialmente intolerável o fato de ter
um sobrenome, Swain, igual ao nosso.
— Não sou sua querida tia Cordelia — dizia. — Não precisam fundir
suas aristocráticas cucas com isso. Quando meu avô veio da Polônia,
mudou seu nome de Stankowitz para Swain. — Seus olhos brilhavam. —
Digam “Stankowitz”!
Dizíamos.
— Agora digam “Swain”.
E nós dizíamos “Swain”.
•••
Ficamos mais chocados ainda quando soubemos que ela nos queria testar
em separado. Com toda a nossa inocência, dissemos que daríamos um
número maior de respostas corretas se pudéssemos juntar nossas cabeças.
Ela se excedeu em sua ironia.
— Mas é claro, Sr. Wilbur e Srta. Eliza. E não gostariam também de
poder consultar uma enciclopédia e, quem sabe, o corpo docente da
Universidade de Harvard?
— Até que seria bem bom — dissemos.
— Pois saibam, caso ninguém lhes tenha dito, que estamos nos Estados
Unidos da América, onde ninguém tem o direito de se apoiar em ninguém,
onde todo mundo aprende a abrir seu próprio caminho. Estou aqui para
testar vocês, mas há uma regra básica de vida que eu também gostaria de
lhes ensinar, e vocês hão de me agradecer por isso no futuro.
A lição era a seguinte: — Remem a sua canoa — disse ela. — Você
podem repetir e se lembrar disso?
Não só podíamos repetir aquilo, como também me lembro até hoje:
“Remem a sua canoa”.
Ai ô.
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Ela afirmou que nosso caso era triste, já que não havia bons empregos que
desejássemos. — Eles quase não têm ambição alguma — disse —, de modo
que a vida não pode desapontá-los. Querem apenas que a vida que
conheceram até agora prossiga indefinidamente, o que, claro, é impossível.
Papai abanou a cabeça, contristado:
— E o menino é o mais inteligente dos dois?
— Até o ponto em que sabe ler e escrever — respondeu a Dra.
Cordiner. — Não é, porém, uma pessoa socialmente ativa como a irmã.
Quando está longe dela, fica silencioso como um túmulo.
“Sugiro que ele seja mandado para uma escola especial, que não deverá
ser muito exigente no tocante aos estudos e que tampouco represente uma
ameaça social, onde ele poderá aprender a remar sua própria canoa.”
— Aprender o quê? — perguntou Papai.
A Dra. Cordiner repetiu:
— A remar sua canoa.
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A Dra. Cordiner, como ficou demonstrado, era uma covarde, entre outras
coisas. Como muitos covardes, tentou se impor na hora errada. Riu do
nosso pedido:
— Em que espécie de mundo vocês pensam que estamos? — disse,
prosseguindo em tom semelhante por algum tempo.
Mamãe se levantou e partiu para cima dela, sem tocá-la, sem ao menos
encará-la diretamente. Quando falou, dirigiu suas palavras para a garganta
da doutora. Num tom de voz que ficava entre um ronronar e um rugido,
chamou a Dra. Cordiner de “peidinho de pardal metido a besta”.
Capítulo 18
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Às dez horas da manhã seguinte, fui levado de automóvel para uma escola
de crianças gravemente perturbadas em Cape Cod.
Capítulo 19
Cai a tarde de novo. Um pássaro, lá pela esquina da 31st Street com a Fifth
Avenue, onde há um tanque do Exército com uma árvore crescendo em sua
torre, canta para mim. Ele repete o seu canto com espantosa insistência,
como se estivesse a questionar a morte do sol.
Nunca uso o seu nome, e tampouco o fazem Melody e Isadore, que
seguem o meu exemplo nessa coisa de dar nomes. Eles raramente chamam
Manhattan de “Manhattan”, ou de “A ilha da Morte”, que é seu nome
comum no continente. Fazem como eu: preferem “Parque Nacional dos
Arranha-Céus”, sem, contudo, perceberem a ironia aí contida, ou então,
com a mesma falta de humor, “Angkor Vat”.
E o nome que usam para designar esse pássaro insistente é o que Eliza e
eu usávamos quando éramos crianças. Era a palavra correta que
aprendemos em um dicionário.
Nós a decoramos por causa do terror supersticioso que nos inspirou o
pássaro, transformado em criatura de um pesadelo pintado por Hieronymus
Bosch quando o invocávamos. E, sempre que ouvíamos o seu grito,
dizíamos o seu nome simultaneamente. Era quase a única ocasião em que
falávamos ao mesmo tempo.
— É o grito do curiango-noturno — dizíamos.
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A ideia de esconder os papéis na urna foi de Eliza.
E foi Eliza quem recolocou a tampa no lugar.
Não estávamos próximos quando ela falou, de modo que o que disse foi
de sua exclusiva invenção:
— Diga adeus à sua inteligência, Bobby Brown.
— Adeus — disse eu.
•••
— Eliza — falei —, vários livros entre os que li para você diziam que o
amor era a coisa mais importante de todas. Talvez eu devesse lhe dizer
agora que a amo.
— Pois diga.
— Eu a amo, Eliza.
Ela pensou um pouco. — Não — disse por fim —, não gostei.
— Por quê?
— É como se você estivesse apontando uma arma para a minha cabeça
— respondeu ela. — Isso é apenas um meio para fazer com que uma pessoa
diga algo que é bem provável que não sinta. Que mais poderia eu, ou
qualquer outra criatura, dizer senão “Eu também o amo”?
— E você não me ama?
— O que há para ser amado em Bobby Brown? — retrucou ela.
•••
Eliza não desceu para o café na manhã seguinte. Permaneceu em seu quarto
até que eu tivesse ido embora.
Meus pais me acompanharam em seu Mercedes com motorista. Era eu o
filho com futuro. Era eu quem sabia ler e escrever.
E, apesar de tudo, meu mecanismo de esquecimento se pôs a trabalhar
logo que o carro começou a percorrer a linda paisagem do campo.
Era um mecanismo protetor contra dores insuportáveis, coisa que eu,
como pediatra, estou persuadido de que todas as crianças têm.
Em algum lugar, que ficara para trás — era a impressão que eu tinha —,
estava minha irmã gêmea, que não estava a meus pés em questão de
inteligência. Ela possuía um nome. Seu nome era Eliza Mellon Swain.
•••
Sim, e o ano letivo era estruturado de tal sorte que nenhum de nós jamais
tinha que ir a casa. Fui à Inglaterra, França, Alemanha, Itália e Grécia. Fui
acampar nos meses de verão.
E foi determinado que, embora eu certamente não fosse nenhum gênio,
e que fosse incapaz de ser original, possuía um cérebro melhor que o
mediano. Eu era paciente e ordeiro e também era capaz de selecionar boas
ideias em um amontoado de sandices.
Fui o primeiro aluno daquela escola a fazer vestibular para a
universidade. E me saí tão bem que fui convidado a ir para Harvard. Aceitei
o convite, embora ainda não tivesse mudado de voz.
E de vez em quando os meus pais, que tinham passado a ter muito
orgulho de mim, me lembravam de que em alguma parte eu tinha uma irmã
gêmea. Naquele tempo ela era pouco mais que um vegetal. Encontrava-se
em uma dispendiosa instituição para gente assim.
