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CÍRCULO DO LIVRO S.A.

Caixa postal 7413


São Paulo, Brasil

Edição integral
Título do original:
Slapstick or Lonesome no more!
Copyright © Kurt Vonnegut, Jr.
Tradução de Ed Arten

Licença editorial para o Círculo do Livro


por cortesia da Editora Artenova S.A.

É proibida a venda a quem não pertença ao Círculo

Composto pela Linoart Ltda.


Impresso e encadernado em oficinas próprias
Dedicado à memória de
Arthur Stanley Jefferson e Norvell Hardy,
dois anjos do meu tempo
“Call me but love, and I’ll be new baptiz’d...”

ROMEO
Prólogo

O texto que se segue é o mais semelhante a uma autobiografia que jamais


escreverei. Chamei-lhe Pastelão, porque é uma grotesca poesia de situações
— tal como as comédias de pastelão, especialmente os filmes do Gordo e o
Magro, tão antigos.
É a respeito do que acho da vida.
Existem todas aquelas provas para testar minha inteligência e minha
limitada agilidade. Elas se repetem.
A base do humor do Gordo e o Magro, creio eu, era que eles se
esforçavam ao máximo em cada prova que tinham pela frente.
Nunca deixavam de enfrentar de boa fé o seu destino, e eram
fantasticamente adoráveis e engraçados na tentativa.

•••

Havia muito pouco amor em seus filmes. Era frequente haver uma poética
situação de casamento, o que é diferente. Tratava-se, no entanto, de mais
uma prova — com possibilidades cômicas, desde que a ela todos se
submetessem de boa fé.
O amor jamais estava em questão. E talvez porque eu tenho sido tão
intoxicado e educado por Laurel e Hardy na minha infância, durante a
Grande Depressão, ache natural discutir a vida sem jamais falar de amor.
É algo que não me parece importante.
O que realmente parece importante? Lutar de boa fé com o destino.

•••

Tive algumas experiências com o amor, ou, pelo menos, acho que tive,
embora aquelas de que mais gostei possam ser facilmente descritas como
“decência mútua”. Por algum tempo tratei bem determinada pessoa, e essa
pessoa, por sua vez, me tratou igualmente bem. O amor nada tinha que ver
com isso.
Outra coisa: sou incapaz de distinguir entre o amor que tenho por gente
e o que sinto por cachorros.
Quando eu era criança e não estava vendo filmes cômicos ou ouvindo
os comediantes que trabalhavam no rádio, costumava passar um bocado de
tempo rolando nos tapetes com os afetuosos e nada críticos cachorros que
tínhamos.
E ainda faço isso. Os cachorros logo se cansam e ficam confusos e
desconcertados. Eu poderia continuar a vida toda.
Ai ô.

•••

Um dia, em seu vigésimo primeiro aniversário, um de meus três filhos


adotivos, prestes a embarcar para a Floresta Tropical do Amazonas com os
Corpos da Paz, me disse: — Sabe de uma coisa?... Você jamais me abraçou.
Por isso eu o abracei. Nós nos abraçamos. Foi muito bom. Como rolar
no tapete com um enorme cachorro dinamarquês que tínhamos antigamente.

•••

O amor está onde é encontrado. Acho que é tolice sair à sua procura, e
penso que muitas vezes isso pode ser prejudicial.
Eu gostaria de que as pessoas que, para seguir as convenções, declaram
que se amam dissessem umas às outras quando brigassem: — Por favor...
um pouco menos de amor e um pouco mais de respeito mútuo.

•••

Minha mais longa experiência no campo do respeito mútuo é, sem dúvida, o


relacionamento que tenho com Bernard, meu irmão mais velho, cientista
especializado em questões atmosféricas, que trabalha na Universidade do
Estado de Nova York, em Albany.
Ele é viúvo e cria sozinho dois filhos pequenos. No que se sai muito
bem. Além disso, tem outros três filhos, já crescidos.
Nascemos com diferentes tipos de cérebros. Bernard jamais poderia ser
um escritor. E eu nunca seria um cientista. E, como ganhamos a vida com
nossos cérebros, tendemos a considerá-los como engenhos à parte de nossa
consciência, do nosso ego central.
•••

Nós nos abraçamos talvez umas três ou quatro vezes — quase sempre em
aniversários, e muito desajeitadamente. Nunca nos abraçamos em
momentos de dor.

•••

Os cérebros com que fomos contemplados gostam do mesmo tipo de humor


— coisas do tipo de Mark Twain, ou do Gordo e o Magro.
São também igualmente desorganizados.
Eis um caso vivido por meu irmão, que, com poucas variações, poderia
ser aplicado perfeitamente a mim.
Bernard trabalhou por algum tempo para o Laboratório de Pesquisas da
General Electric em Schenectady, no Estado de Nova York. Foi lá que ele
descobriu que o iodeto de prata poderia precipitar certos tipos de nuvens na
forma de neve ou chuva. Seu laboratório, contudo, era uma bagunça
sensacional, onde um estranho desajeitado poderia morrer de mais de mil
modos, dependendo de onde tropeçasse.
A companhia tinha um encarregado da segurança que quase explodiu ao
ver aquela montoeira de armadilhas mortíferas. O homem descompôs meu
irmão.
Meu irmão disse o seguinte para ele, batendo na própria testa com a
ponta dos dedos: — Se você acha que o laboratório está desarrumado, devia
ver como é que andam as coisas aqui dentro.
E assim por diante.

•••

Uma vez eu disse ao meu irmão que, sempre que ia consertar qualquer coisa
na minha casa, acabava perdendo as ferramentas antes de terminar o
trabalho.
— Você tem sorte — replicou ele. — Eu sempre perco aquilo que estou
fazendo.
Demos risada.

•••
Mas, por causa do tipo de cérebro com que fomos dotados ao nascer, e a
despeito da desordem que caracteriza nossas mentes, Bernard e eu
pertencemos a uma enorme família. Podemos dizer que temos parentes
espalhados pelo mundo todo.
Ele é um irmão dos demais cientistas, onde quer que estejam. E eu sou
irmão de todos os escritores.
Isso é divertido e reconfortante para nós. É gostoso.
E é também uma sorte, porque os seres humanos precisam de todos os
parentes que possam ter — como possíveis doadores ou alvos, não
obrigatoriamente de amor, mas de respeito mútuo.

•••

Quando éramos pequenos, em Indianápolis, no Estado de Indiana, parecia


que teríamos sempre ali uma enorme família de parentes de verdade.
Nossos pais e avós, afinal, tinham se criado naquela cidade, com muitos e
muitos primos e primas, tios e tias. Sim, e os parentes deles todos eram
pessoas educadas e prósperas, e falavam alemão e inglês com muita graça e
propriedade.

•••

A propósito — em matéria de religião, todos eram céticos.

•••

Eles podiam andar pelo mundo todo quando eram jovens e, com frequência,
viviam aventuras maravilhosas. Mais cedo ou mais tarde, contudo, alguém
lhes diria que já era tempo de regressarem a Indianápolis e se aquietarem.
Eles obedeciam, invariavelmente — porque tinham vários parentes lá.
É claro que também havia boas coisas a serem herdadas — negócios
prósperos, casas confortáveis, fiéis empregados, crescentes montanhas de
porcelana, cristal e prataria, boas reputações de honestidade comercial,
bangalôs no lago Maxinkuckee, em cuja margem oriental minha família já
teve uma aldeia de casas de verão.

•••
Mas o prazer que a família encontrava em si própria foi permanentemente
lesado, creio eu, pelo súbito ódio que os americanos passaram a sentir por
tudo o que fosse alemão, quando entramos na Primeira Guerra Mundial,
cinco anos antes de eu nascer.
As crianças de nossa família não mais aprenderam alemão. Tampouco
foram encorajadas a admirar a música, a literatura, a arte ou a ciência
alemãs. Meu irmão e minha irmã foram criados como se a Alemanha fosse
um país tão estranho para nós quanto o Paraguai.
Retiraram-nos a Europa, exceto pelo que pudéssemos aprender na
escola.
Perdemos milhares de anos em um espaço de tempo muito curto — e
depois perdemos dezenas de milhares de dólares, que foram seguidos pelas
casas de verão e assim por diante.
E nossa família passou a ser muito menos interessante, especialmente
para si própria.
Assim, quando a Grande Depressão e uma Segunda Guerra Mundial
tinham terminado, foi fácil para meu irmão, minha irmã e eu próprio nos
afastarmos de Indianápolis.
E, de todos os parentes que lá deixamos, nenhum foi capaz de imaginar
uma razão pela qual devêssemos um dia voltar para casa.
Não mais pertencíamos a um determinado lugar. Passamos a ser peças
intercambiáveis da máquina americana.

•••

Sim, e a própria Indianápolis, que um dia já tivera seu modo todo particular
de falar inglês, bem como histórias, lendas, poetas, vilões e heróis só seus,
também se tornara, de sua parte, uma peça intercambiável da máquina
americana.
Apenas mais um lugar habitado por automóveis, e com uma orquestra
sinfônica e tudo o mais. Ah, sim — e uma pista de corrida de cavalos.
Ai ô.

•••
Meu irmão e eu ainda voltamos lá para assistir a enterros, claro. Fomos lá
no último mês de julho para os funerais do tio Alex Vonnegut, o irmão mais
moço do nosso falecido pai — praticamente o último dos parentes da velha
guarda, daqueles patriotas americanos que não temiam a Deus e cujas almas
eram europeias.
Ele tinha oitenta e sete anos de idade. Não tinha filhos. Formara-se por
Harvard. Era corretor de seguros aposentado. E era cofundador da seção de
Indianápolis dos Alcoólatras Anônimos.

•••

Seu necrológico no Indianapolis Star dizia que ele próprio não tinha sido
alcoólatra.
Essa negativa foi, pelo menos em parte, uma delicadeza nascida do
passado. Sei que ele bebia, embora o álcool jamais tivesse prejudicado
seriamente seu trabalho ou o deixado fora de si. Um dia ele parou de beber
de estalo. E certamente deve ter se apresentado nas reuniões dos AA, como
todos os seus membros têm que fazer, com seu nome — seguido pela
corajosa confissão: “Sou um alcoólatra”.
Sim, e a gentileza do jornal, negando que ele jamais tivesse tido
qualquer problema com o álcool, trazia em si a antiquada intenção de
preservar da mácula o resto de nós que usamos o mesmo nome.
Teríamos, todos, problemas para conseguir bons casamentos em
Indianápolis, ou conseguir bons empregos, se houvesse certeza de que
tínhamos tido parentes alcoólatras, ou que, como minha mãe e meu filho,
haviam sido pelo menos temporariamente insanos.
Até mesmo o fato de que minha avó materna morreu de câncer foi
mantido em segredo.
Imaginem só uma coisa dessas.

•••

De qualquer forma, tenho certeza de que, se tio Alex, o ateu, foi parar
diante de São Pedro nos portões do céu, se apresentou assim:
“Meu nome é Alex Vonnegut. Eu sou alcoólatra”.
Melhor para ele.

•••
Imagino também que a solidão o levou a procurar os AA tanto quanto o
receio de se envenenar pelo álcool. Quando seus parentes morreram,
desapareceram ou simplesmente se tornaram peças intercambiáveis da
máquina americana, ele saiu procurando novos irmãos e irmãs, e sobrinhos
e sobrinhas, e tios e tias, e assim por diante, os quais encontrou nos
Alcoólatras Anônimos.

•••

Quando eu era criança, ele costumava me dizer o que eu devia ler, cuidando
de verificar depois se eu lera mesmo. Também se divertia me levando a
visitar parentes que eu nunca soubera que existiam.
Tio Alex me contou uma vez que fora espião americano em Baltimore
durante a Primeira Grande Guerra, fazendo-se amigo de germano-
americanos que moravam lá. Sua missão era descobrir agentes inimigos.
Nunca descobriu nada, pois não havia o que descobrir.
Ele me contou também que foi investigador em Nova York por algum
tempo — até que seus pais lhe disseram que já era hora de voltar para casa
e se casar. Foi quando descobriu um escândalo envolvendo enormes
despesas para a manutenção do túmulo de Grant, o qual, na verdade,
requeria muito pouca manutenção.
Ai ô.

•••

Recebi a notícia de sua morte através de um telefone branco, desses de


botões, em minha casa — que fica naquela parte de Nova York conhecida
como “Turtle Bay[1]”. Perto do telefone, havia um filodendro.
Ainda não sei direito como cheguei aqui. Não há tartarugas. Não existe
baía.
Talvez eu seja a tartaruga, capaz de viver, em qualquer parte, até mesmo
debaixo da água por períodos curtos, com minha casa nas costas.

•••

Telefonei então para meu irmão em Albany. Ele estava prestes a fazer
sessenta anos. Eu tinha cinquenta e dois.
Claro que não éramos mais garotos.
Mas Bernard ainda desempenhava o papel do irmão mais velho. Foi ele
quem providenciou nossas passagens na TWA, e o nosso carro no aeroporto
de Indianápolis e o nosso quarto com duas camas em um Ramada Inn.
A cerimônia, tal como os funerais de muitos outros parentes próximos e
de nossos pais, foi uma coisa tão secular, tão carente de ideias sobre Deus,
ou a vida depois da morte, ou, até mesmo, a respeito de Indianápolis,
quanto o nosso Ramada Inn.

•••

E assim meu irmão e eu nos vimos amarrados pelos cintos de segurança


dentro de um jato que seguia de Nova York para Indianápolis. Sentei-me do
lado do corredor. Bernard ficou na janela: sendo um cientista atmosférico,
as nuvens tinham muito mais a lhe dizer do que a mim.
Ambos temos mais de um metro e oitenta. Tínhamos ainda quase todo o
nosso cabelo, que era castanho. Tínhamos bigodes idênticos — duplicatas
do bigode do nosso finado pai.
Dois sujeitos de aparência inofensiva. Dois velhotes simpáticos.
Havia um lugar vago entre nós, um toque de poesia. Ali estaria sentada
nossa irmã Alice, a irmã do meio, entre mim e Bernard. Ela só não estava
ali sentada para ir assistir aos funerais do seu tão amado tio Alex, porque
morrera de câncer em Nova Jersey, entre estranhos — na idade de quarenta
e um anos.
— Enredo de novela barata! — disse ela para mim e para meu irmão,
falando sobre sua própria e iminente morte. Iria deixar quatro meninos sem
mãe. — Pastelão — foi o que ela disse.
Ai ô.

•••

Alice passou o último dia de sua vida em um hospital. Os médicos e


enfermeiras disseram que podia fumar e beber tanto quanto quisesse e
comer tudo de que gostasse.
Meu irmão e eu lhe fizemos uma visita. Era difícil para Alice respirar.
Sempre fora tão alta quanto nós, o que a embaraçava muito, já que era
mulher. E sua postura sempre fora ruim por causa dessa vergonha. Sua
postura agora era a de um ponto de interrogação.
Ela tossiu. Riu. Fez umas duas piadas, que não lembro mais.
Depois nos mandou embora. — Não olhem para trás — disse.
E nós não olhamos.
Ela morreu mais ou menos na mesma hora em que tio Alex morreu
agora — bem no início da noite.
E a sua morte não teria nada de notável estatisticamente se não fosse
pelo seguinte detalhe: seu saudável marido, editor de uma publicação
comercial especializada, que produzia em um cubículo da Wall Street, tinha
morrido duas manhãs antes — no “Especial dos Corretores”, o único trem
na história ferroviária americana a descarrilar e cair de uma ponte moderna,
dessas que podem ser recolhidas e recolocadas em posição.
Imaginem só uma coisa dessas.

•••

Isso realmente aconteceu.

•••

Bernard e eu não contamos a Alice o que tinha acontecido a seu marido,


que deveria cuidar dos filhos do casal depois que ela morresse, mas Alice
descobriu tudo assim mesmo. Uma paciente do ambulatório lhe deu um
exemplar do Daily News de Nova York. A manchete principal era a respeito
do mergulho do trem. Sim, e havia também, nas páginas de dentro, uma
lista dos mortos e desaparecidos.
Como Alice jamais havia recebido qualquer instrução religiosa, e como
levara uma vida sem culpas, jamais encarou sua horrível sorte como sendo
resultante de outra coisa que não acidentes ocorridos num lugar muito
movimentado.
Melhor para ela.

•••

Exaustão, sim, e profundas preocupações financeiras, também, fizeram com


que ela dissesse no fim que achava que não era muito boa nesse mister de
viver.
Mais uma vez: da mesma forma que o Gordo e o Magro.

•••
Meu irmão e eu já tínhamos assumido o comando de sua casa. Depois da
morte de Alice, seus três filhos mais velhos, com idades variando de oito a
catorze anos, realizaram uma reunião de que nenhum adulto pôde participar.
Quando saíram da sala pediram que atendêssemos a dois pedidos apenas:
que ficassem juntos e que pudessem conservar seus dois cachorros. O filho
mais novo, que não esteve presente à reunião, era um bebê com cerca de um
ano de idade.
Daí em diante, os três mais velhos foram criados por mim e minha
mulher, Jane Cox Vonnegut, juntamente com nossos três filhos, em Cape
Cod. O bebê, que ficou conosco por algum tempo, foi adotado por um
primo do pai, que é agora juiz em Birmingham, no Alabama.
Os três mais velhos ficaram com os cachorros.

•••

Ainda me lembro do que um dos filhos dela, aquele que se chama “Kurt”,
tal como eu próprio e meu pai, me perguntou quando íamos de Nova Jersey
para Cape Cod, com os dois cachorros na parte de trás do carro. Ele tinha
cerca de oito anos.
Estávamos nós dois sozinhos. Seus irmãos já tinham seguido antes.
— Os garotos lá são bonzinhos? — perguntou ele.
— São, sim — respondi.
Ele agora é piloto da aviação comercial.
Todos são agora uma coisa ou outra — menos crianças.

•••

Um deles cria cabras em cima de uma montanha na Jamaica. Realizou um


dos sonhos de nossa irmã: viver longe da loucura das cidades, tendo
animais como amigos. Não tem telefone ou eletricidade.
Depende desesperadamente da chuva. É um homem arruinado se não
chover.

•••

Os dois cachorros morreram de velhice. Eu costumava rolar com eles em


cima dos tapetes por horas a fio, até que ficavam estourados.
•••

Sim, e os filhos de nossa irmã confessam hoje com sinceridade um negócio


chato que costumava preocupá-los um bocado: não conseguem mais
encontrar sua mãe ou seu pai entre suas lembranças — ou em qualquer
outro lugar.
O criador de cabras, cujo nome é James Carmalt Adams, Jr., me disse,
batendo com a mão na testa: — Não é o museu que devia ser.
Acho que os museus que existem nas mentes das crianças se esvaziam
automaticamente em épocas de grande horror — a fim de protegê-las contra
um sofrimento eterno.

•••

De minha parte, julgo que teria sido catastrófico se eu tivesse me esquecido


de minha irmã de uma hora para outra. Nunca cheguei a lhe dizer isso, mas
era ela a pessoa para quem eu sempre tinha escrito. Foi ela o segredo da
possível unidade artística que jamais cheguei a conseguir. Ela era o segredo
de minha técnica. Qualquer criação que tenha unidade e harmonia, suspeito
de que seja obra de um artista ou inventor que haja trabalhado com a
audiência de uma única pessoa em mente.
Sim, e ela, ou a natureza, foi boa o bastante para permitir-me sentir-lhe
a presença um bom número de anos depois de ter morrido — de permitir
que eu continuasse escrevendo para ela. Só depois é que começou a se
desvanecer, talvez porque tivesse compromissos mais importantes em outra
parte.
Seja como for, tinha deixado de ser minha audiência à época em que tio
Alex faleceu.
Assim, o lugar vago entre mim e meu irmão me pareceu especial.
Enchi-o da melhor forma que pude — com o exemplar daquela manhã do
New York Times.

•••
Enquanto meu irmão e eu esperávamos que o avião levantasse voo para
Indianápolis, ele me presenteou com uma anedota de Mark Twain — a
respeito de uma ópera que Twain vira na Itália. Twain disse que nunca
ouvira algo como aquilo “... desde a ocasião em que o orfanato se
incendiara”.
Demos risadas.

•••

Ele me perguntou polidamente pelo meu trabalho. Acho que respeita minha
vocação, mas não a entende bem.
Eu disse que estava cheio de tudo, mas que sempre estivera cheio do
meu trabalho. Aproveitei para citar um comentário atribuído à escritora
Renata Adler, que odeia escrever, de que um escritor é uma pessoa que
detesta escrever.
Disse-lhe também que meu agente, Max Wilkinson, me escrevera o
seguinte, depois de eu ter me lastimado da profissão desagradável que
seguira: “Prezado Kurt — jamais conheci um ferreiro apaixonado por sua
bigorna”.
Demos risada de novo, mas acho que a piada passou meio despercebida
para meu irmão. A vida dele sempre foi uma interminável lua de mel com
sua bigorna.

•••

Contei-lhe que tinha ido assistir a algumas óperas recentemente, e que o


cenário do primeiro ato da Tosca me parecera idêntico ao interior da estação
ferroviária de Indianápolis. Enquanto a ópera ia se desenrolando no palco,
falei, eu ia imaginando algumas alterações: pôr tabuletas com os números
das plataformas nas arcadas do cenário, acrescentar sinos e apitos à
orquestra e montar uma ópera a respeito de Indianápolis durante a Idade do
Cavalo de Ferro.
— As pessoas da geração dos nossos bisavós se misturariam com as da
nossa, quando éramos jovens — disse eu —, e com todas as gerações
intermediárias. Seriam anunciadas todas as chegadas e partidas. Tio Alex
partiria para o seu trabalho de espião em Baltimore. Você apareceria
voltando para casa depois do seu primeiro ano do MIT.
— Haveria bandos de parentes — acrescentei — vendo os viajantes
irem e virem... e pretos para carregar as malas e engraxar os sapatos.

•••

— De vez em quando, na minha ópera — continuei —, o palco se cobriria


da cor de lama dos uniformes. Seria uma guerra.
— E depois ficaria claro novamente.

•••

Depois que o avião levantou voo, meu irmão me mostrou um pequeno


aparelho científico que trouxera, uma célula fotoelétrica conectada a um
gravador. Quando ele apontava o olho elétrico do aparelho para as nuvens,
registravam-se relâmpagos invisíveis para nós à luz do dia.
Os relâmpagos secretos eram registrados como clics pelo gravador.
Podíamos ouvir esses clics no instante em que eram gravados — em um
minúsculo fone.
— Lá está uma quente — anunciou meu irmão, apontando para uma
nuvem distante que mais parecia uma gigantesca montanha de chantilly.
Ele me deixou ouvir os clics. Primeiro foram dois rápidos, pausa,
depois três rápidos, e novamente silêncio.
— A que distância está aquela nuvem? — perguntei.
— Bem, talvez umas cem milhas — respondeu ele.
Achei lindo meu irmão mais velho ser capaz de detectar segredos de tão
longe com tamanha simplicidade.

•••

Acendi um cigarro.
Bernard não fuma mais, porque é importante que ele viva muito. Ainda
tem dois garotos pequenos para criar.

•••
Sim, e enquanto meu irmão mais velho meditava sobre as nuvens, a mente
com que fui dotado imaginava a história contida neste livro. É a respeito de
cidades desoladas, canibalismo espiritual, incesto, solidão, desamor, morte,
e assim por diante. Ela me apresenta, e à minha linda irmã, como monstros,
e assim por diante.
O que é natural, já que imaginei tudo a caminho de um enterro.

•••

É a respeito de um homem terrivelmente velho nas ruínas de Manhattan,


onde quase todo o mundo foi morto por uma doença misteriosa chamada “a
Morte Verde”.
Ele mora ali com Melody, sua netinha analfabeta, frágil, grávida. Quem
é ele na verdade? Acho que sou eu mesmo — fazendo a experiência de ser
velho.
Quem é Melody? Durante algum tempo, pensei que fosse tudo o que
restara da memória de minha irmã. Agora acredito que ela seja o que eu
sinto ser quando experimento a velhice, tudo o que sobrou de minha
imaginação otimista, de minha criatividade.
Ai ô.

•••

Esse velho está escrevendo sua autobiografia. E começa com as palavras


que meu falecido tio Alex me disse uma vez que deviam ser usadas pelas
pessoas que não acreditassem em Deus antes de iniciar suas preces
noturnas.
São estas as palavras: “A quem possa interessar”.
Capítulo 1

A quem possa interessar:


É primavera. Fim de tarde.
A fumaça de uma fogueira no chão de mármore do saguão do Empire
State, na ilha da Morte, flutua sobre a selva de ailantos em que se
transformou a 34th Street.
O calçamento no chão da selva está todo quebrado e retorcido —
arruinado por toda parte por raízes e pedaços de concreto.
Há uma pequena clareira na selva. Um velho branco, de olhos azuis e
faces encovadas, com mais de dois metros de altura e de cem anos de idade,
está sentado nessa clareira, naquilo que um dia foi o banco de trás de um
táxi.
Esse homem sou eu.
Meu nome é Dr. Wilbur Narciso Silvestre-11 Swain.

•••

Estou descalço. Visto uma toga púrpura, feita com cortinas encontradas no
Americana Hotel.
Sou ex-presidente dos Estados Unidos da América. Fui o último
presidente, o mais alto de todos, e o único que veio a se divorciar enquanto
na Casa Branca.
Moro no primeiro andar do Empire State, com minha neta de dezesseis
anos, que se chama Melody Papa-Figo-2 von Peterswald, e seu amante,
Isadore Framboesa-19 Cohen. Temos o prédio todo só para nós.
Nosso vizinho mais próximo mora a um quilômetro e meio de distância.
Acabo de ouvir um de seus galos cantar.

•••
Nosso vizinho mais próximo é Vera Esquilo-5 Zappa, mulher que ama a
vida e nisso é melhor do que qualquer outra pessoa. É uma fazendeira forte,
cheia de vida e que trabalha duro, com seus sessenta e poucos anos de
idade. Parece um hidrante. Tem escravos, a quem trata muito bem. Ela e os
escravos criam gado, porcos, galinhas e cabras, plantam milho e trigo,
verduras, frutas e uvas ao longo das margens do rio East.
Eles construíram um moinho de vento para moer os cereais, um
alambique para destilar o brandy, um fumeiro, etc., etc.
— Vera — disse-lhe outro dia —, se você nos escrevesse uma nova
Declaração da Independência seria a Thomas Jefferson dos tempos atuais.

•••

Escrevo este livro em papel da Autoescola Continental. Melody e Isadore


encontraram três caixas em um armário do sexagésimo quarto andar da
nossa casa. Também acharam uma grosa de esferográficas.

•••

São raros os visitantes do continente. As pontes caíram. Os túneis


desmoronaram. E os barcos não chegarão perto de nós, com medo da peste
peculiar a esta ilha, chamada “a Morte Verde”.
É essa peste que ganhou para Manhattan a alcunha de “a ilha da Morte”.
Ai ô.

•••

Algo que vivo dizendo atualmente: “Ai ô”. É uma espécie de soluço senil.
Vivi demais.
Ai ô.

•••
A gravidade está muito fraca hoje. Tive uma ereção por causa disso. Todos
os homens têm ereções em dias assim. Uma consequência automática da
quase imponderabilidade. Na maioria dos casos pouco têm que ver com
erotismo, sendo que nada têm que ver com isso na vida de um homem da
minha idade. São experiências hidráulicas — resultados de um
encanamento confuso, e pouco mais.
Ai ô.

•••

A gravidade está tão fraca hoje que acho que poderia correr até o topo do
Empire State com uma tampa de bueiro e arremessá-la em Nova Jersey.
Seria sem dúvida um aperfeiçoamento da façanha de George
Washington jogando um dólar de prata do outro lado do Rappahannock. E
ainda existe gente que insiste em dizer que não existe o que se chama
progresso.

•••

Às vezes sou chamado “o Rei dos Candelabros”, porque tenho mais de mil.
Mas gosto mais do meu primeiro sobrenome, que é “Narciso Silvestre-
11”. E escrevi um poema sobre ele e sobre a própria vida, claro:

“Fui aquelas sementes,


Sou esta carne,
Esta carne odeia a dor,
Esta carne tem que comer,
Esta carne tem que dormir,
Esta carne tem que sonhar,
Esta carne tem que rir,
Esta carne tem que gritar,
Mas quando, em seu estado de carne,
Ela estiver acabada,
Plantem-na, por favor,
Como um narciso silvestre”.

Quem lerá isso? Só Deus sabe. Melody e Isadore não, claro. Como
todos os outros jovens desta ilha, eles não sabem ler ou escrever.
Não têm curiosidade a respeito do passado humano, nem sobre a vida
no continente.
No que lhes diz respeito, a mais gloriosa realização de todo aquele
mundo de gente que habitou esta ilha foi morrer, para que pudéssemos ter
tudo só para nós.
Pedi-lhes uma noite destas que me dissessem quais tinham sido os três
seres humanos mais importantes da história. Protestaram, dizendo que a
pergunta não fazia sentido.
Insisti, dizendo que pensassem juntos e me dessem qualquer resposta,
que foi o que fizeram. Mostraram-se muito zangados com esse exercício.
Foi doloroso para eles.
Finalmente apareceram com uma resposta. É Melody quem fala pelos
dois quase sempre, e foi isso o que ela me disse, com toda a seriedade: —
Você, Jesus Cristo e Papai Noel.
Ai ô.

•••

Quando não lhes faço perguntas, eles são felizes como mariscos.

•••

Esperam um dia se tornar escravos de Vera Esquilo-5 Zappa. Não tenho


nada contra.
Capítulo 2

Palavra que vou tentar parar de escrever “Ai ô” o tempo todo.


Ai ô.

•••

Nasci aqui mesmo na cidade de Nova York. Não era então um “Narciso
Silvestre”. Fui batizado Wilbur Rockefeller Swain.
Além disso, não estava sozinho. Tinha uma gêmea. Chamada Eliza
Mellon Swain.
Fomos batizados no hospital, e não numa igreja, e não estávamos
cercados por parentes e amigos de nossos pais. O problema era que Eliza e
eu éramos tão feios que nossos pais ficaram com vergonha.
Éramos monstros, e esperavam que não vivêssemos muito. Tínhamos
seis dedos em cada mãozinha e outros seis em cada pezinho. Também
tínhamos mamilos extras — dois pares para cada um de nós.
Não éramos mongoloides idiotas, embora tivéssemos o cabelo preto e
grosso típico dos mongoloides. Éramos algo novo. Éramos,
neandertaloides. Tínhamos o aspecto de seres humanos adultos e fósseis,
mesmo na infância — maciços sobrecenhos, testas onduladas e mandíbulas
como pás de escavadeira.

