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A Força do Perdão

1o QUADRO

Em casa de Madalena. Judas entra, vai até uma porta, ergue o reposteiro e
chama.
JUDAS: Madalena! Madalena! Vem... Preciso falar-te...
MADALENA: (aparecendo, ao fim de alguns instantes) Que queres tu
aqui, Judas Iscariotes?
JUDAS: Bem o sabes... Porque te fazes alheia ao mal que me abrasa?
MADALENA: Voltaremos novamente a êsse triste assunto já morto?
JUDAS: Morto, como, se cada vez mais vivo é o meu amor por ti?
MADALENA: Amor... E chamas a isso... amor?
JUDAS: Dá-lhe o nome que quiseres, mas não zombes de mim...
MADALENA: Zombar? Quem sou eu para zombar de alguém, meu pobre
Judas?
JUDAS: Não quero a tua piedade... Não quero que me chames teu pobre
Judas... O que eu quero é que me ames... Que me queiras como eu te
quero!...
MADALENA: Isso é impossível.
JUDAS: Impossível porquê?
MADALENA: Porque hoje sou outra mulher. Operou-se em mim profunda
transformação. E, em parte, eu te agradeço, pois foste tu quem concorreu
para que essa transformação se realizasse.
JUDAS: Eu? Que queres dizer?
MADALENA: Nada... Tu não me compreenderias...
JUDAS: Em todo caso, fala. Tua voz tem para mim suaves e irresistíveis
encantos. Apesar de ser um bronco, como talvez imagines, quem sabe se eu
te posso compreender? Fala.
MADALENA: A mulher que tu desejavas, Judas Iscariotes, era outra, bem
diferente desta que tens na tua presença....
JUDAS: Não digas isso... Meus sentidos não me enganam... Os olhos
lânguidos que sempre me seduziram, ei-los aí, envoltos numa nuvem de
tristeza... A boca, que sempre me atraiu, é esta mesma boca que fito enleado
neste momento... Os braços esculturais, que sempre anelei sentir em torno do
meu pescoço, como um colar de infindas doçuras, são os mesmos braços que
procuras ocultar sob as dobras da túnica modesta em que te envolvestes...
Todo aquele corpo atraente, que me aparecia nos delírios das noites sem
sono, é este mesmo corpo que palpita aqui, junto de mim... Como dizes que
és outra mulher?
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MADALENA: Eu não afirmei que não me compreenderias? Judas, olha-me


de frente... Assim, bem nos olhos... Procura penetrar até o fundo do meu
olhar... Não adivinhas nada?
JUDAS: Como queres que possa adivinhar, como queres que possa, ao
menos, raciocinar, se o simples fato de fitar os teus olhos tira-me por
completo a noção do raciocínio? Eu só sei que te amo e te quero... E quanto
mais te olho, mais te amo e mais te quero!...
MADALENA: Sinto-o por ti. Fora melhor que pudesse ler em minha alma...
Compreenderias então a transformação por que passei...
JUDAS: E essa transformação impede que me ames?
MADALENA: Hoje abomino o pecado. E o amor a que te referes é o
pecado.
JUDAS: Quem te inculcou semelhantes idéias?
MADALENA: Já te disse. E devias alegrar-te. Quem me iluminou, quem
me mostrou o caminho do Bem, o caminho da Salvação, foi um homem que
conheci por teu intermédio.
JUDAS: Por meu intermédio? Quererás dizer que foi aquele a quem eu
chamava de Mestre?
MADALENA: Sim. Foi ele... Jesus.
JUDAS: Ah! Eu devia ter adivinhado... Impostor!...
MADALENA: Que? Chamas impostor ao homem a que segues como um
apóstolo e que tão bem conheces? Chamas impostor ao homem que prega a
suave doutrina do Amor e do Perdão?
JUDAS: Tu o amas?
MADALENA: Sim. Amo-o. E quem pode conhecê-lo sem amá-lo? Tu não
o amas?
JUDAS: Odeio-o!...
MADALENA: Judas!...
JUDAS: Odeio-o!... Não passa de um hipócrita, de um miserável traidor!...
MADALENA: Como? Mas não era isso que dizias quando o trouxestes
aqui...
JUDAS: Naquele tempo... Como o deploro!... Se eu pudesse calcular...
Como fui ingênuo e tolo!... Mas a culpa foi tua!...
MADALENA: Minha? A culpa foi minha?
JUDAS: Tu me desprezavas... Para ti eu valia tanto como um simples
verme... Nos festins aqui, em tua casa, todos eram admitidos, desde que
tivessem algum prestígio e pudessem pagar os teus favores... Eu era pobre...
Tu rias das minhas pretensões... Um dia, falou-se aqui no nome dele...
Alguém fez alusões a esse homem obscuro, a esse desconhecido que tinha
vindo da Galiléia e que pregava uma nova religião. Então, eu vi os teus olhos
brilharem! Senti que esse homem, que não conhecias, aguçava tua
curiosidade... E, para engrandecer-me, para jactar-me, para chegar, talvez,
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mais perto do teu coração, confiei-te o meu segredo... Disse-te que eu era um
daqueles que o seguiam por toda parte. Pediste-me que o trouxesse aqui... E
eu, ingênuo, eu, louco, acedi ao teu desejo... Trouxe-te Jesus de Nazaré...
Êsse mesmo Jesus de Nazaré que, com seus ares mansos, seus ademanes
hipócritas, conseguiu fazer de ti sua escrava, tirando-me toda a esperança de
vir a possuir o teu amor!...
MADALENA: Cala-te! Estás proferindo impiedades!
JUDAS: Pois já não confessastes que o amas?
MADALENA: Confesso-te, Judas... Quando me aproximei dele, foi com a
idéia de ter mais uma vez incensada a minha vaidade de mulher. Aquele
homem simples, de quem todos contava maravilhas, aquele homem que
pregava idéias novas e diferentes, aquele homem que arrostava a cólera de
César e de seus prepostos, despertava a minha curiosidade... Foi por isso que
te pedi que o trouxesse à minha casa. Mas quando o vi, na sua mansidão e
simplicidade, quando o vi abrindo o seu coração, todo bondade, aos que dele
se aproximavam, compreendi que ele não era um homem igual aos outros...
Compreendi que havia nele um que de sobrenatural, de divino, mesmo. E foi
esse homem, cujas sandálias traziam o pó das estradas, esse homem pobre
que nada tinha para oferecer-me, foi ele que me fez a maior dadiva que
jamais alguém poderia conceder-me... Ele mostrou-me o caminho do Céu... o
caminho da Redenção!...
JUDAS: Não te acredito! Não creio nessa transformação!... Esse homem
usou artes do diabo para enfeitiçar-te... Vejo que a sua obra foi terrível!...
Mas terrível será também a minha vingança.
MADALENA: Judas... Que intentas fazer?
JUDAS: Pela última vez: - queres ou não ser minha?
MADALENA: Nem Tua nem de mais ninguém. Juro-o em nome do Pai, do
Filho e do Espirito Santo.
Amém
JUDAS: Pois bem. Verás que não se burla impunemente de um homem que
se chama Judas Iscariotes. Haveis de Ter notícias minhas... tu e aquele
maldito Nazareno... Hei de perturbar o festim dos vossos amores! ... Nem
minha nem de mais ninguém, disseste... Mas o que te garanto é que dele
nunca mais serás! Adeus!... (sai violentamente)

