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Democracia liberal e direitos individuais

A epistemologia jurídica por trás do Estado Moderno

Tiago Ivo Odon

Sumário
1. Introdução. 2. Sociedade: da politeía à
iuris societas. 3. Individualismo e a redenção da
vontade. 4. Nominalismo: a gênese do direito
individual. 5. Liberdade. 6. Democracia e liber-
dade. 7. Conclusão.

Introdução
A análise da relação entre democracia
liberal e direitos individuais passa pela
evolução histórica de quatro concepções:
sociedade, indivíduo, vontade e liberdade. A
forma como essas concepções se relacionam
distingue a democracia moderna da demo-
cracia antiga e, antes disso, e mais fundamen-
talmente, o direito moderno do antigo.
Cinco micro-revoluções filosóficas
moldam as idéias modernas de direito
individual: 1) o direito deixa de ser fun-
dado na sociedade e passa a ser fundado
no indivíduo; 2) a sociedade torna-se uma
ficção jurídica; 3) a razão cede lugar à von-
tade; 4) a liberdade passa a pressupor a
autonomia da vontade individual; e 5) a lei
passa a ser vontade e liberdade positivada.
Essas micro-revoluções traduzem a grande
revolução liberal da Idade Moderna, que
funda o Estado Moderno. A democracia,
Tiago Ivo Odon é Consultor legislativo do
a rigor, não se insere nesse quadro. Os
Senado Federal, advogado, especialista em
Direito Penal e Processual Penal pela Universi-
liberais clássicos não tinham a democracia
dade Cândido Mendes e mestrando em Direito em mente quando desenharam seu cons-
e Políticas Públicas pelo Centro Universitário de titucionalismo libertário. Ela é epistemo-
Brasília. Professor-tutor do Instituto Legislativo logicamente incorporada posteriormente,
Brasileiro. o que provocou uma tensão na concepção
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moderna de liberdade, até hoje sentida nos no diferentes, mas se referirem ao mesmo
textos constitucionais. tipo de governo, com a distinção resultando
meramente da variação lingüística entre o
2. Sociedade: da politeía à grego e o latim.
iuris societas Apesar de a democracia romana ter
durado mais tempo do que qualquer
A sociedade do Estado contemporâneo não democracia moderna até os dias de hoje,
é o demos da democracia grega antiga nem o ela começou a se enfraquecer por volta de
populus da república romana. Num intervalo 130 a.C., em razão da inquietude civil, da
de quase dois mil anos, a concepção ocidental militarização, da guerra, da corrupção e do
de sociedade sofreu uma revolução. decréscimo no espírito cívico.
Em 507 a.C., os gregos, reunidos em “ci- Autores como Norberto Bobbio e Miche-
dades-Estados”, adotaram um sistema de langelo Bovero (2002) vêem na comunidade
governo popular que duraria cerca de dois política democrática grega e romana a
séculos, com destaque para a democracia imagem de um corpo coletivo orgânico, do
de Atenas. Foram provavelmente os ate- qual os indivíduos são membros. O ponto
nienses, relata Robert Dahl, que cunharam de partida da concepção organicista de
o termo demokratia (demos, povo, e kratos, sociedade é a natureza social do homem:
governo, poder, superioridade)1. O sistema a natureza humana estaria condicionada
ateniense era uma democracia direta ou pela forma com que o indivíduo se insere
participativa: todos os cidadãos estavam no agrupamento social. O grupo social vem
autorizados a participar da assembléia para em primeiro lugar e as ações humanas têm
a decisão política2. significado na medida em que espelham
A “sociedade” grega era a politeía. A características do grupo. Distinta, portanto,
democracia antiga era concebida numa da concepção hoje vigente, a individualista,
relação simbiótica com a polis, a cidade. que coloca o homem antes da sociedade,
Giovanni Sartori alerta para o fato de que em que as ações humanas são auto-referen-
a polis grega não tinha nada de “cidade- ciadas e importam em si mesmas; o grupo
Estado”, como muitos autores gostam de seria reflexo do indivíduo.
chamá-la, pois não era, em nenhum sentido, O direito antigo estava enraizado no
um “Estado”. A polis era uma “cidade- costume religioso e a religião estava calcada
comunidade”, uma koinonía. Sartori (1994, no culto doméstico da família. Nas pala-
p. 35) lembra Tucídides, que a definiu com vras de Fustel de Coulanges (2006): “não
três palavras: andrés gar polis – “os homens se podia conhecer o direito sem conhecer
é que são a cidade”. “É muito revelador”, a religião”. Os mesmos homens eram, ao
completa, “que politeía tenha significado, mesmo tempo, pontífices e jurisconsultos.
ao mesmo tempo, cidadania e estrutura A cidade, a polis, fundada sobre a religião,
(forma) da polis”. era maior que o indivíduo. “Quando se
Aproximadamente na mesma época em tratava de interesse da cidade”, atesta o
que foi introduzido na Grécia, o governo mesmo Coulanges (2006, p. 252), “nada
popular apareceu na península italiana. garantia a vida do homem”, uma vez que
Os romanos preferiram chamar seu regi- até o direito deveria ceder diante da cidade.
me democrático de “república” (“res, que Assim, um homem poderia ser punido sem
em latim significa coisa ou negócios, e culpa, desde que houvesse interesse estatal
publicus,­ “a coisa pública” ou “os negócios (FÜHRER, 2005, p. 34). Como deixou claro
do povo”). Dahl (2001, p. 27) ressalta a pos- Aristóteles (2005, p. 82), o injusto não se
sibilidade de as palavras “democracia” e comete em relação a outrem, mas “em
“república” não designarem tipos de gover- relação à cidade”.

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“A cidade havia sido fundada passa a ser uma ficção jurídica e, em toda
sobre uma religião e constituída a literatura medieval, complementa Sartori,
como uma igreja. Daí a sua força; daí continua sendo uma fictio iuris. Os pensa-
também a sua onipotência e domínio mentos greco-­romano e medieval, portanto,
absoluto que exercia sobre seus mem- não exprimiam uma idéia autônoma de
bros. Em uma sociedade organizada sociedade: esta era representada como
sobre tais princípios, a liberdade in- politeía ou civilis societas, e não como uma
dividual não podia existir. O cidadão iuris societas. Essa concepção organicista de
estava submetido em tudo, e sem sociedade permaneceria viva até o início da
reservas, à cidade; pertencia-lhe in- Idade Moderna.
teiramente. [...] O homem nada tinha A citada crescente queda de legitimi-
de independente” (COULANGES, dade das decisões democráticas romanas,
2006, p. 248). em razão da expansão territorial, não le-
A idéia de indivíduo era completamente varam os romanos a adotar, como solução
destituída de valor. “Os antigos”, completa alternativa, o sistema representativo. Foi
Coulanges (2006, p. 251), “não conheciam justamente, como lembra Dahl (2001), o que
a liberdade nem da vida privada, nem de algumas comunidades européias medievais
educação, nem a liberdade religiosa”. começaram a fazer. É na Europa do Norte
Em outras palavras, o homem antigo que surge a combinação entre democracia
é um “animal político”, um zoon politikón em níveis locais (assembléias locais) com
(Aristóteles)3 porque ele vive na polis (cida- um parlamento eleito pelo povo em níveis
de) e a polis vive nele, e na polis, portanto, mais elevados (assembléias regionais e
o homem se realiza como tal. O polites (o nacionais).
político) dos gregos era o civis dos romanos, Em meio às assembléias de representan-
assim como polis se traduzia por civitas. tes-mandatários das classes sociais urbanas
No entanto, bem alerta Sartori, quando os na Suécia, na Holanda e em Flandres, des-
romanos começaram a absorver a cultura tinadas, em geral, a pactuações tributárias,
grega, suas cidades já ultrapassavam as surge na Inglaterra o parlamento repre-
dimensões que permitia a “vida política” sentativo, um produto não-intencional ou
em seu sentido original. A civitas romana se planejado. O Parlamento inglês medieval
relacionava com a polis já com o seu caráter surgiu das assembléias convocadas espo-
“político” diluído. Isso porque a democra- radicamente durante o reinado de Eduardo
cia romana não acompanhou o crescimento I, de 1272 a 1307. Assim, relata Dahl (2001),
do território romano. Apesar do expressivo a idéia de que os governos precisavam do
aumento do número de cidadãos, com a consenso dos governados, que no início era
expansão territorial, a assembléia popular uma reivindicação sobre o aumento dos
continuava a ter lugar na cidade de Roma tributos, aos poucos se tornou uma reivin-
(DAHL, 2001, p. 23). Assim, conforme dicação a respeito das leis em geral.
Sartori­ (1997, p. 159), a civitas se configu- Esses desdobramentos históricos fo-
rava sob dois pontos de vista: como uma ram fundamentais para o surgimento, na
civilis societas, ­ adquirindo qualificação Inglaterra,­ da idéia de sociedade como um
mais elástica, que amplia seus confins; e corpo autônomo. Essa idéia começa a se
como uma iuris societas, substituindo-se a desenhar com a teoria do contrato social, a
“politicidade” pela “juridicidade”. partir do século XVI, quando a concepção
Como atores concretos, portanto, o organicista de sociedade cede lugar, de for-
demos­ grego e o populus romano desapa- ma mais clara e definida, à concepção indi-
recem quando desaparece a polis. Com vidualista. A idéia nasce da distinção entre
a queda da República romana, populus pactum subiectionis (pacto de submissão), de

