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Tarcízio José de Freitas Carvalho Produção Editorial
Valdeci da Silva Santos Tradução
Augustus Nicodemus Lopes
M inka Schalkwijk Lopes
Revisão
Vagner Barbosa
Claudete Água
Filipe Delage
Editoração
Lidia de Oliveira D utra
Capa
Leia Design
R5435v Ridderbos, Herman
A vinda do reino/ Herman Ridderbos; tradução de Augustus Nicodemus Lopes e
M inka Schalkwijk Lopes. _São Paulo: Cultura Cristã, 2010
432 p.
IS B N 9 7 8 - 8 5 - 7 6 2 2 - 3 4 1 - 2
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II. O caráter geral do reino dos céus (João Batista e Jesus).......... ..................35
4. Teocêntrico................................................................................................... 35
5. Dinâmico..................................................................................................... 40
6. Messiânico................................................................................................... 42
7. Futuro...........................................................................................................48
8. Presente........................................................................................................ 56
N otas.................................................................................................................... 379
índice de assuntos.............................................................................................. 430
P re fá c io a e d iç ã o a m e r ic a n a
o Dr. Ridderbos concentra sua atenção na vinda do reino como proclamada pelo
próprio Jesus, de acordo com o testemunho dos Evangelhos sinóticos. Das palavras
e obras de Cristo, aprendemos o pleno alcance e significado do reino. Em resumo,
descobrimos que o reino veio na redenção realizada por Cristo, cuja realidade e
poder salvador, como anunciados no evangelho, são experimentados pela fé por
meio da união com Cristo. No entanto, a plena e final realização do reino ainda
aguarda a volta triunfal de Cristo em poder e glória nas nuvens do céu.
A apresentação que o Dr. Ridderbos faz do reino é completa e abrangente
e leva em conta uma ampla variedade de interpretações influentes e variadas,
inclusive as da erudição crítica. Além disso, sua exegese é magistral e satisfatória
na medida em que ele repetidamente organiza poderosos e irrefutáveis argumentos
para refutar pontos de vista equivocados ao mesmo tempo em que estabelece a
validade de suas conclusões.
Todos os leitores tirarão proveito do estudo do conteúdo deste livro e
certamente obterão uma melhor compreensão da natureza do reino, de seus
aspectos cumpridos e de sua presença no mundo como resultado da primeira
vinda de Cristo, juntamente com sua consumação ainda futura, a ser realizada
em sua segunda vinda.
Raymond O. Zorn
Fawn Grove, Pa.
In tro d u çã o
O tema central da mensagem de Jesus, como ela chegou até nós nos Evan
gelhos sinóticos, consiste na vinda do reino de Deus ou, como Mateus geralmente
o expressa, do reino dos céus. Isso não é devido apenas à ocorrência freqüente
dessa fórmula nos três primeiros Evangelhos, a qual os distingue da tradição de
João no que diz respeito à sua forma e maneira de expressão; ela aparece também
da caracterização recapitulativa da pregação de Jesus, que eles fazem em diversas
passagens.
Jesus começou o seu ministério com a pregação do evangelho de Deus, di
zendo: “O tempo está cumprido, e o reino de Deus está próximo; arrependei-vos
e crede no evangelho”. E desse modo que Marcos 1.14-15 inicia a descrição da
vinda de Jesus e de sua atividade na Galileia. Em Mateus e Lucas, encontramos
a mesma passagem em palavras diferentes (cf. M t 4.17, 23; 9.35; Lc 9.11). Em
Lucas 4.43, nos é dito, nas próprias palavras de Jesus, que o propósito de sua
missão estava na pregação do reino de Deus. A palavra de Deus que ele pregou
(Lc 8.11) é, portanto, também chamada de “a palavra do reino” (M t 13.19); e
o evangelho que resume por inteiro o kerygma do Novo Testamento (Lc 4.43;
8.1; 16.16) tem como conteúdo o reino de Deus e a sua vinda. Portanto, pode-se
dizer acertadamente que a pregação de Jesus e de seus apóstolos, como um todo,
tinha a ver com o reino de Deus1 e que, na proclamação do reino feita por Jesus
Cristo, estamos frente a frente com essa forma específica de expressão pela qual
ele nos deu a totalidade de sua revelação de Deus.2
Essas observações preliminares mostram que, para se obter uma percepção
do sentido e do caráter da revelação que o Novo Testamento faz de Deus, dificil
mente se poderia mencionar um tema que tivesse a mesma importância que este
do reino dos céus. Devemos, ainda, acrescentar que dificilmente qualquer outro
tema na área de pesquisa no Novo Testamento tem provocado uma variedade
maior de opiniões ou provocado controvérsias tão ferozes. Essas controvérsias
têm ocorrido especialmente nos últimos cinqüenta anos.” O estudo do confronto
dessas opiniões divergentes traz o grande risco de envolver o estudioso em todo
tipo de problemas que, aparentemente, foram introduzidos mais tarde, no evan
gelho, a partir do pensamento do mundo moderno, os quais não conduzem a
10 A v in d a d o R e in o
Se Jesus viveu na expectativa de que o fim estava próximo, a história de sua vida
deve ter sido dominada por essa expectativa. Assim, Schweitzer chega a uma
descrição inteiramente nova e parcialmente fantástica da vida de Jesus. Em seu
livro Das Messianitãts— und Leidensgeheimnis [A messianidade e o segredo do
sofrimento]6 e especialmente em sua obra volumosa Vom Reimarus zu Wrede [De
Reimarus a Wrede],7 (publicada mais tarde sob o título Die Geschichte der Leben-
Jesu-Forschung [A história da pesquisa da vida de Jesus]),8 Schweitzer fornece
uma análise brilhante dos esforços feitos pela teologia desde o Iluminismo para
se chegar a uma visão consistente da vida de Jesus.
Schweitzer mostra claramente o quanto toda a história da exegese havia
sido determinada não pela objetividade histórica, mas pelo preconceito teológico
subjetivo. Ele critica especialmente o retrato liberal de Jesus, aceito durante muito
tempo por um grande número de teólogos da escola moderna. O professor de
Schweitzer, H. J. Holtzmann, o maior representante da escola liberal, foi um dos
autores desse retrato liberal. Schweitzer simpatiza mais com figuras da história
da pesquisa do Novo Testamento tais como Reimarus, Strauss e Bruno Bauer,
os quais, em sua opinião, descreveram a vida de Jesus de uma maneira comple
tamente livre de todas as premissas dogmáticas. Ele mostra que foram especial
mente esses radicais que perceberam que Jesus viveu numa tensão escatológica, a
qual, de acordo com Schweitzer, já havia sido indicada no livro de Weiss sobre a
pregação de Jesus a respeito do reino. Portanto, na tradição desses predecessores,
Schweitzer tenta descrever a vida de Jesus como uma vida inteiramente dominada
pelo dogma escatológico.9
A reconstrução escatológica consistente que Schweitzer fez da vida de Jesus
não encontrou muito apoio. Apesar disso, essa perspectiva tem permanecido como
característica da posição teológica de tendência escatológica. Por um lado, tinha
como objetivo protestar contra a humanização e eticização do evangelho e contra
a distorção conseqüente do retrato de Jesus encontrado nos Evangelhos. Por ou
tro lado, esse movimento lutou pelo que considerava uma retificação puramente
histórica. Esses autores, que viam a vinda do reino mencionada no evangelho
exclusivamente como o início da grande catástrofe final, somente podiam afirmar
isso se considerassem que a pregação de Jesus acerca da proximidade do reino
era o resultado de uma ilusão. Assim, foram forçados a basear a imitação ética de
Jesus - a qual havia fascinado especialmente Schweitzer, que a qualificou como “a
entrega heróica da vida” - em algo diferente da sua expectativa escatológica. Eis
o motivo pelo qual tanto Weiss como Schweitzer recorreram a uma perspectiva
idealista moderna para suas respectivas teologia e cosmovisão.10 Assim, a obra
deles não resultou numa nova teologia fundamentada no evangelho. Ela somente
frustrava os esforços anteriormente empreendidos de se estabelecer uma ligação
entre o evangelho e a concepção teológica corrente.
In t r o d u ç ã o 13
das condições da época na qual ele viveu. O interesse de Jesus não estava nesses
elementos da sua mensagem. O conceito de um reino de Deus interior, presente
na alma dos homens, deve ser considerado como tendo origem na própria pos
sessão espiritual de Jesus. Devemos, portanto, abstrair esse “elemento essencial”
do seu ambiente contemporâneo e nos lembrar que o reino de Deus não se
preocupa com “principados e potestades, nem com demônios e anjos, mas com
Deus e a alma, com a alma e seu Deus”.12 Desse modo, Harnack reconstruiu os
traços escatológicos da pregação de Jesus e continuou a recorrer ao evangelho
como base da sua teologia racional-moral. E verdade que ele não colocou tanta
ênfase no elemento social como Ritschil havia feito em sua concepção do reino
de Deus, mas encontrou o elemento dominante da pregação de Jesus no valor
individual da alma humana.
Dessa maneira, e de outras semelhantes, a teologia liberal, antes da Primeira
Guerra Mundial, tentou manter como elemento apropriado e duradouro aquele
que era considerado o objetivo espiritual da pregação de Jesus, em que pese o
fato de que reconhecia historicamente a “escatologia do evangelho”. Por outro
lado, descartou tanto quanto foi possível os elementos cósmicos e escatológicos
endgeschichtlische (histórico-final), considerando-os não essenciais.13 A teologia
liberal adotou uma posição muito forte especialmente com respeito à interpretação
escatológica dos mandamentos de Jesus. Em conseqüência das pesadas críticas
que foram feitas à explicação escatológica do reino de Deus, até mesmo Weiss foi
obrigado a declarar na segunda edição da sua obra que nem tudo da pregação de
Jesus era controlado pela sua expectativa escatológica, e que nem todos os seus
mandamentos poderiam ser interpretados como “mandamentos de crise”. Ele
admitiu, por exemplo, que o mandamento duplo do amor não somente era válido
para épocas excepcionais antes da vinda do reino, mas que era um mandamento
para todas as épocas, que havia sido dado com essa intenção. Dessa maneira, Weiss
separou grandes porções da religião de Jesus e de sua pregação ética do conceito
do reino de Deus, dando origem a um dualismo no conteúdo do evangelho que
é difícil de explicar. Por um lado, esse dualismo contém a pregação do evangelho,
isto é, o evangelho da crise, e, por outro lado, espera-se que nele seja achada uma
fé perfeita não escatológica, que não tem nada a ver com a pregação do reino.
Essa visão dualista do evangelho14foi rejeitada enfaticamente pelos defensores da
interpretação escatológica consistente,15 mas encontrou muitos defensores, como
transparece dos escritos do conhecido H . Windisch, como, por exemplo, o que ele
escreve sobre o Sermão do Monte. Windisch faz distinção entre duas correntes
na pregação sinóptica de Jesus, isto é, a proclamação profético-escatológica da
salvação e do julgamento e um ensino de sabedoria radicalmente purificado.16
Todas essas perspectivas têm contribuído para diminuir a autoridade da inter
pretação escatológica da pregação de Jesus e têm tornado cada vez mais claro que
In tro d u çã o 15
o assim chamado motivo da crise não poderia ter sido o motivo dominante que
pudesse levar os estudiosos a uma compreensão correta do objetivo do evangelho
original. Tem se tomado mais e mais manifesto que os mandamentos de Jesus,
especialmente, formam um obstáculo intransponível para qualquer interpretação
escatológica consistente da pregação do reino dos céus.
Por outro lado, se o reino dos céus tinha um sentido primário escatológico,
deve se tornar cada vez mais claro que esse sentido dificilmente poderia servir
como uma “estrutura” ou “casca” para a concepção ética liberal do evangelho.
E notável como essa verdade subitamente parece ter raiado sobre um círculo
cada vez maior de pessoas e como a “escatologia do reino de Deus” se tornou
repentinamente o ponto focal de interesse. Dessa vez, foi discutida como uma
realidade, realidade essa encarada não somente com respeito ao seu aspecto his-
tórico-exegético, mas também no sentido inteiramente teológico.17 Foi somente
assim que a estrutura da teologia liberal entrou em colapso. Apesar de todas as
pesquisas histórico-exegéticas de seus próprios defensores, ela não tinha sido
capaz de manter o seu otimismo e a sua concepção ética do reino de Deus.
Porém, agora, ela teria que ceder lugar à teologia da crise, que, aparentemente,
iniciou-se diretamente do evangelho. Porventura a pesquisa histórica não tinha
estabelecido que a pregação de Jesus sobre o reino também submetia todos os
dados humanos ao julgamento radical da intervenção de Deus que estava tão
próxima, às portas?
Apesar de tudo, é claro que esse novo desenvolvimento do pensamento
escatológico estava destinado a encontrar um sério obstáculo no próprio evan
gelho. Weiss e Schweitzer tinham tentado mostrar que toda a pregação de Jesus
era baseada na convicção de uma catástrofe final que se aproximava e que era
a origem de sua consciência fundamental de crise. M as segue-se que qualquer
estudioso que desejar orientar sua teologia por essa concepção do reino de Deus
será confrontado com a tarefa inevitável de responder ao que Schweitzer, com um
senso inexorável de realidade, repetidamente chamou de “a demora à^farousia .
Não é de admirar que tenha começado a ficar evidente a necessidade de uma
nova concepção escatológica para a manutenção da interpretação escatológica
como um princípio teológico e não somente como algo histórico (como Weiss
e Schweitzer). Essa nova concepção teria de ser diferente da dos fundadores
do movimento escatológico.18 Desse modo, surgiu o que pode ser chamado de
uma mudança da escatologia histórico-final (endgeschichtliche) para a escatolo
gia supra-histórica.* Isso significa que a escatologia não está mais preocupada
com o que está ao final da linha do horizonte da História - isto é, a história
final (<endgeschichtliche), mas com o que é supratemporal, o divino, aquilo que, a
cada momento, determina a existência do mundo e do homem. Nesse quadro
escatológico, a categoria do tempo é eliminada. A pregação da proximidade do
16 A v in d a d o R e in o
reino dos céus não deve mais ser entendida no sentido da proximidade do fim
do mundo, do encurtamento gradual do tempo ou do seu advento. Porém, essa
mensagem deve ser entendida como uma indicação da relação imediata de cada
momento da História com a eternidade. As “últimas coisas”, portanto, assumem
um sentido diferente. A indicação temporal “pós” é substituída por “trans”. Não
se questiona uma proximidade no sentido temporal. Cada momento pode ser o
último, e, a cada hora, o apelo é válido: “o reino está próximo”.
Essa nova interpretação do caráter escatológico da pregação de Jesus é cla
ramente baseada em premissas dogmáticas e sua influência na ciência do Novo
Testamento não tem sido menor do que a influência da ideologia da teologia
liberal. Como representante da transição típica do antigo conceito eticoimanente
do reino de Deus para a nova interpretação existencial-escatológica, devemos
mencionar a obra de M . Dibelius, Evangelium und Welt [O evangelho e o mun
do].19 Nesse livro, a crença na proximidade do fim do mundo, a qual é, aparente
mente, a base da pregação de Jesus, é chamada de vestimenta histórica do que é
supra-histórico e permanente no cristianismo. Por seu intermédio, as palavras de
Jesus ganharam uma realidade crescente e uma seriedade inevitável. Não somente
isso, essa perspectiva escatológica dá à pregação de Jesus um caráter peremptó
rio incondicional,20 que não mais depende de qualquer situação ou possibilidade
históricas. Tudo isso transmite ao homem uma nova base para a vida,21 elevada
acima de qualquer contingência temporal, e o capacita a estar em comunhão com
o que é eterno e não perecível, no que Jesus chamou de reino de Deus.
Contudo, nessa perspectiva, a escatologia do Novo Testamento não foi sufi
cientemente levada a sério, porque a concepção imanente do reino de Deus ainda
tem sido mantida, apesar de libertada de qualquer determinação histórica. A esse
respeito, Dibelius seguiu Harnack e a teologia liberal. Todavia, não é Dibelius,
mas Bultmann, o representante típico dessa nova (e por seu turno “consistente”)
perspectiva escatológica do evangelho. Ele, também, é da opinião de que de
veríamos distinguir, no evangelho, entre o conteúdo revelacional propriamente
dito, e a “mitologia contemporânea” que expressa esse conteúdo essencial. De
acordo com Bultmann, essa mitologia inclui a pregação da proximidade do fim
do mundo. Esse direcionamento para o fim absoluto se constitui no elemento
essencial e permanente no conceito do reino dos céus. “O domínio de Deus é
algo miraculoso, e o miraculoso como tal é aquilo que é absolutamente diferente
e oposto a todo aqui’ e a todo ‘agora’.”22 A pregação da basileia [reino] é a pre
cipitação da convicção de que “mesmo no agora’ o homem é confrontado com
a necessidade de decidir, porque o ‘agora’ é a última hora para ele.”23 A basileia,
portanto, não é uma condição ou uma entidade que se concretiza na terra. Ela não
interessa para Jesus como uma condição escatológica, mas como “o acontecimento
miraculoso, que significa a grande decisão entre “ou isto ou aquilo”, que induz
Intro d u çã o 17
1. 0 PANO DE FUNDO
1. O Antigo Testamento
menos impressionante, em Isaías 24- 27. Também nos livros dos outros profetas,
essa profecia do reino vindouro de Deus é um elemento essencial, cf. Obadias
21; Miquéias 4.3; Sofonias 3.15; Zacarias 14.16-17.
O conteúdo dessa grande expectativa de salvação é multifacetado. Uma
característica essencial da profecia é a sua descrição do reino vindouro de Deus
em termos da nacionalidade de Israel. Israel será restaurado como uma nação;
o Senhor terá o seu trono em Jerusalém; os inimigos de Israel serão subjugados.
Apesar disso, repetidamente, essas ideias parecem se referir a uma realidade maior,
espiritual e imperecível. O futuro reino de Deus será inaugurado pelo grande Dia
do Senhor, o dia do julgamento para a parte apóstata de Israel, como também
para as nações em geral. Ao mesmo tempo, todavia, é dia de libertação e salvação
para o povo oprimido do Senhor. N a descrição de ambos os dias, encontramos
características que irrompem através da realidade temporal10 e que se referem a
uma dispensação inteiramente nova, como ao julgamento final, cf. Oséias 4.3;
Isaías 2.10ss, e outros lugares; e também à salvação vindoura, cf. Oséias 2.17;
Miquéias 4.1s; Isaías 9.1-6; 11.1-lOss. A salvação vindoura é imperecível (Is
51.6); uma realidade supramundana começará (Is 60.1ss.); um novo céu e uma
nova terra virão à existência (Is 60.19; 65.17; 66.22); a morte será aniquilada (Is
25.7ss.); os mortos serão ressuscitados (Is 26.19). Em oposição ao castigo eterno
do ímpio, virá a bênção eterna dos redimidps (Is 66.24). Nos pontos culminantes
da profecia, esse futuro feliz revela a sua universalidade; basicamente, ela consiste
na ruína e na derrocada do poder do mundo (Is 26.21; 27.1) e na participação dos
gentios na felicidade de Israel (Is 25.6; 45.22; 51.4-6); nesse dia, o Senhor será
o rei de todo o mundo (M q 4.1ss.). Como já foi dito, esse quadro da realidade
sobrenatural do reino divino irrompendo através das fronteiras da dispensação
temporal-mundana não é a característica usual das profecias. Como regra, a des
crição que eles fazem permanece dentro dos limites da vida aqui na terra. Ainda
assim, no fundo, essa profecia, na sua totalidade, enloca essa salvação eterna e
indestrutível: “Todos os julgamentos temporais anunciados pelos profetas são
tipos do grande julgamento do mundo; todo tipo de bênção que foi profetizada
se refere à perfeita felicidade do grande futuro”.11
Quanto à relação entre o conceito veterotestamentário do reino de Deus
e a expectativa messiânica da salvação, foi declarado enfaticamente que esses
dois conceitos deveriam ser claramente distinguidos um do outro. Sem dúvida,
é verdade que o conceito da vinda do futuro estado de bênção no qual Yahweh
assumirá a sua realeza no sentido pleno da palavra é sempre desacompanhado
de qualquer menção ao Messias-Rei. M as um não pode ser separado do outro,
porque o que é dito a respeito do reino vindouro de Deus não tem outro alcance
que não aquele das profecias a respeito do reino messiânico da paz (cf. Is 9.11;
32). Ele é o governante futuro do mundo (Is 11.9-10); pelo menos de acordo com
28 A v in d a d o R e in o
algumas das profecias, sua realeza também exibe um caráter sobrenatural (cf. M q
5.2); em resumo, tudo o que se aplica à futura manifestação divina do Rei também
se aplica ao governo do Messias-Rei. Em outras palavras, é o mesmo que dizer
que é o Senhor que outra vez afirmará seu governo sobre Israel e manterá sua
realeza sobre todo o mundo no Messias-Rei vindouro e por intermédio dele, ao
passo que, inversamente, também nas passagens em que apenas a manifestação
vindoura da realeza de Deus é mencionada, ela deve ser ligada com a promessa
do Redentor-Rei da casa de Davi.
As profecias de Daniel têm uma importância individual para a compreensão
do pano de fundo da pregação de Jesus a respeito do reino de Deus. Em especial,
elas esclarecem a antítese entre o que pode ser concisamente formulado como o
império terreno e o reino de Deus. Em oposição ao poder de Nabucodonosor,
que usurpou direitos reais divinos, mantém-se em primeiro lugar que o malkuth
[reino] de Deus é eterno e infinito (Dn 4.25), e que, portanto, ele é livre para
conceder o domínio real a quem quiser. M as esse pensamento genérico ganha mais
concretude quando dizemos que Deus irá, de fato, esvaziar os impérios munda
nos do domínio deles; e que ele dará o domínio à figura daquele que, nas visões
noturnas do profeta, se dirige ao Ancião de Dias no seu trono flamejante “um
como o Filho do Homem”: “Foi-lhe dado domínio, e glória, e o reino, para que os
povos, nações e homens de todas as línguas o servissem; o seu domínio é domínio
eterno, que não passará, e o seu reino jamais será destruído” (Dn 7.9ss.).
Na explicação do sonho de Daniel, é dito que “os santos do Altíssimo re
ceberão o reino e o possuirão para todo o sempre, de eternidade em eternidade”
(Dn 7.18). Isso não deveria ser interpretado como se o Filho do Homem e os
santos fossem idênticos, argumentando-se que o primeiro age como representante
do último ou que, na expressão “os santos do Altíssimo”, é o Filho do Homem
quem está sendo definido. O Filho do Homem é aquele cujo reino os santos
do Altíssimo um dia irão compartilhar. Aqui, também, o futuro reino de Deus
é mencionado, no qual a figura do Filho do Homem fará o seu povo participar
nas bênçãos do domínio de Deus.12 Embora o Messias-Rei da casa de Davi não
esteja sendo mencionado aqui e o fato de que, em geral, as características terre
nas nacionais foram trocadas por características transcendentes-apocalípticas, é
claro que aquele que aparece na forma do “Filho do Homem” do futuro glorioso
receberá domínio mundial das mãos de Deus e que é ele que se constitui na
bênção do grande futuro.
Finalmente, além das profecias no sentido mais estreito, devemos mencionar
também os assim chamados “salmos da ascensão ao trono” como testemunhas do
Antigo Testamento sobre o domínio divino vindouro, tais como Salmos 47; 93;
96; 97; e 99. Eles, também, falam de Deus se tornando Rei e falam da revelação
do seu poder a todas as nações. Apesar de, em primeira instância, esses salmos
O CARÁTER GERAL DO REINO DOS CÉUS - O PANO DE FUNDO 29
2. O judaísmo posterior
humanidade renunciou, até que, entretanto, na raça de Abraão, ele fosse outra
vez reconhecido e mantido sobre Israel, especialmente naTorá. A natureza desse
domínio é especialmente caracterizada pela frase “tomar e lançar sobre os ombros
o jugo do malkuth shamaim . “Jugo”,18 aqui, é entendido como a confissão do mo-
noteísmo e a obediência à Torá. Esse “jugo” é tomado sobre os ombros quando,
à semelhança dos prosélitos, as pessoas aderem ã religião judaica, mas também
onde quer que, outra vez, se sujeitem aos seus mandamentos. Um exemplo dessa
obediência são a leitura e a recitação diárias do resumo do monoteísmo e da Torá,
o chamado Shema (Dt 6.4-8).19 Essa especificação vai tão longe a ponto de a frase
“tomar sobre os ombros o jugo do malkuth shamaim se torna uma frase técnica
para: recitar o suposto Shema. Geralmente, entretanto, malkuth shamaim, nesse
sentido, tem um significado espiritual.
Juntamente com isso - e este é o segundo ponto - malkuth shamaim tem
uma aplicação muito mais ampla, ou seja, a indicação do domínio mundial de
Deus que se aproxima, o qual libertará Israel dos poderes dos pagãos e sujeitará o
mundo das nações a Deus. Nesse sentido, malkuth shamaim significa: “o reinado
de Deus sobre toda a humanidade, plenamente concretizado pelo reconheci
mento de sua majestade pelo mundo inteiro”.20 A manifestação desse malkuth
shamaim é repetidamente o objeto das orações judaicas. Assim, por exemplo, o
Qaddisch' se inicia com as palavras: “Glorificado e santificado seja seu [de Deus]
grande nome no mundo que ele criou de acordo com o seu beneplácito. Que ele
estabeleça o seu domínio real e inicie a libertação do seu povo e que ele traga
o seu Messias e redima o seu povo durante o tempo de vida dele, e durante os
seus dias, e no tempo da vida de toda a casa de Israel, logo e em breve; e tu
dirás Amém”.
Quanto ao conteúdo da expectativa futura assim indicada, havia uma grande
diversidade de concepções.21 Para que se tenha conhecimento do que realmente se
acreditava em alguns círculos antes e durante o tempo do nascimento de Cristo,
os escritos pseudepígrafos e apócrifos desse período são de uma importância
especial. M as eles estão longe de apresentar uma perspectiva escatológica que
seja unânime. Consequentemente, é muito difícil declarar precisamente qual era
a perspectiva futura dos judeus no início da era cristã. Além das declarações que
começam com as profecias da restauração do povo de Israel e da casa de Davi,
outros escritos colocam maior ênfase no caráter sobrenatural-transcendente do
grande tempo da salvação.
Um escrito característico da primeira perspectiva é a obra pseudepígrafa
Os Salmos de Salomão, em que as expectativas futuras que ocorrem são de natu
reza terrena e nacional. O reino (messiânico) do futuro permanece dentro dos
limites da vida terrena e não encontramos em lugar nenhum qualquer menção
de um mundo futuro que seja de uma dispensação diferente ou sobrenatural.
O CARÁTER GERAL DO REINO DOS CÉUS - O PANO DE FUNDO 31
Uma grande ênfase é colocada na libertação de Israel dos seus inimigos e sobre
o estado de bênção resultante.
Na obra Os Testamentos dos Doze Patriarcas, entretanto, a expectativa com
respeito ao futuro nacional é também acompanhada de alguns elementos que cla
ramente exibem um caráter sobrenatural: o reino messiânico vindouro acarretará
a redenção de todo o cosmos, a ressurreição dos mortos, o julgamento universal
de todo o mundo e a vida eterna no paraíso de Deus.
Algumas partes do livro de Enoque e o livro chamado A Ascensão de Moisés
vão ainda mais longe nessa direção. Não existe neles qualquer questão de um
reino messiânico terreno, mas o reino futuro é colocado, em vez disso, no mundo
celestial vindouro. Pelo menos no livro de Enoque, o Messias aparece na figura
sobrenatural do Filho do Homem (provavelmente uma analogia de D n 7). Aqui,
o mundo vindouro é relacionado dualisticamente com o mundo atual. O âmbito
em que o domínio de Deus será revelado não é a terra, mas o céu.
Em outros livros, tais como a obra ú ú k .í Apocalipse de Baruque e em 4Esdras,
há uma síntese das duas concepções. O domínio messiânico terreno da era final,
depois da ressurreição dos mortos e do julgamento do mundo, será seguido pelo
reino celestial vindouro, no qual o Messias também aparecerá, dessa vez para um
governo eterno, celestial. O quadro escatológico nacional é, aqui, simplesmente
uma transição para a escatologia transcendente e celestial. Em 4Esdras, entretanto,
a terra, renovada e renascida dessa vez, será novamente o lugar da nova era do
mundo, depois de este ter sido julgado.
Com respeito às concepções encontradas na literatura rabínica, existe pouca
informação disponível do período rabínico mais antigo (até 70 d.c.). O material
rabínico desse período é muito escasso. Somente antes de 70 d.c. é que encon
tramos fontes mais ricas ao nosso dispor. Delas fica evidente que, falando de
maneira geral, os estudiosos rabínicos sustentavam as mesmas perspectivas que
encontramos em 4Esdras. O estado miserável deste mundo será seguido pelos
dias do Messias, que culminarão com o estabelecimento do malkuth shamaim
sobre a terra. Esse é o mundo futuro que começará depois da ressurreição e do
dia do julgamento.
Fica evidente, a partir desses dados, que não existe nenhuma concepção
fixa de um estado futuro de bênção do malkuth shamaim e que as concepções
que existiam, somente de modo gradual é que vieram a adotar uma forma fixa.
Isso também se aplica à posição que o Messias ocupava na expectativa do fu
turo. Até onde podemos verificar, os escritos judaicos pré-cristãos e a literatura
rabínica posterior não tratam desse assunto de maneira proposital. Em nenhum
lugar, escreve Kuhn, encontramos o pensamento de que o reino do Messias é o
malkuth shamaim ou que o Messias trará o malkuth shamaim por meio das suas
obras.25 Ainda assim, no contexto mais amplo da escatologia judaica, há uma
32 A v in d a d o R e in o
Diante desse breve sumário das profecias do Antigo Testamento e das ex
pectativas do judaísmo mais recente quanto ao futuro, não pode restar qualquer
dúvida quanto ao significado da proclamação de João Batista, e da proclamação
de Jesus, logo em seguida: “arrependei-vos, porque está próximo o reino dos
O CARÁTER GERAL DO REINO DOS CÉUS - O PANO DE FUNDO 33
Jesus em nenhum lugar recorre a esses apocalipses judaicos, mas sempre à totalidade
do Antigo Testamento.
Consequentemente, a questão sobre o que Jesus quis dizer com a vinda do
reino, ou sobre o que ele não pode ter querido dizer com essa expressão, cer
tamente não pode ser respondida à luz da expectativa do futuro esposada pelo
setor apocalíptico do judaísmo posterior, como fazem Weiss e seus seguidores.
Só é possível dar uma resposta a essa questão à luz do próprio kerygma sinótico,
com contínua consulta às referências feitas ao Antigo Testamento. Todas essas
considerações nos levam a não começarmos de certo a priori escatológico para,
em seguida, julgarmos a confiabilidade histórica da tradição sinótica acerca da
pregação de Jesus, como se tal a priori fosse um critério apropriado para o que
Jesus “pode” ou “não pode” ter dito a esse respeito. Muito pelo contrário, devemos
investigar a tradição evangélica como a única fonte disponível de conhecimento
da pregação de Jesus, como um dado independente.24 Somente dessa maneira
poderemos trilhar o caminho da “História”. E verdade que a pregação de Jesus
e todo o curso do cristianismo iniciado por ela não devem ser equivocadamente
concebidos como um fenômeno atemporal, mas somente à luz de todos os tipos
de “dados” históricos. Contudo, por outro lado, o segredo e o milagre implícitos
da pregação do reino dos céus, desde o início, não residem nessa relação como
tal, mas na maneira inteiramente nova em que essa pregação foi feita. Esse é o
motivo pelo qual toda tentativa historicamente orientada de explicar esse segredo
e de encontrar uma abordagem a esse milagre terá de se concentrar no caráter
peculiar e específico dessa pregação.
II
O CA RÁ TER G ERA L DO
R EIN O D O S C ÉU S
2. J oão B a tista e J e su s
4. Teocêntrico
combinação das duas. Lucas quase que invariavelmente usa “o reino de Deus”
também com o sentido absoluto de “o reino”, cf. 12.32; 22.29. Mateus, por outro
lado, usa a expressão “o reino de Deus” apenas umas poucas vezes, a saber, 12.28;
19.24; 21.31,43. Quase que em todos os demais lugares (de acordo com Feine,
32 vezes2), ele usa “o reino dos céus”. Não há, todavia, qualquer razão para se
designar um sentido diferente para essas expressões. A combinação “reino dos
céus” é a tradução literal do hebraico malkuth shamaim. O uso quase invariável
que Mateus faz da expressão “reino dos céus” está ligado ao uso lingüístico fixo no
judaísmo, no qual o nome de Deus era geralmente evitado. Provavelmente Jesus
(exatamente como João Batista) fez uso dessa combinação corrente na época.
Por outro lado, é compreensível que Marcos e Lucas, que escreveram a cristãos
que originalmente eram pagãos, tenham evitado a expressão judaica específica e
falado de maneira direta de o “reino de Deus”. E, portanto, mais provável que a
última expressão seja secundária em relação à primeira (e não o inverso).3 Além
disso e ao mesmo tempo, pode ser inferido do que foi dito, com um alto grau de
probabilidade, que os esforços repetidos para se detectar uma diferença teológica
nessa dualidade de expressão se deva a uma falsa compreensão. Essa dualidade de
expressão deve ser compreendida como idêntica no significado, como está sendo
cada vez mais reconhecido.4
Caso essa perspectiva seja aceita como já estabelecida, fica claro que o gran
dioso futuro anunciado por Jesus é considerado inteiramente a partir do ponto
de vista da realeza divina. E, então, não é uma questão de uma declaração geral
atemporal com respeito ao poder e ao reino de Deus, mas especialmente da sua
concretização redentora-histórica que um dia será testemunhada. Esse é o motivo
pelo qual a ideia da vinda do reino é preeminentemente a ideia da autoafirmação
real de Deus, da concretização do seu reino, de sua vinda ao mundo com o objetivo de
revelar a sua majestade, o seu poder e o seu direito reais.
Se o nosso objetivo é obter uma perspectiva correta do propósito geral da
pregação de Jesus, essa ideia absolutamente teocêntrica do reino dos céus deve
sempre ser levada em consideração. E o motivo básico da sua pregação. Ela explica
o motivo pelo qual, desde o início, o anúncio da plenitude do tempo tinha um
conteúdo duplo, tanto na pregação de Jesus quanto na pregação de João Batista,
ou seja, redenção e julgamento. Tanto uma como outra são conseqüência direta
do plano de Deus. O reino significa redenção porque Deus sustenta sua justiça
real para com aqueles que, como seu povo, confiam nele. E significa julgamento
porque Deus mantém a sua vontade real em oposição a todos que resistem à sua
vontade. Isso exclui qualquer elemento nacionalista. Não são os pagãos que são
convocados ao arrependimento em primeiro lugar, mas a nação de Israel. E a
glória de Deus, não a preeminência do povo, que é colocada no centro, tanto do
início quanto durante o curso da pregação do reino.
O CARÁTER GERAL DO REINO DOS CÉUS - JOÃO BATISTA E JESU S 37
Ainda assim, por mais profunda e mais “evangélica” que essa perspectiva seja
do que as interpretações humanísticas do evangelho, ela não expressa adequada
mente a “essência” da ideia do reino. Um autor como Billerbeck também toma
como central esse ponto de vista soteriológico na sua valiosa caracterização da ideia
do reino dos céus. Entre outras coisas, ele escreve o seguinte: “A ênfase não está na
soberania divina tentando realizar alguma coisa para Deus, mas no seu propósito
de salvar homens”.9 Embora essa descrição possa ser típica da concepção luterana
ortodoxa do evangelho, não está em harmonia com o tema teocêntrico básico do
“reino dos céus”. E, igualmente, conceitos como a redenção, a remissão de peca
dos, a bênção do reino, por mais que estejam no centro da pregação de Jesus, só
podem ser compreendidos corretamente de um ponto de vista teocêntrico, porque
são bênçãos derramadas pelo reino. N a vinda do reino, Deus se revela a si mesmo,
primeira e prioritariamente, como o criador e rei que não abandona o mundo à sua
própria perdição, mas que é o Salvador do seu povo, aquele que faz as promessas.
Ele se comprometeu solenemente a redimi-los. Essa visão teocêntrica profunda
encontra consistentemente a base da redenção e do julgamento na soberania di
vina, na manutenção da sua própria obra e palavra. Ela não é somente o motivo
básico da revelação divina que ocorre repetidas vezes no Antigo Testamento, mas
é também a base do evangelho do reino de Deus, no qual tudo se apoia na mensa
gem evangélica de Jesus. Todas essas coisas não somente estão implícitas na ideia
original do reino de Deus, mas também determinam a totalidade da estrutura
e da forma da pregação de Jesus. Isso será demonstrado em mais detalhes num
capítulo em separado que trata do conteúdo dessa pregação.10
O que foi dito até aqui naturalmente indica que uma perspectiva abrangente
e mesmo infinita se abre com a ideia do reino de Deus, precisamente porque ela
é dominada inteiramente por um ponto de vista teocêntrico. A ideia do reino de
Deus indubitavelmente representa uma concepção especial da dramática história
da salvação dentro da totalidade da revelação divina. Outras partes da Escritura
contêm princípios diferentes de integração, conceitos dominantes diferentes.
Deveríamos, portanto, nos guardar de absolutizar uma concepção à custa de outra.
Ainda assim, não pode ser negado que a ideia do reino em si é mais ampla e mais
universal do que, por exemplo, a ideia do pacto divino ou mesmo da própria ideia da
justificação do pecador pela fé, que, em outros lugares (Deuteronômio, Romanos,
Gálatas), resume e estabelece a grande obra da redenção de Deus. Na concepção
da aliança, tudo se concentra na ligação especial entre o Senhor e seu povo e nas
virtudes de Deus que são reveladas nele. O conceito da justificação do pecador pela
fé é também uma perspectiva importante para a totalidade da história da revelação,
como transparece da maneira pela qual Paulo escreve sobre ela. Todas essas coisas
estão também estreitamente ligadas com a vinda do reino, pois ela tem a ver com a
realização das promessas de Deus ao seu povo. Veremos, portanto, mais adiante, o
O CARÁTER GERAL DO REINO DOS CÉUS - JOÃO BATISTA E JE SU S 39
5. Dinâmico
céus. É verdade que alguns autores têm se recusado a determinar para a palavra
basileia, nessa combinação, qualquer outro sentido além daquele de domínio, e
que têm se recusado a traduzi-la como “reino”.15 Em nossa opinião, essa posição
é insustentável pela natureza do caso. Para que o domínio seja eficaz, ele deve
criar ou manter um território onde possa operar. Portanto, a ausência de qualquer
ideia de um reino espacial seria muito estranha. Além do mais, na pregação de
João Batista e na pregação de Jesus, existem claramente algumas outras facetas
além do tema irresistível e poderoso do reino vindouro. H á também a questão
da consumação do reino, como um estado de paz e felicidade na qual os benditos
de Deus “tomarão lugares à mesa com Abraão, Isaque e Jacó” (M t 8.11), irão
“comer pão" (Lc 14.15), beber do “fruto da videira” (M t 26.29, cf. 22.1ss). O reino
é representado como uma ordem de coisas na qual haverá “superiores e inferiores”
(M t 5.19; 11.11; 18.1,4); como uma ordem imperial na qual o rei assentar-se-á
no seu trono e seus ministros se assentarão à sua direita e à sua esquerda (M t
20.21); na qual o justo brilhará e da qual o ímpio será lançado fora (M t 13.43).