•••

Não esperavam que tivéssemos inteligência, acreditando que morrêssemos


antes dos catorze anos.
Mas ainda estou vivo e bem vivo, obrigado. E Eliza também estaria,
estou certo, se não houvesse morrido aos cinquenta anos — em uma
avalancha nas proximidades da colônia chinesa no planeta Marte.
Ai ô.

•••
Nossos pais eram duas pessoas tolas, bonitas e muito jovens chamadas
Caleb Mellon Swain e Letitia Vanderbilt Swain, née Rockefeller. Eram
fabulosamente ricos e descendiam de americanos que tudo fizeram para
arruinar o planeta, em um delírio idiota — transformando obsessivamente
dinheiro em poder, depois poder em dinheiro e, de novo, dinheiro em poder.
Mas Caleb e Letitia eram pessoalmente inofensivos. Papai era muito
bom no jogo de gamão, diziam, e regular em fotografia colorida. Mamãe
empenhava-se na Associação Nacional para o Progresso da Gente de Cor.
Nenhum dos dois trabalhava. Nenhum se formara em universidade, embora
ambos houvessem tentado.
Escreviam e falavam lindamente. Adoravam-se. Mostravam-se
humildes por se terem saído tão mal nos estudos. Eram gentis.
E não posso culpá-los pelo abalo que sentiram por serem pais de dois
monstros. Qualquer um se abalaria por gerar Eliza e eu.

•••

E Caleb e Letitia foram tão bons pais quanto eu, quando chegou a minha
vez. Eu não podia suportar meus próprios filhos, embora fossem normais
em todos os sentidos.
Talvez eu tivesse gostado mais deles se fossem monstros como Eliza e
eu.
Ai ô.

•••

O jovem Caleb e Letitia foram aconselhados a não partir seus corações ou


arriscar sua mobília tentando criar Eliza e eu em Turtle Bay. Não éramos
mais parentes deles, disseram seus conselheiros, que filhotes de crocodilo.
A reação de Caleb e Letitia foi humana. Também foi muito dispendiosa
e romântica ao extremo. Nossos pais não nos esconderam em nenhuma
clínica particular para casos assim. Em lugar disso, nos sepultaram em uma
velha mansão assombrada que tinham herdado — em meio a oitenta
hectares de macieiras, numa colina perto da aldeia de Galen, no Estado de
Vermont.
Ninguém morava ali havia trinta anos.

•••
Carpinteiros, eletricistas e encanadores foram levados para lá para
transformar aquilo em uma espécie de paraíso para Eliza e para mim. Foi
colocado um grosso revestimento de borracha sob os tapetes que iam de
parede a parede, para o caso de cairmos. Nossa sala de jantar foi ladrilhada
e recebeu valetas no chão, para que nós e a sala pudéssemos receber uma
boa lavada após cada refeição.
O mais importante talvez fossem as duas cercas que ergueram ali,
encimadas por arame farpado. A primeira fechava o pomar. A segunda
isolava a mansão dos olhos curiosos dos trabalhadores que tinham de vir ao
pomar de vez em quando para cuidar das macieiras.
Ai ô.

•••

Recrutou-se a criadagem nas vizinhanças. Havia uma cozinheira. Havia


duas faxineiras e um faxineiro. Duas enfermeiras nos alimentavam,
vestiam, despiam e banhavam. De quem me lembro melhor é Withers
Witherspoon, combinação de guarda, motorista e quebra-galho.
Sua mãe era uma Withers. Seu pai era um Witherspoon.

•••

Sim, e eram gente simples da roça que, com exceção de Withers


Witherspoon, que servira o Exército, jamais tinha saído de Vermont.
Raramente se haviam aventurado a mais de quinze quilômetros de Galen,
para falar a verdade — e, como não podia deixar de ser, eram todos
aparentados uns com os outros, de tanto se casarem entre si como os
esquimós.
É claro que eram longinquamente aparentados com Eliza e comigo, já
que nossos ancestrais de Vermont se tinham contentado em mergulhar,
como cães vadios, se me permitem dizê-lo, na mesma minúscula piscina
genética.
Acontece que, no esquema americano daquele tempo, eles eram tão
relacionados conosco quanto as carpas com as águias, já que nossa família
tinha evoluído e passara a ser um bando de viajantes e multimilionários.
Ai ô.

•••
Sim, e foi fácil para nossos pais comprar a lealdade desses fósseis vivos.
Foram-lhes destinados modestos salários, que pareciam enormes para eles,
já que em seus cérebros os lobos de fazer dinheiro eram muito primitivos.
Receberam bons apartamentos na mansão e aparelhos de TV em cores.
Foram estimulados a comer como imperadores, mandando a conta do que
desejassem para meus pais. Tinham muito pouco que fazer.
Ou melhor, não tinham muito em que pensar. Foram colocados sob o
comando de um jovem clínico-geral que morava na aldeia, o Dr. Stewart
Rawlings Mott, que ia nos ver todos os dias.
O Dr. Mott, que por sinal era texano, era um rapaz melancólico e
introvertido. Até hoje não sei o que o induziu a se afastar tanto dos seus e
de sua terra — para exercer a medicina numa aldeia esquimó do Vermont.
Uma curiosa nota nesta história, que provavelmente não tem maior
significado: o neto do Dr. Mott se tornaria o rei de Michigan durante o meu
segundo mandato como presidente dos Estados Unidos.
Tenho que soluçar de novo: Ai ô.

•••

Juro que, se viver até o fim desta autobiografia, revisarei tudo e cortarei
todos os “ai ô”.
Ai ô.

•••

Sim, e havia um sistema anti-incêndios de esparzimento automático de água


— e alarmes contra ladrões nas janelas, portas e claraboias.
Quando fomos ficando mais velhos e mais feios, além de capazes de
fraturar braços, ou cortar cabeças, foi instalado um grande gongo na
cozinha. Ele se ligava aos botões vermelho-escuros que havia em todos os
cômodos e nos corredores, a intervalos regulares. Esses botões brilhavam
no escuro.
Só se devia acionar um botão vermelho se Eliza e eu começássemos a
brincar de assassinato.
Ai ô.
Capítulo 3

Papai foi para Galen com um advogado, um médico e um arquiteto, para


supervisionar a reforma da casa para Eliza e para mim, além da contratação
dos criados e do Dr. Mott. Mamãe permaneceu aqui em Manhattan, em sua
casa de Turtle Bay.
Por falar nisso, um grande número de tartarugas regressou a Turtle Bay.
Os escravos de Vera Esquilo-5 Zappa gostam de caçá-las para fazer
sopa.
Ai ô.

•••

Essa foi uma das poucas ocasiões, exceto quando do falecimento de Papai,
em que ele e Mamãe estiveram separados por mais de um ou dois dias. E
Papai escreveu uma graciosa carta para Mamãe, que descobri na mesinha de
cabeceira dela após a sua morte.
Deve ter sido a única correspondência que trocaram pelo correio.
“Minha amada Tish”, escreveu ele. “Nossos filhos ficarão muito felizes
aqui. Podemos nos orgulhar. O arquiteto pode se orgulhar. Os operários
podem se orgulhar.
“Por mais curtas que possam ser as vidas de nossos filhos, nós lhes
teremos concedido as dádivas da dignidade e da felicidade. Criamos um
delicioso asteroide para eles, um pequeno mundo com uma mansão e o
resto coberto por macieiras.”

•••

Ele regressou depois para o seu próprio asteroide — em Turtle Bay. Daí em
diante, também seguindo os conselhos tios médicos, ele e Mamãe nos
visitariam uma vez por ano, sempre no dia do nosso aniversário.
A pedra com que foi construída sua casa ainda está de pé, e ainda é
aconchegante e protegida. É lá que nossa vizinha mais próxima, Vera
Esquilo-5 Zappa, abriga seus escravos.

•••

“E quando Eliza e Wilbur afinal morrerem e forem para o céu”, assim


continuava a carta de meu pai, “eles poderão descansar entre seus ancestrais
Swain, no cemitério particular da família, sob as macieiras.”
Ai ô.

•••

Quanto a quem já estava enterrado naquele cemitério, separado da mansão


por uma cerca: em sua maior parte, plantadores de macieiras do Vermont,
seus companheiros e descendentes, gente comum. Muitos deles eram, sem
dúvida, tão analfabetos e ignorantes quanto Melody e Isadore.
Em outras palavras: eram inocentes macacos, com poucos recursos para
fazer o mal, o que, na minha opinião de homem muito velho, é tudo aquilo
para que os seres humanos se destinam.

•••

Muitas das lápides daquele cemitério tinham afundado ou desabado. O


tempo apagara os epitáfios das que ainda se mantinham de pé.
Mas havia um enorme monumento, com grossas paredes de granito,
telhado de ardósia e grandes portas, que certamente sobreviverá ao Dia do
Juízo Final. Era o mausoléu do fundador da fortuna da família e construtor
de nossa mansão, o Professor Elihu Roosevelt Swain.

•••
O Professor Swain foi, destacadamente, o mais inteligente dos antepassados
de que temos notícia, incluindo-se aí os Rockefeller, Dupont, Mellon,
Vanderbilt, Dodge e todos os demais. Graduou-se pelo Massachusetts
Institute of Technology aos dezoito anos de idade, indo organizar o
Departamento de Engenharia Civil da Universidade de Cornell aos vinte e
dois. A essa época já possuía diversas patentes importantes relativas a
pontes ferroviárias e mecanismos de segurança, as quais, sozinhas, já
seriam o bastante para fazer dele um milionário.
Mas não se sentia satisfeito. E por isso criou a Companhia de Pontes
Swain, a qual planejou e supervisionou a construção das pontes ferroviárias
de todo o mundo.

•••

Ele era um cidadão do mundo. Falava muitos idiomas e era amigo pessoal
de muitos chefes de Estado. Mas quando chegou a hora de construir um
palácio só seu, colocou-o entre as macieiras de seus ignorantes
antepassados. E era a única pessoa que gostava daquela construção incrível
até o dia em que Eliza e eu aparecemos. Fomos tão felizes ali!

•••

Eliza e eu partilhávamos um segredo com o Professor Swain, muito embora


ele estivesse morto havia mais de meio século. Os criados não sabiam de
nada. Nem nossos pais. E parece que os operários que reformaram a casa
jamais suspeitaram de coisa alguma, não obstante terem instalado canos,
fios e condutos de aquecimento através de toda sorte de intrigantes espaços.
Era este o segredo: havia uma mansão escondida dentro da mansão.
Podia-se entrar nela através de portas disfarçadas e painéis que deslizavam.
Ela consistia em escadarias secretas, lugares para se ouvir, buracos para se
espiar e passagens ocultas. Tinha túneis também.
Na verdade, Eliza e eu podíamos, por exemplo, desaparecer dentro de
um enorme relógio antigo no salão de baile que ficava no andar superior da
torre norte e aparecer a quase um quilômetro de distância — através de um
alçapão no piso do mausoléu do Professor Elihu Roosevelt Swain.

•••
Também partilhávamos outro segredo com o professor — que descobrimos
ao mexer em alguns documentos da casa. Seu sobrenome materno não era
“Roosevelt”. Ele o adotara a fim de parecer mais aristocrático quando se
matriculara no MIT.
O nome que constava de sua certidão de batismo era Elihu Witherspoon
Swain.
Suponho que tenha sido graças a seu exemplo que Eliza e eu um dia
resolvemos dar a todo o mundo novos sobrenomes.
Capítulo 4

Quando o Professor Swain morreu, era tão gordo que não sei como pôde
caber em qualquer uma de suas passagens secretas. Elas eram muito
estreitas. Eliza e eu cabíamos, mesmo com nossos dois metros de altura —
porque os tetos eram muito altos.
Sim, e o Professor Swain morreu de tão gordo, em sua mansão, durante
um jantar que deu em honra de Samuel Langhorne Clemens e Thomas Alva
Edison.
Bons tempos aqueles.
Eliza e eu achamos o cardápio. Começava com sopa de tartaruga.

•••

Nossos criados comentavam entre si, de vez em quando, que a casa era mal-
assombrada. Ouviam espirros e estalos nas escadas onde não havia escadas,
assim como portas abrindo e fechando onde não havia portas.
Ai ô.

•••

Seria ótimo para mim, velho centenário enlouquecido nas ruínas de


Manhattan, lamentar-me de que Eliza e eu tivéssemos sido submetidos a
atos de indizível crueldade naquela casa mal-assombrada. Mas, na verdade,
é bem possível que tenhamos sido as duas crianças mais felizes que jamais
existiram.
Essa felicidade toda não acabaria senão no décimo quinto ano de nossa
existência.
Imaginem só.
Sim, e quando me tornei pediatra, praticando medicina rural na mansão
onde fui criado, muitas vezes disse a mim mesmo, referindo-me a um
paciente qualquer e me lembrando de minha própria infância: “Esta pessoa
acabou de chegar a este planeta, nada sabe a respeito dele, não tem padrões
com que julgá-lo. Esta pessoa não se importa com o que virá a ser. Está
ansiosa para se tornar absolutamente qualquer coisa que esperarem que
venha a ser”.
Isso certamente descreve o estado de espírito de Eliza e o meu quando
éramos crianças. Todas as informações que recebíamos a respeito do mundo
em que estávamos indicavam que era uma coisa maravilhosa ser idiota.
Logo, cultivamos a idiotia.
Recusávamo-nos a falar de modo coerente em público. “Buh”, e “duh”,
era o que dizíamos. Babávamos e revirávamos os olhos. Peidávamos e
ríamos. Comíamos cola-tudo.
Ai ô.

•••

Imaginem: estávamos nos centros das vidas daqueles que cuidavam de nós.
Eles podiam ser heroicamente cristãos aos seus próprios olhos se Eliza e eu
continuássemos a ser indefesos e detestáveis. Se nos tornássemos
abertamente inteligentes e autoconfiantes, eles passariam a ser auxiliares
banais e inferiores. Se fôssemos capazes de sair para o mundo, eles
perderiam seus apartamentos, suas TVs coloridas, a ilusão de ser uma
espécie de médicos e enfermeiras, além dos empregos muito bem pagos.
Então, desde o começo de tudo, e sem saber ao certo o que estavam
fazendo, eles nos imploravam mil vezes por dia para que continuássemos
indefesos e detestáveis.
Só houve um pequeno progresso na escala das realizações humanas que
eles desejavam que fizéssemos. Desejavam com todas as forças que nos
tornássemos capazes de ir ao banheiro.
E nós? Concordamos alegremente.

•••

Mas podíamos ler e escrever inglês desde os quatro anos. Somos capazes de
ler e escrever em francês, alemão, italiano, latim e grego antigo aos sete
anos. Além da álgebra, claro.
Havia milhares de livros na mansão. Aos dez anos de idade já tínhamos
lido todos eles, à luz de velas, na hora da sesta ou quando íamos dormir à
noite — nas passagens secretas, ou, muitas vezes, no mausoléu de Elihu
Roosevelt Swain.

•••

Mas continuamos a babar, a balbuciar e a fazer coisas desse gênero sempre


que havia adultos por perto. Era divertido. Não estávamos a fim de mostrar
nossa inteligência em público. Não achávamos que inteligência fosse uma
coisa útil ou atraente. Julgávamos que fosse apenas mais um exemplo de
nossa esquisitice, como nossos mamilos e dedos extras. Talvez
estivéssemos certos, sabem?
Ai ô.
Capítulo 5

Enquanto isso, o jovem e estranho Dr. Stewart Rawlings Mott pesava-nos e


media-nos, perscrutava nossos orifícios e tirava amostras de nossa urina —
dia após dia, sem parar.
— Como estão hoje? — perguntava-nos ele.
— Buh! Duh! — respondíamos. Nós o chamávamos “Flocka Butt”.
E esforçávamo-nos para que cada dia fosse exatamente igual ao
anterior. Sempre que o doutor elogiava nossos apetites saudáveis, nossos
movimentos intestinais regulares, eu invariavelmente enfiava os polegares
nas orelhas e agitava os dedos, enquanto Eliza levantava a saia e puxava o
elástico da cintura de sua meia-calça.
Eliza e eu acreditávamos então naquilo em que creio até hoje: que a
vida pode ser indolor desde que haja tranquilidade suficiente para uns dez
rituais que possam ser repetidos incessantemente.
O ideal, creio eu, seria que a vida fosse como um tipo qualquer de dança
da moda, algo facilmente aprendido em uma escola de dança.

•••

Hesito até hoje entre pensar que o Dr. Mott gostava de Eliza e de mim,
sabia como éramos espertos e desejava nos proteger das crueldades do
mundo, e pensar que ele fosse um idiota.
Depois que Mamãe morreu, descobri que a arca ao pé de sua cama
estava atulhada com os pacotes dos relatórios bissemanais do Dr. Mott
acerca da saúde de Eliza e da minha. Ele falava das quantidades cada vez
maiores de comida que ingeríamos e expelíamos. Falava, também, de nossa
incansável alegria e de nossa resistência natural às doenças da infância.
As coisas que ele relatava, contudo, eram do tipo das que um aprendiz
de carpinteiro não teria problema em detectar — como, por exemplo, que,
aos nove anos, nós dois tínhamos mais de dois metros de altura.
Fosse qual fosse a altura consignada em seus relatórios, entretanto, um
dado permanecia constante — nossa idade mental oscilava entre os dois e
os três anos.
Ai ô.

•••

O Dr. Mott, juntamente com minha irmã, é uma das poucas pessoas a que
estou realmente sequioso de ver na outra vida. Morro de vontade de lhe
perguntar o que realmente pensava de nós quando crianças — de que ele
suspeitava, e o quanto sabia.

•••

Eliza e eu devemos ter dado milhares de pistas sobre a nossa inteligência.


Não éramos os mais hábeis dos impostores. Afinal, éramos apenas crianças.
Tenho a impressão de que, quando balbuciávamos em sua presença,
usávamos palavras de alguma língua estrangeira que ele pudesse
reconhecer. Pode ser também que um dia tenha entrado na biblioteca da
mansão, que era de pouco interesse para os criados, e encontrado os livros
fora de seus lugares.
É possível também que ele tenha descoberto as passagens secretas, por
acaso. Costumava ficar andando longo tempo pela casa depois que nos
examinava. Sei disso, e sei também que dizia aos criados que seu pai tinha
sido arquiteto. Pode ser até mesmo que haja entrado por alguma das
passagens secretas e visto os livros que estávamos lendo, da mesma forma
que os pingos de vela espalhados pelo chão.
Quem sabe?

•••

Gostaria de saber também qual era sua mágoa. Eliza e eu, quando crianças,
vivíamos tão enrolados um no outro que raramente nos dávamos conta das
condições emocionais das outras pessoas. Mas sem dúvida nenhuma
ficamos impressionados com a melancolia do Dr. Mott. Por isso mesmo,
deve ter sido algo bem profundo.

•••
Perguntei uma vez a seu neto, o rei de Michigan, Stewart Papa-Figo-2 Mott,
se ele tinha alguma ideia de por que o Dr. Mott achava a vida um negócio
tão triste. — A gravidade ainda era normal — observei. — O céu ainda não
deixara de ser azul para ser amarelo, nunca mais voltando ao azul antigo.
Os recursos naturais do planeta ainda não tinham chegado ao fim. O país
ainda não fora despovoado pela gripe albanesa e pela Morte Verde.
“Seu avô tinha um bom carrinho e uma boa casinha e uma boa clínica e
uma bela mulherzinha e uma bela filhinha”, continuei. “E mesmo assim ele
vivia se lastimando!”
Minha entrevista com o rei, a propósito, teve lugar em seu palácio
situado no lago Maxinkuckee, no norte do Estado de Indiana, onde
antigamente era a Academia Militar Culver. Pela lei eu ainda era o
presidente dos Estados Unidos da América, mas já tinha perdido o controle
de tudo. Não havia mais Congresso, ou Tribunais Federais, Tesouro,
Exército ou coisa alguma desse gênero.
Havia talvez apenas umas oitocentas pessoas em toda a Washington. E
eu tinha sido reduzido a um único empregado quando fui apresentar meus
respeitos ao rei de Michigan.
Ai ô.

•••

Ele me perguntou se eu o considerava um inimigo, e eu respondi: — Céus,


claro que não, Alteza... sinto-me encantado com o fato de que alguém de
sua estatura tenha vindo trazer a lei e a ordem ao meio-oeste.

•••

O rei ficou impaciente quando o pressionei para falar mais a respeito de seu
avô, o Dr. Mott.
— Pelo amor de Deus — disse-me ele. — Qual é o americano que sabe
de alguma coisa a respeito de seu avô?

•••
Naquele tempo ele era um jovem e ascético soldado, muito magro e
submisso. Quando minha neta, Melody, veio a conhecê-lo, tinha se
transformado em um velho gordo e obsceno enrolado em mantos
incrustados de pedras preciosas.

•••

Envergava uma túnica muito simples, sem quaisquer divisas indicativas de


posto, nesse nosso encontro.
Quanto à minha roupa, era adequadamente cômica: cartola, casaca e
calças listradas, colete cinza-pérola com polainas combinando, camisa
branca, cheia de manchas, de colarinho alto e gravata. Por cima do colete, a
corrente de ouro de um relógio que pertencera a John D. Rockefeller, meu
antepassado que fundou a Standard Oil.
Havia duas coisas penduradas na corrente: meu distintivo de Phi Beta
Kappa, dos tempos de Harvard, e um narciso silvestre de plástico, em
escala reduzida. Meu sobrenome já havia sido então modificado legalmente
de “Rockefeller” para “Narciso Silvestre”.
— Não houve assassinatos, desfalques, suicídios ou problemas de
alcoolismo na família do Dr. Mott — prosseguiu o rei —, pelo menos que
eu saiba.
Ele tinha trinta anos. Eu, setenta e nove.
— Talvez Vovô fosse apenas uma dessas pessoas que nascem infelizes
— sugeriu ele. — Já pensou nisso?
Capítulo 6

Talvez existam pessoas realmente infelizes de nascença. Tomara que não.


No caso de minha irmã e eu: nascemos com a capacidade e a
determinação de sermos felizes completamente, o tempo todo.
Talvez até nisso fôssemos esquisitos.
Ai ô.

•••

Que é felicidade?
No caso de Eliza e no meu, felicidade era estarmos perpetuamente na
companhia um do outro, com muitos criados e comida boa, morando numa
mansão tranquila e cheia de livros, num asteroide coberto de macieiras. E
crescendo como metades especializadas de um só cérebro.
Embora nos agarrássemos e nos abraçássemos muito, nossas intenções
eram puramente intelectuais. É verdade — Eliza amadureceu sexualmente
aos sete anos. Eu, porém, não entraria na puberdade senão no meu último
ano na Escola de Medicina de Harvard, com vinte e três anos. Eliza e eu
usávamos o contato corporal apenas para aumentar a intimidade de nossos
cérebros.
Geramos assim um único gênio, que morria logo que nos separávamos,
e que ressuscitava no momento em que nos juntávamos.

•••

Eliza e eu éramos metades desse gênio, de modo quase semelhante a um


aleijão. Esse gênio era o indivíduo mais importante de nossas vidas, mas
nós nunca lhe demos um nome.
Quando aprendemos a ler e escrever, por exemplo, fui eu que na
verdade fiz toda a leitura e escrita. Eliza continuou analfabeta até a morte.
Mas foi Eliza que deu o grande salto intuitivo para nós. Foi ela quem
descobriu ser do nosso interesse continuarmos incapazes de falar, mas
sermos capazes de ir ao banheiro sozinhos. Foi Eliza que percebeu o que
eram os livros e o que poderiam significar aqueles sinaizinhos escuros nas
páginas.
Foi Eliza que sentiu alguma coisa de estranho nas dimensões de alguns
dos cômodos e corredores da nossa mansão. E fui eu quem teve o trabalho
metódico de medir, e depois experimentar as paredes e o soalho com saca-
rolhas e facas de cozinha, procurando as portas para um outro universo, que
acabamos encontrando.
Ai ô.

•••

Sim, era eu que lia tudo. E agora me parece que não há um só livro
publicado em qualquer das línguas indo-europeias antes da Primeira Guerra
Mundial que eu não tenha lido em voz alta.
Mas era Eliza quem memorizava tudo, e quem dizia o que teríamos de
aprender em seguida. Era Eliza que tinha a capacidade de reunir ideias
aparentemente sem relação a fim de obter uma nova. Era Eliza que
justapunha.

•••

É claro que grande parte de nossas informações já estava obsoleta, já que


pouquíssimos livros novos haviam sido trazidos para a mansão desde 1912.
Grande parte, contudo, era permanente. Assim como muita coisa também
era imbecil, como as danças que aprendemos.
Se eu quisesse, poderia exibir uma versão bem apresentável e
historicamente correta da tarantela, aqui nas ruínas de Nova York.

•••

Éramos, Eliza e eu, realmente um gênio quando pensávamos em conjunto?


Tenho que dizer que sim, especialmente porque não tínhamos quem nos
ensinasse. E não estou me vangloriando disso, pois sou apenas metade
daquele magnífico cérebro.
Lembro-me de que criticamos a teoria da evolução de Darwin, com base
na ideia de que as criaturas se tornariam demasiado vulneráveis enquanto
estivessem tentando se aperfeiçoar, digamos, para desenvolver asas ou
carapaças. Seriam comidas por animais que fossem mais práticos antes que
suas novas e maravilhosas características se aperfeiçoassem.
Fizemos pelo menos uma profecia que foi tão fantasticamente precisa
que, até hoje, quando penso nisso, me sinto abaladíssimo.
Prestem atenção: começamos com o mistério de como os povos antigos
ergueram as pirâmides do Egito e do México, e os grandes monumentos na
ilha de Páscoa, ou os arcos de Stonehenge sem dispor das modernas fontes
de energia e ferramentas.
Concluímos que deveriam ter ocorrido períodos de gravidade reduzida,
quando então se poderiam manusear enormes blocos de pedra como se
fossem gravetos.
Imaginamos inclusive que deveria ser anormal que a gravidade se
estabilizasse por períodos muito longos. E predissemos que a qualquer
momento ela poderia se tornar de novo tão caprichosa quanto o vento, o
calor e o frio, ou como as chuvas de granizo e as tempestades.

•••

Sim, e Eliza e eu também compusemos uma crítica precoce da Constituição


dos Estados Unidos da América. Achamos que era um esquema para a
pobreza tão bom quanto outro qualquer, já que seu êxito em manter o povo
razoavelmente feliz e orgulhoso dependia da força do próprio povo — mas,
no entanto, não descrevia qualquer mecanismo que visasse a tornar o povo,
em comparação com seus representantes eleitos, forte.
Era possível que os autores da Constituição fossem cegos à beleza das
pessoas que, mesmo não tendo grande riqueza, amigos poderosos ou cargos
públicos, eram, não obstante, genuinamente fortes.
Era mais provável, contudo, que não tivessem percebido que era natural
e, por isso mesmo, quase inevitável que os seres humanos compusessem
novas famílias, quando vivendo situações extraordinárias e duradouras. Isso
acontece com a mesma frequência nas tiranias e nos regimes democráticos,
já que os seres humanos são iguais no mundo todo, e a civilização é
fenômeno recentíssimo.
Assim sendo, seria de se esperar que os representantes eleitos
passassem a integrar a notável e poderosa família dos representantes eleitos
— o que, naturalmente, os tornaria cautelosos, agressivos e mesquinhos
com respeito a todas as outras famílias em que, é claro, a humanidade
estaria subdividida.
Eliza e eu, pensando como metades de um mesmo gênio, propúnhamos
que a Constituição fosse emendada de modo a garantir a todo cidadão, não
importa quão humilde, maluco, incompetente ou deformado ele seja, o
direito de pertencer a uma família qualquer tão disfarçadamente xenófoba e
astuciosa como a formada pelos seus funcionários públicos.
Melhor para Eliza e para mim!

•••

Ai ô.
Capítulo 7

Que bom teria sido — especialmente para Eliza, que era uma menina, se
fôssemos uns patinhos feios — se pouco a pouco tivéssemos nos tornado
bonitos. Mas simplesmente ficávamos mais horrorosos a cada dia que
passava.
Havia umas poucas vantagens em ser um homem de dois metros de
altura. Eu era respeitado como jogador de basquete no colégio e na
faculdade, muito embora tivesse ombros estreitos e uma voz de flauta. Eu
nem sequer tinha os primeiros indícios de barba, ou pelos pubianos. Sim, e
mais tarde, quando minha voz já tinha engrossado e fui candidato a senador
por Vermont, pude dizer nos cartazes, ignorando meus dedos e mamilos
extras: “É preciso um grande homem para fazer grandes coisas!”
Mas Eliza, que era exatamente tão alta quanto eu, não podia esperar
uma acolhida agradável em parte alguma. Não havia papel convencional
concebível para uma mulher com doze dedos nas mãos e outros doze nos
pés, quatro seios, um cérebro neandertaloide semigenial, e que pesava um
quintal e tinha dois metros.

•••

Mesmo quando éramos bem pequenos sabíamos que jamais ganharíamos


qualquer concurso de beleza.
A propósito: Eliza disse algo profético a esse respeito. Ela não poderia
ter mais que oito anos quando disse que talvez pudesse ganhar um concurso
de beleza em Marte.
É claro que ela estava destinada a morrer em Marte.
O prêmio de Eliza foi uma avalancha de pirita de ferro, mineral mais
conhecido como “ouro dos tolos”.
Ai ô.

•••
Houve uma época de nossa infância em que realmente achávamos que
éramos felizes por não sermos felizes. Sabíamos, através de todas as
novelas românticas que eu lera com minha voz esganiçada e muitos gestos,
que as pessoas bonitas tinham sua intimidade destruída por estranhos que se
apaixonavam por elas.
Não queríamos que isso nos acontecesse, já que juntos nós dois
compúnhamos não apenas um cérebro único, como também um universo
totalmente habitado.

•••

Mas pelo menos tenho uma coisa a dizer a favor de nossa aparência: nossa
roupa era a melhor que o dinheiro podia comprar. Nossas espantosas
medidas, que mudavam radicalmente quase que de mês em mês, eram
remetidas com regularidade pelo correio, de acordo com instruções de
nossos pais, a alguns dos melhores alfaiates, sapateiros, costureiros e
camiseiros do mundo.
As enfermeiras que nos vestiam demonstravam um entusiasmo infantil,
mesmo que jamais fôssemos a parte alguma, em nos preparar para
imaginários eventos sociais próprios de milionários — chás, exposições de
cavalos, férias em centros de esqui, escolas caríssimas, ou para uma noitada
de teatro aqui em Manhattan, completada por uma ceia com muito
champanha.
E assim por diante.
Ai ô.