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­ obbes, e pactum societatis (pacto de consen-
H teiras dentro das quais a sociedade é livre
timento), de Locke. É a teoria do contrato do Estado. Essa sociedade, que estipula o
social que funda o Estado Moderno. contrato, é uma iuris societas. A politeía e
Enquanto no pacto hobbesiano, visando a civilis societas, portanto, cedem lugar à
à preservação de vidas numa guerra de lo- iuris societas autônoma, uma ficção jurídica
bos, os indivíduos transferiam a um terceiro formada por indivíduos dotados de direitos
(homem ou assembléia) a força coercitiva intransponíveis.
da comunidade, trocando voluntariamente Na ótica do liberalismo político, anun-
a sua liberdade pela segurança do Estado- ciada por Locke, e depois por Montesquieu,
Leviatã, no pacto lockeano os indivíduos a sociedade deveria permanecer uma so-
concordavam livremente em formar a socie- ciedade regulada e protegida pelo direito.
dade civil para preservar e consolidar ainda Para Montesquieu, “Estado” era igual à
mais os direitos que possuíam originalmen- “sociedade onde há leis”5. O princípio bá-
te no estado de natureza (como os direitos à sico, sublinhado por Isaiah Berlin (2002,
vida, à liberdade, à propriedade). p. 267), é o de que “nenhum poder pode ser
Ou seja, a teoria do contrato social, que considerado absoluto, apenas os direitos o
funda o Estado Moderno, joga o indivíduo podem”.
para antes da sociedade política, atribuin- As vias pelas quais a liberdade seria
do-lhe direitos individuais, direitos esses garantida, para os liberais clássicos, seria
desconhecidos dos gregos e romanos. o constitucionalismo. Não se falava em
A idéia-prima é que esses direitos democracia nessa época. A idéia de demo-
naturais e inalienáveis estariam melhor cracia está ausente dos escritos de Locke
protegidos sob o amparo da lei, a lei abs- ou ­ Montesquieu. O foco inicial eram as
trata e impessoal, formulada por um cor- monarquias constitucionais, em oposição
po comum unitário. A mudança de foco ao absolutismo do Antigo Regime. Segundo
de Hobbes para Locke é importante, de Leslie Lipson (apud FERREIRA FILHO,
submissão para consentimento, e a identi- 2001, p. 11):
ficação da liberdade na lei seria anunciada “O Constitucionalismo é o termo
mais tarde com clareza em famoso trecho que possui conotações definidas:
de Montesquieu (1995), cuja idéia também vincula-se à noção do império da lei
está presente em Kant e em Rousseau: “A e abrange a idéia de que não se há
liberdade é o direito de fazer tudo o que de permitir a um Governo agir con-
as leis permitem; se um cidadão pudesse forme arbítrio de suas autoridades,
fazer tudo o que elas proíbem, não teria devendo, ao contrário, conduzir-se
mais liberdade, porque os outros também de acordo com normas eqüitativas e
teriam tal poder” (MONTESQUIEU, 1995, estabelecidas mediante acordo”.
p. 186)4. Precisamente aí se sustenta o con-
trato social, que funda o Estado Moderno. 3. Individualismo e a
A teoria do contrato é uma “teoria baseada redenção da vontade
em direitos” (e não em deveres ou metas),
conforme Ronald Dworkin (2002, p. 268), Conforme Louis Dumont (1985), o in-
e a característica dessa teoria é que: “O dividualismo moderno é um processo que
homem que se encontra em seu centro é nasce com os primeiros cristãos e seu meio
um homem que se beneficia da obediência cultural. O “indivíduo como valor” foi con-
alheia, e não o homem que leva uma vida cebido como alguém situado no exterior da
virtuosa por sua própria obediência”. organização social e política dada, “fora e aci-
Consolida-se, portanto, uma idéia que ma dela”; ou seja, um indivíduo-fora-do-mundo,
seria inconcebível para os gregos: há fron- em contraste com a noção greco-romana de

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i­ndivíduo-no-mundo. Para Dumont (1985), o filosofia grega, praticamente, seguiu esse
individualismo surge a partir de uma socie- arranjo platônico. A idéia de prevalência
dade holista e em oposição a ela – o homem da vontade sobre a razão, ou seja, que os
cristão como um indivíduo-em-relação-a-Deus atos racionais são dirigidos pela vontade,
apresenta-se, essencialmente, como esse in- só aparece com o cristianismo, para se con-
divíduo-fora-do-mundo e nessa relação recebe sumar em Occam e Descartes. A própria
seus atributos de igual, auto-suficiente, idéia de “vontade racional” é moderna.
livre. Quando a Igreja arroga-se o poder Conforme Bovero (2002, p. 28), o funda-
temporal no Ocidente, após o século VIII, mento da democracia, ou o “princípio da
o indivíduo cristão inicia um processo de democracia”, é o “indivíduo sujeito de
transformação, de indivíduo-fora-do-mundo vontade racional”.
para indivíduo-no-mundo, processo que A forma final dessa evolução histórica
se concluiria no século XVI. Esse seria o é identificar a lei com a vontade positiva
produto à disposição dos contratualistas do indivíduo. Hans Kelsen (1993) aponta
da Idade Moderna: o indivíduo como ser uma relação íntima entre parlamentarismo
moral, igual, auto-suficiente e livre proje- e direito positivo. Para ele, só se chega à
tado sobre o mundo. idéia de constituir determinado órgão para
O indivíduo-fora-do-mundo, ou seja, a criação das normas gerais, o Parlamento,
fora-da-cidade, do cristianismo, traz uma quando essa criação deixa de ocorrer por
revolução. Marilena Chauí (1992, p. 349) meio de prática normativa inconsciente, o
elenca seus efeitos. Em primeiro lugar, direito consuetudinário, para ocorrer por
desloca-se o campo da liberdade. Para os um procedimento de emanação consciente,
antigos, como já visto, a liberdade era um o direito positivo (KELSEN, 1993, p. 52).
conceito essencialmente político, pois só na A relação entre lei geral – abstrata e
polis alguém poderia ser livre, e a liberdade impessoal – e sociedade foi muito bem
era a definição mesma de cidadania. O cris- estabelecida por Rousseau. Para ele, a lei
tianismo, no entanto, “religião da salvação é a decisão da vontade geral sobre matéria
nascida fora do campo político e contra o geral. A “vontade geral” de Rousseau é
Estado, desloca a liberdade para o interior uma “vontade de todos” filtrada, ou seja,
de cada ser humano”; ou seja, despolitiza-a. subtraída dos egoísmos de cada um. Dessa
Em segundo lugar, o cristianismo “articula operação resultaria uma vontade racional,
liberdade e vontade e apresenta esta última visando apenas ao interesse comum.
como essencialmente dividida entre o bem “[...] quando todo o povo estatui algo
e o mal”. Em terceiro lugar, ao introduzir para todo o povo, só considera a si
o sentimento da culpa originária, “coloca mesmo e, caso se estabeleça então
o vício como constitutivo da vontade”. uma relação, será entre todo o objeto
Assim, a ética não pode mais ser apenas sob um certo ponto de vista e todo o
a conduta racional que regula a vontade, objeto sob um outro ponto de vista,
conforme percebe Chauí. Em quarto lugar, sem nenhuma divisão do todo. Então,
e como conseqüência, a noção de responsa- a matéria sobre a qual se estatui é geral
bilidade individual, que assume um papel como a vontade que a estatui. A esse
desconhecido para os antigos. ato dou o nome de lei” (ROUSSEAU,
Platão e Aristóteles separavam razão e 2000, p. 106-107)6.
vontade. Para eles, esta dependia daquela. A ponte que vai do individualismo cris-
Em Platão, a vontade é uma faculdade tão à concepção do direito positivo como
(“intermediária”) que se encontra abaixo vontade positiva passa pelo nominalismo
da faculdade racional; os atos de vontade de Occam. Conforme Michel Villey (2005,
se executam conforme a razão. Toda a p. 225), no nominalismo de Occam está o