Eliza era apenas um nome.
•••
Papai morreu em um acidente de automóvel quando eu cursava o primeiro
ano da escola de medicina. A essa altura já me considerava a ponto de
fazer-me executor de seu testamento.
Logo depois fui visitado em Boston por um advogado gordo e de olhos
astutos chamado Norman Mushari, Jr. Ele me contou o que a princípio
pareceu ser uma história desconexa e sem importância a respeito de uma
mulher que tinha sido trancada por muitos anos contra a sua vontade em
uma instituição para débeis mentais.
Ela o contratara — disse-me o advogado — para processar os parentes e
a instituição pelos danos sofridos, recuperar sua liberdade de imediato e
reaver toda a parte de sua herança que fora indevidamente retida.
Essa mulher tinha um nome, claro: Eliza Mellon Swain.
Capítulo 21
Mamãe falara mais tarde sobre o hospital onde nós abandonamos Eliza no
Limbo:
— Não era um hospital barato, você sabe. Custava duzentos dólares por
dia. E os médicos nos disseram para ficarmos afastados, não disseram,
Wilbur?
— Acho que sim, Mamãe — respondi. E a seguir eu disse a verdade: —
Esqueci.
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Mamãe não estava a fim de enfrentar uma confrontação com Eliza e bateu
em retirada para sua suíte no andar de cima. Eu também não queria que os
criados presenciassem, fosse qual fosse, o espetáculo grotesco que Eliza
tinha em mente, de modo que mandei que se recolhessem a seus aposentos.
Quando a campainha da porta tocou, fui eu mesmo atender.
Sorri para o oricterope, para as câmaras e para a multidão.
— Eliza! Minha querida irmã! Mas que surpresa agradável. Entre,
entre! — foi o que eu disse.
Para compor a cena, esbocei um abraço. Ela recuou.
— Se você me tocar, Lorde Fauntleroy, eu o morderei e você morrerá de
raiva — disse Eliza.
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Eliza passou o braço comprido pelos ombros de Norman Mushari, Jr. — Eis
aqui alguém que sabe ajudar os outros — disse ela.
Aquiesci com um gesto de cabeça.
— Somos gratos a ele. Palavra que somos.
— Ele é minha mãe, pai, irmão e Deus, tudo ao mesmo tempo. Foi ele
quem me deu o dom da vida!
Eliza continuou, sem se interromper:
— Ele me disse: “O dinheiro não fará com que você se sinta melhor,
querida, mas de qualquer forma vamos processar seus parentes até arrancar
a última gota de mijo deles”.
— Hum — resmunguei.
— Mas devo dizer que ajuda muito mais que suas expressões de culpa,
que não passam de um modo de vocês exibirem suas maravilhosas
sensibilidades.
O riso de Eliza soou desagradavelmente.
— Mas é fácil ver por que você e Mamãe querem ostentar sua culpa.
Afinal de contas é a única coisa que os dois jamais fizeram por merecer.
Ai ô.
Capítulo 24
Tudo indicava que Eliza já tinha agredido meu amor-próprio com todas as
armas de que dispunha. Não sei como eu sobrevivera.
Sem orgulho, com uma espécie de interesse ao mesmo tempo cínico e
clínico, concluí que se eu tinha caráter era como se fosse forjado em aço,
capaz de repelir ataques mesmo quando eu me abstinha de tentar qualquer
tipo de defesa.
Como eu estava enganado a respeito de Eliza ter esgotado sua fúria!
Seus ataques iniciais haviam visado apenas a expor a armadura do meu
caráter. Ela meramente despachara patrulhas ligeiras para limpar o terreno e
favorecer seu campo de tiro, por assim dizer.
Sem que eu percebesse, a tal armadura estava agora diante de seus
disfarçados canhões, a uma distância em que não poderia perder um só tiro,
tão nua e frágil quanto uma vidraça.
Ai ô.
•••
Houve uma calmaria. Eliza deu uma volta pela sala, olhando meus livros, os
quais ela não poderia ler, claro. Voltou depois para perto de mim, inclinou a
cabeça e perguntou:
— As pessoas entram na Escola de Medicina de Harvard porque sabem
ler e escrever?
— Dei duro, Eliza — respondi. — Não foi fácil para mim. E não está
sendo fácil agora.
— Se Bobby Brown chegar a ser médico — disse ela —, será o maior
argumento que jamais terei ouvido em defesa dos cientistas cristãos.
— Não serei o melhor médico do mundo — concedi. — E tampouco o
pior.
— Você poderia ser muito bom com um gongo — disse ela. Referia-se
aos recentes boatos de que os chineses tinham conseguido notáveis vitórias
no tratamento do câncer de seio usando a música de gongos antigos. —
Você dá a impressão de que seria capaz de acertar no gongo quase todas as
vezes que tentasse.
— Muito obrigado — agradeci.
— Toque-me — disse ela.
— O que foi que você disse?
— Sou sua própria carne. Sou sua irmã. Toque-me — insistiu Eliza.
— Sim, claro.
Mas meus braços pareciam estranhamente paralisados.
•••
•••
Eliza, cujos dedos estavam quase tocando no meu rosto, referia-se a uma
piada suja que Withers Witherspoon contara a outro criado quando éramos
garotos. Nós a ouvimos através de uma parede. Era sobre uma mulher que
se comportava loucamente quando tinha relações sexuais. A graça da piada
era o aviso que ela dava ao sujeito que não a conhecia quando ele a levava
para a cama.
E Eliza repetiu o aviso naquele instante: — Fique de chapéu, meu
chapa. Pode ser que a gente aterre a quilômetros de distância.
•••
Ficamos frenéticos. Foi somente pela graça de Deus que não caímos em
cima da multidão, do lado de fora da casa. Algumas partes de nós, das quais
eu não tinha tido consciência, e das quais Eliza tinha sido
atormentadamente cônscia, vinham planejando uma reunião havia muito,
muito tempo.
Eu seria incapaz de dizer onde eu acabava e Eliza começava, ou onde
nós acabávamos e começava o universo. Foi maravilhoso e foi horrível.
Sim, e permitam que eu dê uma ideia da quantidade de energia envolvida: a
orgia durou cinco noites e cinco dias.
•••
•••
Quanto aos motivos por que ninguém nos separou ou providenciou socorro:
Eliza e eu tínhamos aprisionado Norman Mushari, Jr., a pobre Mamãe e os
criados — um por um.
Não consigo me lembrar de ter feito isso.
Ao que parece, nós os amarramos em cadeiras, pusemos-lhes mordaças
e os arrumamos cuidadosamente à volta da mesa da sala de jantar.
•••
Nós lhes demos comida e água, graças a Deus; caso contrário teríamos nos
transformado em assassinos. Não permitimos que fossem ao banheiro,
contudo, alimentando-os exclusivamente com sanduíches de manteiga de
amendoim e geleia. Parece que saí de casa várias vezes para providenciar
mais pão, geleia e manteiga de amendoim.
E na volta a orgia começava de novo.
•••
Recordo que li em voz alta para Eliza trechos dos meus livros de pediatria,
psicologia infantil, sociologia, antropologia e assim por diante. Eu nunca
me desfazia dos livros de qualquer curso que fazia.