•••

Éramos perfeitamente cônscios daquela comédia. No entanto, por mais


brilhantes que fôssemos quando juntávamos nossas cabeças, só aos quinze
anos é que fomos perceber que estávamos também em meio a uma tragédia.
Pensávamos que a feiura fosse simplesmente engraçada para as pessoas do
mundo exterior. Não tínhamos ideia de que chegávamos a causar asco em
estranhos que por acaso nos vissem inesperadamente.
Na verdade, éramos tão inocentes quanto à importância de uma boa
aparência que não conseguíamos entender direito a história do “Patinho
feio”, que li para Eliza um dia — no mausoléu do Professor Elihu
Roosevelt Swain.
A história, claro, é aquela de uma pequena ave que foi criada por patos,
que a consideravam o pato de aparência mais engraçada que jamais tinham
visto. Só que depois de crescer a avezinha se transformou em um cisne.
Lembro-me de que Eliza disse que teria sido muito melhor se o patinho
tivesse se transformado em um rinoceronte.
Ai ô.
Capítulo 8

Até a véspera do nosso décimo quinto aniversário, Eliza e eu nunca


tínhamos ouvido nada de mal sobre nós quando xeretávamos nas passagens
secretas.
Os criados estavam tão acostumados conosco que mal nos
mencionavam, mesmo em momentos de maior intimidade. O Dr. Mott
raramente comentava algo que não fosse sobre os nossos apetites e nossos
excrementos. E nossos pais estavam tão abalados conosco que não falavam
quando faziam sua viagem anual ao nosso asteroide. Lembro-me de que
Papai falava de modo forçado e hesitante sobre assuntos mundiais que lera
antes em revistas.
Traziam brinquedos de lojas caras, garantidos como apropriados e
educativos para crianças de três anos.
Ai ô.

•••

Sim, e isso tudo me faz pensar agora em todos os segredos a respeito da


condição humana que oculto de Melody e Isadore, visando à sua paz de
espírito — o fato de que a vida que vem depois desta não é boa, e assim por
diante.
Mais uma vez me assombro com a perfeição com que aquele segredo
foi por tanto tempo escondido de Eliza e de mim — que nossos pais
queriam que morrêssemos logo.

•••

Imaginávamos, preguiçosamente, que nosso décimo quinto aniversário


fosse ser igual a todos os outros. Planejamos o show de sempre. Nossos pais
chegaram à hora do jantar, às quatro da tarde. Ganharíamos nossos
presentes no dia seguinte.
Jogamos comida um no outro em nossa sala de jantar azulejada. Acertei
um abacate em Eliza. Ela me pegou com um filé mignon. Jogamos bolinhos
numa criada. Fingimos não saber que nossos pais tinham chegado e nos
observavam por uma fenda da porta.
Sim, e depois, ainda sem termos cumprimentado nossos pais, nos deram
banho e nos cobriram de talco, nos vestiram pijamas e roupões, e nos
calçaram chinelos. A hora de ir para a cama era às cinco, pois Eliza e eu
fingíamos dormir dezesseis horas diárias.
Nossas enfermeiras, Oveta Cooper e Mary Selwyn Kirk, nos disseram
que havia uma surpresa maravilhosa à nossa espera na biblioteca.
Fingimos completa ignorância sobre o que poderia ser a tal surpresa.
Tínhamos atingido a nossa altura de gigantes nessa época.
Eu tinha nas mãos um rebocador de borracha, supostamente o meu
brinquedo favorito. Eliza estava com uma fita vermelha de veludo no
redemoinho de seu cabelo negro de carvão.

•••

Como sempre, havia uma mesa de centro comprida entre Eliza e eu e


nossos pais. Como sempre, eles tomavam brandy. Como sempre, havia um
ótimo fogo crepitando na lareira, cheia de troncos de pinheiro e macieira.
Como sempre, um quadro a óleo do Professor Elihu Roosevelt Swain,
pendurado em cima da lareira, presidia o ritual.
Como sempre, nossos pais se levantaram. E sorriram para nós com o
que ainda não sabíamos que era um agridoce pavor.
Nossa parte do ritual era adorar vê-los ali, sem saber, contudo, quem
eram.
Como sempre fingimos achá-los adoráveis, mas sem nos lembrarmos de
que pessoas eram aquelas.

•••

Como sempre, foi Papai quem falou.


— Como vão, Eliza e Wilbur? Estão com uma ótima aparência.
Estamos muito contentes em vê-los. Lembram-se de quem somos?
Eliza e eu nos consultamos, nada à vontade, resmungando e
murmurando em grego antigo. Lembro-me de que Eliza me disse em grego
que não podia acreditar sermos aparentados com bonequinhos tão bonitos.
Papai nos ajudou. Disse-nos o nome que lhe havíamos dado anos antes.
— Eu sou Bluth-luh — disse.
Eliza e eu fingimos um enorme espanto.
— Bluth-luh! — dissemos. Não era possível acreditar em tamanha
sorte. — Bluth-luh! Bluth-luh! — gritamos.
— E esta — disse Papai, apontando para Mamãe — é Mub-lub.
Era uma notícia ainda mais sensacional para Eliza e eu.
— Mub-lub! Mub-lub! — exclamamos.
E então Eliza e eu demos um grande salto intelectual, como sempre.
Sem que ninguém dissesse nada, concluímos que, se nossos pais estavam
ali, nosso aniversário deveria ter chegado. E entoamos nossa palavra idiota
para aniversário, que era “fiff-zário”.
Como sempre, fingimos estar superexcitados. E pulamos sem parar. Já
éramos tão grandes que o chão começou a oscilar, como um trampolim.
Mas, de repente, paramos, fingindo, como sempre, termos ficado
catatônicos por causa da alegria excessiva.
Isso era sempre o fim do espetáculo. Fomos então levados embora.
Ai ô.
Capítulo 9

Fomos colocados em nossos berços sob medida — em quartos separados,


mas adjacentes. Os quartos eram ligados por um painel secreto na parede.
Os berços eram grandes como vagões. Faziam um barulhão quando seus
lados eram levantados.
Eliza e eu fingimos dormir imediatamente. Após meia hora, contudo,
estávamos reunidos no quarto de Eliza. Os criados nunca vinham espiar.
Nossa saúde era perfeita, afinal, e havíamos estabelecido uma reputação de
ser, como eles diziam, “... ótimos para dormir”.
Sim, e passamos pelo alçapão sob o berço de Eliza, e logo nos
revezávamos observando nossos pais na biblioteca através de um
buraquinho que tínhamos furado na parede, e que saía no canto superior da
moldura do quadro do Professor Elihu Roosevelt Swain.

•••

Papai falava com Mamãe a respeito de algo que lera numa revista, no dia
anterior. Parecia que cientistas da República Popular da China estavam
experimentando fazer seres humanos menores, para que não precisassem
comer tanto ou vestir roupas tão grandes.
Mamãe contemplava o fogo. Papai teve de repetir a história dos
chineses. Da segunda vez, ela respondeu, vagamente, que achava que os
chineses podiam fazer qualquer coisa que quisessem.
Apenas um mês antes, os chineses haviam mandado duzentos
exploradores a Marte — sem usar qualquer veículo espacial.
Nenhum cientista ocidental foi capaz de descobrir como a coisa tinha
sido feita. Por seu lado, os chineses não deram maiores detalhes.

•••

Mamãe disse que fazia muito tempo que os americanos não descobriam
nada.
— De uma hora para outra — comentou ela —, tudo passou a ser
descoberto pelos chineses.

•••

— Nós costumávamos descobrir tudo — acrescentou ela.

•••

Era o tipo da conversa boba. Com aquele nível de animação tão baixo era
como se nossos jovens e belos pais de Manhattan estivessem enterrados em
mel até o pescoço. Pareciam estar, como Eliza e eu sempre achávamos, sob
a influência de uma maldição que os obrigasse a falar apenas de coisas que
não lhes interessassem.
E, na verdade, estavam mesmo amaldiçoados. Só que Eliza e eu não
tínhamos adivinhado de que se tratava: que eles se viam estrangulados e
paralisados pelo desejo de que seus próprios filhos morressem.
Mas sou capaz de jurar por eles, embora a única prova de que disponho
seja o meu sentimento: nenhum dos dois, nem Papai nem Mamãe, jamais
deu sequer a entender para o outro que desejava nossa morte.
Ai ô.

•••

Mas deu-se então um estalo na lareira. Escapou vapor de um buraco num


tronco que queimava.
Sim, e Mamãe, sendo uma sinfonia de reações químicas, deu um grito
de pavor. Seus componentes químicos exigiram que ela gritasse em reação
ao estalo.
Depois que seus componentes químicos fizeram isso, exigiram um
bocado mais dela. Acharam que era uma boa hora para Mamãe dizer o que
realmente sentia em relação a Eliza e a mim, e foi o que ela fez. Tudo virou
uma confusão tremenda depois, quando as palavras começaram a sair. Suas
mãos se crisparam convulsivamente. Sua espinha se dobrou e seu rosto se
enrugou até ela se transformar em uma bruxa muito, muito velha.
— Eu os odeio, eu os odeio, eu os odeio — disse ela.

•••
E não se passaram muitos segundos antes que Mamãe dissesse com toda a
clareza a quem odiava, desvanecendo a nossa tola convicção de que ela
estava se referindo aos chineses.
— Odeio Wilbur Rockefeller Swain e Eliza Mellon Swain — foi o que
ela disse.
Capítulo 10

Naquela noite Mamãe ficou louca durante algum tempo.


Vim a conhecê-la melhor anos depois. E, embora nunca aprendesse a
amá-la (ou a qualquer outra pessoa, por sinal), admirava sua resoluta
decência em relação a tudo e a todos. Ela não era amante de insultos.
Quando falava em público, ou em casa, nenhuma reputação balançava.
Portanto não foi verdadeiramente a nossa mãe que disse, na véspera de
nosso décimo quinto aniversário: “Como posso amar o Conde Drácula e sua
tímida noiva?”, aludindo a Eliza e a mim.
Não foi, na verdade, nossa mãe que perguntou a nosso pai: “Como foi
que viemos a gerar um par de postes?”
E assim por diante.

•••

Quanto a Papai: ele a tomou em seus braços. Estava chorando de amor e


pena.
— Caleb, oh, Caleb... não sou eu quem está dizendo isso — exclamou
ela, em seus braços.
— Claro que não.
— Perdoe-me — pediu ela.
— Claro — disse ele.
— Será que Deus me perdoará?
— Já perdoou.
— Foi como se, de repente, um demônio tivesse se apossado de mim.
— Foi isso o que aconteceu, Tish.
A loucura dela já estava desaparecendo. — Oh, Caleb... — soluçou.

•••
Para que fique claro que não estou implorando simpatia, permitam-me que
diga que Eliza e eu éramos tão emocionalmente vulneráveis naquele tempo
como uma montanha de granito.
Precisávamos tanto do amor de um pai e de uma mãe quanto um peixe
precisa de uma bicicleta.
Assim, quando Mamãe falou mal de nós, e até desejou que
morrêssemos, nossa reação foi intelectual. Gostávamos de resolver
problemas. Talvez seu problema pudesse ser resolvido por nós — não com
o nosso suicídio, claro.
Ela acabou por se recuperar. Preparou-se para outros cem aniversários
com Eliza e comigo, caso Deus assim o quisesse, para testá-la. Mas, antes,
afirmou:
— Caleb, eu daria qualquer coisa pelo menor indício de inteligência,
pelo mais elementar brilho de humanidade nos olhos de qualquer um dos
gêmeos.

•••

Isso era fácil de conseguir.


Ai ô.

•••

Assim, Eliza e eu voltamos para o quarto dela e pintamos uma grande


mensagem num lençol. Depois de nossos pais estarem dormindo
profundamente, entramos no quarto deles pelo fundo falso de um armário.
Penduramos o lençol na parede, de modo que seria a primeira coisa que
veriam ao acordar.
A mensagem dizia:

“QUERIDOS MATER E PATER, NUNCA PODEREMOS SER BONITOS, MAS SOMOS


CAPAZES DE SER TÃO INTELIGENTES OU ESTÚPIDOS QUANTO O MUNDO
QUISER REALMENTE QUE SEJAMOS.
SEUS CRIADOS FIÉIS,
ELIZA MELLON SWAIN
WILBUR ROCKEFELLER SWAIN.”

Ai ô.
Capítulo 11

Assim, Eliza e eu destruímos nosso paraíso — nossa nação de dois.

•••

Na manhã seguinte, acordamos antes de nossos pais, antes que os criados


pudessem vir nos vestir. Não percebíamos qualquer perigo. Supúnhamos
ainda estar no paraíso enquanto nos arrumávamos.
Escolhi um terno com o colete, conservador, azul, de risca de giz. Eliza
quis vestir um suéter de casimira, uma saia de tweed e colar de pérolas.
Combinamos que Eliza seria nossa porta-voz inicial, já que tinha uma
rica voz de contralto. Minha voz não tinha autoridade para anunciar, calma
mas convincentemente, que, na verdade, o mundo sofrera uma modificação
total.
Lembrem-se, por favor, de que quase tudo o que nos ouviam dizer até
então era: “Buh” e “duh”.
Fomos encontrar Oveta Cooper, uma de nossas enfermeiras, no salão de
mármore verde, cheio de colunas. Ficou espantada em nos ver de pé e
vestidos.
Antes que pudesse fazer qualquer comentário, contudo, Eliza e eu
inclinamos nossas cabeças e as encostamos uma na outra, logo acima das
orelhas. O gênio único que compúnhamos falou então a Oveta, na voz de
Eliza, que era linda como uma viola medieval.
Foi isso que essa voz falou:
— Bom dia, Oveta. Hoje começa uma vida nova para todos nós. Como
você pode ver e ouvir, Wilbur e eu não somos mais idiotas. Aconteceu um
milagre esta noite. Os sonhos de nossos pais se realizaram. Estamos
curados. Quanto a você, Oveta, conservará seu apartamento e sua televisão
em cores. Talvez receba um aumento de salário como prêmio a tudo o que
fez, contribuindo para que este milagre ocorresse. Ninguém do pessoal
sofrerá mudança, exceto esta: a vida se tornará mais fácil e agradável do
que nunca.
Oveta, uma ianque gorducha e triste, estava hipnotizada — como um
coelho diante de uma cobra cascavel. Mas Eliza e eu não éramos uma
cascavel. Com nossas cabeças unidas, éramos um dos mais delicados gênios
que o mundo jamais conhecera.

•••

— Não mais usaremos a sala de jantar azulejada — prosseguiu a bela voz


de Eliza. — Temos ótimas maneiras, como você verá. Por favor, sirva-nos o
café da manhã no solário, e informe-nos quando Pater e Mater acordarem.
Seria excelente se, daqui em diante, você se dirigisse a meu irmão e a mim
como “Sr. Wilbur” e “Srta. Eliza”. Pode ir agora, e conte aos outros o
milagre.
Oveta permaneceu parada, atônita. Finalmente tive que estalar os dedos
sob seu nariz para acordá-la. Ela fez uma reverência.
— Como quiser, Srta. Eliza — disse, saindo para espalhar a notícia.

•••

Enquanto nos instalávamos no solário, o resto do pessoal foi aparecendo,


humildemente, para dar uma olhada no que tinham se transformado seus
jovens patrões.
Cumprimentamos todos por seus nomes completos. Fizemos perguntas
amistosas que indicavam um conhecimento detalhado de suas vidas.
Desculpamo-nos por ter chocado alguns deles com uma mudança tão
rápida.
— Simplesmente nós não percebíamos que alguém quisesse que
fôssemos inteligentes — disse Eliza.
Estávamos tão senhores da situação que também ousei falar. Nunca
mais minha voz esganiçada pareceria estúpida.
— Com sua cooperação, tornaremos esta casa famosa pela inteligência,
tal como foi infame pela idiotia em dias passados. Que caiam as cercas.
— Alguma pergunta? — indagou Eliza.
Nenhuma.

•••

Alguém chamou o Dr. Mott.


•••

Nossa mãe não desceu para tomar café. Ficou na cama, petrificada.
Papai desceu sozinho. De pijama, a barba por fazer. Mesmo jovem
como era, parecia entorpecido e abatido.
Eliza e eu nos espantamos ao ver que sua aparência não era feliz. Nós o
cumprimentamos não só em inglês, como também nas várias línguas que
conhecíamos.
Afinal, ele respondeu numa das línguas estrangeiras:
— Bonjour — disse.
— Sentai-vos! Sentai-vos! — disse, brincando, Eliza.
O coitado sentou-se.

•••

Estava doente de culpa, claro, por ter permitido que seres humanos
inteligentes, sua própria carne e seu sangue, tivessem sido tratados como
idiotas tanto tempo. Pior: sua consciência e seus conselheiros disseram-lhe
que o certo era ele não poder nos amar, já que éramos incapazes de
sentimentos, e já que não havia nada em nós, objetivamente, que qualquer
pessoa em seu juízo perfeito pudesse amar. Mas agora era seu dever nos
amar e ele achava que não poderia.
Não era culpa de Papai ou de Mamãe. Não era culpa de ninguém. Era
tão natural quanto respirar para todos os seres humanos, e todas as criaturas
de sangue quente, desejar uma morte rápida para dois monstros. Chegava a
ser um instinto.
E agora Eliza e eu tínhamos elevado aquele instinto a um nível
intolerável de tragédia.
Sem saber o que estávamos fazendo, Eliza e eu estávamos colocando a
tradicional maldição que os monstros lançam sobre as criaturas normais.
Estávamos pedindo admiração.
Capítulo 12

No meio de toda aquela excitação, Eliza e eu permitimos que nossas


cabeças ficassem separadas vários metros — e assim não estávamos
pensando mais com brilho.
Ficamos suficientemente imbecis para pensar que Papai estava apenas
com sono. Por isso, fizemos com que ele bebesse café, e tentamos despertá-
lo com algumas canções e quadrinhas que sabíamos.
Lembro-me de lhe ter perguntado se sabia por que o creme de leite era
tão mais caro que o próprio leite.
Num resmungo, ele disse que não conhecia a resposta.
Então Eliza lhe disse:
— É porque as vacas odeiam se agachar em cima de garrafinhas.
Demos risada com aquilo. Rolamos no chão. E aí Eliza se levantou,
aproximou-se dele e ralhou carinhosamente, como se Papai fosse um
menininho:
— Ô, mas que dorminhoco! Que dorminhoco!
O Dr. Stewart Rawlings Mott chegou neste instante.

•••

Embora o Dr. Mott tivesse sabido, pelo telefone, da metamorfose repentina,


o dia para ele parecia ser igual a todos os outros. Disse o que sempre dizia
ao chegar à mansão:
— Como vão todos hoje?
Falei então a primeira frase inteligente que o Dr. Mott jamais ouvira de
mim:
— Papai não quer acordar.
— É mesmo? — replicou ele, reagindo ao sentido completo da minha
frase com o mais neutro dos sorrisos.
O Dr. Mott se mostrou tão inacreditavelmente gentil que chegou a se
virar de costas para nós a fim de falar com Oveta Cooper. Parece que a mãe
dela, que morava na aldeia, tinha caído doente. — Oveta — disse ele —,
você vai ficar contente em saber que a temperatura de sua mãe está quase
normal.
Papai se irritou com esse à-vontade e, sem dúvida, gostou de achar
alguém em quem pudesse descarregar abertamente a sua raiva:
— Há quanto tempo isto está acontecendo, doutor? — quis saber Papai.
— Há quanto tempo sabe da inteligência deles?
O Dr. Mott consultou o relógio:
— Há cerca de quarenta minutos.
— O senhor não parece nem um pouco espantado — disse Papai.
O Dr. Mott pareceu pensar no caso e deu de ombros.
— Certamente que me sinto muito feliz por todos — afirmou.
Acho que foi o fato de o Dr. Mott, na verdade, não parecer nem um
pouco contente ao dizer aquilo que fez com que Eliza e eu juntássemos de
novo nossas cabeças. Algo muito estranho estava acontecendo, e nós
precisávamos urgentemente compreender o que era.

•••

Nosso gênio não nos falhou. Permitiu-nos compreender a gravidade da


situação — tudo ficara mais trágico que antes.
Mas, como todos os gênios, o nosso também sofria de fases periódicas
de monumental ingenuidade. Foi o que aconteceu. Ele nos disse que tudo o
que tínhamos de fazer, para que tudo voltasse ao normal, era regressar à
idiotia.
— Buh — disse Eliza.
— Duh — disse eu.
Peidei.
Eliza babou.
Peguei um bolinho amanteigado e joguei na cabeça de Oveta Cooper.
Eliza virou para Papai:
— Bluth-luh!
— Fiff-zário! — gritei.
Papai chorou.
Capítulo 13

Em quatro dos seis dias que se passaram desde que comecei a escrever, a
gravidade esteve regular — aquilo que costumava ser nos velhos tempos.
Ontem estava tão forte que mal pude me levantar da cama, um ninho de
trapos no saguão do Empire State. Quando tive que ir ao poço do elevador
que uso como banheiro, atravessando minha floresta de candelabros, me vi
forçado a rastejar.
Ai ô.
Bem, a gravidade estava fraca no primeiro dia e hoje está de novo. Tive
uma ereção novamente, tal como Isadore, o amante de minha neta Melody.
Tal como acontece com todos os homens da ilha.

•••

Sim, e Melody e Isadore prepararam um lanche para fazer um piquenique


no cruzamento da Broadway com a 42nd Street, onde, nos dias de pouca
gravidade, estão construindo uma rústica pirâmide.
Eles não moldam as lajes, pilares e seixos que usam na construção, e
tampouco limitam o material que empregam na alvenaria. Jogam também
vigas, tambores de petróleo, pneus, peças de automóveis, mobília de
escritório e cadeiras de teatro, assim como qualquer outro tipo de lixo. Mas
já vi os resultados, e o que estão construindo não será uma amorfa
montanha de refugos. Quando terminar, será, sem sombra de dúvida, uma
pirâmide.

•••

Sim, e se os arqueólogos do futuro acharem meu livro serão poupados do


trabalho infrutífero de escavar a pirâmide em busca de seu significado. Não
haverá nela quartos secretos, nem câmaras de qualquer espécie.
Seu significado, que de qualquer forma é ínfimo, jaz embaixo da tampa
de um bueiro sobre o qual a pirâmide foi construída. É o corpo de um feto
masculino.
O pequeno corpo se encontra dentro de uma caixa de madeira
trabalhada, que um dia foi destinada a charutos de qualidade. Essa caixa foi
colocada no chão do bueiro há quatro anos, em meio a um sem-número de
cabos e canos — por Melody, que foi sua mãe aos doze anos de idade, por
mim, seu bisavô, e pela nossa vizinha mais próxima e querida amiga, Vera
Esquilo-5 Zappa.
A pirâmide propriamente dita foi ideia de Melody e Isadore, que depois
se tornou seu amante. É um monumento a uma vida que jamais foi vivida
— a uma pessoa que não chegou a ganhar um nome.
Ai ô.

•••

Não é necessário abrir um buraco através da pirâmide para chegar à caixa.


Ela pode ser alcançada através de outros bueiros.
Cuidado com os ratos.

•••

Como a criança seria minha herdeira, a pirâmide devia ser denominada “a


tumba do Príncipe dos Candelabros”.

•••

O nome do pai do Príncipe dos Candelabros é desconhecido. Ele forçou a


barra com Melody nas cercanias de Schenectady. Ela estava vindo de
Detroit, no reino de Michigan, para a ilha da Morte, onde esperava
encontrar seu avô, o lendário Dr. Wilbur Narciso Silvestre-11 Swain.

•••

Melody está grávida de novo — só que desta vez o pai é Isadore.


Ela é uma coisinha pequena, de pernas arqueadas, raquítica e dentuça,
mas jovial. Alimentava-se muito mal quando bebê e quando menina
pequena — como órfã no harém do rei de Michigan.
Às vezes, Melody me parece uma alegre velhinha chinesa, embora só
tenha dezesseis anos. É triste para um pediatra ver uma garota grávida
parecer uma velhinha chinesa.
Por outro lado, dá gosto ver o amor que o robusto e corado Isadore lhe
dedica. Como quase todos os membros da família Framboesa, ele tem
praticamente todos os dentes e permanece de pé, na vertical, mesmo quando
a ação da gravidade se faz mais severa. Em dias assim, carrega Melody nos
braços e já se ofereceu para me carregar.
Os Framboesa são praticamente coletores de alimento, vivendo nas
ruínas e nas proximidades da Bolsa de Valores de Nova York. Eles pescam
ao longo do cais. Escavam o entulho atrás de alimentos enlatados. Colhem
as frutas e as sementes que encontram. Plantam tomate, batata, rabanete e
mais uma ou outra coisa.
Pegam em suas armadilhas ratos, morcegos, cachorros, gatos e pássaros,
e comem. Um Framboesa é capaz de comer qualquer coisa.
Capítulo 14

Posso desejar a Melody aquilo que nossos pais desejaram a Eliza e a mim:
uma vida curta, mas feliz, em um asteroide.
Ai ô.

•••

Sim, e como já disse, Eliza e eu poderíamos ter tido uma vida longa e feliz
em nosso asteroide, se um dia não tivéssemos exibido nossa inteligência.
Poderíamos estar ainda na mansão queimando as árvores, a mobília, os
corrimões e os painéis de madeira das paredes para nos aquecer, babando e
balbuciando quando aparecessem estranhos.
Poderíamos ter criado galinhas. Cultivado uma pequena horta. E ter nos
divertido com nossa sempre crescente sabedoria, sem ligar a mínima para
sua possível utilidade.

•••

O sol está se pondo. Nuvens de morcegos abandonam o subterrâneo do


metrô, nervosos, guinchando, se dispersando como um gás. Como sempre,
estremeço.
Não posso considerar o que fazem como um barulho. É mais uma
doença do silêncio.

•••

Continuo a escrever à luz de um trapo embebido em gordura animal.


Tenho mil candelabros e nenhuma vela.
Melody e Isadore jogam gamão — num tabuleiro que pintei no chão do
saguão.
Eles passam e repassam um pelo outro e riem.

•••
Estão planejando uma festa para o meu centésimo primeiro aniversário,
daqui a um mês.
Às vezes escuto disfarçadamente o que falam. É difícil a gente se livrar
de um velho hábito. Vera Esquilo-5 Zappa está fazendo fantasias novas
especialmente para a ocasião — não só para ela própria como também para
seus escravos. Vera tem montanhas de tecido em seus depósitos em Turtle
Bay. Os escravos usarão pantalonas cor-de-rosa e sandálias douradas, foi o
que ouvi dizer. E turbantes de seda verde com plumas de avestruz.
Vera fará sua entrada sentada numa liteira, foi o que eu soube, cercada
por escravos carregando presentes, comida, bebidas e archotes, e afastando
os cães selvagens com o clangor de sinetas.
Ai ô.

•••

Tenho que ter muito cuidado com a bebida na minha festa de aniversário. Se
eu beber demais, poderei deixar escapar o segredo: que a vida que nos
espera depois da morte é infinitamente mais monótona que a atual.
Ai ô.
Capítulo 15

É claro que não nos permitiram voltar ao consolo da idiotia. Sim, e os


criados e os nossos pais descobriram um efeito colateral da nossa
metamorfose que consideravam positivamente delicioso: subitamente eles
tinham o direito de berrar conosco.
Que aperto passávamos de vez em quando!

•••

O Dr. Mott foi despedido e trouxeram especialistas de todo tipo.


No começo, foi divertido. Os primeiros médicos a chegar eram
especialistas em coração, pulmão e rins. Quando nos estudaram, órgão por
órgão e fluido corporal por fluido corporal, chegaram à conclusão de que
éramos obras-primas de saúde.
Eram geniais. De certo modo, todos eram empregados da família. Eram
pesquisadores cujo trabalho era financiado pela Fundação Swain em Nova
York. Por isso é que foram reunidos tão facilmente e levados para Galen. A
família os ajudara. Agora deviam ajudar a família.
Gozaram a gente um bocado. Um deles, ainda me lembro, disse para
mim que devia ser engraçado ser tão alto. — Tá frio aí em cima? —
perguntou-me, etc., etc.
As gozações nos acalmavam. Davam-nos a impressão errada de que não
importava nada o fato de sermos tão feios. Ainda recordo o que um otorrino
disse, ao examinar as enormes cavidades nasais de Eliza com uma lanterna:
“Meu Deus, enfermeira! Ligue para a Sociedade Nacional de Geografia.
Acabamos de descobrir uma nova entrada para a caverna do Mamute!”
Eliza riu. Eu ri. Nós todos rimos.
Nossos pais ficavam em outra parte da mansão. Mantinham-se afastados
de toda brincadeira.

•••
Bem cedo, contudo, viemos a sofrer os primeiros problemas advindos da
separação. Alguns dos exames exigiam que ficássemos separados por vários
cômodos. Quanto mais aumentava a distância entre Eliza e mim, mais eu
sentia como se minha cabeça estivesse se transformando em madeira.
Tornava-me burro e inseguro.
Conversando com Eliza, ela me disse que sentira coisa bem semelhante:
— É como se meu crânio estivesse recheado de xarope de panqueca.
E, corajosamente, tentamos nos divertir em vez de nos amedrontar com
as crianças apáticas em que nos transformávamos ao nos separar. Fingimos
que não tinham nada que ver conosco e até inventamos nomes para elas:
Betty e Bobby Brown.

•••

E o momento agora é tão oportuno quanto qualquer outro, creio eu, para
contar que, ao ler o testamento de Eliza, morta em uma avalancha marciana,
descobrimos que ela queria ser enterrada onde quer que morresse. Sua
sepultura devia ser assinalada por uma lápide simples, onde seria gravada a
seguinte informação, e nada mais:

•••
Sim, e foi a última especialista a nos examinar, uma psicóloga chamada
Dra. Cordelia Swain Cordiner, quem decretou que Eliza e eu deveríamos
ficar permanentemente separados, ou seja, que nos tornássemos para
sempre Betty e Bobby Brown.
Capítulo 16

Foi Fiódor Mikháilovitch Dostoiévski, romancista russo, que disse: “Uma


venerável lembrança da infância talvez seja a melhor educação”. Sei de
outro tipo de educação rápida para uma criança que, a seu modo, é quase
que igualmente saudável: conhecer uma pessoa tremendamente respeitada
pelos adultos, e perceber que se trata de um perverso lunático.
Foi essa a nossa experiência com a Dra. Cordelia Swain Cordiner,
considerada em toda parte o maior perito em testes psicológicos de todo o
mundo — com a possível exceção da China. Ninguém mais sabia o que
estava se passando na China.
Nós quase que nos sufocávamos com o seu perfume.