2º QUADRO
(Em casa de Maria. – Ela está só Jesus entra)
JESUS: Mãe querida, eis-me aqui.
MARIA: Meu filho...Tu tardaste...
JESUS: Mas afinal cheguei e espero que isso baste para diminuir, talvez, tua
aflição.
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MARIA: Bem dizes, filho meu... Meu pobre coração durante a tua ausência
estala-se de dor... Vivo em perene angustia e tremo de pavor, a pensar... que
sei eu?... a pensar coisas tristes... Penso nelas talvez desde que tu existes...
Quando chegas, porém, eu me alegro e me acalmo, como se ouvisse os sons
de confortante psalmo... E só assim se esvai meu sofrimento atroz...
JESUS: Que diferença mãe, a que existe entre nós... Tua aflição se esvai
com um remédio, apenas... Tens, com minha presença, as horas mais serenas.
No entanto, dor maior todo o meu peito invade.
MARIA: Sofro por ti, meu filho...
JESUS: E eu, pela humanidade...
MARIA: São maus os homens, sei... e sei também que o nega teu coração.
JESUS: Oh! Mãe, a humanidade é cega... Os homens não são maus, assim
como tu dizes... São todos pobres cegos, fracos e infelizes... Espero que o
Senhor minhas preces atenda, tirando-lhes dos olhos, para sempre, a venda
que não lhes deixa ver, com franco destemor, o caminho do Bem, o caminho
do Amor... Teu filho se demora e vem para o teu lado e tornas a sorrir e
esqueces o passado... Eu, porém, continuo a esperar, a esperar... e a doce
conversão sempre e sempre a tardar... São ovelhas, que, embalde, eu chamo
para o aprisco e se conservam presas da desgraça ao risco... Mas a missão
que foi por mim empreendida, não terá sido em vão. Darei a minha vida á
vitória final dessa causa sagrada: tornar a humanidade menos desgraçada.
Tenho esperança, Mãe, de nunca ver, tristonho, na dor de uma ruína o
fracasso de um sonho. Sofro? E a dor que importa? O que importa é a missão
a que consagrarei meu pobre coração. Hei de sorver inteiro o cálix da
amargura, mas deixarei no mundo a chama da ventura!... Todos hão de
enxergar, ao fim desta aflição, o caminho da Luz, do Amor, da Salvação!...
Nesse dia, verei que meu sofrer profundo não paga o grande bem de redimir
o mundo!...
MARIA: Meu filho, tua mãe, pobre mulher sem brilho, só pensa no perigo a
que se expõe seu filho... Mais que a voz egoísta e fria da razão, somente
escuto os ais de um pobre coração... Reconheço-me fraca e minha alma não
quer que eu esqueça o que sou... Sou mãe e sou mulher... Se peco, meu
pecado encontra a penitência na dor que me sufoca e amargura a existência...
(depois de pausa) Ceias comigo, filho?
JESUS: Mãe, sou esperado. Recomendei a Pedro e ele há convocado os
discípulos meus para uma reunião, uma ceia modesta... apenas vinho e pão.
É tudo o que no mundo de mais puro existe... E assim festejaremos esta
Páscoa triste...
MARIA: Triste é também, meu filho, o som da tua voz, que ecoa dentro em
mim como um pássaro atróz... Tudo o que eu vejo, ou ouço, ou sinto, é só
tristeza... Dize... Que farei eu nessa triste incerteza?
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JESUS: Ama e ora. É a missão das mães... (beija-a)


MARIA: Filho adorado!... (vendo-o afastar-se lentamente)
JESUS: Sim. Vou. Adeus. – Sou esperado.
MARIA: Quando tornas?
JESUS: Pôr Deus... Não me perguntes, não...
MARIA: Quando tornas?
JESUS: Tenho pena de ti, ó mãe... Teu coração...
MARIA: Não importa... Mas dize... Quando tornarás?
JESUS: Minha mãe... Tem coragem...
MARIA: Quando?
JESUS: (num grande gesto de renúncia) Nunca mais!...
3º QUADRO

(Uma praça, diante do palácio de Caifaz. – Judas aparece no portico,


sobre a escadaria e fala para dentro)

JUDAS: Obrigado, senhores... E não vos esqueçais... Logo mais, á noite, em


Getsemani... Sabeis onde é... É o horto das oliveira... Mandai que os
soldados se ocultem por entre as árvores e que fiquem atentos... Aquele que
eu beija... êsse será Jesus de Nazaré... Esse é que eles deverão trazer á vossa
presença... Obrigado, senhores... Obrigado... (com grandes curvaturas,
desce as escadas) Pronto. Está finda a minha tarefa... Estou vingando,
Jesus... Estou vingado! Desta não escaparás, nem que ponhas em prática
todas as tuas artes diabólicas!... Passarás dos delicados braços de Madalena
para as mãos fortes dos doutores do templo!... (tirando uma bolsa do cinto)
e ainda me pagaram, os idiotas! Ainda me pagaram!... Eu faria o negócio de
graça... Mas eles quiseram pagar-me... Trinta dinheiros... Eles deram-me
trinta dinheiros... Pagaram-me trinta dinheiros para que lhes entregasse Jesus
de Nazaré... Eles não sabem, os idiotas... não desconfiam, sequer, de que eu
daria, não trinta dinheiros, mas trinta vezes trinta dinheiros para vingar-me
do Nazareno! Meu Mestre? Meu amigo?... (cospe) Desprezo-o! Abomino-o!
Odeio-o!... (pausa)... E ele, quando souber que fui eu o denunciei, há de
odiar-me também... (pausa) E daí, talvez não... Talvez até ainda me fique
agradecido... sim, porque de qualquer forma, eu lhe forneci uma
oportunidade para provar, de forma definitiva, os seus dons divinos, as suas
faculdades milagrosas... Se ele é, com efeito, filho de Deus, como apregoa
aos quatro ventos, ser-lhe-á muito fácil livrar-se das mãos dos soldados e
fugir á sanha justiceira dos senhores do templo... (ri) Só para desfrutar o
prazer de assistir a semelhante espetáculo, valeria a pena provoca-lo... Hei de
rir, Jesus de Nazaré... hei de gargalhar quando estiveres de mãos amarradas,
entre as lanças dos guardas pretorianos, bufando de ódio, rugindo de raiva!...
Na surpresa do golpe inesperado, que ferirá de rijo a tua vaidade de eleito e
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exibirá a todos os olhos a tua estupidez de bronco, olharás aparvalhado para


todos os lados, sem conseguir saber de onde proveio aquela força repentina e
esmagadora que te colheu de forma tão violenta... Perguntarás a ti próprio a
quem pertence a mão que te castigou o pulso que se abateu sobre ti... E
chegará, então, a minha vez de dizer-te: - Oh! Pois tu não alardeavas o teu
poder sobrenatural?... Não dizias que não eras um ser humano, mas sim uma
entidade divina?... Prova-o agora, Nazareno! Arrebenta essas cordas que te
prendem, subjuga esses soldados armados que te guardam, mostra que és
com efeito, um Deus!... (gargalha) Não... Tu não farás nada, ridículo truão...
Tua espumarás de raiva e despeito e te arrependerás de haver traído tão
miseravelmente, tão cinicamente, o teu amigo Judas Iscariotes!...
Experimentastes a doce sensação de Ter os níveos braços de Madalena em
torno ao teu pescoço... Tiveste essa ventura que eu ambicionava e não
consegui... Mas agora, terás em torno desse mesmo pescoço as mãos calosas
e duras dos soldados da lei... Eles me vingarão!... Tu zombaste de mim, mas
agora chegou a minha vez de zombar de ti... Estou satisfeito, Jesus de
Nazaré!... Muito satisfeito!... E logo mais, á noite, estarei presente á ceia que
ofereces aos teus discípulos... Será a última!... Depois, a prisão... a tortura... a
morte! Sim a morte!... E então, o campo ficará livre para mim, inteiramente
livre... Madalena estará só... E sem tua presença incômoda e desleal, tenho a
certeza de que ela ouvirá as minhas súplicas e cederá aos meus rogos... Sim,
Jesus de Nazaré... Tu me traíste, tu foste um traidor para mim, mas eu hei de
pagar-te na mesma moeda... E a minha traição será maior, muito maior,
muito maior!... (gargalha e vai a sair. – Um ramo de árvore embaraça-lhe
a passagem. – Ele afasta-o) Árvore maldita!... Porque te interpõe em meu
caminho? Afasta-te!... Afasta-te!... Não sabes quem sou? Sou Judas
Iscariotes, o amigo de Caifaz, o Supremo Pontífice... Judas Iscariotes, o feliz
amante de Maria de Magdala... Judas Iscariotes, o honrado, o notável, o
riquíssimo Judas Iscariotes!... (sai ás gargalhadas)