Lembro-me de abraços convulsos que se alternavam com períodos em
que eu me sentava à máquina de escrever, com Eliza a meu lado. E que
andei datilografando qualquer coisa com sobre-humana rapidez.
Ai ô.
•••
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•••
Mas pouca coisa mudara. A casa estava limpa como um alfinete.
Os livros tinham sido recolocados nas prateleiras. Um termostato
quebrado fora substituído. Três cadeiras da sala de jantar haviam sido
mandadas para o conserto. O tapete perdera sua cor homogênea, com alguns
lugares mais claros, indicando os pontos de onde haviam sido removidas
manchas.
A única prova de que algo extraordinário acontecera era, por si só, um
modelo de meticulosidade. Era uma coleção de folhas datilografadas,
deixada em cima de uma mesinha da sala de estar.
Eliza e eu tínhamos, não sei como, escrito um manual sobre criação de
filhos.
•••
Se era bom? Na verdade, não. Bom apenas o bastante para se tornar, depois
da Bíblia e de A alegria de cozinhar, o livro mais popular de todos os
tempos.
Ai ô.
•••
•••
“O GRITO DO CURIANGO-NOTURNO,
POR
BETTY E BOBBY BROWN”.
Capítulo 26
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Machu Picchu, a antiga capital dos incas, no topo dos Andes peruanos,
estava se tornando então o local favorito de gente rica e seus parasitas,
pessoas que fugiam de reformas sociais e da decadência econômica, não
apenas nos Estados Unidos, mas em todas as partes do mundo. Havia lá até
mesmo alguns chineses de tamanho normal que não haviam permitido que
seus filhos fossem miniaturizados. Eliza se mudou para um edifício lá, para
ficar o mais longe possível de mim.
•••
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•••
Nunca mais vi Eliza depois da orgia. Ouvi sua voz somente duas outras
vezes — uma, quando me formei em medicina e, de novo, quando já era
presidente. E aí ela já estava morta havia muito tempo.
Ai ô.
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Quando voltei para junto de Mamãe, cerca de uma hora depois, o Dr. Mott
já tinha ido embora. Ela me disse novamente de quem se tratava. Lastimei,
formalmente, não ter passado mais tempo com ele, e Mamãe me entregou
um bilhete, dizendo que era o presente de formatura que o Dr. Mott me
deixara.
Fora escrito em papel de carta do Ritz, e dizia, laconicamente:
“‘Quando não puder fazer bem, pelo menos não faça mal.’ Hipócrates”.
•••
•••
Casei-me com uma mulher tão rica quanto eu, na verdade uma prima em
terceiro grau, cujo nome de solteira era Rose Aldrich Ford. Ela foi muito
infeliz porque eu não a amava, e também porque nunca a levava a parte
alguma. Nunca fui bom em questões de amor. Tivemos um filho, Carter
Paley Swain, que também não consegui amar. Carter era normal, e
totalmente desinteressante para mim. Era como um refresco de verão, sem
gosto de nada e aguado, e se limitava a crescer o tempo todo.
Depois do nosso divórcio, ele e a mãe compraram um apartamento no
mesmo edifício de Eliza, lá em Machu Picchu, no Peru. Nunca mais tive
notícias dos dois — nem quando me tornei presidente dos Estados Unidos.
E o tempo voou.
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Devo ter tido uma neurose de guerra. As pessoas gritavam por socorro na
aldeia, e eu era o único médico. Mas simplesmente me afastei.
Lembro-me de ter caminhado sob as macieiras.
Lembro-me de ter parado no cemitério da família, e aberto gravemente
um envelope da Eli Lilly Company, uma indústria farmacêutica. Dentro
dele havia uma dúzia de pílulas de amostra, da cor e do tamanho de
lentilhas.
A literatura que vinha junto, a qual li com grande cuidado, explicava
que o nome comercial das pílulas era “Tri-Benzo-Comportamil”. O nome
era uma referência a bom comportamento, ou seja, comportamento
socialmente aceitável.
As pílulas se destinavam a tratar os sintomas socialmente inaceitáveis
da doença de Tourette, cujos pacientes, sem querer, falavam obscenidades e
faziam gestos ofensivos não importa onde estivessem.
Em meu estado de desorientação, pareceu-me importante que eu
tomasse imediatamente duas pílulas.
Passaram-se dois minutos e todo o meu ser foi inundado por uma
sensação de contentamento e segurança que eu nunca sentira antes.
Assim começou um vício que ia durar por quase trinta anos.
Ai ô.
•••
Foi um milagre que ninguém em meu hospital tivesse morrido. As camas e
as cadeiras de rodas de algumas das crianças mais pesadas quebraram. Uma
enfermeira se precipitou pelo alçapão que antes estivera oculto pela cama
de Eliza. Quebrou ambas as pernas.
Mamãe, graças a Deus, dormiu o tempo todo.
Quando ela acordou, eu estava ao pé de sua cama. Mais uma vez me
disse o quanto detestava coisas artificiais.
— Eu sei, Mamãe — concordei. — Concordo totalmente com você. É a
volta à natureza.
•••
Até hoje não sei se aquele horrível solavanco da gravidade foi a natureza ou
se foi alguma experiência feita pelos chineses.
Na época pensei que havia uma ligação entre o abalo e as fotos que Fu
Manchu tirara do trabalho que eu e Eliza fizéramos sobre a gravidade.
Sim, e, baratinado até a raiz dos cabelos com o Tri-Benzo-Comportamil,
retirei todos os nossos papéis do mausoléu.
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•••
Achei-o apaixonante. Dizia que não havia nada de novo acerca de famílias
artificiais ampliadas nos Estados Unidos. Os médicos se sentiam
aparentados com os outros médicos, os advogados com advogados,
escritores com escritores, atletas com atletas, políticos com políticos, e
assim por diante.
Eliza e eu dizíamos que, no entanto, esse tipo de famílias não era bom.
Dele ficavam excluídas as crianças, os velhos, as donas de casa e os
derrotados de todos os tipos. Outra coisa: seus interesses eram geralmente
tão especializados que os faziam parecer insanos para os demais.
“Uma família ampliada ideal”, escrevêramos há muitos anos, “daria
uma representação proporcional a todos os tipos de americanos, de acordo
com os seus números. A criação de dez mil famílias desse tipo, digamos
assim, proporcionaria ao país dez mil parlamentos, os quais discutiriam
com sinceridade e conhecimento de causa o que agora apenas uns poucos
hipócritas discutem com paixão, ou seja, o bem-estar de toda a
humanidade.”
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•••
Apareci aqui em Nova York apenas uma vez durante a campanha. Falei dos
degraus da biblioteca pública na esquina da 42nd Street com a Fifth Avenue.
A cidade era naquela época um sonolento balneário. Nunca se recuperara
daquele primeiro solavanco da gravidade, que privara seus edifícios dos
elevadores, inundara seus túneis e demolira todas as suas pontes, menos a
de Brooklyn.
A gravidade começara a se alterar de novo. Mas não era mais uma
sacudidela, como da primeira vez. Se eram mesmo os chineses os
responsáveis por aquilo, tinham aprendido como aumentá-la ou reduzi-la
gradualmente, querendo talvez reduzir os ferimentos e os danos materiais.