Em outra passagem, a concepção aparenta ser de certa atmosfera espiritual que é
interiormente estranha para a pessoa ou para a qual ela deve estar preparada (Lc
9.62; M c 12.34). O reino é ocasionalmente representado como certo bem que
deve ser “procurado” por causa da salvação que ele traz (M t 6.33; cf. 7.7; 13.14);
um presente do Pai celestial (Lc 12.32), concedido a alguns (M t 5. 3,10; 19.14) e
“tirado” de outros (Mt 21.43); um presente que pode ser “herdado”, “ser tomado
como possessão”, “ser tomado à força” (M t 25.34; 11.12) e que está sendo “pre
parado” por Deus para o seu povo escolhido (M t 20.23; 25.34, etc.). Todas essas
passagens mostram a grande variedade de concepções e também o fato de que o
sentido do reino não deveria ser forçosamente estreitado pela absolutização de
certo sentido ou faceta do reino à custa de outros.
Isso não elimina o fato de que o reino dos céus pregado por João Batista e
por Jesus é, antes de tudo, um processo de caráter dinâmico; em primeiro lugar,
porque esse reino não pode ser, nem por um momento, concebido à parte do
poder divino manifestado por ele na redenção e no julgamento; em segundo lugar
porque, na pregação de João Batista e de Jesus, a vinda e o progresso do reino vêm
à frente de tudo. Eles não são entendidos como o futuro estado de coisas à época
do cumprimento. Essa dinâmica tremenda da vinda divina coloca o mundo dos
anjos em ação (M t 1; Lc 2); enche o império do diabo de assombro (M t 4.3ss.;
M c 1.24; M t 12.29); sim, faz até mesmo com que Satanás caía do céu (Lc 10.18);
essa dinâmica impregna tudo e se propaga por tudo e todos que são tocados por
ela, pois a vinda do reino é o estágio inicial do grande drama da história do fim.
Ela lança o homem e o mundo numa crise. E esse fato que fornece um poder
insistente e também ameaçador ao apelo: “arrependei-vos, porque é chegado o
reino dos céus”. A pregação de João Batista, em especial, expressa isso de um
42 A v in d a d o R e in o
modo inquestionável: “Já está posto o machado à raiz das árvores”, e, “aquele
que vem depois de mim... A sua pá, ele a tem na mão” (M t 3.10-12). E esse é o
motivo pelo qual Jesus diz que não veio trazer paz ao mundo, mas espada (M t
10.34); ele até mesmo diz que veio para lançar fogo sobre a terra (Lc 12.49ss.).
Em tudo isso, e por trás de tudo isso, está a ideia de que a vinda do reino será
cheia de poder e de energia. Ela confronta o homem com a necessidade de tomar
decisões importantes, que definirão o todo da sua existência. Esse conceito do
reino deveria despertar a todos do estado de falso repouso e complacência em
que se encontram.
6. Messiânico
Homem. E essa é a razão pela qual nos Evangelhos - produto da igreja posterior
- existe uma mistura confusa dessas duas figuras diferentes.26
Toda essa concepção está baseada na hipótese gratuita da existência na expec
tativa judaica do futuro de duas formas mutuamente excludentes e competitivas
de expectativas judaicas quanto ao futuro. Mas, mesmo que elas tenham existido
entre o povo, não há a mínima indicação de que João Batista e Jesus aceitavam
essa antítese. Pois esses dois tipos de expectativas do futuro que são colocadas
lado a lado, ou, como afirma Von Gall, que são opostas entre si, são encontradas
não somente na literatura judaica posterior, como também têm o seu pano de
fundo no próprio Antigo Testamento. No Antigo Testamento existe a figura
do Messias, o rei, da casa de Davi, e a do Filho do Homem. Se vamos aceitar
a hipótese de Von Gall, Jesus e João Batista teriam realmente rejeitado a maior
parte da expectativa profética veterotestamentária quanto ao futuro. Eles teriam
que ser considerados como revolucionários espirituais radicais, não somente no
fórum dos seus próprios contemporâneos, mas também naquele fórum de toda a
revelação histórica divina. Essa concepção não está em conflito apenas com tudo
o que conhecemos dos Evangelhos - a única fonte de nosso conhecimento da
vida de Jesus - mas também torna toda a história do cristianismo ininteligível.
Em oposição à característica principal da doutrina de Jesus e da sua expectativa
do futuro, seus seguidores teriam atribuído a ele o ideal messiânico que o próprio
Jesus havia rejeitado, não somente no sentido nacionalista, mas também como
o ideal messiânico em geral.
Em contraste com isso, todavia, temos o testemunho dos Evangelhos
de que a pregação de Jesus sobre o reino era dominada pela identificação do
Messias com o Filho do Homem. Isso é muito mais plausível até mesmo com
base nessas considerações históricas gerais. M ais adiante, verificaremos que, na
autorrevelação de Jesus, não somente esses dois conceitos ocorrem juntos, mas
também outros, como o Servo sofredor de Isaías 53. Nesse aspecto, também, a
sua pregação do reino é o cumprimento das Escrituras no sentido completo da
palavra. E a essa luz que devemos ver a proeminência indubitável da expressão
“o Filho do Homem” na pregação de Jesus a respeito do reino. Isso não implica
a anulação do antigo “messianismo profético”, mas, ao contrário, trata-se de uma
indicação da importância sobrenatural e divina que, à luz de toda profecia, deve
ser atribuída ao prometido filho de Davi.
O fato de que Jesus não baseou sua mensagem exclusivamente na visão de
Daniel, mas na totalidade da palavra de Deus no Antigo Testamento, se percebe
claramente pelo diálogo notável ocorrido entre ele e os fariseus acerca do filho de
Davi e que chegou até nós em todos os três Evangelhos sinóticos (M t 22.41-46;
M c 12.35-37a; Lc 20.41-44). Nessas passagens os fariseus são confrontados de
maneira oficial e aberta com a pergunta: “O que pensais vós do Cristo? De quem
O CARÁTER GERAL DO REINO DOS CÉUS - JOÃO BATISTA E JE SU S 47
é filho?” (M t 22.42). Em reação à resposta dos fariseus, “De Davi”, Jesus cita o que
Davi, inspirado pelo Espírito Santo, disse acerca do Messias: “Disse o Senhor ao
meu Senhor: Assenta-te à minha mão direita, até que eu ponha os teus inimigos
debaixo dos teus pés”. E conclui com a pergunta: “Se Davi, pois, lhe chama de
Senhor, como é ele seu filho?”
Essa passagem é frequentemente citada para provar que Jesus (ou a igreja
posterior) queria negar a descendência davídica do Messias. M as essa opinião,
sem dúvida, é errada.27 Jesus não rejeita o testemunho veterotestamentário de
que o Messias é filho de Davi. Ele queria expor o significado desse reinado daví-
dico do Messias à luz de todo o Antigo Testamento. Ele aparentemente se opõe
àquela interpretação da filiação davídica do Messias de acordo com a qual este
último estava investido de uma realeza humano-nacional para a libertação da
nação judaica. Jesus contradiz essa perspectiva ao insistir no próprio testemunho
profético de Davi acerca do reinado totalmente sobre-humano e divino do M es
sias. O Messias receberá o domínio divino e será investido de uma honra e um
poder sobre-humanos a ponto de até mesmo Davi, seu pai, falar dele como seu
“Senhor”. Essa passagem nada tem a ver com (a refutação de) o reinado davídico
do Messias, mas com a sua importância e o seu caráter. Está claro que as palavras
acerca disso no Salmo 110.1 estão totalmente de acordo com o quadro de Daniel
7 sobre a autoridade do Filho do Homem. Essa é a razão pela qual Jesus cita o
Salmo 110.1. Isso não significa que, no Antigo Testamento, quando o Messias,
como filho de Davi é mencionado, esse caráter divino, sobre-humano e universal
do seu reinado seja expresso em palavras claras. A pregação de Jesus, todavia, tem
como objetivo fazer com que as profecias concernentes ao M essias-Rei davídico
e aquelas concernentes ao Filho do Homem de Daniel 7 sejam entendidas na
sua unidade mais profunda. Não se pode negar que, desse modo, Jesus entrou em
conflito com o ideal nacionalista messiânico. Repetidas vezes, percebemos que
a pregação messiânica de Jesus era estranha ao povo e aos seus líderes e que ele
acabou entrando em conflito com eles. E nesse sentido que teremos de entender
as advertências de Jesus contra os falsos rumores messiânicos: “Eis que ele está
no deserto”; “Ei-lo no interior da casa” (Mt 24.26; cf. Lc 17.23).
Em contraste com tudo isso, Jesus faz com que a vinda, a parousia do Filho
do Homem, seja como “relâmpago fuzilando, brilha de uma a outra extremidade
do céu”, ou seja, revelando a sua glória divina, de maneira indubitável, a todos que
o verão.28 Aqui, também, temos a ligação da expectativa do Messias com a grande
manifestação escatológica da sua glória. M as é do M essias-Rei prometido por
Deus a Israel que Jesus fala aqui. Pois a relação especial é sempre mantida entre
Israel e essa figura do futuro, que tem sido delineada dessa forma. Isso aparece
muito claramente em Mateus 19.28, onde Jesus promete aos seus discípulos que,
na palingênese, quando o Filho do Homem se assentar no trono da sua glória, eles,
48 A v in d a d o R e in o
também, se assentarão em tronos para julgar as doze tribos de Israel (cf. Lc 22.30).
Aqui, as referências à palingênese (a regeneração de todas as coisas) e ao Filho
do Homem no seu trono, indicam o caráter universal e sobre-humano da realeza
messiânica, enquanto que, no “julgamento das doze tribos de Israel”, a ligação
com Israel foi mantida.29 Isso deixa claro que, na pregação de Jesus, as chamadas
expectativas “profética” e “apocalíptica” a respeito do Messias ocorrem juntas. O
Filho do Homem não é nenhum outro que o Messias, o filho de Davi.30 Mas,
mutatis mutandis, o filho de Davi é o Filho do Homem, aquele que foi investido
de autoridade divina e universal. E a relação entre Israel e o Messias deve ser
julgada e compreendida a essa luz.
Portanto, podemos concluir que a pregação de Jesus sobre o reino dos céus é,
ao mesmo tempo, a pregação sobre o Messias. E também que essa messianidade
é especificamente determinada pela expressão “o Filho do Homem”, de acordo
com Daniel 7. E a essa luz que devemos compreender o caráter geral do reino
dos céus pregado por Jesus.
7. Futuro
O que foi dito na seção anterior sobre o caráter messiânico do reino dos céus
pregado por Jesus revela claramente a tendência escatológica da sua pregação. Ê
verdade que esse termo está, terminologicamente falando, longe de ser irrepreen
sível, pois ele procede da dogmática, e, nesse sentido (isto é, como escato-Zogztf),
não é aplicável à pregação não dogmática e não sistemática de Jesus. Entretanto,
a palavra “escatológica” tornou-se, numa certa medida, usual como uma qualifi
cação do conteúdo da pregação de Jesus. Ela pode ser usada na medida em que
expressar que a vinda do reino pregado por ele era, em seu cumprimento, nada
menos do que o início do grande eschaton da História. Nesse sentido, não pode
haver qualquer dúvida de que o anúncio que Jesus fez do futuro não seguia o
fluxo das expectativas nacionalistas judaicas, encontradas, por exemplo, nos Salmos
de Salomão. Esse anúncio, pelo contrário, deve ser visto como a continuação da
predição transcendente e apocalíptica do futuro contida nas profecias do Antigo
Testamento e nas expectativas que se basearam nessas profecias.
Nada mais precisamos acrescentar, em termos de argumento, ao que já foi
dito acerca do sentido da “ira vindoura” e do aparecimento “daquele que estava
para vir”, para mostrar que Jesus, nesse sentido, podia começar a sua pregação a
partir da pregação do seu predecessor, João Batista. Na própria pregação de Jesus,
a descrição desse futuro é elaborada a partir de muitos pontos de vista. Ela não
se restringe somente ao julgamento final, como acontece na pregação de João,
conforme a temos registrada, nem se restringe \parousia do Filho do Homem.
O CARÁTER GERAL DO REINO DOS CÉUS - JOÃO BATISTA E J e SUS 49
O que foi dito acima mostra que, apesar das restrições que Dodd faz às
declarações escatológico-futuras de Jesus, suas adaptações críticas do evangelho
não podem refutar que tais pronunciamentos têm um papel mais ou menos impor
tante na pregação de Jesus. E, em nossa opinião, essa circunstância invalida toda
a elaboração de Dodd de que Jesus falou somente de uma escatologia realizada
do reino do céu. Pois é impossível separar as passagens concernentes ao “Dia
do Senhor” e ao “futuro do Filho do Homem” daquelas concernentes ao “reino
dos céus”. Mesmo que alguém estivesse disposto a concordar com as operações
hipercríticas que Dodd aplica ao evangelho, permanece inaceitável a separação
entre o que ele reconhece como pronunciamentos apocalípticos de Jesus e o que
reconhece como sendo acerca da vinda do reino?* Pois não pode haver qualquer
dúvida de que todos os acontecimentos apocalípticos futuros mencionados no
evangelho só podem ser concebidos como circunstâncias acompanhantes dentro
da estrutura maior do advento do reino.
Porém, à parte dessa objeção intransponível, a tese principal de Dodd de que
o evangelho não fala do futuro do reino, mas somente da sua presença, é insus
tentável. Para que isso seja demonstrado, é importante analisar cuidadosamente
os pronunciamentos que mencionam explicitamente o aspecto futuro.
Primeiramente, devemos mencionar a pregação inicial tanto da parte de João
Batista quando de Jesus, que já mencionamos várias vezes: “o reino de Deus está
próximo” ( eggiken). Dodd tem defendido habilmente a tese de que a expressão
“está próximo” deveria ser traduzida como “chegou”. Ele traduz eggiken, em
Marcos 1.15 e Mateus 4.17, da mesma maneira que ephtasen, em Mateus 12.28
e Lucas 11.20. Ele recorre à Septuaginta, que, algumas vezes, traz eggiken como
a tradução do hebraico naga e do aramaico meta, os quais significam “alcançar”,
“chegar”. Esses dois verbos, entretanto, também são traduzidos na Septuaginta
pela palavra phthanein. Daí segue-se a conclusão de que não existe diferença no
sentido pretendido entre ephthasen (“chegou”), em Mateus 12.28, e eggiken, em
Marcos 1.15 e Mateus 4.17.39Uma investigação mais profunda provou, entretanto,
que eggizein, no uso da Septuaginta, quase sempre significa “aproximar-se”, e não
“vir”, e pode ter o sentido mais amplo de “chegar” somente de vez em quando,
enquanto no grego secular não temos qualquer exemplo desse uso. Além disso,
seria ainda muito estranho para o mesmo evangelista primeiro usar um verbo, e,
depois, outro, para um conceito tão central e colocar a palavra incomum eggiken
em destaque. Finalmente, devemos presumir que, já na proclamação inicial (cf.
M t 3.2), João Batista havia falado da presença do reino, o que, entretanto, está em
conflito com o pleno propósito da sua proclamação tanto quanto da concepção que
João tinha do reino.40 E por isso que Mateus 4.17 deveria ser indubitavelmente
traduzido da mesma maneira que Mateus 3.2, como “está próximo”. Em alguns
lugares, então, a vinda do reino significa um acontecimento futuro.
52 A v in d a d o R e in o
Isso não é uma questão dos traços realísticos do quadro da crise cósmica futura
encontrada nos apocalipses judaicos posteriores, pois, para começar,53 há uma
diferença marcante entre a pregação de Jesus acerca do futuro grandioso e a
pregação dos apocalipses judaicos. Estes últimos contêm um quadro fantástico e
candente do Endgeschichte e do mundo vindouro, o qual está totalmente ausente
no evangelho. Em contraste, há uma grande sobriedade e moderação na descrição
dos Evangelhos do colapso e da consumação do mundo, a vitória sobre Satanás
e a ressurreição do corpo. M as, mesmo assim, é um princípio hermenêutico bem
fundado que a descrição profética das ações do julgamento divino e da re-criação
não pode ser explicada pelo relato de uma testemunha ocular, pois essas ações
transcendem qualquer experiência e compreensão humanas.
Contudo, essa circunstância em nada diminui o fato de que a ideia do reino
dos céus implica participação de toda a vida criada na vinda do reino, ao qual
pertencem especialmente a ressurreição e a recriação no sentido mais essencial
da palavra. E isso não somente porque toda a existência humana é determinada
pela realidade que a Escritura chama de “o reino de Deus”. A pregação do reino
não é certo molde condicionado pelos tempos à doutrina bíblica da situação ou da
existência humana. Não consiste numa antropologia teológica, mas em revelação
concernente a Deus. Esse caráter teocêntrico predominante da ideia do reino de
Deus está estreitamente ligado com a importância universal da vinda do reino.
Toda a revelação de Deus no Antigo Testamento e na pregação de Jesus está
baseada no fato fundamental da criação do céu e da terra por Deus. A terra é do
Senhor. A Bíblia desconhece totalmente um dualismo original entre Deus e o
mundo (como encontramos nas religiões persas), entre espírito e matéria; assim
mesmo, porém, reconhece a queda e o abandono do mundo a um poder hostil
a Deus. E por esse motivo que a vinda do reino, como a reafirmação do direito
e da glória de Deus, também consiste na redenção e na restauração da vida, no
sentido tanto material quanto espiritual. Porque Deus é Deus, isto é, o Deus da
revelação, o Criador do céu e da terra, o Santo que se comprometeu com Israel,
com sua promessa e seu pacto, as “proporções” do reino são universais. Enquanto
o mundo não responder ao propósito de Deus e permanecer sujeito à morte, a
glória de Deus estará velada, seu nome não será santificado e a oração pela vinda
do reino não será respondida.
De modo geral, nem as profecias, nem Jesus, apresentam argumentos a
respeito dessas coisas. Eles simplesmente declararam a universalidade do reino
de Deus com uma segurança absoluta, como um “algo natural”. Sua pregação não
é baseada em especulação cosmológica, mas na revelação a respeito de Deus. E,
portanto, estreitamente ligada e, por assim dizer, dada como a ideia do reino de
Deus. Isso fica evidente pela “prova” que Jesus dá aos saduceus da ressurreição dos
mortos. Por que Deus se comprometeu com Abraão, Isaque e Jacó, há também
56 A v in d a d o R e in o
uma ressurreição dos mortos, porque “ele [Deus] não é Deus de mortos, e sim
de vivos” (M t 22. 31-32).54 Esse é o motivo pelo qual não é possível separar o
“conteúdo revelacional” do “molde” universal da pregação do reino. O caráter
teocêntrico do reino de Deus, como ensinado pela revelação divina, transmite
um conteúdo universal à ideia de reino de Deus, sem a qual seria inconcebível.
Não é primariamente o conteúdo “cosmológico”, mas o conteúdo “teológico”
do evangelho que está em jogo, especialmente na sua relação com a realidade
da criação, da queda e da História. A tentativa de “demitologizar” a escatologia
evangélica é, portanto, no fundo, uma sublimação neoidealística do evangelho.
Não somente afeta a “casca”, como também o “cerne”, porque está em conflito
flagrante e irreconciliável com os motivos mais profundos que determinam a
ideia do reino de Deus.55
8. Presente
O futuro caráter consumador do reino dos céus está, sem qualquer dúvida,
de acordo com todo o pensamento básico da pregação de Jesus, como transparece
dos seus numerosos pronunciamentos. Ao lado desses pronunciamentos, Jesus
também fala da vinda do reino como uma realidade que está sendo cumprida já
durante o tempo da sua pregação, e, assim, antes da crise do Endgeschichtelichte
e da consumação de todas as coisas. Esse fato é predominante na revelação da
salvação no Novo Testamento. Isso nos leva ao ponto no qual a pregação de Jesus
revela uma modalidade fundamentalmente diferente de tudo o que havia sido
profetizado e esperado quanto ao reino dos céus antes dele.
Essa diferença também pode ser encontrada entre a pregação de Jesus e
a pregação de João Batista. E verdade que Jesus repete as palavras de João, “o
reino de Deus estí próximo”, as quais, como já vimos, ainda não significam que
o reino esteja presente. M as há também descrições da pregação inicial de Jesus
que aparentam expressar mais do que o anúncio do que estava próximo, e, con
sequentemente, implicam mais do que o que pode ser dito a que pregação de
João Batista continha.
Já de início podemos apontar para as palavras com as quais Marcos descreve
a proclamação inicial de Jesus: “O tempo está cumprido, e o reino de Deus está
próximo; arrependei-vos e crede no evangelho” (Mc 1.15). Especialmente as
palavras iniciais, “O tempo está cumprido”, referem-se a algo que encontrou a
sua consumação, seu estágio final, no presente. Portanto, kairos [tempo] signi
fica o grande momento do início do grandioso futuro apontado por Deus em
seu conselho e que foi anunciado pelos profetas.56 Ao lado de “está próximo”,
já temos, portanto, o “está cumprido”. Sem dúvida alguma, as duas expressões
O CARÁTER GERAL DO REINO DOS CÉUS - JOÃO BATISTA E JE SU S 57
veremos acontecer repetidas vezes. Uma coisa é clara, todavia. O estilo de vida
de João Batista e dos seus discípulos é totalmente direcionado para a preparação
da vinda do reino, especialmente para a vinda do julgamento (jejum e orações),
enquanto os discípulos de Jesus podiam viver na certeza alegre da erupção do
grandioso tempo da salvação e podiam se comportar de acordo com isso , porque
pertenciam a ele.bl Se aderissem à pregação de João, seriam como as pessoas “que
põe remendo de pano novo em veste velha... vinho novo em odres velhos”. Apesar
de Jesus não ter desaprovado as ações de João, é claro que, nesse momento, algo
“novo” havia aparecido, algo que não estava em harmonia com as “velhas” formas
de vida. Também essas concepções representam os dois estágios da dispensação
da salvação separados um do outro pelo elemento do cumprimento.
Essa diferença entre os momentos redentores-históricos e, também, até
mesmo na dispensação da salvação, dos quais João e Jesus falam e agem, é mais
explícita e distintamente indicada na conhecida passagem de Mateus 11.7-19
e Lucas 17.24-35. O ponto de partida é a pergunta de João feita a Jesus por
intermédio de alguns dos seus discípulos: “És tu aquele que estava para vir, ou
havemos esperar outro?”. Nesse caso, também, o critério do momento históri-
co-redentor é o significado da pessoa de Jesus.62 No seu anúncio do reino, João
tinha falado daquele “que vem depois de mim” e tinha esperado que ele fosse
o inaugurador do reino. Agora, ele aplica o título “aquele que estava para vir” a
Jesus sob a forma de uma pergunta.63 A pergunta de João fornece evidência de
incerteza e confusão, como também se pode ver na resposta de Jesus. Sem dúvida,
João, no início, tinha considerado Jesus como “aquele que estava para vir” (cf. M t
3.13-17), mas a maneira da manifestação de Jesus não correspondeu à própria
concepção de João e à sua pregação.
A resposta de Jesus a João não trata diretamente do significado da sua pró
pria pessoa, mas claramente reivindica o caráter consumador da sua atividade,
e, portanto, da vinda do reino, pois Jesus aponta aos mensageiros de João seus
próprios milagres e a pregação do evangelho aos pobres. A maneira em que Jesus
fala dessas coisas claramente nos lembra da sua proclamação inicial na sinagoga
de Nazaré (acima citada). Jesus também se refere às profecias acerca do tempo
grandioso da salvação, que encontram seu cumprimento nesses milagres e na sua
pregação e lançam luz no sentido e na importância das suas atividades (cf. Is 35.5;
29.18; 61.1). Apesar de Jesus não dar uma resposta direta à pergunta de João e
de evitar fazer uma declaração pública da sua messianidade, o objetivo das suas
palavras não pode ser outro senão apontar para o cumprimento das profecias, e,
assim, da presença do reino de Deus. É verdade que ele claramente mostra que
nada disso pode ser estabelecido de maneira experimental: “E bem-aventurado
aquele que não achar em mim motivo de tropeço”, isto é, que não encontrar uma
razão para incredulidade na maneira pela qual eu estou agindo e no modo pelo
60 A v in d a d o R e in o
qual o reino de Deus está se revelando. Ainda assim, a conexão no grego entre
“bem-aventurado” e “em mim” também implica que a vinda presente de Jesus e
suas ações já continham o segredo da revelação do reino dos céus.
Muito característico do que estamos discutindo aqui, e também muito im
portante, é a seqüência dessa passagem, também em Mateus e Lucas (bem como
nas palavras a respeito de João Batista, as quais ocorrem num outro contexto;
veja Lc 16.16). A razão é que Jesus, nesse momento, vai mais fundo quanto ao
significado de João para a história da revelação. Embora as pessoas o tivessem
em pouca conta (cf. M t 11. 7-8; Lc 7. 24-25,33), João era um profeta; na ver
dade, mais do que um profeta. Ele também pertencia ao objeto das profecias
concernentes à salvação vindoura e tinha um lugar na realização da promessa
do grande futuro, ou seja, aquele que preparava o caminho do rei (cf. M l 3.1;
M t 11.10; Lc 7.27): “Este é de quem está escrito: Eis aí eu envio diante da tua
face o meu mensageiro, o qual preparará o teu caminho diante de ti”. Então,
seguem-se as palavras tão discutidas: “Em verdade vos digo: entre os nascidos de
mulher, ninguém apareceu maior64 do que João Batista” (M t 11.11); (de acordo
com Lc 7.28: “entre os nascidos de mulher, ninguém é maior do que João”); mas
o menor no reino de Deus é maior do que ele”.
Para que as duas partes dessa passagem sejam compreendidas em sua mútua
conexão,65 a primeira deve ser entendida como a indicação do lugar e da impor
tância de João no período anterior à vinda de Jesus, a dispensação das profecias.
Nesse período, João é o maior de todos, como o profeta enviado por Deus e como
o pioneiro escatológico do Senhor anunciado pelas profecias.66 Contudo, seu signi
ficado permanece restrito ao tempo da expectativa; no cumprimento da promessa,
na vinda do reino dos céus, ele não desempenha papel algum. E por isso que o
menor no reino (oficiais, servos e obreiros de Deus) é maior do que ele. Existe
uma longa lista de opiniões quanto ao sentido dessa declaração de Jesus. Na minha
opinião,67 a melhor de todas é aquela que considera João como o precursor do rei
e, consequentemente, ainda pertencendo ao tempo anterior ao reino dos céus, ou
seja, antes do tempo do cumprimento que começou com a vinda de Jesus e com
sua obra. Devemos ter em mente o lugar de João na história da revelação, lugar
este que deve ser encontrado na dispensação da promessa e da expectativa. Em
oposição a isso está “o menor no reino de Deus”, isto é, qualquer pessoa que viva e
trabalhe conscientemente na luz da dispensação do cumprimento. Ele é “maior” do
que João somente no sentido68 de que João não se elevou ao nível do presente e do
cumprimento da salvação. Nesse caso, a questão não é se João participará ou não
na bênção do reino, mas a compreensão e a proclamação do que está acontecendo
nesse momento. Aí, o reino é referido como uma entidade presente.69
Tudo isso é corroborado pelo que se segue em Mateus 11.12: “Desde os
dias de João Batista até agora, o reino dos céus está irrompendo em seu caminho
O CARÁTER GERAL DO REINO DOS CÉUS - JOÃO BATISTA E JE SU S 61
com vigor, e os violentos (aqueles que usam todas as suas forças) se apoderam
dele como de um despojo” (tradução do autor). Não há certeza quanto ao modo
correto de traduzir essa passagem,70 mas não pode ser negado que o reino dos
céus está aqui representado como uma entidade presente. De acordo com nossa
tradução, ele está irrompendo em seu caminho, está se afirmando pela força,
usando violência neste mundo. Isso tem acontecido (o processo está em curso)
“desde os dias de João Batista”. Temos que compreender a palavra “desde” num
sentido exclusivo, e não num sentido inclusivo. João está no limiar, ele lidera a
transição da antiga para a nova dispensação; ele próprio ainda pertence ao antigo
período. Com Jesus, a nova era chegou, a era do reino dos céus, irrompendo com
força no mundo. Inversamente, é também uma questão de “apropriar-se”, “apo
derar-se” do reino “como um despojo”. Isso significa se esforçar pela redenção
oferecida pelo reino sem se deter por coisa alguma, usando todos os esforços e
sacrificando tudo por amor do reino71. A frase: “os violentos se apoderam dele
como de um despojo” é formada pela analogia de “irromper em seu caminho com
força”. Uma corresponde à outra.
Finalmente, o mesmo pensamento é encontrado também na passagem
paralela de Lucas 16.16: “A Lei e os Profetas vigoraram até João; desde esse
tempo, vem sendo anunciado o evangelho do reino de Deus, e todo homem se
esforça por entrar nele”. Aqui, também, João é indicado como o heilsgeschichtliche
Grenzscheide72 (a linha demarcatória na história da salvação; cf. A t 10.37). Desde
a sua missão, a nova dispensação do evangelho e do reino de Deus começou e,
de todas as partes, as pessoas correm para entrar nele. Isso requer muito esforço
e determinação, mas é dessa maneira que elas entram. Isso tem sido possível
“desde esse tempo”, isto é, depois que João veio e fez a sua obra. O que ainda era
uma questão futura na pregação de João, embora estivesse próxima, tornou-se
realidade com a vinda de Jesus. Nele, o futuro das profecias passou para o cum
primento presente.
Em resumo, concluímos que, mesmo que algumas das afirmações acima
estejam sujeitas a mais de uma explicação, já podemos afirmar que Jesus falou
da vinda do reino como uma realidade presente. Isso não significa - e este é um
fato estabelecido - que não há espaço para o futuro do reino, ou que é necessário
distinguir entre dois tipos de reino, um do presente e outro do futuro. Significa
que o grandioso reino do futuro se tornou presente. Seu caráter fundamental
mente escatológico foi mantido. É o grande reino, é a vinda de Deus ao mundo
para redenção e julgamento. O futuro, por assim dizer, penetra no presente. O
mundo da redenção de Deus, a grande totalidade das suas obras conclusivas e
consumadoras, irrompeu no presente tempo do mundo. Isso representa um fato
inteiramente novo, que era, em muitos aspectos, incompreensível e inaceitável
para os contemporâneos de Jesus, aquilo que Jesus haveria de chamar “o mistério
62 A v in d a d o R e in o
1. O CUMPRIMENTO
9. O Maligno vencido
sujeição aos discípulos. Tudo isso indica e confirma que o grande momento da
salvação, o cumprimento da promessa, o reino dos céus, chegou. “O poder todo-
abrangente da Civitas Diaboli foi esmagado, a Civitas Dei irrompeu.”16
Associado com o que foi dito acima está o fato de que a vinda e a presença
do reino são concretizadas e evidenciadas na totalidade do poder de Jesus para
operar milagres.17 Isso não é tão claramente expresso nesse caso como o é na
expulsão de demônios, é verdade, mas está implícito no fato de que a pregação
de Jesus sobre o reino e os seus milagres são repetidamente mencionados em
conjunto (cf., p. ex., M t 4.23; 9.35). Jesus anunciou o reino com palavras e obras.
Além do mais, na resposta que Jesus deu a João Batista, há uma indicação clara de
que a vinda do reino foi manifesta nas curas miraculosas realizadas por Jesus.18 E
também, a frase “o reino dos céus é tomado por esforço”, em Mateus 11.12, não
deveria ser entendida meramente como uma referência ao poder da pregação do
evangelho, como alguns autores fazem ao se apegarem demais ao euaggelizetai de
Lucas 16.16, pois essa passagem também se refere aos milagres de Jesus. A esse
respeito, mencionamos Mateus 13.16 e Lucas 10.23: “Bem-aventurados, porém,
são os vossos olhos, porque veem; e vossos ouvidos, porque ouvem”. Esse “ver” e
“ouvir” se referem a ver os milagres e ouvir a pregação do evangelho (cf. M t 11.5).
Eles tornam o cumprimento das promessas visível e audível, a vinda da grande
era da salvação, coisas que muitos profetas e muitos justos em vão desejaram ver
e ouvir. Os milagres de Jesus revelam a vinda do reino de Deus.
A ligação concreta entre a realização do reino e os milagres de Jesus, que
pode ser encontrada em todo lugar, tem tanta importância quanto essas indica
ções deliberadas isoladas. Os milagres de Jesus ocuparam um lugar que, em todos
os aspectos, é orgânico e “natural” na ideia da vinda do reino, enquanto torna
visível a restauração da criação e expõe assim o significado todo-abrangente e
redentor do reino.
E verdade que o sentido histórico-redentor desses milagres tem sido ques
tionado. Eles têm sido interpretados como evidência de certo talento carismático
da parte de Jesus. Como conseqüência, esses milagres têm sido comparados
parcialmente com os milagres atribuídos aos carismáticos do mundo helenís-
tico e judaico daqueles dias.19 Um exemplo é Rudolf Otto, cujo conceito bem
conhecido diz que Jesus é descrito nos Evangelhos - de uma forma que Otto
designa de relatórios “hagiológicos” - como o “santo” típico, cujos dons caris
máticos são característicos. Além disso, Otto caracteriza Jesus como um tipo
conhecido na história das religiões (como, p. ex., Paulo, os profetas de Israel, os
O REINO CHEGOU - CUMPRIMENTO 67
sufis maometanos, Blumhardt, e outros).20 Ele sustenta que esse tipo é claramente
mencionado no evangelho, por exemplo, quando Jesus é chamado de “o santo de
Deus”, que ele supõe ser equivalente à expressão “homem de Deus”21 do Antigo
Testamento. Otto define os dons carismáticos do tipo histórico-redentor como
misteriosos “excessos de disposições e aptidões” que têm, no mínimo, analogias
na vida psíquica em geral22 e que ele tenta elucidar com a ajuda de fenômenos e
observações psicoterapêuticos modernos.23
Foi corretamente provado em mais de um lugar que não existe espaço para
esse tipo de explicação dentro do corpo dos Evangelhos sinóticos.24 É verdade
que, aqui e ali, pode ser encontrada uma aparente e semelhança parcialmente
muito natural23 entre os aspectos fenomenais dos milagres de Jesus e aqueles que
ocorrem em todos os tipos de histórias antigas, como, por exemplo, o uso de sa
liva nas curas (Mc 7.33; 8.2326). M as isso em nada diminui o fato de que o pano
de fundo e a explicação dos milagres do Novo Testamento possuem um caráter
exclusivo. Eles não repousam sobre algum talento personalista-carismático ou
sobre um poder miraculoso, mas na descida do reino dos céus transcendente (Lc
10.7-9). Isso pode ser deduzido do fato notável de que, em mais de uma ocasião,
Jesus delega seu poder miraculoso aos seus discípulos (M t 10.1; M c 6.12,13,30;
Lc 9.2, cf. também M c 9.28-29). Os milagres de Jesus são atos messiânicos de
salvação, têm um caráter escatológico.27
Essa relação concreta entre a vinda do reino e os milagres de Jesus é manifesta
não apenas pela expulsão dos demônios, mas também pelos outros milagres de
Jesus, pois todos eles provam que o poder de Satanás foi quebrado e que, portanto,
o reino chegou. Ao mesmo tempo, é evidente que as doenças são consideradas,
de maneira geral, como uma conseqüência do domínio de Satanás e que a luta de
Jesus contra o Maligno não ocorre somente no campo da ética, mas também no
domínio físico.28 Assim, por exemplo, em diversos casos, a possessão demoníaca
é mencionada como a causa de doenças físicas (p. ex., M t 9.32ss; 12.22ss; M c
9.25), ou a possessão é mencionada em primeiro lugar numa série de doenças
físicas (M t 4.24). Ao mesmo tempo, Satanás também é considerado como a
causa de todos os tipos de sofrimentos físicos sem qualquer menção de posses
são demoníaca. Por exemplo, em Lucas 13.11,16, lemos sobre uma mulher que
tinha “um espírito de enfermidade... andava ela encurvada”. No versículo 16 é
dito que “Satanás trazia presa” essa mulher.29 Aparentemente, não se trata, aqui,
de possessão demoníaca.30 Satanás é mencionado, no sentido mais geral, como
a causa do sofrimento. Não apenas serpentes e escorpiões, mas também doenças
e morte pertencem ao poder (dunamis) do inimigo (Lc 10.19).
A esse respeito, não devemos omitir o uso peculiar da palavra “repreender”
por ocasião de curas físicas e outros milagres. E dito que os demônios foram
repreendidos por Jesus não somente quando ele lhes determinou que não o
68 A v in d a d o R e in o
tornassem conhecido (cf. M c 3.17ss), mas também quando ordenou que se reti
rassem de suas vítimas (Mc 9.25). O mesmo termo é também usado em Lucas
4.39 com referência à febre da sogra de Pedro.31 Pode-se perguntar se essa palavra
foi escolhida em vista da influência demoníaca nessa doença.32A mesma pergunta
ocorre quando Jesus repreendeu o vento (Lc 8.24).33 Apesar do pressuposto de
que, nesse caso, não há uma ligação direta entre o poder do diabo e os elementos
naturais revoltosos cruzando o caminho de Jesus, a palavra “repreender” indica
a autoridade absoluta de Jesus sobre o reino natural e sobre todas as influências
destruidoras operantes nele como resultado do pecado e da maldição do mundo.
Essa é, todavia, também uma manifestação da vinda do reino de Deus. Cristo
penetra na província do príncipe deste mundo e conquista os poderes hostis
que devastam a criação.34 “Ele é outra vez o Governante, o Senhor e o Rei da
natureza.”35 Ele não somente se opõe ao poder do inimigo no reino natural, mas
também, como Filho de Deus, tem à sua disposição todas as riquezas do seu Pai,
como transparece da repetida multiplicação de pães que realizou.
A conexão entre a vinda do reino e o poder miraculoso de Jesus é mais clara
mente visível naqueles milagres que têm sido com frequência questionados e cujo
lugar no evangelho tem sido abertamente atribuído à assim chamada “formação de
lendas” em tempos posteriores pela igreja. Refiro-me, por exemplo, à ressurreição
de mortos (M t 9.18ss e paral.; Lc 7.11ss). Os próprios Evangelhos não refletem
sobre o significado da morte e da ressurreição de mortos. Mas, à luz da pregação
do reino como um todo, esse significado é claro: é exatamente na libertação da
morte que a salvação do reino atingiu seu clímax. “Os mortos são ressuscitados
porque é na ação de Jesus que esse reino, no qual não haverá mais morte alguma,
está começando a se concretizar” (Ap 21.4 e 20.14).36 Consequentemente, tem
sido corretamente afirmado que qualquer pessoa que queira compreender a obra
de salvação de Jesus a partir da ideia do reino de Deus e a partir de seu ofício
messiânico não pode traçar uma linha racional de demarcação entre os assim
chamados milagres possíveis ou impossíveis,37 pois, o reino de Deus revelado em
milagres significa redenção de todo o mal e restauração da vida como um todo.
E notável, além disso, que o julgamento da nação incrédula e impenitente,
provocado pela vinda do reino dos céus, é demonstrado até mesmo pelo milagre
do ressecamento de uma figueira (Mt 21.18-22; M c 11.12-14; 20-24). Apesar
de o sentido da maldição da figueira ter provocado uma grande diversidade de
opiniões e toda sorte de explicações arbitrárias a respeito da “origem” dessa his
tória miraculosa,38 a figueira ressecada certamente tem, em nossa opinião, um
significado simbólico. Ela é uma profecia do julgamento que haveria de vir sobre
Israel por causa da sua esterilidade.39 Considerado dessa perspectiva, esse milagre
é a contraparte dos milagres salvadores e ocupa um lugar orgânico no escopo da
pregação do reino e na totalidade dos milagres de Jesus.