4º QUADRO
(No jardim das oliveiras. – Jesus, ajoelhado junto a uma pedra, ora)
JESUS: Senhor... Aproxima-se o martírio de teu filho... Antevejo as torturas
que passarei, as dores que sofrerei... Mas sinto que me faltam as forças para
suportar todo esse sofrimento... Ilumina-me, Senhor... Ilumina-me!...
(Nesse momento, uma luz intensa, e ao mesmo tempo, suave, enche de
claridade um recanto do jardim. Enquanto se ouve uma melodia
dulcíssima, resplende, no campo luminoso, o símbolo sagrado: - a Cruz. –
E uma voz celestial se faz ouvir)
A VOZ: Jesus... Tu o disseste... É chegada a hora do teu martírio... E não
poderás evita-lo. O teu sofrimento é imperioso para a vitória da tua missão
na terra. Mas a cruz onde irás agonizar e expirar, deixará de ser em breve um
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simples instrumento de tortura e se transformará no símbolo da fé para a


humanidade sofredora... Resigna-te. Esgota o teu cálice de amargura...
Breve, muito breve tua pena terminará e voltarás para junto de teu Pai e
tornarás a ser o seu Filho bem amado...
(Extingue-se a luz. Cessa a melodia)
JESUS: (Erguendo-se) Obrigado, meu Pai. Tua mensagem deu-me o que
me estava porventura faltando. Juro-te que suportarei sem um queixume o
sofrimento que me aguarda. Obrigado, Meu Pai.
PEDRO: (aproximando-se) Terminaste tua oração, Mestre?
JESUS: Sim Pedro. O Senhor escutou-me. Deu-me ânimo para suportar o
suplício que se aproxima.
PEDRO: Que dizeis, Senhor?
JESUS: O que já te disse, meu bom Pedro. A nossa ceia de hoje foi uma ceia
de despedida. Breve nos separaremos. Durante a minha aflição, todos vós me
deixareis... Ficarei só, inteiramente só... E assim subirei o monte Calvário...
PEDRO: É julgar mal os vossos discípulos, Mestre... Nenhum de nós terá a
coragem de vos abandonar em momento tão cruciante... Sofrereis?
Sofreremos convosco. Para onde fordes, iremos nós também. Vossa dor será
a nossa, vosso sofrimento será o nosso...
JESUS: Não, Pedro. O que está escrito, está escrito.
PEDRO: Ó tristeza, ó dor, ó sofrimento atroz!...
JESUS: Mas não te entristeças... Depois da morte, todos vós havereis de vos
encontrardes comigo no Reino dos céus... É preciso, porém, que ainda
fiqueis para cumprirdes a vossa missão na terra. De todos aqueles que me
acompanharam por toda parte, espero que continuem a difundir e ensinar a
minha doutrina, mas de ti, Pedro, espero muito mais. Em tuas mãos ficará o
pesado encargo de criar, sustentar e preservar o novo templo. Tu és Pedro e
sobre essa pedra edificarei a minha igreja!...
PEDRO: Faça-se a vontade do Senhor... Eu sou sua humilde criatura...
JESUS: Tu serás a célula mater, de onde emanarão todos os ensinamentos da
doutrina do Bem e do Perdão. Ensinarás aos homens a prática da caridade,
mas que essa caridade não seja ostensiva. Será sempre mister que uma das
mãos ignore as messes que a outra houver por bem distribuir. Lembrai-vos
sempre dos humildes e dos pequeninos, dos fracos e dos deserdados da sorte,
dos infelizes e dos desgraçados... Deles será o Reino dos Céus... E quando
terminardes a vossa tarefa no mundo, para junto de mim havereis de ir e
ficareis então ao meu lado por toda a eternidade...
PEDRO: E Judas, o infame traidor que vos entregará aos vossos algozes?
Esse também irá Ter convosco?
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JESUS: Pobre Judas... Esse escolheu, por suas próprias mãos, as agruras e os
tormentos do inferno... Para ele as portas do paraíso estarão sempre
cerradas...
PEDRO: Não podemos evitar que se realize a vil traição?
Não podemos evitar que se realize a vil traição?
JESUS: Não, Pedro...
PEDRO: Senhor, sou velho, mas sou forte. Meus músculos ainda tem o
vigor da mocidade. Além disso, sei manejar o gladio com destreza absoluta.
Se o quiserdes, poderei defender a vossa vida, defendendo a nossa
felicidade!
JESUS: Pedro, abandona a idéia da força e pensa apenas na força da idéia.
Do gladio, guarda somente a figura do seu punho. Ele representa a cruz, a
cruz que será o símbolo da doutrina que espalharás pelo mundo...
(descrevendo com a mão o sinal da cruz) Com este sinal, havereis de
vencer...
PEDRO: Mas deixar-vos, só e desamparado, entregue aos malvados que não
terão um vislumbre, sequer, de piedade...
JESUS: Assim é preciso, Pedro... O destino há de se cumprir...
PEDRO: Destino doloroso e cruel!...
JESUS: Não te lamentes. Tira, antes, do teu sofrimento, a força necessária
para levar a bom termo a missão que te impus e para fortalecer cada vez mais
a fortaleza da tua alma forte...
PEDRO: (olhando subitamente as trevas densas) Pareceu-me ouvir... Sim,
não me engano... Vem alguém...
JESUS: É Judas.
PEDRO: Ele? Pois o miserável terá a audácia de...
JESUS: Deixa que se aproxime...
JUDAS: (aparecendo) Tranqüilizai-vos... Sou eu...
JESUS: Sei que és tu, Judas...
JUDAS: Não me esperavas, garanto... Mas, depois das palavras ásperas que
trocamos há pouco, necessário se torna que nos entendamos... Tudo não
passou de simples mal entendido... Devemos fazer as pazes...
JESUS: Como queira, Judas.
JUDAS: Consente em que eu te beije...
JESUS: Sim (Judas aproxima-se dele e beija-o Jesus dirige-se a Pedro)
Vês, Pedro? Tudo se realiza conforme eu te predisse.
PEDRO: Mas... não compreendo... Ele beijou-te...
JESUS: Sim. E esse beijo passará á história como o símbolo da traição. É o
beijo de um traidor.
JUDAS: Que queres dizer?
JESUS: Tu sabes muito bem.
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PEDRO: (querendo avançar) Miserável! Traidor!...


JESUS: Nem mais um passo, Pedro.
JUDAS: Mas... Confesso que não compreendo... Vim aqui com propósito de
paz e tu me recebes desta forma... Não sei o que queres dizer...
JESUS: Sabes, sim, Judas... Tu sabes... Mas o que não sabes, o que ignoras
exatamente é toda a extensão do teu gesto covarde... E o que mais lamento, o
que mais me dói é que, quando o compreenderes já será tarde, muito tarde..
Pobre Judas! Rebaixaste um dos mais sublimes gestos da confraternização
universal... O beijo... O beijo que sempre foi uma prova de afeto e de
carinho, o beijo, que representa o símbolo do amor, depois da tua traição será
lembrado também como um penhor de cólera e de ódio... Como é negra a tua
alma, Judas... Tudo é trevas em teu coração... Tudo é trevas dentro de ti e em
torno de ti... E em trevas viverás por toda a eternidade...
JUDAS: (baixando a cabeça) Juro-te que não te compreendo...
JESUS: Vamos... Chama os sicários que trouxeste e a quem deste o sinal
combinado... Eles estão sem dúvida ocultos pêlos campos próximos, em
torno às folhagens... Talvez nem todos tenham visto o teu sinal... Chama-os e
dizei-lhes que sou eu Jesus de Nazaré... que sou eu o homem que eles devem
prender e conduzir à presença do Sumo Sacerdote...
JUDAS: Como sabes isso? Quem te disse?!...
PEDRO: Verme! Verme nojento e vil!
JUDAS: (assombrado) Dizei-me! Como soubestes? Quem te disse?
JESUS: Não importa, Judas... O mal já não tem remédio. Basta apenas que
saibas que eu te perdôo...
JUDAS: (nervoso) Tu me perdoas? Não... Não... Tu não podes perdoar-me...
Tu não sabes... tu não conheces toda a extensão do meu crime...
JESUS: Conheço mais do que tu, meu pobre Judas... E deixo-te com o meu
perdão... (indo a Pedro) Adeus, Pedro... É preciso que se cumpra o que está
determinado... Vou ao encontro dos soldados que me esperam emboscados
nas sombras dos arvoredos...
PEDRO: Irei convosco... E ai daquele que vos tocar com um dedo!...
JESUS: (num gesto sublime) Fica. Adeus. (encaminha-se para o fundo e
desaparece)
JUDAS: (desorientado) E ele foi... Ele foi... Pedro... não deixes ir... Ele vai
ao encontro da morte... Eles não terão nenhuma piedade... Eles são todos
cruéis e perversos! Não o deixes ir, Pedro... não o deixes ir!
PEDRO: O Senhor disse: Fica. Eu ficarei.
JUDAS: (fica um instante perplexo ante a resignação do outro. Depois,
subitamente, indaga, com um brilho estranho no olhar) E a mim? Que vais
fazer a mim? Não me farás nada? Não me castigarás? Não procurarás
vingar-te da minha ação hedionda? ( O outro olha-o com piedade) Fala,
Pedro... Fala... Eu te peço... Eu te suplico...(num grito) Fala!...
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PEDRO: O Senhor disse: Perdôo. Eu também te perdôo.