•••

Tenho uma Enciclopédia britânica aqui no Empire State, e é por isso que
sou capaz de citar o nome completo de Dostoiévski.

•••

A Dra. Cordelia Swain Cordiner era invariavelmente impressionante e


graciosa quando em presença de adultos. Mostrava-se sempre vestida com
requinte o tempo todo que passava na mansão — de saltos altos, vestidos
enfeitados e joias.
Ouvimos quando ela disse a nossos pais: — Só porque uma mulher tem
três diplomas e dirige uma empresa de testes que fatura três milhões de
dólares por ano, não quer dizer que ela não possa ser feminina.
Mas, quando se via a sós com Eliza e comigo, ela fervia de paranoia.
— Nada de malandragem, nada desses truquezinhos sujos de filhos de
milionário — dizia.
E Eliza e eu não havíamos feito nada de errado.

•••
A Dra. Cordiner tinha tanta raiva de todo o dinheiro e poder de nossa
família que não creio que percebesse o quanto éramos feios e enormes. Para
ela éramos apenas dois meninos ricos e estragados.
— Eu não nasci em berço de ouro — disse-nos ela, não uma, mas
muitas vezes. — Era frequente não sabermos quando comeríamos de novo.
Vocês têm ideia do que seja isso?
— Não — dizia Eliza.
— Claro que não — dizia a Dra. Cordiner.
E assim por diante.

•••

Sendo uma paranoica, para ela era especialmente intolerável o fato de ter
um sobrenome, Swain, igual ao nosso.
— Não sou sua querida tia Cordelia — dizia. — Não precisam fundir
suas aristocráticas cucas com isso. Quando meu avô veio da Polônia,
mudou seu nome de Stankowitz para Swain. — Seus olhos brilhavam. —
Digam “Stankowitz”!
Dizíamos.
— Agora digam “Swain”.
E nós dizíamos “Swain”.

•••

Finalmente um de nós perguntou o que a irritava tanto.


A pergunta a acalmou.
— Não estou irritada com coisa alguma — foi a resposta. — Seria
muito pouco profissional ficar irritada. No entanto, permitam-me dizer que
chamar uma pessoa do meu nível para vir aqui tão longe, nesse fim de
mundo, apenas para administrar testes em duas crianças, é como chamar
Mozart para afinar um piano. Ou como chamar Albert Einstein para
conferir um talão de cheques. Estão me entendendo, “Sr. Wilbur e Srta.
Eliza”, como creio que são chamados?
— Então, por que veio até aqui? — perguntei-lhe.
Sua cólera reapareceu, sem disfarces. E me respondeu o seguinte, com
todo o rancor de que era capaz:
— Porque o dinheiro fala mais alto, meu “pequeno Lorde Fauntleroy”!
•••

Ficamos mais chocados ainda quando soubemos que ela nos queria testar
em separado. Com toda a nossa inocência, dissemos que daríamos um
número maior de respostas corretas se pudéssemos juntar nossas cabeças.
Ela se excedeu em sua ironia.
— Mas é claro, Sr. Wilbur e Srta. Eliza. E não gostariam também de
poder consultar uma enciclopédia e, quem sabe, o corpo docente da
Universidade de Harvard?
— Até que seria bem bom — dissemos.
— Pois saibam, caso ninguém lhes tenha dito, que estamos nos Estados
Unidos da América, onde ninguém tem o direito de se apoiar em ninguém,
onde todo mundo aprende a abrir seu próprio caminho. Estou aqui para
testar vocês, mas há uma regra básica de vida que eu também gostaria de
lhes ensinar, e vocês hão de me agradecer por isso no futuro.
A lição era a seguinte: — Remem a sua canoa — disse ela. — Você
podem repetir e se lembrar disso?
Não só podíamos repetir aquilo, como também me lembro até hoje:
“Remem a sua canoa”.
Ai ô.

•••

E assim nós remamos as nossas canoas. Fomos testados individualmente na


mesa de aço inoxidável da sala de jantar azulejada. Quando um de nós
estava com “tia Cordelia” (como passamos a chamá-la), o outro era levado
para o mais longe possível — para o salão de baile no topo da torre da
extremidade norte da mansão.
Withers Witherspoon tinha a incumbência de vigiar quando um de nós
estava no salão de baile. Escolheram-no para isso porque ele tinha servido o
Exército. Ouvimos “tia Cordelia” pedir-lhe que ficasse alerta e detectasse
qualquer sinal de comunicação telepática entre nós.
A ciência ocidental, com algumas dicas dos chineses, tinha finalmente
reconhecido que algumas pessoas podiam se comunicar sem sinais visíveis
ou audíveis. Os emissores e receptores de tais mensagens estavam nas
superfícies dos seios da face, que tinham de estar sadios e livres de
obstruções.
A pista principal que os chineses deram aos ocidentais foi a seguinte
frase enigmática, pronunciada em inglês, e que levou anos para ser
decifrada: “Sinto-me muito só quando pego febre do feno ou resfriado”.
Ai ô.

•••

Bem, a telepatia não funcionava conosco quando estávamos a mais de três


metros de distância. Com um de nós na sala de jantar e o outro no salão de
baile, era como se estivéssemos em planetas diferentes. O que, a propósito,
é a nossa condição atual.
Eu podia — é claro — fazer testes escritos, mas Eliza, não. Quando “tia
Cordelia” interrogava Eliza, tinha de ler cada pergunta e depois escrever a
resposta dada.
Parece que erramos todas as respostas. Devemos, contudo, ter acertado
alguma coisa, pois a Dra. Cordiner relatou a nossos pais que nossa
inteligência era “... de normal para inferior, considerando a faixa etária”.
Disse-lhes ela também, sem saber que estávamos escutando, que Eliza
provavelmente jamais aprenderia a ler e escrever, e que, por isso, nunca
poderia tirar um título de eleitor ou uma carteira de motorista. Procurando
suavizar a coisa, acrescentou que “Eliza era uma pessoa de conversa muito
divertida”.
Disse que eu era “um bom menino, um menino sério — facilmente
distraído pela irmã tagarela. Sabe ler e escrever, mas não compreende bem
o significado das frases. Se for separado da irmã, há muitas razões para se
acreditar que possa vir a trabalhar num posto de gasolina ou como porteiro
de uma escola rural. Suas perspectivas para uma vida feliz e útil no campo
são de boas para ótimas”.

•••

A República Popular da China estava, naquele exato momento, criando em


segredo literalmente milhões e milhões de gênios — ensinando a pares ou a
pequenos grupos de especialistas telepaticamente compatíveis a pensar
como um único cérebro. E aquelas colchas de retalho mentais equivaliam às
inteligências poderosas de Newton, ou de Shakespeare, por assim dizer.
Ah, sim — muito antes de eu me tornar presidente dos Estados Unidos
da América, tinham começado a combinar aquelas mentes sintéticas em
intelectos tão sensacionais que o universo parecia lhes dizer: “Aguardo suas
instruções. Vocês podem ser qualquer coisa que queiram. Serei qualquer
coisa que desejem que eu seja”.
Ai ô.

•••

Soube do plano chinês muito tempo depois da morte de Eliza, e muitíssimo


tempo após ter perdido toda a minha autoridade como presidente dos
Estados Unidos da América. Aí então já não podia fazer mais nada.
Uma coisa me intrigou, contudo. Achei graça em saber que fora a pobre
e velha Civilização Ocidental quem dera a inspiração de tudo aquilo aos
chineses. Eles aproveitaram a ideia que viram realizada pelos cientistas
europeus e americanos, os quais uniram suas cabeças durante a Segunda
Guerra Mundial, com a intenção de criar uma bomba atômica.
Ai ô.
Capítulo 17

Nossos pobres pais primeiro tinham acreditado que fôssemos idiotas.


Tentaram se adaptar a isso. Depois acreditaram que éramos gênios.
Tentaram se adaptar a isso. Agora lhes diziam que éramos normais e sem
graça, e tentavam se adaptar a isso.
Eliza e eu vimos, através de buracos na parede, quando eles fizeram um
disfarçado e piedoso apelo. Perguntaram à Dra. Cordelia Swain Cordiner
como deviam harmonizar a nossa normalidade com o fato de sermos
capazes de discorrer tão sabiamente sobre vários temas em muitas línguas.
A doutora foi incisiva para lhes explicar tal aspecto:
— O mundo está cheio de gente muito capaz de se fazer passar por mais
inteligente do que na verdade é — disse ela. — Atordoam-nos com fatos,
citações e palavras estrangeiras, enquanto na verdade quase nada sabem de
útil sobre a vida em si. Meu propósito é detectar essa gente... para que a
sociedade se proteja deles e para que eles possam ser protegidos de si
próprios.
“A sua filha Eliza é um perfeito exemplo”, prosseguiu ela. “Dissertou
para mim a respeito de economia, astronomia, música e qualquer outro
assunto que se possa imaginar, mas não sabe ler nem escrever e nem nunca
saberá.”

•••

Ela afirmou que nosso caso era triste, já que não havia bons empregos que
desejássemos. — Eles quase não têm ambição alguma — disse —, de modo
que a vida não pode desapontá-los. Querem apenas que a vida que
conheceram até agora prossiga indefinidamente, o que, claro, é impossível.
Papai abanou a cabeça, contristado:
— E o menino é o mais inteligente dos dois?
— Até o ponto em que sabe ler e escrever — respondeu a Dra.
Cordiner. — Não é, porém, uma pessoa socialmente ativa como a irmã.
Quando está longe dela, fica silencioso como um túmulo.
“Sugiro que ele seja mandado para uma escola especial, que não deverá
ser muito exigente no tocante aos estudos e que tampouco represente uma
ameaça social, onde ele poderá aprender a remar sua própria canoa.”
— Aprender o quê? — perguntou Papai.
A Dra. Cordiner repetiu:
— A remar sua canoa.

•••

Naquele momento Eliza e eu deveríamos ter aberto caminho pela parede a


pontapés. Deveríamos ter irrompido na biblioteca com fúria, numa explosão
de gesso e ripas.
Mas tínhamos bastante bom senso para saber que nosso poder de
espreitar à vontade era uma das poucas vantagens que possuíamos. Assim,
voltamos aos nossos quartos, nos precipitamos para o corredor, descemos
depressa as escadas da frente, atravessamos o vestíbulo e entramos na
biblioteca. Fazíamos algo que nunca tínhamos feito antes: estávamos
soluçando.
Declaramos que, se alguém tentasse nos separar, nós nos mataríamos.

•••

A Dra. Cordiner achou graça da nossa declaração. Informou a nossos pais


que várias das perguntas de seus testes destinavam-se a detectar tendências
suicidas.
— Garanto-lhes com toda a convicção — disse ela — que a última
coisa que qualquer um desses dois faria seria cometer o suicídio.
Dizer isso tão jovialmente foi um erro tático de sua parte, pois
despertou alguma coisa em Mamãe. A atmosfera do aposento ficou
eletrificada quando Mamãe parou de ser uma boneca frágil, polida e
crédula.
A princípio Mamãe não disse nada. Mas, sem dúvida, ela perdera
qualquer coisa de suas características humanas, no bom sentido. Parecia
uma pantera acuada, repentinamente disposta a dilacerar a garganta de
especialistas em crianças — em defesa de sua ninhada.
Foi a única vez em que a veríamos irracionalmente entregue ao fato de
ser nossa mãe.
•••

Eliza e eu sentimos telepaticamente aquela repentina aliança selvagem.


Ainda me lembro de que o úmido limite de minhas cavidades nasais estava
vibrando de estímulos.
Paramos de chorar, aliás porque era uma coisa que não fazíamos bem.
Sim, e pedimos algo que podia ser satisfeito na hora: pedimos para ser
testados de novo — mas desta vez como um par.
— Queremos demonstrar-lhes como somos ótimos em conjunto, de tal
modo que ninguém jamais pensará em nos separar — disse eu.
Procuramos falar com todo o cuidado. Expliquei quem eram Betty e
Bobby Brown. Concordei com a doutora — eles eram estúpidos. Disse que
não tínhamos experiência em odiar, e que não conseguíamos entender
direito essa atividade humana tão especial sempre que a encontrávamos nos
livros.
— Mas agora estamos nos iniciando no ódio — disse Eliza. — Nosso
ódio se limita estritamente a alguém: a apenas duas pessoas em todo o
universo. Betty e Bobby Brown.

•••

A Dra. Cordiner, como ficou demonstrado, era uma covarde, entre outras
coisas. Como muitos covardes, tentou se impor na hora errada. Riu do
nosso pedido:
— Em que espécie de mundo vocês pensam que estamos? — disse,
prosseguindo em tom semelhante por algum tempo.
Mamãe se levantou e partiu para cima dela, sem tocá-la, sem ao menos
encará-la diretamente. Quando falou, dirigiu suas palavras para a garganta
da doutora. Num tom de voz que ficava entre um ronronar e um rugido,
chamou a Dra. Cordiner de “peidinho de pardal metido a besta”.
Capítulo 18

Assim, Eliza e eu fomos testados de novo — desta vez como um par.


Sentamo-nos lado a lado, à mesa de aço inoxidável da sala de jantar
azulejada.
Estávamos tão felizes! Uma despersonalizada Dra. Cordelia Swain
aplicou os testes como um robô, enquanto nossos pais assistiam a tudo. Ela
aplicou novos testes, para que também os desafios fossem novos.
Antes de começarmos, Eliza disse aos nossos pais:
— Prometemos responder corretamente a todas as perguntas.
Foi o que fizemos.

•••

Como eram as perguntas? Bem, ontem eu estava passeando pelas ruínas de


uma escola na 46th Street, e tive a sorte de descobrir uma bateria de testes de
inteligência ainda em condições de ser aplicada.
Vejam a seguinte amostra:
“Um homem comprou cem ações a cinco dólares cada uma. Se cada
ação subir dez cents no primeiro mês, diminuir oito no segundo e aumentar
três no terceiro, qual será o valor do investimento do homem no fim do
terceiro mês?”
Ou então:
“Quantos dígitos há à esquerda da vírgula da raiz quadrada de 692
038,42753?”
Ou ainda:
“Que cor parece ter uma tulipa amarela vista através de um pedaço de
vidro azul?”
Experimentem isto:
“Por que um grupo de sete estrelas da constelação da Ursa Maior parece
girar em torno da estrela Polar uma vez por dia?”
Ou:
“A astronomia está para a geografia assim como o limpador de
chaminés está para o quê?”
E assim por diante.
Ai ô.

•••

Cumprimos a promessa de perfeição feita por Eliza, como já disse.


O único problema é que nós dois, no inocente processo de ver e rever
nossas respostas, fomos para baixo da mesa com nossas pernas enroscadas
no pescoço um do outro, cada um fungando e bufando na virilha do outro.
Quando nos sentamos de novo, a Dra. Cordelia Swain Cordiner tinha
desmaiado, e nossos pais haviam sumido.

•••

Às dez horas da manhã seguinte, fui levado de automóvel para uma escola
de crianças gravemente perturbadas em Cape Cod.
Capítulo 19

Cai a tarde de novo. Um pássaro, lá pela esquina da 31st Street com a Fifth
Avenue, onde há um tanque do Exército com uma árvore crescendo em sua
torre, canta para mim. Ele repete o seu canto com espantosa insistência,
como se estivesse a questionar a morte do sol.
Nunca uso o seu nome, e tampouco o fazem Melody e Isadore, que
seguem o meu exemplo nessa coisa de dar nomes. Eles raramente chamam
Manhattan de “Manhattan”, ou de “A ilha da Morte”, que é seu nome
comum no continente. Fazem como eu: preferem “Parque Nacional dos
Arranha-Céus”, sem, contudo, perceberem a ironia aí contida, ou então,
com a mesma falta de humor, “Angkor Vat”.
E o nome que usam para designar esse pássaro insistente é o que Eliza e
eu usávamos quando éramos crianças. Era a palavra correta que
aprendemos em um dicionário.
Nós a decoramos por causa do terror supersticioso que nos inspirou o
pássaro, transformado em criatura de um pesadelo pintado por Hieronymus
Bosch quando o invocávamos. E, sempre que ouvíamos o seu grito,
dizíamos o seu nome simultaneamente. Era quase a única ocasião em que
falávamos ao mesmo tempo.
— É o grito do curiango-noturno — dizíamos.

•••

E agora eu ouço Melody e Isadore dizendo também, de um lugar onde não


consigo vê-los:
— O grito do curiango-noturno!

•••

Eliza e eu ouvimos um pássaro desses na noite de nossa partida para Cape


Cod.
Tínhamos fugido da mansão, em busca do protetor isolamento do úmido
mausoléu do Professor Elihu Roosevelt Swain.
Aquele pássaro questionava o sol poente de um ponto qualquer sob as
copas das macieiras.

•••

Mesmo quando unimos nossas cabeças, não fomos capazes de imaginar o


que conversar.
Já ouvi dizer que é comum que os sentenciados à morte se vejam como
mortos muito antes de morrerem. Talvez fosse desse modo que o nosso
gênio se sentisse, sabendo que o cruel verdugo, por assim dizer, estava
prestes a parti-lo ao meio, transformando-o em duas postas de carne, em
Betty e Bobby Brown.
Assim sendo, nossas mãos estavam ocupadas — o que frequentemente
ocorre com as mãos dos moribundos. Tínhamos trazido o que pensávamos
serem os nossos melhores escritos. Fizemos um rolo com eles, e o
ocultamos em uma urna funerária de bronze que estava vazia.
A urna tinha sido originalmente destinada para abrigar as cinzas da
esposa do Professor Swain, a qual preferira, contudo, ser enterrada aqui em
Nova York. Estava coberta de azinhavre.
Ai ô.

•••

O que havia naqueles papéis?


Lembro-me de um método para obter a quadratura do círculo — e de
um plano utópico para criar em todo o país famílias artificialmente
ampliadas, atribuindo a cada pessoa um novo sobrenome intermediário.
Todos os que tivessem sobrenomes iguais seriam parentes.
Sim, e havia também nossa crítica à teoria de Darwin, da evolução das
espécies, e um ensaio sobre a natureza da gravidade, onde afirmávamos que
sem dúvida a gravidade variava na antiguidade.
Lembro-me também de que havia um trabalho que dizia que os dentes
deviam ser lavados com água quente, tal como os pratos e panelas.
E assim por diante.

•••
A ideia de esconder os papéis na urna foi de Eliza.
E foi Eliza quem recolocou a tampa no lugar.
Não estávamos próximos quando ela falou, de modo que o que disse foi
de sua exclusiva invenção:
— Diga adeus à sua inteligência, Bobby Brown.
— Adeus — disse eu.

•••

— Eliza — falei —, vários livros entre os que li para você diziam que o
amor era a coisa mais importante de todas. Talvez eu devesse lhe dizer
agora que a amo.
— Pois diga.
— Eu a amo, Eliza.
Ela pensou um pouco. — Não — disse por fim —, não gostei.
— Por quê?
— É como se você estivesse apontando uma arma para a minha cabeça
— respondeu ela. — Isso é apenas um meio para fazer com que uma pessoa
diga algo que é bem provável que não sinta. Que mais poderia eu, ou
qualquer outra criatura, dizer senão “Eu também o amo”?
— E você não me ama?
— O que há para ser amado em Bobby Brown? — retrucou ela.

•••

De um ponto qualquer lá fora, embaixo das copas das macieiras, o


curiango-noturno fez ouvir de novo o seu lamento.
Capítulo 20

Eliza não desceu para o café na manhã seguinte. Permaneceu em seu quarto
até que eu tivesse ido embora.
Meus pais me acompanharam em seu Mercedes com motorista. Era eu o
filho com futuro. Era eu quem sabia ler e escrever.
E, apesar de tudo, meu mecanismo de esquecimento se pôs a trabalhar
logo que o carro começou a percorrer a linda paisagem do campo.
Era um mecanismo protetor contra dores insuportáveis, coisa que eu,
como pediatra, estou persuadido de que todas as crianças têm.
Em algum lugar, que ficara para trás — era a impressão que eu tinha —,
estava minha irmã gêmea, que não estava a meus pés em questão de
inteligência. Ela possuía um nome. Seu nome era Eliza Mellon Swain.

•••

Sim, e o ano letivo era estruturado de tal sorte que nenhum de nós jamais
tinha que ir a casa. Fui à Inglaterra, França, Alemanha, Itália e Grécia. Fui
acampar nos meses de verão.
E foi determinado que, embora eu certamente não fosse nenhum gênio,
e que fosse incapaz de ser original, possuía um cérebro melhor que o
mediano. Eu era paciente e ordeiro e também era capaz de selecionar boas
ideias em um amontoado de sandices.
Fui o primeiro aluno daquela escola a fazer vestibular para a
universidade. E me saí tão bem que fui convidado a ir para Harvard. Aceitei
o convite, embora ainda não tivesse mudado de voz.
E de vez em quando os meus pais, que tinham passado a ter muito
orgulho de mim, me lembravam de que em alguma parte eu tinha uma irmã
gêmea. Naquele tempo ela era pouco mais que um vegetal. Encontrava-se
em uma dispendiosa instituição para gente assim.
Eliza era apenas um nome.

•••
Papai morreu em um acidente de automóvel quando eu cursava o primeiro
ano da escola de medicina. A essa altura já me considerava a ponto de
fazer-me executor de seu testamento.
Logo depois fui visitado em Boston por um advogado gordo e de olhos
astutos chamado Norman Mushari, Jr. Ele me contou o que a princípio
pareceu ser uma história desconexa e sem importância a respeito de uma
mulher que tinha sido trancada por muitos anos contra a sua vontade em
uma instituição para débeis mentais.
Ela o contratara — disse-me o advogado — para processar os parentes e
a instituição pelos danos sofridos, recuperar sua liberdade de imediato e
reaver toda a parte de sua herança que fora indevidamente retida.
Essa mulher tinha um nome, claro: Eliza Mellon Swain.
Capítulo 21

Mamãe falara mais tarde sobre o hospital onde nós abandonamos Eliza no
Limbo:
— Não era um hospital barato, você sabe. Custava duzentos dólares por
dia. E os médicos nos disseram para ficarmos afastados, não disseram,
Wilbur?
— Acho que sim, Mamãe — respondi. E a seguir eu disse a verdade: —
Esqueci.

•••

Eu não era então apenas um Bobby Brown estúpido — era também


presunçoso. Embora não passasse de um primeiranista de medicina
possuidor da genitália de um camundongo, tinha uma casa só para mim em
Beacon Hill. Era levado para a escola e trazido dela em um Jaguar, e já me
vestia tal como quando assumi a presidência dos Estados Unidos, algo mais
ou menos no gênero de um charlatão típico do tempo de Chester Alan
Arthur.
Havia festa em minha casa quase todas as noites. Habitualmente eu
fazia uma aparição de apenas alguns minutos — fumando haxixe em um
cachimbo de espuma-do-mar.
Em uma dessas festas uma bonita garota se aproximou de mim e disse:
— Você é horroroso, mas é a coisa mais sensual que já vi.
— Sei disso — concordei. — Sei disso.

•••

Mamãe me visitava muito em Beacon Hill, onde eu tinha uma suíte


construída especialmente para ela, e eu também a visitava muito em Turtle
Bay. Sim, e os repórteres apareceram para nos entrevistar nos dois
endereços, depois que Norman Mushari, Jr. tirou Eliza do hospital.
Foi uma história que teve grande publicidade.
É sempre assim quando multimilionários tratam mal seus próprios
parentes.
Ai ô.

•••

Foi embaraçoso — e é claro que devia ter sido embaraçoso.


Ainda não tínhamos visto Eliza, nem conseguido falar com ela pelo
telefone. Enquanto isso, ela ia fazendo declarações que nos insultavam,
quase todos os dias.
Tudo o que tínhamos para mostrar aos repórteres era a cópia de um
telegrama que havíamos mandado a Eliza, aos cuidados de seu advogado, e
a resposta de Eliza.
Nosso telegrama dizia: “NÓS AMAMOS VOCÊ. SUA MÃE E SEU IRMÃO”.
E o telegrama de Eliza era: “AMO VOCÊS TAMBÉM. ELIZA”.

•••

Eliza não permitia que a fotografassem. Fizera seu advogado comprar um


confessionário na demolição de uma igreja, e era sentada em seu interior
que dava entrevistas para a televisão.
E Mamãe e eu assistíamos àquelas entrevistas agoniados, retorcendo as
mãos.
A bela voz de contralto de Eliza, agora inequivocamente belicosa, tinha
se tornado tão pouco familiar aos nossos ouvidos que chegamos a pensar
que podia ser uma impostora que estivesse no confessionário, mas era
mesmo Eliza.
Lembro-me de que um repórter lhe perguntou:
— Como foi que passou o tempo no hospital, Srta. Swain?
— Cantando — disse ela.
— Cantando alguma coisa em particular?
— A mesma música, sempre e sempre a mesma música — respondeu
Eliza.
— E que música era?
— Um dia meu príncipe virá.
— Algum príncipe específico em suas cogitações? — quis saber ele.
— Meu irmão gêmeo — afirmou Eliza. — Mas ele é um sujo, claro.
Nunca apareceu.
Capítulo 22

Mamãe e eu, evidentemente, não nos opusemos de modo algum a Eliza e


seu advogado, e assim ela recuperou com facilidade o controle de sua
fortuna. E a primeira coisa que fez com o dinheiro foi comprar metade das
ações de um time de futebol profissional americano chamado Os Patriotas
da Nova Inglaterra.

•••

Essa compra resultou em mais publicidade. Eliza continuou dentro do


confessionário, mas Mushari jurou que ela estava usando uma camisa dos
Patriotas, ouro e azul.
No mesmo dia dessa entrevista, perguntaram-lhe se ela se mantinha a
par dos acontecimentos da atualidade, ao que ela respondeu:
— Eu certamente não culpo os chineses por voltarem para casa.
Isso se referia ao fechamento da embaixada chinesa em Washington.
Naquela época a miniaturização dos seres humanos na China progredira a
tal ponto que seu embaixador tinha apenas meio metro de altura. Sua
despedida foi cordial e amistosa. Disse que seu país estava cortando
relações conosco simplesmente porque não estava acontecendo mais nada
nos Estados Unidos que tivesse qualquer interesse para os chineses.
Pedira a Eliza que dissesse por que achava que os chineses estavam tão
certos.
— Que país civilizado poderia se interessar por um inferno como este
— disse ela — onde todos tratam tão mal os próprios parentes?

•••

E um dia, ela e Mushari foram vistos atravessando a ponte da


Massachusetts Avenue a pé, vindo de Cambridge para Boston. Era um dia
quente e ensolarado. Eliza carregava uma sombrinha e estava usando a
camisa de seu time de futebol.
•••

Meu Deus, como aquela pobre garota estava horrível!


De tão curvada, seu rosto estava no mesmo nível do de Mushari — e
Mushari era mais ou menos da altura de Napoleão Bonaparte. Fumava sem
parar e tossia desesperadamente.
Mushari trajava um terno branco, empunhava bengala e trazia uma rosa
vermelha na lapela.
Logo ele e sua cliente foram cercados por uma amistosa multidão,
fotógrafos da imprensa e equipes das redes de televisão.
Mamãe e eu a tudo assistíamos em meu aparelho de TV — horrorizados,
permitam-me que eu diga, já que a parada se aproximava cada vez mais de
minha casa em Beacon Hill.

•••

— Oh, Wilbur, Wilbur, Wilbur! — exclamou minha mãe — será realmente


sua irmã?
Respondi com uma piada amargurada, sem som:
— Ou é a sua única filha, Mamãe, ou é aquele animal que come
formigas conhecido como “oricterope”.
Capítulo 23

Mamãe não estava a fim de enfrentar uma confrontação com Eliza e bateu
em retirada para sua suíte no andar de cima. Eu também não queria que os
criados presenciassem, fosse qual fosse, o espetáculo grotesco que Eliza
tinha em mente, de modo que mandei que se recolhessem a seus aposentos.
Quando a campainha da porta tocou, fui eu mesmo atender.
Sorri para o oricterope, para as câmaras e para a multidão.
— Eliza! Minha querida irmã! Mas que surpresa agradável. Entre,
entre! — foi o que eu disse.
Para compor a cena, esbocei um abraço. Ela recuou.
— Se você me tocar, Lorde Fauntleroy, eu o morderei e você morrerá de
raiva — disse Eliza.

•••

A polícia impediu que a turba entrasse na casa seguindo Eliza e Mushari, e


eu fechei as cortinas, para que ninguém pudesse nos ver.
Quando me convenci de que estávamos seguros, perguntei friamente:
— O que a traz aqui?
— Cobiça do seu corpo perfeito, Wilbur — respondeu ela, tossindo e
rindo. — A querida Mater está, ou o querido Pater?
Eliza se corrigiu rapidamente:
— Oh, meu Deus... o querido Pater já morreu, não é? Ou terá sido a
querida Mater? É tão difícil de saber.
— Mamãe está em Turtle Bay, Eliza — falei.
Por dentro eu estava desfalecendo de aflição, repugnância e culpa.
Calculei que a capacidade de sua esmagada caixa torácica não podia
exceder a de uma caixa de fósforos comum. A sala estava começando a
cheirar como uma destilaria, o que significava que Eliza também tinha
problemas com bebida. Sua pele não podia estar mais feia.
— Turtle Bay — repetiu ela. — Jamais lhe ocorreu, caro Irmão, que o
querido Pai não fosse em absoluto o nosso Pai?
— Que é que você quer dizer com isso?
— Talvez Mamãe tivesse fugido da cama em uma noite de luar — disse
ela — e se acasalado com uma tartaruga-do-mar em Turtle Bay.
Ai ô.

•••

— Eliza — ponderei —, se vamos discutir problemas de família, talvez


fosse melhor que o Sr. Mushari nos deixasse em paz.
— Por quê? Normie é a única família que tenho.
— Ora, vamos.
— É evidente que aquele peidinho de pardal endomingado da sua mãe
não tem qualquer parentesco comigo — disse ela.
— Vamos, vamos.
— E você também não se considera meu parente, pois não?
— O que é que eu posso dizer? — perguntei.
— É exatamente para isto que o estamos visitando: ouvir todas as coisas
maravilhosas que você tem a dizer. Você sempre foi o cerebral. Eu não
passava de uma espécie de tumor que tinha de ser removido de seu lado.