O REINO CHEGOU - CUMPRIMENTO 69
O termo dunamis, que indica o poder de Jesus para realizar milagres, pode ser
considerado mais ou menos como um terminus technicus. Portanto, Marcos 6.14
diz: “nele operam forças miraculosas”; Marcos 5.30 diz ainda: “dele saíra poder”;
ou ainda, “o poder do Senhor40 estava com ele para curar” (Lc 5.17); ele comanda
os espíritos imundos com uma autoridade maravilhosa (Lc 4.36). Os próprios
milagres são mais de uma vez chamados de dunameis (M t 7.22; 11.20; 13.54)
ou simplesmente dunamis (Mc 6.5). Considerando o significado mencionado
acima dessas obras miraculosas de Jesus, esse dunamis engloba como um todo o
significado do poder divino da consumação, fazendo com que o nascimento de
Jesus seja um milagre já desde o início (Lc 1.35), determinando a totalidade da
sua ação e do curso de sua vida (Lc 4.14, cf. A t 10.38). Ele é Aquele em quem
se concretiza nesse momento a glória de Deus, também indicada como dunamis
(cf. M t 26.64), e a vinda definitiva de Deus ao mundo (cf. M c 9.1; 13.26)
acompanhada pelo dunamis divino. “Esse poder escatológico é o poder histórico
conduzindo o mundo e a História para o seu objetivo.”41
A partir de todos os tipos de traços característicos, segue-se que os milagres
só podem ser entendidos dentro do escopo da vinda do reino.42 Portanto, eles
são repetidamente indicados como o cumprimento de profecias (cf. M t 11.5
e 8.17) ou como evidências de que Deus “visitou” seu povo com as bênçãos
da salvação (Lc 7.16). Essa “visitação” deve ser entendida como a libertação
antigamente prometida do povo de Deus, que havia sido longamente esperada
(cf. Lc 1.68,78).43 Repetidas vezes, os milagres de Jesus sugerem ao povo, que
não o conhece como o Messias, que ele pode ser o filho de Davi (M t 12.23).
Alguns daqueles que queriam ser curados por ele incidentalmente se dirigiam
a ele como tal (M t 9.27; 15.22; 20.30 e paral.); como também os discípulos o
adoram como o filho de Deus por causa de seu poder sobre o vento e sobre o
mar (Mt 14.33). E por esse motivo que a impenitência de Israel será julgada com
muito mais severidade do que a de qualquer outra nação, exatamente por causa
dessas manifestações do poder de Jesus (M t 11.21ss, e paral.). Por outro lado,
a crença em Jesus como o Governante soberano enviado dos céus dará direito
aos gentios de se assentarem com Abraão, Isaque e Jacó no reino dos céus (M t
8.8-11 e paral.). Além do mais, o ponto central dos milagres é a glorificação de
Deus (M t 9.8; Lc 5.26; 17.17-18ss) também por aqueles que não pertencem ao
povo de Israel no sentido mais restrito da palavra (M t 15.31, “glorificavam ao
Deus de Israel”). Um milagre, tanto quanto a pregação, no sentido de ser uma
revelação do reino de Deus, é uma confrontação que exige uma decisão a favor
ou contra Jesus como o vencedor do Maligno e como o portador do Espírito
de Deus (M t 12.30-31 e paral.; M c 9.39-40); de fé (M t 8.10; 9.28; 15.28) ou
de incredulidade (M t 13.58), a dureza de coração (Mc 3.5) e o pecado contra o
Espírito por causa da manifestação clara do reino de Deus (M t 12.31 e paral.).
70 A v in d a d o R e in o
Por essa razão, o milagre em si não é a coisa mais importante, nem mesmo o
compartilhar do poder miraculoso de Jesus, mas, muito mais, a participação na
redenção do reino, redenção esta revelada pelo milagre (Lc 10.20, cf. também Mc
I.38, onde Jesus interrompe os milagres para ir a outro lugar pregar o evangelho
de Deus com as palavras “pois para isso é que eu vim”, cf. Lc 4.42-44). Isso nos
leva a outro ponto.
Em resposta à pergunta de João Batista, “És tu aquele que estava para vir?”,
Jesus faz referência não apenas aos seus milagres, mas também à pregação do
evangelho aos pobres: “aos pobres está sendo pregado o evangelho”. Fundamen
talmente, essas palavras indicam que o cumprimento da promessa da vinda do
Messias e do reino se manifesta não somente nos milagres de Jesus, mas também
na sua pregação. O mesmo pensamento se encontra registrado em outras pala
vras, em Lucas 16.16: “A Lei e os Profetas vigoraram até João; desde esse tempo,
vem sendo anunciado o evangelho (as boas-novas) do reino de Deus”. Aqui, a
dispensação da Lei e dos Profetas é colocada em contraposição à pregação do
evangelho do reino de Deus. Em outras palavras, na pregação do evangelho foi
concretizado aquilo que era somente uma expectativa na Lei e nos Profetas. Esse
é o motivo pelo qual Jesus pode chamar os discípulos de bem-aventurados não
somente pelo que eles veem, mas também pelo que ouvem. Nesse sentido, eles
eram mais favorecidos, acima dos crentes do Antigo Testamento, mesmo em
relação aos seus mais importantes representantes (M t 13.16-17; Lc 10.23-24).43
A pregação do evangelho não é uma prova menos importante do que os milagres de que
o reino dos céus chegou.
Para uma perspectiva correta dessas declarações gerais, é de especial im
portância considerarmos o termo evangelho mais detidamente. A pregação de
Jesus é repetidamente sintetizada por esse termo (p. ex., M t 4.23; 9.35; 24.14;
26.13; M c 1.14-15; 8.35; 13.10).44 Apesar de essa palavra ser usada com relação
à totalidade da pregação do reino dos céus (não exclusivamente para indicar a
salvação, mas também para indicar o julgamento trazido com o reino, cf., p. ex.,
Lc 3.18), a palavra significa notícias boas ou alegres, que caracterizam o conteúdo
da pregação de Jesus como a proclamação da salvação.45
Tudo isso sobressai contra o pano de fundo da palavra evangelho no Antigo
Testamento, especialmente como encontrada na segunda parte das profecias de
Isaías.46 Ali, o mensageiro das boas-novas é mencionado, o mebasser, que prega o
domínio real de Yahweh, o raiar da nova era (Is 52.7), trazendo salvação e paz a
Sião. Em Isaías 61, o mensageiro da salvação se apresenta como aquele que fala,
O REINO CHEGOU - CUMPRIMENTO 71
aquele que foi ungido com o Espírito do Senhor e enviado para levar boas-novas
aos mansos (lebasser). Apesar de este reino de Yahweh também implicar conflito
e ira (cf. Is 52.10; 61.2), é anunciado como uma mensagem de alegria. Pois essa
manifestação real de Yahweh é feita em benefício dos oprimidos, quando ele
ergue o “seu santo braço” contra os seus inimigos. Esse é o motivo pelo qual as
boas notícias podem ser anunciadas como novas de salvação e de alegria, porque
são dirigidas ao seu povo.47
Entre os judeus que viviam na época de Jesus, afigura do mensageiro da paz
em Isaías tinha permanecido viva. O mebasservirá, o tempo messiânico começará.
Nem sempre é dito quem é esse mensageiro. M as, com a sua chegada, o malkuth
shamaim (o reino dos céus) começará.48
Portanto, é aqui que descobrimos as raízes do uso que Jesus faz da palavra
“evangelho”. Mesmo que os lugares rabínicos fossem eliminados, ainda é evidente
que Jesus se identifica com o mensageiro da alegria mencionado em Isaías, pois
as palavras mencionadas acima - aos pobres está sendo pregado o evangelho —não
são somente uma citação de Isaías 61.1; são, também, a sua proclamação inicial
do evangelho. De acordo com Lucas, Jesus explicitamente declara que a profecia
do mensageiro da alegria de Isaías 61 se cumpre nesse momento, enquanto ele
está se dirigindo aos seus ouvintes. Esse mensageiro foi ungido com o Espírito
Santo e enviado para pregar o evangelho ao pobre (Lc 4.21). E à luz desse pano
de fundo veterotestamentário que devemos interpretar o sentido original da
expressão “o evangelho do reino dos céus”. Segue-se que, na pregação do evan
gelho, quando ecoava nos ouvidos do público de Jesus, o reino dos céus havia se
tornado uma realidade presente: o mebasser, aquele que traz as boas notícias ao
pobre, apareceu; o grande momento da salvação começou.
Do mesmo modo, as bem-aventuranças, tanto na tradição de Mateus
5.3 e seguintes como em Lucas 6.20 e seguintes, devem ser consideradas em
conexão com o pano de fundo do Antigo Testamento. Elas podem ser vistas
como o exemplo clássico da pregação de Jesus acerca do reino dos céus, tanto
com respeito ao lugar que ocupam no evangelho como pelo tom notadamente
solene e enfático das palavras de Jesus.49 Todavia, essas bem-aventuranças são
direcionadas, em primeiro lugar, ao pobre (de espírito) e, portanto, são a mais
autêntica ilustração da pregação do reino dos céus qualificada em Lucas 4 e 7
(Mt 11) como o evangelho.
Portanto, o evangelho pregado aqui não é meramente uma promessa nem
consiste apenas no fato de que a salvação se aproxima. Apesar de ser ainda futura
no que diz respeito à sua perfeita consumação, tornou-se fundamentalmente
um fato no momento presente. E verdade que Jesus nunca usa os termos “fun
damentalmente” e “consumação plena”. Ele sempre fala da basileia como uma
unidade. Mas, ao lado dos pronunciamentos concernentes ao futuro, encontramos
72 A v in d a d o R e in o
Está claro que tudo isso só pode ser explicado pelo significado da pessoa
e da missão de Jesus. Era isso que a multidão admirada percebia nos milagres
(M t 12.23), ao ouvir a sua pregação: “quem é este que até perdoa pecados?”
(Lc 7.49). A presença do reino, tanto nas ações de Jesus quanto na sua pregação
do evangelho, a salvação que ele proclama, a posse da bem-aventurança que ele
atribui aos pobres de espírito, repousam no segredo da pessoa de Jesus. A única
exegese satisfatória do evangelho do reino em todas as suas facetas é a cristológica.
No fim, tudo deve se concentrar na autorrevelação de Jesus. O cumprimento, as
boas notícias que Jesus havia trazido, não pode ser, de modo algum, separado de
sua própria pessoa, como se fosse, por exemplo, uma doutrina proclamada por
ele e espalhada pelos apóstolos. O cumprimento está presente na sua pessoa, “no
acontecimento histórico” que é dado com ele, o qual é ele.5s
etc., cf. M t 5.19; 11.11; M c 12.34, etc.). Esses termos deixam claro que o reino
dos céus pode ser compartilhado de uma maneira ou de outra, que ele muda a
vida dos que o recebem, que, pela virtude do ato de Deus, ele se torna um dom,
uma possessão, um domínio vital daqueles a quem esse privilégio é concedido.
Para nossos propósitos, é de particular importância determinar até que
ponto esse dom, a possessão da salvação, já aparece na pregação de Jesus à luz
do cumprimento (i.e., o fato de o reino j á ter chegado). Em várias das passagens
mencionadas acima, esse dom é exclusivamente representado como algo que
pertence ao futuro grandioso (c£, p. ex., Lc 12.32; M t 25.34ss). E, na maioria
dos casos em que a passagem menciona entrar no reino, temos de entender que
se refere a pessoas às quais foi dado compartilhar na bem-aventurança eterna
(M t 7.21-22; 19.23; cf. v. 27ss). Contudo, não nos parece estranho, depois de
tudo o que discutimos nas páginas anteriores, que o reino dos céus seja referido
como um dom e uma possessão que já é recebida e desfrutada no presente. E
bem verdade que, entre aqueles que mantêm a presença da basileia em oposição à
escatologia exclusiva, há diversos autores que nem querem ouvir falar disso. Essa
posição é, em grande parte, uma reação deles contra a aplicação de uma doutrina
idealística de valores à pregação de Jesus. Ainda assim, não se pode negar que a
terminologia dos Evangelhos fala do reino como um bem soteriológico e não se
pode sustentar que receber esse bem seja algo que pertence somente ao futuro.
A proclamação da salvação da basileia tem a ver, desde o início, com o dom nela
implícito, o qual é dado aos fiéis já no presente.
Num certo sentido, essa última ideia é a essência do evangelho do reino.
Aqui, igualmente, deveríamos apontar para as bem-aventuranças (M t 5.3ss; Lc
6.20ss), nas quais Jesus, de maneira muito especial, proclama o reino dos céus
como a bem-aventurança, a salvação dos pobres. E verdade que o verdadeiro
caráter dessas beatitudes reside no fato de que a salvação pregada é anunciada
como um bem a ser revelado plenamente somente no futuro. No entanto, já é,
no presente, posse dos pobres de espírito. Pois quando nos é dito que eles são
abençoados porque deles é ( estin) o reino dos céus, devemos levar totalmente a
sério o tempo presente do verbo. Algumas tentativas têm sido feitas de com
preender a salvação concedida aos pobres de espírito num sentido puramente
escatológico-futuro (em vista dos pronunciamentos “futuros” em M t 5.4ss e Lc
6.21ss) e qualificar o estin em Mateus 5.3,10 e Lucas 6.20 somente como uma
promessa.60 Apesar de a concretização plena da salvação prometida aos pobres
de espírito ser algo que, em parte, pertence ao futuro de acordo com o restante
das beatitudes, esse fato não significa que essa bênção não possa ser concebida
como algo a ser dado e recebido no presente.61
Além disso, quando, em outros lugares na Escritura, o reino é representado
como um tesouro, isso também não deveria ser considerado como algo pertencente
76 A v in d a d o R e in o
consiste, de acordo com Dibelius, a essência real do reino dos céus (despida de
seu molde “mitológico”).
Numa seção anterior,73 provamos que a ideia do reino dos céus é de de
terminação messiânica. Isso é verdadeiro não apenas com relação ao Antigo
Testamento e à expectativa judaica intertestamentária do futuro, mas também
na própria pregação de Jesus o reino de Deus e o Messias (especialmente como o
Filho do Homem) são conceitos correlatos. Consideramos essa relação somente
num sentido objetivo, isto é, sem dar atenção à autorrevelação messiânica de Jesus.
Nossa discussão tratou principalmente daqueles pronunciamentos que falam da
identidade da vinda do reino com a vinda {parousia) do Filho do Homem. Agora,
entretanto, devemos enfatizar plenamente o aspecto subjetivo, de tal maneira que
a totalidade da proclamação de Jesus sobre o cumprimento, isto é, sobre a vinda
do reino como uma realidade presente, corra paralela à autorrevelação de Jesus
como o Messias que foi enviado a este mundo por Deus, uma autorrevelação na
qual a sua proclamação se baseia.
Quanto a isto - o cumprimento! - é especialmente o significado da presente
concretização da messianidade de Jesus que está em discussão, pois, aqui, tam
bém, encontramos a afirmação da escola escatológica exclusiva que reconhece a
conexão intrínseca entre o reino de Deus e o Messias, mas que atribui a ambos
um caráter puramente futuro. Do mesmo modo, supõe-se que Jesus falou do reino
como uma entidade exclusivamente futura e que, também, falou do Messias (o
Filho do Homem) como a figura grandiosa do futuro. Schweitzer deu expressão
fértil a esse pensamento com sua expressão Messias designatus. Como tal, supõe-se
que Jesus considerava-se como aquele que havia sido designado e destinado por
Deus como o Messias na grandiosa revolução cósmica. Essa interpretação esca-
tológica-radical da autoconsciência messiânica de Jesus ainda é vigorosamente
defendida por autores como M . Werner e F. Buri.74 Outro autor, Michaelis, adota
a expressão Messias designatus, mas apenas para dizer que a messianidade de Jesus
começou somente com os acontecimentos da Páscoa e do Pentecostes. Portanto,
de acordo com ele, segue-se que Jesus não reivindicou dignidade messiânica
durante a sua vida terrena, mas que somente a sustentou como uma perspectiva
de messianidade para o futuro.75
Como mostraremos em mais detalhes, essa tese tem um importante elemento
de verdade na medida em que Jesus, por uma parte considerável, se refere ao exer
cício de seu ofício messiânico no futuro. Em tais casos, ele fala frequentemente
de si mesmo como o Messias vindouro. O autor Vos corretamente observou que,
quando Jesus fala da parousia do Filho do Homem, muitas vezes tais declarações
não devem ser entendidas como a segunda vinda, mas simplesmente como a vinda
do Messias (cf. M t 24.27,37,39). Do mesmo modo, Jesus fala em outros locais da
sua futura revelação como se fosse a sua vinda (Mc 13.26; M t 24.30,42; Lc 12.40;
80 A v in d a d o R e in o
lhido, das palavras “em quem me comprazo” (cf., p. ex., Is 42.1-4; M t 12.18) e
da versão das palavras divinas em Lucas 3.22, as quais indicam Jesus como rei
messiânico nas palavras do Salmo 2.7. Essa indicação não pode ser explicada
no sentido proléptico.81 Ela claramente coloca a vinda de Jesus e a sua obra à
luz do presente (cf. também as palavras “ouvi-o” durante a transfiguração). Essa
designação qualifica desde o início toda a obra seguinte de Jesus (cf. tb. M t 4.3
e paral.).
B. Outro ponto estreitamente ligado a esse é a descida do Espírito Santo sobre
Jesus seguida da voz celestial (M t 3.16; M c 1.10; Lc 3.22). Esse fato, também,
tem claramente um significado messiânico. Tal significado não pode ser concebido
em termos de uma cristologia psicológica82 ou de uma cristologia adocionista.83
Pelo contrário, significa a divina preparação de Jesus para a tarefa que lhe havia
sido confirmada pelo pai como o Messias (cf., p. ex., Is 11.2; 61.1ss.).84 Devemos
entender do mesmo modo Lucas 4.18, onde Jesus aplica as palavras de Isaías
61.1 a si mesmo: “O Espírito do Senhor está sobre mim, pelo que me ungiu para
evangelizar os pobres”. Mesmo se em Isaías 61.1 os conceitos “ungir” e “Espírito
Santo” forem cuidadosamente mantidos separados,85 visto que a unção não se
refere à designação para o ofício, ainda assim isso não diminui o fato que o dom do
Espírito tinha como seu propósito o exercício do ofício. É verdade que, em outra
passagem, Michaelis se refere a esse fato como “a investidura de Jesus para o seu
aparecimento como o Messias designado”.86 M as essa restrição à futura messia-
nidade não é encontrada na exegese dessas palavras, mas nas premissas gerais de
Michaelis. Repetidas vezes aparecem evidências de Jesus sendo capacitado com
o Espírito já durante a sua atividade terrena e de que ele tinha o Espírito Santo
à sua disposição por causa da sua messianidade. Por exemplo, em Mateus 12.28,
onde Jesus disse explicitamente que ele expulsava os demônios pelo Espírito de
Deus, e que, portanto, o reino já havia chegado. Essa passagem mostra que o fato
de Jesus ter sido investido do Espírito Santo (o aspecto messiânico) coincide com
a vinda do reino. No mesmo contexto — não somente em Mateus, mas também
em Marcos 3.29 — a calúnia dos escribas é considerada como blasfêmia87 ou como
falar mal contra o Espírito Santo.ss O poder que transforma a palavra de Jesus em
ato, a autoridade com a qual ele fala, provêm do Espírito Santo, com o qual ele
foi capacitado e o qual, como Messias, ele tem à sua disposição.
Essas coisas não estão meramente baseadas numas poucas declarações;
elas formam as premissas da ação de Jesus como o Messias, enviado por Deus e
sendo guiado e impelido pelo Espírito Santo em tudo. Depois do seu batismo
no Jordão, “o Espírito o impeliu para o deserto” (Mc 1.12); ele foi “levado pelo
Espírito ao deserto” (M t 4.1). Ele “cheio do Espírito Santo, voltou do Jordão e
foi guiado pelo mesmo Espírito, no deserto” (Lc 4.1). Assim, sua tentação no
deserto é descrita não meramente como algo que aconteceu debaixo da direção da
82 A v in d a d o R e in o
passagens são suficientes para declarar que a tradição via Jesus como o portador
do Espírito Santo e que o próprio Jesus também se considerava assim. Entretanto,
essa perspectiva raramente é colocada em destaque. Michaelis explica esse fato
ressaltando que, em suas ações na terra, Jesus era somente o Messias designado. A
relação do reino de Deus com o Espírito de Deus só é mencionada na medida em
que Jesus era o portador do Espírito na sua qualidade de Messias designado.92
Não podemos evitar o pensamento de que Michaelis arbitrariamente res
tringe a posição que o Espírito Santo ocupa nos Evangelhos sinóticos em favor da
sua perspectiva do caráter futuro da messianidade de Jesus. Mas, por outro lado,
o número de passagens nas quais o Espírito Santo é citado é comparativamente
pequeno. E também verdade que, durante a sua atividade terrena, Jesus não se
apresentou como aquele que batizava com o Espírito Santo. A esse respeito,
portanto, na tradição sinótica do reino dos céus, o batismo com o Espírito é ainda
uma questão futura. Na minha opinião, o grande erro de Michaelis é que ele
aparentemente ignorou as ações de Jesus como tal. Todos os seus milagres e todas
as suas palavras eram controlados por uma consciência absoluta de autoridade e
eram, na verdade, gerados pelo dom e pelo poder do Espírito Santo, apesar de
esse fato nem sempre ser mencionado explicitamente em cada caso. O pequeno
número de passagens que mencionam que Jesus tinha o Espírito não pode ser
explicado como se Jesus fosse somente o Messias do futuro. Muito pelo contrá
rio, esse pequeno número de referências se deve ao fato de que a messianidade
de Jesus é a própria pedra angular da tradição de que ele tinha o Espírito. Isso
explica por que não era necessário ficar repetindo esse ponto. As ocorrências
pouco freqüentes não representam qualquer “limitação” da messianidade de
Jesus; pelo contrário, representam uma quantidade abundante de certeza de que
a sua autoridade era a autoridade do Messias, pois não é tanto a posse do Santo
Espírito, mas a vinda do Messias, que é o fundamento do evangelho e a prova
de que o reino chegou.
C. Podemos chamar de notável o fato de que Jesus, na tradição sinótica,
nunca se chama explicitamente de Messias e que, mais de uma vez, impôs si
lêncio àqueles que se dirigiram a ele, invocaram-no ou o confessaram como tal.
Esse fenômeno receberá a nossa atenção num contexto posterior. Esse fato tem
sido usado das mais diversas maneiras para provar o caráter não messiânico ou
pré-messiânico das ações de Jesus. M as isso só pode ser avaliado de maneira
própria depois da verificação de que todo o evangelho está cheio de todo tipo de
declarações da parte de Jesus que dão testemunho da autoridade absoluta que ele
reivindicou. Essas declarações só podem ser explicadas à luz da sua relação única
com o Pai e a partir da sua autoconsciência messiânica. E verdade que há críticos
que têm se ocupado em fazer a distinção entre o que pode ser “histórico” e o que
é resultado da “cristologia da igreja”. M as esse esforço para distinguir entre o que
84 A v in d a d o R e in o
Jesus “pode ter dito” e o que ele “pode não ter dito” é, em si mesmo, internamente
contraditório. Com base em certas convicções supostamente científicas, os críticos
se sentem inclinados a considerar como não autêntica e secundária cada uma
das declarações de Jesus que nos foram transmitidas e que nos testificam da sua
autoconsciência sobrenatural e exclusiva. M as não se trata apenas de uns poucos
pronunciamentos relevantes, e sim de todo o caráter da autorrevelação de Jesus.
Nessa autorrevelação, a sua messianidade é revelada excepcionalmente somente
de um modo direto e aberto. Contudo, depois de um exame mais cuidadoso,
fica evidente que cada palavra que Jesus diz sobre si mesmo, apesar de frequen
temente fazê-lo de maneira indireta e, em muitos casos, implícita, procede de
uma autoconsciência que excede todos os limites naturais e que não pode ser
compreendida de nenhuma outra maneira senão em conexão com a sua missão
messiânica. Portanto, procuraremos trazer à luz a unidade indissolúvel de tudo
o que nos foi transmitido com respeito à autorrevelação messiânica de Jesus em
vez de discutirmos separadamente a crítica que é feita aos diferentes tipos de
suas declarações.
O clímax da tradição sinótica a esse respeito se encontra nas palavras de
Mateus 11.27 e de Lucas 10.21-22. Aqui, Jesus louva o Pai porque “ocultastes estas
coisas aos sábios e instruídos e as revelaste aos pequeninos”. E acrescenta: “Tudo
me foi entregue por meu Pai. Ninguém conhece o Filho, senão o Pai; e ninguém
conhece o Pai, senão o Filho e aquele a quem o Filho o quiser revelar”.
Essas palavras tanto se referem à missão (messiânica) e à autoridade de Jesus
quanto ao que pode ser chamado de igualdade de identidade de essência93 entre o
Pai e o Filho, pois o mistério do Filho é colocado nas mesmas bases do mistério
do Pai e a comunicação da revelação concernente ao Pai e ao Filho é privilégio
exclusivo de ambos. Tanto um quanto o outro são de grande importância nesse
contexto, não somente para o objetivo de trazer à luz o significado sobrenatu
ral da messianidade de Jesus, mas também para manter o seu caráter presente.
Pois qualquer que seja o sentido em que a pessoa de Jesus esteja relacionada ao
futuro, a relação ontológica entre o Pai e o Filho, indicada aqui, não pode estar
se referindo ao futuro. Ela pressupõe a preexistência da pessoa de Jesus. Desse
fato, segue-se que seria um absurdo abrigar o pensamento de uma messianidade
puramente futura em conexão com a vida de Jesus aqui neste mundo, pois, no
sentido acima, Jesus era o Filho de Deus e sua existência terrena não poderia ser
destituída do seu caráter messiânico sem que o sentido da sua encarnação e da
sua existência humana antes da parousia se tornasse totalmente problemáticos. A
ideia de um Messias designado significa realmente a “total destruição do dogma
cristológico”.94
A verdade disso é ainda mais enfática na medida em que Jesus - embora
com alguma reserva, como se estivesse apenas fazendo apenas algumas alusões
O REINO CHEGOU - CUMPRIMENTO 85
alcance para uma perspectiva correta tanto quanto à presença como quanto ao
caráter provisório da vinda do reino. No nosso próximo capítulo, entraremos mais
profundamente neste assunto.
A título de apêndice, mencionamos a opinião de O. Cullmann com respeito
à relação entre a messianidade de Jesus e a vinda do reino de Deus.104 Ele pensa
que a discussão interminável com relação ao reino de Deus no Novo Testamento,
se o mesmo é presente ou futuro, deve tomar outra direção se a diferença temporal
óbvia for mantida em vista entre basileia tou huiou (reino de Cristo) e basileia
to theou (reino de Deus). Ele se refere a iCoríntios I5.23ss como prova dessa
distinção. De acordo com Cullmann, o Regnum Christi (reino de Cristo) tem seu
fundamento na sua ressurreição e se inicia efetivamente com sua ascenção. Nesse
meio tempo, esse Regnum Cristi se mistura temporariamente com este éon, o que
significa dizer que a aniquilação definitiva dos poderes hostis a Deus ainda está
adiada. O estágio final do reino de Cristo ocorrerá na sua segunda vinda. Então,
terá início o conflito final. Dessa maneira, o Regnum Christi, com seu ato final,
alcançará o primeiro ato do mundo vindouro, o aioon melloon (era vindoura) da
nova criação. Na medida em que esse ato final já se sobrepõe parcialmente à era
vindoura, Cullmann o identifica com o milênio de Apocalipse 20.4ss. Depois
disso, “Cristo entregará o reino a Deus” e então o reino de Deus começará.
D e acordo com Cullmann, já que a obra de Cristo é decisiva para toda a
história do mundo, tanto no passado quanto no futuro, há a possibilidade de
todos as declarações caracteristicamente prolépticas concernentes ao reino no
Novo Testamento. Como tal, ele menciona como exemplo as declarações de
Jesus de que o reino já veio. “Agora que Jesus vive na terra, que veio a obter a
vitória por meio da sua morte, esses pronunciamentos prolépticos são naturais.”
E assim, segundo Cullmann, que se deve explicar por que, no Novo Testamento,
a distinção no uso lingüístico em geral entre a basileia do Pai e a do Filho não
é consistente. Esse reino de Cristo, é verdade, não pode ser separado do reino
do Pai, com relação ao seu conteúdo, do mesmo modo que o Filho não pode ser
separado do Pai. M as o reino de Cristo representa uma entidade separada no
sentido temporal, começando com a ascensão, continuando agora e encontrando
seu estágio final do início do mundo vindouro.105
Em tudo isso, há duas importantes perguntas implícitas. A primeira é se
os pronunciamentos acerca da vinda do reino antes da morte e da ressurreição
de Cristo têm um caráter proléptico. A segunda é se é permissível considerar o
Regnum Christi em sentido temporal, precedendo o reino escatológico de Deus
que é puramente futuro.
A primeira tese, como já vimos, é também defendida por Michaelis. Em
nossa opinião, não faz justiça ao significado da pessoa e da obra de Cristo antes
da sua morte e de sua ressurreição, pois, apesar de a morte e a ressurreição de
O REINO CHEGOU - CUMPRIMENTO 89
2. S eu c a r á t er provisório
Jesus aparecer proclamando que o tempo havia sido cumprido e que o reino
tinha vindo. Seus ouvintes simplesmente supuseram que a vinda do reino traria
o Dia do Senhor, o julgamento do mundo e o fim da realidade terrena. E esse
problema que encontrou expressão na pergunta do grande arauto e testificou de
sua incerteza e de sua dúvida: “Es tu aquele que estava para vir ou havemos de
esperar outro?” (M t 11.3).
Temos que investigar esse problema da modalidade da vinda do reino, que
já havia se iniciado nas palavras e obras de Jesus, e a relação entre essa presença
do reino e seu futuro. Haveremos não somente de identificar e comparar as de
clarações diretas sobre esse ponto, mas teremos que discutir a questão à luz do
evangelho como um todo.
posterior, portanto, dificilmente poderá ser concebida de outra maneira que não
em conexão com o próprio Maligno.
De acordo com Schweitzer, essa oração deve ser entendida num sentido
estritamente escatológico. A “tentação” é a grande aflição no drama messiânico
pendente no qual o mundo hostil se levanta uma última vez antes da vinda do
reino. Os discípulos deveriam, então, orar para que fossem preservados desse
sofrimento pela onipotência de Deus.4 Schweitzer relaciona esse pensamento
ao conflito pessoal do próprio Jesus no Getsêmane e às advertências de Jesus
aos seus discípulos para não entrarem em “tentação” (M t 26.41). Existem outros
que também concebem a “tentação” da qual Jesus fala no Getsêmane como o
sofrimento escatológico das “angústias” messiânicas (cf. M t 24.9).s
Essa última opinião, todavia, é insustentável dentro do escopo dos Evange
lhos, especialmente dentro dos chamados discursos apocalípticos dos sinóticos.
Eles falam de um futuro mais distante do que o da morte e dos sofrimentos de
Jesus.6 E também um estreitamento arbitrário e construtivo da sexta petição se
a tentação mencionada nela for aplicada somente à “aflição” vindoura do período
final.7 Isso, contudo, não altera o fato de que, tanto nesse caso quanto na história
da Paixão (especialmente na cena do Getsêmane), devemos estar conscientes da
estreita ligação entre a tentação e a ameaça da parte do Maligno e a ideia do
reino. Assim como, desde o início do ministério de Jesus, o Maligno dirigiu seus
ataques especiais para fazê-lo cair (a tentação no deserto), do mesmo modo os
discípulos de Jesus são o alvo especial da inimizade e do propósito maligno de
Satanás. Isso transparece na oração do pai-nosso, na qual a libertação do Maligno
é a conclusão da oração pela vinda do reino. Também fica evidente em passagens
como Lucas 22.31, na qual Jesus declara, especialmente à luz de seu sofrimento
e de sua morte, que Satanás os reclamou para peneirá-los como trigo, mas ele
orou por eles, para que a fé que eles tinham não desfalecesse. Nesse versículo, a
palavra “reclamou” (exetesato), “desejou ter”, é impressionante. A representação
corresponde à de Jó 1.9ss (cf. Ap 12.10; Zc 3.1ss).8 Satanás aparece como aquele
que exige que os discípulos sejam provados. Ele quer que sejam expostos como os
que ficam ao lado de Deus e participam da sua salvação sem que mereçam isso.
Talvez esse “peneirar como trigo” signifique a obra também atribuída ao Messias
por vir no último julgamento (M t 3.12) e, assim, Satanás é aqui representado
como o Anticristo,9 que, no fogo da prova, tentará arrastar para si todos que
aparentam pertencer a Deus. De qualquer modo, ele age aqui como o grande
adversário de Cristo que quer roubar dele o seu prêmio.10
E em oposição a isso que Jesus faz a sua oração. H á um contraste impres
sionante entre exigir e orar. Na oração, há um elemento de submissão. Aqui,
também o ego de (“Eu, porém”) não pode ser ignorado (cf. acima, §13). E o ego
messiânico.11 Cristo protege seus discípulos nas provações a que são submetidos.
94 A v in d a d o R e in o
Ele não pode evitar que as provações lhes sobrevenham, já que, por um tempo,
ele precisa entregá-los nas mãos do tentador (cf. M t 26.31), pois essa é a “hora”
de seus inimigos e “o poder das trevas” (Lc 22.53). Somente mais tarde a rei
vindicação de Satanás poderá ser rejeitada (cf. Ap 12.10). No momento, isto é,
no momento em que o próprio Jesus tem que se entregar, sua oração se levanta
sozinha em oposição à reivindicação de Satanás. Mas, como oração do Mediador,
ela é suficiente para manter a fé dos discípulos durante a provação.
Isso tudo mostra que, tanto na vinda de Jesus como em sua obra, a luta
contra Satanás atingiu uma crise e que essa luta não está terminada, mas tem de
prosseguir com toda a energia. A vitória obtida por Jesus como o Cristo ainda
não é definitiva. Isso é aplicável a ele mesmo: depois da tentação no deserto, o
diabo se aparta dele “até momento oportuno” (Lc 4.13), o que significa, qualquer
que seja o modo em que a frase seja traduzida,12 que Satanás haveria de voltar.
Também se aplica à vida que Jesus redimiu do poder do Maligno. Jesus adverte
enfaticamente contra esse poder em Mateus 12.43-45 (cf. Lc 11.24-26).
Essa passagem em Mateus fala primeiramente do espírito imundo que sai
de um homem, numa maneira típica de se referir aos demônios que são expul
sos dos possessos diante de um poder superior. É muito impressionante que a
advertência contra a reincidência no mal antigo se encontre, tanto em Mateus
como em Lucas, em estreita ligação com as passagens referidas como “sermões
Belzebu”, nas quais Jesus testifica da maneira mais clara possível do seu poder
superior sobre o diabo e da vinda do reino manifestada nessa superioridade (cf.
acima, §9). Esse “sair do espírito imundo” deve ser, portanto, concebido como
sendo resultado da ação de Jesus. E, como transparece de Mateus 12.45 (“Assim
também acontecerá a esta geração perversa”), isso se refere não apenas a um caso
concreto, mas ilustra a totalidade da ação salvadora de Jesus manifestada em
Israel. Esse fato implica vitória sobre Satanás e é evidência (para a fé) da vinda
do reino. Tudo isso, contudo, é acompanhado da advertência: o espírito imundo
retornará à sua presa. Ele ainda não foi banido da terra; foi expulso da habitação
humana somente por um período, como alguém que é temporariamente expulso.
Ele anseia por voltar e voltará para “a casa” de onde saiu. E, ao encontrá-la “vazia,
varrida e ornamentada”, ou seja, não ocupada por um novo habitante (o Espírito
Santo!), retornará com um bando completo de demônios e tomará posse outra
vez da antiga casa, de modo que “o último estado desse homem será pior que o
primeiro”.
Isso tudo mostra claramente que, com a vinda e o ministério de Jesus, o
poder do Maligno não cessou. Somente em comunhão com Cristo é que existe
alguma proteção contra as hostes do diabo. A velha casa precisa mudar seus
habitantes. Não é suficiente que ela fique temporariamente vazia e que aparente
ser um modelo de ordem e limpeza. Exatamente por causa do estágio decisivo no
O REINO CHEGOU - SEU CARÁTER PROVISÓRIO 95
d) De acordo com Greijdanus, a permissão que Jesus deu aos demônios para
entrarem nos porcos é, talvez, uma indicação de que seus donos eram
judeus e que estavam sendo punidos por criarem porcos.32 Sem entrar
na questão sobre se seria plausível que Jesus punisse aqueles homens que
98 A v in d a d o R e in o
e) De acordo com Calvino, o pedido dos demônios foi uma tentativa deles
de levarem os habitantes daquela região a se voltarem contra Jesus, e a
permissão de Jesus foi um teste para os gerasenos. E também possível
- assim pensa Calvino - considerar essa permissão como uma punição.
Ele continua: Caeterum ut nulla nobis constet certa radio occultum tamen
Dei iudicium reverenter respirece etpia humilitate adorare convenit.MAssim,
Calvino hesita. Em nossa opinião, sua explicação acrescenta mais um mo
tivo, o qual dificilmente, todavia, poderia ser a razão principal que levou
Jesus a dar a permissão. Certamente existe evidência, aqui, da superstição
dos pagãos, os quais estavam receosos da presença prolongada de Jesus.
Mas é bastante duvidoso que se possa inferir da permissão que Jesus deu
aos demônios que ele estava testando aqueles pagãos, visto que Jesus não
havia ainda operado entre eles.
g) O pavor dos porcos não pode ser explicado como resultado da entrada dos
demônios neles. Foi causado por um último espasmo do lunático, antes
da sua cura, segundo Gould.38 Essa explicação, também, tenta se livrar
do caráter sobrenatural do relato e não pode servir como uma exegese da
passagem.
céus. Os dois são correlatos não somente em sua manifestação, mas também em
seu caráter velado. E por isso que o velamento do Messias significa também o
velamento do sinal, como transparecerá mais claramente em nossa discussão
acerca da autorrevelação de Cristo como o Servo do Senhor.
c) Esse é o motivo pelo qual há uma estreita ligação entre um milagre ope
rado por Jesus e z je d o povo. Eles são mutuamente dependentes. Por um lado, o
milagre serve para fortalecer a fé na missão e na autoridade de Jesus (cf., p. ex.,
M c 2.1-2). Por outro, não há lugar para a ocorrência de um milagre onde este
não seja esperado em fé. O exemplo mais impressionante desse fato é a declara
ção em Marcos de que Jesus “não pôde fazer ali (em Nazaré) nenhum milagre,
senão curar uns poucos enfermos, impondo-lhes as mãos” (Mc 6.5). A causa foi
a incredulidade. Esse fato tem sido explicado como se Jesus dependesse psiqui
camente daqueles a quem deveria curar.43 Porém, noutro contexto, está registrado
que Jesus também realizou milagres a distância (cf. M t 8.13; Jo 4.50). E, quanto
aos habitantes de Nazaré, fica evidente, em Lucas 4.23 (cf. também M c 6.2),
que os habitantes esperavam e desejavam os milagres de Jesus. Quando, todavia,
ele realiza poucos milagres (ou nenhum), a causa registrada é que os moradores
O REINO CHEGOU - SEU CARÁTER PROVISÓRIO 101
de Nazaré não creram nele (Lc 4.22) e mesmo se ofenderam com o que ele fazia
como se fosse algo indigno dele (Mc 6.3-4). Portanto, aqui, a questão não é se
Jesus possui o poder de operar milagres, mas se ele estava livre para operar milagres
em todas as circunstâncias. Onde não há fé, não há lugar para um milagre. Ele
não podia operar milagres ali porque, em tais circunstâncias, o milagre tomaria
o caráter de um ato de poder sem o pano de fundo do qual os milagres derivam
seu significado e que permite que sejam compreendidos. As palavras “não pôde
lazer”, em Marcos 6.5, portanto, devem ser entendidas como uma impossibi
lidade dentro do escopo da tarefa e da atividade de Jesus.44 Aparentemente, é
nesse sentido, também, que a versão de Mateus deve ser entendida, quando ele
diz simplesmente que Jesus não fez muitas obras miraculosas ali por causa da
incredulidade dos moradores da cidade (M t 13.58).