JUDAS: Que? Tu também? Não!... Tu não me podes perdoar... Ele não me
pode perdoar...Eu não mereço perdão!... Castiga-me... Não me deixes
escapar...Não me deixes fugir!... Castiga-me, Pedro...Mata-me... Mata-me!...
PEDRO: O Senhor disse: - Tudo é trevas dentro de ti e em torno de ti... E
em trevas viverás por toda a eternidade...(E lentamente desaparece na
trevas densa ).
JUDAS: ( desesperado) Não! Não me deixes só! Leva-me contigo!... Leva-
me contigo, Pedro!... Eu tenho medo... Estas sombras... Estas trevas... Estas
árvores... Seus galhos parecem-me outros tantos punhos que se estendem
para mim, como que a gritar-me: - Maldito! Maldito! Maldito!... Que fazer?
Como remediar o mal que pratiquei? (caindo de joelhos) Senhor... Perdão...
Não me abandones... Não me abandones!... (erguendo-se, assombrado)
Pedro! Pedro... Onde estás, Pedro?... Não me deixes ... Não me deixes!... Eu
tenho medo... Eu tenho medo!... Pedro! Pedro! Pedro...
(E sua voz vai-se perdendo no meio das trevas...)
5º QUADRO

Em casa de Maria. – Ela está sentada, tecendo. – Madalena entra e joga-


se-lhe aos pés.
MADALENA: Senhora, perdoai à última das mulheres a ousadia de vir
procurar-vos...
MARIA: Quem és, minha filha? Levanta-te, para que eu possa ver o teu
rosto...
MADALENA: Diante de uma eleita de Deus, como vós, uma mulher como
eu, só se pode apresentar assim, de joelhos...
MARIA: És jovem, ainda... És bonita... Como te chamas? Quem és?
MADALENA: Perdoai, Senhora... Sou Madalena, a pecadora...
MARIA: Pela tua atitude prefiro chamar-te Madalena, a arrependida...
MADALENA: Sim... Vós o dissestes... Madalena, a arrependida...
Madalena, a regenerada... E sabeis quem me regenerou? Sabeis quem operou
esta grande transformação em todo o meu ser? Vosso filho, Senhora... O
doce, o divino Jesus!...
MARIA: Bendito seja o seu santo nome...
MADALENA: Então não me expulsais? Mesmo depois de saber quem sou,
consentis em ouvir-me?
MARIA: Ergue-te... Vem... Senta-te aqui, ao meu lado... Que mal te aflige?
Qual a causa da aflição que ensombra o teu lindo rosto?
MADALENA: Senhora, pela vossa calma e tranqüilidade, vejo que tudo
ignorais... E quanto mais o vejo, mais se me compunge o coração por ser
portadora de tristes novas... É a primeira vez que de vós me aproximo...É a
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primeira vez que vos falo... Quisera tecer-vos hinos de paz e de louvores
mil... Em vez disso, minha voz adquire os tons plangentes das aves
agourentas... Quisera calar-me... quisera fugir daqui do vosso lado... Mas
forças ocultas obrigam-me a ficar e a comunicar-vos a infausta nova...
MARIA: Há muito que meu coração se habituou a sofrer... Fala, minha filha.
MADALENA: Jesus, vosso filho e meu Senhor, foi feito prisioneiro.
MARIA: (Uma pausa dolorosa. Ela levanta-se e leva a mão ao peito) Já o
sabia...
MADALENA: Já o sabeis? Oh! Graças, Senhor... Não sou eu, então, quem
vos dá a noticia triste... Respeito e venero a vossa dor, Virgem Maria, mãe
dos homens, virtude e bondade imperecível!...
MARIA: (Numa sublime atitude de resignação) Há trinta e três anos que
sofro, e ofereço a Deus meu sofrimento, em paga da imensa honra de ter sido
eleita para trazer ao mundo o Redentor da humanidade... Era ele ainda
pequenino, um pedacinho de carne rosada e linda, quando um homem mau,
um outro Herodes, temendo o nascimento de uma criança que foi chamada
logo de Filho de Deus, ordenou a matança de centenas de inocentes... Mas o
Senhor velava por seu filho e um dos seus anjos celestiais aconselhou-nos a
que fugíssemos de Belém e viajássemos para o Egito... Assim fizemos e
assim pode Jesus escapar à sanha dos seus perseguidores. Mas o seu destino
teria de cumprir-se... Ele não pertencia apenas a nós, apenas aos seus pais...
Ele pertencia a toda a humanidade!... Quando se fez homem, saiu a pregar a
doutrina que seu Pai lhe inculcara... Essa mesma doutrina pela qual ele dará a
vida no meio dos mais atrozes sofrimentos... Meu coração de mãe sangra de
dor... Meu peito estala fibra a fibra... E meus olhos derramam as lágrimas de
uma agrura infinita...
MADALENA: Vós que sois boa, pura e piedosa, dizei-me... Nesse transe
amargurado que faremos? Que poderemos fazer?
MARIA: Nada.
MADALENA: Nada?
MARIA: Nada, a não ser orar por ele e acompanha-lo no seu sofrimento...
Se ele subir o monte Calvário, subiremos com ele... Sua agonia será a nossa
agonia, sua paixão será a nossa paixão...

MADALENA: Admiro-vos e venero-vos... Mas sou uma pobre mulher


inculta e fraca e ainda assaz apegada à vida e à matéria... Se assim o
concederdes, ainda não perdi a esperança de tentar alguma coisa, seja o que
for, para salvar vosso filho e meu Senhor, das torturas que o aguardam...
Abençoai-me, Senhora e permite que eu parta sem tardança...
MARIA: Vai, minha filha... Fazei o que quiseres ou o que puderes... E
quando, desiludida dos homens, da sua boa fé e da sua justiça, quiseres
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chorar, volta para junto de mim... Eu te receberei de braços abertos... E


choraremos juntas....
PILATOS: És tu que queres falar-me?
MADALENA: Sim.
PILATOS: Disseste ao centurião que és uma antiga conhecida... Uma
amiga, talvez... Quem és?
MADALENA: (Desvelando-se) Madalena.
PILATOS: (Admirado) Madalena!... Sim... És tu... Mas como se explica
esse traje simples, essa túnica modesta? Onde estão aquelas vestes suntuosas,
aqueles penteados artísticos, aquelas jóias maravilhosas que faziam de ti a
mulher mais linda de Jerusalém?
MADALENA: Achas-me mudada?
PILATOS: Mudada, apenas? Eu quase não te reconheci... Podes dizer que és
outra mulher...
MADALENA: Tu o disseste. Sou outra mulher.
PILATOS: Mas porque? Como? Qual foi a causa dessa transformação
radical?
MADALENA: O céu.
PILATOS: O céu?
MADALENA: Conheces a um homem chamado Jesus, a quem chamam, o
Cristo?
PILATOS: Não... Não conheço... Quem é?
MADALENA: Um homem que veio de Nazaré, uma aldeia da Galiléia...
PILATOS: Espera... Esse nome... Jesus de Nazaré... Não se trata de um
sedicioso, de um agitador que acaba de ser preso por ordem do Sumo
Sacerdote?
MADALENA: Sim. Ele acaba de ser preso, mas não é um sedicioso nem um
agitador. Jesus não é um homem como os outros. Sua missão no mundo é
divina. Ele é filho de Deus.
PILATOS (Surpreso) Que dizes? Filho de Deus?
MADALENA: Sim.
PILATOS: (Procurando conter o riso) E foi esse filho de Deus que te
converteu?
MADALENA: Ouvindo-o, foi que compreendi que era a minha vida um
engano terrível. Suas palavras mostraram-me o caminho da redenção...
PILATOS: (Num sorriso malicioso) Ah! Compreendo...
MADALENA: Não... Tu não compreendes... O pensamento que atravessou
o teu espírito é torpe e vil, falso e repelente...
PILATOS: O pensamento que atravessou o meu espírito é lógico e natural
diante das tuas palavras... Pretendes negar que amas a esse homem?
MADALENA: Ao contrário. Adoro-o!
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PILATOS: Então? Foi exatamente o que eu imaginei... Um novo amor