•••

— Eu nunca disse isso — afirmei.


— Mas outras pessoas disseram, e você acreditou nelas — retrucou
Eliza. — O que é pior. Você é um fascista, Wilbur. É isso que você é.
— Absurdo!
— Fascistas são pessoas inferiores que acreditam quando alguém lhes
diz que são superiores — disse ela.
— Vamos, vamos.
— Depois os fascistas querem que todos os outros morram.

•••

— Isso não nos está levando a parte alguma — ponderei.


— Estou acostumada a não chegar a parte alguma. Como você deve ter
lido nos jornais e visto na televisão.
— Eliza, ajudaria alguma coisa você saber que Mamãe se sentirá infeliz
o resto de nossas vidas pela coisa horrorosa que fizemos a você?
— Como é que isso poderia ajudar? — indagou ela. — Essa é a
pergunta mais burra que jamais ouvi.

•••

Eliza passou o braço comprido pelos ombros de Norman Mushari, Jr. — Eis
aqui alguém que sabe ajudar os outros — disse ela.
Aquiesci com um gesto de cabeça.
— Somos gratos a ele. Palavra que somos.
— Ele é minha mãe, pai, irmão e Deus, tudo ao mesmo tempo. Foi ele
quem me deu o dom da vida!
Eliza continuou, sem se interromper:
— Ele me disse: “O dinheiro não fará com que você se sinta melhor,
querida, mas de qualquer forma vamos processar seus parentes até arrancar
a última gota de mijo deles”.
— Hum — resmunguei.
— Mas devo dizer que ajuda muito mais que suas expressões de culpa,
que não passam de um modo de vocês exibirem suas maravilhosas
sensibilidades.
O riso de Eliza soou desagradavelmente.
— Mas é fácil ver por que você e Mamãe querem ostentar sua culpa.
Afinal de contas é a única coisa que os dois jamais fizeram por merecer.
Ai ô.
Capítulo 24

Tudo indicava que Eliza já tinha agredido meu amor-próprio com todas as
armas de que dispunha. Não sei como eu sobrevivera.
Sem orgulho, com uma espécie de interesse ao mesmo tempo cínico e
clínico, concluí que se eu tinha caráter era como se fosse forjado em aço,
capaz de repelir ataques mesmo quando eu me abstinha de tentar qualquer
tipo de defesa.
Como eu estava enganado a respeito de Eliza ter esgotado sua fúria!
Seus ataques iniciais haviam visado apenas a expor a armadura do meu
caráter. Ela meramente despachara patrulhas ligeiras para limpar o terreno e
favorecer seu campo de tiro, por assim dizer.
Sem que eu percebesse, a tal armadura estava agora diante de seus
disfarçados canhões, a uma distância em que não poderia perder um só tiro,
tão nua e frágil quanto uma vidraça.
Ai ô.

•••

Houve uma calmaria. Eliza deu uma volta pela sala, olhando meus livros, os
quais ela não poderia ler, claro. Voltou depois para perto de mim, inclinou a
cabeça e perguntou:
— As pessoas entram na Escola de Medicina de Harvard porque sabem
ler e escrever?
— Dei duro, Eliza — respondi. — Não foi fácil para mim. E não está
sendo fácil agora.
— Se Bobby Brown chegar a ser médico — disse ela —, será o maior
argumento que jamais terei ouvido em defesa dos cientistas cristãos.
— Não serei o melhor médico do mundo — concedi. — E tampouco o
pior.
— Você poderia ser muito bom com um gongo — disse ela. Referia-se
aos recentes boatos de que os chineses tinham conseguido notáveis vitórias
no tratamento do câncer de seio usando a música de gongos antigos. —
Você dá a impressão de que seria capaz de acertar no gongo quase todas as
vezes que tentasse.
— Muito obrigado — agradeci.
— Toque-me — disse ela.
— O que foi que você disse?
— Sou sua própria carne. Sou sua irmã. Toque-me — insistiu Eliza.
— Sim, claro.
Mas meus braços pareciam estranhamente paralisados.

•••

— Pode demorar o quanto quiser — disse ela.


— Bem, já que você me odeia tanto...
— Eu odeio Bobby Brown — corrigiu Eliza.
— Pois já que você odeia Bobby Brown... — tentei prosseguir.
— E também Betty Brown — interrompeu ela.
— Isso foi há muito tempo.
— Toque-me! — repetiu minha irmã.
— Pelo amor de Deus, Eliza!
Meus braços ainda estavam paralisados.
— Eu tocarei em você — disse ela.
— Seja como você quiser — falei. Eu estava apavorado.
— Você não sofre do coração, sofre, Wilbur?
— Não — respondi.
— Se eu tocar em você, promete que não morrerá?
— Prometo.
— Talvez eu morra — disse ela.
— Espero que não.
— Só porque estou agindo como se soubesse o que acontecerá —
observou Eliza — não quer dizer que eu realmente o saiba. Talvez não
aconteça nada.
— Talvez — concordei.
— Nunca vi você tão assustado.
— Sou humano — defendi-me.
— Quer que eu diga a Normie por que você está tão apavorado?
— Não — respondi.

•••

Eliza, cujos dedos estavam quase tocando no meu rosto, referia-se a uma
piada suja que Withers Witherspoon contara a outro criado quando éramos
garotos. Nós a ouvimos através de uma parede. Era sobre uma mulher que
se comportava loucamente quando tinha relações sexuais. A graça da piada
era o aviso que ela dava ao sujeito que não a conhecia quando ele a levava
para a cama.
E Eliza repetiu o aviso naquele instante: — Fique de chapéu, meu
chapa. Pode ser que a gente aterre a quilômetros de distância.

•••

Aí seus dedos tocaram em meu rosto.


E nós nos tornamos um único gênio de novo.
Capítulo 25

Ficamos frenéticos. Foi somente pela graça de Deus que não caímos em
cima da multidão, do lado de fora da casa. Algumas partes de nós, das quais
eu não tinha tido consciência, e das quais Eliza tinha sido
atormentadamente cônscia, vinham planejando uma reunião havia muito,
muito tempo.
Eu seria incapaz de dizer onde eu acabava e Eliza começava, ou onde
nós acabávamos e começava o universo. Foi maravilhoso e foi horrível.
Sim, e permitam que eu dê uma ideia da quantidade de energia envolvida: a
orgia durou cinco noites e cinco dias.

•••

Depois disso Eliza e eu dormimos três dias seguidos. Quando acordei,


descobri que estava em minha própria cama, e sendo alimentado por soro.
Eliza, como vim a saber mais tarde, fora levada para sua casa em uma
ambulância.

•••

Quanto aos motivos por que ninguém nos separou ou providenciou socorro:
Eliza e eu tínhamos aprisionado Norman Mushari, Jr., a pobre Mamãe e os
criados — um por um.
Não consigo me lembrar de ter feito isso.
Ao que parece, nós os amarramos em cadeiras, pusemos-lhes mordaças
e os arrumamos cuidadosamente à volta da mesa da sala de jantar.

•••
Nós lhes demos comida e água, graças a Deus; caso contrário teríamos nos
transformado em assassinos. Não permitimos que fossem ao banheiro,
contudo, alimentando-os exclusivamente com sanduíches de manteiga de
amendoim e geleia. Parece que saí de casa várias vezes para providenciar
mais pão, geleia e manteiga de amendoim.
E na volta a orgia começava de novo.

•••

Recordo que li em voz alta para Eliza trechos dos meus livros de pediatria,
psicologia infantil, sociologia, antropologia e assim por diante. Eu nunca
me desfazia dos livros de qualquer curso que fazia.
Lembro-me de abraços convulsos que se alternavam com períodos em
que eu me sentava à máquina de escrever, com Eliza a meu lado. E que
andei datilografando qualquer coisa com sobre-humana rapidez.
Ai ô.

•••

Quando despertei de meu coma, Mushari e meus advogados já haviam pago


aos criados uma boa indenização pela agonia que tinham sofrido presos à
mesa da sala de jantar, e pelo seu silêncio sobre as coisas terríveis que
tinham visto.
Mamãe tivera alta do Hospital Geral de Massachusetts e estava de cama
em sua casa, em Turtle Bay.

•••

Fisicamente eu sofrera apenas uma exaustão e nada mais.


Quando permitiram que eu me levantasse, contudo, estava tão
prejudicado psicologicamente que esperava encontrar tudo diferente. Se a
gravidade tivesse variado naquele dia, como na verdade aconteceu muitos
anos depois, se eu tivesse tido que engatinhar pela casa, como faço agora
com frequência, eu teria achado que se tratava de uma reação do universo
muito adequada a tudo por que eu tinha passado.

•••
Mas pouca coisa mudara. A casa estava limpa como um alfinete.
Os livros tinham sido recolocados nas prateleiras. Um termostato
quebrado fora substituído. Três cadeiras da sala de jantar haviam sido
mandadas para o conserto. O tapete perdera sua cor homogênea, com alguns
lugares mais claros, indicando os pontos de onde haviam sido removidas
manchas.
A única prova de que algo extraordinário acontecera era, por si só, um
modelo de meticulosidade. Era uma coleção de folhas datilografadas,
deixada em cima de uma mesinha da sala de estar.
Eliza e eu tínhamos, não sei como, escrito um manual sobre criação de
filhos.

•••

Se era bom? Na verdade, não. Bom apenas o bastante para se tornar, depois
da Bíblia e de A alegria de cozinhar, o livro mais popular de todos os
tempos.
Ai ô.

•••

Considerei-o tão útil quando dei início à minha clínica pediátrica em


Vermont, que o publiquei sob um pseudônimo — Dr. Eli W. Rockmell, M.
D. —, em que aproveitei meu nome e o de Eliza.
Foi o editor quem deu o título de Então você foi em frente e teve um
filho.

•••

Durante nossa orgia, contudo, Eliza e eu demos ao original um título muito


diferente e outra autoria:

“O GRITO DO CURIANGO-NOTURNO,
POR
BETTY E BOBBY BROWN”.
Capítulo 26

Após a orgia, um mútuo terror nos conservou separados. Disse-me o nosso


mensageiro, Norman Mushari, Jr., que Eliza ficara mais perturbada que eu.
— Quase que a internei de novo no hospital — disse ele. — Dessa vez
com um bom motivo.

•••

Machu Picchu, a antiga capital dos incas, no topo dos Andes peruanos,
estava se tornando então o local favorito de gente rica e seus parasitas,
pessoas que fugiam de reformas sociais e da decadência econômica, não
apenas nos Estados Unidos, mas em todas as partes do mundo. Havia lá até
mesmo alguns chineses de tamanho normal que não haviam permitido que
seus filhos fossem miniaturizados. Eliza se mudou para um edifício lá, para
ficar o mais longe possível de mim.

•••

Quando Mushari veio à minha casa me falar da mudança de Eliza para o


Peru, uma semana após a orgia, confessou que ele próprio se sentira
intensamente desorientado enquanto esteve amarrado a uma das cadeiras da
sala de jantar.
— Vocês dois me pareciam cada vez mais dois Frankensteins — disse
ele. — Acabei por me convencer de que havia um interruptor em um lugar
qualquer da casa que os controlava. Cheguei até a descobrir qual era o
interruptor. Assim que consegui me libertar, corri até onde ele estava e o
arranquei da parede.
Fora Mushari quem arrancara o termostato.

•••

Para me demonstrar o quanto tinha se modificado, ele admitiu que tinha


libertado Eliza inteiramente motivado por razões egoístas.
— Eu era um caçador de fortunas — confessou —, procurando
encontrar gente rica internada indevidamente em hospitais e conseguindo
sua libertação. Mas os pobres eu deixava apodrecerem em suas masmorras.
— Mesmo só libertando os ricos, era um trabalho útil — consolei-o.
— Meu Deus do céu, eu não acho. Praticamente todas as pessoas que
consegui liberar ficaram loucas quase que logo depois da alta.
“De repente, me sinto muito velho”, disse ele. “Não aguento mais essas
coisas.”
Ai ô.

•••

Na verdade Mushari ficara tão perturbado pela orgia que entregou os


negócios legais e financeiros de Eliza ao mesmo grupo que trabalhava para
mim e Mamãe.
Seu nome me chamou a atenção apenas mais uma vez, dois anos depois,
mais ou menos na mesma época em que me formei médico — no último
lugar da turma, por sinal. Mushari tinha patenteado uma invenção sua.
Havia um retrato e uma descrição do invento na página de negócios de The
New York Times.
Naquele tempo a mania nacional era o sapateado. E Mushari inventara
ferrinhos que podiam ser colocados nas solas dos sapatos e depois
descolados de novo. Os ferrinhos podiam ser levados dentro de saquinhos
plásticos no bolso ou na bolsa, de acordo com Mushari, e colocados apenas
quando fosse hora de sapatear.
Ai ô.
Capítulo 27

Nunca mais vi Eliza depois da orgia. Ouvi sua voz somente duas outras
vezes — uma, quando me formei em medicina e, de novo, quando já era
presidente. E aí ela já estava morta havia muito tempo.
Ai ô.

•••

Quando Mamãe planejou uma festa de formatura para mim no Ritz, de


Boston, em frente ao jardim botânico, nenhum de nós dois sonhávamos que
Eliza viesse a saber, e que viesse de tão longe.
Minha irmã gêmea jamais escreveu ou telefonou. Os boatos a seu
respeito eram tão vagos como as notícias que vinham da China. Ouvimos
dizer que estava bebendo demais. E que resolvera jogar golfe.

•••

Eu estava me divertindo na grande festa, quando um mensageiro do hotel


veio me dizer que queriam minha presença do lado de fora — não apenas
no vestíbulo, mas fora do prédio mesmo. Fazia uma noite agradável e
enluarada, e Eliza era a última coisa que passaria pela minha mente.
O que pensei, enquanto seguia o rapaz, era que o Rolls-Royce de minha
mãe estava estacionado ali em frente.
Sentia-me confiante, graças aos modos servis e ao uniforme do meu
guia. Estava também um pouco alto com o champanha. E não hesitei em
segui-lo quando ele me fez atravessar a Arlington Street e depois entrar na
floresta encantada, no jardim botânico, do outro lado.
Meu guia era uma fraude. Não trabalhava no hotel coisíssima nenhuma.

•••

Cada vez mais nós nos embrenhávamos no arvoredo. E em cada clareira


que passávamos eu esperava ver o meu Rolls-Royce.
Mas em vez disso ele acabou por me conduzir até junto de uma estátua,
que representava um médico de aparência antiga, vestido como eu próprio
tanto gostava de me vestir. Era um homem melancólico, mas orgulhoso. E
trazia nos braços uma criança adormecida.
Conforme pude ler na inscrição banhada pela luz da lua, tratava-se de
um monumento comemorando a primeira vez em que fora empregada
anestesia em uma operação nos Estados Unidos, fato que ocorrera em
Boston.

•••

Eu tinha percebido um barulho diferente, vindo talvez da direção da


Commonwealth Avenue. Mas não o identificara como sendo produzido por
um helicóptero.
Mas agora o falso mensageiro, que na verdade era um criado de Eliza,
disparou uma pistola de sinalização para o céu.
Todas as coisas tocadas pelo ofuscante clarão do magnésio foram
transformadas em estátuas sem vida e pesando toneladas.
O helicóptero se materializou diretamente sobre nós, ele próprio
transformado em uma alegoria pelo clarão, assustadora imagem de um anjo
mecânico caído do céu.
Eliza estava a bordo com um megafone.

•••

Achei que ela poderia atirar em mim lá de cima, ou jogar um saco de


excrementos na minha cabeça. Mas Eliza viera do Peru apenas para
declamar uma parte de um soneto shakespeariano.
— Escute! — disse ela. — Escute! — disse de novo. — Escute! —
repetiu mais uma vez.
Enquanto isso o cartucho de magnésio estava quase apagado — seu
paraquedas preso no galho de uma árvore.
Eis o que Eliza me disse e a toda a vizinhança:

— “Oh! Como posso o teu valor bem cantar,


Se és de mim com certeza a melhor parte?
O que podem meus louvores a mim mesma trazer,
E o que então não será meu quando a ti louvar?
Mesmo assim continuemos a viver separados,
E o nosso caro amor há de perder o título de único,
Que é só isto o que pela separação posso te dar,
Algo que é teu, que tu apenas mereceste”.

•••

Gritei por ela, colocando as mãos em concha na boca:


— Eliza!
Depois gritei uma declaração ousada, algo que senti genuinamente pela
primeira vez em minha vida:
— Eliza! Eu a amo!
A escuridão passara a ser total.
— Você me ouviu, Eliza! — insisti. — Eu a amo! Eu realmente a amo!
— Eu ouvi — disse ela. — Ninguém jamais deveria declarar isso para
outra pessoa.
— Estou falando sério — retruquei.
— Então eu também direi algo com toda a sinceridade, meu irmão...
meu gêmeo.
— O que é?
Eis o que ela me disse:
— Que Deus guie a mão e o cérebro do Dr. Wilbur Rockefeller Swain.

•••

O helicóptero se afastou ruidosamente.


Ai ô.
Capítulo 28

Retornei ao Ritz rindo e chorando ao mesmo tempo — um neandertaloide


de dois metros de altura metido numa camisa pregueada e num smoking
azul-claro.
Havia um grupo de pessoas curiosas por causa da efêmera aparição de
uma supernave a leste, e de uma voz que se fizera ouvir do céu falando
sobre separação e amor. Forcei a passagem e entrei no salão de baile,
deixando a cargo dos detetives particulares a tarefa de impedir que me
seguissem.
Os meus convidados estavam começando a tomar conhecimento de que
acontecera algo maravilhoso. Fui até onde estava Mamãe, para lhe contar o
que Eliza fizera. Fiquei intrigado ao encontrá-la conversando com um
estranho de meia-idade, tipo indefinível, e vestindo, como os detetives, um
terno barato.
Mamãe o apresentou como “Dr. Mott”. Era, é claro, o médico que
cuidara de mim e de Eliza durante tanto tempo em Vermont. Estava em
Boston tratando de negócios e, por sorte, hospedado no Ritz.
Eu estava tão cheio de novidades e de champanha, contudo, que não
tomei conhecimento de sua identidade nem me importei com ela. E, após
falar com Mamãe, disse ao Dr. Mott que fora um prazer conhecê-lo e segui
apressadamente para os outros cantos do salão.

•••

Quando voltei para junto de Mamãe, cerca de uma hora depois, o Dr. Mott
já tinha ido embora. Ela me disse novamente de quem se tratava. Lastimei,
formalmente, não ter passado mais tempo com ele, e Mamãe me entregou
um bilhete, dizendo que era o presente de formatura que o Dr. Mott me
deixara.
Fora escrito em papel de carta do Ritz, e dizia, laconicamente:
“‘Quando não puder fazer bem, pelo menos não faça mal.’ Hipócrates”.
•••

Sim, e quando converti a mansão de Vermont em clínica e hospital para


crianças pequenas, assim como minha residência permanente, mandei
gravar essas palavras, em pedra, próximo à porta da frente. Mas elas
perturbavam tanto meus pacientes e seus pais que tive que mandar tirá-las.
Eles achavam que a frase era uma confissão de fraqueza e indecisão a
sugerir que eles talvez devessem ter se mantido a distância.
Continuei a carregar aquelas palavras na minha cabeça, contudo, e na
verdade pouco mal causei. E o centro de gravidade intelectual da minha
clínica era um livro que eu trancava no cofre todas as noites — o manual
que Eliza e eu tínhamos escrito durante a nossa orgia em Beacon Hill.
Não sei como, tínhamos posto tudo ali.
E os anos voaram.

•••

Casei-me com uma mulher tão rica quanto eu, na verdade uma prima em
terceiro grau, cujo nome de solteira era Rose Aldrich Ford. Ela foi muito
infeliz porque eu não a amava, e também porque nunca a levava a parte
alguma. Nunca fui bom em questões de amor. Tivemos um filho, Carter
Paley Swain, que também não consegui amar. Carter era normal, e
totalmente desinteressante para mim. Era como um refresco de verão, sem
gosto de nada e aguado, e se limitava a crescer o tempo todo.
Depois do nosso divórcio, ele e a mãe compraram um apartamento no
mesmo edifício de Eliza, lá em Machu Picchu, no Peru. Nunca mais tive
notícias dos dois — nem quando me tornei presidente dos Estados Unidos.
E o tempo voou.

•••

Um dia me dei conta, ao acordar, de que já estava quase com cinquenta


anos de idade! Mamãe se mudara para junto de mim, em Vermont. Vendera
a casa de Turtle Bay e era uma mulher frágil e medrosa.
Falava muito comigo sobre o céu.
Eu não sabia então coisa alguma a esse respeito. Achava que quando as
pessoas morressem tudo acabava.
— Sei que seu pai está esperando por mim com os braços abertos —
disse ela. — E também o meu Pai e a minha Mãe.
Ela estava com a razão, viu-se depois. Esperar é quase a única coisa que
as pessoas que estão no céu têm que fazer.

•••

Do modo como ela descrevia, o céu parecia um campo de golfe no Havaí,


com um gramado maravilhosamente bem cuidado se derramando sobre um
mar de águas tépidas.
Zombei com ela por desejar aquele tipo de paraíso:
— Parece o tipo do lugar onde todos bebem muita limonada — falei.
— Adoro limonada — replicou ela.
Capítulo 29

Mamãe também falou até o fim a respeito do quanto detestava coisas


artificiais — sabores sintéticos, fibras, plásticos e assim por diante. Amava
seda, algodão, lã e couro, dizia ela. E barro, vidro e pedra. Amava também
cavalos e barcos a vela.
— Tudo isso está voltando, Mamãe — disse eu, o que era verdade.
Meu próprio hospital tinha então vinte cavalos — e carroças,
carruagens, trenós e carretas. Eu tinha um cavalo para meu uso, um grande
Clydesdale. Na realidade era uma égua chamada Budweiser, cujos cascos
eram ocultos por farta plumagem dourada.
Sim, e os portos de Nova York, Boston e San Francisco eram florestas
de mastros novamente, eu ouvira dizer. Já fazia então um bocado de tempo
desde que eu os vira.

•••

Sim, e descobri que a hospitalidade da minha mente à fantasia aumentava


prazerosamente à medida que as máquinas morriam e as comunicações
vindas do mundo exterior se tornavam mais e mais vagas. Assim, não me
espantei quando uma noite, depois de ter posto Mamãe na cama, ao entrar
no meu quarto com uma vela acesa, deparei-me com um chinês do tamanho
do meu polegar sentado na cornija da lareira. Estava vestido com um casaco
acolchoado, calças compridas e boné.
Na medida do que fui capaz de apurar depois, ele era o primeiro
emissário oficial que a República Popular da China mandava aos Estados
Unidos em mais de vinte e cinco anos.

•••

Durante o mesmo período, nem um só estrangeiro que entrara na China,


pelo menos que eu saiba, jamais retornara de lá.
Assim, “ir para a China” tornara-se um eufemismo muito popular para
cometer suicídio.
Ai ô.

•••

Meu pequeno visitante fez um gesto para que eu me aproximasse, a fim de


que não tivesse de gritar. Coloquei uma orelha diante dele. Deve ter sido
uma visão horrível, coitado — um túnel escuro com todos aqueles pelos e
pedaços de cera lá dentro.
Ele me disse que era um embaixador itinerante, e havia sido escolhido
para o trabalho por causa de sua visibilidade. Era muito maior, disse-me,
que um chinês médio.
— Pensei que seu povo não tivesse mais interesse em nós — falei.
Ele sorriu.
— Aquilo foi uma tolice, Dr. Swain. Não devíamos ter feito aquela
declaração. Aceite nossas desculpas.
— Quer dizer então que sabemos de coisas que vocês não sabem? — eu
quis saber.
— Não é bem isso — respondeu ele. — O que quero dizer é que vocês
já souberam de coisas que nós não sabemos.
— Não posso imaginar o que possa ser.
— Naturalmente que não — concordou ele. — Mas lhe darei uma pista:
trago-lhe saudações de sua irmã, em Machu Picchu, Dr. Swain.
— Não é um indício muito esclarecedor — falei.
— Desejo muito ver os papéis que o senhor e sua irmã colocaram em
uma urna funerária no interior do mausoléu do Professor Elihu Roosevelt
Swain — disse ele.

•••

Descobri depois que os chineses tinham mandado uma expedição a Machu


Picchu, a fim de recuperar, se possível, certos segredos perdidos dos incas.
Como meu visitante, eram chineses maiores que a média.
Sim, e Eliza os procurara com uma proposta. Dissera que sabia onde
havia segredos tão bons ou melhores que qualquer coisa que os incas
pudessem ter sabido.
— Se o que estou afirmando for verdade — dissera-lhes —, quero que
vocês me concedam como prêmio uma viagem à sua colônia em Marte.

•••

Ele me disse que seu nome era Fu Manchu.

•••

Perguntei-lhe como conseguira chegar até em cima da lareira.


— Do mesmo modo que chegamos a Marte — foi sua resposta.
Capítulo 30

Concordei em levar Fu Manchu até o mausoléu. Coloquei-o no bolso


interno do paletó.
Eu me sentia muito inferior a ele. Estava certo de que tinha poder de
vida e morte sobre mim, mesmo pequeno como era. Sim, e de que ele sabia
muito mais que eu — mesmo a respeito de medicina, e talvez sobre mim
mesmo. Fazia também com que eu me sentisse imoral por ser tão grande.
Minha ceia naquela noite poderia ter alimentado mil homens do seu
tamanho.

•••

As portas exteriores do mausoléu tinham sido soldadas. Por isso Fu Manchu


e eu tivemos que usar as passagens secretas, o universo alternativo de
minha infância, entrando pelo chão do túmulo.
Enquanto íamos abrindo caminho por entre teias de aranha, perguntei-
lhe a respeito do emprego de gongos no tratamento do câncer.
— Já ultrapassamos isso — disse ele.
— Talvez ainda pudéssemos usar o processo aqui — sugeri.
— Sinto muito — disse ele, de dentro do meu bolso —, mas a sua
pretensa civilização é demasiado primitiva. Vocês jamais poderiam
compreender.
— Hum — fiz eu.

•••

Ele respondia a todas as minhas perguntas desse modo — dizendo, na


verdade, que eu era muito burro para compreender qualquer coisa.

•••

Quando chegamos debaixo do alçapão de pedra que dava no mausoléu, tive


problema em abri-lo.
— Enfie o ombro — disse ele. — Bata com um tijolo. — E assim por
diante.
Seus conselhos eram tão simples que concluí que os chineses sabiam
pouco mais a respeito de gravidade do que eu sabia então.
Ai ô.

•••

O alçapão finalmente se abriu, e nós subimos para dentro do mausoléu. Eu


deveria estar mais assustador do que nunca, coberto de teias de aranha da
cabeça aos pés.
Removi Fu Manchu do bolso e, a seu pedido, coloquei-o em cima do
caixão de chumbo do Professor Elihu Roosevelt Swain.
Eu tinha apenas uma vela. Mas Fu Manchu fez aparecer uma caixinha
que encheu a câmara com uma luz tão brilhante como o foguete que
iluminara meu encontro com Eliza em Boston — muito tempo atrás.
Ele me pediu para retirar os papéis da urna, o que fiz. Estavam
perfeitamente conservados.
— Isso deve ser bom para o lixo — disse eu.
— Para vocês, talvez — disse ele. Pediu-me então para esticar os papéis
e espalhá-los em cima do caixão, o que fiz.
— Como poderíamos nós, quando crianças, saber algo que os chineses
não saibam ainda hoje? — perguntei.
— Sorte — disse ele, pondo-se então a caminhar por cima dos papéis.
Usava minúsculos tênis pretos. Parava aqui e ali para tirar retratos de algo
que lera, uma frase ou uma fórmula — com uma câmara microscópica.
Parecia especialmente interessado em nosso ensaio sobre a gravidade — ou
pelo menos assim me parece agora, com o benefício de saber o que
aconteceu depois.

•••

Finalmente ele se deu por satisfeito, guardou a câmara e me pediu que o


carregasse de volta à mansão, onde ficaria em qualquer parte do lado de
fora. Agradeceu minha cooperação, e me disse que ia se desmaterializar e
regressar à China.
— Encontrou alguma coisa de valor? — perguntei-lhe.
Ele sorriu.
— Uma passagem para Marte para uma certa senhora, de tamanho
avantajado, e que mora no Peru — respondeu ele.
Ai ô.
Capítulo 31

Três semanas depois, na manhã do meu quinquagésimo aniversário,


cavalguei minha égua Budweiser até o vilarejo, a fim de apanhar a
correspondência.
Encontrei um bilhete de Eliza. Dizia isso: “Feliz aniversário para nós!
Estou de partida para Marte amanhã!”
Essa mensagem era de duas semanas atrás, de acordo com o carimbo do
correio. Havia notícias mais frescas na mesma remessa: “Lamento informar
que sua irmã morreu em Marte, durante uma avalancha”. A assinatura era
de Fu Manchu.

•••

Eu li aquelas trágicas mensagens em pé, na velha varanda de madeira do


prédio do correio, à sombra da igrejinha ao lado.
Uma sensação extraordinária se apoderou de mim. A princípio pensei
que fosse de origem psicológica, a primeira onda de dor. Era como se eu
tivesse criado raízes na varanda. Não podia erguer os pés. Além disso,
minhas feições estavam sendo arrastadas para baixo como cera derretida.
A verdade é que a força da gravidade aumentara tremendamente.
Ouviu-se um enorme barulho na igreja. O campanário deixara cair o
sino.
Aí então passei através do piso de madeira da varanda, e fui jogado
sobre a terra que ficava por baixo dele.

•••

Em outras partes do mundo, é claro, cabos de elevador estavam se


rompendo, aviões caindo, navios afundando, veículos motorizados tinham
seus eixos quebrados, pontes desabavam e assim por diante.
Foi terrível.
Capítulo 32

Aquele primeiro golpe feroz de forte gravidade durou menos que um


minuto, mas o mundo jamais seria o mesmo de novo.
Meio tonto, consegui sair de baixo da varanda e apanhar a
correspondência.
Budweiser estava morta. Ela tentara permanecer de pé. Suas vísceras
tinham caído no chão.