Agora a coisa tinha a lenta majestade das marés.
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— Sabe o que é que vão fazer os parentes a quem o senhor disser isso, Sr.
Grasso? — prossegui. — Eles irão para casa e tentarão ser melhores
parentes!
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— Considere também como sua situação será bem melhor, se a reforma for
concretizada, quando um mendigo se aproximar do senhor e pedir dinheiro
— continuei.
— Não compreendo — disse o homem.
— Ora — esclareci —, o senhor falará assim com o mendigo: “Qual é o
seu nome do meio?” Ele vai responder: “Ostra-19”, ou “Galinhola-1 ”, ou
qualquer coisa dessas.
“Então você pode dizer-lhe: ‘Meu chapa... acontece que eu sou um
Urânio-3. Você tem dezenove mil primos e dez mil irmãos e irmãs. Não está
exatamente só neste mundo, portanto. E eu tenho os meus próprios parentes
para cuidar. Assim, por que é que você não vai tomar no olho do cu? VÁ
TOMAR NO OLHO DO CUUUUUU!’”
Capítulo 34
A crise de combustível era tão forte quando fui eleito, que o primeiro
problema grave que enfrentei, depois da posse, foi onde arranjar
eletricidade suficiente para acionar os computadores que forneceriam os
novos nomes.
Mandei que cavalos, soldados e carroças do arruinado Exército que eu
herdara de meu antecessor levassem toneladas de papéis do Arquivo
Nacional para a casa de força. Todos aqueles documentos eram da
administração de Richard M. Nixon, o único presidente que jamais fora
obrigado a renunciar.
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•••
Já são umas nove horas da manhã aqui no Parque Nacional dos Arranha-
Céus. A gravidade está suave, mas Melody e Isadore não trabalharão hoje
na pirâmide do bebê. Em vez disso, teremos um piquenique no topo do
edifício. Os dois jovens estão sendo tão amáveis comigo porque meu
aniversário será daqui a dois dias. Como é divertido!
Não há nada de que eles gostem mais que um aniversário!
Melody depena uma galinha que um escravo de Vera Esquilo-5 Zappa
nos trouxe ainda há pouco. Trouxe também duas bisnagas de pão e dois
litros de cerveja. Quando chegou, mostrou-nos, com mímica, o quão
nutritivo estava sendo para nós. Pressionou as bases das duas garrafas de
cerveja de encontro a seus mamilos, como se tivesse seios que dessem
cerveja.
Nós rimos. E batemos palmas.
•••
Melody joga punhados de penas para o ar. Por causa da gravidade fraca,
parece que ela é uma feiticeira. Cada estalido de seus dedos gera borboletas.
Tenho uma ereção. Isadore também. Da mesma forma que todos os
homens.
•••
Isadore varre o saguão com uma vassoura que ele fez de gravetos. Canta
uma das duas únicas músicas que sabe. A outra canção é Parabéns pra
você. Sim, e ele também é completamente desafinado e, quando canta, mais
parece um zangão zumbindo. Eis o que ele desentoa:
•••
Fiquei encantado com o meu nome, a propósito. Mandei que a Sala Oval da
Casa Branca fosse imediatamente pintada de amarelo-claro, para celebrar o
fato de eu me ter tornado um “Narciso Silvestre”.
E, justo quando eu estava dizendo à minha secretária particular,
Hortense Tainha-13 McBundy, que providenciasse a pintura, apareceu no
escritório um lavador de pratos da cozinha da Casa Branca. Estava tão
embaraçado que perdia o fôlego sempre que tentava falar.
Quando, por fim, ele conseguiu se fazer entender, eu o abracei. Ele
viera de suas profundezas cheias de vapor para me dizer, com toda a
coragem que conseguira reunir, que também era um Narciso Silvestre-11.
— Meu irmão! — exclamei.
Capítulo 36
•••
Tive que rir, mesmo quando a minha própria esposa, a antiga Sophie
Rothschild, resolveu usar um botão desses.
Ai ô.
•••
Sophie ficou furiosa quando recebeu uma carta impressa de seu presidente,
que por acaso era eu, na qual recebia instruções para deixar de ser uma
“Rothschild”. Em vez disso, passava a ser uma “Amendoim-3”.
De novo: sinto muito, mas tive que rir.
•••
•••
Sophie não teve que erguer os olhos para me encarar, já que eu também
estava no chão — de bruços, com o queixo repousado sobre uma almofada.
Estava lendo o fascinante relatório de algo que acontecera em Urbana,
Illinois.
Como não lhe desse atenção, ela insistiu:
— O que é que você está lendo que é tão mais interessante do que eu?
— Bem — respondi —, por muitos anos eu fui o único americano a ter
falado com um chinês. Isso não é mais verdade. Uma delegação de chineses
visitou a viúva de um físico... cerca de três semanas atrás.
Ai ô.
•••
— Não quero desperdiçar seu precioso tempo — disse ela. — É claro que
você está mais próximo dos chineses do que jamais esteve de mim.
Eu lhe dera de presente de Natal uma cadeira de rodas — para andar
pela Casa Branca nos dias de gravidade forte. Perguntei por que não a
usava.
— Fico muito triste — acrescentei — com vê-la andando de quatro por
aí.
— Agora sou um “Amendoim” — ela me respondeu. — “Amendoins”
vivem junto ao chão. “Amendoins” são famosos por serem rasteiros. São o
que existe de mais barato e mais vulgar.
•••
•••
— Será que você é mesmo tão sádico — disse ela — que quer que eu prove
meu amor fazendo amizade com estranhos que estão agora rastejando para
sair das pedras úmidas onde era o seu lugar, como lacraias? Como
centopeias? Como lesmas? Como vermes?
— Ora, vamos, vamos — disse eu.
— Quando foi que você olhou pela última vez o espetáculo grotesco
que está se desenrolando do outro lado da cerca?
Todo o perímetro da Casa Branca, junto da cerca que delimita seu
terreno, era infestado diariamente por pessoas que alegavam ser meus
parentes artificiais, ou de Sophie.
Lembro-me de dois anões gêmeos que empunhavam uma faixa com a
inscrição: “Poder da Flor”.
Havia uma mulher, lembro-me também, que usava uma gandola do
Exército sobre um vestido de noite, púrpura. Na cabeça trazia um antigo
capuz de aviador, com óculos e tudo. Ela exibia uma placa na extremidade
de uma vara, e na placa se lia: “Manteiga de Amendoim”.
•••
•••
•••
Uma coisa eu fiz avidamente: antes que Sophie me deixasse, pedi que
mandassem os catálogos dos Narcisos Silvestres e dos Amendoins para nós.
E tenho um deles, o dos Narcisos Silvestres, aqui comigo, no edifício do
Empire State. Foi Vera Esquilo-5 Zappa quem me deu no meu último
aniversário. É uma primeira edição — a única que jamais foi publicada.
Graças a ele posso ver, mais uma vez, que entre os meus novos parentes
naquela época estavam Clarence Narciso Silvestre-11 Johnson, chefe de
polícia de Batávia, no Estado de Nova York, Muhammad Narciso Silvestre-
11 X, o antigo campeão mundial de boxe, na categoria de peso médio, e
Maria Narciso Silvestre-11 Tcherkassky, a primeira-bailarina do Balé da
Ópera de Chicago.