inspirou-te um novo caminho a seguir na vida...
MADALENA: Amo Jesus com um amor bem diverso daquele que conheces
e imaginas... Amo-o como se ama a um Deus!...
PILATOS: (Sempre em tom de mofa) E naturalmente, ele te ama como se
ama a uma deusa?
MADALENA: Não zombes, Pilatos... Peço-te que não zombes desse
sentimento que entrou em minha alma como entra um bendito raio de luz no
horror de uma imensa escuridão... Todos diziam, tu mesmo disseste há
pouco... Eu era a mulher mais linda de Jerusalém... A mais cobiçada, pelo
menos... Rejubilava-me por ver caídos aos meus pés, rendidos aos meus
encantos, quase todos os homens que de mim se aproximavam... Eu era feliz,
ou pelo menos, julgava que era feliz... Subitamente, um homem apareceu.
Era simples e pobre. Suas palavras inteiramente diferentes das palavras que
eu estava acostumada a ouvir, soavam aos meus ouvidos como psalmos de
uma elegia desconhecida para mim... Ele nada queria de mim e nada me
oferecia... Mostrou-me apenas o abismo onde eu mergulhara e de onde só
poderia sair à custa de arrependimento e penitencia... Falou-me do céu, da
vida que continua depois da morte... Mostrou-me o horror do pecado e a
abjeção da mentira... E foi assim, Pilatos... Foi assim que aquela Madalena
que conheceste, aquela Madalena que admiravas, se transformou nesta
mulher que se encontra diante de ti... Nesta mulher que tu dirás talvez que é
uma pobre mulher, mas que se julga hoje maior, bem maior, bem mais feliz
do que era naquele tempo...
PILATOS: Tuas palavras não alteram o juízo que fiz sobre a tua
transformação... Ao contrário, dão-lhe mais força e mais vigor... O amor faz
milagres. Os teus amores antigos eram apenas aventuras superficiais... Nada
tinham de profundo, de duradouro... Apareceu em tua vida o homem pelo
qual te apaixonaste e a essa paixão imolaste tudo aquilo que a tua beleza te
havia proporcionado... Ele é pobre, disseste... Mais uma razão para que te
despojes das tuas riquezas em beneficio desse doutrinador emérito... Sim,
porque ele precisaria mesmo de quem o auxiliasse... Há que viver, minha
cara Madalena, há que viver... E esse pobre felizardo, que nada te pedia,
poderia, sem constrangimento, aceitar qualquer oferenda que lhe fizesse a
mulher amada...
MADALENA: Não profiras impiedades... Se não o compreendes, respeita,
ao menos, a sinceridade da minha fé... Já te disse que Jesus não é um homem
como os outros... Não macules a sua figura divina emprestando-lhe tão
torpes intuitos!...
PILATOS: Tu o defendes... É natural que defendas o homem a quem amas...
Mas eu, mesmo sem conhece-lo, adivinho através das tuas palavras, as suas
manhas de aventureiro hipócrita... Esse homem enfeitiçou-te!... Entre os seus
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braços esqueces o teu valor e te reduzes a uma pobre desgraçada que sente,
pensa e age de acordo com a vontade do covarde que a domina pêlos
sentidos!...
MADALENA: (Profundamente sentida) Pilatos... Olha para mim... Vês as
lágrimas que brotam dos meus olhos? São lágrimas fingidas, porventura?
Pois bem fingido não será, também, o juramento que te faço... Esse homem
jamais tocou em um fio dos meus cabelos... jamais roçou a sua mão pela
minha... Acredita que a verdade está nas minhas palavras e não nas tuas
ironias... Essas ironias que tanto me cruciam... que tanto me maltratam!...
(E caída sobre si própria, chora sentidamente...)
PILATOS: (Depois de grande pausa, mudando o seu tom faceto) Seja.
Mas, afinal que queres de mim? Vieste procurar-me para dar-me parte dessa
transformação que se operou em ti? Eu nada tenho com isso... Não sou teu
tutor nem teu guia espiritual.
MADALENA: Vim pedir-te piedade para esse homem que desprezas sem
conhecer... Vim pedir-te graça para ele!...
PILATOS: Ignoras que nada posso fazer? Ele foi feito prisioneiro à ordem
do Sumo Sacerdote dos Judeus...
MADALENA: Não o ignoro. Mas a justiça, na Judéia, é controlada por
Tibério César e tu és o seu representante. Além disso, estamos na Páscoa, e,
por esta época, a lei judaica não permite aos seus sacerdotes o derramamento
de sangue. A sentença deverá ser firmada por um procurador da lei romana.
PILATOS: Mesmo assim, não creio que possa ter ingerência em seu
processo. Jesus é galileu. Seu caso, portanto, deverá ser julgado por Herodes,
que é tetrarca em Galiléia.
MADALENA: Mas o teu prestigio é considerável. Se Herodes souber que te
interessas pelo prisioneiro mostrará clemência e ordenará que ele compareça
diante de ti.
PILATOS: (Relutando, ainda) Seja. Prometo que... se esse Jesus de Nazaré
comparecer perante meu tribunal... estudarei com atenção o seu caso e... e
deliberarei de acordo com a minha consciência.
MADALENA: Será preciso que tenhas muita força de vontade, muita
energia... Em uma palavra, será preciso que “queiras” salvar Jesus!...
Prometes que tudo farás para salvá-lo?
PILATOS: Prometo que tudo farei para salvar a vida desse a quem julgas
inocente.
MADALENA: Basta. Agradeço-te. (Vai a sair)
PILATOS: Retiras-te?
MADALENA: Sim. Preciso sair o mais depressa possível.
PILATOS: Para que? Onde vais?
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MADALENA: Existe um coração de mãe imerso em profunda magoa. Vou