O que foi dito acima também explica por que, em mais de uma ocasião, Jesus
se recusou a dar um sinal quando desafiado por seus inimigos. Isso se aplica não
somente a ele pela razão mencionada no ponto (a) acima (cf. M t 4.1-7; 27.39ss
e paral., como o desafio feito ao pé da cruz por seus adversários), mas também de
modo geral (M t 12.38ss; 16.1ss, p. ex., o pedido de um sinal, cf. Jo 7.3ss; IC o 1.22).
A palavra “sinal” aqui (semeion) significa, aparentemente, a inequívoca prova divina
(“do céu”) de que Jesus realmente agia com poderes messiânicos e divinos. Como
tal, os adversários de Jesus consideravam seus milagres como insuficientes. Isso
revela que não somente aos olhos dos inimigos explícitos de Jesus, mas também
da multidão em geral, os seus milagres não eram vistos como provas concretas
da sua missão e da vinda do reino. Às vezes, as multidões duvidavam (cf. M t
12.22-23), pois o verdadeiro significado do milagre só era discernido quando a
fé estava presente. Consequentemente, embora Jesus, em geral, não deixasse de
realizar milagres perante o povo, o sentido próprio e profundo destes permanecia
encoberto para a maioria. A decisão com respeito a Jesus não se encontrava nos
milagres como tais, mas no segredo de sua pessoa e de sua pregação.
Ele rejeitava com palavras fortes e cheias de autoridade o desafio daqueles
que, abertamente, se opunham a ele (cf. M t 8.12, “em verdade vos digo que a esta
geração jam ais ,s se dará sinal algum”). Em Mateus 16.2-3 (pelo menos de acordo
com manuscritos muito antigos), Jesus os repreende por não poderem “discernir”
“os sinais dos tempos” (cf. Lc 12.54-56). Isso mostra que há realmente sinais que
indicam que o tempo em que eles viviam era um tempo especial, qualificado,
um momento decisivo no curso da História. Porém - como uma geração ímpia
e adúltera - eles eram incapazes de discernir o significado decisivo dos sinais,
uma vez era necessário ter fé para isso. E por isso que Jesus não lhes daria outro
sinal senão o sinal do profeta Jonas. Esse dito enigmático nos foi dado de forma
mais elaborada em Mateus 12.40. Ali, Jesus prediz que o Filho do Homem
permanecerá no coração da terra do mesmo modo que Jonas esteve no ventre
102 A v in d a d o R e in o
do monstro do mar por três dias e três noites.46 E esse é o sinal que será dado a
“esta geração”.
Quanto a esse dito, é verdade que somente os que têm ouvidos para ouvir
podem entendê-lo. O seu sentido, entretanto, é inequivocamente percebido à luz
do seu cumprimento. Nesse caso, também, é evidente que a revelação do reino
está ligada à do Messias. Mas, antes de tudo, ele é aquele que tem de sofrer,
morrer e ressuscitar antes de entrar em sua glória como o Filho do Homem e
Juiz do mundo. Daí, por esse motivo, ele mesmo, a vinda do reino e os milagres,
só podem ser percebidos pela fé.
d) Tudo isso mostra claramente o sentido dos milagres operados por Jesus.
Eles indicam a vinda do reino e também são sinal tanto da veracidade do poder
messiânico de Jesus como do conteúdo da sua pregação. M as, como sinais do
“tempo” (kairos) iniciado com a vinda de Cristo, serão entendidos somente pela
fé, E possível escandalizar-se com respeito a Jesus e sua pretensão, não obstante
seus milagres (Mc 6.2-3; M t 11.2-6). Isso decorre do fato de que o reino, em
seu irromper visível e palpável (os milagres), seja somente de caráter provisório.
Os milagres indicam a vinda do reino e apontam para a palingênese cósmica
mencionada por Jesus em Mateus 19.28. M as eles não são o início dessa palin
gênese, como se ela consistisse no término dos milagres. O fato de incorporar a
ressurreição dos mortos e a renovação do mundo indica que ela não pertence à
época atual. Ela até mesmo pressupõe a precedência da catástrofe cósmica (cf.
M t 24.29,35,39; 2Pe 3.7,10,12,13; Hb 12.26-29). É por isso que os milagres
têm somente um significado incidental. Esse é o sentido de autoridade dada
por Jesus aos discípulos para curar os doentes, ressuscitar os mortos, purificar os
leprosos, expelir demônios (M t 10.1, etc.). M ais ainda, isso deve também signi
ficar que eles não recebem a promessa de levar o domínio de Satanás a um fim
“antes do tempo” e nem de introduzir um estado de salvação e felicidade na terra.
M as eles são instruídos a mostrarem os sinais da absoluta competência e poder
de Cristo, e, assim, espalharem e confirmarem a fé na vinda do reino em Jesus
Cristo. Isso eles devem fazer dentro do escopo da obra messiânica de salvação
realizada por Cristo e em sujeição ao modo pelo qual essa obra se manifesta na
época do presente mundo.
Isso significa que um milagre é tanto uma demonstração do poder de
Jesus sobre o Maligno quanto um sinal da futura palingênese. M as isso só tem
importância em associação com a pregação do evangelho e em subserviência a
ele. Em nenhum lugar dos Evangelhos encontramos um milagre que tenha uma
função independente ou transcendente separada da pregação do evangelho. No
evangelho, qualquer outra tentativa de revelar os poderes miraculosos de Cristo
é originada pelo diabo e por aqueles que tentam a Cristo (peirazontes) (M t 16.1;
O REINO CHEGOU - SEU CARÁTER PROVISÓRIO 103
parábolas (p. ex., a parábola do senhor e dos servos é vista como uma exortação
para que se cumpra fielmente as obrigações; a parábola do rico louco é uma
imagem da dependência do homem; a parábola dos talentos significa que não
existe recompensa sem esforço; etc.).
A visão escatológica consistente deu às parábolas uma interpretação intei
ramente escatológica. Ela tentou deixar claro que Jesus fala acerca da certeza do
reino vindouro, especialmente no conhecido capítulo das parábolas, Marcos 4,
e passagens paralelas.49 Essa visão levou ao desenvolvimento da noção de que
explicações generalizantes e atemporais, como, por exemplo, as de Jülicher, não
fazem justiça ao evangelho. Desde então, o foco tem sido a pergunta sobre o
significado real das parábolas dentro do escopo das pregações e atividades de
Jesus. Deve ser feita, aqui, uma menção especial a The Parables of the Kingdom,
de C. H. Dodd, já citada por nós.50 Embora tenha uma visão predominantemen
te ética do conceito do reino, ele não considera as parábolas como padrões de
uma moralidade absoluta e sim como uma explicação detalhada da modalidade
da dispensação da salvação que se iniciou com a vinda de Cristo. Também em
Joachim Jeremias encontramos uma nova tentativa de “colocar as parábolas no
contexto da vida de Jesus”, como ele mesmo diz na sua descrição da interpretação
de Dodd. Ele seguiu Dodd nisso, apesar de sua própria visão do reino dos céus
ser bastante diferente da de Dodd.51 E verdade que tanto Dodd quanto Jeremias
sustentam que várias das parábolas que nos chegaram só podem ser explicadas à
luz da situação da igreja cristã posterior, mas, em todas as parábolas, há mais ou
menos um eco da situação histórica da vida de Jesus.
Embora, por um lado, nem sempre seja possível indicar os detalhes da
situação em que as parábolas foram contadas, fica claro, por outro lado, que
devemos julgar o significado delas de acordo com o conteúdo geral da pregação
de Jesus, ou seja, como ilustrações do reino dos céus proclamado por ele. Como
tal, as parábolas são frequentemente introduzidas com a fórmula “o reino de
Deus (dos céus) é semelhante...”, etc. Assim, Marcos 4.26 (a da semente); 4.31
(a do grão de mostarda; cf. Lc 13.18) e Lucas 13.20 (a do fermento); em Mateus
13.44 (a do tesouro escondido num campo); em 13.45 (a da pérola de grande
valor); 13.47 (a da rede); em 18.23 (a da remissão de pecados); em 20.1 (a dos
trabalhadores na vinha); em 22.2 (a do banquete de casamento); em 25.1 (a das
virgens prudentes e as néscias), cf. também 25.14 (a dos talentos). M as mesmo
que essa fórmula não ocorra, as parábolas não podem ser consideradas como
uma parte independente da pregação de Jesus para propagar verdades morais de
caráter geral ou princípios dogmáticos. Pelo contrário, elas estão estreitamente
ligadas com o caráter histórico-redentor especial da missão e da pregação de
Jesus. As parábolas ilustram as diferentes facetas de sua pregação. Elas podem
servir para elucidar as ordenanças de Jesus ou podem apontar as deficiências
O REINO CHEGOU - SEU CARÁTER PROVISÓRIO 105
céus que começou com a vinda de Jesus. O reino chegou, o Messias foi revelado,
mas isso só pode ser discernido pela fé, o que eqüivale a dizer, pela graça de Deus.
Um dia isso será mudado. Então, até mesmo os inimigos verão o reino e terão
de reconhecer o Filho do Homem (M t 23.39; 26.64). O método da pregação
do evangelho está de acordo com essa modalidade especial, embora, num sen
tido diferente, antes e depois da morte e da ressurreição de Jesus (cf. M t 10.27;
16.20; 17.9 e outros lugares),64 mas sempre de tal modo que a pregação do reino
tem um efeito duplo, isto é, de revelar e de ocultar, de graça e de julgamento (cf.
também M t 10.12-15).
18. O semeador
seja, que Jesus Cristo e o reino haviam chegado), e a demora do fim, a colheita,
a consumação. Essa tensão é a ocasião, a “situação” da parábola. E é exatamente
essa tensão que é ignorada por essa interpretação escatológica parcial da parábola.
Os discípulos, contudo, haviam entendido que o reino e o Cristo haviam chegado
- o que é negado por essa concepção escatológica parcial. Essa situação, isto é,
do reino como uma realidade presente, requeria uma resposta diferente daquela
dada pela perspectiva da “escatologia conseqüente”! Se essa “situação” não for
claramente compreendida e declarada, essa parábola, que é parte da pregação de
Jesus, permanecerá ininteligível e sua exegese se perderá em generalidades.80
Tudo o que foi dito acima tem sua conclusão e confirmação provisórias nos
importantes aforismos que concluem todo o complexo da tradição da parábola do
semeador em Marcos e Lucas. Isto é, o aforismo de que a luz não deve permanecer
oculta, mas colocada no velador, aforismo esse que é seguido por essa declaração
geral: “Pois nada está oculto, senão para ser manifestado”, etc., e a advertência:
“Atentai no que ouvis. Com a medida com que tiverdes medido vos medirão
também, e ainda se vos acrescentará. Pois ao que tem se lhe dará; e, ao que não
tem, até o que tem lhe será tirado” (Mc 4.21-25; Lc 8.16-18, cf. M t 13.21).
De acordo com o contexto, esses aforismos só podem se aplicar ao caráter
da instrução dada nesse caso.81Jesus diz que o propósito de se acender uma luz
é sempre espalhá-la, e que o que permaneceu oculto por um longo tempo está
obrigado a vir à luz. Isso se aplica, em primeiro lugar, à forma da pregação. Haverá
uma época em que os discípulos tornarão público o que está velado sob a forma
de parábola (cf. também M t 10.26-27, onde as palavras “pois nada há encoberto,
que não venha a ser revelado” são seguidas de “o que vos digo às escuras, dizei-o
a plena luz; e o que se vos diz ao ouvido, proclamai-o dos eirados”).
Portanto, mesmo na proclamação do evangelho há um clímax que vai do
mistério à revelação. Um dia, o mistério do semeador será revelado e os de fora
ouvirão a palavra acerca do reino e acerca de Jesus como o Cristo, sem qualquer
situação específica ou ocultamento. Essa tarefa dada por Jesus aos seus discípulos
tem a ver com a futura pregação deles e está estreitamente ligada com o presente
auto-ocultamento de Jesus como o Cristo (veja §22, mais adiante). A ressurrei
ção ocasionará uma pausa ( caesura) por meio da qual uma grande mudança será
efetuada na maneira pela qual o reino será pregado.
No entanto, esses aforismos se referem não apenas à forma e à proclamação
do reino, mas também ao reino como tal. Um dia, ele perderá sua modalidade
oculta e se manifestará plenamente revelado. Isso está explicitado não somente
pelo propósito geral do dito “Pois nada está oculto, senão para ser manifestado”
(em conexão com M c 4.11), mas também pelos ditos finais concernentes à ma
neira verdadeira de se ouvir. Já que o mistério haverá de se tornar público, ouvir
é muito importante agora. Pois o que haverá de ser recebido em última instância
114 A v in d a d o R e in o
no reino de Deus depende do que a pessoa “possui” agora, pois, “ao que tem se lhe
dará; e, ao que não tem, até o que tem lhe será tirado”. E aquilo que uma pessoa
“tem” depende do ouvir, isto é, da maneira com que ela se torna responsável pela
palavra do reino que tem sido espalhada como a semente. Esse ouvir é, agora, “a
medida com que tiverdes medido” (Mc 4.24). Se essa medida for rica e grande,
isto é, se o reino, como é pregado, for aceito com grande zelo e receptividade,
uma porção rica será recebida em medida semelhante na revelação vindoura do
reino, e mais “se lhe dará”. A revelação trará uma salvação e uma bênção ainda
mais ricas do que alguém ousa esperar, mesmo ouvindo com fé.82
Aqui, também, tudo se concentra na unidade do reino no presente e no
futuro. O que alguém recebe do Semeador também será recebido do Juiz em
medida dobrada. Somente aqueles que conhecem o mistério no presente parti
lharão da revelação no futuro, pois a semente é a palavra do reino de Deus pela
qual ele vem ao mundo em Cristo.
que essa passagem tem a ver com a igreja e que, nela, Jesus quer advertir contra
um excesso de zelo, como se fosse possível executar, aqui na terra, a separação
que é privilégio do Filho do Homem no julgamento final.84 Essa exegese muda
completamente o ponto em discussão e nos priva da visão correta da parábola.
Porque, para não mencionar as outras objeções intransponíveis,85 o que os
servos sugerem ao patrão não é algo provisório, uma separação até que se diga o
contrário, que só pode ser aplicada aos seres humanos pelos seus companheiros
(na igreja). O que eles propõem é a separação final do joio do trigo e a sua ex-
terminação. Ou, para colocar de modo real, a separação definitiva no julgamento
divino. A questão entre os servos e o dono do campo não é quem vai executar
a separação, nem que tipo de separação, mas quando ela ocorrerá. Apesar de os
servos desejarem realizar uma separação imediata, o senhor determina que ela
seja adiada até o dia da colheita, pois - assim ele diz aos servos - dessa maneira,
não correrão o risco de arrancar o trigo juntamente com o joio.
Essa parábola, mais uma vez, lança luz sobre a relação entre a presença e o
futuro do reino. Ela trata o problema levantado pelos pronunciamentos sobre a
presença atual do reino, isto é, o adiamento do julgamento final e a continuação
da mistura de bons e maus, mesmo depois de o reino ter chegado.
A resposta é uma continuação direta do que apareceu na parábola do
semeador. Já que o reino chegou como uma semente e já que o Filho do Homem
é, primeiro, o semeador (v. 37), antes de ser aquele que colhe (v. 41), o julgamento
final é adiado. A demora está implícita nessa diferença. Quem semeia não pode
colher imediatamente. O adiamento do julgamento é determinado pela moda
lidade do reino de Deus que já chegou com Cristo.
Ignorar esse ponto de vista leva a uma superficialidade óbvia na concepção
do significado da parábola. Isso ocorre quando a presença do reino não é levada
em conta e o reino é representado como sendo uma realidade exclusivamente
futura. Então, a explicação que se dá, nesse caso, é que Jesus queria admoestar
seus discípulos a terem paciência porque a separação que eles esperavam seria
realizada somente no juízo final (essa é a interpretação, p. ex., de R. Bultmann,
Gesch. D. synopt. Tradition [História da tradição sinótica], 2a. ed., 1931, págs.
202-203; W. Michaelis, Sãmman, págs.74-75). Porém, desse fato os discípulos
já estavam convencidos. O que precisava ser explicado a eles era o adiamento
do julgamento mesmo após Jesus, o Cristo, ter chegado. O problema não residia no
fato de que o reino do Messias ainda não havia chegado, mas, ao contrário, na
presença atual tanto do Messias quanto do seu reino. Isso, todavia, é negado por
Bultmann e Michaelis. Outros escritores são da opinião de que Jesus ensina aos
seus discípulos que a separação entre os ímpios e os bons é um privilégio exclu
sivo do Filho do Homem, com o qual os homens não deveriam se intrometer
(como H. D. Wendland, op. cit., p. 35; W. G. Kümmel, op cit., p. 82). M as, se
116 A v in d a d o R e in o
isso é verdade, o ponto central da parábola não é descoberto, pois o fato de que
a separação tinha de ser feita pelo Filho do Homem (e não por seres humanos)
não precisava ser dito aos discípulos com o propósito de capacitá-los a dominar a
sua impaciência. Muito pelo contrário, essa convicção foi a causa da impaciência
deles. A mesma razão pela qual lhes foi dado conhecer os mistérios do reino e
pela qual vieram a reconhecer Jesus como o Filho do Homem também tornou
problemático para eles o adiamento do dia do julgamento. Como seria possível o
reino ter vindo sem fazer a separação entre os ímpios e os bons? Essa era a causa
da impaciência deles e é a isso que a parábola dá uma resposta.
Nesse sentido, o ponto de partida de Dodd é muito mais recomendável,
apesar de ele só estar disposto a aceitar a presença do reino. De acordo com
ele, o objetivo de Jesus, nesse caso, é instruir aqueles que acham difícil aceitar a
vinda do reino pelo fato de que ainda existem muitos pecadores em Israel. Mas
a interpretação que Dodd faz da parábola é muito típica dele. Ele pensa que
Jesus dá a seguinte resposta aos que duvidam: do mesmo modo que o dono de
um campo não adiaria a colheita porque nesse tempo aparece o joio no meio do
trigo, a vinda do reino não é adiada pelo fato de existirem pecadores em Israel
(Dodd, op cit., p.185). Se quisermos seguir Dodd, não devemos eliminar “tão
completamente quanto possível” a explicação da parábola nos versículos 36 a 42,
onde a colheita é fixada para “a consumação do século”, mas teremos até mesmo de
reverter o significado da própria parábola. Ela fala da colheita como o momento
em que a separação não pode mais ser adiada, o momento em que ela deve ser
realizada. Em outras palavras, ela fala da futura manifestação do reino, o que,
entretanto, Dodd rejeita enfaticamente. Do que foi dito acima, transparece que
tanto a negação da presença quanto a negação do futuro do reino nos priva da
possibilidade de obter a perspectiva correta dessas parábolas.
Podemos nos perguntar a que ponto o propósito geral da parábola pode ser
elaborado além disso, principalmente com respeito ao temor do dono do campo de
que, junto com o joio, o trigo também venha a ser arrancado. É esse um “elemento
simbólico” ou pertence somente ao imaginário da parábola? A dificuldade de se
chegar a uma interpretação bem embasada dos detalhes se deve ao fato de que
não estamos certos da causa do medo do dono do campo. Geralmente se assume
que o joio, aqui (latim: lolium temulentum), era tão parecido com o trigo que, pelo
menos naquele estágio, era muito difícil distinguir um do outro.86 Autoridades
modernas sobre a Palestina, entretanto, são da opinião de que a causa é outra,
pois, quando o joio se torna visível, o grão de trigo já está formado (v. 26). Então,
não havia mais qualquer perigo de confundir os dois. M as outro perigo havia
tomado o lugar do primeiro risco, já que as raizes de ambas a plantas podem ter
se entrelaçado tanto nessa fase, que o joio não poderia ser arrancado sem o risco
de arruinar o trigo.87
O REINO CHEGOU - SEU CARÁTER PROVISÓRIO 117
O traço específico deve ser achado no grão de mostarda, que é uma das
menores sementes (M t 17.20). Porém, quando cresce, é maior do que qualquer
outra hortaliça e pode até ser comparada com uma árvore, em cujos galhos as aves
dos céus podem construir seus ninhos. Essas palavras concordam com Daniel
4.21, onde a glória de Nabucodonosor e de seu império é descrita. O objetivo
da parábola é, claramente, contrastar o começo pequeno e insignificante com o
cumprimento glorioso. Isso deve ser aplicado ao reino e à sua vinda. Trata, mais
uma vez, do caráter confuso da atual manifestação do reino e de Cristo para
aqueles que conhecem o mistério do reino. Seu princípio pode parecer pequeno
e insignificante, não tenhamos dúvidas sobre isso. M as lembremo-nos do grão
de mostarda. Um dia o reino dos céus ultrapassará os reinos deste mundo (Dn
4) em glória.
Nesse caso, devemos, igualmente, rejeitar a opinião de Dodd de que o
tamanho enorme da semente de mostarda plenamente desenvolvida se refere à
manifestação do reino que já chegou com Jesus e cujas bênçãos já foram colo
cadas à disposição de todos os homens. O processo do desenvolvimento oculto
agora teria chegado ao fim.98 M as essa opinião está totalmente em conflito com
a tendência geral do ensino de Jesus nessas parábolas. Essa parábola, também,
tem uma conclusão escatológica.
No entanto, mesmo se a opinião de Dodd for rejeitada, permanece uma
controvérsia irreconciliável quanto à questão sobre se Jesus, nesse caso, contrasta
exclusivamente o futuro grandioso do reino com a sua presença atual (qualquer
que seja a forma em que é concebida; p. ex., como um sinal) - de modo que,
nesse caso, Jesus quis fazer um contraste somente entre o começo e o fim - ou
se existe também alguma indicação do processo do desenvolvimento do reino que
acontece no meio-tempo." Em nossa opinião, a ênfase reside no cumprimento
glorioso que serve de conforto para aqueles que se admiram com o início pequeno
do reino. Ainda assim, é antinatural manter os olhos fixos somente no princípio
e no fim e eliminar de todo jeito tudo o que existe no meio. Tudo depende da
ideia que é formada quanto ao caminho no qual o progresso é feito do início ao
fim maravilhoso. Pois o fato de que a vinda final do reino é totalmente baseada
na ação de Deus mostra que o fim não é a finalização de um processo imanente
de desenvolvimento. E isso é verdadeiro também com relação ao início. O todo
da manifestação do reino é fruto da ação divina. A semente é a Palavra de Deus
falada por Cristo com autoridade. Essa palavra de poder, um dia, fará nova todas
as coisas.100 Porém, entre o princípio e o fim, existe uma História. Nessa História,
a Palavra progrediu e teve efeito. Não se pode pensar nesse progresso no sentido
da ideia moderna de evolução, mas como o plano e a obra de Deus. Portanto, os
discípulos devem aguardar os atos vindouros de Deus. Podemos considerar que
a árvore, com seus galhos, significa a abrangência mundial do reino, ao mesmo
122 A v in d a d o R e in o
delas, porque estavam aflitas e exaustas como ovelhas que não têm pastor”. Outra
imagem é acrescentada, isto é, a da seara: “A seara, na verdade, é grande, mas os
trabalhadores são poucos. Rogai, pois, ao Senhor da seara que mande trabalhado
res para a sua seara” (cf. também Lc 10.2). Encontramos a mesma descrição em
Mateus 10.6; 15.24. Nesse caso, a passagem fala das “ovelhas perdidas da casa de
Israel” (taprobata da apoloota). Esse conceito to apoloos não é encontrado somente
nesse sentido geral, mas também num mais individual, como, por exemplo, na
história de Zaqueu. Em oposição ao murmúrio desaprovador da multidão quando
ele entrou na casa de um homem pecador, Jesus disse: “Hoje, houve salvação nesta
casa, pois que também este é filho de Abraão. Porque o Filho do Homem veio
buscar e salvar o perdido”. Algo importante que é característico dos pensamentos
que se encontram na base dessas declarações é a parábola da ovelha perdida (Lc
15.1-7), mais uma vez em contraste com os “noventa e nove justos que não neces
sitam de arrependimento” (v. 7). Em Mateus, igualmente, encontramos a parábola
da ovelha perdida (18.12-14), mas, como transparece do contexto, nesse caso se
aplica às relações dentro da igreja cristã.117 Em Lucas 15, a parábola da ovelha
perdida é seguida pelas parábolas da dracma perdida e do filho pródigo (vs. 8-10,
11-32), nas quais o conceito de “o perdido” mais uma vez tem um papel especial
(vs. 8-9,24,32). Acrescente-se a isso os ditos que especificam que o propósito
da vinda de Jesus foi procurar e salvar pecadores, como Mateus 9.13: “Pois não
vim chamar justos, e sim pecadores ao arrependimento”. Esse tema é elaborado
e explicado nas histórias em que Jesus, em contraste com os fariseus, se mistura
com pecadores notórios (cf., p. ex., Lc 7.37,39: Jesus é ungido por uma mulher
pecadora, e a palavra hamartoolos [pecadora] é usada duas vezes).
O interesse especial de Jesus pelo que está “perdido” é também muito
importante por causa de uma antítese religiosa dentro da nação judaica de seus
dias. Eles cultivavam a ideia de “uma nação dentro da nação”, uma ecclesiola in
ecclesia [uma pequena igreja dentro da igreja]. A verdadeira nação de Deus era
representada pelo partido dos fariseus e aqueles que observavam a interpretação
rigorosa da lei feita por eles, especialmente com respeito à pureza levítica e às
obrigações devidas aos sacerdotes. A antítese era formada pela massa daqueles
que não podiam obedecer à lei de modo tão escrupuloso, os chamados amhaãrets,
“o povo da terra”.118 Apesar de a expressão “o povo da terra” não aparecer nos
Evangelhos (c£, todavia Jo 7.49), não pode haver dúvida de que a expressão “os
perdidos”, aos quais Jesus se refere repetidas vezes, designa aquela categoria geral
de pessoas que eram desprezadas pelos fariseus e que haviam sido relegadas por
estes à sua própria sorte. Dentre estes, a ênfase recaía especialmente nos “pe
cadores” ou “publicanos e pecadores” mencionados nos Evangelhos em estreita
conexão com “os perdidos”. Estes eram não somente os que viviam em conflito
aberto com a lei de Deus e que eram, em conseqüência, mantidos a distância
126 A v in d a d o R e in o
representa o julgamento final e os ceifadores são os anjos (cf. acima §19). Aqui,
entretanto, os obreiros são seres humanos. Portanto, a “colheita” deve ser enten
dida como o cenário dos seus labores que está ali, pronto para eles. Ao mesmo
tempo, a colheita indica cumprimento. A busca e ajuntamento daqueles que
estavam perdidos é o começo da colheita. A colheita futura está sendo realizada
onde quer que Cristo proclame a Palavra de Deus com autoridade.125 Isso não
significa, como Dodd sustenta, que a ideia da colheita e do julgamento final deva
ser aplicada exclusivamente ao presente; é, na verdade, uma exceção que a colheita
se refira ao presente. Todavia, é evidente que, na busca das ovelhas perdidas, algo
da futura colheita está sendo cumprido, o qual, de maneira especial, concretiza
a dispensação da salvação do reino.126
Para mencionar somente um último ponto, tudo isso é confirmado nas
palavras bem conhecidas de nosso Salvador em Mateus 11.28: “Vinde a mim,
todos vós que estais cansados e sobrecarregados, e eu vos aliviarei”, as quais
também se aplicam a esse contexto. Pois os que estão “cansados e sobrecarrega
dos” estão com problemas não por causa de suas “preocupações” ou “pecados”,
mas especialmente pela “opressão” das prescrições farisaicas. Eles devem ser
considerados como “ovelhas sem pastor” nesse sentido particular.127 Não é uma
mensagem eterna de descanso para a alma deles. Essas palavras se originam da
consciência de que o grandioso momento decisivo dos tempos chegou, e de que
a redenção divina só pode ser buscada e encontrada em Cristo.128 Nessas palavras
do Salvador, Deus estende seus braços ao seu povo errante. Esse é o motivo pelo
qual, nesse caso, o reino está presente, apesar de todos os seus mistérios e de seu
caráter preliminar.
Qualquer tentativa,129 portanto, de se elaborar uma doutrina da redenção
que não seja baseada na pessoa e na obra de Jesus como o Cristo deve ser rejei
tada. Com base nesses ditos que falam da busca pelo perdido, teríamos apenas
a mensagem do amor paternal de Deus, o qual, todavia, estaria em contraste
evidente com o caráter histórico-redentor do evangelho. Só é possível que as
ovelhas perdidas sejam buscadas, que o filho pródigo retorne, que a salvação seja
pregada a publicanos e pecadores porque Jesus é o Cristo e porque, nele, o reino
de Deus chegou. Essa é a grande pressuposição das palavras de Jesus como Sal
vador com respeito ao que se havia perdido. Se separarmos essas palavras dessa
pressuposição, destituímos o evangelho de sua base. Sem dúvida, isso também
implica que Jesus, como o Cristo, é o esperado juiz do mundo, o Filho do Homem
sobre as nuvens dos céus. Além disso, não deveria haver controvérsia quanto ao
caráter cristológico do seu evangelho como um todo, incluindo o “evangelho
aos pecadores”. Na próxima seção, nossa tarefa será elucidar a “cristologia” dos
Evangelhos em relação com a modalidade especial do reino de Deus.
O REINO CHEGOU - SEU CARÁTER PROVISÓRIO 129
O teor de tudo o que foi destacado nas seções anteriores deste livro se cen
traliza num único ponto: a pessoa de Jesus como o Cristo. Nele está o mistério
de sua vinda, o cumprimento do reino dos céus (§13). Em sua ação e automanifes-
tação também se encontram a reflexão e a explicação do caráter preliminar desse
cumprimento. Esse último ponto deverá ser agora explicado em mais detalhes.
O conteúdo “cristológico” do evangelho tem dois pontos focais. Um deles é
formado por tudo o que foi dito acerca do Filho do Homem e seu poder. Nele já
brilha algo da sua glória escatológica. M as, ligado a isso, há também algo mais,
algo que é co-determinante, especialmente de seu caráter preliminar. E o fato de
que o Filho do Homem só pode exercer seu poder e glória de uma maneira especial,
determinada a elepor Deus. E é desse modo que ele próprio tem que obter a salvação
que prega a outros, ou seja, em sujeição e abandono à vontade de seu Pai.* Ou,
para dizer de uma vez nas palavras em que o conteúdo cristológico do evangelho
encontra a sua expressão mais fértil: o Filho do Homem e\ ao mesmo tempo, o Servo
do Senhor. Estes são os dois pontos focais que,juntos, determinam o conteúdo do
evangelho. Somente se ambos forem plenamente levados em consideração é que
poderemos entender o cumprimento que se iniciou com a vinda de Jesus, pois ele
jaz não somente na autoridade pessoal pela qual Jesus proclamou salvação, mas
também, e não em menor escala, na maneira pela qual a salvação é obtida por
ele como o Cristo. Portanto, torna-se claro que a pregação do evangelho, apesar
de espalhada como semente, ultrapassa tudo o que até agora havia sido revelado
em Israel. E o evangelho do cumprimento, pois não apenas proclama a salvação
que chegou, mas também no que essa salvação se baseia. Tanto uma coisa como a
outra formam o conteúdo da revelação e a história de Jesus como o Cristo.
A messianidade de Jesus, apesar de ser identificada por ele mesmo, desde o
princípio, com o Filho do Homem de Daniel 7, move-se, todavia, de um modo
que é determinado não somente por glória e poder, mas também por outros
fatores. Isso pode ser visto imediatamente quando, após ter sido proclamado
como o amado Filho de Deus por ocasião de seu batismo no rio Jordão, ele foi
guiado pelo Espírito ao “deserto”. Ali ele deveria ser tentado pelo diabo. A pa
lavra “tentado”, já de início, salienta o que deve ser discutido aqui. O encontro
de Jesus com o diabo não tem o caráter de uma prova de força, como pretendido
em Mateus 12.29, mas, trata-se de um teste ao qual Jesus tem de se submeter
para provar sua perfeita obediência ao Pai e seu compromisso com o mandato do
Pai. A intenção do tentador, portanto, não é tirar de Jesus sua certeza messiânica
ou fazê-lo duvidar do deleite do Pai expresso por ocasião do batismo. Mas, de
acordo com o relato de Mateus (pelo menos nas duas primeiras tentações), o
diabo tenta induzir Jesus a usar seus poderes messiânicos de um modo que não
130 A VINDA DO REINO
está de acordo com seu mandato. Em oposição a isso, Jesus recorre por três vezes
ao que “está escrito”. Desse modo, declara que, como o Messias e Filho de Deus,
ele também está sujeito à palavra de Deus e encontra nela a sua direção.
O conteúdo material das tentações mostra o caráter da missão messiânica
de Jesus. Por enquanto, ela inclui necessidades (a fome no deserto), exclui qual
quer prova de força espetacular com a providência divina (a segunda tentação
em Mateus) e não concede a Jesus o governo imediato sobre todos os reinos do
mundo (como foi oferecido a ele pelo diabo). Já estabelecemos que essa tentação
não tem a ver com a posse de honra e de poder sobre a terra, mas somente com
o modo pelo qual Jesus haveria de obtê-los. Aqui, entretanto, fica evidente que
a concessão de dignidade e autoridade messiânicas plenas a Jesus (cf. M t 28.18)
era caracterizada desde o início não somente como obediência e sujeição à von
tade do Pai, mas, ao mesmo tempo, exigia a sua disposição de aceitar até mesmo
aquilo que não parecia coadunar-se com sua divinamente proclamada dignidade
como o Filho de Deus.
Para que se tenha uma percepção da missão messiânica e da obediência de
Jesus, é importante considerar o uso freqüente, nos Evangelhos, da expressão
“é necessário” {dei) e da palavra “propriedade” (prepon), as quais Jesus deveria
observar ao levar avante sua tarefa. Esse “é necessário” (ou “deve/m”) ocorre com
muita frequência no Novo Testamento (especialmente em Lucas). Em primeiro
lugar, ele indica a vontade de Deus em geral, e, então, especificamente se refere
ao que deve ocorrer para a execução do conselho divino nos acontecimentos
escatológicos (cf., p. ex., Ap 1.1; 4.1; 22.6; M t 24.6; M c 13.10). A totalidade da
ação de Jesus como o Messias está sujeita a esse “é necessário” especial funda
mentado na vontade divina para efetivar a consumação.130Já havia determinado
a sua conduta como um menino de 12 anos, quando estava no templo no meio
dos doutores da lei (Lc 2.49, “Não sabíeis que me cumpria [dei] estar na casa de
meu Pai?”). Esse “me cumpria” o acompanha a cada passo de suas ações entre os
israelitas (Lc 4.43, “E necessário [dei] que eu anuncie o evangelho do reino de
Deus também às outras cidades”; Lc 13.16, “por que motivo não se devia \_dei\
livrar deste cativeiro... esta filha de Abraão”; Lc 19.5, “Zaqueu, desce depressa,
pois me convém [dei] ficar hoje em tua casa”).
M as é especialmente o final da vida terrena de Jesus que deve estar sujeito a
esse “é necessário”. A partir do momento em que Jesus contou a seus discípulos,
pela primeira vez, que lhe “era necessário” sofrer muito (M t 16.21; M c 8.31;
Lc 9.22), essa palavra, dei, ocorre repetidas vezes, especialmente em Lucas. Ela
pode ser usada para indicar Jerusalém como o lugar ordenado pelo decreto de
Deus, onde Jesus encontrará a sua morte (cf. Lc 13.33, “Importa [dei], contudo,
caminhar hoje, amanhã e depois,131 porque não se espera que um profeta morra
fora de Jerusalém”); ou para confirmar a necessidade de sofrimento antes da vinda
O REINO CHEGOU - SEU CARÁTER PROVISÓRIO 131
do Filho do Homem (cf. Lc 17.25, “M as importa [dei] que primeiro ele padeça
muitas coisas e seja rejeitado por esta geração”). Ou, também, para designar certas
facetas de seu sofrimento como o caminho do Messias prescrito pelos profetas (cf.
Lc 22.37, “Pois vos digo que importa que se cumpra em mim o que está escrito:
Ele foi contado com os malfeitores”).
Essa última citação mostra que o conteúdo desse importa foi não somente
determinado pelo conselho oculto de Deus, como também foi revelado, em
muitos aspectos, nas Escrituras. Por essa razão, não somente foi prescrito para o
Messias, como também poderia, portanto, ser compreendido por todos aqueles
a quem as Escrituras tinham sido “abertas” (Lc 24.25-27; a explicação dada aos
dois discípulos no caminho de Emaús - “Porventura, não convinha [dei\ que o
Cristo padecesse e entrasse na sua glória?”; cf. 44,46).
Essas passagens indicam que, em obediência ao Pai, Jesus, como o Messias,
tinha de cumprir uma tarefa que lhe havia sido imposta por Deus e que uma parte
considerável dela consistia em seu sofrimento e morte decretados pela vontade
divina com o objetivo da consumação final. Tem-se tentado anular o significado
disso tudo com a explicação de que essas declarações explícitas sobre a necessi
dade dos sofrimentos são vaticia ex eventu (profecias depois dos acontecimentos)
atribuídas à igreja cristã posterior.132 Outros têm pensado que, somente por causa
da atitude do povo é que Jesus chegou gradualmente à certeza de que Deus o
havia destinado ao sofrimento e à morte. Eles tentam sustentar essa opinião
com base em considerações psicológicas de vários tipos,133 ou seja, que Jesus
havia tido um tipo de conscientização psicológica ou certeza com respeito à sua
morte iminente. Pensam que era impossível que Jesus soubesse de antemão de
sua morte em detalhes.134
Em oposição a esses conceitos, deve-se manter que a ideia do sofrimento
e da morte de Cristo e a sua necessidade é um dos elementos mais essenciais do
kerigma de Cristo nos sinóticos. Desde o princípio, ela também determinou as
ações de Jesus em palavras e atitudes. Qualquer pessoa que queira atribuir essas
declarações à igreja cristã posterior deve, consequentemente, rejeitar todo o caráter
histórico do kerigma. Ou, então, deve reduzi-lo ao ponto de que reste apenas
muito pouco que seja certo acerca do Jesus histórico. Essa crítica, todavia, como
é encontrada no grupo radical da escola da crítica da forma, não está preocupada
com o caráter literário do evangelho, mas somente com os fatos registrados em
si, como foi mostrado mais de uma vez e das mais variadas formas.135
Uma análise cuidadosa dos Evangelhos mostra que o tema do sofrimento
se constitui não somente de uns poucos pronunciamentos explícitos feitos por
Jesus, os quais, se necessário fosse, poderiam ser eliminados sem qualquer prejuízo
para a estrutura do kerigma sinóptico. M as essa análise mostra que essas predi-
ções explícitas foram preparadas de várias formas diferentes na história anterior
132 A v in d a do R e in o
e foram seguidas por outras posteriormente. Todas elas têm um pano de fundo
muito mais profundo do que o curso da História como tal.