•••

Devo ter tido uma neurose de guerra. As pessoas gritavam por socorro na
aldeia, e eu era o único médico. Mas simplesmente me afastei.
Lembro-me de ter caminhado sob as macieiras.
Lembro-me de ter parado no cemitério da família, e aberto gravemente
um envelope da Eli Lilly Company, uma indústria farmacêutica. Dentro
dele havia uma dúzia de pílulas de amostra, da cor e do tamanho de
lentilhas.
A literatura que vinha junto, a qual li com grande cuidado, explicava
que o nome comercial das pílulas era “Tri-Benzo-Comportamil”. O nome
era uma referência a bom comportamento, ou seja, comportamento
socialmente aceitável.
As pílulas se destinavam a tratar os sintomas socialmente inaceitáveis
da doença de Tourette, cujos pacientes, sem querer, falavam obscenidades e
faziam gestos ofensivos não importa onde estivessem.
Em meu estado de desorientação, pareceu-me importante que eu
tomasse imediatamente duas pílulas.
Passaram-se dois minutos e todo o meu ser foi inundado por uma
sensação de contentamento e segurança que eu nunca sentira antes.
Assim começou um vício que ia durar por quase trinta anos.
Ai ô.

•••
Foi um milagre que ninguém em meu hospital tivesse morrido. As camas e
as cadeiras de rodas de algumas das crianças mais pesadas quebraram. Uma
enfermeira se precipitou pelo alçapão que antes estivera oculto pela cama
de Eliza. Quebrou ambas as pernas.
Mamãe, graças a Deus, dormiu o tempo todo.
Quando ela acordou, eu estava ao pé de sua cama. Mais uma vez me
disse o quanto detestava coisas artificiais.
— Eu sei, Mamãe — concordei. — Concordo totalmente com você. É a
volta à natureza.

•••

Até hoje não sei se aquele horrível solavanco da gravidade foi a natureza ou
se foi alguma experiência feita pelos chineses.
Na época pensei que havia uma ligação entre o abalo e as fotos que Fu
Manchu tirara do trabalho que eu e Eliza fizéramos sobre a gravidade.
Sim, e, baratinado até a raiz dos cabelos com o Tri-Benzo-Comportamil,
retirei todos os nossos papéis do mausoléu.

•••

O ensaio sobre a gravidade era incompreensível para mim. Eliza e eu talvez


fôssemos dez mil vezes mais espertos quando uníamos nossas cabeças do
que quando estávamos separados.
Nosso utópico plano para reorganizar o país em milhares de famílias
ampliadas, contudo, era bem claro. A propósito — Fu Manchu achara-o
ridículo.
“Evidentemente trata-se de ideia de crianças”, dissera ele.

•••

Achei-o apaixonante. Dizia que não havia nada de novo acerca de famílias
artificiais ampliadas nos Estados Unidos. Os médicos se sentiam
aparentados com os outros médicos, os advogados com advogados,
escritores com escritores, atletas com atletas, políticos com políticos, e
assim por diante.
Eliza e eu dizíamos que, no entanto, esse tipo de famílias não era bom.
Dele ficavam excluídas as crianças, os velhos, as donas de casa e os
derrotados de todos os tipos. Outra coisa: seus interesses eram geralmente
tão especializados que os faziam parecer insanos para os demais.
“Uma família ampliada ideal”, escrevêramos há muitos anos, “daria
uma representação proporcional a todos os tipos de americanos, de acordo
com os seus números. A criação de dez mil famílias desse tipo, digamos
assim, proporcionaria ao país dez mil parlamentos, os quais discutiriam
com sinceridade e conhecimento de causa o que agora apenas uns poucos
hipócritas discutem com paixão, ou seja, o bem-estar de toda a
humanidade.”

•••

Minha leitura foi interrompida pela chegada da enfermeira-chefe, que veio


me dizer que nossos assustados pacientes finalmente tinham dormido.
Agradeci-lhe a boa notícia. E depois ouvi minha própria voz dizendo-
lhe casualmente: — Ah, sim... quero que você escreva para a Eli Lilly
Company, em Indianápolis e encomende duas mil doses de uma nova droga
chamada “Tri-Benzo-Comportamil”.
Ai ô.
Capítulo 33

Mamãe morreu duas semanas depois daquilo.


A gravidade não nos perturbaria de novo por outros vinte anos.
E o tempo voou. O tempo agora era um pássaro vagamente definido —
tornado indistinto por dosagens cada vez maiores de Tri-Benzo-
Comportamil.

•••

Em dado momento, fechei meu hospital, desisti totalmente da medicina e


fui eleito senador por Vermont.
E o tempo voou.
Um dia surpreendi-me disputando a presidência. Meu criado pregou um
botão da campanha eleitoral no meu fraque. Nele se lia o slogan que
ganharia a eleição para mim:

•••
Apareci aqui em Nova York apenas uma vez durante a campanha. Falei dos
degraus da biblioteca pública na esquina da 42nd Street com a Fifth Avenue.
A cidade era naquela época um sonolento balneário. Nunca se recuperara
daquele primeiro solavanco da gravidade, que privara seus edifícios dos
elevadores, inundara seus túneis e demolira todas as suas pontes, menos a
de Brooklyn.
A gravidade começara a se alterar de novo. Mas não era mais uma
sacudidela, como da primeira vez. Se eram mesmo os chineses os
responsáveis por aquilo, tinham aprendido como aumentá-la ou reduzi-la
gradualmente, querendo talvez reduzir os ferimentos e os danos materiais.
Agora a coisa tinha a lenta majestade das marés.

•••

Quando falei dos degraus da biblioteca, a gravidade estava forte. Assim,


decidi falar sentado. Estava totalmente sóbrio, mas desabei da cadeira, com
a língua pendendo para fora da boca, como um nobre inglês de antigamente.
Minha audiência, composta em sua maioria de aposentados, estava
deitada no chão da Fifth Avenue, que a polícia bloqueara, mas onde, de
qualquer forma, dificilmente haveria qualquer tráfego. Em um ponto
qualquer, talvez na Madison Avenue, houve uma pequena explosão. Os
edifícios inúteis da ilha estavam sendo demolidos para o aproveitamento de
suas pedras.

•••

Falei da solidão americana. Era o único tema de que eu precisava para a


vitória, o que era uma sorte, porque era o único que eu tinha.
Era uma vergonha, disse eu, que eu não tivesse aparecido antes na
história americana com meu plano simples e viável contra a solidão.
Afirmei que todos os danosos excessos americanos no passado foram
motivados mais por solidão que por amor ao pecado.
Ao final, um velho rastejou até onde eu estava e me disse como
costumava comprar seguros de vida, fundos mútuos, aparelhos
eletrodomésticos, automóveis, etc., etc., não porque gostasse dessas coisas
ou precisasse delas, mas porque o vendedor parecia constituir uma
promessa de ser seu parente, e assim por diante.
— Eu não tinha parente e precisava de parentes — disse ele.
— Todo mundo precisa — afirmei.
Ele me disse então que durante algum tempo fora alcoólatra, tentando
tornar parentes as pessoas dos bares.
— O barman seria uma espécie de pai, entende? — disse ele. — Mas de
repente já era hora de fechar.
— Eu entendo — falei. Contei-lhe então uma meia verdade a meu
próprio respeito que provara ser popular durante a campanha. — Eu
costumava ser solitário — disse-lhe. — A única pessoa com quem eu podia
compartilhar meus pensamentos mais íntimos era uma égua chamada
Budweiser.
E contei como Budweiser morrera.

•••

Durante esta conversa, eu levara a mão à boca repetidamente, dando a


impressão de estar reprimindo bocejos ou coisa semelhante. Na verdade,
estava tomando pequeninas pílulas verdes. A essa altura elas já haviam sido
proibidas legalmente e não eram mais fabricadas. Eu ainda tinha talvez um
barril delas no edifício do Senado.
Eram elas as responsáveis pelo meu otimismo e minha cortesia
imperturbáveis, e talvez pelo fato de eu não envelhecer tão rapidamente
quanto os outros homens. Eu tinha então sessenta e cinco anos, mas estava
com o vigor dos trinta.
Chegara até a me casar de novo com uma bela jovem, Sophie
Rothschild Swain, que tinha apenas vinte e três anos.

•••

— Se você for eleito, e eu ganhar todos esses parentes artificiais... — disse,


interrompendo-se — quantos mesmos você falou?
— Dez mil irmãos e irmãs — respondi. — Cento e noventa mil primos.
— Não será demais? — perguntou ele.
— Já não concordamos em que precisamos de muitos em um país tão
grande e desajeitado como o nosso? — retruquei. — Digamos que você um
dia vá ao Wyoming... não será um conforto saber que tem muitos parentes
lá?
Ele ponderou um pouco o que eu dissera.
— Bem, acho que sim, espero eu — disse, por fim.
— Como falei no discurso — disse-lhe —, o seu novo sobrenome
consistirá em um substantivo, o nome de uma flor, fruto, noz, verdura,
legume, pássaro, réptil, peixe, molusco, pedra preciosa, um elemento
mineral ou um elemento químico... ligado por um hífen a um número entre
um e vinte. — Perguntei qual era o seu nome então.
— Elmer Glenville Grasso — disse ele.
— Pois bem — falei —, o senhor pode se tornar Elmer Urânio-3
Grasso, digamos. Todo mundo com Urânio no meio do nome seria seu
primo.
— Isso me traz de volta à primeira pergunta — disse ele; — e se eu
tiver algum parente artificial que não puder tolerar de modo algum?

•••

— E o que há de novo no fato de uma pessoa ter um parente que não se


pode tolerar? — perguntei-lhe. — O senhor não diria que esse tipo de coisa
já vem acontecendo há talvez um milhão de anos, Sr. Grasso?
Eu lhe disse então uma coisa muito obscena. Não sou inclinado a
obscenidades, como este próprio livro demonstra. Em todos os meus anos
de vida pública, eu nunca havia dito nada tão forte ao povo americano.
De modo que foi terrivelmente impressionante quando por fim me
expressei de maneira vulgar, o que fiz para ressaltar ao máximo o fato de
quão bem adequado aos seres humanos comuns seria o meu novo esquema
social.
O Sr. Grasso não foi o primeiro a ouvir o surpreendente desabafo. Eu já
usara o truque no rádio. Não havia mais coisas como a televisão.
— Sr. Grasso — falei —, eu, pessoalmente, ficarei muito desapontado
se o senhor não disser aos parentes artificiais que detestar, depois que eu for
eleito: “Irmão (ou Irmã, ou Primo, seja lá qual for o caso), por que é que
você não vai tomar no olho do cu? VÁ TOMAR NO OLHO DO CUUUUUU!”

•••

— Sabe o que é que vão fazer os parentes a quem o senhor disser isso, Sr.
Grasso? — prossegui. — Eles irão para casa e tentarão ser melhores
parentes!

•••
— Considere também como sua situação será bem melhor, se a reforma for
concretizada, quando um mendigo se aproximar do senhor e pedir dinheiro
— continuei.
— Não compreendo — disse o homem.
— Ora — esclareci —, o senhor falará assim com o mendigo: “Qual é o
seu nome do meio?” Ele vai responder: “Ostra-19”, ou “Galinhola-1 ”, ou
qualquer coisa dessas.
“Então você pode dizer-lhe: ‘Meu chapa... acontece que eu sou um
Urânio-3. Você tem dezenove mil primos e dez mil irmãos e irmãs. Não está
exatamente só neste mundo, portanto. E eu tenho os meus próprios parentes
para cuidar. Assim, por que é que você não vai tomar no olho do cu? VÁ
TOMAR NO OLHO DO CUUUUUU!’”
Capítulo 34

A crise de combustível era tão forte quando fui eleito, que o primeiro
problema grave que enfrentei, depois da posse, foi onde arranjar
eletricidade suficiente para acionar os computadores que forneceriam os
novos nomes.
Mandei que cavalos, soldados e carroças do arruinado Exército que eu
herdara de meu antecessor levassem toneladas de papéis do Arquivo
Nacional para a casa de força. Todos aqueles documentos eram da
administração de Richard M. Nixon, o único presidente que jamais fora
obrigado a renunciar.

•••

Fui ao Arquivo observar tudo pessoalmente. Falei a uns soldados e a uns


poucos transeuntes dos degraus da escada. Eu disse que o Sr. Nixon e seus
associados tinham ficado desequilibrados por causa de um tipo de solidão
especialmente virulenta.
— Ele prometeu nos unir — afirmei —, mas em vez disso nos dividiu.
Agora, no entanto, como num passe de mágica, ele nos unirá afinal!
Posei para fotografias sob uma inscrição na fachada do Arquivo que
dizia: “O passado é o prólogo”.
— Eles não eram basicamente criminosos — falei. — Mas ansiaram por
fazer parte da irmandade que viam existir no Crime Organizado.

•••

Indiquei a fachada do Arquivo com um gesto e prossegui:


— Há tantos crimes cometidos por gente solitária no governo, que ali
devia estar escrito: “Antes uma família de criminosos que nenhuma
família”.
“Creio que estamos agora marcando o fim da era de tão trágicas
palhaçadas. O prólogo está terminado, amigos, irmãos, vizinhos e parentes.
Deixemos que a parte principal da nossa nobre tarefa comece.
“Muito obrigado”, concluí.

•••

Não havia grandes jornais ou revistas de circulação nacional. Os imensos


parques gráficos tinham sido fechados — por falta de combustível. Não
havia microfones. Só havia o povo ali.
Ai ô.

•••

Distribuí uma condecoração especial aos soldados, para comemorar a


ocasião. Consistia em uma fita azul-clara, da qual pendia um botão de
plástico.
Expliquei, meio na brincadeira, que a fita representava “o Pássaro Azul
da Felicidade”. E no botão estavam inscritas estas palavras, claro:
Capítulo 35

Já são umas nove horas da manhã aqui no Parque Nacional dos Arranha-
Céus. A gravidade está suave, mas Melody e Isadore não trabalharão hoje
na pirâmide do bebê. Em vez disso, teremos um piquenique no topo do
edifício. Os dois jovens estão sendo tão amáveis comigo porque meu
aniversário será daqui a dois dias. Como é divertido!
Não há nada de que eles gostem mais que um aniversário!
Melody depena uma galinha que um escravo de Vera Esquilo-5 Zappa
nos trouxe ainda há pouco. Trouxe também duas bisnagas de pão e dois
litros de cerveja. Quando chegou, mostrou-nos, com mímica, o quão
nutritivo estava sendo para nós. Pressionou as bases das duas garrafas de
cerveja de encontro a seus mamilos, como se tivesse seios que dessem
cerveja.
Nós rimos. E batemos palmas.

•••

Melody joga punhados de penas para o ar. Por causa da gravidade fraca,
parece que ela é uma feiticeira. Cada estalido de seus dedos gera borboletas.
Tenho uma ereção. Isadore também. Da mesma forma que todos os
homens.

•••

Isadore varre o saguão com uma vassoura que ele fez de gravetos. Canta
uma das duas únicas músicas que sabe. A outra canção é Parabéns pra
você. Sim, e ele também é completamente desafinado e, quando canta, mais
parece um zangão zumbindo. Eis o que ele desentoa:

— “Reme, reme, reme seu barco,


Devagar corrente abaixo,
Bem contente e feliz,
Que a vida não passa de um sonho”.
Sim, e me lembro agora de um dia no sonho de minha vida, já há muito
tempo atrás, quando recebi uma carta amistosa do presidente do meu país,
que, por acaso, era eu mesmo. Como qualquer outro cidadão, eu esperava
com ansiedade que os computadores dissessem qual seria o meu novo
sobrenome.
Meu presidente se congratulava comigo. Pedia-me que usasse o novo
nome como parte de minha assinatura, na minha caixa do correio, papel
timbrado, catálogos telefônicos e assim por diante. Dizia que o nome que
me coubera fora selecionado com a mais absoluta imparcialidade e não se
destinava a representar um comentário sobre o meu temperamento,
aparência ou passado.
Dava-me exemplos enganadoramente caseiros, quase fúteis, de como eu
poderia ajudar meus parentes artificiais: regando as plantas de suas casas
quando estivessem fora, tomando conta de seus filhos pequenos para que
pudessem sair por uma ou duas horas, dizendo-lhes o nome de um dentista
que realmente tratasse dos dentes sem dor. E mais: remetendo-lhes uma
carta, fazendo-lhes companhia em uma assustadora visita ao médico, ou
visitando-os na cadeia ou no hospital. Ou, ainda, indo com eles assistir a um
filme de terror.
Ai ô.

•••

Fiquei encantado com o meu nome, a propósito. Mandei que a Sala Oval da
Casa Branca fosse imediatamente pintada de amarelo-claro, para celebrar o
fato de eu me ter tornado um “Narciso Silvestre”.
E, justo quando eu estava dizendo à minha secretária particular,
Hortense Tainha-13 McBundy, que providenciasse a pintura, apareceu no
escritório um lavador de pratos da cozinha da Casa Branca. Estava tão
embaraçado que perdia o fôlego sempre que tentava falar.
Quando, por fim, ele conseguiu se fazer entender, eu o abracei. Ele
viera de suas profundezas cheias de vapor para me dizer, com toda a
coragem que conseguira reunir, que também era um Narciso Silvestre-11.
— Meu irmão! — exclamei.
Capítulo 36

Se houve oposição substancial ao nosso esquema? Ora, é claro que houve.


E, como Eliza e eu tínhamos previsto, meus inimigos ficaram tão furiosos
com a ideia das famílias artificiais ampliadas que passaram a constituir uma
família poliglota à parte.
Também tinham botões de campanha eleitoral, que continuaram usando
muito tempo depois de eu ter sido eleito. Era inevitável que tais botões
dissessem:

•••

Tive que rir, mesmo quando a minha própria esposa, a antiga Sophie
Rothschild, resolveu usar um botão desses.
Ai ô.

•••
Sophie ficou furiosa quando recebeu uma carta impressa de seu presidente,
que por acaso era eu, na qual recebia instruções para deixar de ser uma
“Rothschild”. Em vez disso, passava a ser uma “Amendoim-3”.
De novo: sinto muito, mas tive que rir.

•••

Sophie fumegou de raiva durante longo tempo. E acabou por ir de gatinhas


até a Sala Oval em uma tarde de gravidade particularmente forte — só para
me dizer que me odiava.
Aquilo não me afligiu.
Como já falei antes, eu estava perfeitamente cônscio de que não era o
tipo de pessoa capaz de ter um casamento feliz.
— Sinceramente não pensei que você fosse tão longe, Wilbur — disse
ela. — Eu sabia que você era maluco e que aquela sua irmã também era
maluca. Mas não acreditei que fosse tão longe.

•••

Sophie não teve que erguer os olhos para me encarar, já que eu também
estava no chão — de bruços, com o queixo repousado sobre uma almofada.
Estava lendo o fascinante relatório de algo que acontecera em Urbana,
Illinois.
Como não lhe desse atenção, ela insistiu:
— O que é que você está lendo que é tão mais interessante do que eu?
— Bem — respondi —, por muitos anos eu fui o único americano a ter
falado com um chinês. Isso não é mais verdade. Uma delegação de chineses
visitou a viúva de um físico... cerca de três semanas atrás.
Ai ô.

•••

— Não quero desperdiçar seu precioso tempo — disse ela. — É claro que
você está mais próximo dos chineses do que jamais esteve de mim.
Eu lhe dera de presente de Natal uma cadeira de rodas — para andar
pela Casa Branca nos dias de gravidade forte. Perguntei por que não a
usava.
— Fico muito triste — acrescentei — com vê-la andando de quatro por
aí.
— Agora sou um “Amendoim” — ela me respondeu. — “Amendoins”
vivem junto ao chão. “Amendoins” são famosos por serem rasteiros. São o
que existe de mais barato e mais vulgar.

•••

No princípio, eu pensava que era fundamental que as pessoas não tivessem


permissão para trocar os nomes fornecidos pelo governo. Estava errado em
ser rígido a esse respeito. Atualmente se vê todo tipo de trocas — tanto aqui
na ilha da Morte como no resto do país. Não vejo resultar disso qualquer
mal.
Mas fui severo com Sophie.
— Você quer ser uma “Águia”, ou um “Diamante”, suponho — falei.
— Só quero ser uma “Rothschild” — disse ela.
— Então você talvez deva ir para Machu Picchu. Foi para lá que a
maioria de seus parentes de sangue partiram.

•••

— Será que você é mesmo tão sádico — disse ela — que quer que eu prove
meu amor fazendo amizade com estranhos que estão agora rastejando para
sair das pedras úmidas onde era o seu lugar, como lacraias? Como
centopeias? Como lesmas? Como vermes?
— Ora, vamos, vamos — disse eu.
— Quando foi que você olhou pela última vez o espetáculo grotesco
que está se desenrolando do outro lado da cerca?
Todo o perímetro da Casa Branca, junto da cerca que delimita seu
terreno, era infestado diariamente por pessoas que alegavam ser meus
parentes artificiais, ou de Sophie.
Lembro-me de dois anões gêmeos que empunhavam uma faixa com a
inscrição: “Poder da Flor”.
Havia uma mulher, lembro-me também, que usava uma gandola do
Exército sobre um vestido de noite, púrpura. Na cabeça trazia um antigo
capuz de aviador, com óculos e tudo. Ela exibia uma placa na extremidade
de uma vara, e na placa se lia: “Manteiga de Amendoim”.
•••

— Sophie — ponderei —, aquilo não representa a população comum do


país. E você não está enganada quando diz que rastejaram para sair de suas
rochas úmidas... como centopeias, lacraias ou vermes. É gente que nunca
teve um amigo ou um parente. Tiveram que acreditar durante todas as suas
vidas que talvez tivessem sido mandados para o universo errado, já que
ninguém jamais lhes deu boas-vindas ou mesmo qualquer coisa para fazer.
— Eu os odeio — disse ela.
— Pois continue a odiá-los — falei. — Pouco mal há nisso, pelo menos
no meu modo de ver as coisas.
— Não pensei que você fosse tão longe, Wilbur — disse ela. — Achei
que você ficaria satisfeito com ser presidente. Não pensei que você fosse
tão longe.
— Bem — retorqui —, estou feliz por tudo isso. E estou satisfeito em
termos aquelas pessoas do outro lado da cerca sobre quem pensar, Sophie.
Eles são eremitas assustados que se viram tentados a sair de suas rochas
úmidas graças a novas leis humanas. Estão confusos, procurando irmãos,
irmãs e primos que o seu presidente lhes deu, retirando-os do tesouro social
do país, que até agora estava intocado.
— Você está louco — disse ela.
— É muito provável — concordei. — Mas não será uma alucinação
quando eu vir aquelas pessoas do outro lado da cerca se encontrarem umas
às outras, pelo menos.
— Elas merecem mesmo umas às outras — disse ela.
— Exatamente — falei. — E merecem também algo mais que há de
lhes acontecer, agora que tiveram coragem de falar a estranhos. Veja só,
Sophie. A simples experiência do companheirismo lhes permitirá galgar a
escada da evolução em algumas horas ou dias, no máximo semanas.
“Não será uma alucinação, Sophie”, concluí, “quando eu os vir
transformados em seres humanos, depois de terem sido por muito e muito
tempo centopeias, lesmas, lacraias e vermes.”
Ai ô.
Capítulo 37

Sophie se divorciou de mim, é claro, e se mudou com suas joias, peles,


pinturas, barras de ouro, etc., etc., para um apartamento em Machu Picchu.
Creio que as últimas palavras que lhe dirigi foram as seguintes:
— Você pelo menos não quer esperar que compilemos os catálogos das
famílias? Certamente descobrirá que é aparentada com outros homens e
mulheres notáveis.
— Eu já sou aparentada com muita gente ilustre — replicou ela. —
Adeus.

•••

A fim de compilar e publicar os catálogos das famílias, tivemos que arrastar


mais documentos do Arquivo Nacional para a casa de força. Dessa vez
selecionei os arquivos de Ulysses Simpson Grant e Warren Gamaliel
Harding.
Não poderíamos dar a cada cidadão uma cópia do catálogo de sua
família. Tudo o que podíamos fazer era fornecer um conjunto completo para
cada Assembleia Estadual e para todas as prefeituras, departamentos de
polícia e bibliotecas públicas do país.

•••

Uma coisa eu fiz avidamente: antes que Sophie me deixasse, pedi que
mandassem os catálogos dos Narcisos Silvestres e dos Amendoins para nós.
E tenho um deles, o dos Narcisos Silvestres, aqui comigo, no edifício do
Empire State. Foi Vera Esquilo-5 Zappa quem me deu no meu último
aniversário. É uma primeira edição — a única que jamais foi publicada.
Graças a ele posso ver, mais uma vez, que entre os meus novos parentes
naquela época estavam Clarence Narciso Silvestre-11 Johnson, chefe de
polícia de Batávia, no Estado de Nova York, Muhammad Narciso Silvestre-
11 X, o antigo campeão mundial de boxe, na categoria de peso médio, e
Maria Narciso Silvestre-11 Tcherkassky, a primeira-bailarina do Balé da
Ópera de Chicago.

•••

A propósito, foi bom que Sophie não tivesse chegado a ver o seu catálogo
familiar. Os Amendoins, na verdade, não pareciam ser grande coisa.
O mais famoso Amendoim de que consigo me lembrar era um jogador
de hóquei sobre patins de segunda categoria.
Ai ô.

•••

Sim, e depois que o governo forneceu os catálogos, a iniciativa privada se


lançou à produção dos jornais das famílias. O meu era o Correio dos
Narcisos Silvestres. O de Sophie, que continuou a ser remetido para a Casa
Branca durante muito tempo após ela ter me deixado, era o Pé de Moleque.
Outro dia Vera me disse que o jornal dos Esquilos se chamava A Pilha de
Nozes.
Nos anúncios classificados, as pessoas pediam emprego ou capital para
investimento. Também ofereciam coisas à venda. As colunas de notícia
exaltavam os triunfos de diversos parentes e advertiam a família contra
aqueles que molestavam crianças ou eram trapaceiros. Havia listas dos que
podiam ser visitados nos hospitais e cadeias.
Os editoriais, por exemplo, clamavam por programas de seguro das
famílias, pela organização de equipes esportivas e assim por diante.
Lembro-me de ter lido, não sei mais se no Correio dos Narcisos Silvestres
ou se no Pé de Moleque, matéria que afirmava que as famílias com altos
padrões morais eram melhores mantenedoras da lei e da ordem, e que se
podia esperar pelo desaparecimento dos serviços policiais.
Esse artigo terminava assim: “Se você souber de um parente que esteja
envolvido em ações criminais, não chame a polícia. Chame dez outros
parentes”.
E assim por diante.
•••

Vera me disse que o lema de A Pilha de Nozes era: “Um bom cidadão é uma
boa mulher da família ou um bom homem da família”.

•••

Quando as novas famílias começaram a se investigar, alguns dados


estatísticos excêntricos foram encontrados. Quase todos os Paquisandras,
por exemplo, eram capazes de tocar instrumentos musicais, ou pelo menos
cantar no tom. Três deles regiam importantes orquestras sinfônicas. A viúva
de Urbana que fora visitada pelos chineses era uma Paquisandra. Ela se
sustentava, e a seu filho, dando aulas de piano.
Os Melancias, em média, eram um quilo mais pesados que os membros
de qualquer outra família.
Três quartos de todos os Enxofres eram mulheres.
E assim por diante.
Quanto à minha família: havia uma extraordinária concentração de
Narcisos Silvestres em Indianápolis e nas cercanias. Seu jornal era
publicado lá, e no cabeçalho anunciava orgulhosamente: “Impresso na
Cidade Narciso Silvestre, EUA”.
Ai ô.

•••

Apareceram também clubes familiares. Eu, pessoalmente, inaugurei o dos


Narcisos Silvestres aqui em Manhattan, na 43rd Street, quase na esquina
com a Fifth Avenue.
Aquilo foi uma experiência notável para mim, embora eu estivesse meio
anestesiado pelo Tri-Benzo-Comportamil. Antes eu já pertencera a um
outro clube, e a um outro tipo de família artificial ampliada, exatamente no
mesmo lugar. Da mesma forma meu pai, meus dois avós e todos os meus
quatro bisavós.
Aquele prédio já tinha sido um refúgio para homens poderosos e ricos,
já bem avançados na meia-idade.
Agora ele regurgitava de mães e filhos, com os velhos jogando damas,
xadrez ou sonhando, os jovens adultos tendo lições de dança, jogando
boliche ou se divertindo com máquinas eletrônicas.
Tive que rir.
Capítulo 38

Foi nessa visita a Manhattan que vi meu primeiro “Clube dos Treze”. Havia
doze desses afamados estabelecimentos em Chicago, eu ouvira dizer. Agora
Manhattan também tinha um.
Eliza e eu não tínhamos previsto que todas as pessoas com “13” nos
nomes do meio iriam se associar quase que imediatamente, para formar a
maior família de todas.
E, sem dúvida, tive uma boa amostra de minha própria receita quando
pedi ao guarda que tomava conta da porta do clube que me deixasse entrar
para dar uma olhada. Estava muito escuro lá dentro.
— Com o devido respeito, senhor presidente — disse-me ele —, será
que o senhor é um Treze?
— Não — respondi. — Você sabe que não sou.
— Pois então eu devo lhe dizer uma coisa, senhor presidente: por que é
que o senhor não vai tomar no olho do cu? VÁ TOMAR NO OLHO DO
CUUUUUUU!
Entrei em êxtase.

•••

Sim, e também foi durante essa visita que tomei conhecimento da Igreja de
Jesus Cristo Raptado — na época, uma minúscula seita em Chicago, mas
que iria se tornar a mais popular religião americana de todos os tempos.
Ela me foi trazida à atenção por um folheto que um rapaz limpo e
radiante me entregou quando cruzei o vestíbulo em direção às escadas de
meu hotel.
Ele sacudia a cabeça em todas as direções, de um modo que na época
me pareceu estranho, como se estivesse esperando surpreender alguém
observando-o detrás de uma palmeira plantada num vaso ou de uma
poltrona, ou mesmo diretamente de cima de sua cabeça, do candelabro de
cristal.
O rapaz estava tão absorvido em atirar olhares ardentes em todas as
direções, que não ligou a mínima ao fato de ter acabado de entregar um
volante ao presidente dos Estados Unidos.
— Posso lhe perguntar o que está procurando, meu rapaz? — perguntei.
— Nosso Salvador — foi a resposta.
— Você acha que Ele está neste hotel?
— Leia o folheto, senhor.

•••

Assim o fiz — sozinho em meu quarto, com o rádio ligado.


Na parte bem de cima do folheto havia um desenho primitivo de Jesus,
de pé e voltado para a frente, mas com o rosto de perfil — como um valete
com um só olho numa carta de baralho.
Ele estava amordaçado e manietado. Um tornozelo estava algemado e
acorrentado a uma argola fixa no chão. Uma lágrima escorria da pálpebra
inferior de Seu Olho.
Abaixo do desenho havia uma série de perguntas e respostas:

“PERGUNTA: Qual é o seu nome?