dizer-lhe que se rejubile. Seu filho se salvará. Tenho a palavra de Pilatos!...
(Sai. – Pilatos dá alguns passos pela sala, depois, vai a uma porta e
chama:)
PILATOS: Galba? Galba?
CENTURIÃO (Aparecendo) Chamastes?
PILATOS: Reconheceste essa mulher que acaba de sair?
CENTURIÃO: Não. Nem sei se a conheço...
PILATOS: Maria de Magdala.
CENTURIÃO: Pois era ela? Que transformação!
PILATOS: Dir-se-ia outra mulher, não é verdade?
CENTURIÃO: Tu o disseste. Outra mulher. Quando a vi, nem de longe
poderia imaginar que fosse a cortesã famosa...
PILATOS: E se lhe falasses, verias que essa transformação é ainda mais
notável. Madalena é hoje simplesmente uma mulher vulgar, com todos os
seus defeitos e virtudes...
CENTURIÃO: E como se explica esse avatar?
PILATOS: Conheces a um homem chamado Jesus?
CENTURIÃO: Jesus?
PILATOS: Sim, um carpinteiro, ou coisa que o valha, que veio de Nazaré,
na Galiléia... Um visionário que se diz profeta e que prega uma nova
religião...
CENTURIÃO: Não é esse que foi feito prisioneiro por ordem de Caifaz?
PILATOS: Esse mesmo. Pois é ele o responsável pela transformação de
Madalena.
CENTURIÃO: Mas que ligação pode haver entre esse homem rude e Maria
de Magdala? Semelhante indivíduo não poderia interessar nunca a
semelhante mulher...
PILATOS: Foi por isso que te chamei. Quero alguns informes sobre ele. Tu
o conheces?
CENTURIÃO: Pouco. Vi-o apenas uma vez, quando passava, entre os
guardas pretorianos, a caminho do cárcere. É um tipo vulgar, sem coisa
alguma que o distingua do comum dos de sua raça.
PILATOS: Mas nada ouviste sobre ele que possa satisfazer a minha
curiosidade?
CENTURIÃO: Ouvi coisas tão irrisórias que nem sei se valerá a pena
repetí-las aos teus ouvidos...
PILATOS: Vejamos. Que ouviste?
CENTURIÃO: Bem sabes como essa gente é atrasada e inculta. Pelo que
ouvi dos meus guardas, muitos do povo judaico acreditam que esse homem
tem praticado vários milagres.
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PILATOS: Milagres?
CENTURIÃO: Entre outras coisas assombrosas que praticou, dizem que
num banquete de bodas que se realizou não sei onde, transformou em vinho a
simples água do poço.
PILATOS: (Rindo) E houve quem bebesse desse vinho?
CENTURIÃO: (Rindo também) Quero crer que sim... É possível mesmo
que os seus vapores tenham subido à cabeça dos que proclamam o milagre...
PILATOS: E que mais? Que mais?
CENTURIÃO: Tolices... Loucuras... Dizem também que, numa localidade
cujo nome me escapa, o feiticeiro multiplicou o número de pães existentes
numa padaria, uns cinco ou seis ao todo, e conseguiu dar de comer a uma
verdadeira multidão!
PILATOS: (Sempre rindo) Pelo que vejo, esse homem não é nada
inteligente... Se, com efeito, ele conseguiu esse artifício, era muito mais
lógico que, em de profeta, se transformasse em padeiro... Dentro de pouco
tempo estaria rico...
CENTURIÃO: (Também rindo) Entretanto, apesar de pobre, prefere comer
o pão que o diabo amassou...
PILATOS: É inaudito... Inaudito!... E dizer-se que houve homens capazes
de acreditar em semelhantes balelas!
CENTURIÃO: E ainda não sabes da maior, da mais fantástica de todas...
PILATOS: Alguma coisa ainda mais assombrosa?
CENTURIÃO: Tu o julgarás. É crendice geral que o carpinteiro ressuscita
os mortos!
PILATOS: Não!...
CENTURIÃO: Foi o que me contaram. Ele ressuscitou um homem que
morrera de peste. Dizem que chegou junto ao túmulo onde jazia o cadáver e
ordenou que se levantasse e caminhasse.
ILATOS: E o tal... Levantou-se?
CENTURIÃO: Levantou-se e caminhou!
PILATOS: (Explodindo em gargalhadas) Que grande patife! Com certeza
era sócio do outro nas suas maroteiras!...
CENTURIÃO: Palavra que eu tinha vontade de conhece-lo, para perguntar-
lhe como são as coisas lá pelo outro mundo...
PILATOS: Povo estúpido e atrasado... Como se deixa ludibriar pelo
primeiro charlatão que aparece...
CENTURIÃO: É um bando de cretinos... Mas cretinos que amanhã se
podem transformar em fanáticos perigosos...
PILATOS: Esse foi, com certeza, o raciocínio de Caifaz. Mas creio que será
um caso simples de resolver. Herodes coibirá os abusos praticados por esse
mentecapto e eu não serei chamado a opinar.
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CENTURIÃO: E se fores?
PILATOS: Se o processo vier às minhas mãos, contentar-me-ei em mandar
aplicar-lhe algumas chibatadas e ele que se vá de retorno à sua terra, de onde
nunca mais poderá sair.
CENTURIÃO: Poderias, também, mandar açoitar os mais exaltados porta
vozes da suas feitiçarias...
PILATOS: Bem lembrado... Um castigo coletivo... Servirá de padrão e de
exemplo... Só vejo nisso um perigo... Apenas um perigo imagino que possa
transtornar a aplicação de castigo tão simples e tão espetacular.
CENTURIÃO: Um perigo? Qual?
PILATOS: Pode ser que o homem, com as suas artes diabólicas, consiga
transformar-se, de réu em algoz, e passe a castigar com o azorrague, diante
de toda gente, em plena praça pública, os solados da minha guarda
pretoriana...
CENTURIÃO: (Rindo) É verdade! Olha que seria uma boa peça que ele nos
pregaria...
PILATOS: Mas se isso acontecer, prometo que pedirei demissão do meu
cargo e embarcarei imediatamente para Roma!...
CENTURIÃO: E eu deixarei de ser Centurião nas hostes de Tibério e ficarei
em casa, fiando como uma matrona!...
PILATOS: Isso!... Encontraste excelente ocupação para guerreiros
falhados... Iremos tecer, Galba... Teceremos uma alegoria ao profeta
carpinteiro da Galiléia... Quando tivermos sede, pedir-lhe-emos que
transforme em vinho a água do nosso poço... Quando tivermos fome, ele nos
dará pão, um pão macio e branco... E nem precisará de farinha para fabricá-
lo!...
(E riem ambos... Riem muito... Riem às gargalhadas...)
7º QUADRO
A treva é densa – A música entra forte, subindo ao paroxismo. – Ouvem-
se, no meio de vozerio de multidão enraivecida, algumas frases soltas: -
“Morte ao Nazareno”, “À cruz o falso profeta”, “Morte ao impostor”, etc.
– Na escuridão do espaço entreve-se vagamente a figura de Jesus pregado
ao madeiro. Sua voz ressoa dolente pelo espaço infinito.
JESUS: Meu pai... Perdoa-lhes... Eles não sabem o que fazem... Tudo,
Senhor, se há consumado...
(Jesus expira. – A música sobe novamente, com estalar de raios e trovões.
O vento sibila terrivelmente. A gritaria, infrene, vibra intensamente com a
música que exprime o desespero coletivo...)
8º QUADRO

Uma estrada que conduz ao monte Calvário. Nas trevas que se adelgaçam,
vê-se Madalena que entra com Maria.
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MADALENA: Tudo é terminado... Vinde, Senhora... Já sofrestes demais...