Quanto à História antes do acontecimento, existe, em primeiro lugar, certo
número de declarações isoladas no evangelho, as quais, de maneira mais velada,
falam da necessidade de sua total humilhação antes do anúncio explícito de
seu sofrimento (cf. M c 8.32, “E isto [seu sofrimento] ele expunha claramente”,
parresiai)PbComo, em primeiro lugar, o que ele disse acerca do noivo, em Mateus
9.15 e nas passagens paralelas. Fica claro, pela comparação do versículo 15a com
15b, que, nesse contexto, o noivo é uma indicação alegórica do M essias.137 E dito
que ele está com os convidados para o casamento somente temporariamente e que
haverá um dia em que ele será tirado deles. Essa é uma alusão implícita à morte de
Jesus. Muitos autores se sentem inclinados, de imediato, a tomar a segunda parte
dessa declaração sobre o noivo como uma “formação secundária”.138 Porém, essa
perspectiva está baseada num petitio principii [petição de princípios, um raciocínio
circular] e não tem provas. Também não há qualquer necessidade de mudar esse
dito para uma época na qual Jesus supostamente estava mais convencido de seu
fim iminente por causa da crescente inimizade do povo. Devemos, muito pelo
contrário, entender que essa palavra foi dita num tempo em que Jesus ainda não
havia falado abertamente e em detalhes aos seus discípulos sobre seu sofrimento
e sua morte, muito embora ele mesmo estivesse plenamente seguro quanto a isso.
O mesmo é verdadeiro sobre aquele dito enigmático no qual Jesus compara o
caminho do Filho do Homem ao caminho de Jonas: “assim como esteve Jonas
três dias e três noites no ventre do grande peixe, assim o Filho do Homem estará
três dias e três noites no coração da terra” (M t 12.40).139 E também aplicável à
declaração que diz “As raposas têm seus covis, e as aves do céu, ninhos; mas o
Filho do Homem não tem onde reclinar a cabeça” (M t 8.20). Essa citação men
cionada por último não se refere aos sofrimentos e à morte de Jesus, mas indica
que o lar do Filho do Homem não se encontra em lugar algum na terra. Ele tem
que suportar dificuldades e recusas. Em resumo, ele está a caminho da cruz. Para
o seu público inicial, essas palavras podem não ter tido esse significado, mas, no
escopo da tradição como um todo, é claro que Jesus fala de maneira “significativa”
e que, desde o princípio, o conceito de sofrimento foi integrado à totalidade do
kerigma histórico de Cristo.
À medida que a história que nos é contada pelos evangelistas prossegue,
essas declarações se tornam mais numerosas e lúcidas. Especialmente depois da
conversa que Jesus teve com seus discípulos nas vizinhanças de Cesareia de Filipe,
o sofrimento iminente passa a ser anunciado por meio de todo tipo de ilustrações
e parábolas. Isso ocorre, por exemplo, quando Jesus menciona “o cálice que eu
bebo... ou o batismo com que eu sou batizado” (Mc 10.38; cf. M t 20.22); ou no
seu “término” após o “hoje e amanhã” (Lc 13.32-33). Em outra passagem, ele
O REINO CHEGOU - SEU CARÁTER PROVISÓRIO 133
sua vida. Isso implicaria uma reminiscência do tempo em que ainda era sabido
que Jesus não tinha se colocado na posição de M essias.143
No momento, não pretendemos entrar nos problemas históricos desse
“mistério do Messias”. Nosso assunto, neste contexto, é o sentido relativo aos
fatos, em relação à questão sobre se o tema de seus sofrimentos, desde o início,
determinou, ainda que em parte, a missão messiânica de Jesus e sua autorreve-
lação. Para encontrar uma resposta, devemos, em primeiro lugar, reunir as várias
informações que nos são fornecidas, especialmente no Evangelho de Marcos.
Em primeiro lugar, devemos apontar para as repetidas proibições que
Jesus fez contra a divulgação de seus milagres (cf. M c 1.43-45; 5.43; e 7.36).
Relacionadas com essas passagens estão aquelas declarações em que ele tenta
fugir e se esconder das multidões (Mc 1.35-38, 45; 4.35; 5.1; 6.32; 7.24; 9.30) e
as em que se isola com aqueles que queriam ser curados por ele (Mc 5.40; 7.33;
8.23, cf. v. 26). E verdade que esse material traz somente indicações indiretas,
mas há passagens nas quais ele enfaticamente evita os demônios e os proíbe de
o tornarem conhecido como o Messias, quando eles se dirigiam a ele como tal
aos gritos (Mc 1.25,34; 3.12). Encontramos esse mesmo fenômeno frequente
mente expresso e descrito nas mesmas palavras ou em palavras proximamente
relacionadas depois da confissão de Pedro nas vizinhanças de Cesareia de Filipe
(Mc 8.30) e também depois da transfiguração no monte (Mc 9.9). Ali, os três
discípulos recebem a ordem para não relatarem a ninguém o que tinham visto
antes que o Filho do Homem ressuscitasse dentre os mortos (cf. também passa
gens paralelas em Mateus e Lucas).
Não há dúvida de que essas ordens incidentais para guardar sigilo não
deveriam ser entendidas de maneira geral e absoluta, pois Jesus aceita honra
messiânica ao final de sua vida e se revela ao Sinédrio como o Filho do Homem
que estava para vir. Também não se pode tratar da mesma maneira os fenômenos
acima mencionados, pois as restrições impostas por Jesus à sua autorrevelação
devem ser explicadas, em parte, a partir de motivos determinados por ocasiões
distintas. Ainda assim, os motivos peculiares e mais profundos não são exauri
dos desse modo, pois será uma representação equivocada do evangelho se144 o
auto-ocultamento de Jesus for reduzido somente a algo que depende da ocasião,
negando-se, assim, a esse auto-ocultamento uma tendência geral e um significado
mais profundo.
A primeira explicação direta para o auto-ocultamento encontra-se em
Mateus 12.15ss. Aqui, a proibição de Jesus contra a publicidade de sua pessoa
é vista como o cumprimento da profecia de Isaías acerca da aparência do Servo
do Senhor, o qual não procura angariar o favor do povo mediante ostentação e
publicidade. Essa conexão entre a aparência de Jesus e a do Servo do Senhor em
Isaías é muito importante, pois esse Servo do Senhor teria de pagar pela culpa de
O REINO CHEGOU - SEU CARÁTER PROVISÓRIO 135
ser dito que o tema do sofrimento é um dos fatores mais constitutivos a determi
nar o significado da pregação de Jesus sobre o reino.164 O Filho do Homem foi
investido por Deus de todo poder e autoridade para revelar o seu domínio e era,
ao mesmo tempo, aquele que “tinha” de sofrer e morrer. Ele veio para se entregar
como resgate por muitos. Tudo isso é a parte mais característica e “revolucionária”
da autorrevelação messiânica de Jesus - considerando-se a correlação existente
entre o Messias e o reino dos céus - e, consequentemente, também da revelação
do reino. A negação dessa ligação ou o fato de não lhe fazer suficiente justiça,
portanto, é uma das causas mais importantes para o surgimento de interpretações
parciais e erros na explicação da pregação de Jesus sobre o reino.
Ao mesmo tempo, o fim do evangelho (o kerigma do sofrimento, morte e
ressurreição) traz à luz de maneira surpreendente o significado profundo de todos
os tipos de declarações e de parábolas. Ignorar o tema do sofrimento na pregação
de Jesus acerca do reino é característica manifesta da interpretação que ainda está
influenciada pela imagem de Jesus concebida pelos liberais.165
Tem crescido cada vez mais a percepção de que deixar de tratar de maneira
justa a ideia do sofrimento destitui o evangelho, como um todo, do seu poder.
Aqui também a escatologia consistente, liderando uma crítica radical, tem lançado
ataques violentos à concepção liberal. Tem-se tentado estabelecer uma unidade
orgânica e indissolúvel entre a ideia de sofrimento no evangelho e o conceito
escatológico do reino de Deus. A teoria bem conhecida de Schweitzer serviu
ao mesmo propósito. Ele sustentou que, depois de esperar em vão pela irrupção
do reino, Jesus começou a ficar cada vez mais convencido de que somente a sua
própria morte poderia trazer o reino à realidade. Essa morte tinha um caráter
de substituição, pois, em seu sofrimento e em sua morte, Jesus tomou sobre
si a angústia que, de acordo com dogmas judaicos, teria de ser suportada pelo
mundo antes da vinda do Messias e do reino. D e acordo com Schweitzer, Jesus
morreu realmente pelos pecados dos homens, num sentido diferente da teoria
de Anselmo.166
Essa concepção pode, de certo modo, ser apontada como um exemplo da
mais completa alienação da teologia moderna em relação à ideia do sofrimento
e da morte no evangelho. Porém, num sentido formal, ela faz mais justiça ao
sentido fundamental que o sofrimento e a morte de Jesus têm para a vinda do
reino dos céus. Outros, também, têm tentado atribuir ao sofrimento e à morte
de Jesus um lugar mais importante no centro do evangelho, e isso com a ajuda
de toda sorte de paralelos histórico-religiosos.167 Assim, eles tentam estabelecer
uma relação mais próxima entre o reino dos céus e o “tema do sofrimento”.
Ao mesmo tempo, no entanto, há muitos autores que continuam a ignorar a
correlação entre esses dois dados centrais do evangelho. Seguindo os passos dos
teólogos liberais em seus estudos sobre Jesus, eles atribuem somente um sentido
140 A v in d a d o R e in o
geração” (Lc 17.25). E, desse modo, é também determinada a maneira pela qual
o reino dos céus haveria de manifestar-se para o presente.
ser levantado, o véu que estava sobre seu sofrimento e sua morte, e a pregação
do evangelho poderia se tornar a pregação da cruz no sentido mais profundo da
palavra. Exatamente porque Jesus colocou uma ênfase tão grande na necessidade
de se continuar a pregar o evangelho —considerando que os fundamentos mais
profundos sobre os quais o evangelho repousa são o sofrimento, a morte e a
ressurreição de Jesus - isso significa uma continuação do “dia da graça” e do
tempo da conversão.
Terceiro, em conexão muito próxima com o que foi dito, isto é, que Jesus,
especialmente em relação ao seu sofrimento e sua morte, fala acerca dos “muitos”
pelos quais paga o resgate e derrama seu sangue. Qualquer que seja o sentido
em que esse termo seja compreendido,170 é claro que, com “muitos”, Jesus quer
dizer uma grande quantidade de pessoas, um número maior do que aqueles que
ele havia trazido para próximo de si durante sua vida terrena. Aqui, trata-se
especialmente dos “muitos do futuro”, exatamente como, em outras passagens,
existe a questão dos muitos frutos produzidos pela semente do evangelho. Essa
multidão será o fruto do evangelho, no qual a morte salvadora de Jesus será
pregada. Desse modo, as parábolas do semeador e da semente adquirem um
sentido mais profundo, proveniente do sofrimento e da morte de Jesus. O que é
semeado é a palavra, mas, na base dessa palavra, está também o cumprimento de
suas ações messiânicas em sua morte. E, por ser essa palavra, ela produz “muito”
fruto, tendo primeiramente que “crescer” e “amadurecer”, isto é, desenvolver sua
força no tempo futuro. O sofrimento e a morte de Jesus possibilitam um novo
futuro, fornecem um adiamento e criam novas oportunidades para a continua
ção da vida na terra, porque a força que está dentro delas para os “muitos” deve
se expandir e comunicar como fermento na massa, como o grão de mostarda
insignificante, que chega a um grande crescimento. Não é somente porque o
sofrimento e a morte de Jesus pertenciam ao futuro que o reino não podia ser
consumado, mas, também depois desse grande acontecimento salvífico, o reino
precisa de mais tempo, outra vez, para poder atingir o seu objetivo e produzir o
fruto que está incluído nele para “muitos”.
1. O TEMA BÁSICO
em primeiro lugar, Lucas 6.21 não menciona “justiça” de modo algum; fala somente
de “vós que chorais” e “vós que tendes fome”. Na seção que vem depois, a dos “ais”,
o oposto dos que “choram e têm fome” são aqueles que “estão fartos” e que, “agora,
riem”. Em nossa opinião, é claro que essas palavras se referem aposição social dos
que “riem”, etc., neste mundo (cf. Jo 16.22,20) e à ousadia deles, baseada na sua
posição (e não em suas qualidades morais). Em contraste com eles, estão os “pobres”
que, agora, “têm fome” e “choram”, isto é, aqueles que esperam a redenção de Deus
para o seu povo, redenção do poder da opressão e da injustiça, as quais prevalecem
no tempo atual.8 E esse anseio pela libertação que é indicado como “fome e sede
de justiça nas bem-aventuranças em Mateus.
Isso também está em harmonia com o que é dito em outro lugar acerca da
“justiça” em conexão com o pobre e o manso. O artigo definido grego já sugere
que a expressão se refere a algo suprapessoal, à justiça “no pleno sentido da pala
vra”, a justiça divina. E é precisamente essa justiça divina que é, repetidas vezes,
representada no Antigo Testamento como a esperança e a consolação do pobre
e do oprimido.9 Não deve ser entendida no sentido paulino de justiça forense
imputada, mas como a justiça do rei,10 a qual será trazida à luz um dia para a
salvação do oprimido e dos excluídos e que será executada especialmente pelo
Messias (sobre esse conjunto complexo de pensamentos veja, p. ex., 2Sm 14.5ss;
2Re 6.26ss; Jr 23.6; 33.6, etc.). É essa a “justiça” que os pobres de espírito e os
mansos aguardam no Sermão do Monte. E é a eles que essa justiça é prometida.
Esse conceito é decorrente, em todas as formas, da ideia do reino de Deus. Quando
Deus iniciar o seu governo como rei, seu povo oprimido, que espera nele para
todas as coisas, será farto com sua justiça e aqueles que, agora, estão fartos terão
motivo para chorar.
O próprio ensino de Jesus contém uma confirmação muito clara e uma ilus
tração desse pensamento, que é a parábola do juiz iníquo (Lc 18.1-8). Também
essa parábola é dominada pelo pensamento do direito dos pobres. E à luz disso
que a figura da viúva deve ser vista, quando ela pede justiça contra seu adversário
(v. 3) em palavras que lembram o Salmo 43.1. Aqui, também, a metáfora é de uma
vida que tem fome dejustiça. Porém, não só na própria parábola, mas também na
aplicação, o pensamento da justiça redentora ocorre duas vezes: “Não fará Deus
justiça11 aos seus escolhidos, que a ele clamam dia e noite?” e, de novo, “digo-vos
que, depressa, lhes fará justiça” (Lc 18.7-8).
A justiça aqui mencionada não é outra senão a libertação (da opressão) à
qual o povo de Deus (seus escolhidos) pode reivindicar como a salvação que seu
rei lhes prometeu. E é essa salvação que é proclamada como “o evangelho dos
pobres” na pregação de Jesus sobre o reino.
Em nenhum outro lugar está mais clara a natureza e o significado da ligação
entre o “reino de Deus” e os “pobres” do que no cântico de Maria (Lc 1.46-55).
O EVANGELHO DO REINO - O TEMA BÁSICO 149
fato, diz Behm, não diminui a importância central do conteúdo dessa noção nos
Evangelhos. Veremos que essa opinião é, indubitavelmente, correta. Somente
será necessário deduzir, a partir dos próprios Evangelhos, uma definição exata
do conteúdo desse conceito na pregação de Jesus.
Já no princípio, nas histórias do nascimento de Jesus, somos confrontados
com o aspecto da aliança, como, por exemplo, no anúncio do nascimento de Jesus
a Maria pelo anjo (Lc 1.32ss). Aqui, Jesus é apresentado como o rei da casa de
Davi. Outras passagens são o cântico de Maria (Lc 1.54ss) e, especialmente, o
cântico de Zacarias (Lc 1.68-79), no qual a salvação vindoura é caracterizada
como ter redimido “o seu povo”, ter suscitado “plena e poderosa salvação na casa
de Davi”, a libertação “dos inimigos”, como o uso “de misericórdia com os nossos
pais”, e como ter se lembrado “da sua santa aliança”, etc. Uma indicação adicional
importante se encontra na mensagem do anjo a José, de que Jesus salvará “o seu
povo” de pecados deles (M t 1.21), o que, certamente, é uma referência a Israel.16
O mesmo é visto na mensagem aos pastores, na qual há a questão das boas-novas
de grande alegria que o será para “todo o povo”17 e que indica Belém como “a
cidade de Davi” (Lc 2.10-11). Essa é uma alusão evidente ao fato de que o nas
cimento de Cristo é o cumprimento da promessa da aliança com Israel. Simeão,
também, fala da mesma maneira quando diz que a salvação dada com Cristo em
seu nascimento é “a glória do teu povo de Israel” (Lc 2.32).
Em todas essas passagens, a ideia da aliança de Deus com seu povo se
apresenta da mesma maneira. Elas falam da “casa de Davi”, “o povo de Deus”,
“Israel” e “todo o povo” ou “teu povo de Israel”. A essa altura, ainda não é
mencionada qualquer separação interna dentro do povo de Israel. E verdade
que, no cântico de Maria, “os poderosos” e “os soberbos” são contrastados com
os “humildes”, e os “ricos” são contrastados com “os famintos”. M as o cântico
prossegue e diz, em seguida, aquele “que amparou a Israel, seu servo” (Lc 1.54).
No cântico do anjo, paz na terra é prometida àqueles “a quem ele quer bem”,
mas, aparentemente, isso deve ser entendido no mesmo sentido das palavras que
mencionam a grande alegria “que o será para todo o povo” (Lc 2.10,14).18 Além
do mais, há, também, declarações que atribuem um sentido universal à salvação,
em consonância com os profetas, como, por exemplo, Lucas 2.14 (paz na terra)
e 2.30-32 (“...a tua salvação, a qual preparaste diante de todos os povos: luz para
revelação aos gentios”). M as isso não diminui nada do fato de que toda a parte
inicial do evangelho fala da vinda da salvação prometida a Israel e, portanto, vê
o evangelho do reino do ponto de vista da teocracia do Antigo Testamento e da
aliança entre Deus e Israel.
Entretanto, seria incorreto inferir disso que a abertura do evangelho é do
minada por um particularismo que atribui a salvação do Senhor exclusivamente
ao povo empírico de Israel. Muito pelo contrário, devemos compreender esses
O EVANGELHO DO REINO - O TEMA BÁSICO 151
Desde o início, Jesus se volta para Israel como um todo como o povo de
Deus, a quem a libertação do reino dos céus foi prometida. Como “filhos do
reino” (M t 8.12), eles se encontram numa relação especial com o que foi dado e
revelado na vinda de Cristo. Pode-se dizer, portanto, que, a eles, o reino foi dado
como um privilégio especial (de outro modo, não se poderia “tirar” esse reino
deles e “entregue a um povo”, como está dito em M t 21.43). Eles são “os filhos”
que têm direito ao pão, o qual não pode ser dado aos “cachorrinhos” (Mc 7.27;
M t 15.26). Nessas passagens e em outras, fica claro o quanto o ponto de partida
das ações de Jesus estava fundamentado no relacionamento histórico e particular
entre Deus e Israel. Essa relação tem a ver não somente com o “povo dentro do
povo”, mas com todos que pertencem ao povo. Não há qualquer menção de um
tipo de evangelização universalista que irrompesse pela ideia da eleição e daquela
do povo de Deus.22
Nesse contexto, devemos lembrar23 as palavras de Jesus sobre o Salvador,
nas quais ele indica que o propósito de sua vinda foi buscar “o perdido”. Essas
palavras são importantes não apenas porque revelam claramente o caráter sal-
vífico das ações de Jesus, mas porque enfatizam fortemente sua ligação com o
povo de Israel.
A condição de “perdido” mencionada aqui não deve ser entendida como um
declínio religioso em geral, mas como uma ovelha desgarrada que vagueia para
longe do rebanho e que, portanto, perdeu-se em relação ao Senhor do rebanho, isto
é, Deus. E verdade que as passagens que falam do “perdido” (a ovelha, o filho
pródigo, etc.!) são usadas para provar que Jesus havia rompido com a ideia par-
ticularista de que Israel, como povo eleito, era o povo de Deus. Supõe que Jesus
insistiu num tipo de individualismo religioso no valor infinito da alma humana
individual (como na parábola em que o pastor se preocupa com uma única ovelha
que se desgarra, etc.). M as isso é incorreto. A “perdição” dos pecadores e publica-
nos que Jesus procurava remediar consistia na total separação deles do rebanho,
isto é, o povo de Deus. E é por isso que eles corriam o risco de perder a salvação
prometida a esse povo de Deus. O interesse especial que Jesus manifestou em
sua atividade messiânica em favor dos perdidos, sua compaixão, se fundamenta
claramente no fato de que eles pertenciam ao povo de Deus. Ele busca as ovelhas
perdidas da casa de Israel e procura e salva o publicano perdido e desprezado
“pois que também este é também filho de Abraão” (Lc 19.9).Todo o povo, mesmo
aqueles membros menos distintos, são o rebanho de Deus, e como tais, objeto
da misericórdia e do amor redentor de Jesus.
Ao lado disso, há outra característica na pregação de Jesus, a reprovação tanto
no sentido coletivo quanto no individual. Do mesmo modo que João Batista,
Jesus traçou a linha divisória dentro da nação judaica. As bem-aventuranças
são o exemplo clássico do cumprimento da promessa de Deus ao seu povo, mas
O EVANGELHO DO REINO - O TEMA BÁSICO 153
Maria e de Zacarias acerca da salvação do povo de Deus, nos quais é dito que
ele “salvará o seu povo dos pecados deles” (M t 1.21), da “grande alegria, que o
será para todo opovo” , pois “hoje vos nasceu... o Salvador, que é Cristo o Senhor”
(Lc 2.10-11) e quando eles falaram da salvação do povo de Deus “no redimi-lo
dos seus pecados” (Lc 1.77). Aí se revela o mistério de todas as declarações que,
em síntese, expressam a salvação do reino como o evangelho dos pobres, a salvação
dos perdidos, etc. Todo o evangelho do reino pode ser explicado em termos das
categorias da aliança prometida por Deus.
Ao mesmo tempo, é perfeitamente claro que as palavras “Israel”, “seu
povo” e “povo de Deus”, que ocorrem, em muitos sentidos, com um significado
semelhante no início do evangelho, agora assumem um novo significado. Por
um lado, seu significado se torna mais restrito, e, por outro, é entendido em
conexão com Israel como o povo histórico e empírico de Deus. O povo de Deus
é formado por aqueles por quem Cristo derramou seu sangue, o sangue da
aliança. Eles participam da remissão de pecados trazida por ele e da comunhão
inquebrantável com Deus na nova aliança, que ele tornou possível. Na sua pre
gação na última ceia, Jesus se refere a eles como os muitos pelos quais seu sangue
é derramado. Essa designação também ocorre na conhecida declaração acerca
do resgate (M t 20.28; M c 10.45).35 Essa palavra tem sido equiparada, algumas
vezes, à palavra “todos” e interpretada num sentido universalista. M as o contexto
contradiz essa explicação de todos os modos possíveis. Os “muitos” são aqueles
que recebem a remissão de seus pecados em Cristo e por meio dele, e que são,
portanto, capacitados para participar da salvação do novo pacto de acordo com
a profecia em Jeremias 31. À luz da totalidade do evangelho, eles são o povo que
aceitou a pregação do evangelho em fé e conversão. São eles, e mais ninguém,
que recebem a salvação do reino. Eles são “Israel”, “povo de Deus” e é a eles que
todas as promessas do pacto se aplicam. A rejeição de Israel como povo de Deus
não elimina a ideia da aliança, mas confere a ela um conteúdo novo, ou, pelo
menos, mais definitivo. O caráter particular da graça e da comunhão com Deus
é plenamente mantido, mas o círculo no qual essa graça é concedida e onde o
povo de Deus se encontra não é mais aquele do Israel empírico, mas aquele dos
que recebem remissão de pecados na morte de Cristo e cujos corações foram
renovados pelo Espírito Santo.
Somente à luz do que foi dito acima é que podem ser entendidos os pronun
ciamentos que designam a salvação dada na vinda de Cristo àqueles que foram
eleitos. Num certo sentido, o evangelho do reino pode ser caracterizado como
O EVANGELHO DO REINO - O TEMA BÁSICO 157
“o evangelho dos eleitos” tanto quanto como o evangelho “dos pobres”, como
fizemos nos parágrafos acima.
E verdade que, em contraste com esta última distinção, a primeira não
ocorre no evangelho (motivo pelo qual não queremos apresentá-la aqui). Toda
via, isso não afeta a realidade de que os herdeiros da salvação do reino dos céus
são constantemente designados como o objeto do beneplácito de Deus ou da
sua eleição. Uma análise mais cuidadosa, todavia, mostra que esses locais estão
estreitamente relacionados com aqueles nos quais a ideia do povo de Deus pre
domina no sentido qualificado acima.
Essa relação é manifesta desde o início, já no nascimento de Cristo, quando
os anjos louvam a salvação que veio como “paz na terra entre os homens, a quem
ele quer bem” (Lc 2.14).36 Na eudokia (beneplácito, bem-querer), a graça livre e
salvadora de Deus encontra expressão,37 a qual é a base da salvação proclamada
aqui. Nela, o elemento do amor na eleição divina se apresenta fortemente. A
questão é quem são esses homens a quem Deus quer bem? No versículo 10,
encontramos a grande alegria mencionada “que o será para todo o povo”. Esses
dois pronunciamentos foram mais de uma vez considerados como contraditórios.
No entanto, a frase “os homens a quem ele quer bem” não restringe o grupo, em
primeiro lugar, no qual haverá a paz messiânica e escatológica. Ao contrário, a
frase contém uma qualificação positiva. Não é um setor definido dentro do círculo
do “povo”, pois a “grande alegria será para todo o povo”. Assim, temos de expli
car essa primeira frase em estreita relação com a última e rejeitar uma exegese
individualista das palavras “os homens a quem ele quer bem”. Essas palavras são
uma definição do povo a quem a grande alegria foi prometida. E, vice-versa,
“todo o povo” do versículo 10 não pode indicar o povo empírico de Israel, mas
o povo de Deus no seu sentido verdadeiro e ideal. Não significa Israel em sua
descrença obstinada, mas Israel como o povo a quem foi dado o privilégio de
receber a promessa de Deus na qual fixa sua esperança e pela qual é redimido.38
Isso mostra novamente que o evangelho do reino é determinado, desde o início,
pelo relacionamento particular entre Deus e seu povo e que esse relacionamento
se baseia no beneplácito divino.
Em outra passagem, também, o evangelho do reino é derivado do bene
plácito divino. Isso é, por exemplo, muito óbvio em Lucas 12.32: “Não temais, ó
pequenino rebanho; porque vosso Pai se agradou em dar-vos o seu reino”. A ideia
do povo de Deus como herdeiros do reino dos céus está implícita na maneira
como Jesus se dirige aos seus discípulos, “não temais, ó pequenino rebanho”. A
ênfase na pequenez do rebanho - “pequenino rebanho” - implica que o “povo de
Deus” significado aqui é somente o remanescente, uma lembrança aparentemente
desvanecente do que haviam sido no passado e do que se esperava que fossem.
E por isso que havia razão para temer que esse pequeno remanescente pudesse
158 A v in d a d o R e in o
também perecer. E, ainda assim, esse remanescente do rebanho tinha sido preser
vado e sua libertação era certa da parte de Deus, pois tal libertação repousava na
eudokia do Pai, o “conselho divino”, livre e independente de qualquer influência
humana. Esse conselho não tem como propósito apenas a redenção da igreja na
basileia, mas também efetua essa redenção.”39 Estes três conceitos - o povo de
Deus, o reino dos céus e a eleição - não apenas são coordenados como também
determinam um ao outro. O dom da basileia é para o povo que Deus elegeu
desde tempos antigos e que vem à luz no seu sentido mais próprio e profundo na
aceitação de Jesus por parte desse povo, como o Cristo, o Portador da salvação do
Senhor. Nesse caso, também, a eleição não é concebida em termos individuais,
mas como a eleição do povo de Deus. Do mesmo modo, a magnitude desse povo
não é determinada por fatores históricos e biológicos, mas pelo decreto divino
livre e salvador.
Devemos igualmente entender as conhecidas palavras de Jesus em Mateus
11.25-26 em consonância com esse ponto (cf. Lc 10.21ss): “Graças te dou, ó Pai,
Senhor do céu e da terra, porque ocultaste estas coisas aos sábios e instruídos e
as revelaste aos pequeninos. Sim, ó Pai, porque assim foi do teu agrado” (houtoos
eudokia egeneto emprosthen sou). Nesse caso, também, a separação feita dentro do
próprio Israel pela vinda de Jesus é atribuída ao beneplácito soberano de Deus.
As palavras emprosthen sou são de difícil tradução, mas constituem uma caracteri
zação notável do decreto de Deus. Esse decreto, por assim dizer, é algo que Deus
imaginou e que tem procurado executar, como seu propósito.40 O caráter salvífico
desse beneplácito do Senhor consiste na manifestação do reino (“estas coisas”) aos
“pequeninos” inepioí). Isso indica não somente uma mentalidade particular, mas
se refere ao povo do Senhor, pobre e destituído, que é desprezado pelos “sábios e
instruídos”, mas que colocou a sua esperança na ação redentora de Deus em seu
favor. O conceito nepioi, pequeninos, é muito semelhante ao sentido àepraeis, os
mansos, e d eptoochoi, os pobres41 (M t 11.28ss). E o pronunciamento de que eles
são o objeto do beneplácito de Deus mais uma vez demonstra que o evangelho
do reino está profundamente enraizado na revelação especial de Deus a Israel
e que deve ser entendido, acima de tudo, como a proclamação da salvação ao
verdadeiro povo do Senhor.
Em nenhum outro lugar esse ponto é visto com maior clareza do que na
parábola do juiz iníquo. Nesse caso, a salvação vindoura do reino, que deve ser
objeto das incessantes orações dos fiéis (Lc 18.1, cf. 18.8), é chamada de “a justiça
aos seus [de Deus] escolhidos” (ten ekdikesin toon eklektoon autou, v. 7, cf. v.8). Já
mostramos, acima, que essa “justiça” ou essa “compensação” é o mesmo que foi
prometido aos pobres de espírito e aos que têm fome e sede de justiça. Desse
modo, confirma-se a nossa observação feita no início desta seção, ou seja, que o
termo “eleitos” e a expressão “pobres de espírito” se referem às mesmas pessoas.
O EVANGELHO DO REINO - O TEMA BÁSICO 159
com respeito ao beneplácito de seu Pai. Ali, seu bom prazer é explicado pelo fato
de que o Pai entregou todas as coisas a Cristo em virtude do mesmo decreto e
que ninguém conhece o Filho senão o Pai e que ninguém conhece o Pai senão
o Filho e aquele a quem o Filho quiser revelar. O mistério do conhecimento do
Pai, isto é, essa revelação aos filhos de Deus, com base no beneplácito de Deus,
está totalmente nas mãos do Filho. Nele, esse beneplácito se realiza e, dele, Cristo
é também o objeto. E o Filho que é eleito pelo Pai para ser o portador do ofício
messiânico. E é nele, também, que o beneplácito de Deus em relação ao seu povo
se fundamenta e se concretiza.
Em resumo, podemos dizer que a proclamação do evangelho do reino como o
evangelho dos pobres repousa sobre o relacionamento pactuai entre Deus e seu povo, o
qual encontra sua origem mais profunda no beneplácito divino.
A confirmação e a renovação dessa aliança recebem sua base e caráter da palavra
e da obra de Cristo, especialmente de sua morte expiatória. Elas formam a grande
pressuposição e consumação da bem-aventurança do reino dos céus, reino esse anunciado
por Jesus de todas as maneiras e que pode ser examinado agora por nós em seus vários
aspectos.
VI
O Ev an gelh o d o r e in o
2. S alvação
traduzida por “salvará” tem um sentido muito geral e inclusivo, como a palavra
hebraica na qual o nome Jesus é baseado. Ela indica Jesus como Messias, Salvador,
Redentor. Ela não somente tem, portanto, um sentido negativo e preventivo, mas
também um conteúdo muito positivo. O sentido central e mais profundo implícito
nesta obra do Salvador é o fato de que Jesus liberta seu povo dos pecados deles. O
mesmo pensamento é expresso no cântico de Zacarias, quando diz, a respeito de
João Batista, que ele “precederá o Senhor, preparando-lhe os caminhos, para dar
ao seu povo conhecimento da salvação, no redimi-lo dos seus pecados' (Lc 1.76ss).
Esse conhecimento não é meramente conhecimento acerca de um objetivo que
ainda é uma promessa não realizada, mas, ao contrário, o conhecimento que será
dado e comunicado agora, e, portanto, um conhecimento experiencial que nunca
antes havia sido concedido nesse sentido.4 A remissão de pecados é representada
aqui como o dom do cumprimento que começou com Cristo como uma possessão
“escatológica” da salvação.5 Esse é o motivo pelo qual o conhecimento dessa
salvação é descrito como a vinda e o dom da salvação longamente esperados do
Senhor, como a visita de Deus ao seu povo.
A pregação de João Batista anunciando o reino dos céus se concentra na
remissão de pecados. Seu chamado ao povo para que se arrependa resultou na
vinda deles “confessando os seus pecados” (M t 3.6). O seu batismo é mencionado
como “batismo de arrependimento para a remissão de pecados” (Mc 1.4; Lc 3.3).
Essa “remissão de pecados” não significa uma afirmação feita por João àqueles
que haviam sido batizados por ele de que seus pecados haviam sido perdoados.
Nem indicava algum tipo de lavagem de pecados realizada pelo batismo de João,
mas, como transparece do contexto da pregação de João como um todo, a isenção
do julgamento vindouro: eles fugiram “da ira vindoura” (M t 3.7; Lc 3.7). João
os exorta a se arrependerem, a se voltarem e a se livrarem de seus pecados, de
modo que aqueles que obedecerem possam, daí para frente, ouvir a sentença de
isenção exoneradora em definitivo da boca daquele que haverá de vir e que é mais
poderoso do que João. A remissão de pecados, consequentemente, é, nesse caso,
a “salvação de Deus”, que seria vista na vinda do Senhor (Lc 3.6).
Não há dúvida de que, na própria pregação de Jesus, o conceito de remissão
de pecados não é tão central como na pregação de João.6 Entretanto, na procla
mação inicial de Jesus na sinagoga de Nazaré, na qual ele anuncia o cumprimento
das profecias e a inauguração do grandioso tempo da salvação, a ideia de aphesis
desempenha imediatamente uma parte importante. Apesar de essa palavra poder
ser traduzida como libertação (de cativos - Lc 4.18) e como liberdade (para os
quebrantados de coração) e não como remissão, o contexto também claramente
sugere a ideia de remissão de pecados, pois essa libertação se baseia em remissão
e absolvição. Pois a totalidade da salvação que começou com a vinda de Jesus é
caracterizada, de modo conciso, como o ano aceitável do Senhor. Essas palavras
O EVANGELHO DO REINO - SALVAÇÃO 163
que, na hora do ajuste de contas divino, não será capaz de responder pelo que fez
com os bens do seu mestre, de quem era mordomo, e, assim, terá que permanecer
como devedor de Deus (Lc 16.9ss). Além disso, a passagem sobre o arrependi
mento, em Lucas 13, fala, de maneira geral, de pessoas culpadas que perecerão
caso não se arrependam (Lc 13.4).
E, finalmente, a remissão de pecados é indicada de uma maneira ainda mais
jurídica na parábola do fariseu e do publicano. O publicano, conforme está dito,
desceu “justificado” (dedikaioomenos) para a sua casa. Essa é a única passagem nos
sinóticos em que a remissão de pecados é representada como uma justificação
forense: uma justificação judicial efetuada por Deus.8 Sem dúvida, esse uso da
palavra é codeterminado pelo contraste entre o publicano e o fariseu, pois o úl
timo representa aqueles que tentam se justificar diante de Deus de acordo com
a doutrina do mérito (cf. Lc 16.15). Em oposição a isso, Jesus deixa claro que
Deus aceita o pecador por causa da sua graça soberana. Entretanto, ele mantém
a ideia da justificação, de confrontação com o julgamento divino. E esse é um
dos pensamentos básicos do evangelho.
Essa concepção fundamental da redenção como remissão de pecados não
somente distingue o evangelho de todas as religiões não cristãs, como também
de todas as interpretações humanistas e moderno-dualistas do evangelho. Esta
última sustenta que o ponto de partida da pregação de Jesus se encontra no valor
infinito da alma humana ou na antítese entre natureza e espírito. Com muita
frequência, recorre-se a Marcos 8.36ss: “Que aproveita o homem ganhar o mundo
inteiro e perder a sua alma?”. Essa perspectiva, entretanto, que foi defendida pela
teologia de Ritschl e recebeu sua expressão clássica na obra de Harnack, Das
Wesen des Christentums [A natureza do Cristianismo], contradiz o evangelho na
sua própria essência.9 O ponto de partida do evangelho não é o valor, mas a culpa
do homem; e a redenção não é a preservação da alma como a parte imperecível e
mais importante do homem, mas sim a salvação da totalidade da existência hu
mana no julgamento final. Nenhum desses dois conceitos é diferente do que está
indicado nas palavras “perder a sua alma”. A palavra “alma” significa a totalidade
da vida humana e não meramente a parte interior, a espiritualidade do homem.
Lembramos ao leitor a declaração paralela de Jesus: “Não temais os que matam
o corpo e não podem matar a alma; temei, antes, aquele que pode fazer perecer
no inferno tanto a alma como o corpo” (M t 10.28, cf. Lc 12.4-5). Aqui não en
contramos um contraste entre a alma e o corpo, o espírito e a carne, e Jesus não
quer destacar a superioridade do primeiro sobre o último, mas somos advertidos
contra o julgamento divino, no qual cada pessoa que rejeitou a vontade de Deus
com respeito a essa vida perecerá com corpo e alma.10 Portanto, não é o valor
espiritual do homem, mas o seu problema moral, que provoca a advertência de
Jesus e que é o fundamento da sua pregação sobre a remissão de pecados.11
O EVANGELHO DO REINO - SALVAÇÃO 165
um” (M t 19.17); “Ninguém é bom, senão um, que é Deus” (Mc 10.18; Lc 18.20).
Todos esses pronunciamentos mostram, de modo inequívoco, que a pregação de
Jesus se baseia numa perspectiva que nega ao homem principalmente o atributo
de “bom” e que o caracteriza, em vez disso, como “mau”, como pecador, como
devedor diante de Deus.35
Essas declarações relativamente incidentais a respeito da universalidade do
pecado e da necessidade conseqüente de arrependimento não são um fenômeno
isolado, pois o evangelho também mostra claramente a causa dessa perspectiva
e a explica. Essa explicação se encontra no julgamento que Jesus f a z da extensão
da profundidade e da seriedade da natureza do pecado. Esse julgamento é expresso
de maneira significativa e representado de forma antitética, na tripla declaração
de Mateus 5.21-22: “Ouvistes que foi dito aos antigos:36 não matarás; e: quem
matar estará sujeito ao julgamento. Eu, porém, vos digo que todo aquele que [sem
motivo] se irar contra seu irmão estará sujeito a julgamento; e quem proferir um
insulto ao seu irmão estará sujeito a julgamento do tribunal; e quem lhe chamar:
Tolo, estará sujeito ao inferno de fogo”.