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embrião da concepção de direito subjetivo Por exemplo, podemos citar o conceito
individual, sobre a qual se sustenta a teoria de “cidadão”. Na Grécia antiga, os cidadãos
do contrato social, fundadora do Estado eram os homens gregos livres de nasci-
­Moderno. Dumont (1985, p. 23) chega a dizer mento. Aristóteles (1991, p. 35) escreveu
que o nominalismo seria um outro nome para que os estrangeiros e os escravos não são
o individualismo, na forma como concebido “cidadãos”, mas sim “habitantes”, e o que é
pela sociedade moderna. O nominalismo “cidadão” numa democracia não o é numa
foi fundamental para o surgimento do car- oligarquia. A realidade é complexa, mas a
tesianismo de Descartes. A essa construção definição dada acima consegue simplificá-la:
epistemológica nos ateremos a seguir. é um predicado que traz características gerais
do fenômeno, e, assim, consegue englobar
4. Nominalismo: a gênese do o grupo de algumas dezenas de milhares
direito individual de pessoas que poderiam participar das
assembléias populares atenienses. Ou seja,
É comum na tradição filosófica a de- segundo o próprio Aristóteles (1991, p. 37,
núncia da insuficiência da percepção. Con- grifo nosso), cidadão é “a universalidade
forme Franklin Leopoldo e Silva (1992), a desse tipo de gente [aqueles admitidos
metafísica nasceu precisamente a partir da na jurisdição e na deliberação]”, gente
crítica da percepção. Um dos precursores essa que “constitui a Cidade”. Por ser um
dessa tendência foi Platão, que, partindo conjunto de elementos singulares e captar
de sua Teoria das Idéias, defendeu que a só o que eles têm em comum (ou seja, são
verdade não pode ser encontrada com a todos homens, gregos e não-escravos), essa
percepção empírica, na realidade do devir construção pensada é também chamada de
(a clássica distinção entre aparência e es- universal.
sência, entre idéia e realidade). Pouco antes Os conceitos (ou “universais”) são mui-
do Iluminismo, Descartes ainda chamava a to importantes para o direito. Os arts. 312 a
atenção com relação às contradições e ilu- 326 do Código Penal brasileiro, por exem-
sões da percepção sensível. Resumindo: o plo, prevêem penas para crimes praticados
que vemos, segundo toda essa tradição me- por “funcionário público”. É um universal,
tafísica que se formou, pode nos enganar. cuja definição está no art. 327 do CP (todos
Em toda essa trajetória especulativa, está aqueles que exercem cargo, emprego ou
implícita a idéia de que, se nossa percepção função pública). No direito internacional
alcançasse o real na sua verdadeira essência, penal, é comum os tratados estabelecerem
não haveria necessidade de raciocínios e os conceitos antes de positivarem direitos
concepções que preenchessem o vazio da e obrigações. Como pensar o direito sem
percepção direta. No entanto, há, desde os universais “credor”, “proprietário”,
Platão até os modernos, a necessidade de “cônjuge”, previstos nas leis? Ou seja, dada
preencher esse vazio: optou-se, portanto, a complexidade da realidade, os universais
por pensar a realidade, e não por percebê-la. permitem simplificá-la, controlá-la, unificá-
Isso está presente no platonismo, no aris- la, ou seja, torná-la inteligível, por meio de
totelismo, no cartesianismo, no kantismo, uma operação mental (substituindo a per-
no marxismo etc. Assim, o pensamento cepção direta pelo raciocínio, os sentidos
formula os conceitos, ou seja, concebe o real, pela razão).
já que não há como percebê-lo na sua es- Apesar de muitos autores buscarem por
sência (SILVA, 1992, p. 142-143). O conceito um rigor cientificista no direito, mirando
elimina do real as ilusões e as contradições um abandono de elementos metafísicos, os
em que nos insere a percepção. Cria-se o universais são exemplos de como o direito
númeno, o objeto inteligível7. precisa da metafísica. Afinal, já disse Hegel

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(apud ARANTES, 2000, p. 12) que, apesar mas legais implícitas em decisões de casos
de no empirismo se encontrar o princípio concretos.
fundamental de que “o que é verdade deve “Por exemplo, um jurista havia
estar na realidade e conhecer-se por meio resumido várias decisões acerca
da percepção”: do objetivo da lei de furto dizendo
“A ilusão fundamental do empi- que aquele que tomasse um cavalo
rismo consiste em que sempre faz uso emprestado era culpado de furto
das categorias metafísicas de maté- se o levasse para um lugar distinto
ria, força, unidade, multiplicidade, daquele acordado quando o recebeu,
universal etc., e com ditas categorias ou se o levasse para um lugar mais
raciocina, e desse modo pressupõe distante do que o lugar acordado. Q.
e aplica das formas do raciocínio, Mucius Scaevola revisou as mesmas
sem saber que admite um conhe- decisões, além de outras, e alcançou
cimento metafísico; o que equivale uma formulação ao mesmo tempo
a empregar e ligar essas categorias mais ampla e mais precisa: qualquer
sem discernimento crítico e de modo um que recebesse uma coisa em ga-
inconsciente”. rantia e a usasse, ou a recebesse para
Desde Platão e Aristóteles, para os uso e a usasse com outra finalidade
quais a ciência só pode se dar a partir do daquela acordada, é culpado de fur-
universal, a natureza do saber científico to” (BERMAN, 1983, p. 136, tradução
não mudou muito: “o saber científico é nossa).
totalmente um saber abstrato fundado em Ou seja, Scaevola criou um “universal”,
um pensar mediante conceitos” (SARTORI, dentro do qual somaria os elementos sin-
2001, p. 119). gulares.
A lei não trata de indivíduos, trata de O impulso da metafísica, portanto, foi
relações, trata de universais. Como colocou o de abandonar a percepção, por meio das
Nikolas Roos, “a lei não se refere a coisas in- seguintes abordagens epistemológicas: a)
dividuais, mas a relações normativas entre o realismo transcendente de Platão; b) o
seres humanos nas quais coisas materiais realismo imanente de Aristóteles; e c) o no-
possam figurar”. Qual a natureza dessas minalismo de Occam. Platão, por exemplo,
relações? São de uma natureza conceitual. optou por pensar a essência das coisas fora
“Leis e direitos são expressões conceituais delas mesmas. Seu realismo transcendente
de expectativas das pessoas que pleiteiam defende que a idéia de uma realidade em si
posições para que possam dizer aos outros não existe nem na mente do sujeito nem no
o que fazer e o que não fazer”. Ou seja, o objeto a que se refere (o númeno é ante rem).
direito de propriedade é um conceito que O cristianismo, por exemplo, é um arranjo
expressa a expectativa do proprietário, para desse tipo. A idéia de justiça de Platão deri-
que ele possa reivindicar essa posição – a de va disso. Platão, por exemplo, fixou o Bom,
proprietário – perante os outros, dizendo o o Belo e o Vero, em sua A República, como
que os outros podem fazer ou não em rela- pertencentes a uma ordem natural transcen-
ção a ele (entrar, comprar, usar etc.)8. dente. O Justo está ligado a eles. Platão, em
O direito romano passou por esse pro- sua versão sobre a criação do mundo, evoca
cesso de abstração. Mucius Scaevola, jurista no mito de Prometeu a figura de Hermes, o
romano que viveu no último século a.C., enviado por Zeus para ensinar aos homens
por exemplo, tentou amenizar o concretis- a virtude da justiça. Hermes seria uma es-
mo do direito romano com a introdução pécie de “anjo” anunciador da justiça, ou,
de “definições”, como ele as chamava; ou ainda, o portador do elo perdido ou aliança
seja, enunciados precisos acerca de nor- mística com a qual o homem recupera o