MARIA: Não... O meu sofrimento nada é, comparado ao sofrimento do meu
pobre filho... Tu viste? Apesar de todas as torturas, morreu docemente,
suavemente...
MADALENA: Ele morreu como um Deus, Senhora... Ele era filho de
Deus!...
MARIA: Mas era também o meu filho, o meu querido filho!... Enquanto eu
estava ajoelhada, orando aos pés da sua cruz, meu pensamento voava ao
passado e eu o revia, pequenino, pequenino, tentando os primeiros passos,
amparado por minhas mãos... Depois, maiorzinho, quando já sabia ver e
compreender, quantas vezes, ao descobrir lágrimas em meus olhos, ele
perguntava-me com sua vozinha meiga e doce: “Mãe, tu estás chorando?
Porque choras, Mãe?...”E eu sorria no meia das minhas lágrimas e ele sorria
também e com aquele sorriso eu esquecia as minhas dores e julgava-me a
mãe mais feliz do mundo... Há pouco, vendo-o sofrer atrozmente, sentindo
sede, sentindo fome e sentindo a morte a pouco a pouco tomar conta do seu
pobre corpo ensangüentado e martirizado... Oh! Como o meu coração se
partia de dor!... E agora que ele morreu, agora, que seu sofrimento terminou,
eu continuo a chorá-lo e continuo a vê-lo, pequenino, pequenino, a
perguntar-me com os olhinhos muito abertos: “Mãe tu estás chorando?
Porque choras, Mãe?...”
MADALENA: Mater dolorosa!... Eu vos admiro e respeito! Dia virá em que
vosso nome, Maria, será repetido e adorado como o símbolo do amor
materno!... E eu vos peço, Senhora, nesta hora extrema, ao pé desse
medonho monte Calvário, em cujo cimo ainda se encontra pregado o corpo
daquele que ambas choramos e que em breve toda a humanidade chorará
também, eu vos peço, Senhora, como uma dadiva à mais apagada, à mais
indigna das vossas servas, eu vos suplico que me lanceis a vossa benção...
(Contritamente ajoelha-se aos pés de Maria)
MARIA: Vem a meus braços, minha filha... Tu, que tanto o amaste, serás
também amada por mim... Vem... Eu te abençôo em meu nome em nome
daquele que ambas choramos...
(E, abraçadas, desaparecem... A cena se conserva vazia durante
algum tempo. De repente, entreve-se a sinistra figura de Judas, que
aparece vagando como um autômato...)
JUDAS: Eu assisti à sua morte... Assisti ao seu suplico... Ele não se
queixou... Sofreu e calou... Calou e morreu... E morrendo, encontrava ainda
palavras para amenizar o sofrimento daqueles que morriam ao seu lado... Ele
não era um homem como os outros... Ele era mesmo filho de Deus!... Mas
porque ele me perdoou? Ele não devia ter-me perdoado... Eu sou um
monstro... Um monstro peçonhento... Mereço os castigos mais cruéis, as
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torturas mais diabólicas... E foi ele que morreu... Foi ele que morreu
torturado... Quando me livrarei deste tormento? Quando?...
(Vai a sair e abalroa um Velho que vem entrando)
VELHO: Pôr favor... Tu és daqui?
JUDAS: Que queres, velho?
VELHO: Dizei-me onde poderei encontrar um rabino chamado Jesus, que
veio da Galiléia?
JUDAS: Jesus? Que queres com ele?
VELHO: Preciso encontra-lo. Venho de longe, de muito longe... Vivo do
outro lado da montanha, para além do Hebron... Mas até lá chegou a fama
desse profeta de Nazaré... Todos dizem que ele é miraculoso... Ao ouvir,
falar em seus milagres, meu coração alvoroçou-se... Tenho fé em que ele há
de curar-me... Para isso viajei até aqui...
JUDAS: És doente?
VELHO: Sou cego. Há bastantes anos que não vejo nada nem ninguém...
Mas tenho certeza de que, se Jesus tocar suas mãos em minhas retinas
mortas, meus olhos tornarão a ver a luz... Dizei-me... Onde poderei
encontra-lo?
JUDAS: Pobre de ti, velho... Chegaste tarde.
VELHO: Cheguei tarde? Que queres dizer?
JUDAS: Não sabes? Não ouviste falar? Ninguém te contou?
VELHO: Não... Cheguei hoje a Jerusalém... E não conheço ninguém por
aqui...
JUDAS: Jesus é morto.
VELHO: Morto?
JUDAS: Sim. Acaba de morrer, ainda não há uma hora. Seu corpo ainda está
lá em cima, no monte... Foi crucificado entre dois ladrões...
VELHO: Entre dois ladrões? Mas que fez esse homem para merecer morte
tão afrontosa?
JUDAS: Nada... Não fez nada... Garanto-te que não fez nada... Não lhe
retires a tua fé... Ele era um bom , era um justo, podes ter a certeza...
VELHO: Sim, eu sei... Mesmo sem conhece-lo, tenho essa certeza que me
recomendas... Mas a dúvida paira em meu espírito e não a dissipaste... Se ele
era bom e justo, mais razão para que o estimassem... Porque, então essa
morte tão cruel?
JUDAS: Tu não sabes, velho... Tu não sabes... E quisera eu não sabe-lo
também... Ele foi traído!...
VELHO: Traído?
JUDAS: Sim... Traído miseravelmente... Um dos que o acompanhavam, um
dos seus discípulos... Entregou o seu Mestre nas mãos daqueles que o
odiavam porque ele pregava uma doutrina de amor e de bondade... Não
calculas, velho, como o supliciaram, como o martirizaram... Açoitaram-no,
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bateram-lhe como se ele fosse o último dos criminosos! Enterraram-lhe na


fronte, como suprema irrisão, uma coroa tecida com um galho de espinhos
que lhe dilaceraram a pele... Fizeram com que ele próprio transportasse o
instrumento do suplício, a pesada cruz em que teria de agonizar, subindo
com ela toda a encosta do monte Calvário... Lá chegado, seu pobre corpo foi
pregado a pregos sobre a madeira dura, sofrendo fome, sofrendo sede,
esperando que a morte, bem mais misericordiosa do que os homens, tomasse
conta de seu organismo enfraquecido, pondo fim ao seu martírio!...
VELHO: Infeliz... Como deve ter sofrido!... Escuto-o, sem o ter escutado, os
seus ais, os seus gemidos débeis...
JUDAS: Enganas-te, velho... Ele não soltou um ai, não soltou um gemido...
Nem mesmo no instante em que, clamando por causa da sede que o
devorava, em vez de água deram-lhe a sugar uma esponja embebida em fel e
vinagre!...
VELHO: Fizeram isso? Que atrocidade!... Esses homens agiram como
verdadeiras feras!...
JUDAS: E sabes o que Jesus disse nesse momento? Nem uma exclamação
de protesto, nem uma leve censura!... Seus lábios se moveram numa prece
em que ele pedia perdão para aqueles que o torturavam tão cruelmente,
dizendo que não sabiam o que faziam!...
VELHO: Oh! Esse homem era mais que um profeta... Ele era
verdadeiramente divino!... E ninguém se lembrará de vingar a sua morte?
Ninguém irá castigar esse traidor que o entregou aos algozes?
JUDAS: Não... Ninguém o castigou... Ninguém o castigará!
VELHO: Vão deixa-lo impune? Então são todos uns covardes!... Ah! Se
fosse eu... Sou velho, embora... Sou cego, não importa... Mas se o
conhecesse, haveria de arrancar-lhe o coração fementido pela boca, aquela
boca nojenta que dessorou a baba da traição!... São todos uns covardes... Uns
covardes!...
JUDAS: Não... Não os insultes... Tu não os conheces... Eles fizeram o que o
próprio Mestre mandou que fizessem... Eles Perdoaram.
VELHO: Perdoaram?
JUDAS: Sim. Jesus perdoou ao traidor... Tu não achas que ele agiu mal? Tu
não achas que ele não devia ter perdoado?
VELHO: Hein? Perdoar? Tu disseste que ele perdoou?... Sim... É isso...
Agora compreendo... É o que todos deviam fazer... É o que todos devem
fazer... Perdoar... Perdoar... E eu mesmo, sem o conhecer, sem jamais tê-lo
visto, eu também perdôo...
JUDAS: (Numa exclamação surda) Que? Tu também perdoas?
VELHO: (Com o rosto iluminado por um raio de luz, enquanto se ouve
suave melodia)
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Senhor... Creio em ti e na tua doutrina... Viajei de longe, gastando as minhas


sandálias nas pedras dos caminhos... Cheguei. Trazia, como um egoísta, a
idéia de me aproveitar das tuas forças milagrosas para recuperar a luz dos
olhos... Mas não te encontrei... Quando cheguei, tinhas abandonado a forma
terrena e retornado à tua forma divina... Mas graças te sejam dadas... Não me
deste a luz para os olhos, mas iluminaste a minha pobre alma... Eu te
compreendi, Senhor... Eu Compreendi a tua doutrina... Tu me concedeste um
bem mil vezes maior do que aquele que eu esperava de ti... Tu me ensinaste a
sublime força do perdão!... Eu te agradeço e te rendo graças, Senhor meu
Deus!... (voltando-se para Judas) Obrigado, meu filho, pelas tuas palavras...
Elas me foram muito mais úteis do que eu poderia imaginar...
JUDAS: Mas que é isso, velho? Tu não tateias mais... Tu andas
normalmente, como qualquer pessoa que vê... Tua és um intrujão... Tu me
enganaste... Tu não és cego!...
VELHO: (Parando, deslumbrado) Sim... Tens razão... Não sou cego... Não
sou cego!... Vejo tudo em torno de mim... Mas não te enganei... Eu era
cego... Foi ele... Foi o doce rabino que me curou... Foi Jesus... Jesus de
Nazaré... (caindo de joelhos) Oh! Graças, Senhor... Eu vos agradeço o
haverdes recompensado assim a minha fé!...
(E conserva-se de bruços no chão)
JUDAS: (Assombrado) Ele continua a operar milagres... Mesmo depois de
morto, ele continua vivo... e eu o repudiei... Para mim, não pode haver
perdão... E como não posso fugir para parte alguma, pois para toda parte
levarei a consciência do meu crime, só me resta fugir de mim mesmo...
(olhando em torno e tirando, ao mesmo tempo, a corda que trazia em torno
à cintura) Árvores que me atormentais!... Árvores que me amedrontais...
Emprestai-me um galho... Um galho só da vossa ramaria... Eu preciso fugir...
Sim... Eu preciso fugir... (vai a sair)
VELHO: Espera, meu filho... Não te vás assim... Eu quero saber quem és...
Preciso conhecer o teu nome... Dizei-me o teu nome...
JUDAS: (Em tom desesperado) Queres saber? Pois escuta, velho, e guarda
para sempre este nome na tua memória... Ele será repetido através dos
séculos como o símbolo da traição... Meu nome é Judas!.
9º QUADRO
Em casa do pretor. – Sentado em sua cadeira de alto espaldar, o queixo
apoiado numa das mãos, uma ruga na testa, Pilatos medita
MADALENA: (Aparecendo) Pilatos...
PILATOS: (Erguendo a cabeça) Ah És tu?... (desce do seu estrado e dá
alguns passos pela sala) Não foi possível... Não pude salva-lo... Mas lavei as
mão do seu sangue... Não me podes censurar!...
MADALENA: Não te venho censurar...
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PILATOS: Teu amigo era um teimoso... Dei-lhe uma oportunidade...