•••
A propósito, foi bom que Sophie não tivesse chegado a ver o seu catálogo
familiar. Os Amendoins, na verdade, não pareciam ser grande coisa.
O mais famoso Amendoim de que consigo me lembrar era um jogador
de hóquei sobre patins de segunda categoria.
Ai ô.
•••
Vera me disse que o lema de A Pilha de Nozes era: “Um bom cidadão é uma
boa mulher da família ou um bom homem da família”.
•••
•••
Foi nessa visita a Manhattan que vi meu primeiro “Clube dos Treze”. Havia
doze desses afamados estabelecimentos em Chicago, eu ouvira dizer. Agora
Manhattan também tinha um.
Eliza e eu não tínhamos previsto que todas as pessoas com “13” nos
nomes do meio iriam se associar quase que imediatamente, para formar a
maior família de todas.
E, sem dúvida, tive uma boa amostra de minha própria receita quando
pedi ao guarda que tomava conta da porta do clube que me deixasse entrar
para dar uma olhada. Estava muito escuro lá dentro.
— Com o devido respeito, senhor presidente — disse-me ele —, será
que o senhor é um Treze?
— Não — respondi. — Você sabe que não sou.
— Pois então eu devo lhe dizer uma coisa, senhor presidente: por que é
que o senhor não vai tomar no olho do cu? VÁ TOMAR NO OLHO DO
CUUUUUUU!
Entrei em êxtase.
•••
Sim, e também foi durante essa visita que tomei conhecimento da Igreja de
Jesus Cristo Raptado — na época, uma minúscula seita em Chicago, mas
que iria se tornar a mais popular religião americana de todos os tempos.
Ela me foi trazida à atenção por um folheto que um rapaz limpo e
radiante me entregou quando cruzei o vestíbulo em direção às escadas de
meu hotel.
Ele sacudia a cabeça em todas as direções, de um modo que na época
me pareceu estranho, como se estivesse esperando surpreender alguém
observando-o detrás de uma palmeira plantada num vaso ou de uma
poltrona, ou mesmo diretamente de cima de sua cabeça, do candelabro de
cristal.
O rapaz estava tão absorvido em atirar olhares ardentes em todas as
direções, que não ligou a mínima ao fato de ter acabado de entregar um
volante ao presidente dos Estados Unidos.
— Posso lhe perguntar o que está procurando, meu rapaz? — perguntei.
— Nosso Salvador — foi a resposta.
— Você acha que Ele está neste hotel?
— Leia o folheto, senhor.
•••
Ai ô.
•••
Vi o tal rapaz jantando no refeitório do hotel naquela noite. E fiquei
assombrado ao constatar que ele podia sacudir a cabeça para todos os lados
e ainda assim comer sem deixar cair um farelo. Chegou até a procurar Jesus
embaixo do prato e do copo vezes sem conta.
Tive que rir.
Capítulo 39
Mas foi então, logo quando tudo estava indo tão bem, quando os
americanos eram mais felizes do que jamais haviam sido (muito embora os
Estados Unidos estivessem na bancarrota e se desintegrando), que o povo
começou a morrer aos milhões da “Gripe Albanesa”, em quase todo o país,
e, aqui em Manhattan, da “Morte Verde”.
E esse foi o fim da nação. Virou um monte de famílias, e nada mais.
Ai ô.
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•••
•••
De vez em quando o telefone tocava. Isso passou a ser uma ocorrência tão
rara que comecei a atender pessoalmente.
— Aqui é o seu presidente falando — dizia eu. Com frequência, eu me
via falando com um tipo qualquer de criatura mitológica: o “rei de
Michigan”, talvez, ou o “governador de emergência da Flórida”, ou ainda o
“prefeito interino de Birmingham” ou algo semelhante.
Mas as mensagens foram escasseando cada vez mais à medida que o
tempo passava. Por fim, elas cessaram de todo.
Fui esquecido.
Assim terminou minha presidência — faltando um terço do meu
segundo mandato para ser cumprido.
E outra coisa importantíssima também estava para se esgotar quase que
com a mesma rapidez — o meu insubstituível suprimento de Tri-Benzo-
Comportamil.
Ai ô.
•••
Tendo em vista que tudo tinha decaído tão rapidamente, e também porque
não havia mais ninguém para quem eu devesse me comportar de maneira
sensata, desenvolvi a mania de contar coisas. Eu contava as persianas das
janelas. Contei facas, garfos e colheres na cozinha. Contei as borlas da
colcha que cobria a cama de Abraham Lincoln.
Um dia eu estava contando as colunas de um corrimão, de quatro na
escada, embora a gravidade estivesse entre média e suave. Percebi então
que alguém estava me observando lá de baixo.
Era um homem vestido com roupas de couro, mocassins e um gorro de
guaxinim, carregando um rifle.
“Meu Deus, presidente”, pensei com meus botões, “desta vez você está
realmente louco. Lá está o velho Daniel Boone observando sua maluquice.”
Um outro homem se juntou ao primeiro. Este estava como um piloto
militar de antigamente, de uma época muito anterior à minha eleição para a
presidência, quando havia coisas como a Força Aérea dos Estados Unidos.
— Deixem que eu adivinhe — falei em voz alta. — Ou é o Dia das
Bruxas ou é o Quatro de Julho.
•••
•••
Nenhum dos dois suspeitava, nem mesmo de longe, que eu fosse o
presidente. Minha aparência não poderia ser pior.
Eles não queriam falar comigo, ou um com o outro, para falar a
verdade. Acontece que eram estranhos. Simplesmente tinham, por acaso,
chegado ao mesmo tempo — cada um para cumprir uma missão urgente.
Ambos se dirigiram aos outros cômodos e encontraram meu Sancho
Pança, Carlos Narciso Silvestre-11 Villavicencio, que estava preparando o
almoço com bolachas duras, ostras defumadas em lata e algumas outras
coisas que encontrara. Carlos os trouxe de volta para mim e convenceu-os
de que eu era o presidente daquilo que ele, com toda a sinceridade, dizia ser
“o mais poderoso país do mundo”.
Carlos era muito burro.
•••
O tipo vestido como um antigo herói do Oeste tinha uma carta na mão —
remetida pela viúva de Urbana em Illinois, que fora visitada por chineses
alguns anos antes. Eu estava então muito ocupado para descobrir o objetivo
dos chineses. “Prezado Dr. Swain”, começava a carta, que prosseguia:
Ai ô.
Capítulo 41
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Voltei-me para o piloto, que trazia ao peito uma plaquinha com o seu nome:
— Capitão — falei —, você é outro que parece também não topar muito
esse negócio de nova invenção de nomes.
Observei também que ele era demasiado velho para ser um capitão,
ainda que essas coisas não mais existissem. Na verdade, tinha quase
sessenta anos.
Concluí que devia ser um lunático que encontrara aquela roupa em
alguma parte. Supus que se tinha sentido tão deslumbrado e aturdido com
sua nova aparência que nada lhe satisfaria tanto quanto se exibir para o
presidente.