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seu natural discernimento do bom, do belo meros conceitos, mas têm existência obje-
e do vero. Ou seja, a Justiça une o tríduo tiva, fora de nossa mente; eles existem no
Bom-Belo-Vero. O que vai contra a justiça, mundo real. Por esse caminho, pode-se
portanto, vai contra tal natureza transcen- dizer que existe uma lei natural, um direito
dente das coisas. Por isso que, em Platão, natural, um direito humano (o númeno está
a justiça tem íntima relação com a vocação; na natureza, está no ser humano). No didá-
ou seja, a sociedade deveria encontrar uma tico ensinamento de Villey (2005, p. 227):
função para os indivíduos de acordo com “O mundo exterior não é apenas
as suas inclinações naturais – se predomi- uma poeira de átomos em desordem,
na a coragem, a armada; se predomina o apenas uma poeira de indivíduos;
prazer, o trabalho; se predomina a ciência, comporta em si mesmo uma ordem,
o governo (ou seja, a justiça dá a cada um classes em que vêm se incluir seres
o que é seu, o lugar exato de cada um). singulares […] e naturezas […]; e
Seria função da lei, portanto, captar essa todo um sistema de relações entre
realidade dada. indivíduos, acima dos indivíduos.
Por sua vez, o realismo imanente de Tudo isso existe em termos objetivos,
Aristóteles defende que o conceito tem em independentemente do intelecto que
si uma realidade objetiva, fora da mente, o descobre nas coisas. Essa é, apresen-
mas é imanente nos objetos singulares de tada de modo grosseiro, a metafísica
que é essência (o númeno é in re). Dessa realista que a nosso ver constitui uma
concepção deriva a noção de direito na- condição para que se tenha podido
tural; ou seja, é possível se descobrir um pretender descobrir um ‘direito’ na
direito na natureza. A idéia de justiça em ‘natureza’”.
Aristóteles já não é transcendente; ele a Occam, por sua vez, negará a qualida-
relaciona com a proporção aritmética em de de coisa, substância, ou seja, de res a
Ética a Nicômaco. Para ele, “o justo é o meio essas relações entre singulares, que são os
entre os dois extremos que se opõem à pro- universais:
porção”. Assim, a lei deve tratar as pessoas “[Occam] sabia fazer uma distin-
como iguais e se preocupar com a diferença ção clara entre as coisas (res) e seus
do dano (a proporção) (ARISTÓTELES, signos: as palavras (como os termos
2005, p. 57-59). Ou seja, a lei deve captar universais) são apenas signos das
essa realidade objetiva dada. coisas, e um raciocínio metódico con-
A idéia básica na filosofia antiga, por- duz à conclusão de que as coisas só
tanto, é que há uma ordem das coisas que podem ser, por definição, “simples”,
independe da vontade humana (physis). isoladas, separadas; ser é ser único e
Isto é, “a idéia da existência de uma ordem distinto; Pedro e Paulo, os indivíduos
jurídica eterna e imutável, independente da são e, na pessoa de Pedro, há apenas
vontade dos poderes constituídos e supe- Pedro, e não alguma outra coisa que
rior a seus comandos” (FERREIRA FILHO, dele se distinga “realmente” ou “for-
2001, p. 28). No nominalismo, por sua vez, em malmente”. O animal ou o homem – e
que ganha destaque Guilherme de Occam, a tampouco a animalidade, a humani-
realidade em si não tem nenhuma existên- dade, não são coisas, não são seres”
cia objetiva, apenas mental ou puramente (VILLEY, 2005, p. 229).
nominal (o númeno é post rem). Em outras palavras, só os indivíduos
Occam dirige uma resposta ao realismo existem; relações entre indivíduos, apreen-
aristotélico, muito em voga na época em didas por meio de nomes gerais (conceitos),
que escreve, o século XIV. Para Aristóteles­ não existem; não são substâncias, não são
(2005), como visto, os universais não são res, são apenas nomes, palavras, vazias de

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conteúdo. Para Occam, prossegue Villey, dem objetiva, independente do homem, e
os universais são apenas signos, termos ele mesmo passa a ser uma representação,
da linguagem, mas que desempenham na uma forma autônoma de se imaginar o real,
nossa lógica uma função particular: servem conforme já colocou Clifford Geertz9.
para “conotarmos” (isto é, para notarmos Os pleitos jurídicos são reais – proble-
juntos) vários fenômenos singulares; ex- mas envolvendo posse, esbulho etc. estão
primem uma semelhança ou uma relação nos tribunais –, mas eles não se referem a
que percebo entre vários seres singulares. nada que exista realmente de forma inde-
Os termos gerais nada são em si mesmos, pendente de nossa mente (o direito em si,
nada exceto um “conhecimento imperfeito escrito na lei). Os direitos em si são constru-
e parcial dos indivíduos”. Portanto, o único ções mentais, mas que provocam efeitos no
conhecimento perfeito, verdadeiramente mundo real, porque as pessoas se compor-
adequado ao real, é o do individual. Só tam com base neles. Ou seja, conforme Roos,
possuem existência real os indivíduos os direitos e deveres, entes abstratos, tornam-
singulares, dos quais nos é dado “um co- se reais, adquirem funcionalidade social, com
nhecimento imediato e intuitivo” (VILLEY, a prática normativa na sociedade.
2005, p. 230). Em resumo, os universais e as A partir daí, passa a ser epistemologi-
relações são apenas instrumentos de pen- camente possível criticar a lei. Aristóteles
samento; no real e na natureza não existe (2005, p. 80), ao falar da insuficiência de
nada acima dos indivíduos, não existe nada uma lei na regulação de certos fatos, asseve-
a não ser aquilo a que se pode conhecer de rava que “o erro não reside nem na lei, nem
forma imediata. no legislador, mas sim na natureza das coi-
Occam antecipa, assim, a primeira regra sas”. Occam permitiu um arranjo epistemo-
metódica de Descartes (2000, p. 49), a da evi- lógico por meio do qual o indivíduo, única
dência: não admitir “algo como verdadeiro realidade possível de apreensão, pode criar
que eu não conhecesse claramente como uma ordem de coisas pela lei (sua vontade
tal”; isto é, o que “eu não tivesse motivo positivada) e definir os rumos da socieda-
algum de duvidar”. Por conseguinte, a evi- de. Esse é o arcabouço epistemológico da
dência é o que salta aos olhos, é o que resiste teoria do contrato social. O direito deixa de
a todos os assaltos da dúvida, é o produto se fundar na physis e passa a se fundar na
do espírito crítico. O método é “racionalis- vontade humana, no nomos.
ta” porque a evidência de que Descartes A teoria do contrato social enxergará
parte não é, de modo algum, a evidência indivíduos e somas de indivíduos, e nada
sensível e empírica (o imediatamente dado além disso. Os direitos do liberalismo
torna-se o não mediado pelos sentidos, clássico são direitos individuais, e não
mas pela razão). No cartesianismo, o ato sociais. O jus (direito) passa a ser quali-
da razão que percebe diretamente os pri- dade inerente ao indivíduo. Na teoria do
meiros princípios é a intuição; a dedução contrato, a realidade imediatamente dada
limita-se a veicular, ao longo das cadeias da são os indivíduos e o conflito. Os primeiros
razão, a evidência intuitiva das “naturezas filósofos contratualistas viram o conflito
simples”, singulares. como dado imediato, evidente à razão (a
Os conceitos no direito antigo repre- primeira regra metódica de Descartes).
sentavam uma ordem natural – seja pelo As teorias do contrato social de Hobbes e
realismo transcendente de Platão, seja pelo Locke nascem com base nesse racionalismo.
imanente de Aristóteles. O direito traduzia O estado de natureza é o resultado de uma
uma ordem dada, imutável, que precisava subtração feita na sociedade civil (como o
ser descoberta. Os conceitos no direito próprio Locke colocou, temos o “estado
moderno deixam de representar uma or- de natureza” quando temos a razão e não