Insinuei-lhe que negasse ter-se inculcado o filho de Deus... Não quis seguir o
meu conselho... Preferiu calar-se. Na sua louca resignação, na sua
incompreensível indiferença, na sua persistente mudez, ele parecia zombar
de todos aqueles assassinos que o espreitavam como presa já abocanhada...
Assim, seria muito difícil... Seria impossível salva-lo!...
MADALENA: Já te disse que não te vim censurar. Sei que foste um
covarde, mas te perdôo, Pilatos, como ele também te perdoou e a todos os
seus algozes...
PILATOS: Mas se não me vens censurar, se não me vens reprovar, que
vieste fazer aqui? Que queres de mim?
MADALENA: Venho pedir-te um favor. Será o último.
PILATOS: Um favor?
MADALENA: Sim. Desejamos dar a Jesus sepultura onde possamos orar,
longe das vistas dos teus guardas. Queremos uma ordem tua para que nos
entreguem o corpo.
PILATOS: Vós, mulheres, sois todas impressionáveis... Deixais-vos levar
pela simpatia ou pela piedade que vos inspira qualquer indivíduo... Ainda
hoje, minha mulher, Justitia, fez-me uma cena patética e algo ridícula...
Tendo sofrido, à noite passada, um pesadelo, no qual lhe aparecera uma
visão ou coisa que o valha, veio pedir-me que intercedesse pela vida desse
homem. Quando se inteirou de que já era tarde, foi presa de violenta crise
nervosa. Em aflitos brados, disse-me que ficaríamos ambos malditos pôs esse
ato!... Vês? Vês onde vos leva esse vosso sentimentalismo doentio? Oh! Para
que apareceu esse homem nas vossas vidas!...
MADALENA: Esse homem, Pilatos, apareceu na vida de toda gente...
Apareceu na vida da humanidade... e nunca mais sairá da vida de todos...
Nunca ninguém lhe será indiferente... Ou estará a seu lado ou estará contra
ele... E ai dos que estiverem contra ele!...
PILATOS: Basta! Basta!... Não quero ouvir mais nada!... Chega de falar
sobre esse homem! Chega! Chega!
MADALENA: És tu que estás falando... Eu vim pedir-te um favor... Se
ainda não me retirei é porque ainda não respondeste ao meu pedido...
PILATOS: (Com voz alterada) Mas que queres, afinal? Que queres?
MADALENA: Não te exaltes... Porque te exaltas? Eu disse o que desejo...
Peço que nos entregues o corpo de Jesus para dar-lhe sepultura condigna.
PILATOS: Só isso?
MADALENA: Só isso.
PILATOS: Retira-te. Darei ordem ao centurião. Podes mandar buscar esse
tesouro hoje mesmo. (Num sorriso) ou serás tu própria que irás buscar?
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MADALENA: Perdôo-te também, Pilatos, essa tua ironia. Será a última,


garanto. Esse riso de mofa que aflora aos teus lábios, é um riso falso... Tu
mesmo sentes que não podes, que não deves rir... Prepara-te, meu pobre
amigo... Prepara-te para sofrer o teu remorso...
PILATOS: Sofrer? Mas tu não disseste que fui perdoado?
MADALENA: Sim... Foste perdoado... Mas há um perdão que ainda não
obtiveste e nunca obterás... É o teu próprio perdão... É o perdão da tua
própria consciência, que te repetirá, para todo o sempre, esta palavra terrível:
- Covarde!... – Adeus, Pilatos.
PILATOS: (Surdamente) Esse homem, Esse homem,(Subitamente vai a
uma porta e chama) Galba! Galba!
CENTURIÃO: (Aparecendo)Chamaste?
PILATOS: (Sem saber o que dizer) Sim... Eu preciso... Eu quero... Enfim,
sabes quem acaba de sair daqui?
CENTURIÃO: Eu a vi. Maria de Magdala.
PILATOS: Sabes o que ela veio pedir-me?
CENTURIÃO: Tu o dirás.
PILATOS: Uma insânia... Uma loucura!... Eu não devia ter consentido...
Mas essa mulher insistiu... Por outro lado, as palavras de Justitia ainda
ressoam aos meus ouvidos... Consenti porque estou farto... farto!... Faço-
lhes a vontade e que nunca mais ouça falar deles!...
CENTURIÃO: Mas de que se trata, pretor?
PILATOS: (Parando) Como? Ainda não te disse?
CENTURIÃO: Espero as tuas ordens.
PILATOS: (Explodindo) Entrega-lhes esse homem! Entrega-lhes o seu
corpo!... Eles continuam a adora-lo, mesmo depois de morto!... Corja de
lunáticos!... Que esperam de um cadáver?... Vês como eles são? Acreditam
que esse homem não é um homem como os outros!...
CENTURIÃO: (Em voz grave) E não é, Pilatos.
PILATOS: (Olhando-o, atônito) Hein? Que disseste?
CENTURIÃO: Eu disse: - Esse homem que morreu na cruz não era um
homem como os outros...
PILATOS: Que? Pois tu tens a audácia? Tu, também?
CENTURIÃO: Pilatos, eu assisti à sua agonia... Tu não podes calcular... Eu
próprio não te sei explicar a angustia que se apoderou de mim... Queria tirar
os olhos daquele corpo inerme e ensangüentado e não o conseguia... Cheguei
tão perto dele que, de uma de suas feridas, uma gota de sangue borbulhou e
caiu sobre a minha mão... Nesse momento, um arrepio percorreu as minhas
carnes... Contra a minha vontade, minhas pernas se vergaram e eu caí de
joelhos... Eu queria fazer alguma coisa para livrar-me daquela opressão que
me angustiava... Queria falar, queria gritar... Nem eu mesmo sei o que... Mas
quando me rojei aos pés da sua cruz, quando o pranto rompeu desabalado
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dos meus olhos, senti um bem estar, uma tranqüilidade, uma paz inaudita... E
a fé entrou em meu coração... (Em voz pausada e sentida) Pilatos... Aquele
homem era Deus... Aquele homem era Deus...
PILATOS: (Desorientado) Não! Não pode ser!... Não digas isso!... Eu não
acredito... Eu não posso... Eu não quero acreditar!...
(Neste momento, trevas invadem a sala. – Ouvem-se os sons de melodia
celestial e, no alto, acima da cadeira de Pilatos dominando a altaneira
águia romana, uma luz intensa fulgura... Dentro dessa luz a figura de
Jesus aparece, a mão erguida, como o símbolo vivo e eterno do perdão...)
CENTURIÃO: (Caindo de joelhos e fazendo o sinal da cruz) Senhor meu
Jesus... Eu vos rendo graças em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo...
Amém.
PILATOS: (Desesperado) Senhor... Tu voltaste... Tu vieste pedir-me contas
da tua condenação... Mas eu não tenho culpa... Eu fui forçado... Eu não podia
fazer outra coisa... Eu estou inocente! Eu estou inocente!... Perdão, Senhor...
Perdão! Perdão!... Perdão!...
(Joga-se de bruços no chão. A luz é cada vez mais intensa... A musica
adquire a força de um hino de Glória...)

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