A verdade, contudo, é que ele era perfeitamente sadio. Havia servido
nos últimos onze anos em um silo subterrâneo secreto, situado no Parque do
Córrego Rochoso. Eu nunca tinha ouvido falar daquele silo.
Mas no seu interior estava escondido o helicóptero presidencial, bem
como milhares de galões de algo fantasticamente precioso: gasolina.
•••
Por fim ele resolvera sair, contrariando as ordens que tinha, para descobrir
“o que é que estava se passando”.
Tive que rir.
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Ai ô.
Capítulo 43
Melody e Isadore foram até Wall Street hoje — para visitar a família de
Isadore, os Framboesas. Uma vez fui convidado a me tornar um Framboesa.
Vera Esquilo-5 Zappa também foi. Declinamos.
Sim, e eu também fui dar uma volta — até a pirâmide do bebê na
esquina da Broadway com a 42nd Street, cruzando a 43rd Street até o antigo
Clube dos Narcisos Silvestres, e seguindo até a 48th Street, onde moravam
os escravos da fazenda de Vera, ou seja, onde fora um dia a casa de meus
pais.
Encontrei a própria Vera na escadaria da casa. Seus escravos estavam
espalhados naquilo que antigamente era o Parque das Nações Unidas,
plantando melancias, milho e girassóis. Pude ouvi-los cantando Ol’ man
river. Eles eram felizes o tempo todo, considerando-se afortunados por
serem escravos.
Todos os escravos eram Esquilo-5, sendo que cerca de dois terços
anteriormente eram Framboesas. As pessoas que desejassem se tornar
escravos de Vera tinham que trocar os nomes para Esquilo-5.
Ai ô.
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— Vera — falei —, se você um dia conseguisse fazer o microscópio
funcionar, veria algo que partiria seu coração.
— O que é que partiria o meu coração?
— Você veria os organismos que causam a Morte Verde — respondi.
— E por que é que isso me faria chorar? — quis saber ela.
— Porque você é uma mulher de consciência. Não percebe que nós os
matamos aos trilhões, toda vez que tomamos o nosso antídoto?
Eu ri.
Ela não riu.
•••
— A razão pela qual não estou rindo — explicou Vera — é que, aparecendo
aqui inesperadamente, você estragou a surpresa de seu aniversário. Pelo
menos uma parte da festa.
— Como?
— Donna — ela se referia a uma de suas escravas — ia lhe presentear
com isto. Agora não haverá mais surpresa.
— Hum — resmunguei.
— Ela pensava que era um tipo muito especial de candelabro.
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•••
Ela não tivera apenas que se ver com as granadas e balas que passavam
sibilando pela barraca da cozinha. Era preciso também se defender de seu
marido, que era um bêbado. Ele a espancara no meio da batalha.
Ele lhe dera um soco em cada olho e quebrara seu queixo. Depois a
jogara longe, arremessando-a através do pano da barraca. Ela fora bater
com as costas na lama. Finalmente ele saíra para lhe explicar como poderia
evitar surras semelhantes no futuro.
Bem na hora em que saía, ele fora empalado pela lança de um cavaleiro
inimigo.
— E qual é, na sua opinião, a moral dessa história? — perguntei.
Ela passou a mão calosa sobre o joelho.
— Wilbur — respondeu —, nunca se case.
•••
Conversamos também a respeito de Indianápolis, que eu vira na mesma
viagem, e onde ela e o marido tinham trabalhado, como garçonete e
barman, para um Clube dos Treze — isso antes de terem se incorporado ao
exército do rei de Michigan.
Perguntei-lhe como era o clube por dentro.
— Oh, você sabe — disse ela —, gatos pretos empalhados, caveiras,
ases de espadas presos às mesas com adagas, essas coisas. Eu usava meias
de renda, saltos muito altos e finos, máscara e tudo o mais. Todas as
garçonetes, os homens que trabalhavam no bar e o leão de chácara usavam
caninos postiços de vampiro.
— Hum — aquiesci.
— Um dos nossos sanduíches se chamava “morcegobúrguer” — disse
ela.
— Hum, hum.
— Suco de tomate com gim era “delícia de Drácula”.
— Certo.
— Era como um Clube dos Treze de qualquer outro lugar — concluiu
Vera —, só que nunca chegou a dar certo. Indianápolis não tinha um
número de Trezes suficiente para isso, embora houvesse muitos lá. Era
basicamente uma cidade de Narcisos Silvestres.
Capítulo 45
•••
•••
Mas a coisa mais gratificante e educativa que vi lá foi uma reunião semanal
da família dos Narcisos Silvestres.
Sim, e tive que votar naquela reunião, assim como o meu piloto, Carlos
e todos os homens, mulheres e crianças de mais de nove anos.
Com um pouco de sorte poderia até ter presidido a reunião, embora
estivesse na cidade há menos de um dia. O presidente era escolhido por
sorteio entre todos os presentes. E o sorteado aquela noite foi uma garota de
onze anos, negra, cujo nome era Dorothy Narciso Silvestre-7 Garland.
Dorothy estava perfeitamente preparada para conduzir a reunião, tal
como, creio eu, estavam todos os outros.
•••
Ela se encaminhou para o púlpito, que era quase de sua altura, com passo
firme e decidido.
A minha priminha pôs-se de pé em cima de uma cadeira, sem quaisquer
pedidos de desculpa ou piadinhas para se justificar. Chamou os presentes à
ordem com pancadas de um martelo amarelo e depois se dirigiu assim a
seus parentes silenciosos e cheios de respeito:
— O presidente dos Estados Unidos está entre nós, como quase todos já
devem saber. Com a sua permissão, pedirei para que ele nos diga algumas
palavras ao final dos nossos trabalhos. Alguém deseja apresentar essa ideia
sob forma de moção?
— Proponho que se peça ao Primo Wilbur que nos dirija a palavra ao
final dos nossos trabalhos regulares — disse um velho sentado ao meu lado.
Sua proposta obteve apoio de outras pessoas e foi submetida à votação.
Terminou sendo aprovada, embora com diversos “Não” distribuídos
irregularmente pela audiência, e que me pareceram terem sido ditos de
modo cordial e sem qualquer traço de zombaria.
Ai ô.
•••
•••
•••
O principal motivo, contudo, pelo qual não permitiram que o ferreiro fosse
para a guerra foi que, até aquele dia, ele já era responsável por três filhos
ilegítimos de diferentes mulheres, tendo “outros dois no forno”, conforme
se expressou um dos presentes.
Não iam permitir que ele se livrasse da responsabilidade de criar todos
aqueles bebês.
Capítulo 46
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•••
A propósito: os três recrutas finalmente escolhidos para recompletar as
fileiras do rei de Michigan eram todos pessoas que não fariam muita falta, e
que, na opinião dos votantes, tinham levado até então vidas muito
despreocupadas.
Ai ô.
•••
•••
Dito dessa forma, pode parecer que os presentes à reunião estavam sendo
cruéis. Mas todos a chamavam de “Prima Grace” ou de “Irmã Grace”, como
fosse o caso. Ela era minha prima também, claro. Era uma Narciso
Silvestre-13.