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temos o direito e suas instituições; temos o natural a fim de assegurar sua conserva-
“estado de guerra” quando temos a força ção (Hobbes, Locke). A política moderna,
sem o direito10). Dessas subtrações, Hobbes partindo do indivíduo e do conflito como
e Locke deduzem os direitos em cada esta- o “imediatamente dado”, ou seja, as rea-
do; e da simplicidade vão reconstruindo a lidades evidentes, deixa de ser a maneira
sociedade, voltando à formação do Estado, como indivíduos e grupos combinam seus
mais complexo (segunda e terceira regras interesses e sentimentos, mas, antes, “um
metódicas de Descartes). modo de ser [...] que se opõe a outro modo
Não existe justiça no estado de natureza, de ser” (RANCIÈRE, 1986, p. 368).
só no estado civil, após o consenso entre O direito moderno é todo nominalista:
os indivíduos. O justo torna-se criação do o indivíduo descolado da realidade social
homem; é retirado da natureza. Portanto, – o proprietário, o credor etc. (ou seja,
estes serão os dois focos principais do di- universalizado) – possui e exerce direitos
reito moderno: os indivíduos e os conflitos. e deveres também descolados da realidade
Não por outra razão que o direito positivo social (“direito à propriedade”, “direito à
tenderá a regular o comportamento dos igualdade” etc.) para poder desenvolver
indivíduos em situações de conflito: o livremente suas faculdades naturais11. Esse
indivíduo em papéis jurídicos (é o credor, indivíduo, que na lei é apresentado na forma
o proprietário, o agente criminoso etc.). O de um papel jurídico, seria, portanto, o obje-
Legislativo regulará os comportamentos to do positivismo jurídico do século XIX. Nas
por meio de universais e o Judiciário apli- precisas palavras de Villey (2005, p. 233):
cá-los-á a casos concretos, singularizando- “[...] o esforço da ciência jurídica
os, individualizando-os. A lei abstrata e tenderá doravante [a partir do no-
impessoal traz configurações, relações, minalismo de Occam] a descrever as
universais; o processo judicial torna a lei qualidades jurídicas do indivíduo,
concreta e pessoal, e olha o fato – objetivo, a extensão de suas faculdades, de
pois o que o tribunal enxerga é o imedia- seus direitos individuais. E, quanto
tamente dado, não pode ir além dele (não às normas jurídicas, não podendo
pode julgar extra petita). mais extraí-las da própria ordem que
Daí autores como Bobbio defenderem a antes se acreditava na Natureza, será
impossibilidade epistemológica dos “direi- preciso buscar sua origem exclusi-
tos humanos”, autores esses criticados com vamente nas vontades positivas dos
veemência por outros autores como Luis indivíduos: o positivismo jurídico é
Fernando Barzotto. Mas a razão é simples: filho do nominalismo”.
direitos humanos não são judiciarizáveis. Nesse arranjo, portanto, a sociedade,
A referência a “ser humano” vai além do a iuris societas, torna-se apenas uma ficção
nomos imediatamente dado. Portanto, isso jurídica, uma configuração.12
seria matéria para política pública, e não Simone Goyard-Fabre (2002, p. 6-7) ar-
para o Judiciário. remata toda essa revolução filosófica:
Essa revolução filosófica é fundamental “[...] o que importa de fato é encon-
para a própria concepção da política moder- trar na comunidade dos homens a
na. Como colocou Jacques Rancière, os dois realidade concreta dos indivíduos.
grandes modelos clássicos da razão política [...] os homens, por suas vontades
repousam sobre uma ficção de origem na singulares, se revelam opostos uns
qual a política é uma reunião de indivídu- aos outros e, nessa perspectiva em
os ligados entre si, seja por sociabilidade que se delineia a eventualidade dos
natural (Aristóteles 1991, 2005), seja por conflitos fratricidas dos quais Hobbes
necessidade de superar sua insociabilidade fará a própria substância da condição

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natural dos homens, o individualis- cerne dessa nova perspectiva acerca da
mo começa sua carreira. [...] Occam possibilidade do conhecimento reside, se-
se recusava a reconhecer qualquer gundo Popper, a doutrina de que a verdade
naturalidade e qualquer teleologia é manifesta. De acordo com ela, a verdade
providencial na cidade dos homens: está à disposição, possivelmente velada,
dizia que os homens deviam, eles mas pode ser desvelada por nós.
próprios, instaurá-la e construí-la. [...] “O nascimento da ciência e da tec-
o importante é que a livre decisão da nologia modernas foi inspirado por
vontade dos indivíduos seja o princí- esta epistemologia optimista, cujos
pio de emergência da Cidade”. principais representantes foram Ba-
Estas são, portanto, as criações mo- con e Descartes. Ensinaram eles que
dernas a partir do individualismo e do homem nenhum necessita de recorrer
nominalismo, unindo-se ao contratualismo à autoridade para saber o que é ver-
moderno: o direito como uma criação hu- dadeiro, visto cada um transportar
mana positiva e consciente e os direitos in- em si as fontes do conhecimento – seja
dividuais, questões que não foram tratadas no poder de percepção dos seus sen-
pelos gregos, romanos, judeus ou qualquer tidos, que pode aplicar à cuidadosa
outra civilização antiga. observação da Natureza, seja no seu
poder de intuição intelectual, que
5. Liberdade pode utilizar para distinguir a ver-
dade do erro, recusando-se a aceitar
Com a ascensão da igreja cristã, a filoso- qualquer idéia que não tenha sido
fia é engolida pela teologia. O homem como clara e distintamente percebida pelo
sujeito de conhecimento ficou dependente intelecto” (POPPER, 2003, p. 20)14.
de um ser externo (Deus), pois passou-se a O homem pode conhecer, por isso pode ser
partir do pressuposto de que o homem não livre. Essa é a fórmula que explica, segundo
é capaz de conhecer por si só. A ruptura da Popper, a conexão entre o otimismo episte-
filosofia com a teologia, que começa no Re- mológico e as idéias do liberalismo.
nascimento, no século XVI, completa-se em O mundo se desencanta, para usar
Descartes, no século XVII, com a elaboração expressão de Max Weber, e passa a ser go-
de uma teoria do conhecimento. Nasce a vernado por leis racionais e impessoais que
epistemologia moderna, o estudo dos limites podem ser conhecidas por nossa razão, sem
e do alcance do conhecimento, especialmen- apelo à autoridade ou à tradição. A realidade
te da relação entre sujeito (cognoscente) passa a existir, completa Chauí (1992, p. 350),
e objeto (cognoscido). O homem volta a “sob o modo da representação” (Geertz),
ser capaz de conhecer por si só, e, a partir de isto é, “pelo modo como é apreendida in-
Descartes, o método representa o caminho telectualmente pelas operações do sujeito
mais fácil para se chegar à verdade13. do conhecimento” (Occam).
Segundo Karl Popper (2003, p. 20), o A ponte que vai dessa liberdade episte-
movimento de libertação que teve início mológica apontada por Popper à liberdade
no Renascimento e que conduziu, através contida na lei – ou seja, a lei como liberdade
das vicissitudes da Reforma e das guerras positivada – passa por Occam, Descartes e
religiosas e revolucionárias, às sociedades pela teoria do contrato social.
livres modernas foi um movimento inspi-
rado por um “inigualável optimismo epis- 6. Democracia e liberdade
temológico, por uma visão extremamente
optimista do poder humano de discernir A teoria do contratualismo tinha por
a verdade e adquirir conhecimento”. No objetivo harmonizar a dicotomia entre

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regulação e emancipação – para usar ex- lação entre os cidadãos e os parlamentares
pressões de Boaventura dos Santos –, legi- como um trust16.
timando o Estado (por meio da concepção O segundo princípio do contratualismo
do sistema representativo) e libertando é a idéia de lei como limitadora do poder do
o indivíduo (por meio da concepção de Estado, raiz do liberalismo jurídico.
direitos individuais anteriores ao Estado). Harold Berman (1983) noticia que o pri-
A legitimação desse novo sistema tinha, meiro tratado sistemático sobre a common
portanto, dois fundamentos básicos: a law inglesa foi o “Treatise on the Laws and
representatividade e a lei como limitadora Customs of the Kingdom of England”, escrito
do poder do Estado. por Glanvill, por volta de 1187. O autor faz
Não foi por acaso que a teoria do con- uma distinção, até então inédita, entre lei
trato social surgiu na Inglaterra. A idéia e administração, entre lei real e lei local,
de contrato e representação embutida na feudal ou eclesiástica. Conforme Berman
teoria deriva do instituto inglês do trust, e (1983), é um fato de alto valor político.
a idéia de lei como limitadora do poder do Glanvill colocou a lei real como expressão
governante deriva da formação dos writs do poder real, ao lado de seus exércitos, e
ingleses. como igualmente base de sua autoridade.
A noção de trust, desconhecida do Com a Magna Carta de 1215, desenhava-
direito romano-germânico, é uma noção se a figura de um governo fundado na lex
fundamental do direito inglês. O trust temporalis (e não na lex aeterna) de que falava
apóia-se, de uma forma geral, sobre o se- Agostinho no início da Idade Média. Tal fe-
guinte esquema: uma pessoa, o constituinte nômeno político, de claros efeitos jurídicos,
do trust (settlor of the trust), determina que aconteceu mais cedo na ilha inglesa do que
certos bens serão administrados por um ou no continente europeu.
vários trustees, no interesse de uma ou vá- O governo por meio da lei é evidente na
rias pessoas, os cestuis que trust. Esse acordo Carta Magna. Essa carta política, considerada
é muito freqüente na Inglaterra e serve para por muitos como o embrião das constituições
fins múltiplos de ordem prática: proteção modernas, substantiva um acordo exarado
de incapazes, da mulher casada, fundações entre os barões, a Igreja e a coroa fazendo
e estabelecimentos de utilidade pública, constar que “não se estabelecerá em nosso
direito das sociedades etc. (DAVID, 1996, Reino auxílio nem contribuição alguma,
p. 315-316). contra os posseiros de terras enfeudadas,
Segundo o pensamento inglês, um sem o consentimento do nosso comum Con-
corpo muito numeroso só pode agir como selho do Reino” (art. 14), que as contendas
pessoa por delegação a certas pessoas físicas seriam julgadas em um “lugar fixo” (art. 14),
(trustees), ao poder dos quais devem, por que ninguém seria submetido a julgamento
isso mesmo, ser impostos certos limites com base em acusação não referendada por
(procuração – delegação, limites e prestação testemunhas idôneas (art. 38), que ninguém
de contas). No pensamento francês, o corpo seria preso ou despojado de seus direitos ou
como tal age como se fosse uma pessoa, sem possessões, senão pelo “julgamento legal por
necessidade de delegação. O contrato social seus pares ou pela lei da terra” (art. 39) etc.
idealizado pelos ingleses constituía a teoria Salienta Berman (1983, p. 458, tradução
do corpo político visto como representação; nossa):
o contrato social idealizado pelos franceses “[...] a autoridade legal do rei deriva-
constituía a teoria do corpo político visto va do seu controle sobre um procedi-
como associação (Rousseau)15. John Locke, mento de resolução de conflitos que
por exemplo, em seu “The two treatisies on era mais desenvolvido, mais sofisti-
government”, qualifica expressamente a re- cado e mais racional do que aqueles