Nesse caso, Jesus aponta para o sentido do mandamento “não matarás”
(não somente assassinato, mas também ira e palavras grosseiras são infrações do
mandamento) e também a medida da punição para a menor ofensa da escala:
só pode ser punida com o inferno de fogo. Essa perspectiva, a princípio, anula
qualquer entendimento quantitativo do pecado e o substitui por uma concepção
qualitativa: qualquer pecado, mesmo o “menor”, torna impossível uma relação
contratual com Deus. Ela conclama o homem a depender inteiramente da graciosa
remissão da culpa oferecida por Deus.
E essa não é uma passagem isolada. Ela caracteriza todo o Sermão do Monte,
especialmente na versão de Mateus, a qual é uma longa denúncia judicial contra
a concepção farisaica de justiça. Ela a contrasta com a obediência mais radical,
“perfeita”, como o significado e o cumprimento da lei. Rejeitamos o entendimento
de que o Sermão do Monte tem como objetivo mostrar exclusivamente a grande
miséria moral do homem empírico.37 M as não escapará ao leitor atento o fato de
que, se os mandamentos de Jesus foram dados para mostrar ao homem o caminho
da redenção por meio dos seus próprios méritos, eles terminarão por destituir
o homem de qualquer esperança. De fato, esse tipo de reação foi registrado na
resposta dos discípulos ao pronunciamento de Jesus com respeito à entrada de
um rico no reino: “Sendo assim, quem pode ser salvo?” (M t 19.25). Os discípu
los entenderam que a maneira como Jesus fala do rico, na verdade, bloqueia o
caminho do reino a qualquer ser humano. Eles estão assustados pela exigência
radical de Jesus. Por esse motivo, Jesus responde dizendo: “Isto é impossível aos
homens, mas para Deus, tudo é possível”. Essa é a chave para se compreender
a totalidade de sua pregação e todos os seus mandamentos.38 A salvação é uma
O EVANGELHO DO REINO - SALVAÇÃO 171
somente dizer: “Õ, Deus, sê propício a mim, pecador”. É esse que Jesus declara que
desceu justificado para sua casa, e não o outro (Lc 18.10-14).42 Esse pensamento
é incompreensível dentro do escopo da soteriologia judaica. Não estou dizendo
que, na visão judaica, Deus não tinha misericórdia do pecador penitente, mas que,
nessa visão, o pecador penitente era colocado numa posição de desvantagem em
relação ao homem justo. O motivo era a inferência feita repetidamente de que o
amor de Deus pelo justo era muito maior do que o seu amor pelo pecador. E um
fato estabelecido que todas as opiniões rabínicas a respeito da bondade de Deus
são seguidas por essa conclusão: “Se seu [de Deus] amor pelos pecadores é tão
grande, muito maior é seu amor pelo justo”.43 E nisso que reside a grande impor
tância da inversão desse relacionamento na declaração de que “este [o publicano]
desceu justificado para a sua casa, e não aquele [o fariseu]”. A declaração de que
existe maior alegria no céu por um pecador arrependido do que por noventa e
nove justos que não necessitam de arrependimento representa uma ruptura funda
mental com a soteriologia judaica, pois elimina o seu fundamento. Esse é o ponto
do ensino de Jesus que os líderes judeus não toleravam e ao qual apresentaram
a mais fundamental resistência. Pois Jesus prega a remissão de pecados como a
única maneira de escapar da ira de Deus e baseia a libertação do julgamento divino
exclusivamente na graça de Deus, e não no mérito humano.
Ê verdade que, no evangelho, Jesus fala frequentemente sem restrição acerca
do galardão que deve ser esperado por todos que vivem de acordo com a vontade
de Deus,44 e isso não num sentido negativo ou hipotético. Com frequência ele diz
aos seus discípulos que podem aguardar essa recompensa como certa. Assim, por
exemplo, ele diz que os perseguidos por sua causa são bem-aventurados porque
“é grande o vosso galardão nos céus” (M t 5.11-12). Ele fala do galardão que
será dado pelo Pai celestial aos que não realizam seus atos de justiça (esmolas,
orações e jejuns) com o fim de serem vistos pelos homens (M t 6.4,6,15). Aos que
fazem o bem sem esperar galardão ou recompensa, ele diz: “será grande o vosso
galardão” (Lc 6.35). Quem receber um profeta como profeta, e um justo como
justo, ou quem der de beber um copo d’água a um “desses pequeninos”, porque
é um discípulo, não perderá de maneira alguma o seu galardão (M t 10.40-42).
Tais passagens podem ser multiplicadas. Elas falam explicitamente de galardão
e recompensa. Além disso, transparece de maneira especial, nas descrições do
julgamento divino, que existe uma correlação inquebrantável entre o que o homem
fez e o que ele, um dia, receberá, apesar de a palavra “galardão” não ser mencionada
(cf., p. ex., M t 24.45ss; 25.14-30; 25.31-46; 12.36-37). Consequentemente, o
ser humano deveria estar consciente das conseqüências eternas de suas palavras
e ações a cada momento (M t 7.13-27).45
Essa ideia de recompensa é muito importante no evangelho e seria muito
destrutivo para a totalidade da pregação de Jesus se viermos a pensar que ela é
O EVANGELHO DO REINO - SALVAÇÃO 173
Em resumo, pode ser dito que a pregação da graciosa remissão da culpa por
parte de Deus é o centro e a base do evangelho do reino, especialmente pelo fato de
que Jesus constantemente a contrasta com a soteriologia judaica. As parábolas e as
histórias nas quais esse evangelho do perdão encontra a sua mais sublime expressão
têm sido corretamente consideradas como o ponto culminante de todo o evange
lho. Essas parábolas e histórias são, por exemplo, a do filho pródigo (Lc 15.11-32),
a do fariseu e o publicano (Lc 18.9-14), a história do pecador arrependido (Lc
7.36-50), a mulher adúltera (Jo 8.1-11) e Zaqueu (Lc 19.1-10).
Em nenhum lugar os conceitos de pecado, arrependimento e graça divina
foram descritos de maneira mais vivida e impressionante do que na parábola do
filho pródigo. Pecado: deixar a comunhão do pai, viver distante do pai, dissipar
os bens do pai. Arrependimento: descoberta da sua própria angústia, sua cons
ciência de haver pecado contra o pai e de haver perdido os seus direitos como
filho, seu retorno ao pai. Graça: a espera do pai pelo filho, sua compaixão por
ele e a recepção alegre do filho perdido na casa do pai. No pano de fundo está o
filho mais velho, que é tão alienado da comunhão do Pai quanto o filho pródigo,
por causa da sua própria autocomplacência e hipocrisia. Ele não havia entendido
absolutamente nada sobre arrependimento, misericórdia e remissão de pecados.
De maneira incomparável, essa parábola retrata o que, mais tarde, Paulo chamaria
de “o espírito de escravidão”, que gera temor e medo, e “o espírito de adoção,
baseados no qual clamamos: Aba, Pai” (Rm 8.15).
Também, em consonância com Paulo, não se deveria jamais perder de vista
que essa impressionante pregação da remissão de pecados e da graça divina não
contém verdades eternas à parte de qualquer situação. M as, em concordância com
a natureza das parábolas de Jesus 49 e da totalidade do kerygma sinótico, ela exibe
o caráter da pregação do reino dos céus. Em outras palavras, o motif antitético em
todas essas parábolas e histórias se apresenta claramente e não deveria jamais ser
separado do mo/jfpredominante do cumprimento, já mencionado anteriormente.
O fato decisivo que se encontra no fundamento da proclamação de Jesus da sal
vação é o significado cristológico e integral desse cumprimento, isto é, ele está
fundamentado na pessoa de Jesus e na sua obra como o Cristo de Deus.
Por isso, não há uma concepção mais equivocada da pregação de Jesus do
que aquela que separa a sua parte central, a saber, a remissão de pecados, do motif
evangélico do cumprimento. E isso que constitui o abismo intransponível entre
o kerygma sinótico e a interpretação liberal do evangelho e outras interpretações
modernas. Elas reconhecem em Jesus o proclamador da remissão de pecados e
da paternidade de Deus. No entanto, não consideram a pessoa e a obra de Cristo
como a base dessa comunicação da salvação. Essa perspectiva pode ser expressa
de diversas maneiras. Harnack sustenta que o Pai, e não o Filho, pertence ao
conteúdo do evangelho.50 K. Holl (apesar de fazer mais justiça ao caráter redentor
O EVANGELHO DO REINO - SALVAÇÃO 175
que Jesus fala de “vosso Pai que está nos céus” e do “Pai celestial” ou dos “filhos
de vosso Pai celestial”, ele tem em mente a relação exclusiva do Senhor com os
que compartilharão da bênção do reino dos céus e que já participam dela no
presente. Aqui, também, parece que a nova aliança começou juntamente com o
reino de Deus e que aqueles a quem a salvação é prometida constituem o novo
povo de Deus.
A ênfase, no entanto, deve ser colocada na ideia de comunidade. A salvação
proclamada por Jesus é a salvação do povo do Senhor, como já discutimos mais
detalhadamente no capítulo anterior. E isso também se aplica à paternidade de
Deus. O evangelho como um todo mostra que essa relação não deve ser concebida
num sentido individualista, isto é, como primariamente uma relação entre Deus e
seres humanos individuais, mas entre Deus e seu povo. Esse fato não é de maneira
alguma afetado pela circunstância de que a membresia com o povo de Deus na
plenitude dos tempos não é resultado de uma descendência natural de Israel, mas
sim de conversão pessoal e fé em Jesus como o Cristo. Ser filho de Deus deve
ser entendido num sentido histórico-redentor. E a concretização da promessa da
nova aliança, a continuação e cumprimento do elo entre o Senhor e Israel.
Essa é a razão pela qual Jesus quase sempre emprega o plural “vosso (prono
me genitivo plural) Pai que está nos céus”. Essa frase não exclui - na verdade, ela
inclui - a relação pessoal entre o Pai e seus filhos. Isso aparece naquelas passagens
nas quais Jesus se refere especialmente à piedade pessoal dos discípulos (M t
6.4,6,18). Ainda assim, essa forma singular de referência ocorre apenas espora
dicamente. Quase sempre a filiação a Deus é indicada como o relacionamento
entre o povo do Senhor como um todo e seu Deus.
A ocorrência mais característica se encontra na oração do pai-nosso, que
começa com “Pai nosso”. Isso não quer dizer que seja proibido a cada crente in
vocar a Deus como seu Pai ao dirigir-se a ele depois de “fechada a porta” de seu
quarto (M t 6.6). Apesar disso, a oração que Jesus ensina a seus discípulos sugere,
em seu tom, uma pluralidade e é determinada pela maneira como é dirigida a
Deus, “Pai nosso”. Isso está em total harmonia com o fato de que Jesus, como o
Cristo, capacita seus discípulos a orarem dessa maneira. Eles são restaurados à
comunhão com Deus como a nova igreja, o povo redimido do Messias.62 O próprio
Jesus indica a natureza dessa comunhão chamando aqueles que fazem a vontade
le Deus de seu irmão, irmã e mãe (Mc 3.35). A natureza dessa comunhão é
também indicada de maneira especial quando Jesus, enfaticamente, responsabiliza
;eus discípulos pela comunhão dos filhos de Deus (Mt 18.10-14),63 com base
r.a ideia da paternidade de Deus.
A característica específica e nova dessa relação Pai-filho pregada por Jesus não
;:eve ser procurada, portanto, na sua indicação formal ou em sua individualização
e apenas parcialmente no aprofundamento dessa relação. Ela deve ser buscada,
180 A v in d a d o R e in o
obra de Jesus. Ela está indissoluvelmente ligada com tudo o que ele realiza pela
remissão de pecados de todos os que são seus.70
Isso mostra claramente que a salvação do reino e também a filiação a
Deus só podem ser uma realidade se Jesus for o Filho de Deus, aquele a quem
foi dada autoridade e que é o Servo do Senhor. Tudo isso é determinado pelo
caráter cristológico do evangelho como cumprimento. Assim, a filiação é uma
total impossibilidade sem a fé em Jesus como o Cristo enviado por Deus. De
acordo com a interpretação moderna do evangelho, Jesus entendia a paternidade
de Deus como um relacionamento natural,71 havendo apenas a necessidade de
que o homem se conscientizasse desse relacionamento pela “reflexão” sobre ele.
Porém, essa perspectiva é uma distorção radical do sentido do evangelho.
A exposição acima deixa claro qu zpaternidade e realeza na pregação de Jesus
não são dois aspectos distintos. Fica claro, também, que não se pode considerar o
conceito de Deus como Rei e Juiz como algo menos importante do que o conceito
de Deus como Pai. É certamente impróprio assinalar uma posição inferior para
essa primeira perspectiva.72 Para que esse ponto seja visto com clareza, bastaria
que nos lembrássemos do que Jesus proclamou em todos os tipos de pronuncia
mentos e parábolas acerca de Deus como Rei e Senhor. E a ele que todos nós
somos responsáveis, de quem todos somos servos (escravos), cuja “casa” deve ser
“guardada”, etc.73 Pois essa própria paternidade, do modo como Jesus fala dela
no evangelho, é controlada também pela ideia da realeza de Deus (e vice-versa).
Com respeito ao cuidado paternal de Deus pela vida temporal de seus filhos,
trataremos do assunto numa seção em separado.74Aqui queremos apenas indicar
o relacionamento básico geral entre esses dois conceitos.
O fato de que, desde o início, a paternidade de Deus indica uma relação que
se mistura com a relação teocrática da aliança mostra a estreita conexão entre as
duas ideias. A paternidade de Deus sobre Israel consiste no fato de que ele era
o Rei de Israel. Essa conexão é encontrada repetidamente na pregação de Jesus.
Jesus ensina seus discípulos a orarem ao Pai para que seu nome seja santificado
e para que seu reino venha. A salvação do povo de Deus reside no fato de que
ele se revelaria plenamente e se santificaria como Rei. O bom prazer do Pai em
relação aos seus filhos está no fato de que ele lhes dá o seu reino (Lc 12.32) e,
no reino do seu Pai, os justos brilharão como o sol (M t 13.43). E essa a relação
entre os aspectos teocêntrico e soteriológico da pregação de Jesus sobre o reino.
Em vez de depreciar a realeza de Deus como algo menos essencial ou menos
“evangélico” do que a sua paternidade, devemos dizer que sua paternidade foi
totalmente incluída na dinâmica da primeira, tanto para o presente quanto para
o futuro. A paternidade de Deus não é um pensamento geral e imóvel, uma
ideia atemporal, mas é a paternidade daquele que se manifesta como o Rei que
se levantou para governar como Rei. A ideia da paternidade é cercada em todo
182 A v in d a d o R e in o
lugar pelas forças procedentes da consumação de todas as coisas. Ela não está
em repouso, mas cheia de movimento escatológico. Está envolvida nas tensões
que governam o mundo e a História e origina-se da ação realizadora divina. Em
resumo, é a paternidade proclamada ao povo do Senhor como aquela bênção
longamente esperada, a libertação do reino. Isso dá às palavras “que está nos céus”
um tom especial e um significado rico no evangelho, apesar de elas, em si mesmas,
não serem novidade. Essas palavras indicam, como, também, por exemplo, em
algumas orações judaicas, a sublimidade e a transcendência da paternidade de
Deus excluem qualquer pensamento de familiaridade e qualquer pensamento
terreno de sua majestade celeste. A luz da vinda do reino, toda ênfase é colocada
no céu como morada da qual o Pai vem e opera e de onde também Jesus Cristo
foi “enviado” e “veio”. Ali, a vontade de Deus está sendo feita, já agora, como será
um dia também feita na terra (Mt 6.10). Ali, a salvação é guardada e mantida
como uma “recompensa” e “tesouro” (M t 6.1,20) e os nomes dos filhos de Deus
foram “registrados” (Lc 10.20). Por causa da vinda do reino, o céu não é somente
o lugar da transcendência e inacessibilidade divinas, mas também o centro da
obra divina da salvação efetuada pelo Pai, que foi colocada em movimento e que
está sendo continuamente dirigida para a consumação de todas as coisas. Isso
mostra que a paternidade de Deus, por assim dizer, está totalmente carregada com
o poder da sua realeza. Essas duas coisas não representam ideias atemporais (a
primeira, a ideia de proximidade, e a segunda, a ideia de transcendência). A sua
unidade indissolúvel significa que a paternidade de Deus deriva o seu significado
especial dos acontecimentos grandiosos de cumprimento da salvação, os quais
foram identificados na pregação de Jesus como a vinda do reino.
Por outro lado, a realeza de Deus é determinada pela sua paternidade. Esse
fato, também, lança uma luz mais clara sobre o propósito do evangelho. Quanto ao
futuro, em meio a todos os acontecimentos apocalípticos e a todos os fenômenos
que se apresentam no horizonte do reino vindouro, Deus verá seu povo como
seusfilhos. Ele haverá de confortá-los, de revelar sua face a eles e ter misericórdia
deles (M t 5.4, 7-9). Quanto ao presente, também, a mesma paternidade confere
ao evangelho do reino um tom terno, confiável e vitorioso, pois a paternidade
de Deus é representada pela paternidade humana e é descrita repetidamente por
Jesus por meio da ilustração de um pai terreno (M t 7.9-11; Lc 11.11-13; 15.11ss).
Isso é feito de uma maneira que expressa a comunhão e o cuidado amoroso de
Deus por seus filhos. Deus desce até seus filhos e fala com eles de maneira íntima.
Quem se aproxima de Deus não precisa fazê-lo aos gritos e nem com o temor
servil dos pagãos quando clamam aos seus deuses, pois, o Pai “sabe” todas as
coisas antes que lhe peçamos (M t 6.7-8). Ele “conhece” as necessidades da vida
terrena simples dos seus filhos (M t 6.32), pois ele também cuida dos pássaros e
das flores. Ele não haverá de desapontá-los no que lhes concede na mesa da vida,
O EVANGELHO DO REINO - SALVAÇÃO 183
do mesmo modo que um pai terreno não dá ao seu filho uma pedra em lugar de
pão, nem uma serpente em lugar de peixe (M t 7.9ss; Lc l l .l l s s ) . E ele, à parte de
cuja vontade nem mesmo um passarinho cai no chão (M t 10.29) e quem, como
um verdadeiro Pai, se preocupa de maneira especial com os “pequeninos” (Mt
18.14). Em tudo isso, a pregação do reino, que abrange o mundo e a História,
assume uma forma que não a separa das coisas mais triviais e comuns da vida,
mas que se revela como a pregação da misericórdia paternal de Deus, capaz de
perscrutar as angústias mais ocultas de cada ser humano.
Essa unidade entre a paternidade e a realeza de Deus na pregação de Jesus
se constitui na riqueza inexaurível do evangelho. Discutiremos suas diferentes
facetas no que se segue.
diante de Deus. Assim, num sentido exatamente oposto ao do item (a) acima, os
imperativos se misturam com os indicativos.80
Não se pode negar que aqueles que qualificam os mandamentos de Jesus
como a proclamação das condições para se entrar no reino futuro podem, inde
pendentemente de quaisquer pressuposições que assumam, recorrer ao material
importante e numeroso no evangelho. Isso é claramente perceptível, especial
mente no Sermão do Monte. Esse é o motivo pelo qual Windisch caracteriza
o Sermão do Monte como as “condições de admissão” (Einlassbedingungen), ou
como uma analogia, o que era necessário fazer para ser admitido ao santuário
(,thoroth-d’entrée).81 A chamada ao arrependimento feita por Jesus, que aparece
em sua pregação desde o início, na verdade, traz o caráter óbvio de uma exortação
para que as pessoas estejampreparadas para o que está vindo. E, embora o Sermão
do Monte possa, num sentido primário, ter sido destinado aos que já haviam
se arrependido,82 com o objetivo de expandir de modo positivo a exigência de
arrependimento, é também verdade que, nesse mesmo sermão, o conceito de
condicionalidade também ocupa um lugar muito importante, como em Mateus
5.20: “Porque vos digo que, se a vossa justiça não exceder em muito a-dos es-
cribas e fariseus, jamais entrareis no reino dos céus”. É claro que a obediência
aos mandamentos não pode ser identificada com a vinda do reino. O mesmo
é encontrado em todas as passagens que nos exortam à obediência em vista do
julgamento vindouro (5.22, 25, 29) ou naquelas nas quais há uma referência à
recompensa dada pelo Pai (6.4ss). Especialmente no epílogo do Sermão do Monte,
o acesso ao reino é repetidamente algo que depende de praticar as palavras de
Jesus (7.13,14,19,21,24-27).
Esse conceito de condicionalidade não é uma característica exclusiva do
Sermão do Monte. Repetidamente deparamos com ele nos ensinamentos de Jesus.
H á pronunciamentos separados, como em Mateus 18.3: “Em verdade vos digo
que, se não vos converterdes e não vos tornardes como crianças, de modo algum
entrareis no reino dos céus” (cf. 19.14). Além do mais, isso é visto na história do
jovem rico (M t 19.16-26 e paral.), na qual Jesus toma a entrada na vida eterna
dependente da guarda dos mandamentos (v. 17), aponta para o tesouro no céu
que será recebido pelo jovem caso ele venda suas propriedades terrenas (v. 21) e
fala, ao final, da dificuldade para um rico entrar no céu (vs. 23 e 24). Todos esses
pronunciamentos estão claramente preocupados com o cumprimento de certas
condições essenciais. Igualmente impressionante, na parábola do administrador
infiel, são a ênfase ao significado das boas obras para se entrar no reino (Lc 16.1-9)
e as palavras acrescentadas a esse significado quanto à gestão de bens terrenos.
Por um lado, elas contêm a advertência de que, no grande ajuste a ocorrer no
dia do julgamento, “os livros não vão conferir”, como também era o caso com o
administrador infiel. Então, os amigos que foram feitos com a ajuda das “riquezas
186 A v in d a d o R e in o
de origem iníqua” antes do tempo desse ajuste de contas se tornarão muito im
portantes (Lc 16.9). E esse o significado da maneira de agir “atiladamente” que
Jesus louva83 na conduta do administrador infiel e recomenda a seus discípulos
(v. 8). Os “amigos” feitos dessa maneira são aqueles que fizemos ao praticar o
bem para com eles usando nossas posses terrenas. Isso será muito importante no
julgamento final, como está na continuação da passagem, “para que... esses amigos
vos recebam nos tabernáculos eternos”. Os “amigos” mencionados aqui podem
ser aqueles que foram feitos dessa maneira, que já haviam morrido e estavam de
posse dos “tabernáculos eternos”, onde dão as boas-vindas a seus benfeitores.84
Ou a palavra grega para “receber”, dexoontai, pode ser entendida como “aquele que
receberá vocês”, uma referência ao próprio Deus.85 Em ambos os casos, o ponto
essencial é a importância decisiva de nossa conduta moral aqui na terra para a
entrada no reino. O mesmo pensamento se encontra no mashal (dito enigmático)
que é acrescentado à parábola (16.10-12): “Quem é fiel no pouco também é fiel
no muito; e quem é injusto no pouco também é injusto no muito. Se, pois, não
vos tornastes fiéis na aplicação das riquezas de origem injusta, quem vos confiará
a verdadeira riqueza? Se não vos tornastes fiéis na aplicação do alheio, quem vos
dará o que é vosso?” Com as palavras “no pouco” e “alheio”, bem como “riquezas
de origem injusta”, Jesus se refere ao que, temporariamente, está à disposição do
homem na terra, o que, por sua vez, é contrastado com “o muito”, “verdadeira
riqueza” e “o que é vosso”, uma indicação do que esperamos receber de Deus
para toda a eternidade. Mais uma vez encontramos a ideia de que dádivas futuras
dependem do modo como usamos nossos bens terrenos.
O condicionamento da entrada no reino ao cumprimento de certas condições
é declarado da maneira mais impressionante na descrição do julgamento das nações,
a se realizar na vinda do Filho do Homem em sua glória (M t 25.31-46). A base da
separação entre ovelhas e bodes é a identificação do “Rei” com os seus “pequeninos
irmãos” e seu julgamento se baseia na simpatia mostrada a ele nesse respeito. A
repetição quase literal de forma negativa das palavras “tive fome, e me destes de
comer”, etc., tem o objetivo de gravar nas mentes aquilo que será essencial no dia
do julgamento: não é dizer “Senhor, Senhor”, ou ter agido em nome de Jesus e
realizado muitas obras maravilhosas pelo seu poder (M t 7.22; Lc 13.26), mas é
ter obedecido aos seus mandamentos. Repetidamente Jesus mostra que a sentença
pronunciada no juízo final será diferente do que se poderia esperar com base nos
relacionamentos e privilégios humanos (cf. Lc 13.30; 14.11; 16.15, etc.).
Portanto, não pode haver dúvida de que Jesus considerava o cumprimento
da vontade de Deus como a condição preparatória para o acesso ao reino dos
céus. Porém, em que sentido isso deve ser entendido? Não pode haver qualquer
possibilidade, nesse caso, da meritoriedade judaica, conforme já vimos anterior
mente acerca da posição da remissão de pecados na proclamação de Jesus acerca
O EVANGELHO DO REINO - SALVAÇÃO 187
reino de Deus. Isso não diminui do fato de que essa declaração abrangente tem
também um sentido ético, pois Deus também se santifica na vida de seu povo.
Esse é o motivo pelo qual essas petições estão ligadas de modo tão direto com
os mandamentos de Jesus. Elas foram concebidas com o propósito de concreti
zar a santificação de Deus e a vinda do seu reino na obediência de seus filhos.88
Essa obediência é, ao mesmo tempo, qualificada como algo que deve ser dado
por Deus e algo pelo que devemos orar. Fazer a vontade de Deus é também um
dos elementos permanentes da profecia do Antigo Testamento sobre a salvação
(cf. E z 36.23,27; Jr 24.7; 31.33; 32.39) e, naturalmente, pertence à perfeição
do reino de Deus. E a salvação pelo Senhor do seu povo que os torna diferentes de
todos os demais seres humanos sobre a face dtríerra. Ele escreve seus mandamentos no
coração de cada um deles e, em virtude disso, a obediência à vontade de Deus pode ser
eficazmente requerida.
Esse ponto de vista é tão central no Sermão do Monte quanto o motif das
condições mencionado acima. E o ponto de partida de todos os mandamentos
em Mateus 5.13-16. Pois, estreitamente ligado com as bem-aventuranças, en
contramos aqui o indicativo ético da salvação-. “Vós sois o sal da terra... Vós sois a
luz do mundo”. A razão é clara, pois eles pertencem ao reino dos céus. E essa a
vantagem deles sobre os demais “homens” (v. 16), e, nisso, eles são a preservação
(sal) e a redenção (luz) da humanidade e do mundo. A vantagem deles não é um
dom de natureza exclusivamente objetiva que consiste na promessa, mas é uma
nova situação na vida para a qual eles foram transpostos e na qual se tornaram
seres humanos diferentes, pois o coração deles, o seu próprio ser, foi mudado.
Esse é o motivo pelo qual são capazes de realizar boas obras, por causa do dom
que lhes foi conferido. Esses indicativos estão ligados aos imperativos que se
seguem: aqueles que são o sal e a luz do mundo devem fazer a obra do sal e da
luz por meio de suas “boas obras”, isto é, no cumprimento ético da vontade de
Deus. E por isso que a caracterização dos mandamentos do Sermão do Monte
como “condições de entrada” (Einlaszbedinungen) ou “thorot-d’entrée” (Windisch)
é parcial, para dizer o mínimo. Por causa da posição dominante de Mateus 5.13-16
no Sermão do Monte,89 as boas obras que Jesus exige de seus discípulos devem ser
vistas, em primeiro lugar, como o resultado e a manifestação da salvação do reino
no qual eles participam em Cristo. Assim, também, a concepção de Bultmann
dos mandamentos como a própria pregação da salvação, a qual não tem outro
objetivo senão colocar o homem na posição de decisão (Eintscheidung) se torna
insuficiente.90 Os mandamentos de Jesus não apenas colocam o homem na crise,
mas além dela. O Sermão do Monte menciona, de modo especial, não somente
um momento decisivo e repetido de conversão, como também, e até mais, uma
vida contínua e perseverante que procede de tal decisão. Essa vida é uma vida
de “fazer a luz brilhar”, de “fazer as obras de Deus”, a “prática da justiça”, o “ser
O EVANGELHO DO REINO - SALVAÇÃO 189
recebido o seu sentido mais radical nos mandamentos de Jesus);102 nem é a lei
que é nova, como a ordem da graça e como o dom de Deus a seu povo. O que é
novo é a inauguração divina da nova aliança, o fato de que Deus escreve a sua lei
no coração do seu povo. O próprio Deus assume a responsabilidade de cumprir
as condições da aliança (Jr 31.33).103 Esse é o motivo pelo qual o arrependimento
e a prática da justiça, bem como a resistência à tentação de Satanás (Lc 22.32),
são atos de f é (M t 21.32; M c 11.31, cf. M c 1.15). Pois, de fato, a parte principal
da lei consiste na justiça, na misericórdia e na fé104 (M t 23.23), isto é, na certeza
da ajuda e da salvação de Deus.
Também aqui tudo se concentra em nosso relacionamento com Cristo, em
quem Deus perdoa nossos pecados e em quem ele é um Pai para seu povo. Isso
procede do fato de que o cumprimento da lei é o fruto desses dons da graça. Em
mais de uma passagem, esse pensamento é expresso de maneira direta. O primeiro
exemplo disso é encontrado na palavra de julgamento de Cristo (M t 7.23): “Então
lhes direi... nunca vos conheci; apartai-vos de mim, o que praticais a iniqüidade”.
Essa frase, “nunca vos conheci”, é da mais alta importância.105 Não significa um
tipo intelectual de conhecimento, mas “reconhecimento”, “aceitação como se fossem
do seu próprio povo”, “eleição”.106 A explicação e o critério para se fazer justiça
não se encontra no apelo que alguém porventura faça a Jesus com base na própria
autoridade dele (“Senhor, Senhor”), mas em Cristo recebê-lo em sua comunhão.
Fora dessa comunhão não existe obediência, por mais forte que seja a reivindicação
de uma recompensa feita com base em obras realizadas supostamente “em teu
nome”. Somente aqueles que são conhecidos por ele por meio dessa comunhão
receberão a graça de obedecer à vontade do Pai (cf. M t 13.50).
Não há uma passagem na qual essa verdade seja revelada de uma maneira
mais central e gloriosa do que nas bem conhecidas palavras do Salvador em
Mateus 11.28-30: “Vinde a mim, todos os que estais cansados e sobrecarregados,
e eu vos aliviarei. Tomai sobre vós o meu jugo e aprendei de mim, porque sou
manso e humilde de coração; e achareis descanso para a vossa alma. Porque o
meu jugo é suave, e o meu fardo é leve”.
Os “cansados” e os “sobrecarregados” não são aqueles encurvados pelo peso
da vida ou pelo fardo de seus pecados. Mas, como transparece das palavras “meu
jugo” e “meu fardo”, são aqueles oprimidos pelas pesadas exigências da concepção
farisaica da lei (cf. M t 23.4).107 Eles desconhecem qualquer descanso ou alívio,
isto é, eles são assombrados pela incerteza e pelo medo, pois não podem suportar
esse jugo, esse fardo (At 15.10), e, portanto, não têm paz (Jr 6.16). Em contraste
com esse estado de coisas, Jesus menciona seu “jugo” e seu “fardo”. Essas palavras
designam o que a pessoa d evefazer, isto é, os mandamentos de Jesus. O seu jugo
é suave e o seu fardo é leve não porque esses mandamentos não representem
exigências pesadas ao amor-próprio e à afirmação de si mesmo (cf. M t 7.13ss),
O EVANGELHO DO REINO - SALVAÇÃO 193
mas porque é Jesus quem os ensina. Pois, ele é “manso e humilde de coração”.
Ele mesmo é um daqueles “pobres de espírito”, “os mansos”, a quem ele prega o
evangelho. Ele é o Legislador, mas também é totalmente dependente de Deus,
rejeitado pelos homens, em seu caminho para a cruz.108 Aqueles que aprendem
a vontade de Deus com ele e a aceitam se tornam, consequentemente, não
somente dependentes de sua palavra como um mandamento, mas são também
chamados à comunhão com sua pessoa. E ele quem dá àqueles que vivem em
sua comunhão o descanso, a certeza da salvação, pois ele os ensina a carregar esse
fardo em sua nova relação com Deus como filhos de seu Pai celestial e porque
ele mesmo carrega esse fardo, como aquele que foi enviado pelo Pai. Portanto,
todos os mandamentos, bem como as advertências e as ameaças do julgamento
final, no fundo, somente apontam para o próprio Jesus. Na comunhão com ele,
a salvação do reino é recebida e o “jugo do reino”109 se torna leve, pois, por meio
da sua humildade e mansidão, ele lançou a base da nova aliança na qual Deus
escreve a sua lei no coração do seu próprio povo.110
O que é verdadeiro com respeito à remissão de pecados e ao fato de tor-
nar-se filho de Deus também o é no que se refere ao cumprimento da vontade
do Pai. Esse novo elemento de satisfação não deve ser procurado na coisa em
si, mas na comunhão da pessoa daquele que a requer. Juntos, o indicativo e o
imperativo indicam a salvação que começou com a vinda de Cristo e sua obra
em favor de seu povo.
Finalmente, apresenta-se a questão sobre se o evangelho do reino contém
ou não mais detalhes acerca do subjetivo, ou, caso se prefira, as pressuposições
antropológicas do cumprimento da vontade de Deus. Essa questão não é fácil de
responder. Não se pode negar que existem tais pressuposições. Repetidas vezes,
Jesus ensina aos seus discípulos e à multidão que fazer a vontade de Deus não é
somente um ato presente ou uma decisão, mas algo fundamentado no ser huma
no, em seu estado, como, por exemplo, nas menções freqüentes à árvore e seus
frutos (M t 7.16-20; Lc 6.43-45; M t 12.33-35; cf. também M t 21.43): “Assim,
toda árvore boa produz bons frutos, porém a árvore má produz frutos maus. Não
pode a árvore boa produzir frutos maus, nem a árvore má produzir frutos bons”
(M t 7.17-18). “O homem bom do bom tesouro do coração tira o bem, e o mau do
mau tesouro tira o mal; porque a boca fala do que está cheio o coração” (Lc 6.45).
“Raça de víboras, como podeis falar coisas boas, sendo maus? Porque a boca fala
do que está cheio o coração. O homem bom tira do tesouro bom coisas boas; mas
o homem mau do mau tesouro tira coisas más” (Mt 12.34-35).
Em outros lugares, esses frutos são chamados de evidência de conversão
(M t 3.8 e paral.). No que foi dito acima, esses frutos são considerados como uma
característica do estado interior do homem111 e são chamados de seus produtos
necessários (“não pode ser diferente”). Jesus também fala do “homem bom” e do
194 A v in d a d o R e in o
também 2Co 4.7), exatamente como “o [homem] mau do mau tesouro tira o
mal”. O dom do reino não consiste necessariamente do que é objetivo, mas do
que um homem recebe e possui como uma bênção interior. Ainda assim, não
há, aqui, nada que possa ser designado como um conceito fixo. Os pensamen
tos mais profundos sobem à superfície em flashes de imagens apenas de modo
incidental e momentâneo. Além disso, devemos sempre ter em mente que esse
kerygma é historicamente determinado, isto é, não é a teologia da igreja depois da
ressurreição de Cristo e depois da descida do Espírito Santo, mas é a proclamação
que Jesus fez do evangelho antes desses acontecimentos. Isso explica as menções
pouco freqüentes ao Espírito Santo, cuja obra é a explanação verdadeira e mais
profunda da renovação do “coração”, da “vivificação”, da evidência da filiação e
do cumprimento da vontade de Deus.
E verdade que João Batista menciona que Cristo “batizaria com o Espírito
Santo”. Com isso, ele expressa tanto o que os profetas haviam prometido com
respeito ao tempo messiânico grandioso da salvação quanto as expectativas que
sobreviviam no povo judaico. Foi dito acerca do próprio João que ele seria cheio
do Espírito Santo e que converteria muitos dos filhos de Israel ao Senhor seu
Deus (Lc 1.15ss).Não há duvida de que essa promessa do Espírito Santo se refere
a uma grande mudança espiritual que aconteceria na vinda do Messias. M as o
“batismo do Espírito Santo”, na pregação de João, não se refere à conversão e ao
cumprimento da vontade de Deus exigidos pelo evangelho. Como se pode ver
em Atos 1.5, refere-se aos dons especiais que seriam dados aos discípulos (os
apóstolos) no Pentecostes, depois da ressurreição e ascensão de Jesus, e que os
capacitaria a executar sua importante missão (cf. também M t 10.20, etc.).
Finalmente, parece-nos que o pronunciamento no evangelho sobre o dom
do Espírito Santo em Lucas 11.13 tem um significado mais geral. Nesse caso, o
Espírito Santo é chamado de um dom que Deus concede a seus filhos em resposta
à suas orações (a passagem paral. de Mateus traz somente “boas coisas” - M t 7.11).
O contexto prova que o dom do Espírito Santo tem um sentido mais geral do que,
por exemplo, em Mateus 10.20 e passagens paralelas. Ele ocorre aqui em resposta ao
pedir, buscar e bater dos filhos de Deus. Eles podem contar com o Espírito Santo
de Deus tanto quanto podem esperar o alimento necessário de seu pai terreno
(vs. 9-12). Isso prova que a vida dos filhos de Deus se baseia no dom do Espírito
Santo, o qual é não somente o segredo da sua força moral, mas da totalidade de sua
existência espiritual, de sua busca pelo reino dos céus, de sua confiança no amor do
Pai, de seu discernimento da vontade dele e de sua expectativa da salvação vindoura.
Em resumo, de tudo de que precisam para viver como filhos do Pai.
Deve ser observado que o Espírito Santo é chamado de o mais importante
dos dons que Deus concede aos seus filhos em resposta à suas orações.116 Ele
é eminentemente o melhor dom. Essa promessa está diretamente ligada com a
196 A v in d a d o R e in o
muito mais direta e especial. Seu sentido pode ser traduzido (parafraseado) da
seguinte maneira: “Não andeis ansiosos com referência aos meios de sua subsistência
e nem quanto ã questão da comida, nem com referência ao seu corpo,129 quanto à
questão de como vestir-se”. Isso não quer dizer que não devamos nos preocupar
com respeito ao nosso corpo e à nossa vida como tais, mas que deveríamos estar
livres de cuidado com respeito ao sustento deles por meio de alimento e roupas. Isso
fica mais do que claro pela motivação que se segue (M t 6.25; Lc 12.23): “Não
é a vida mais do que o alimento, e o corpo mais do que as vestes?” Em outras
palavras, o mandamento “não andeis ansiosos” não é motivado pelo dizer que
a vida e o corpo não requerem qualquer cuidado (ou não tanto cuidado assim),
mas pela consideração de que a existência deles não égarantida pelo alimento epelas
roupas, os quais, em si mesmos, não são garantia da preservação da vida.
O que preserva a vida e o corpo não é especificado na passagem, mas não
temos como deixar de entendê-lo, pois o pensamento expresso nas palavras (“não
é a vida mais do que o alimento, e o corpo mais do que as vestes?”) é muito geral e
encontra a sua formulação mais incisiva no pronunciamento bem conhecido, “que
aproveitará o homem se ganhar o mundo inteiro e perder a sua alma?” ou, “O que
dará o homem em troca de sua alma?”130 (M t 16.26; M c 8.36). Lucas 9.25 traz:
“se vier a perder-se ou a causar dano a si mesmo?”.131 O que está em discussão
é a salvação da vida. O conceito de psuche não somente indica a vida interior do
homem em contraste com o seu exterior (Lutero), mas sim toda a existência do
homem, como transparece da passagem paralela em Lucas, “causar dano a sua
psuche”. Essa frase se refere à perda a ser suportada na vida eterna: perder-se e
ser destruído no inferno. E por isso que Mateus e Marcos continuam dizendo:
“O que dará o homem em troca (antallagma) de sua alma?” A preocupação aqui
não é meramente com a vida interior, mas com a salvação da existência humana
como um todo no julgamento de Deus.