Mais ainda, Prima Grace era uma ameaça apenas a si própria, de modo
que ninguém estava particularmente furioso com ela. Seus filhos tinham
procurado casas melhores assim que foram capazes de andar sozinhos,
segundo o que disseram. Aliás, creio que essa era uma das características
mais atraentes da nossa invenção, minha e de Eliza: o número enorme de
casas e pais que as crianças tinham à sua disposição.
No que diz respeito à Prima Grace, ela ouvia todas as opiniões
desfavoráveis contra a sua pessoa como se, embora a surpreendessem,
fossem, sem dúvida, verdadeiras. Permaneceu na audiência o resto da
reunião, obedecendo às Questões de ordem de Robert, e aparentemente
simpática e alerta.
Em dado momento, quando a sessão já estava tratando de “Novos
Assuntos”, Prima Grace apresentou uma proposta no sentido de expulsar
qualquer Narciso Silvestre que tivesse lutado nas fileiras dos piratas dos
Grandes Lagos ou no exército do duque de Oklahoma.
Ninguém secundou sua moção.
E a garotinha que presidia a mesa lhe disse:
— Prima Grace, você sabe tão bem quanto qualquer outra pessoa aqui
que, “Uma vez Narciso Silvestre, sempre Narciso Silvestre”.
Capítulo 47
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•••
— Por não sermos mais uma nação, e sim apenas uma coleção de famílias,
é muito mais fácil para nós dar e receber piedade na guerra.
“Venho de observar uma batalha que está sendo travada bem longe
daqui, ao norte do Estado, na região do lago Maxinkuckee. Vi cavalos,
lanças, fuzis, facas e pistolas, assim como um ou dois canhões. Vi diversas
pessoas mortas. Vi também muita gente se abraçando, e tive a impressão de
que ocorria um grande número de deserções e de cerimônias de rendição.
“É essa a notícia que lhes trago da Batalha do Lago Maxinkuckee”,
concluí.
“Não é nenhum massacre.”
Capítulo 48
•••
•••
O Capitão O’Hare e eu pousamos no gramado maravilhosamente bem
cuidado que ficava diante do Palácio de Verão, o qual fora, muito tempo
atrás, uma academia militar particular. Soldados, que suponho tivessem se
comportado mal na batalha recente, eram vistos de joelhos por toda parte,
guardados por elementos da Polícia do Exército. Cortavam a grama com
baionetas, canivetes e tesouras — como punição.
•••
•••
Finalmente ele ergueu a cabeça, e eu achei graça em ver que era a cara de
seu avô, o Dr. Stewart Rawlings Mott, o médico que cuidara de mim e de
minha irmã na casa de Vermont, muito tempo antes.
•••
•••
Vi depois que o jovem rei tinha um documento histórico que desejava que
eu assinasse. Era um documento lacônico no qual eu, presidente dos
Estados Unidos da América, reconhecia não mais exercer qualquer controle
sobre a parte do continente norte-americano vendida por Napoleão
Bonaparte ao meu país em 1803, numa transação conhecida como a
“Compra da Luisiana”.
De acordo com o texto que me era apresentado, eu vendia toda aquela
área por um dólar a Stewart Papa-Figo-2 Mott, o rei de Michigan.
Assinei o documento com a mais minúscula das assinaturas, e que ficou
parecida com um filhote de formiga.
— Bom proveito! — disse eu.
O território que eu lhe vendera era em grande parte ocupado pelo duque
de Illinois e, sem dúvida, por outros potentados de que eu não tinha
conhecimento.
Após isso, conversamos um pouco a respeito de seu avô, sobre quem
ele não sabia quase nada.
Finalmente eu e o Capitão O’Hare partimos para Urbana, em Illinois,
onde eu teria um encontro eletrônico com minha irmã, morta há tanto
tempo.
•••
Sim, e estou escrevendo agora com uma das mãos paralisada e a cabeça
estalando de dor, porque bebi demais na festa de meu aniversário ontem à
noite.
Vera Esquilo-5 Zappa chegou coberta de brilhantes, carregada através
da floresta de ailantos em uma liteira e acompanhada por uma escolta de
catorze escravos. Ela me trouxe vinho e cerveja, causa da minha bebedeira.
Mas o mais embriagador dos presentes foi um milheiro de velas que ela e os
escravos tinham fabricado usando um molde colonial. Colocamos todas as
velas nas bocas vazias dos meus mil candelabros, e os espalhamos pelo
saguão.
Depois acendemos tudo.
De pé, em meio àquelas luzes minúsculas e bruxuleantes, eu me senti
como se fosse Deus, mergulhado até os joelhos na Via Láctea.
Epílogo
Wilbur R. Swain morreu, e não pôde escrever mais. Partiu desta para a
melhor, como dizem.
De qualquer forma, não havia ninguém para ler o que escrevera — e
reclamar de todos os fios soltos da trama que ele fora deixando pelo
caminho.
Seja como for, ele atingiu o clímax de sua história com o episódio da
revenda da Luisiana a um chefe de bandidos — por um dólar que nunca
chegou a receber.
Sim, e ele morreu orgulhoso do que, junto com sua irmã, tinha feito
para reformar a sociedade, pois deixou este poema na esperança de que
alguém o usasse no seu epitáfio:
•••
•••
Ele procurou o cientista que trabalhara com aquela aparelhagem, o Dr. Felix
Bauxita-13 von Peterswald. Mas o cano se recusou a falar de novo.
O Dr. von Peterswald demonstrou, contudo, que era um grande
cientista, com sua disposição de acreditar no ignorante zelador. Fez
Hooligan repetir sua história vezes sem conta.
— A merendeira — disse ele, por fim —, onde está sua merendeira?
Hooligan estava com ela na mão.
O Dr. von Peterswald mandou que a colocasse exatamente na mesma
posição relativa da primeira vez.
Prontamente o cano recomeçou a falar.
•••
•••
Quando o Dr. Swain falou com sua irmã Eliza através do Hooligan, estava
em companhia da viúva do Dr. von Peterswald, Wilma Paquisandra-17 von
Peterswald, e seu filho de quinze anos, David Narciso Silvestre-11 von
Peterswald, irmão do Dr. Swain e paciente da doença de Tourette.
•••
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•••
A viúva Von Peterswald era a única pessoa controlada que estava presente,
e assim foi ela que recolocou a merendeira na posição correta, para o que
teve de forçá-la um tanto brutalmente entre o cano e o joelho presidencial.
A viúva se viu por isso presa em uma posição grotesca, dobrada em ângulo
reto sobre o gabinete, com os pés a alguns centímetros do chão. O
presidente tinha desabado todo o seu peso não só sobre a merendeira, como
também sobre uma das mãos dela.
— Alô? Alô — repetiu o presidente, ainda com a cabeça virada ao
contrário.
•••
•••
•••
Mas o Dr. Swain e sua irmã conseguiram realizar seu encontro, e com uma
intimidade tão convulsiva que ele teria rastejado pelo cano adentro, se
pudesse.
Sim, e o que Eliza queria era que ele morresse o mais depressa possível,
para que os dois pudessem juntar as cabeças. Ela desejava depois imaginar
um modo de aperfeiçoar o totalmente insatisfatório “paraíso”.