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disponíveis em cortes locais e feudais. lei demonstrado nas Constituições resul-
O rei ainda não estava na posição de tantes desses movimentos e dos que mais
legislar sobre muitas normas substan- tarde os prosseguiram é tão grande que os
tivas sobre contrato, propriedade, ilí- juristas vêem nelas um novo tipo de Estado,
citos civis ou criminais, muito menos o estado de direito. Ou seja, o Estado que
sobre questões de direito de família e ‘deve agir sobre o fundamento do Direito e
herança, que estavam sob a exclusiva pela forma do Direito’” (FERREIRA FILHO,
competência da igreja. Mas o rei tinha 2001, p. 10-11).
– pela primeira vez – estabelecido A abordagem de Hans Kelsen em sua
uma corte central de juízes profis- obra A democracia, em relação à iuris societas,
sionais [cortes de Westminster]­ para traduz com precisão a idéia de “sociedade
ouvirem casos por todo o território, regida pelo direito” contida nos liberais
casos iniciados com writs ajuizados clássicos. Kelsen (1993) se pergunta, no
por seu chanceler”. início da obra, quem é o “povo” hoje. Se-
Daí Glanvill concentrar seu livro no gundo ele, o “povo” é, simplesmente, “um
direito adjetivo, no processo, especialmente sistema de atos individuais, determinados
nos writs, e não no direito substantivo. Ao pela ordem jurídica do Estado” (KELSEN,
definir tipos específicos de remedies para 1993, p. 36).
tipos específicos de ilícitos, ele criou uma Assim, Kelsen (1993) reconhece a exis-
“revolução na ciência jurídica”. A ênfase tência de dois povos: o que cria a norma
no processo não é importante apenas como geral e abstrata (por meio da intermediação
expressão do poder real, mas também como parlamentar – seja ela vista como represen-
uma limitação ao poder real. O rei alargou tação ou associação) – constituído pelos
expressivamente sua jurisdição contra as titulares de direitos políticos – e o que é
jurisdições locais e eclesiásticas, mas as objeto dessas normas, submetido à ordem
condições para essa expansão estavam estatal. Há, portanto, dois momentos: o da
expressamente definidas, e elas serviriam participação na formação da vontade geral
como limitações: a categorização dos tipos e o da submissão à vontade geral formada.
de remédios processuais (writs) definia a No primeiro momento, o momento políti-
jurisdição real. Assim, o processo judicial co, não haveria unidade, pois nem todos
era forma de domesticação do exercício do votam e nem todos votam com a maioria
poder – o que, na Era Moderna, equivaleria vencedora (regra majoritária). No segundo
à idéia político-jurídica de prevalência da momento, no entanto, todos estão subme-
razão sobre a autoridade. tidos à mesma ordem estatal constituída,
A teoria do contrato social alarga essa idéia tenham ou não contribuído para ela.
e identifica na lei constitucional – no pacto No âmbito dessa unidade jurídica do
que constitui o Estado – a limitação ao poder povo, a ordem estatal abrange apenas ma-
desse mesmo Estado. O poder e a autoridade nifestações muito específicas da vida do
cedem ao direito, formado por meio das indivíduo. É o que positiva, por exemplo,
vontades dos indivíduos que compõem a o inciso II do art. 5o da Constituição Federal
iuris societas. brasileira: “ninguém será obrigado a fazer
Manoel Gonçalves Ferreira Filho (2001) ou deixar de fazer alguma coisa senão em
complementa esse raciocínio ao dizer que virtude de lei”. Essa idéia-base está em
“os regimes constitucionais pluralistas, Montesquieu. Lógica bastante diferente da
na verdade, nasceram da preocupação de do direito antigo, segundo a qual aquilo
instaurar ‘o governo de leis e não de ho- que a lei não ordena ela proíbe, conforme
mens’, intuito bem claro nas Revoluções anunciado por Aristóteles (2005, p. 82).
Francesa e Norte-Americana. O apego à Ou seja, o Estado só interfere na vida das

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pessoas se há lei legitimando a interfe- e individual ainda estava intrinsecamente
rência. O que não é objeto de lei está fora relacionada à idéia de liberdade negativa, e a
da esfera de controle do Estado17. Apenas liberdade positiva era vista na forma de um
alguns atos individuais são protegidos e direito mais amplo, sobre-subjetivo. Isso fica
ordenados pela ordem estatal; ou seja, há claro num texto escrito em 1885 por Prévost-
estreita ligação entre poder (do Estado) e Paradol, que chama de “direito nacional” o
vínculo normativo. direito de decisão do povo acerca das políticas
Esse vínculo normativo é o que o libe- externa e interna por meio do Parlamento18.
ralismo clássico chama de liberdade. É ele Portanto, o povo possui uma mar-
que equaciona a relação entre iuris societas gem de liberdade não apenas quando
e Estado. Trata-se da liberdade referida por não é objeto de poder (o que não seria, a
Locke, Montesquieu e Kant: liberdade é a rigor,“liberdade”, pois essa situação é verifi-
liberdade de agir segundo leis, o que pode apre- cável em qualquer regime, seja democrático
sentar um sentido positivo e um negativo. ou autocrático), mas também quando é obje-
Muitos autores, como Isaiah Berlin, Giovanni to de poder (característica essa, conforme a
­Sartori, Michelangelo Bovero, entre outros, tradição liberal clássica, que define os regi-
traduzem essas duas perspectivas por meio mes constitucionalistas liberais, dos quais a
das conhecidas expressões “liberdade po- democracia liberal é uma derivação).
sitiva” e “liberdade negativa”. Na precisa A idéia de liberdade individual clássica
abordagem de Berlin, a idéia de liberdade se formou independentemente da idéia de
positiva significa que eu sigo as regras que eu democracia. A unanimidade do contrato so-
mesmo pactuei para ser livre (a formação do cial formado, que funda o Estado Moderno
“direito consciente” por meio do parlamento, na ideologia liberal, choca-se com o prin-
conforme Kelsen). E a idéia de liberdade nega- cípio majoritário do parlamentarismo e da
tiva significa dizer que “há fronteiras dentro democracia. Kelsen identifica um conflito
das quais os homens são invioláveis”, que entre vontade do indivíduo e vontade ge-
impedem, de forma absoluta, a imposição ral, a qual se apresenta ao indivíduo como
da vontade do Estado ou da de um homem vontade alheia, pois gesta a ordem estatal
sobre outro. Disso resulta o princípio básico a partir do princípio da maioria, e não do
já citado, conforme Berlin (2002, p. 267): “ne- consenso, este último, sim, origem do con-
nhum poder pode ser considerado absoluto, trato social no liberalismo clássico (pacto de
apenas os direitos o podem”. Essa é a caracte- consentimento de Locke). Kelsen defende
rística fundamental da iuris societas moderna. que a “vontade geral” (volonté générale) de
Kelsen traduz essa abordagem afirmando Rousseau (expressão que indica a ordem
que a unicidade do povo é jurídica. estatal objetiva, válida independentemente
O Estado Moderno é fundado sobre a da vontade dos indivíduos) é absolutamente
idéia de liberdade negativa. A liberdade ne- incompatível com a teoria do contrato social,
gativa é a liberdade do liberalismo clássico, o qual é uma função da vontade de todos
segundo o conceito de Thomas Hobbes, ou (volonté de tous). Para ele: “[...] mesmo que
seja, é a ausência de impedimentos externos. a vontade geral seja realizada diretamente
Assim, conforme Matteuci (1993, p. 257), “a pelo povo, o indivíduo é livre só por um
liberdade positiva de participar na formação momento, isto é, durante a votação, mas
da vontade do Estado exige, como condição apenas se votou com a maioria e não com a
necessária, a liberdade negativa, isto é, que minoria vencida” (KELSEN, 1993, p. 29).
o Estado não tolha os direitos da liberdade Como já antecipado, a forma que o
de expressão, da liberdade de imprensa, liberalismo encontrou para defender a li-
de associação, de religião, etc.”. No final berdade foi o constitucionalismo. Segundo
do século XIX, a idéia de direito subjetivo ­Montesquieu (1995, p. 186):