Tudo isso prova que o que é chamado de vida (psuche) por Jesus tem um
significado eterno que sobrepuja tudo o mais. O mesmo se verifica com relação
ao corpo. Esse é o motivo pelo qual é tolice pensar que a morte (temporal) do
corpo é a pior coisa que pode acontecer. Devemos, antes, temer aquele que pode
destruir no inferno tanto a psuche quanto o corpo (M t 10.28). O significado do
corpo se estende tanto quanto aquele da alma.
O destino eterno da vida e do corpo é, portanto, a razão pela qual a vida
é “mais” que o alimento, e o corpo é “mais” do que as roupas. Comida e roupas
não podem garantir a sua salvação (cf. Lc 12.15). A salvação exige mais, a saber,
a salvação da alma e do corpo no reino de Deus. Esse reino deveria ser a primeira
preocupação do homem. Devemos começar do início.
Tomada nesse sentido, a “fé na providência” expressa de maneira tão
especial na passagem acerca do “não andeis ansioso” não fica de fora da “esfera
202 A v in d a d o R e in o
reino. Isso também se aplica ao pedido pelo pão diário, que é feito como um apelo
à paternidade de Deus. Apesar de, em si mesma, essa petição poder se encaixar
muito bem num diferente mundo conceituai, ela pode, num contexto diferente,
ser claramente compreendida somente a partir da nova relação para com Deus
dada com a vinda de Cristo. Do mesmo modo que a exortação “não andeis an
siosos”, esse pedido é cristologicamente determinado, assim como a petição pela
remissão de pecados. Em ambos os casos, a base da petição e da sua resposta se
encontra na paternidade de Deus concretizada na vinda de Cristo.
O mesmo se aplica a todas as “boas dádivas” pelas quais os discípulos oram
a Deus. A sua vida de oração deve ser governada pela sua fé na paternidade de
Deus (M t 7.7-12; Lc 11.9-13). Além disso, em todos esses ditos que apresentam
a paternidade humana como um exemplo, não há a menor dúvida acerca de um
conhecimento natural de Deus como Pai, o qual é inferido desse relacionamento
terreno. Nem somos, aqui, confrontados com um otimismo ingênuo de fé que
ainda não discerniu o problema da história e o enigma do sofrimento, mas tudo
se torna inteligível somente à luz da paternidade de Deus em Cristo.
Esse é o motivo pelo qual “pedir”, “buscar” e “bater” não se restringem so
mente aos desejos de suprimentos para as necessidades terrenas. Nem às “coisas
boas” que, de acordo com a promessa de Jesus, o Pai celestial dará àqueles que
pedem. A oração a Deus é totalmente abrangente, ela pode começar com todas
as promessas do reino, estender-se tanto ao que é temporal como o que é eterno.
Mas, sempre, mesmo com respeito às necessidades da vida temporal, é dominada
e apoiada pelo evangelho do reino. A providência e o reino de Deus não são
dois aspectos separados ou duas esferas distintas da vida. Uma não se origina na
criação nem o outro “na consumação do século”. Portanto, a providência de Deus,
que abrange a totalidade de seu poder criador e preservador e sua sabedoria, é
invocada pelos filhos de Deus, pois eles foram adotados por Deus como seus
filhos no reino, em Cristo. E , vice-versa, o reino é a garantia de que eles não serão
desapontados por Deus quando orarem dessa maneira.
As seções anteriores provaram que a salvação do reino dos céus tem sido
sempre proclamada como uma realidade presente. No que se refere ao seu
aperfeiçoamento e consumação, todavia, sempre é pregada como algo do futuro.
Nossa discussão sobre a salvação do reino enfocará agora, portanto, o conteúdo
e a natureza desse dom futuro.
Num sentido, pode-se dizer que essa salvação futura do reino já está presente,
ou seja, no céu. M ais de uma vez Jesus fala de “tesouros” ou de um “tesouro” no
204 A v in d a d o R e in o
céu, o qual já pode ser acumulado ali, como na passagem antitética bem conhecida
de Mateus 6.19-20: “Não acumuleis para vós outros tesouros sobre a terra, onde
a traça e a ferrugem corroem e onde ladrões escavam e roubam; mas ajuntai para
vós outros tesouros no céu, onde traça nem ferrugem corrói, e onde ladrões não
escavam, nem roubam”. O mesmo pensamento é encontrado, embora em outras
palavras, em Lucas 12.33: “Vendei os vossos bens e dai esmola; fazei para vós
outros bolsas que não desgastem, tesouro inextinguível nos céus, onde não chega
o ladrão, nem a traça consome”.
Ao jovem rico, em Mateus 19.21ss: “Se queres ser perfeito, vai, vende os teus
bens, dá aos pobres e terás um tesouro no céu...” (M t 19.21ss). Nesse caso, Jesus se
acomoda à maneira de falar e às ideias que eram correntes no judaísmo.132 Esse
“tesouro” é uma espécie de capital celeste que será pago no grande dia do ajuste
de contas na época do julgamento a ser feito por Deus. Embora na pregação de
Jesus qualquer noção de mérito esteja totalmente ausente, ele usa essa ideia do
tesouro celestial para motivar seus discípulos a fazerem o máximo possível com
respeito à sua futura salvação, pois esse tesouro é a revelação futura da salvação
do reino. Esse fato não pode ser negado dentro do escopo da pregação de Jesus.
Portanto, tanto a parábola do tesouro no campo como a da pérola de grande valor
são dominadas pelo mesmo pensamento, apesar de ambas incluírem a salvação
presente.133
Ao falar do tesouro celestial\ Jesus indica o lugar onde a futura salvação do
reino está sendo guardada (cf. lPe 1.4-5) e também a natureza supraterrena e
eterna desse tesouro que está sendo guardado para os seus discípulos. Tem sido
corretamente observado134 que a proclamação da salvação parece ser diferente
da proclamada no Antigo Testamento. No Antigo Testamento, a promessa do
futuro tem, em sua essência, aspectos terrenos. Ainda assim, não se pode dizer
que a natureza celestial da prospectiva da salvação ensinada por Jesus se constitui
no aspecto novo e espetacular de sua pregação. E a diferença entre a proclamação
da salvação no Antigo Testamento e no Novo não pode ser caracterizada pelas
palavras “terrena” versus “celestial”, pois, em primeiro lugar, o Antigo Testamento
também mostra características que não encontram uma explicação satisfatória
dentro dos limites da dispensação terrena.135 Em segundo lugar, a representação
transcendente da salvação futura domina de maneira especial alguns escritos
apocalípticos dentro do judaísmo contemporâneo.136 E, em terceiro lugar, Jesus
também visualiza a última revelação do reino na terra (cf. M t 5.5).
Nada disso, entretanto, diminui o sentido das palavras de Jesus sobre te
souros celestiais, pois esse sentido não somente indica que a salvação do reino
é uma dádiva que provém de Deus - isso se aplica também à remissão de pe
cados, tornar-se filho de Deus, etc. - como também que seu conteúdo não é
plenamente consumado dentro do plano desta dispensação terrena. A revelação
O EVANGELHO DO REINO - SALVAÇÃO 205
dessa felicidade celestial não é menor do que a revolução cósmica que é indi
cada no evangelho de maneiras diferentes. Em Mateus 13.39, é chamada de “a
consumação do século” (.sunteleia aioonios, cf. vs. 49; 24.3; 28.20 ).Aioon significa
alguma coisa como “tempo do mundo”, o que sugere que a salvação futura só
pode se manifestar depois que chegar ao fim o tempo que Deus designou para
este mundo.137 Num sentido positivo, a revolução cósmica em conjunção com a
consumação do tempo do mundo é indicada como a regeneração (palingenesia^
M t 19.28). Na passagem paralela de Lucas, encontramos a simples expressão “no
meu reino” (Lc 22.30). Em outro lugar, a dispensação que se iniciará à época é
chamada de “mundo por vir”, no qual os seguidores de Jesus receberão “a vida
eterna” (Mc 10.30; Lc 18.30).
Essa salvação que será revelada como o dom do reino à época do fim do
mundo, na regeneração (de todas as coisas), no aioon vindouro, e que é sintetizada
nos termos “vida” ou “vida eterna”, é indicada de várias maneiras. Ela começa
com a “ressurreição dos mortos”. A menção mais elaborada dela está registrada
na disputa entre os saduceus e Jesus (M t 22.23-33 e paral.). Em Lucas 14.14,
encontramos a expressão “a ressurreição dos justos”, em cuja época toda caridade
que foi feita a quem não podia pagar de volta será recompensada. Aqui, a palavra
“ressurreição”, aparentemente, não significa o ato de se levantar de entre os mortos,
mas o estado de bem-aventurança que tem início com isso.
Os saduceus negavam a ressurreição dos mortos. Essa negativa era contrária
à opinião geral do judaísmo na época de Jesus, pelo menos a partir do que pode
ser inferido da literatura apocalíptica, pseudepígrafa e rabínica.138 A resposta de
Jesus à pergunta capciosa dos saduceus implica duas coisas. Primeira, sua rejeição
da pressuposição de que as funções e os relacionamentos presentes da vida terrena
serão restaurados na ressurreição. Naquela época não se casarão nem se darão em
casamento, mas as pessoas serão “como os anjos”. Em Lucas 20.36, essa igualdade
com os anjos não é mencionada somente em relação ao casamento, mas Jesus
também explicitamente declara que os justos “não podem mais morrer”. Disso
não se segue que aqueles que ressuscitarão dos mortos serão iguais aos anjos em
todas as coisas. Nem ainda que Jesus está dizendo que os anjos no céu têm uma
espécie de corpo celestial.139 Essa passaagem trata apenas da comparação de um
ponto concreto, a saber, o casamento. Quanto ao mais, Jesus contradiz a expec
tativa corrente dos judeus que esperavam que as relações terrenas e os órgãos
físicos do homem fossem restaurados na grande ressurreição.140 Em contraste com
isso, ele coloca plena ênfase na comunhão com Deus como sendo o grandioso
propósito e o centro da vida ressurreta: Eles “são filhos de Deus, sendo filhos da
ressurreição” (Lc 20.36).
Além de manter o caráter dessa vida da ressurreição, Jesus também, em
segundo lugar, mantém ofato da ressurreição. Ele faz isso recorrendo às Escrituras
206 A v in d a d o R e in o
e para o “poder de Deus”. A citação que ele faz da Escritura fala da ressurreição
somente de maneira indireta: “Eu sou o Deus... de Abraão, o Deus de Isaque
e o Deus de Jacó” (Êx 3.6). Jesus liga essa passagem com seu pronunciamento,
“ele não é Deus de mortos, e sim de vivos”. Aqui, a fé na ressurreição se baseia
na fé em Deus. Por isso o apelo ao “poder de Deus”, que é concebido não como
uma qualidade estática e atemporal, mas como um poder a serviço do reino,
operando em favor da consumação de todas as coisas (cf. M t 6.13b). Jesus, aqui,
fala do Deus que tem se revelado na história da salvação (Abraão, Isaque e Jacó).
Esse Deus é o Criador do mundo que se santifica no seu povo e que se mantém
como Deus dos céus e da terra. Isso, naturalmente, implica a ressurreição dos
mortos, a qual não é inferida nesse caso a partir de uma passagem definida,
nem “demonstrada” de maneira sutil, de acordo com o estilo dos rabinos, mas, é
indicada como um postulado da obra salvadora de Deus, a qual, desde a origem
da existência de Israel, foi dirigida para a consumação do reino dos céus. Ela se
baseia na totalidade da revelação da criação e da redenção.
Finalmente, do fato de que Deus não é Deus de mortos, e sim de vivos,
segue-se que haverá ressurreição de mortos (isto é, a restauração do corpo). Essa é
uma conclusão irrefutável que não necessita de demonstrações adicionais, já que
está totalmente implícita na perspectiva neotestamentária do homem, de acordo
com a qual o corpo, juntamente com a alma, pertence à essência da existência
humana e não é o invólucro temporário e inferior da alma.141
Quando tentamos descobrir em que consiste a bem-aventurança da vida
da ressurreição de acordo com o ensino de Jesus, percebemos que não há uma
“descrição” elaborada ou explícita da mesma. M as, como é o caso com a procla
mação da salvação, encontramos apenas a promessa afirmativa em todos os tipos
de pronunciamentos espalhados por toda parte. O evangelho não traz revelações
apocalípticas acerca dos grandes acontecimentos do futuro. Repetidamente, a
salvação é apresentada como o mandamento gracioso de Deus para com seu povo,
como a libertação das angústias desta vida, como o cumprimento da promessa,
como uma compensação pela opressão temporária. Vemos que as bem-aventuran-
ças mencionam que a vida da ressurreição trará consigo “consolação”, “satisfação”
com a justiça, “misericórdia”, “revelação dos filhos de Deus”, “ver a Deus”. Em
outros lugares, encontramos frases como sentar-se “à mesa com Abraão, Isaque
e Jacó” (M t 8.11 e paral.); ser “salvo” (M t 10.22, etc.); “os justos resplandecerão
como o sol” (M t 13.43); achar “a sua vida” (M t 16.25, etc.); assentar-se “em doze
tronos” (dito com relação aos discípulos, M t 19.28); ser convidado para a “festa de
casamento” (M t 22.1-14); entrar “no gozo do teu senhor” (M t 25.14-30); entrar
“na posse do reino” (M t 25.34); “beber o vinho novo” (M t 26.29 e paral., etc).
H á um significado especial no fato de que, em Mateus 5.5, Jesus também indica
a terra como o local onde o reino revelará a sua glória. O “herdarão a terra” (cf.
O EVANGELHO DO REINO - SALVAÇÃO 207
reação à vontade de Deus. Esse é o motivo pelo qual o cumprimento dos man
damentos pode ser chamado de “caminho que conduz para a vida” (M t 7.14).
Como uma dádiva do reino de Deus, essa “vida” já está preparada e se inicia
com a filiação realizada pelo Espírito de Deus e pelo cuidado paternal de Deus
por seus filhos (M t 19.29, etc.). Mesmo agora, uma distinção é feita entre os
“vivos” e os “mortos” entre os seres humanos que vivem no presente. Apesar de
os Evangelhos sinóticos sempre falarem da “vida” como uma dádiva da salvação
concedida por Deus num sentido futuro-escatológico, é inconfundível que há
uma relação inquebrantável e uma unidade entre essa dádiva futura e a salvação
que é concedida agora, isto é, a remissão de pecados, o fato de ser adotado por
Deus como filho e o dom do Espírito Santo. Ambos são dons do mesmo reino
e, por esse motivo, se fundamentam no ato salvador grandioso da revelação de
Jesus Cristo.148 Na pregação do reino registrada nos três primeiros Evangelhos, a
proclamação da ressurreição e da vida tem apenas uma característica cristológica
implícita, pois essa pregação ainda não pode olhar retroativamente para a morte e
a ressurreição de Cristo como “acontecimentos determinantes do presente” (“die
Gegenwart bestimmende Ereignisse”). M as isso não diminui o fato de que essas
dádivas futuras da salvação, como a salvação do reino, eo ipso, encontram sua base
e cumprimento em Cristo. Isso é expresso de todas as maneiras na continuação
da proclamação neotestamentária da salvação. Nos Evangelhos sinóticos, entre
tanto, são somente os “milagres” de ressurreições de mortos realizados por Jesus
(M t 9.18ss; 11.5; Lc 7.11-17, cf. também M t 27.52-53) que proclamam a vida
eterna como um dom de Cristo. M as, presentemente, a vida eterna como fruto e
resultado da ressurreição deJesus de entre os mortos será proclamada como o coração
e o cerne do kerygma cristão.149
Finalmente, deve-se fazer uma menção especial às palavras que Jesus
pronunciou ao ladrão na cruz, em resposta ao seu pedido, “lembra-te de mim
quando vieres no teu reino”. Jesus replicou: “Em verdade te digo que hoje estarás
comigo no paraíso” (Lc 23.42-43). A importância especial dessas palavras no
atual contexto reside na resposta de Jesus à menção do ladrão ao reino como o
grandioso futuro messiânico em que Jesus “viria em seu reino”. A resposta de Jesus
é a promessa da bem-aventurança do paraíso já para o “presente” (semeron).™
Isso só pode significar que já, antes da ressurreição dos mortos e da vinda do
reino em conjunção com ela, existe um estado intermediário de bem-aventurança
para aqueles que foram julgados dignos.131 Essa concepção ocorre também no
mundo judaico dos dias de Jesus152 e se encontra na base da parábola do rico e
Lázaro (Lc 16.19-31, onde esse estado de felicidade é descrito como “estar no
seio de Abraão”).
O que chama a atenção no pronunciamento de Jesus é, em primeiro lugar,
o poder e a autoridade absolutos com que ele concede a participação na glória
O EVANGELHO DO REINO - SALVAÇÃO 209
3. OS M A N D A M E N T O S
ofusca todos os valores, interesses e ideais humanos. A “justiça” que Jesus exigiu
de seus discípulos não é a “justiça do reino” simplesmente porque confirma esses
“valores”, mas porque requer sacrifício absoluto de todas essas coisas por amor
ao reino. O que determina o conteúdo dos mandamentos de Jesus é o caráter
absolutamente teocêntrico do reino. Eles têm como objetivo, especialmente quanto
ao seu caráter radical, governar a totalidade da vida a partir do seu referencial
teocêntrico, e pesar todas as coisas à luz desse objetivo.
O mesmo se aplica ao ideal coletivo do reino de Deus, que, supostamente,
é refletido nos mandamentos de Jesus. Quando, para dar um exemplo, e sempre
de maneira incidental, Jesus manda seus discípulos abrirem mão de seus direitos,
de suas propriedades, de seu casamento (M t 5.38ss; Lc 12.33ss; M t 19.12), esses
mandamentos não têm como objetivo, então, servir de base para uma nova ordem
social. Pelo contrário, Jesus se baseia na fundação de uma sociedade na qual essas
instituições (direito, retribuição, propriedade, casamento, etc.) são operativas.
Agora, entretanto, ao comando de Deus, e por amor ao reino, Jesus quer que seus
discípulos renunciem aos seus direitos, interesses, benefícios e meios de proteção.
Ele não troca uma ordem social pela outra, mas sujeita ao grandioso pré-requisito
do reino de Deus tudo o que a pessoa possui por virtude de suas capacidades,
ambiente, ordem social, etc., ou tudo o que alguém reivindica. Ele contrasta
direito com autonegação, posse de propriedade com prontidão para sacrificá-la,
casamento com continência. Isso não significa dizer que o reino de Deus consiste
em não ter propriedades, na ausência de direitos e no celibato, mas sim que o reino
de Deus representa algo superior à hierarquia de valores e interesses humanos e
que a “justiça do reino” nos ensina a sujeitar todas as coisas a ele.
Deve-se rejeitar, de imediato, interpretações como as acima, da relação
entre o reino pregado por Jesus e o conteúdo de seus mandamentos que sejam
baseadas, na maior parte, em pressuposições humanísticas. Não menos censurá
vel é a concepção dos mandamentos de Jesus esposada pela linha da escatologia
consistente. Ela também estabelece uma relação próxima entre “reino de Deus” e
“justiça”, mas de tal modo que o reino de Deus significa ofim de todas as coisas,
isto é, a desvalorização absoluta de todos os direitos, interesses e prazeres terrenos.
Essa interpretação confere, em muitos aspectos, um sentido negativo à justiça
que se orienta para o reino de Deus. E nesse sentido que querem explicar tanto a
exigência de Jesus de autonegação por amor ao reino quanto o conteúdo geral de
seus mandamentos radicais. Johannes Weiss, o pai dessa perspectiva escatológica,
falou, quanto a isso, de uma “legislação de exceção” e comparou a um estado de
guerra a situação na qual Jesus imaginava que se encontrava. Em época de guerra,
o curso da vida normal é suspenso - ainda que provisoriamente. O que é anormal
se torna “normal” e tudo o que, em tempos de paz, é importante e desejável se
torna sujeito a um único e grande interesse, que é ganhar a guerra.6 Schweitzer
O EVANGELHO DO R e INO - O s MANDAMENTOS 213
vida terrena, como também a sua preservação e expansão, são colocadas diante
dos discípulos como motivos. E, por fim - e este é realmente o ponto principal
- essa “concepção escatológica” ignora o que estabelecemos de várias maneiras
até agora, ou seja, que as boas obras requeridas por Jesus são não apenas uma
preparação para o reino de Deus esperado, mas em si mesmas já demonstram a
sua presença.
É a “vontade de Deus” que está sendo feita nessas “boas obras” e nessa “jus
tiça”. Nessa “santificação do nome de Deus”, a vinda de seu reino é manifesta.11
As normas da justiça exigida por Jesus não se fundamentam num ideal terreno
do reino de Deus e nem mesmo no caráter transcendente e futuro desse reino.
A vontade de Deus expressa nos mandamentos de Jesus não está subordinada a
certos valores pertinentes à criatura, não deriva deles e nem consiste na negação
dos mesmos. Ela repousa unicamente na comunicação do próprio Deus. A “ética”
de Jesus não consiste numa doutrina sobre “bens” e nem no ascetismo. É a “ética”
da obediência no sentido pleno da palavra. O que é “justiça” e que pode ser ensinado
como tal sempre tem sua origem nas próprias palavras de Deus.
Essa noção fundamental é a grande pressuposição do fato notável de que,
repetidas vezes, Jesus fala da “vontade de Deus” sem maiores explicações (M t
7.21; 12.50; 18.14; 21.31; Lc 12.47-48). Ele também se refere ao “mandamento”
ou aos “mandamentos de Deus” (Mt 15.3; M c 7.8-9; M t 19.17; M c 10.19; Lc
18.20), à “palavra de Deus” (M t 15.6; Lc 11.28), como aquilo que o homem tem
de “cumprir”, “fazer”, “guardar”, e que, como tal, é conhecido ou pode ser conhe
cido. Se, portanto, alguém perguntar, “O que é que regula os mandamentos de
Jesus?”, a resposta definitiva é apenas esta: a vontade de Deus conforme revelada em
sua lei. E esse o significado do programa grandioso do Sermão do Monte, “não
penseis que vim revogar a Lei ou os Profetas; não vim para revogar, vim para
cumprir” (M t 5.17). Teremos que investigar, num capítulo posterior, o que está
implícito nesse “cumprimento” da lei. M as devemos declarar, de maneira enfática,
já de início, que a pregação ética de Jesus não tem uma base mais profunda do
que a lei como revelação da vontade de Deus para Israel, o povo da aliança. Isso
transparece não somente de Mateus 5.17, mas, como veremos mais adiante, da
totalidade da pregação de Jesus que nos chegou de forma escrita. Repetidamente
é a lei, e somente a lei, cujo significado e propósito é também o significado e o
propósito dos mandamentos de Jesus.
Esse é o motivo pelo qual a ligação entre o “reino de Deus” e a “justiça” não
significa que o reino de Deus representa uma nova norma ética expressa na justiça
pregada por Jesus. Porém, essa ligação deve ser encontrada na pregação do reino
como a vinda de Deus em Jesus Cristo, e ela leva a sério a revelação da vontade de
Deus como o grande critério para a vinda do reino. Essa revelação é repetidamente
referida por Jesus como estando registrada na lei e nos profetas. Portanto, pode-se
O EVANGELHO DO REINO - O s MANDAMENTOS 215
falar não somente do caráter teocêntrico dos mandamentos de Jesus (em contraste
com todos os ideais humanísticos do reino de Deus), mas também da teonomia
da justiça pregada por ele. A vontade de Deus encontra expressão na revelação
da lei. E por esse motivo que a pregação do reino é, também, a pregação da lei.
Portanto, não deveríamos ficar surpresos com o fato de que Jesus, como o Cristo,
não apenas proclama a vinda do reino como o cumprimento do tempo grandioso
da salvação, mas também como o cumprimento da Escritura (Mc 1.15; Lc 4.21) e
que ele também coloca ênfase suprema no cumprimento da lei como o propósito
da sua vinda messiânica e como o contexto do evangelho do reino.
que Jesus nos fornece um resumo da lei e dos profetas como o conteúdo de seus
mandamentos, o seu diálogo com o jovem rico tem uma importância especial. A
pergunta do jovem, “Mestre, que farei eu de bom para alcançar a vida eterna?”,
Jesus responde: “guarda os mandamentos” (M t 19.17); “Sabes os mandamentos”
(Mc 10.19; Lc 18.20). E, então, ele repete vários dos Dez Mandamentos sepa
radamente, junto com a ordem para amar o próximo (Lv 19.18). Assim, nessas
passagens, nos é dito o que é necessário para entrar no reino dos céus, a saber,
cumprir a lei. Mesmo quando, na conversa subsequente, Jesus diz ao moço rico
que venda tudo o que tem e dê aos pobres, essa exigência não excede a que nos
é requerida pela lei,15 pois é sua aplicação prática. Aqui, também, a questão
envolvida é a da “perfeição”, ou seja, fazer o bem de maneira consistente.16Jesus
não requer nada mais do que a guarda da lei, a qual é necessária para a entrada
no reino dos céus (cf. M t 19.24).17
Além do mais, o mandamento para amar a Deus e ao próximo, que é repe
tidamente dado por Jesus como o resumo de todos os mandamentos, nada mais
é senão o sumário da própria lei (M t 7.12; 22.40; cf. também M c 12.34; M t
24.12). Assim, os mandamentos mais radicais de Jesus, os quais são sempre uma
particularização de seu amor (cf., p. ex., M t 5.38ss, 43ss), não representam um
tipo novo de justiça (p. ex., o amor em contraste com o que é certo), mas somente
dão expressão ao que Jesus proclama como a exigência da lei e dos profetas. A
obediência a esses mandamentos é o cumprimento da lei.
E à luz disso, consequentemente, que devemos ver a crítica extremamente
severa que Jesus faz à doutrina e à prática da lei dos escribas e fariseus, pois é
claro que a pregação de Jesus, com respeito ao cumprimento da lei, é controlada
também por um tema antitético, do mesmo modo que sua pregação sobre a
remissão de pecados.18
A pergunta que surge agora é esta: qual é o significado desse apelo cons
tante à lei e qual é o sentido do pronunciamento enfático de Jesus na introdução
daquela grandiosa passagem antitética no Sermão do Monte, quando ele diz que
veio cumprir a Lei e os Profetas (pleroosai, M t 5.17)?
Essa pergunta só pode ser plenamente respondida (se tal resposta for pos
sível) depois de uma pesquisa acerca da totalidade da pregação ética de Jesus.
Entretanto, as palavras citadas de Mateus 5.17-19 são de grande importância
porque essa declaração geral não é obscura em si mesma, nem incompatível
com o restante do contexto, pelo que rejeitamos como um julgamento arbitrário
qualquer veredito de que se trata de uma passagem espúria.19
A primeira coisa a ser observada acerca do “cumprimento” (pleroosai), em
Mateus 5.17, é que, aí, é plenamente mantida a categoria lei no sentido de auto
ridade externa, a qual é uma conseqüência lógica, especialmente do versículo 18
(cf. Lc 16.17). Portanto, não se trata, nesse caso, de substituir a lei como fonte do
O EVANGELHO DO REINO - O s MANDAMENTOS 217
1) Jesus não cita o que estava escrito, mas o que havia sido dito (errethe, não
gegraptaí), enquanto, no versículo 18, ele fala da lei como o que foi expresso
em letras (i e til). Quando ele se refere ao que foi dito, tem em mente o
que os escribas ensinavam ao povo oralmente como a tradição do ensino
da lei pelos “antigos”.
nossa opinião, há, sem dúvida, motivos para se distinguir entre a pureza ritual e
a pureza ética, mesmo que Jesus não empregue tais termos abstratos. Apesar de
essa distinção não ser designada como um contraste (a pureza ética não torna
supérflua a pureza ritual), ela certamente sugere uma diferença de classificação,
pois a pureza ritual não pode ser separada de seu fundamento eticorreligioso.
Outro conflito entre Jesus e os fariseus confirma nossa opinião de que a
solução do problema deve ser procurada na direção já indicada acima. O conflito
surgiu pelo fato de que Jesus comia com ospublicanos (M t 9.9-13). Nesse caso, mais
uma vez, o ponto de discussão era a validade das regras judaicas.37Jesus lembra aos
seus ouvintes as palavras do profeta: “Misericórdia quero e não holocaustos” (M t
9.13; cf. Os 6.6). Essa citação é muito importante nesse ponto, pois leva o conflito
entre Jesus e os fariseus para um nível genérico. A s palavras ocorrem também
em Mateus 12.7, no debate concernente ao sábado. Elas também explicam as
palavras de Jesus sobre pureza. Pode-se dizer que nem a questão de comer com
“publicanos e pecadores” nem o conflito sobre o sábado está relacionado com a
questão dos “holocaustos”, isto é, o serviço do templo. M as Jesus considera, à luz
da profecia de Oseias, a falta de escrúpulos e a veemência dos fariseus quanto a
essas questões. Ele expõe uma atitude geral (não somente uma falsa compreensão
dentro do escopo do casuísmo). Portanto, ele culpa seus adversários em termos
de um motif'pToíético geral (como fez em M c 7.6-7). Nesse caso, ele claramente
faz um contraste entre holocausto (o que pode ser levado ao templo por mãos
humanas) e misericórdia, bondade e amor, nos quais o coração está envolvido.
Isso, também, não significa uma depreciação ou rejeição do serviço sacrificial
como se fosse algo meramente externo, mas a condenação de uma religião da
qual somente o fenômeno externo, os cultos e o ritual haviam sido mantidos e
da qual o coração estava ausente. A antítese foi formulada em termos absolutos
(“misericórdia quero e não holocaustos”), mas tem um sentido relativo. Essa é
uma forma de estilo que ocorre com frequência (cf.Jl 2.13; Jo 6.27). Significa que
o segundo termo da antítese não pode existir sem o primeiro e que só tem valor
por meio dele. No entanto, “holocaustos” e “misericórdia” não estão relacionados
um ao outro como ação e disposição, como ocorre, por exemplo, com assassinato
e ódio. Aqui temos, de fato, duas esferas distintas, a ética e a ritual. A crítica de
Jesus não tem como objetivo separar as duas coisas, mas, ao contrário, revelar
a unidade da lei, de modo que a esfera ética é mostrada como o fundamento
indispensável para a esfera ritual.
Em nenhum outro lugar essa relação é indicada de maneira mais clara do
que na palavra de Jesus contra os fariseus, em Mateus 23 (cf. Lc 11.39ss).Todo o
sermão é importante para a nossa compreensão da postura de Jesus com referência
aos escribas e a observação deles da lei. O sermão inicia com um pronunciamento
positivo de Jesus, no qual ele reconhece a autoridade que eles tinham, visto que
O EVANGELHO DO REINO - O s MANDAMENTOS 223
se assentavam “na cadeira de M oisés”, e o direito que eles tinham de exercer essa
autoridade.38 Nesse caso, também, em primeiro lugar, devemos repudiar qualquer
falsa interpretação que sugira que Jesus está se opondo à lei de Moisés. Todavia,
estamos interessados, de maneira especial, na passagem que começa no versículo
23. A questão, mais uma vez, é o significado do que pertence ao culto em seu
sentido mais amplo, pois “dais o dízimo da hortelã, do endro e do cominho”.
Jesus não se opõe nem mesmo a essa interpretação tão estreita de Deuteronômio
14.22ss. Ao contrário, ele aponta para “os preceitos mais importantes da Lei:
“a justiça, a misericórdia e a fé”. A expressão “os preceitos mais importantes”
{ta barutera) não quer dizer que esses mandamentos são mais difíceis de serem
cumpridos e que, portanto, requerem um esforço maior, mas sim que eles repre
sentam a parte mais importante e decisiva da lei.39 Nem tudo na lei tem o mesmo
peso. O cumprimento da lei significa, também, que conhecemos e praticamos a
distinção espiritual ensinada na própria revelação de Deus (cf. v. 23 com M q 6.8;
Zc 7.9). Isso não quer dizer que a ação, o desempenho externo, a parte ritual, não
tenham valor. Jesus continua, dizendo: “devíeis, porém, fazer estas coisas, sem
omitir aquelas”. M as a coisa mais importante é a que deveria estar na base do
que é externo e ritual, a disposição correta do coração. Fica evidente, repetidas
vezes, que Jesus não coloca o ético em antítese ao ritual, mas que ele considera
o primeiro como indispensável para o segundo, e, nesse sentido, a parte mais
importante da lei.
Finalmente, devemos discutir as passagens que tratam da guarda do sábado
e do jejum. Já mencionamos um tema importante encontrado em Oseias 6.6.
Contudo, esse não é o único. Em outro lugar, por ocasião da cura do homem com
a mão ressequida, Jesus pergunta aos que aguardavam para apanhá-lo quebrando
a lei do sábado: “E lícito nos sábados fazer o bem ou fazer o mal? Salvar a vida
ou tirá-la?” (Mc 3.4; Lc 6.9). Em Lucas 13.15ss, ele aponta aos acusadores os
cuidados que eles mesmos tinham com seu rebanho e pergunta se uma filha de
Abraão não deveria ser libertada do cativeiro (de Satanás!) num dia de sábado.
Uma resposta semelhante é dada aos escribas e fariseus, em Lucas 14.1-6, por
ocasião da cura do homem hidrópico num sábado. Nessas passagens, a argumen
tação começa com a natureza e o caráter do dia de descanso dado por Deus. Esse
dia não foi dado para oprimir e destruir a vida, mas para salvá-la (cf. também
M c 2.27). Além disso, não se trata, nesse caso, de qualquer quebra da lei mosaica
concernente ao sábado. Trata-se, todavia, de um desvio da visão judaica posterior,
a qual, apesar de todos os seus escrúpulos com relação à letra, não cumpria a lei
de Deus, mas a destruía (cf. também Jo 7.22-24).
Os relatos do conflito com respeito ao sábado, conforme os três Evangelhos,
quando os discípulos estavam colhendo espigas no sábado (M t 12.1-8 e paral.),
mostram poucas diferenças entre si. Nesse caso, também, a questão é da infração
224 A v in d a d o R e in o
da lei assume o significado de “tornar supérfluo”. Esse tema só ocorre uma vez
nas palavras de Jesus (cf., entretanto, M t 27.51!) e é o efeito não de um princípio
ético, mas de um princípio histórico-redentor. Ética e culto são colocados em
seus devidos lugares de acordo com sua própria natureza, conforme a revelação
da vontade divina. E, de acordo com o todo da revelação divina, são colocados à
luz da vinda da salvação e do cumprimento do tempo que começou com a vinda
de Cristo.
Em terceiro lugar, devemos rejeitar a tese de que Jesus colocou o manda
mento do amor radical contra a esfera jurídica da legislação civil de Israel. Esse
entendimento, também, se baseia num esquema que não se aplica à pregação
ética de Jesus. Pode ser verdade que Jesus não ressalta as exigências de Deus por
meio de mandamentos civis, políticos e sociais e que ele mostra que aqueles que
determinam sua atitude ética pelo que é possível e permissível pela legislação
civil (lei de Talião, divórcio) se esquivam da exigência radical de Deus para sua
vida. M as isso não significa, de maneira alguma, que Jesus toma partido contra
essa ordem civil jurídica como tal nem que a razão central de sua pregação ética
deve ser encontrada no contraste entre o mandamento (do amor) e as ordenanças
(resultantes da criação e necessárias por causa do pecado).46 É verdade que, ao
se referir à vontade original de Deus (“não foi assim desde o princípio”), Jesus
restaurou a ordem da criação, a qual não pressupõe o pecado.47 Porém, não é
verdade que Jesus “revogou” a lei, enquanto a mesma pressupõe o pecado do ho
mem.48Jesus não rejeita essas ordenanças como tais, pois elas foram dadas para
restringir o pecado e não para permiti-lo (Umes non fomes peccati, Agostinho),
mas ele rejeita essa aplicação e apela àqueles que tentam escapar da exigência
divina real e original.
Todas essas perspectivas consideram o cumprimento da lei por Jesus como
a anulação da mesma ou de parte do seu conteúdo à custa de outra parte da lei.
Em oposição a eles, não se pode declarar que a atitude de Jesus para com a lei é
invariavelmente e exclusivamente positiva. O sentido disso é visto claramente na
antítese do Sermão do Monte.
Nesse caso, Jesus explica o significado da lei por meio de vários exemplos de
sua aplicação. Esses exemplos não devem ser vistos como uma série de “novos”
mandamentos independentes nem devem ser divorciados da lei que já foi dada,
mas devem ser considerados dentro do escopo da lei como um todo. Jesus não
dá uma nova descrição ou um novo sumário das coisas éticas, mas sim um en
tendimento da profundidade da divina lei revelada. Esse é o motivo pelo qual
a validade de todos esses mandamentos em separado não é exclusiva. Eles não
representam a totalidade da vontade de Deus nem abrangem a complexidade da
lei e da vida. Não seria difícil contrastar certos pronunciamentos de Jesus (nos
quais ele cumpre a lei) com outras palavras ou ações nas quais ele faz a mesma
228 A v in d a d o R e in o
corretamente que esse resumo não deve ser explicado a partir da intenção de Jesus
de obter clareza sistemática quanto aos muitos tipos de mandamentos da lei e
nem que esse resumo se origina de “tendências construtivas divertidas”. Além
do mais, esse resumo não tende a “enfraquecer a lei divina e torná-la inofensiva”,
pois, muito pelo contrário, ele serve para fazer com que a lei seja radical.53 E esse
o significado do conceito de “amar” e “amor” no evangelho e das palavras “de
todo o teu coração, de toda a tua alma, de todo o teu entendimento”, incluindo,
também, “o teu próximo como a ti mesmo”.
Quanto ao primeiro conceito, o do amor, nenhuma passagem traz seu signi
ficado tão claramente como o dito de Mateus 6.24 (cf. Lc 16.13): “Ninguém pode
servir a dois senhores; porque ou há de aborrecer-se de um e amar ao outro, ou
se devotará a um e desprezará ao outro. Não podeis servir a Deus e às riquezas”.
E também a passagem de Mateus 10.37 (cf. Lc 14.26): “Quem ama seu pai ou
sua mãe mais do que a mim não é digno de mim; quem ama seu filho ou sua
filha mais do que a mim não é digno de mim”.
Desses pronunciamentos de Jesus, transparece que o “amor” que ele requer
no evangelho é baseado numa escolha radical. Propriamente dito, é outra palavra
para “conversão”. Consiste na total rendição da vontade, em estar à disposição do
Senhor como um escravo. Essa é a razão pela qual a batalha à qual esse amor é
convocado é uma luta contra a “competição”, contra o abrir mão dos princípios,
contra o que é um “obstáculo” ao serviço que o amor presta, contra tudo o mais
que impede o amor de realizar seu serviço absoluto. Esse é o sentido da parábola
sobre a luz e as trevas, que, em Mateus 6, precede o pronunciamento sobre o amor:
“São os olhos a lâmpada do corpo. Se os teus olhos forem bons, todo o teu corpo
será luminoso; se, porém, os teus olhos forem maus, todo o teu corpo estará em
trevas. Portanto, caso a luz que em ti há sejam trevas, que grandes trevas serão!”
(Mt 6.22-23; cf. Lc 11.34-36).