•••
•••
O Dr. Swain falou-lhe a respeito dos problemas que os vivos estavam tendo
com as doenças incuráveis. Aí então os dois, pensando como um só,
transformaram o mistério em brinquedo de criança.
A explicação era essa: os germes da gripe eram marcianos, cuja invasão
aparentemente fora repelida por anticorpos nos sistemas dos sobreviventes,
já que no momento não havia mais a doença.
A Morte Verde, por outro lado, era causada por microscópicos chineses,
amantes da paz e que não tencionavam causar qualquer mal. Mesmo assim
eles invariavelmente eram fatais aos seres humanos de tamanho normal
quando inalados ou ingeridos.
E assim por diante.
•••
O Dr. Swain perguntou à irmã que tipo de aparelhagem ela estava usando
— se era um pedaço de tubo, ou o quê.
Eliza lhe disse que não havia aparelhagem, e sim apenas um sentimento.
— Que sentimento? — quis saber ele.
— Você teria que estar morto para compreender minha descrição.
— Tente assim mesmo, Eliza.
— É como estar morto — disse ela.
— Uma sensação de morte — sugeriu ele, tentando compreender.
— Sim... de frio e viscosidade.
— Hum.
— Mas é também como estar cercado por um enxame de abelhas. A sua
voz vem das abelhas.
Ai ô.
•••
Quando o Dr. Swain acabou de passar por essa provação, dispunha apenas
de onze tabletes de Tri-Benzo-Comportamil, remédio originalmente criado,
é claro, não como um narcótico para presidentes, e sim para eliminar os
sintomas da doença de Tourette.
Ao colocar as pílulas remanescentes na palma de sua mão imensa, elas
inevitavelmente teriam que lhe parecer os últimos grãos da ampulheta de
sua vida.
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O Dr. Swain estava tomando sol ao lado do edifício do laboratório onde
estava o Hooligan. Com ele, a viúva e seu filho. A viúva tinha a
merendeira, de modo que só ela poderia ligar a aparelhagem.
A gravidade estava fraca. O Dr. Swain teve uma ereção. Da mesma
forma o menino. E assim também o Capitão Bernard Narciso Silvestre-11
O’Hare, que estava ao lado do helicóptero, perto do edifício.
Presumivelmente os tecidos erécteis do corpo da viúva aumentaram de
volume.
— Sabe o que é que o senhor parecia em cima daquele gabinete, senhor
presidente? — perguntou o garoto, evidentemente nauseado com aquilo que
sua doença estava prestes a fazê-lo dizer.
— Não — respondeu o Dr. Swain.
— O maior babuíno do mundo tentando foder uma bola de futebol —
deixou escapar o menino.
A fim de evitar outros insultos como esse, o Dr. Swain deu-lhe o
restante do seu suprimento de Tri-Benzo-Comportamil.
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Sim, e depois ele mandou que seu piloto o levasse para Manhattan, a ilha da
Morte. Tencionava morrer ali, para reunir-se à sua irmã na outra vida —
como resultado da inalação e ingestão de invisíveis comunistas chineses.
O Capitão O’Hare, que não desejava morrer ainda, desceu o presidente,
por meio de uma corda, na torre de observação do Empire State.
O presidente passou o resto do dia ali, desfrutando a vista. E depois,
respirando fundo a cada passo, na esperança de inalar comunistas chineses,
desceu a escadaria.
Já era quase noite quando chegou no primeiro andar.
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O homem parecia ter pneumonia. O Dr. Swain não podia fazer por ele senão
aquilo que os médicos de um século teriam feito, ou seja, conservar seu
corpo aquecido e sua testa fria — e esperar.
Ou a febre cedia, ou o homem morria.
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A febre cedeu.
Como recompensa, os Framboesas trouxeram aquilo de mais precioso
que possuíam para o Dr. Swain, ali mesmo no chão da Bolsa de Nova York.
Era o seguinte: um radiorrelógio, um sax alto, um estojo incompleto de
artigos de toucador, um modelo da Torre Eiffel com um termômetro dentro
— e assim por diante.
Entre todo aquele lixo, e exclusivamente para ser polido, o Dr. Swain
escolheu um candelabro de bronze muito simples.
Foi assim que nasceu a lenda de que era louco por candelabros.
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O Dr. Swain não gostou da vida comunal dos Framboesas, que requeria que
ele, entre outras coisas, sacudisse constantemente a cabeça, em busca do
raptado Jesus Cristo.
Assim que limpou o saguão do Empire State ele se mudou para lá. Os
Framboesas lhe forneciam comida.
E o tempo voou.
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Um dia apareceu Vera Esquilo-5 Zappa, que também tomou o antídoto dado
pelos Framboesas. Eles esperavam que ela viesse a ser enfermeira do Dr.
Swain.
E ela realmente foi sua enfermeira por algum tempo, até que resolveu se
dedicar à sua fazenda-modelo.
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Muito tempo depois disso foi a pequena Melody quem chegou, grávida,
empurrando seus pateticamente escassos bens terrenos num carrinho de
bebê em péssimo estado. Entre esses bens havia um candelabro de Dresden.
Até mesmo no reino de Michigan sabia-se que o legendário rei de Nova
York adorava candelabros.
O candelabro de Melody representava um nobre cortejando uma pastora
ao pé de um tronco de árvore enlaçado por florescentes trepadeiras. A
propósito: ele se quebrou no último aniversário de seu velho avô, graças a
um pontapé de Wanda Esquilo-5 Rivera, uma escrava embriagada.
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Quando Melody apareceu pela primeira vez no Empire State, e o Dr. Swain
foi lhe perguntar quem era e o que desejava, ela se ajoelhou diante dele. As
pequenas mãos sustentavam o candelabro no alto.
— Olá, vovô — disse ela.
Ele hesitou um momento. Mas depois ajudou-a a pôr-se de pé.
— Entre — disse. — Vamos, entre.
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O rei de Nova York não sabia então que tinha gerado um filho quando
deixara de tomar o Tri-Benzo-Comportamil em Urbana. Supôs que Melody
fosse uma pedinte eventual e sua fã. Tampouco trouxera ele para aquele
primeiro encontro qualquer anseio de ter descendentes em algum lugar. Ele
jamais tivera desejo de se perpetuar.
Assim, quando Melody lhe apresentou tímidos mas convincentes
argumentos de que era na verdade sua parente de sangue, ele teve a
sensação de que, conforme explicou mais tarde a Vera Esquilo-5 Zappa, “...
se abrira diante dele um imenso buraco. E, de dentro desse buraco repentino
e indolor, surgira, rastejando, uma criança faminta, grávida, e trazendo um
candelabro de Dresden”.
Ai ô.
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Sim, o rei de Michigan tinha se tornado tão decadente a essa época que
mantinha um harém de crianças capturadas com o mesmo nome do meio
que o seu — Papa-Figo-2, é claro. E a pequena Melody foi acrescentada a
esse deplorável zoo.
Mas, na medida em que suas provações se tornavam mais odiosas,
aumentava também sua força interior, gerada pelas últimas palavras que lhe
dissera seu pai ao morrer:
“Você é uma princesa. Você é a neta do rei dos candelabros, o rei de
Nova York”.
Ai ô.
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•••
— Das Ende —
O AUTOR E SUA OBRA