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“Para que não se possa abusar do a conjunção dos aspectos fundamentais
poder é preciso que, pela disposição dessas duas liberdades que se funda a
das coisas, o poder freie o poder. Uma noção comum de democracia (“liberal-de-
constituição pode ser de tal modo que mocracia”). Aqui Bovero adotou o critério
ninguém será constrangido a fazer de complementariedade já abordado por
coisas que a lei não obriga e a não Matteuci19, para quem a liberdade negativa
fazer as que a lei permite”. sustenta e apóia a liberdade positiva, idéia
Montesquieu defende em sua obra uma também presente em Habermas, e chegou
monarquia constitucional. Montesquieu (1995, mesmo a dizer que melhor seria nomear a
p. 186, grifo nosso) é bem claro ao se posicionar “liberdade positiva” de “autonomia”, por
contra a democracia, apesar de ter em mente, ela não indicar propriamente uma condição
quando escreve, a democracia ­direta: de liberdade, mas uma forma de poder,
“É verdade que nas democracias reservando a palavra “liberdade” para a
o povo pode fazer o que quer; mas idéia de “liberdade negativa” (BOVERO,
liberdade política não consiste nisso. 2002, p. 81). Kelsen, tomando outro cami-
Num Estado, isto é, numa sociedade nho, preconiza que não se trata de uma
em que há leis, a liberdade não pode distinção histórico-etnográfica20: para ele,
consistir senão em poder fazer o que se ocorreu uma “transformação semântica”
deve querer e em não ser constrangido na noção de liberdade, ou seja, a liberdade
a fazer o que não se deve desejar”. da democracia é fruto da transformação da
Trata-se do problema da vontade racional. liberdade negativa em liberdade positiva
Mais especificamente do controle da von- (“a passagem da forma germânica à cha-
tade irracional. Não por outra razão que mada forma antiga”). Mas não pára aí. Esse
a principal preocupação de Montesquieu seria o primeiro estágio de transformação;
(1995, p. 193-194) era neutralizar o poder, o segundo seria a substituição da primazia
e não separar o poder. do indivíduo pela primazia da coletividade.
“Eis, assim, a constituição funda- Essa substituição seria própria da ideologia
mental do governo de que falamos. O democrática. Portanto, para ele, na democra-
corpo legislativo, sendo composto de cia, a liberdade do indivíduo é “irrealizável”.
duas partes, uma paralisará a outra Daí se falar em liberdade da coletividade:
por sua mútua faculdade de impedir. “[...] o indivíduo que cria a ordem do Estado,
Todas as duas serão paralisadas pelo organicamente unido a outros indivíduos,
poder executivo que o será, por sua é livre justamente nos laços dessa união, e
vez, pelo poder legislativo”. apenas nela” (KELSEN, 1993, p. 33).
O foco inicial eram as monarquias cons-
titucionais, em oposição ao absolutismo do 7. Conclusão
Antigo Regime.
Para justificar a união democracia e libe- O processo histórico que gera o direito
ralismo (ou seja, a formação das democra- individual e o identifica com a liberdade
cias liberais), Kelsen recorreu à tese da “me- passa pelas revoluções filosóficas da re-
tamorfose da idéia de liberdade”. Kelsen denção da vontade, do individualismo, do
vai além das abordagens de Michelangelo­ nominalismo e da emancipação epistemo-
Bovero e Isaiah Berlin, que separam duas lógica, revoluções que, por sua vez, passam
idéias de liberdade (liberdade negativa e pelo cristianismo, por Occam e Descartes e
liberdade positiva), que apresentariam uma pela teoria do contrato social de Locke. A re-
oposição lógica entre si, para defender que presentação defendida pelo liberalismo clás-
o ideal democrático exige uma liberdade sico era uma representação censitária, que
transformada. Bovero defendeu que é sobre poderia filtrar a racionalidade da vontade

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geral. Stuart Mill chega até a defender uma todos os cidadãos ou a forma na qual tal poder está
representação intelectual, preconizando nas mãos da parte pobre e não-nobre da população
(que era a verdadeira “maioria”, segundo Aristóteles).
que, diante da polarização entre dois gran- Aristóteles (1991, p. 94), por exemplo, usa o termo num
des blocos – o dos proprietários e o dos tra- sentido negativo, qualificando a democracia como a
balhadores assalariados –, o fiel da balança degeneração da ­república ou politéia.
deveria ser um terceiro grupo, as elites cultu- 2
Os “cidadãos” eram os homens gregos livres de
rais, com o peso de seu voto sendo superior nascimento (não-escravos) (BOVERO, 2002, p. 16).
3
“O homem é, por sua natureza [...], um animal
a 1. A democracia propriamente dita é um feito para a sociedade civil” (ARISTÓTELES, 1991,
elemento estranho a todo esse processo, só p. 45).
tendo sido incorporada no século XIX, com 4
Locke (2000, p. 97) o anunciou implicitamente
o alargamento do sufrágio e a multiplicação ao dizer que o pacto não seria pacto se o indivíduo
dos órgãos representativos. “ficasse livre e sob nenhum outro vínculo senão aquele
em que se achava no estado de natureza”.
A tensão epistemológica que existe 5
“Num Estado, isto é, numa sociedade onde há
entre a concepção de democracia e a de leis, a liberdade não pode consistir senão em poder
direito individual como “liberdade contra fazer o que se deve querer e em não ser constrangido
o Estado”, para usar expressão de Dworkin, a fazer o que não se deve desejar” (MONTESQUIEU,
pode ser hoje sentida nas constituições con- 1995, p. 186).
6
John Rawls (2002) traz uma abordagem muito
temporâneas. Numa Constituição como a semelhante, provavelmente inspirada em Rousseau.
brasileira, têm-se, de um lado, os direitos O “consenso sobreposto” de Rawls está próximo da
individuais (art. 5o), que representam a tra- “vontade geral” de Rousseau. Rawls (2002) espera
dicional tutela das liberdades individuais que os cidadãos julguem os valores políticos como
(liberdade pessoal, política e econômica), prioritários em relação a quaisquer outros valores
não-políticos que possam conflitar com eles e que o
em que vige a liberdade negativa clássica, debate na esfera pública se limite ao âmbito do político
e, do outro lado, os direitos sociais (art. 7o a (sem a influência conflitiva de doutrinas particulares
11), que representam direitos de participa- e sem a concorrência de concepções políticas de
ção no poder político e na distribuição da justiça que não a consensuada). Em outras palavras,
riqueza social produzida. De um lado, um “[...] fica excluído qualquer conhecimento que tenda
a causar distorções e preconceitos, ou a colocar os
Estado que não deve intervir; do outro, um homens uns contra os outros” (RAWLS, 2002, p. 217).
Estado paternalista e intervencionista. Nas Manoel Gonçalves Ferreira Filho (2001, p. 10) traz uma
palavras de Gozzi (1993, p. 401), “a forma contribuição complementar: “Ora, como regular essa
do Estado oscila, assim, entre a liberdade e a competição [entre indivíduos, grupos, a guerra de
participação”. É o conflito irresolúvel entre todos contra todos] sem privilegiar uns em detrimento
de outros, a não ser mediante normas gerais e impesso-
liberdade positiva e liberdade negativa, já ais? Igualmente, o respeito aos direitos fundamentais
preconizado por Isaiah Berlin. do homem supõe a sua definição e sua limitação por
Daí Kelsen preferir uma nova concepção normas gerais e impessoais, pois, de outra forma, se
de liberdade, para que o liberalismo possa, quebraria a igualdade, e, assim, se desrespeitaria o
epistemologicamente, receber a democracia primeiro desses mesmos direitos”.
7
“O termo ‘númeno’ (mais propriamente ‘nóu-
e as demandas populares. Não por outra menon’) significa “o que é pensado”. [...] Como ‘ser
razão que Gozzi escreveu que o “Estado pensado’ é entendido aqui como “o que é pensado
Social”, regido pela “liberdade da coletivi- pela razão” (ou pela intuição intelectual), geralmente
dade” referida por Kelsen, é a emergência se equipara o ‘númeno’ a ‘o inteligível’. O mundo dos
da crise do constitucionalismo liberal. númenos é, assim, o mundus intelligibilis, contraposto,
desde Platão, ao mundus sensibilis, ao mundo dos
fenômenos” (MORA, 2001, p. 2119).
8
“Law does not refer to a single class of individual
Notas things, but to normative relations between human
Os próprios gregos costumavam se referir a duas
1
beings in which material things may also figure.
realidades diferentes por meio do nome ­demokratia: ­However, what is the nature of these relations? They
a forma de comunidade política em que o poder are of a conceptual nature themselves. Laws and rights
de decisão política está nas mãos da assembléia de are conceptual expressions of expectations of people