“RESPOSTA: Sou o Reverendo William Urânio-8 Wainwright, fundador
da Igreja de Jesus Cristo Raptado, situada na Ellis Avenue, 3972,
Chicago, Estado de Illinois.
“PERGUNTA: Quando Deus nos mandará de novo o Seu Filho?
“RESPOSTA: Ele já o fez. Jesus está aqui entre nós.
“PERGUNTA: Por que então nada vimos ou sabemos sobre Ele?
“RESPOSTA: Ele foi raptado pelas Forças do Mal.
“PERGUNTA: O que é que nós devemos fazer?
“RESPOSTA: Devemos largar tudo o que estivermos fazendo, e gastar
todo o tempo em que estivermos acordados tentando encontrá-Lo.
Se não procedermos assim, Deus exercitará Sua Opção.
“PERGUNTA: Qual é a Opção de Deus?
“RESPOSTA: Ele pode destruir a humanidade facilmente, a qualquer
momento em que desejar fazê-lo.”

Ai ô.

•••
Vi o tal rapaz jantando no refeitório do hotel naquela noite. E fiquei
assombrado ao constatar que ele podia sacudir a cabeça para todos os lados
e ainda assim comer sem deixar cair um farelo. Chegou até a procurar Jesus
embaixo do prato e do copo vezes sem conta.
Tive que rir.
Capítulo 39

Mas foi então, logo quando tudo estava indo tão bem, quando os
americanos eram mais felizes do que jamais haviam sido (muito embora os
Estados Unidos estivessem na bancarrota e se desintegrando), que o povo
começou a morrer aos milhões da “Gripe Albanesa”, em quase todo o país,
e, aqui em Manhattan, da “Morte Verde”.
E esse foi o fim da nação. Virou um monte de famílias, e nada mais.
Ai ô.

•••

Apareceu logo gente estabelecendo ducados, reinados e idiotices desse


gênero. Organizaram-se exércitos, e fortes foram construídos aqui e ali.
Mas poucas pessoas os admiravam. Eram simplesmente como um novo
ciclo de mau tempo e gravidade adversa que as famílias tinham que aturar
de vez em quando.
Em uma noite de má gravidade, os alicerces de Machu Picchu cederam.
Os edifícios, butiques, bancos, barras de ouro, joias, coleções de arte pré-
colombiana, e o teatro de ópera, igrejas e tudo mais escorregaram de cima
dos Andes, indo parar no fundo do oceano.
Chorei.

•••

E as famílias pintavam em toda parte retratos do Jesus Cristo Raptado.

•••

As pessoas continuaram a mandar notícias para a Casa Branca por um curto


período de tempo. Nós mesmos estávamos sofrendo grande número de
baixas, esperando morrer.
Nossa higiene pessoal deteriorou-se rapidamente. Paramos de tomar
banho e escovar os dentes com regularidade. Os homens deixaram crescer a
barba, bem como os cabelos até os ombros.
Começamos a canibalizar a Casa Branca quase sem dar conta do que
estávamos fazendo, queimando nas lareiras a mobília, os painéis que
forravam as paredes, as molduras dos quadros e tudo o mais, a fim de
manter a casa quente.
Hortense Tainha-13 McBundy, minha secretária pessoal, morreu de
gripe. Meu secretário Edward Morango-4 Kleindienst morreu de gripe.
Minha vice-presidenta, Mildred Hélio-20 Theodorides, morreu de gripe.
Meu assessor em assuntos científicos, o Dr. Albert Água-Marinha-1
Piatigorsky, expirou nos meus braços, deitado no chão da Sala Oval.
Ele era quase tão alto quanto eu. Deveríamos ser uma visão e tanto, ali
juntos.
— O que significa isso? — perguntou ele, inúmeras vezes.
— Não sei, Albert — respondi. — E acho que estou satisfeito por não
saber.
— Pergunte a um chinês! — exclamou Albert, indo desta para a melhor,
como se costuma dizer.

•••

De vez em quando o telefone tocava. Isso passou a ser uma ocorrência tão
rara que comecei a atender pessoalmente.
— Aqui é o seu presidente falando — dizia eu. Com frequência, eu me
via falando com um tipo qualquer de criatura mitológica: o “rei de
Michigan”, talvez, ou o “governador de emergência da Flórida”, ou ainda o
“prefeito interino de Birmingham” ou algo semelhante.
Mas as mensagens foram escasseando cada vez mais à medida que o
tempo passava. Por fim, elas cessaram de todo.
Fui esquecido.
Assim terminou minha presidência — faltando um terço do meu
segundo mandato para ser cumprido.
E outra coisa importantíssima também estava para se esgotar quase que
com a mesma rapidez — o meu insubstituível suprimento de Tri-Benzo-
Comportamil.
Ai ô.
•••

Não me atrevi a contar as pílulas remanescentes até que foi impossível


deixar de fazê-lo, tão poucas eram. Eu tinha me tornado tão dependente
delas, tão agradecido, que tinha a impressão de que minha vida terminaria
quando terminassem as pílulas.
Estava ficando sem empregados também. Logo fiquei reduzido a um.
Todos os demais haviam morrido ou se afastado, já que não havia mais
mensagens.
A última pessoa que ficou foi meu irmão, o fiel Carlos Narciso
Silvestre-11 Villavicencio, o lavador de pratos que eu abraçara no meu
primeiro dia de Narciso Silvestre.
Capítulo 40

Tendo em vista que tudo tinha decaído tão rapidamente, e também porque
não havia mais ninguém para quem eu devesse me comportar de maneira
sensata, desenvolvi a mania de contar coisas. Eu contava as persianas das
janelas. Contei facas, garfos e colheres na cozinha. Contei as borlas da
colcha que cobria a cama de Abraham Lincoln.
Um dia eu estava contando as colunas de um corrimão, de quatro na
escada, embora a gravidade estivesse entre média e suave. Percebi então
que alguém estava me observando lá de baixo.
Era um homem vestido com roupas de couro, mocassins e um gorro de
guaxinim, carregando um rifle.
“Meu Deus, presidente”, pensei com meus botões, “desta vez você está
realmente louco. Lá está o velho Daniel Boone observando sua maluquice.”
Um outro homem se juntou ao primeiro. Este estava como um piloto
militar de antigamente, de uma época muito anterior à minha eleição para a
presidência, quando havia coisas como a Força Aérea dos Estados Unidos.
— Deixem que eu adivinhe — falei em voz alta. — Ou é o Dia das
Bruxas ou é o Quatro de Julho.

•••

O piloto parecia chocado com as condições da Casa Branca.


— O que aconteceu aqui? — indagou.
— Tudo o que posso lhe dizer é que foi feita história — respondi.
— Isto está horrível — disse ele.
— Se você acha que isto é ruim — retorqui, batendo na minha própria
testa com a ponta dos dedos —, devia ver como andam as coisas aqui
dentro.

•••
Nenhum dos dois suspeitava, nem mesmo de longe, que eu fosse o
presidente. Minha aparência não poderia ser pior.
Eles não queriam falar comigo, ou um com o outro, para falar a
verdade. Acontece que eram estranhos. Simplesmente tinham, por acaso,
chegado ao mesmo tempo — cada um para cumprir uma missão urgente.
Ambos se dirigiram aos outros cômodos e encontraram meu Sancho
Pança, Carlos Narciso Silvestre-11 Villavicencio, que estava preparando o
almoço com bolachas duras, ostras defumadas em lata e algumas outras
coisas que encontrara. Carlos os trouxe de volta para mim e convenceu-os
de que eu era o presidente daquilo que ele, com toda a sinceridade, dizia ser
“o mais poderoso país do mundo”.
Carlos era muito burro.

•••

O tipo vestido como um antigo herói do Oeste tinha uma carta na mão —
remetida pela viúva de Urbana em Illinois, que fora visitada por chineses
alguns anos antes. Eu estava então muito ocupado para descobrir o objetivo
dos chineses. “Prezado Dr. Swain”, começava a carta, que prosseguia:

“Sou uma pessoa comum, uma professora de piano, que se notabiliza


apenas por ter sido casada com um grande físico, por ter tido com ele
um lindo filho e por ter sido visitada por uma delegação de chineses
muito pequenos — um dos quais me contou que seu pai conhecera o
senhor. O nome do pai dele era ‘Fu Manchu’.
“Foram os chineses que me contaram a respeito da sensacional
descoberta que meu marido, o Dr. Felix Bauxita-13 von Peterswald, fez
pouco antes de morrer. Meu filho, que por sinal é um Narciso Silvestre-
11, como o senhor, e eu própria resolvemos desde então conservar em
segredo essa descoberta, porque a luz que ela lança sobre a situação dos
seres humanos é muito desmoralizante, para não dizer outras coisas.
Relaciona-se com a verdadeira natureza daquilo que nos espera após a
morte. O que nos espera, Dr. Swain, é tedioso em extremo.
“Não posso forçar-me a falar em ‘céu’, ‘paraíso’ ou qualquer outra
dessas palavras doces. Só posso usar a expressão que meu marido veio a
usar, e que também o senhor usará, ou seja, ‘a Granja dos Perus’.
“Para encurtar a história, Dr. Swain, o meu marido descobriu um
meio de falar com os mortos na ‘Granja dos Perus’. Nunca ensinou a
técnica a mim ou a meu filho, ou para qualquer outra pessoa. Mas os
chineses, que aparentemente têm espiões em todos os lugares, deram
um jeito de descobrir tudo. E vieram aqui para estudar os papéis e ver o
que acontecera com seus aparelhos.
“Depois que descobriram tudo, foram delicados o bastante para
explicar a mim e a meu filho como poderíamos fazer o horripilante
truque, se assim o desejássemos. Ficaram desapontados com a
descoberta. Era novidade para eles, disseram, ‘mas podia interessar
apenas aos participantes daquilo que restara da Civilização Ocidental’,
seja o que for que essa expressão signifique.
“Estou confiando esta carta a um amigo que espera se estabelecer
em um grande povoado de seus parentes artificiais, os Berilos, em
Maryland, que fica bem perto de sua casa.
“Subscritei ‘Dr. Swain’ em vez de ‘senhor presidente’ porque esta
carta nada tem que ver com os interesses nacionais. É uma carta
essencialmente pessoal, informando-lhe que conversamos muitas vezes
com sua irmã Eliza usando os aparelhos de meu marido. Ela diz que é
da maior importância que o senhor venha até cá, a fim de que possam
conversar diretamente.
“Aguardamos ansiosamente sua visita. Por favor, não se sinta
insultado com o comportamento de meu filho e seu irmão, David
Narciso Silvestre-11 von Peterswald, que não pode se controlar, e fala
obscenidades e faz gestos insultuosos nos momentos mais inadequados.
Ele está sofrendo da doença de Tourette.
“Lealmente, sua criada
“Wilma Paquisandra-17 von Peterswald.”

Ai ô.
Capítulo 41

Fiquei profundamente comovido, a despeito do Tri-Benzo-Comportamil.


Do lado de fora, pastando na grama crescida em frente à Casa Branca,
estava o cavalo do mensageiro. Depois de observar o quadrúpede por um
instante, voltei-me para seu dono e perguntei:
— Como foi que esta carta veio ter às suas mãos?
Ele me disse que tinha acidentalmente matado um homem chamado
Berilo, que parecia ser amigo de Wilma Paquisandra-17 von Peterswald, na
fronteira do Tennessee com a Virgínia Ocidental. Tomara-o por um inimigo
figadal.
— Pensei que fosse Newton McCoy — explicou.
Ele tentara tratar de sua inocente vítima, mas isso fora inútil — Berilo
morrera de gangrena. Mas antes de morrer fizera com que ele prometesse,
como um cristão, entregar a carta que levava para o presidente dos Estados
Unidos.

•••

Perguntei seu nome:


— Byron Hatfield — foi a resposta.
— Qual o nome que o governo lhe deu?
— Nunca demos atenção a isso — disse ele.
Vim a descobrir então que ele pertencia a uma das poucas grandes
famílias de verdade que havia no país, a qual estava em guerra com outra
família desde 1882.
— Nunca topamos muito esse negócio de nova invenção de nomes —
disse ele.

•••

Voltei-me para o piloto, que trazia ao peito uma plaquinha com o seu nome:

“CAP. BERNARD O’HARE”.


•••

— Capitão — falei —, você é outro que parece também não topar muito
esse negócio de nova invenção de nomes.
Observei também que ele era demasiado velho para ser um capitão,
ainda que essas coisas não mais existissem. Na verdade, tinha quase
sessenta anos.
Concluí que devia ser um lunático que encontrara aquela roupa em
alguma parte. Supus que se tinha sentido tão deslumbrado e aturdido com
sua nova aparência que nada lhe satisfaria tanto quanto se exibir para o
presidente.
A verdade, contudo, é que ele era perfeitamente sadio. Havia servido
nos últimos onze anos em um silo subterrâneo secreto, situado no Parque do
Córrego Rochoso. Eu nunca tinha ouvido falar daquele silo.
Mas no seu interior estava escondido o helicóptero presidencial, bem
como milhares de galões de algo fantasticamente precioso: gasolina.

•••

Por fim ele resolvera sair, contrariando as ordens que tinha, para descobrir
“o que é que estava se passando”.
Tive que rir.

•••

— O helicóptero ainda está pronto para voar? — perguntei.


— Sim, senhor, está — disse ele. Contou-me que vinha executando
sozinho a manutenção do aparelho já há mais de dois anos. Seus mecânicos
se tinham afastado um por um.
— Meu jovem — falei —, vou lhe dar uma medalha por causa disso.
Apanhei o botão que trazia preso à minha própria lapela esfarrapada e
coloquei-o nele.
O botão, é claro, trazia a seguinte inscrição:
Capítulo 42

Byron Hatfield recusou uma condecoração similar. Em vez disso pediu


comida que o sustentasse na longa cavalgada de regresso às suas montanhas
nativas.
Demos o que tínhamos, que era o resto das bolachas, bem como as latas
de ostras defumadas que as bolsas de sua sela puderam comportar.

•••

Sim, e o Capitão Bernard O’Hare, Carlos Narciso Silvestre-11 Villavicencio


e eu levantamos voo na madrugada do dia seguinte. Era um dia de
gravidade tão boa que o nosso helicóptero não precisou de maior energia
que a que teria sido necessária para um gafanhoto.
Enquanto voávamos sobre a Casa Branca, acenei:
— Adeus!

•••

Meu plano era ir primeiro a Indianápolis, que se tornara densamente


povoada por Narcisos Silvestres. Gente que chegava lá aos magotes, vinda
de toda parte.
Deixaríamos Carlos em Indianápolis para que seus parentes artificiais
cuidassem dele na velhice. Eu estava satisfeito por me ver livre de Carlos.
Ele me entediava até as lágrimas.

•••

Iríamos depois a Urbana, falei ao Capitão O’Hare — e a seguir à casa onde


eu passara a infância, em Vermont.
— Após isso — prometo — o helicóptero será todo seu, Capitão
O’Hare. Você poderá voar como um pássaro para onde quer que queira ir.
Mas saiba que vai passar maus pedaços se não adotar um bom nome.
— O senhor é o presidente — disse ele. — O senhor então me dá o
nome.
— Pois eu o nomeio Águia-1 — disse eu.
Ele ficou satisfeitíssimo. Adorou a medalha também.

•••

Sim, e ainda havia um pouco de Tri-Benzo-Comportamil, e eu estava tão


alegre apenas por estar indo a outro lugar, depois de ter ficado confinado
em Washington por tanto tempo, que me surpreendi cantando pela primeira
vez em muitos anos.
Lembro-me da música que cantei. Era uma que eu e Eliza
costumávamos cantar sempre em segredo, no tempo em que ainda
passávamos por idiotas. Cantávamos onde ninguém podia nos ouvir — no
mausoléu do Professor Elihu Roosevelt Swain.
Acho que vou ensinar essa música a Melody e Isadore na festa do meu
aniversário. É uma canção ótima para eles cantarem quando saírem para
novas aventuras na ilha da Morte.
É assim:

“Nós vamos ver o Mágico


O Mágico de Oz.

O velho que é sábio


O Mágico de Oz”.

•••

E assim por diante.

•••

Ai ô.
Capítulo 43

Melody e Isadore foram até Wall Street hoje — para visitar a família de
Isadore, os Framboesas. Uma vez fui convidado a me tornar um Framboesa.
Vera Esquilo-5 Zappa também foi. Declinamos.
Sim, e eu também fui dar uma volta — até a pirâmide do bebê na
esquina da Broadway com a 42nd Street, cruzando a 43rd Street até o antigo
Clube dos Narcisos Silvestres, e seguindo até a 48th Street, onde moravam
os escravos da fazenda de Vera, ou seja, onde fora um dia a casa de meus
pais.
Encontrei a própria Vera na escadaria da casa. Seus escravos estavam
espalhados naquilo que antigamente era o Parque das Nações Unidas,
plantando melancias, milho e girassóis. Pude ouvi-los cantando Ol’ man
river. Eles eram felizes o tempo todo, considerando-se afortunados por
serem escravos.
Todos os escravos eram Esquilo-5, sendo que cerca de dois terços
anteriormente eram Framboesas. As pessoas que desejassem se tornar
escravos de Vera tinham que trocar os nomes para Esquilo-5.
Ai ô.

•••

Vera geralmente trabalhava junto com os escravos. Ela adorava trabalho


pesado. Mas dessa vez a encontrei brincando com um belo microscópio
Zeiss, que um de seus escravos desencavara nas ruínas do hospital na
véspera. A embalagem original da fábrica o protegera todos aqueles anos.
Ela não percebeu que eu me aproximava. Estava olhando através do
visor do instrumento e girando botões com a seriedade e a inépcia de uma
criança. Era óbvio que jamais usara um microscópio.
Aproximei-me mais, com cuidado, para não me denunciar, e exclamei:
— Uuuh!
Vera afastou a cabeça do visor com um sobressalto.
— Como vai? — disse eu.
— Você me deu um susto enorme — disse ela.
— Desculpe — falei, e dei uma risada.
Essas velhas brincadeiras se repetem indefinidamente. E é bom que seja
assim.

•••

— Não consigo ver nada — disse ela, queixando-se do microscópio.


— Apenas minúsculos animaizinhos que querem nos matar e nos
comer. Você realmente quer vê-los?
— Eu estava examinando uma opala — explicou Vera. Ela tinha
disposto uma opala e um bracelete de brilhantes sobre a lâmina do
microscópio. Vera tinha uma coleção de pedras preciosas que teria valido
milhões de dólares nos velhos tempos. As pessoas lhe davam todas as joias
que encontravam, tal como me davam todos os candelabros.

•••

Joias eram algo totalmente inútil. Assim também acontecia com os


candelabros. Todos iluminavam suas casas à noite com trapos mergulhados
em tigelas de gordura animal.
— Provavelmente há a Morte Verde na opala — falei. — Deve haver a
Morte Verde em tudo.
A propósito: o motivo pelo qual não morríamos da Morte Verde é que
tomávamos um antídoto que fora descoberto por acaso pela família de
Isadore, os Framboesas.
Bastaria negar o antídoto a um inimigo, ou a um exército deles e,
rapidamente, o sujeito estaria no outro mundo, na Granja dos Perus.

•••

A propósito: não havia nenhum cientista entre os Framboesas, que


descobriram o antídoto por pura — e burra sorte. O antídoto, provavelmente
poluição residual dos velhos tempos, devia estar, sob alguma forma, nas
vísceras dos peixes que comiam sem limpar.

•••
— Vera — falei —, se você um dia conseguisse fazer o microscópio
funcionar, veria algo que partiria seu coração.
— O que é que partiria o meu coração?
— Você veria os organismos que causam a Morte Verde — respondi.
— E por que é que isso me faria chorar? — quis saber ela.
— Porque você é uma mulher de consciência. Não percebe que nós os
matamos aos trilhões, toda vez que tomamos o nosso antídoto?
Eu ri.
Ela não riu.

•••

— A razão pela qual não estou rindo — explicou Vera — é que, aparecendo
aqui inesperadamente, você estragou a surpresa de seu aniversário. Pelo
menos uma parte da festa.
— Como?
— Donna — ela se referia a uma de suas escravas — ia lhe presentear
com isto. Agora não haverá mais surpresa.
— Hum — resmunguei.
— Ela pensava que era um tipo muito especial de candelabro.

•••

Ela me confidenciou que Melody e Isadore a tinham visitado no início


daquela semana e que lhe tinham dito mais uma vez o quanto ansiavam por
se tornarem seus escravos um dia.
— Tentei lhes dizer que a escravidão não é para qualquer um — disse
Vera.

•••

— Responda à seguinte pergunta — prosseguiu ela —, o que acontecerá a


meus escravos depois que eu morrer?
— Não se preocupe com o amanhã — respondi-lhe —, pois o amanhã
se bastará a si próprio.
“Amém”, disse eu.
Capítulo 44

Vera e eu ficamos conversando ali na escadaria, rememorando a batalha do


lago Maxinkuckee, na região norte de Indiana. Eu passara por lá de
helicóptero, a caminho de Urbana. Vera tinha participado da fase pior com o
bêbado do seu marido, Lee Marisco-13 Zappa. Os dois trabalhavam em
uma das cozinhas de campanha do rei de Michigan.
— Lá embaixo vocês todos pareciam formigas — falei. — Ou germes
vistos na lâmina de um microscópio.
Nós não tínhamos nos aproximado muito, com medo de sermos
atingidos por um tiro.
— Era assim mesmo que nós nos sentíamos — disse ela. — Como se
fôssemos formigas.
— Se eu a conhecesse naquela época — falei —, teria tentado salvá-la.
— Teria sido como tentar salvar um micróbio de um milhão de outros
micróbios, Wilbur.

•••

Ela não tivera apenas que se ver com as granadas e balas que passavam
sibilando pela barraca da cozinha. Era preciso também se defender de seu
marido, que era um bêbado. Ele a espancara no meio da batalha.
Ele lhe dera um soco em cada olho e quebrara seu queixo. Depois a
jogara longe, arremessando-a através do pano da barraca. Ela fora bater
com as costas na lama. Finalmente ele saíra para lhe explicar como poderia
evitar surras semelhantes no futuro.
Bem na hora em que saía, ele fora empalado pela lança de um cavaleiro
inimigo.
— E qual é, na sua opinião, a moral dessa história? — perguntei.
Ela passou a mão calosa sobre o joelho.
— Wilbur — respondeu —, nunca se case.

•••
Conversamos também a respeito de Indianápolis, que eu vira na mesma
viagem, e onde ela e o marido tinham trabalhado, como garçonete e
barman, para um Clube dos Treze — isso antes de terem se incorporado ao
exército do rei de Michigan.
Perguntei-lhe como era o clube por dentro.
— Oh, você sabe — disse ela —, gatos pretos empalhados, caveiras,
ases de espadas presos às mesas com adagas, essas coisas. Eu usava meias
de renda, saltos muito altos e finos, máscara e tudo o mais. Todas as
garçonetes, os homens que trabalhavam no bar e o leão de chácara usavam
caninos postiços de vampiro.
— Hum — aquiesci.
— Um dos nossos sanduíches se chamava “morcegobúrguer” — disse
ela.
— Hum, hum.
— Suco de tomate com gim era “delícia de Drácula”.
— Certo.
— Era como um Clube dos Treze de qualquer outro lugar — concluiu
Vera —, só que nunca chegou a dar certo. Indianápolis não tinha um
número de Trezes suficiente para isso, embora houvesse muitos lá. Era
basicamente uma cidade de Narcisos Silvestres.
Capítulo 45

Uma coisa eu digo — já fui recebido como multimilionário, como pediatra,


como senador e como presidente. Mas nada jamais se igualou em
sinceridade à recepção que Indiana me deu como Narciso Silvestre.
O povo de lá era pobre e tinha sofrido um número enorme de mortes.
Todos os serviços públicos haviam sido paralisados, e, além de tudo, eles se
preocupavam com batalhas que se desenrolavam não muito longe dali. Mas
assim mesmo eles organizaram paradas e banquetes para mim (e também
para Carlos Narciso Silvestre-11 Villavicencio, claro) que teriam ofuscado a
Roma antiga.

•••

O Capitão Bernard Águia-1 O’Hare me disse:


— Nossa, senhor presidente! Se eu soubesse disso teria lhe pedido para
me tornar um Narciso Silvestre!
Não hesitei um segundo.
— Pois então eu o declaro — falei — um Narciso Silvestre.

•••

Mas a coisa mais gratificante e educativa que vi lá foi uma reunião semanal
da família dos Narcisos Silvestres.
Sim, e tive que votar naquela reunião, assim como o meu piloto, Carlos
e todos os homens, mulheres e crianças de mais de nove anos.
Com um pouco de sorte poderia até ter presidido a reunião, embora
estivesse na cidade há menos de um dia. O presidente era escolhido por
sorteio entre todos os presentes. E o sorteado aquela noite foi uma garota de
onze anos, negra, cujo nome era Dorothy Narciso Silvestre-7 Garland.
Dorothy estava perfeitamente preparada para conduzir a reunião, tal
como, creio eu, estavam todos os outros.

•••
Ela se encaminhou para o púlpito, que era quase de sua altura, com passo
firme e decidido.
A minha priminha pôs-se de pé em cima de uma cadeira, sem quaisquer
pedidos de desculpa ou piadinhas para se justificar. Chamou os presentes à
ordem com pancadas de um martelo amarelo e depois se dirigiu assim a
seus parentes silenciosos e cheios de respeito:
— O presidente dos Estados Unidos está entre nós, como quase todos já
devem saber. Com a sua permissão, pedirei para que ele nos diga algumas
palavras ao final dos nossos trabalhos. Alguém deseja apresentar essa ideia
sob forma de moção?
— Proponho que se peça ao Primo Wilbur que nos dirija a palavra ao
final dos nossos trabalhos regulares — disse um velho sentado ao meu lado.
Sua proposta obteve apoio de outras pessoas e foi submetida à votação.
Terminou sendo aprovada, embora com diversos “Não” distribuídos
irregularmente pela audiência, e que me pareceram terem sido ditos de
modo cordial e sem qualquer traço de zombaria.
Ai ô.

•••

O assunto mais urgente da pauta era a seleção de quatro Narcisos Silvestres


para substituir parentes nossos que tinham morrido integrando o exército do
rei de Michigan, que estava simultaneamente em guerra com os piratas dos
Grandes Lagos e com o duque de Oklahoma.
Lembro-me de que havia um robusto rapaz, ferreiro de profissão, que
disse à audiência:
— Mandem-me. Não há nada de que eu gostaria mais de fazer do que
matar uns “Madrugadores”, já que eles não são Narcisos Silvestres.
E assim por diante.
Para minha surpresa, ele foi severamente repreendido por diversos
oradores devido ao seu ardor militar. Disseram-lhe que a guerra não era
brincadeira, que era uma tragédia aquilo que estava sendo discutido, e que
era melhor que ele aparentasse maior seriedade, se não quisesse ser expulso
da reunião.
“Madrugadores” eram habitantes de Oklahoma, e, por extensão,
qualquer pessoa a serviço do duque de Oklahoma, o que incluía os Bem-Te-
Vis do Missouri, os Gaviões do Kansas, os Faisões do Iowa e assim por
diante.
Disseram ao ferreiro que os “Madrugadores” também eram seres
humanos, nem melhores nem piores que eles próprios de Indiana.
O velho que estava perto de mim se levantou e falou o seguinte:
— Rapaz, você não será melhor que a Gripe Albanesa ou a Morte
Verde, se for capaz de matar por prazer.

•••

Fiquei impressionado. Percebi que as nações jamais poderiam reconhecer


suas guerras como tragédias, mas que as famílias não apenas podiam, mas
tinham que fazê-lo.

•••

O principal motivo, contudo, pelo qual não permitiram que o ferreiro fosse
para a guerra foi que, até aquele dia, ele já era responsável por três filhos
ilegítimos de diferentes mulheres, tendo “outros dois no forno”, conforme
se expressou um dos presentes.
Não iam permitir que ele se livrasse da responsabilidade de criar todos
aqueles bebês.
Capítulo 46

Até mesmo as crianças, os bêbados e os lunáticos presentes à reunião


pareciam familiarizados com a sistemática parlamentar. A garotinha que
presidia aos trabalhos mantinha um ritmo tão intenso e decidido que me
lembrava uma espécie de deusa grega, equipada com um punhado de
relâmpagos.
Assim, senti-me cheio de respeito para com tudo aquilo, que até então
sempre me parecera não passar de um conjunto de solenes tolices.

•••

Ainda sinto tanto respeito que acabo de pesquisar o assunto na minha


enciclopédia.
O inventor dessas normas se chamava Henry Martyn Robert, oficial
formado por West Point, engenheiro e que acabou por se tornar general.
Acontece que, pouco antes da Guerra de Secessão, quando ele, ainda
tenente, servia em New Bedford, no Estado de Massachusetts, teve que
presidir a uma reunião da igreja e perdeu o controle dos acontecimentos.
Não havia regras então.
Assim, o tenente sentou-se e escreveu algumas regras, que foram as
mesmas que segui em Indianápolis. Elas foram publicadas como Questões
de ordem de Robert, o que acredito que representa uma das quatro maiores
invenções americanas de todos os tempos.
As outras três, na minha opinião, foram a Declaração de direitos, os
princípios que regem os Alcoólatras Anônimos e as famílias artificiais
ampliadas que eu e Eliza imaginamos.

•••
A propósito: os três recrutas finalmente escolhidos para recompletar as
fileiras do rei de Michigan eram todos pessoas que não fariam muita falta, e
que, na opinião dos votantes, tinham levado até então vidas muito
despreocupadas.
Ai ô.

•••

O assunto seguinte dizia respeito aos problemas de alimentação e pousada


para os refugiados da família dos Narcisos Silvestres que vinham chegando
à cidade fugidos dos combates que se desenrolavam na parte norte do
Estado.
Mais uma vez a audiência desencorajou um ou, melhor, uma entusiasta
— uma jovem mulher, muito bonita, mas de aparência um tanto
desarranjada, que, evidentemente ensandecida pelo seu altruísmo, disse que
poderia ficar no mínimo com vinte refugiados em sua casa.
Uma pessoa se levantou e disse que ela era uma dona de casa tão
incompetente que seus próprios filhos a tinham abandonado para ir morar
com outros parentes.
Ainda outra pessoa se levantou e lembrou que ela era tão distraída que
seu cachorro já teria morrido de fome se não fossem os vizinhos, e que já
incendiara a própria casa acidentalmente três vezes.