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who claim to be in a position to tell others what to for claro e distinto, isto é, o que “eu não tivesse motivo
do and what not to do. These claims can be more or algum de duvidar”. Por conseguinte, a evidência é o
less realistic if treated as predictions about human que salta aos olhos, apesar de todos os esforços, é o
behaviour, but they do not refer to anything existing que resiste a todos os assaltos da dúvida, apesar de
independently from human imagination, even though todos os resíduos, o produto do espírito crítico; 2) A
they can become ‘real’ in a sense because people often segunda é a regra da análise: “repartir cada uma das
act on these imaginations. Applying Occam´s razor dificuldades [...] em tantas parcelas quantas fossem
it would seem that we can understand normative possíveis”; 3) A terceira é a regra da síntese: “conduzir
language and expectations perfectly well without por ordem meus pensamentos, iniciando pelos objetos
the assumption that societies or norms have a meta- mais simples e mais fáceis de conhecer, para elevar-
physical existence, an existence that is independent me, pouco a pouco, como galgando degraus, até o
of our collective imaginations, however ‘real’ these conhecimento dos mais compostos”; 4) A última é a
imaginations may work out in social practice. There- revisão, para que estivesse certo de nada ter omitido
fore, the statement that law represents a social reality (DESCARTES, 2000, p. 49-50).
but not a metaphysical reality, is not a contradiction. 14
O método cartesiano tornou-se muito célebre,
Occam would not have denied that we have ideas, he pois os séculos posteriores viram nele uma manifes-
would only deny that they have an existence which is tação do livre exame e do racionalismo: ele afirma
independent of our thinking. It is also no implication a independência da razão e a rejeição de qualquer
of the nominalist view that rights are somehow less tradição e autoridade. Por essa razão, os filósofos do
important for us because they are metaphysically século XVIII estenderiam esse método a domínios de
unreal” (ROOS, 1996, p. 161-212). que Descartes, importante ressaltar, o excluiu expres-
9
“The rendering of fact so that lawyers can plead samente, como o político.
it, judges can hear it, and juries can settle it is just that, 15
“Em uma palavra, em vez de voltar nossas for-
a rendering: as any other trade, science, cult, or art, ças contra nós mesmos, reunamo-las em um poder
law, which is a bit of all of these, propounds the world supremo que nos governe segundo leis sábias, que
in which its descriptions make sense. […] the point proteja e defenda todos os membros da associação,
here is that the ‘law’ side of things is not a bounded repila os inimigos comuns e nos mantenha em uma
set of norms, rules, principles, values, or whatever eterna concórdia” (ROUSSEAU, 1989, p. 99).
from which jural responses to distilled events can be 16
“Here, it is like, the common question will be
drawn, but part of a distinctive manner of imagining made, Who shall be judge, whether the prince or
the real” (GEERTZ, 2000, p. 173). legislative act contrary to their trust? This, perhaps,
10
“Men living together according to reason, ill-affected and factious men may spread amongst the
without­ a common superior on earth, with authority people, when the prince only makes use of his due
to judge between them, is properly the state of natu- prerogative. To this I reply, The people shall be judge;
re. But force, or a declared design of force, upon the for who shall be judge whether his trustee or deputy
person of another, where there is no common superior acts well, and according to the trust reposed in him,
on earth to appeal to for relief, is the state of war: and but he who deputes him, and must, by having deputed
it is the want of such an appeal gives a man the right him, have still a power to discard him, when he fails
of war even against an aggressor, tho’ he be in society in his trust? If this be reasonable in particular cases
and a fellow subject. […] Want of a common judge of private men, why should it be otherwise in that of
with authority, puts all men in a state of nature: force the greatest moment, where the welfare of millions is
without right, upon a man’s person, makes a state of concerned, and also where the evil, if not prevented,
war, both where there is, and is not, a common judge” is greater, and the redress very difficult, dear, and
(LOCKE, 2007). dangerous?” (LOCKE, 2007).
11
Amartya Sem (2000, p. 72-108) propôs reverter 17
“Nenhum poder público foi alguma vez tão pe-
essa lógica nominalista ao exigir, para a obtenção da netrante que tivesse conseguido regular todos aqueles
verdadeira liberdade, uma combinação entre direitos modelos de comparticipação, divisão e troca que dão
e capacidade de gozo. forma a uma sociedade. As coisas escapam ao domínio
12
Como precisamente colocou Dumont (1985, do Estado; concebem-se novos modelos tais como redes
p. 23): “[...] o nominalismo, que confere realidade aos familiares, mercados negros, alianças burocráticas e
indivíduos e não às relações, aos elementos e não aos organizações políticas e religiosas clandestinas. As
conjuntos, é muito forte entre nós”. autoridades públicas podem obrigar ao pagamento de
13
Descartes (2000) queria estabelecer um método impostos, recrutar, atribuir, regular, nomear, recom-
universal, inspirado no rigor matemático e em suas pensar ou punir, mas não podem controlar os bens
“longas cadeias de razão”: 1) A primeira regra é a evi- todos nem fazer-se substituir pelos outros agentes de
dência: não admitir “algo como verdadeiro que eu não distribuição [de bens]” (WALZER, 1999, p. 22).
conhecesse claramente como tal”. Em outras palavras, 18
Ao falar sobre a Inglaterra, Padarol (2003, p. 94-95)
evitar toda precipitação e só ter por verdadeiro o que escreve: “Duas espécies de direito existem hoje lá e se

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aplicam sem ser contestados por ninguém: o primeiro, DUMONT, Louis. O individualismo: uma ­perspectiva
que eu denominaria naturalmente de direito pessoal, antropológica da ideologia moderna. Rio de Janeiro:
consiste em que cada inglês tem sólidas e numerosas Rocco, 1985.
garantias de não ser lesado pelo poder, nem em seus
DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São
bens e nem em sua pessoa; o segundo, que merece o
Paulo: M. Fontes, 2002.
nome de direito nacional, consiste em que o povo inglês
decida soberanamente, por meio do seu Parlamento e FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Do processo
dos ministros que dele dependem, da política externa legislativo. São Paulo: Saraiva, 2001.
e interna de seu país”.
19
“[...] a liberdade positiva de participar na for- FÜHRER, Maximiliano Roberto E. História do direito
mação da vontade do Estado exige, como condição penal. São Paulo: Malheiros, 2005.
necessária, a liberdade negativa, isto é, que o Estado GEERTZ, Clifford. Local knowledge. 2. ed. New York:
não tolha os direitos da liberdade de expressão, da Basic Books, 2000.
liberdade de imprensa, de associação, de religião, etc.”
(MATTEUCI, 1993, p. 257). GOYARD-FABRE, Simone. Os princípios filosóficos do
20
Kelsen (1993, p. 28-29) chama a liberdade positi- direito político moderno. São Paulo: M. Fontes, 2002.
va de “liberdade antiga” (como Benjamin Constant) e GOZZI, Gustavo. Estado contemporâneo. In: BOBBIO,
a liberdade negativa (que é a “ liberdade dos moder- Norberto et al (Org.). Dicionário de política. 5. ed.
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