•••

Dito dessa forma, pode parecer que os presentes à reunião estavam sendo
cruéis. Mas todos a chamavam de “Prima Grace” ou de “Irmã Grace”, como
fosse o caso. Ela era minha prima também, claro. Era uma Narciso
Silvestre-13.
Mais ainda, Prima Grace era uma ameaça apenas a si própria, de modo
que ninguém estava particularmente furioso com ela. Seus filhos tinham
procurado casas melhores assim que foram capazes de andar sozinhos,
segundo o que disseram. Aliás, creio que essa era uma das características
mais atraentes da nossa invenção, minha e de Eliza: o número enorme de
casas e pais que as crianças tinham à sua disposição.
No que diz respeito à Prima Grace, ela ouvia todas as opiniões
desfavoráveis contra a sua pessoa como se, embora a surpreendessem,
fossem, sem dúvida, verdadeiras. Permaneceu na audiência o resto da
reunião, obedecendo às Questões de ordem de Robert, e aparentemente
simpática e alerta.
Em dado momento, quando a sessão já estava tratando de “Novos
Assuntos”, Prima Grace apresentou uma proposta no sentido de expulsar
qualquer Narciso Silvestre que tivesse lutado nas fileiras dos piratas dos
Grandes Lagos ou no exército do duque de Oklahoma.
Ninguém secundou sua moção.
E a garotinha que presidia a mesa lhe disse:
— Prima Grace, você sabe tão bem quanto qualquer outra pessoa aqui
que, “Uma vez Narciso Silvestre, sempre Narciso Silvestre”.
Capítulo 47

Finalmente chegou a minha vez de falar.


— Irmãos, irmãs e primos — disse —, o seu país está arruinado. Como
podem ver, seu presidente se transformou numa sombra de sua própria
sombra. Assim, quem está diante de vocês hoje não passa de um trêmulo
Primo Wilbur.
— Você foi um presidente danado de bom, Irmão Billy — gritou
alguém do fundo da sala.
— Eu gostaria de ter dado a meu país a paz, tal como dei as grandes
fraternidades. Mas não há paz, lamento dizer. Nós a encontramos. Nós a
perdemos. Nós a encontramos de novo. Graças a Deus, finalmente as
máquinas decidiram não mais lutar. Agora é só gente. E graças a Deus,
também, não há mais batalhas entre estranhos. Não importa quem lutar
contra quem — todos terão parentes do outro lado.

•••

A maior parte dos presentes não era composta apenas de Narcisos


Silvestres; quase todos eram também seguidores da religião que procura o
Jesus Raptado. Assim, logo descobri que falar para aquela plateia era uma
experiência desconcertante. Não importa o que eu dissesse, eles ficavam
virando a cabeça de um lado para outro, na esperança de descobrir o
paradeiro de Jesus.
Parece, contudo, que eu estava conseguindo me fazer entender, pois eles
aplaudiam nos momentos adequados, e por isso prossegui.

•••

— Por não sermos mais uma nação, e sim apenas uma coleção de famílias,
é muito mais fácil para nós dar e receber piedade na guerra.
“Venho de observar uma batalha que está sendo travada bem longe
daqui, ao norte do Estado, na região do lago Maxinkuckee. Vi cavalos,
lanças, fuzis, facas e pistolas, assim como um ou dois canhões. Vi diversas
pessoas mortas. Vi também muita gente se abraçando, e tive a impressão de
que ocorria um grande número de deserções e de cerimônias de rendição.
“É essa a notícia que lhes trago da Batalha do Lago Maxinkuckee”,
concluí.
“Não é nenhum massacre.”
Capítulo 48

Quando estava em Indianápolis, recebi pelo rádio um convite do rei de


Michigan. Seu tom era napoleônico, dizendo que o rei teria muito prazer em
“conceder uma audiência ao presidente dos Estados Unidos no Palácio de
Verão do lago Maxinkuckee”. Informava também que suas sentinelas
haviam sido instruídas para me garantir trânsito livre e seguro e que a
batalha estava terminada. “A vitória nos sorriu”, concluía.
Assim o Capitão Bernard Narciso Silvestre-11 O’Hare e eu seguimos
para lá de helicóptero.
Deixamos o meu fiel criado, Carlos Narciso Silvestre-11 Villavicencio,
em Indianápolis, para que passasse a velhice entre seus incontáveis
parentes!
— Boa sorte, Irmão Carlos — falei.
— Finalmente em casa, senhor presidente, quer dizer, irmão —
respondeu ele. — Graças ao senhor e graças a Deus por tudo. Solitário,
nunca mais!

•••

Meu encontro com o rei de Michigan teria sido chamado de “ocasião


histórica” nos velhos tempos. Teriam estado presentes câmaras, microfones
e repórteres. Na verdade só havia ao nosso lado tomadores de notas, os
quais o rei chamava de seus “escribas”.
E ele estava certo em dar àqueles homens com papel e canetas aquele
título arcaico. A maioria dos seus soldados mal sabia ler e escrever.

•••
O Capitão O’Hare e eu pousamos no gramado maravilhosamente bem
cuidado que ficava diante do Palácio de Verão, o qual fora, muito tempo
atrás, uma academia militar particular. Soldados, que suponho tivessem se
comportado mal na batalha recente, eram vistos de joelhos por toda parte,
guardados por elementos da Polícia do Exército. Cortavam a grama com
baionetas, canivetes e tesouras — como punição.

•••

Entramos no palácio entre duas fileiras de soldados. Suponho que fossem


uma espécie de guarda de honra. Cada um deles empunhava um estandarte
onde se via bordado o símbolo de sua família artificial ampliada — um
jacaré, ou uma maçã, o símbolo químico do lítio e assim por diante.
Era o tipo da situação histórica comicamente corriqueira, pensei. À
parte as batalhas, a história das nações não parece consistir em outra coisa
senão velhos papalvos desprovidos de poder, como eu, vagamente
benquistos no passado, vindo beijar, com o organismo cheio de
medicamentos, as botas dos jovens psicopatas.
Tive que rir interiormente.

•••

Fui conduzido sozinho até os espartanos aposentos privados do rei. Era um


salão imenso, onde deveriam ser realizados os bailes da academia militar
nos velhos tempos. Havia agora apenas uma cama de armar, uma mesa
comprida coberta de mapas, e uma pilha de cadeiras desmontáveis de
encontro a uma parede.
O rei em pessoa estava sentado à mesa dos mapas, lendo
ostensivamente um livro, que depois vim a saber que era a História das
guerras do Peloponeso, de Tucídides.
Por detrás dele, de pé, estavam três escribas — com lápis e bloco de
papel.
Não havia lugar para mim ou para qualquer outra pessoa sentar-se.
Coloquei-me diante dele, com meu bolorento chapéu na mão. O rei não
levantou logo os olhos do livro, embora o mordomo tivesse, sem dúvida,
me anunciado num tom de voz bem alto.
— Majestade — dissera ele —, o Dr. Wilbur Narciso Silvestre-11
Swain, presidente dos Estados Unidos!
•••

Finalmente ele ergueu a cabeça, e eu achei graça em ver que era a cara de
seu avô, o Dr. Stewart Rawlings Mott, o médico que cuidara de mim e de
minha irmã na casa de Vermont, muito tempo antes.

•••

Eu não estava nem um pouco com medo dele. O Tri-Benzo-Comportamil, é


claro, estava me fazendo soigné e blasé[2]. Mas eu também já tivera então
uma cota mais que suficiente do pastelão da vida. Eu teria achado uma
aventura bem mais de acordo se o rei tivesse preferido me empurrar para
diante de um pelotão de fuzilamento.
— Pensávamos que estivesse morto — disse ele.
— Não, Majestade — repliquei. — Como disse Mark Twain.
— Já faz muito tempo que não temos notícias suas — interrompeu ele.
— De vez em quando Washington fica totalmente desprovida de ideias
— falei.

•••

Os escribas anotavam tudo, registrando a história que estava sendo feita.


O rei exibiu a lombada do livro para que eu pudesse ler.
— Tucídides — disse ele.
— Hum — concordei.
— Só leio compêndios de história.
— Sábia escolha para um homem de sua posição, Majestade —
comentei.
— Os que não aprendem as lições da história estão condenados a repeti-
las — disse ele.
Os escribas não perdiam uma palavra.
— Sim — disse eu —, se os nossos descendentes não estudarem
detidamente a história, descobrirão que exauriram de novo os combustíveis
fósseis do planeta, que morreram aos milhões de gripe e de Morte Verde,
que novamente o céu ficou amarelo por causa do propelente usado nas latas
de desodorante, que têm um presidente senil de mais de dois metros de
altura, e que são claramente inferiores, no campo intelectual e espiritual,
aos minúsculos chineses.
Ele não riu junto comigo.
Capítulo 49

Vi depois que o jovem rei tinha um documento histórico que desejava que
eu assinasse. Era um documento lacônico no qual eu, presidente dos
Estados Unidos da América, reconhecia não mais exercer qualquer controle
sobre a parte do continente norte-americano vendida por Napoleão
Bonaparte ao meu país em 1803, numa transação conhecida como a
“Compra da Luisiana”.
De acordo com o texto que me era apresentado, eu vendia toda aquela
área por um dólar a Stewart Papa-Figo-2 Mott, o rei de Michigan.
Assinei o documento com a mais minúscula das assinaturas, e que ficou
parecida com um filhote de formiga.
— Bom proveito! — disse eu.
O território que eu lhe vendera era em grande parte ocupado pelo duque
de Illinois e, sem dúvida, por outros potentados de que eu não tinha
conhecimento.
Após isso, conversamos um pouco a respeito de seu avô, sobre quem
ele não sabia quase nada.
Finalmente eu e o Capitão O’Hare partimos para Urbana, em Illinois,
onde eu teria um encontro eletrônico com minha irmã, morta há tanto
tempo.

•••

Sim, e estou escrevendo agora com uma das mãos paralisada e a cabeça
estalando de dor, porque bebi demais na festa de meu aniversário ontem à
noite.
Vera Esquilo-5 Zappa chegou coberta de brilhantes, carregada através
da floresta de ailantos em uma liteira e acompanhada por uma escolta de
catorze escravos. Ela me trouxe vinho e cerveja, causa da minha bebedeira.
Mas o mais embriagador dos presentes foi um milheiro de velas que ela e os
escravos tinham fabricado usando um molde colonial. Colocamos todas as
velas nas bocas vazias dos meus mil candelabros, e os espalhamos pelo
saguão.
Depois acendemos tudo.
De pé, em meio àquelas luzes minúsculas e bruxuleantes, eu me senti
como se fosse Deus, mergulhado até os joelhos na Via Láctea.
Epílogo

Wilbur R. Swain morreu, e não pôde escrever mais. Partiu desta para a
melhor, como dizem.
De qualquer forma, não havia ninguém para ler o que escrevera — e
reclamar de todos os fios soltos da trama que ele fora deixando pelo
caminho.
Seja como for, ele atingiu o clímax de sua história com o episódio da
revenda da Luisiana a um chefe de bandidos — por um dólar que nunca
chegou a receber.
Sim, e ele morreu orgulhoso do que, junto com sua irmã, tinha feito
para reformar a sociedade, pois deixou este poema na esperança de que
alguém o usasse no seu epitáfio:

“E como foi então que enfrentamos os riscos


Do rude pastelão do homem, e também de Deus?
Completamente à vontade e sem receios,
Em um jogo sempre refeito pelos nossos sonhos”.

•••

Ele nunca chegou a explicar o aparelho eletrônico que estava em Urbana, e


que lhe possibilitou reunir sua mente à de sua falecida irmã, recriando o
gênio que os dois tinham sido na infância.
O engenho, que era chamado pelas poucas pessoas que dele tiveram
conhecimento de “Hooligan”, consistia em um cano aparentemente comum
de barro, com dois metros de comprimento e vinte centímetros de diâmetro,
colocado sobre um gabinete de aço onde estavam os controles de um
imenso acelerador de partículas. Esse acelerador, por sua vez, era uma pista
de corridas magnéticas para entidades subatômicas que faziam acrobacias
através dos campos de milho nos limites da cidade.
Sim.
E o Hooligan era, ele próprio, um fantasma, já que o acelerador de
partículas estava parado havia muito tempo, por falta de eletricidade e de
entusiastas, não obstante tudo o que era capaz de fazer.
Um zelador, Francis Ferro-7 Hooligan, guardara o pedaço de cano em
cima do gabinete inútil, e, por momentos, deixou ali também a sua
merendeira. Ouviu, então, vozes saídas do cano.

•••

Ele procurou o cientista que trabalhara com aquela aparelhagem, o Dr. Felix
Bauxita-13 von Peterswald. Mas o cano se recusou a falar de novo.
O Dr. von Peterswald demonstrou, contudo, que era um grande
cientista, com sua disposição de acreditar no ignorante zelador. Fez
Hooligan repetir sua história vezes sem conta.
— A merendeira — disse ele, por fim —, onde está sua merendeira?
Hooligan estava com ela na mão.
O Dr. von Peterswald mandou que a colocasse exatamente na mesma
posição relativa da primeira vez.
Prontamente o cano recomeçou a falar.

•••

As vozes se identificaram como sendo de pessoas na outra vida. Ao fundo


se podia ouvir um coro desmoralizado de gente se queixando de tédio,
rejeição social, pequenas enfermidades, etc.
Conforme disse o Dr. von Peterswald em seu diário secreto: “Parecia,
nem mais, nem menos, que eu tinha feito uma ligação telefônica em um dia
chuvoso de outono — para uma granja de criação de perus mal-
administrada”.
Ai ô.

•••

Quando o Dr. Swain falou com sua irmã Eliza através do Hooligan, estava
em companhia da viúva do Dr. von Peterswald, Wilma Paquisandra-17 von
Peterswald, e seu filho de quinze anos, David Narciso Silvestre-11 von
Peterswald, irmão do Dr. Swain e paciente da doença de Tourette.
•••

O pobre David sofreu um ataque de sua enfermidade justamente quando o


Dr. Swain estava começando a falar com Eliza do outro lado do Grande
Divisor.
David tentou engolir a involuntária torrente de obscenidades, mas
conseguiu apenas elevar de uma oitava seu tom de voz.
— Merda... escroto... cloaca... olho do cu... piroca... mucosa... cera de
ouvido... mijo — disse ele.

•••

O próprio Dr. Swain perdeu o controle. Trepou involuntariamente no


gabinete, mesmo sendo tão alto e velho como era. Agachou-se para ficar
mais próximo de sua irmã. Colocou a cabeça com a testa para baixo em
frente ao cano, e bateu na importantíssima merendeira, desfazendo a
conexão.
— Alô? Alô — disse ele.
— Períneo... foda... bosta... glande... monte de Vênus... secundinas... —
disse o rapaz.

•••

A viúva Von Peterswald era a única pessoa controlada que estava presente,
e assim foi ela que recolocou a merendeira na posição correta, para o que
teve de forçá-la um tanto brutalmente entre o cano e o joelho presidencial.
A viúva se viu por isso presa em uma posição grotesca, dobrada em ângulo
reto sobre o gabinete, com os pés a alguns centímetros do chão. O
presidente tinha desabado todo o seu peso não só sobre a merendeira, como
também sobre uma das mãos dela.
— Alô? Alô — repetiu o presidente, ainda com a cabeça virada ao
contrário.

•••

Ouviu-se como resposta uma enxurrada de palavras, gorgolejos, cacarejos e


grasnidos.
Alguém espirrou.
— Pederasta... defecar... esperma... colhões — disse o garoto.

•••

Antes que Eliza pudesse falar de novo, as pessoas mortas que a


acompanhavam chegaram à conclusão de que o pobre David era uma boa
alma, tão ultrajado pela condição humana no universo quanto eles. Assim o
incitaram a continuar e contribuíram com suas próprias obscenidades.
— Dá duro, garoto — gritaram, e assim por diante.
E passaram a duplicar tudo. — Caralho duplo! Boceta dupla! Merda
dupla! — e assim por diante.
Uma verdadeira loucura.

•••

Mas o Dr. Swain e sua irmã conseguiram realizar seu encontro, e com uma
intimidade tão convulsiva que ele teria rastejado pelo cano adentro, se
pudesse.
Sim, e o que Eliza queria era que ele morresse o mais depressa possível,
para que os dois pudessem juntar as cabeças. Ela desejava depois imaginar
um modo de aperfeiçoar o totalmente insatisfatório “paraíso”.

•••

— Você está sendo torturada aí? — perguntou ele.


— Não, mas o tédio aqui é insuportável. Seja quem for que idealizou
este lugar não sabia coisa alguma sobre seres humanos. Por favor, irmão
Wilbur... isto aqui é a Eternidade. É para sempre! Onde você está agora não
é nada em termos de tempo! É uma piada! Estoure os miolos o mais
depressa possível.
E assim por diante.

•••

O Dr. Swain falou-lhe a respeito dos problemas que os vivos estavam tendo
com as doenças incuráveis. Aí então os dois, pensando como um só,
transformaram o mistério em brinquedo de criança.
A explicação era essa: os germes da gripe eram marcianos, cuja invasão
aparentemente fora repelida por anticorpos nos sistemas dos sobreviventes,
já que no momento não havia mais a doença.
A Morte Verde, por outro lado, era causada por microscópicos chineses,
amantes da paz e que não tencionavam causar qualquer mal. Mesmo assim
eles invariavelmente eram fatais aos seres humanos de tamanho normal
quando inalados ou ingeridos.
E assim por diante.

•••

O Dr. Swain perguntou à irmã que tipo de aparelhagem ela estava usando
— se era um pedaço de tubo, ou o quê.
Eliza lhe disse que não havia aparelhagem, e sim apenas um sentimento.
— Que sentimento? — quis saber ele.
— Você teria que estar morto para compreender minha descrição.
— Tente assim mesmo, Eliza.
— É como estar morto — disse ela.
— Uma sensação de morte — sugeriu ele, tentando compreender.
— Sim... de frio e viscosidade.
— Hum.
— Mas é também como estar cercado por um enxame de abelhas. A sua
voz vem das abelhas.
Ai ô.

•••

Quando o Dr. Swain acabou de passar por essa provação, dispunha apenas
de onze tabletes de Tri-Benzo-Comportamil, remédio originalmente criado,
é claro, não como um narcótico para presidentes, e sim para eliminar os
sintomas da doença de Tourette.
Ao colocar as pílulas remanescentes na palma de sua mão imensa, elas
inevitavelmente teriam que lhe parecer os últimos grãos da ampulheta de
sua vida.

•••
O Dr. Swain estava tomando sol ao lado do edifício do laboratório onde
estava o Hooligan. Com ele, a viúva e seu filho. A viúva tinha a
merendeira, de modo que só ela poderia ligar a aparelhagem.
A gravidade estava fraca. O Dr. Swain teve uma ereção. Da mesma
forma o menino. E assim também o Capitão Bernard Narciso Silvestre-11
O’Hare, que estava ao lado do helicóptero, perto do edifício.
Presumivelmente os tecidos erécteis do corpo da viúva aumentaram de
volume.
— Sabe o que é que o senhor parecia em cima daquele gabinete, senhor
presidente? — perguntou o garoto, evidentemente nauseado com aquilo que
sua doença estava prestes a fazê-lo dizer.
— Não — respondeu o Dr. Swain.
— O maior babuíno do mundo tentando foder uma bola de futebol —
deixou escapar o menino.
A fim de evitar outros insultos como esse, o Dr. Swain deu-lhe o
restante do seu suprimento de Tri-Benzo-Comportamil.

•••

As consequências de sua abstenção do remédio foram espetaculares. O Dr.


Swain teve que ser amarrado a uma cama na casa da viúva por seis dias.
Foi quando ele fez amor com a viúva, concebendo o filho que viria a ser
o pai de Melody Papa-Figo-2 von Peterswald.
Sim, e foi também quando a viúva lhe contou o que soubera por
intermédio dos chineses — que eles tinham se tornado bem-sucedidos em
sua manipulação do universo através da combinação de mentes
harmoniosas.

•••

Sim, e depois ele mandou que seu piloto o levasse para Manhattan, a ilha da
Morte. Tencionava morrer ali, para reunir-se à sua irmã na outra vida —
como resultado da inalação e ingestão de invisíveis comunistas chineses.
O Capitão O’Hare, que não desejava morrer ainda, desceu o presidente,
por meio de uma corda, na torre de observação do Empire State.
O presidente passou o resto do dia ali, desfrutando a vista. E depois,
respirando fundo a cada passo, na esperança de inalar comunistas chineses,
desceu a escadaria.
Já era quase noite quando chegou no primeiro andar.

•••

Havia esqueletos humanos no saguão, repousando em montes de trapos


podres. As paredes estavam todas manchadas de fuligem, resultado de
fogueiras destinadas a cozinhar alimentos muito tempo atrás.
Havia um quadro na parede representando Jesus Cristo Raptado.
Pela primeira vez o Dr. Swain ouviu o revoar dos morcegos
abandonando o metrô ao cair da noite. E considerou-se também um homem
morto — irmão de todos aqueles esqueletos.
Mas seis membros da família dos Framboesas, que tinham observado
sua chegada de helicóptero, saíram de repente de um esconderijo no saguão.
Estavam armados com lanças e facas.

•••

Quando perceberam quem tinham capturado, ficaram entusiasmados. O Dr.


Swain representava um tesouro para eles, não porque fosse o presidente,
mas porque havia estudado medicina.
— Um médico! — disse um deles. — Agora temos tudo!
Sim, e não quiseram saber de sua intenção de morrer. Forçaram-no a
engolir um pequeno trapezoide de algo que parecia um pé de moleque sem
gosto de nada. Na verdade, eram vísceras de peixe fervidas e secas,
contendo o antídoto para a Morte Verde.
Ai ô.

•••

O Dr. Swain foi então conduzido imediatamente ao local onde Hiroshi


Framboesa-20 Yamashiro, o chefe da família, estava morrendo.

•••

O homem parecia ter pneumonia. O Dr. Swain não podia fazer por ele senão
aquilo que os médicos de um século teriam feito, ou seja, conservar seu
corpo aquecido e sua testa fria — e esperar.
Ou a febre cedia, ou o homem morria.
•••

A febre cedeu.
Como recompensa, os Framboesas trouxeram aquilo de mais precioso
que possuíam para o Dr. Swain, ali mesmo no chão da Bolsa de Nova York.
Era o seguinte: um radiorrelógio, um sax alto, um estojo incompleto de
artigos de toucador, um modelo da Torre Eiffel com um termômetro dentro
— e assim por diante.
Entre todo aquele lixo, e exclusivamente para ser polido, o Dr. Swain
escolheu um candelabro de bronze muito simples.
Foi assim que nasceu a lenda de que era louco por candelabros.

•••

O Dr. Swain não gostou da vida comunal dos Framboesas, que requeria que
ele, entre outras coisas, sacudisse constantemente a cabeça, em busca do
raptado Jesus Cristo.
Assim que limpou o saguão do Empire State ele se mudou para lá. Os
Framboesas lhe forneciam comida.
E o tempo voou.

•••

Um dia apareceu Vera Esquilo-5 Zappa, que também tomou o antídoto dado
pelos Framboesas. Eles esperavam que ela viesse a ser enfermeira do Dr.
Swain.
E ela realmente foi sua enfermeira por algum tempo, até que resolveu se
dedicar à sua fazenda-modelo.

•••

Muito tempo depois disso foi a pequena Melody quem chegou, grávida,
empurrando seus pateticamente escassos bens terrenos num carrinho de
bebê em péssimo estado. Entre esses bens havia um candelabro de Dresden.
Até mesmo no reino de Michigan sabia-se que o legendário rei de Nova
York adorava candelabros.
O candelabro de Melody representava um nobre cortejando uma pastora
ao pé de um tronco de árvore enlaçado por florescentes trepadeiras. A
propósito: ele se quebrou no último aniversário de seu velho avô, graças a
um pontapé de Wanda Esquilo-5 Rivera, uma escrava embriagada.

•••

Quando Melody apareceu pela primeira vez no Empire State, e o Dr. Swain
foi lhe perguntar quem era e o que desejava, ela se ajoelhou diante dele. As
pequenas mãos sustentavam o candelabro no alto.
— Olá, vovô — disse ela.
Ele hesitou um momento. Mas depois ajudou-a a pôr-se de pé.
— Entre — disse. — Vamos, entre.

•••

O rei de Nova York não sabia então que tinha gerado um filho quando
deixara de tomar o Tri-Benzo-Comportamil em Urbana. Supôs que Melody
fosse uma pedinte eventual e sua fã. Tampouco trouxera ele para aquele
primeiro encontro qualquer anseio de ter descendentes em algum lugar. Ele
jamais tivera desejo de se perpetuar.
Assim, quando Melody lhe apresentou tímidos mas convincentes
argumentos de que era na verdade sua parente de sangue, ele teve a
sensação de que, conforme explicou mais tarde a Vera Esquilo-5 Zappa, “...
se abrira diante dele um imenso buraco. E, de dentro desse buraco repentino
e indolor, surgira, rastejando, uma criança faminta, grávida, e trazendo um
candelabro de Dresden”.
Ai ô.

•••

A história de Melody era a seguinte:


Seu pai, filho ilegítimo do Dr. Swain e da viúva de Urbana, era um dos
poucos sobreviventes do chamado “Massacre de Urbana”. Fora obrigado a
ingressar, como tambor, no exército do perpetrador do massacre, o duque de
Illinois.
Melody nascera quando ele tinha catorze anos. Sua mãe era uma
lavadeira que acompanhava o exército, e que tinha quarenta anos de idade.
A menina recebeu o nome de “Papa-Figo-2” para que lhe fosse assegurado
tratamento misericordioso, caso viesse a ser capturada pelas forças de
Stewart Papa-Figo-2 Mott, o principal inimigo do duque, e que, como
sabemos, era o rei de Michigan.
E na verdade ela fora capturada aos seis anos — depois da Batalha de
Iowa, em que tanto seu pai como sua mãe foram mortos.
Ai ô.

•••

Sim, o rei de Michigan tinha se tornado tão decadente a essa época que
mantinha um harém de crianças capturadas com o mesmo nome do meio
que o seu — Papa-Figo-2, é claro. E a pequena Melody foi acrescentada a
esse deplorável zoo.
Mas, na medida em que suas provações se tornavam mais odiosas,
aumentava também sua força interior, gerada pelas últimas palavras que lhe
dissera seu pai ao morrer:
“Você é uma princesa. Você é a neta do rei dos candelabros, o rei de
Nova York”.
Ai ô.

•••

E assim, uma noite ela roubara o candelabro de Dresden da barraca do


adormecido rei de Michigan.
E saíra por baixo da barraca, alcançando o enluarado mundo exterior.

•••

Assim começara sua inacreditável viagem rumo ao leste, sempre para o


leste, em busca de seu legendário avô. O palácio dele era um dos mais altos
edifícios do mundo.
Encontrara parentes por toda a parte — se não Papa-Figos, pelo menos
outras aves ou seres vivos.
Eles a alimentaram e lhe mostraram o caminho.
Um lhe dera uma capa de chuva. Outro, um suéter e uma bússola. Outro
ainda um carrinho de bebê. Houve quem lhe desse um despertador. Agulha
e linha, e um dedal de ouro também.
Um deles a levara em seu próprio barco a remo para o outro lado do rio
Harlem, a fim de deixá-la na ilha da Morte, arriscando a própria vida.
E assim por diante.

— Das Ende —
O AUTOR E SUA OBRA

Ele é tão famoso que fã virou ídolo da juventude norte-americana: poucos


são os jovens (e mesmo os mais velhos) que conseguem resistir ao seu
estilo irreverente e criativo. Chega a ser tão profunda a sua influência que
alguns sociólogos o tratam como o ponto de união entre as gerações nova e
antiga.
Porém, o caminho que levaria Kurt Vonnegut, Jr. à realização como
escritor foi bastante tortuoso. Nascido a 11 de novembro de 1922 em
Indianápolis, filho de arquitetos, ele chegou a cursar três anos de química
na Universidade de Cornell — isso devido ao retumbante sucesso alcançado
por seu irmão mais velho nos poucos anos de carreira. Uma pneumonia
prematura, ainda em tempos universitários, e o início da Segunda Guerra
facilitaram a sua determinação em escolher outros rumos.
Em campos de batalha, o soldado Vonnegut foi logo capturado pelas
tropas nazistas. Mas isso não o impediu de ser testemunha da destruição de
Dresden, cidade alemã massacrada pelas bombas aliadas numa tragédia que
ele próprio definiu como tão grande ou pior que a de Hiroxima. De volta
aos Estados Unidos, com o final da guerra, teve uma carreira relâmpago na
General Electric como relações públicas.
Foi então que Kurt Vonnegut, Jr. resolveu mandar alguns de seus contos
para o Saturday Evening Post e algumas revistas. O ano era 1951, e a partir
dessa data ele não mais abandonaria a carreira de escritor.
Fica muito difícil aos críticos definirem o trabalho literário de Kurt
Vonnegut, Jr., trabalho que escapa aos rótulos de sátira, humor negro ou
ficção científica. No caso de sua obra mais famosa, Matadouro Cinco
(Slaughterhouse-Five), a história é nada menos que uma resposta dada pelo
autor à memória do massacre de Dresden. Levada ao cinema pelo diretor
George Roy Hill (o mesmo de Butch Cassidy), chegou a ganhar o Prêmio
Especial do Júri no Festival de Cannes, em 1972.
A maioria de seus contos hoje constam nos currículos de literatura das
universidades americanas. Cat’s cradle e The sirens of Titan são dois livros
que já venderam milhares de exemplares. Contudo, Kurt Vonnegut, Jr. não
parece muito preocupado com a sua celebridade, vivendo comodamente
com a família (tem seis filhos) em Cape Cod, EUA. E prossegue escrevendo:
o seu último livro é Slapstick or Lonesome no more! (1976), que em
português ganhou o título Pastelão ou Solitário, nunca mais.
Obras principais: Player piano, The sirens of Titan, Mother night,
Canary in a cathouse, Cat’s cradle, God bless you, Mr. Rosewater, Welcome
to the monkey house, Slaughterhouse-Five, Breakfast of champions, Happy
birthday, Wanda June e outras.
[1] Literalmente, “Baía da Tartaruga”. (N. do E.)
[2] Ou seja, estava tratando e estragando ao mesmo tempo. Em francês no original. (N. do E.)

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