Essa passagem trata do contraste entre “bom” e “mau” ihaplous-poneros), que,
nesse contexto, significa “funcionar plenamente ou não funcionar”. Do mesmo
modo que o olho não pode servir ao homem (como um órgão iluminador que
aponta o caminho) se o órgão da visão não puder funcionar livremente, assim
também é um homem que está dividido em sua mente, cujo coração busca duas
coisas incompatíveis (v. 21). No serviço a Deus, tudo depende de integridade,
perfeição e prontidão para servir sem qualquer reserva. É esse o amor que Jesus
requer, o amor que é, também, o conteúdo e resumo da lei. Daí o acréscimo “de
todo o teu coração, etc.”, que expressa, de maneira positiva, o que foi dito anti-
teticamente nos pronunciamentos mencionados acima.
Com respeito ao mandamento de amar ao próximo, as coisas não são di
ferentes. Como transparece de várias maneiras, ele consiste numa entrega total
à vontade de Deus. E algo diferente de simpatia, a qual é um efeito produzido
O EVANGELHO DO R e INO - O s MANDAMENTOS 233
pela qualidade de seu objeto, pois o amor que Jesus requer é amor ao próximo,
ou seja, não é um tipo de amor genérico pela humanidade, mas um amor que
não escolhe a quem vai amar, que está comprometido principalmente e sem
reservas com vontade de Deus e ã direção dele quanto ao seu objeto, pois o pró
ximo é qualquer pessoa que Deus coloca em nosso caminho, como está descrito
de uma maneira tão bela e sem paralelo na parábola do bom samaritano (Lc
10.29-37). Essa concepção culmina no mandamento de Jesus para amarmos
nossos inimigos, orarmos pelos que nos perseguem, fazermos o bem aos que
nos odeiam e abençoarmos os que nos amaldiçoam (M t 5.43-48; Lc 6.27-28,
32-36). Esse mandamento tem a ver com pessoas em cujas atitudes não há nada
que seja atraente, que suprimem qualquer simpatia que alguém pudesse ter para
com elas. M as é dessa maneira que se torna claro que tipo de amor, de acordo
com as palavras de Jesus, é requerido pela lei divina. Esse amor só é possível se
o coração tiver sido convertido a Deus. E a obediência que fará qualquer coisa
que Deus exigir de seus filhos e que pressupõe a entrega total e desimpedida
do coração e da vontade. E, finalmente, o mesmo é indicado pelas palavras, "...
como a ti mesmo”. “Amar a si mesmo”, também, não é uma motivação (como se
fosse possível amar ao próximo a partir do “dever” de amar a si mesmo) e nem
uma restrição (amar ao próximo dentro dos limites do que se deve a si mesmo),
mas indica que, num certo sentido, o amor requerido é ilimitado. Significa que
devem ser levados em consideração os interesses do próximo com a mesma es
pontaneidade impensada com a qual se busca a própria felicidade e se defende
os próprios interesses. Ou, como está na regra áurea de Mateus 7.12ss (cf. Lc
6.31): “Tudo quanto, pois, quereis que os homens vos façam, assim fazei-o vós
também a eles”.
Não há outra maneira mais forte do que essa para expressar que o amor ao
próximo deve proceder de um coração “desimpedido” e indiviso e que esse amor
se origina e se torna possível apenas a partir de uma prontidão de coração para
servir e de nossa sujeição a Deus.
Esse amor a Deus e ao nosso próximo é o conteúdo grandioso da lei. Por
esse motivo, os mandamentos de Jesus, que expressam a vontade divina, são de
uma natureza tão radical. Para resumir numa frase, podemos, portanto, dizer que
o cumprimento da lei por Jesus consiste no fato de que ele mostrou, de uma maneira
incomparável, o caráter do amor e da obediência exigidos pela lei. Nessa declaração,
o amor é concebido como uma sujeição absoluta e inclusiva.
D o que foi dito acima, segue-se que o propósito dos mandamentos de Jesus,
bem como o “cumprimento da lei” demonstrado por ele, claramente se referem
ao que estí por trás do aspecto ético específico e, realmente, se concentram na raiz
religiosa da obediência à vontade divina. Esse é o importante elemento de verdade
na concepção (sustentada por Bultmann e outros) de que a verdadeira questão
234 A v in d a d o R e in o
É à essa luz, portanto, que devemos ver a diferença entre o Antigo Testa
mento e a pregação de Jesus com respeito ao lugar e à formulação do mandamento
do amor. A graça de Deus revelada em Cristo também traz em si a exigência do
amor à sua mais elevada conseqüência. Os mandamentos de Jesus são a contra-
parte da salvação pregada pelo evangelho. Isso somente prova que essa redenção
não substituirá a lei, mas traz a lei revelada exatamente ao seu lugar apropriado,
a saber, ao coração daqueles que aceitaram Jesus (ver Jr 31.33).
Aqui aparece o pleno sentido messiânico do amor requerido por Jesus, bem
como de todos os seus mandamentos. Ele reside tanto na esfera noética quanto
na existencial; revela não só a lei, mas também o coração. Ele se refere tanto à
letra quanto ao Espírito e é, ao mesmo tempo, um requerimento e um dom. Eles
se determinam mutuamente. No cumprimento da lei como uma interpretação,
o coração é revelado como o lugar de onde procedem as fontes da vida, como o
centro no qual as exigências da lei se concentram. De maneira recíproca, a profun
didade da lei é revelada apenas onde os corações dos filhos de Deus foram abertos
pela graça de Cristo, pois somente o dom do amor concede o conhecimento da
lei. Assim, o cumprimento da lei é tanto palavra quanto ação. Isso é verdadeiro
também quanto ao todo da pregação de Jesus. Em sua boca está o sentido mais
elevado e mais profundo da pregação do evangelho do reino.
exigência em fé será induzida a tentar formar uma ideia tão exata quanto possível
io significado concreto desses mandamentos. Isso tem a ver, especialmente,
com os mandamentos radicais do Sermão do Monte, tais como a exigência por
clemência para com o adversário (M t 5.25ss; cf. Lc 12.57-59), a proibição de se
fazer juramentos (vs. 33-37), a retribuição e a exigência concomitante da cha
mada “postura não defensiva”, de emprestar sem pedir de volta (vs. 38-42, cf. Lc
6.29-30) e de amar o nosso inimigo (M t 5.43ss, cf. Lc 6.27ss).
As mesmas questões ocorrem novamente no caso da exigência que Jesus fez
ao jovem rico de que ele vendesse tudo o que possuía e desse aos pobres (M t 19,
etc.), uma exigência apresentada de modo genérico em Lucas 12.33: “Vendei o
que tendes e dai esmolas”. Esses últimos mandamentos se referem especialmente
às propriedades e estão ligados com outros pronunciamentos de Jesus a respeito
das riquezas e dos ricos, tais como o dito “é mais fácil passar um camelo pelo
fundo de uma agulha do que entrar um rico no reino de Deus” (M t 19.24ss), a
advertência contra acumular tesouros na terra (Mt 6.19ss), a parábola do rico
louco (Lc 12.16-21), as palavras sobre servir a Deus e às riquezas (M t 6.24, cf. Lc
16.13) e a parábola do homem rico e Lázaro (Lc 16.19-31,passini). O Evangelho
de Lucas, em especial, está cheio de pronunciamentos que, aparentemente, são
contra as riquezas e propriedades. Geralmente se recorre, em defesa dessa inter
pretação, à formulação das bem-aventuranças em Lucas e a fórmula recorrente
“ai de vós...”, por exemplo, “ai de vós, ricos!”, “ai de vós que estais fartos!”, etc. Em
conexão com isso, surge a questão sobre se Jesus havia proibido seus discípulos
de terem posses ou se, pelo menos, insistiu que cada um deles tivesse a mesma
quantidade de posses.
Não podemos discutir todas as questões que podem ser levantadas sobre esse
assunto aqui. Também não podemos entrar em detalhes de todas as passagens
citadas, mas gostaríamos de destacar os seguintes fatos.
1. Em nossa opinião, a ideia de que os mandamentos de Jesus, em geral, têm
uma esfera limitada de validade deve ser rejeitada. De acordo com esse conceito,
esses mandamentos, supostamente, aplicavam-se somente à vida dos discípulos de
Jesus, os quais haviam sido escolhidos por ele para pregar o evangelho, ou à vida
daqueles que desejavam entrar no reino dos céus por um caminho mais seguro
e mais perfeito (os mandamentos de Jesus, nesse caso, devem ser concebidos
somente como “conselho evangélico”). Outros procuram a esfera da validade dos
mandamentos de Jesus num setor particular da vida humana (o setor “pessoal”,
em oposição à esfera de um “ofício”) ou nas relações mútuas entre os fiéis na
comunhão.
Em nossa opinião, essa restrição da esfera de validade desses mandamentos
não tem qualquer apoio no evangelho, o qual, consistentemente, elimina todas
as limitações da “esfera” de validade da lei de Deus. O evangelho, enfaticamente,
238 A v in d a d o R e in o
nos adverte contra qualquer fuga “geográfica” da exigência da lei divina, tanto
quanto nos adverte contra a hipocrisia do “fermento dos fariseus”, pois não apenas
poucos, mas todos os homens devem passar pelo caminho apertado e através da
porta estreita. Na justiça do reino dos céus se inclui não só a responsabilidade
pessoal, como também a responsabilidade de um ofício (cf. Lc 3.10-14; 19.8).
A exigência do amor consistente (“perfeito”) dos mandamentos de Jesus (Mt
5.43-48) inclui não somente as relações dentro da igreja e entre as pessoas da
mesma mentalidade, mas vai muito além, incluindo até mesmo sofrer, por amor,
nas mãos dos inimigos, perseguidores, etc.
2. Por outro lado, é claro que interpretar as aplicações concretas da lei di
vina feitas por Jesus como uma “nova” lei é criar uma impressão incorreta. Essas
aplicações não são regras gerais a serem seguidas por todos em todas as circuns
tâncias. Tal concepção estaria em conflito aberto com o quadro geral da vida de
Jesus e de seus discípulos fornecido pelo evangelho58 e se constituiria, igualmente,
numa apresentação imprópria do caráter desses mandamentos. Muitos deles (e
precisamente aqueles que sempre levantam a questão de sua “exequibilidade”) são
exemplos nos quais princípios específicos da lei devem ser aplicados se essa lei for
levada realmente a sério. Isso se aplica especialmente àqueles mandamentos tão
debatidos de Mateus 5.21-48. Eles têm um valor ilustrativo. A validade deles,
obviamente, é a mesma da lei ou do princípio da lei do qual são a aplicação. O
mandamento do amor, ilustrado, por exemplo, pelo mandamento da “ação não
defensiva” do amor pelos inimigos, etc., em si mesmo não significa que sempre
devemos ceder a pressões e exigências. Mas há outros mandamentos e princípios
que foram incorporados à lei divina. Ao lado da proibição de matar está a exigência
feita às autoridades para que garantam a justiça, se necessário, pela espada. E, ao
lado da exigência pela verdade, a qual torna supérflua qualquer declaração feita
sob juramento de que a pessoa está realmente querendo dizer o que está dizendo
e que fará o que está prometendo, está o juramento sagrado originado não na
falta de fé na sociedade, mas na confissão por parte do que jura de que ele vive
na presença de Deus. Essa é a complexidade da lei de Deus revelada, a qual leva
em conta a complexidade da vida humana e o poder do pecado. A ideia de que,
em sua aplicação da lei, Jesus negou ou aniquilou essa complexidade multiforme
e reduziu a justiça, como um todo, a umas poucas regras radicais de vida, está,
obviamente, em conflito com o caráter explícito desses mandamentos. A adver
tência de Jesus não é dirigida contra essa complexidade e o conteúdo complicado
da vontade divina revelada, mas a qualquer apelo “hipócrita” a eles.
3. Em tudo isso, deve-se levar em conta a forma peculiar dos ditos de Jesus,
algo que faz uma exigência especial em nossa exegese. Suas palavras se carac
terizam por certa dose de paradoxia e partidarismo que lançam uma forte luz
em determinados aspectos da verdade sem mostrar possíveis exceções à regra ou
O EVANGELHO DO REINO - O s MANDAMENTOS 239
outros aspectos dessa mesma verdade. Esse fato pode ser claramente demonstrado
dentro do escopo dos mandamentos de Jesus. Em Mateus 5.16, ele exige que
nossas boas obras sejam “vistas” pelos homens. Em Mateus 6.1, ele adverte seus
discípulos contra exercer a sua justiça “diante dos homens, com o fim de serdes
vistos por eles”. Em Mateus 7.1, Jesus diz: “Não julgueis, para que não sejais
julgados”. Em Mateus 7.6, ele proíbe seus discípulos de darem “aos cães o que é
santo” e de lançarem “ante os porcos as suas pérolas”. Essa proibição requer uma
distinção e um julgamento muito aguçado da parte dos discípulos com relação aos
demais homens. E óbvio que não se trata, aqui, de um problema de antinomia,
mas de diferentes aspectos da verdade e do que Deus exige. Entretanto, essas
coisas todas não são mencionadas num único dito ou num único contexto. Aqui,
também, vale a regra: “quem tem ouvidos para ouvir, ouça”.
Pode ser, talvez, que essas considerações acabem servindo ao propósito de
uma exegese “hipócrita” dos mandamentos de Jesus. Todavia, sem elas e sem a
consciência do caráter peculiar da sua forma doutrinária, chegaremos apenas a
interpretações absurdas e unilaterais desses mandamentos. Nos mandamentos
radicais, tudo se concentra sempre em uma coisa, o caráter do amor (no sentido
explicado acima) expresso pela justiça requerida pela lei divina. Os obstáculos
arbitrários levantados com a intenção de restringir a profundidade e a extensão
da vontade divina são atingidos com fortes golpes. A palavra de Jesus é como
uma chama de fogo. Seu ensino da lei de Deus é inigualável. Não se pode fazer
qualquer objeção ou declaração de exceção. O que está sendo cumprido é a lei, a
revelação da vontade de Deus. Isso determina a forma fundamental da justiça. E à
essa luz devemos julgar e compreender a validade de qualquer aplicação da lei.
4. Esse ponto acima é, também, a base para uma correta compreensão dos
pronunciamentos de Jesus acerca da posse de propriedades, a renúncia aos direitos,
a ausência de preceitos positivos quanto à organização da vida social e política.
E também a base para a compreensão do que, em geral, é chamado de tendên
cia revolucionária de Jesus, ou mesmo do caráter “não cultural” da sua “ética”.
Nada disso, também, pode ser separado do Antigo Testamento, da lei divina,
aos quais Jesus recorre repetidas vezes. E, nisso, encontramos uma apreciação
muito positiva da justiça, das ordenanças que existem desde o início ou que foram
instituídas por causa do pecado. Jesus não anula e nem desvaloriza todas essas
coisas. Isso transparece também dos pronunciamentos incidentais no evangelho,
nos quais, por exemplo, Jesus fala do casamento como tendo sido instituído por
Deus, “desde o princípio”, como uma união indissolúvel (M t 19.6-9) ou quan
do ele nos ordena a dar “a César o que é de César” (M t 22.21). Portanto, cada
concepção legalista radical dos mandamentos do Sermão do Monte, tais quais
as dos menonitas, de várias seitas, de Tolstoi e de outros, que têm a tendência
fundamental de desvalorizar essas ordenanças ou a tendência para o ascetismo,
240 A VINDA DO REINO
está em conflito com a base da doutrina de Jesus, por mais que esse radicalismo
seja apresentado como sendo cristianismo “evangélico” ou como “o cristianismo
ensinado no Sermão do Monte”.
Portanto, a postura de Jesus em relação à vida natural é, fundamentalmente,
positiva, embasada na crença na criação e manutenção do mundo pelo mesmo
Deus que também é o Pai de todos os que entram no reino dos céus. Esse é o
motivo pelo qual lhes é não somente permitido, como também determinado,
que tomem parte na promoção e construção da vida natural enquanto durar a
atual dispensação. Eles devem aceitar os dons da vida natural das mãos de Deus
e o conceito de “bênção” é tão válido no Novo Testamento como era no Antigo.
Numa palavra, viver de acordo com essas “ordenanças”, à luz da vontade revelada
de Deus, pertence tanto à “justiça” como o que é feito fora da vida natural (na
igreja, na vida particular, etc.) Qualquer sacrifício feito por amor em benefício
dessa sociedade natural em obediência à vontade de Deus não pode ser menor
que o sacrifício do que é garantido nessa sociedade com respeito à propriedade,
aos direitos, aos benefícios, etc. Aqui, também, é válida a regra de que o amor,
isto é, a perfeita prontidão para servir, é o cumprimento da lei.
5. No entanto, continua sendo verdadeiro que os mandamentos de Jesus,
mais que os mandamentos do Antigo Testamento, enfatizam a natureza relativa
da vida terrena com todos os seus bens e o perigo de se colocar o coração neles.
Por outro lado, isso se deve ao motivo escatológico do reino. O prospecto
do tesouro nos céus obscurece o glamour da vida na terra. O Novo Testamento
proclama, de modo muito mais claro e enfático do que o Antigo Testamento,
a realidade do reino como a chegada iminente do fim de todas as coisas e liga
a aceitação da vida terrena e temporal a condições muito mais fortes. Não há
qualquer dualismo nisso, como se a expectativa da consumação destituísse, de
sua força e valor, a fé na criação e a tarefa a ser realizada pelos fiéis. M as isso
traz à luz a condição defeituosa da vida terrena, que só pode ser salva pela ação
renovadora de Deus. Só podemos encontrar a vida ao perdê-la para Deus e só
podemos mantê-la se a abandonarmos nesse sentido. A importante realidade do
reino vindouro e o abandono prévio da forma presente das coisas no mundo é
um dos fundamentos da apreciação de Jesus pela vida temporal. Apesar de to
das as avaliações positivas da atual dispensação, a advertência contra entesourar
aqui neste mundo e recusar-se a ser rico para com Deus está sempre presente
(Lc 12.21).
6 . Todavia, esse não é o ponto de vista predominante. Este último - mesmo
com respeito aos bens terrenos - não será encontrado na escatologia, mas no
motifreligioso, isto é, não na convicção de que haverá um fim para todas as rei
vindicações que se possa fazer sobre a terra, fim este que está próximo - mas na
crença de que Deus é Senhor da vida e que, portanto, uma vida que não procede
O EVANGELHO DO REINO - O s MANDAMENLOS 241
da sua graça e que não consiste em rendição a ele é uma vida perdida. Esse ponto
é estabelecido de maneira muito clara na parábola do homem rico e de Lázaro
(Lc 16.19-31). Não há menção nela de quaisquer pecados especiais ou impor
tantes do homem rico. Ainda assim, no inferno, ele levanta os olhos, estando em
tormento. Essa declaração é feita sem qualquer explicação complementar, como
algo inevitável e, por assim dizer, natural. Não se deveu à sua riqueza como tal,
mas ao fato de que toda a sua vida poderia ser descrita com essas palavras: “Havia
certo homem rico que se vestia de púrpura e de linho finíssimo e que, todos os
dias, se regalava esplendidamente”. Em contraste, o pobre não somente é descrito
em sua pobreza, mas também recebe o nome de Lázaro, isto é, “Ajuda de Deus”
ou “Dependente da graça de Deus” ou, ainda, “Aquele que não tem outro refu
gio senão Deus”. E nessa antítese integralmente religiosa que reside a diferença
entre o rico e Lázaro. A perdição do rico (cuja vida tinha sido buscada em seus
tesouros terrenos) e a salvação de Lázaro (cuja vida tinha como base a ajuda de
Deus) são reveladas à luz das relações além da tumba, onde semelhança e reali
dade são separadas para sempre. M as quando, em seu tormento, o rico protesta
contra o decreto de Deus (no pedido aparentemente humilde de que seus cinco
irmãos sejam avisados por Lázaro, que, para isso, deveria ser enviado de volta
de entre os mortos), Moisés e osprofetas lhe são citados como a autoridade única
e insuperável que pode levar uma pessoa à conversão. Isso significa que o que
determina o relacionamento correto com Deus e que se constitui no segredo de
uma vida de acordo com os mandamentos não ésomente e inicialmente a perspec
tiva da chegada iminente do fim de todas as coisas. M as o que determina essas
coisas é a fé em tudo o que Deus revelou e determinou desde o início. Apenas
a preocupação em amar a Deus e ao próximo, requerida pela lei, é que está na
base de todos os pronunciamentos aparentemente negativos de Jesus quanto à
riqueza, às propriedades, à reivindicação dos direitos pessoais, etc., apesar de isso
também mostrar que são exatamente essas riquezas que Jesus considera como
uma ameaça permanente a esse amor.
7. Finalmente, ao inquirir sobre o significado e a validade dessas aplica
ções concretas da lei, expressas por Jesus de várias maneiras em sua pregação,
descobriremos que o radicalismo de todos esses mandamentos nada mais é que
o radicalismo religioso do amor como sujeição e perfeita disposição para servir.
Portanto, qualquer interpretação dualista deve ser rejeitada e, ao mesmo tempo,
deve ser reconhecido que esse radicalismo não pode, de maneira alguma, ser
mitigado sem que se afete o grande motifteocêntrico da totalidade da pregação a
respeito do reino dos céus. Os mandamentos deJesus indicam o único nível no qual a
lei revelada de Deus, com suas exigências concretas, pode ser entendida e cumprida. Que
esse nível seja tão alto deve-se ao fato de que foi o nível da graça e da redenção
do reino dos céus que se revelou em Cristo.
242 A v in d a d o R e in o
Como vimos nos capítulos III e IV, uma das formas mais importantes nas
quais o reino aparece neste mundo é a pregação do evangelho. Seu conteúdo foi
discutido nos Capítulos V a VII. Agora somos confrontados com a questão sobre
se há algumas declarações feitas por Jesus que lançam mais luz nos resultados dessa
pregação e, consequentemente, na entrada no reino dos céus neste mundo.
Num sentido geral, este assunto já foi tratado (Capítulo V) com as parábolas
do semeador, do joio, da rede, da semente, do grão de mostarda e do fermento. Elas
tratam, de modo mais ou menos explícito, das ações e dos frutos da palavra e da
força vivificadora da pregação do evangelho. Apesar de conterem indicações muito
importantes concernentes à vinda do reino e à natureza de sua presença, ao padrão
que revela o progresso e aos efeitos dessa pregação, ele é esboçado nas parábolas
somente em termos gerais. A partir desse ponto, portanto, devemos continuar a
nossa investigação, a qual havia sido interrompida após o Capítulo IV.
Aqui somos confrontados com a questão do lugar da igreja na pregação de
Jesus, ou, para colocar de modo mais exato, com o sentido da declaração bem
conhecida de Jesus sobre a ekklesia, em Mateus 16.18ss e Mateus 18.15ss dentro
do escopo de sua pregação acerca do reino dos céus.
Durante muito tempo,1 por causa de uma interpretação particular da pre
gação de Jesus acerca do reino dos céus, muitos autores foram sumariamente
induzidos a negar a autenticidade desses pronunciamentos. Supunha-se que o
caráter geral do reino dos céus era incompatível com a ideia de ekklesia.
Assim, por exemplo, a teologia liberal afirmou que, como uma reunião visível
de crentes com certo nível de organização, a igreja estava totalmente fora do campo
de visão de Jesus. Supostamente, Jesus foi apenas o profeta da religião “interior”
244 A v in d a d o R e in o
dirigida a cada individuo em separado e que teve o seu início com ele próprio.
Somente depois de um processo de desenvolvimento histórico (após a morte de
Jesus) é que essa religião assumiu seu sentido sociológico, o qual se revelou nas
comunidades e organizações visíveis. E verdade que a pregação de Jesus, desde
o início, foi dirigida à comunidade, mas uma comunidade idealizada e invisível,
mxvíjenseits-Kirche (uma igreja na vida do além), como um objetivo final.2A igreja
como uma unidade visível e organizada era supostamente totalmente estranha ao
mundo do pensamento de Jesus e da sua pregação. Foi considerada como tendo
um caráter absolutamente secundário, um fenômeno humano-sociológico. A sua
origem deveria ser procurada nas igrejas locais ( ekklesiai) das primeiras décadas
após a morte de Jesus, que, mais tarde, se uniram. Esse processo de unificação
alcançou seu estágio final no século 3o d.C. Do mesmo modo, a liderança da
igreja supostamente surgiu não da autoridade ordenada por Cristo, mas, em parte,
dos dons carismáticos e, em parte, da transferência democrática de autoridade a
alguns membros individuais. Apenas mais tarde essa liderança carismática cedeu
espaço à ideia jurídica de um ofício.
Essas ideias foram combatidas até mesmo por críticos liberais dos Evange
lhos. Assim, por exemplo, a escola deTübingen (sob a liderança de F. C. Baur)
assumiu que havia uma antítese entre a igreja de Jerusalém e aquelas fundadas
por Paulo em países pagãos. A primeira era supostamente mais jurídica e au-
toritativa em sua organização por causa da presença dos apóstolos, enquanto as
últimas tinham uma base inteiramente carismática.3 Alinhada com essa antítese
está o pensamento de que, em Jerusalém, a igreja foi considerada como a conti
nuação de Israel, o Israel de direito, enquanto, na visão de Paulo, a ideia de um
“corpo espiritual de Cristo” (sooma tou Christou) era considerada o fundamento
da igreja. Associada a essa concepção sobre a igreja de Jerusalém, portanto,
deu-se importância outra vez ao número doze (os doze discípulos de Jesus) com
relação à fundação da igreja. M as nada disso diminui o fato de que os eruditos
mais importantes, no geral, concordaram que Jesus não tinha nada a ver com a
igreja e que não poderia haver dúvida de que o pronunciamento sobre a ekklesia
em Mateus 16.17-19 era inautêntico.
A interpretação escatológica do evangelho tem contribuído ainda mais
para a visão liberal-espiritualista do reino dos céus na tentativa de desacreditar
a autenticidade da declaração de Jesus a respeito da igreja. De acordo com essa
interpretação, está totalmente fora de questão que Jesus havia levado em consi
deração um desenvolvimento terreno no qual haveria espaço para a vida de uma
igreja e para sua organização.
E verdade que o pai da interpretação escatológica consistente, Alberto
Schweitzer, defendeu a autenticidade da declaração de Jesus em Mateus 16.18
e 19, mas, em sua opinião, ela nada tem a ver com a igreja empírica. A igreja
A VINDA DO REINO E A IGREJA 245
aqui mencionada é a igreja preexistente que será revelada no fim dos tempos
e que irá se fundir com o reino de Deus.4 Aqueles, entretanto, que pensam
que a referência em Mateus 16 é, sem dúvida, à igreja “empírica” e que, apesar
disso, aceitam a interpretação escatológica do reino, terão de combater a au
tenticidade de Mateus 16.18-19. Assim, Bultmann escreve: “Não pode haver
dúvida de que Jesus proclamou a chegada iminente do governo de Deus... sua
proclamação era uma pregação escatológica, sua própria aparência e atividade
eram um fenômeno escatológico”. E ele continua: Como poderia ele [Jesus]
ter em mente o futuro surgimento de uma comunidade organizada de adeptos
e, assim, ter instituído Pedro como o portador do ofício doutrinai e disciplinar!
... Ora, a vinda do governo de Deus se anuncia mediante forças que já estavam
anteriormente atuando. E agora haverá primeiramente um período em que
“ligar” e “desligar” é uma medida necessária para a manutenção da igreja?...
M as basta de perguntas como essa, que, na verdade, nem precisam ser feitas
desde a época de J. Weiss!5
Em vez de se designar um espaço para a igreja na pregação de Jesus a
respeito do reino de Deus, como encontramos em Mateus 16.17-19, pensa-se,
ao contrário, que a igreja é a conseqüência do não cumprimento d a parousia do
Filho do Homem anunciada por Jesus. Supõe-se, então, que a igreja deve sua
origem ao fato de que aqueles que estavam esperando pela vinda do reino em
vão não tiveram outra alternativa na continuação da História a não ser, como
discípulos de Jesus, formar uma organização. Essa é a grande discrepância entre
a pregação de Jesus e a realidade da História, ou seja, que Jesus pregou o reino,
mas o que veio foi... a igreja.6
De acordo com os críticos, esse argumento escatológico contra a autenticidade
de Mateus 16.17-19 é confirmado pelo fato de que, em nenhum outro lugar na
pregação de Jesus, à exceção de Mateus 16 e 18, há uma declaração sobre a “igreja”
ou sobre a “igreja dele”. E isso não é apenas um fato estatístico - supõe-se que
a entidade indicada por essa palavra, em resumo, toda a ideia de uma ekklesia,
é algo inteiramente estranho à tradição sinótica. “Numa palavra, a linguagem
e a concepção eclesiástica são estranhas às palavras originais do Senhor.”7 Esse
argumento não é defendido somente pela perspectiva exclusivamente escatológica.
Pois até mesmo Kümmel, por exemplo - que reconhece que Jesus viu em sua
própria pessoa e nas suas próprias palavras a presença do reino - é da opinião
que as fontes não fornecem base suficiente para a ideia de que Jesus havia pen
sando num círculo fechado de discípulos. Essas fontes também não sancionam o
pensamento de que Jesus teria querido formar uma igreja comunitária no tempo
entre sua morte e sua parousia. Supõe-se que, no evangelho, Jesus falou não de
uma nova igreja, mas somente de uma comunidade de homens que se reuniam
em torno dele como o Messias que haveria de vir.8
246 A v in d a d o R e in o
dentro do judaísmo.19 Em Mateus 16, isso ainda é visto como futuro {oikodomeso).
Por ocasião da última ceia, essa ekklesia foi realmente fundada.20 Quanto à questão
sobre se Jesus contemplava um futuro no qual haveria espaço para uma igreja
organizada, Kattenbusch é da opinião de que as coisas que sabemos acerca das
expectativas de Jesus quanto ao futuro não fornecem base alguma para respon
dermos negativamente a essa pergunta.21
A s ideias de Kattenbusch encontraram adeptos num amplo círculo de
estudiosos e têm sido elaboradas e suplementadas de muitas maneiras ainda por
outros estudiosos.22 Em tudo isso, o tema cristológico retorna repetidamente à
superfície. Ao Messias pertence um povo. A igreja não é puramente um fenômeno
sociológico originado na vontade do homem, mas a revelação necessária do povo
messiânico. Muitos autores seguem as pegadas de Kattenbusch, que pensava que
podia derivar essa ideia sobre o povo do Messias especialmente de Daniel 7. Mas,
ao lado disso, busca-se um fundamento mais amplo para a concepção do povo
de Deus. De acordo com Gloege, o conceito de ekklesia nos Evangelhos deve
ser considerado como a continuação do conceito do Antigo Testamento de uma
igreja “remanescente” do futuro.23 Ele discute de maneira elaborada o conceito
veterotestamentário de um remanescente (shar e shêrith, cf. Is 10.22; 14.22, etc.).
Ele é seguido por outros estudiosos na identificação que fez desse “remanescente”
de Israel com a “igreja” do Novo Testamento.24 Outros, como Oepke, rejeitam
a noção de que Jesus formou seu conceito de ekklesia especialmente a partir da
ideia de um “remanescente” ou de Daniel 7. A ideia de um povo de Deus é uma
noção geral e central no Antigo Testamento. Essa ideia central do povo de Deus
é o fundamento para a ekklesia do Novo Testamento, conforme Oepke procura
demonstrar em sua pesquisa nos Evangelhos.25
Ao lado dessas bases cristológicas e histórico-redentoras para a noção
de uma ekklesia na pregação de Jesus, todos os tipos de argumentos têm sido
apresentados a partir dos Evangelhos para provar que o conceito da ekklesia em
Mateus 16 certamente não é um conceito isolado. O argumento conhecido como
estatístico,26 por exemplo, é apoiado pela referência à ilustração de um rebanho
que é usada repetidas vezes por Jesus (M t 26.31; Jo 10.16; cf. IC o 9.7). Jesus
chama seus discípulos de seu “pequenino rebanho” (Lc 12.32), ou, no Evangelho
de João, suas ovelhas e seus cordeiros (Jo 21.15-16), exatamente como os chama
de minha igreja.27 Uma menção especial é sempre feita à formação do grupo
dos doze discípulos, os representantes do verdadeiro Israel, o núcleo ou embrião
da ekklesia.28 E, finalmente, com referência a Mateus 16.18, as palavras de K.
L. Schmídt em particular merecem ser mencionadas. Ele segue Kattenbusch e
reuniu material lexicográfico detalhado e amplo em apoio à sua concepção. De
acordo com Schmidt, Jesus usou a palavra aramaica kenischta e não kahalou tehala.
Estes últimos termos são usados no Antigo Testamento para se referir ao povo
A VINDA DO REINO E A IGREIA 249
de Deus como um todo. Kenischta também pode ser usado nesse sentido. Além
disso, no entanto, kenischta pode indicar a assembleia de uma sinagoga que foi
especificada de uma maneira ou de outra. E provável que Jesus quisesse especi
ficar seus adeptos como uma assembleia-sinagoga especial dentro do judaísmo, a
qual, entretanto, vivia na certeza de que representava o povo verdadeiro de Deus
como tal.29 Em resumo, podemos concordar com o autor católico-romano Braun
(que segue Linton). Ele fala de um novo consenso entre os autores protestantes.
O reino não é somente futuro, mas presente no Messias. Portanto, a ekklesia
não é apenas uma realidade escatológica, mas também uma realidade empírica
dada em Cristo. Não é um fenômeno carismático. O início de sua organização
se encontra na vocação dos discípulos feita por Cristo. A fundação da igreja por
Cristo, mencionada em Mateus 16, deve ser reconhecida como genuína no pleno
sentido da palavra, em oposição à antiga concepção liberal e as mais recentes
concepções escatológicas.30
sido corretamente enfatizado. Sua elaboração, todavia, nem sempre - ou, pelo
menos, não imediatamente - toca as notas corretas e, em nossa opinião, a cla
reza requerida para a origem da ideia da ekklesia nos Evangelhos ainda não foi
alcançada em toda a extensão.
Isso se aplica especialmente à perspectiva de Kattenbusch, que coloca tanto
a ideia quanto a origem da ekklesia e do Filho do Homem em Daniel 7. Apesar
de, desse modo, a ekklesia ser reconhecida outra vez como parte integrante da
autorrevelação messiânica de Jesus e, portanto, da sua pregação acerca do reino,
em nossa opinião a ligação procurada nesse caso é muito incerta e muito forçada
para explicar de maneira convincente a ideia de ekklesia no evangelho. Já dentro
do escopo de Daniel 7, pode-se questionar seriamente se o Filho do Homem é
uma representação simbólica dos “santos do Altíssimo”.44 E ainda mais decisivo
para nós é o fato de que, em nenhum lugar no evangelho, Jesus aparenta cogitar esse
entendimento coletivo a respeito do Filho do Homem. Ele aplica esse título exclusiva
mente a si mesmo, isto é, à sua própria pessoa individual.45 Apesar de poder haver
uma estreita ligação entre o Filho do Homem e “o povo dos santos do Altíssimo”,
de acordo com Daniel 7,46 e de esse capítulo poder conter o conceito do povo
do Messias, não é possível de modo algum identificar ambas as coisas, seja num
sentido absoluto ou parcial. E como esse povo dos “santos do Altíssimo” nunca é
mencionado como tal no evangelho, entendemos que não estamos autorizados a
procurar especialmente em Daniel 747 o ponto de partida para a ideia da ekklesia
na pregação de Jesus acerca do reino.
O mesmo se aplica à perspectiva que Gloege e outros têm defendido, a saber,
que Jesus encontrou a base para sua ideia de ekklesia especificamente na profecia
do “remanescente” do povo de Israel (os quais, de acordo com Is 10.22ss., seriam
os únicos a se salvarem), pois, apesar de sua exatidão factual, essa interpretação
especial não tem fundamento no evangelho.48 Exatamente porque se concentra
nesse “remanescente” que nunca é mencionado no evangelho, essa concepção não
convence aqueles que são da opinião que não há, na pregação de Jesus, qualquer
espaço para a ideia de uma ekklesia.49
Concordamos com Oepke de que essas explicações especiais sobre a origem
da noção da ekklesia são realmente supérfluas por não estarem suficientemente
fundamentadas no evangelho. Isso porque a noção de povo de Deus tem uma
base muito mais geral na pregação messiânica de Jesus sobre a basileia do que
naquelas poucas passagens do Antigo Testamento e ocupa um lugar muito mais
central nela do que seria plausível obter mediante tais conexões especiais.
Em primeiro lugar, há o ponto de vista messiânico apriori. O conceito de
um Messias sem um povo é impensável. Isso é admitido por todos, inclusive
pela escola escatológica radical.50 O mesmo se aplica ao fato de que aqueles que
pertencem ao reino de Deus formam uma comunidade, uma comunidade do
254 A VINDA DO REINO
plural, pois Jesus e seus discípulos representam uma causa comunal no mundo).
Nesse caso, deve-se fazer referência às palavras de Jesus “vem após mim” (Mt
10.38; Lc 14.27 passim ), as quais se aplicam não apenas ao pequeno círculo de
discípulos que viviam com Jesus, mas também, num sentido metafórico, a todos
os que ouvem a palavra.54
E o que se aplica à própria atividade de Jesus como Messias, isto é, que ele
procura fruto e ajunta pessoas, aplica-se também, parcialmente, à obra dos discí
pulos.53Já vimos56 que o dito acerca dos trabalhadores enviados ao seu campo (Mt
9.37-38) não se refere ao futuro ajuntamento escatológico daqueles que creem
nas palavras de Jesus, mas ao presente. Esses trabalhadores, portanto, são os que
colaboram com Jesus em sua obra e dão continuidade à mesma. Alguns escritores
consideram absurdo que, dentro da visão do reino vindouro, Pedro teria recebido a
missão de organizar uma igreja e exercer o poder doutrinai e disciplinar. Mas não
deve ser esquecido - independentemente da questão secundária da organização
- que, desde o início, Jesus havia prometido dar a seus discípulos alguns poderes
especiais com respeito ganhar e ajuntar homens para ele (algo que compreende
muito mais do que simplesmente anunciar o reino). Assim, por exemplo, por
ocasião da vocação dos discípulos, ele diz, “eu vos farei pescadores de homens”
(Mc 1.17; M t 4.19; cf. Lc 5.10). Do mesmo modo, por exemplo, a alimentação
miraculosa da multidão (Mc 6.36-45) e a ordem de Jesus aos discípulos, “dai-
lhes vós mesmos de comer” (Mc 6.36ss; 8.1-10) têm claramente um sentido
simbólico referente à atividade futura dos discípulos.57 No futuro, os discípulos
disporão dos dons messiânicos de Jesus e os distribuirão em favor dele. Além
disso, os ditos que mencionam os futuros sofrimentos dos discípulos (M t 10.16;
17-25; Lc 12.1 lss; M c 13.9-13ss) e apontam para o futuro abismo entre eles e
o judaísmo oficial podem mostrar a qualquer pessoa que não queira explicá-los
simplesmente como vaticinia ex eventu que Jesus continua a sua obra messiânica
em e por meio de seus discípulos e é nesse sentido que ele está lançando a semente
e se preparando para a sua colheita (M t 13; M c Apassim), isto é, ele não apenas
anuncia o reino, mas já está ajuntando na terra sua igreja messiânica escatoló
gica de maneira antecipada. Diante do quadro completo das atividades de Jesus
descritas nos Evangelhos, é impossível entender como poderíamos admitir que
Jesus fundasse uma comunidade de discípulos a quem prometeu uma participação
na herança do reino sem considerar isso como o início da formação da igreja.38
Sem dúvida, a revelação dessa comunidade durante o tempo da vida terrena de
Cristo estava em harmonia com sua autorrevelação; assim, não teve o caráter
explícito de uma igreja messiânica organizada. M as aqueles que aceitam as suas
palavras formam essencialmente nada mais do que seu povo, o povo do Messias.
E é totalmente em harmonia com esse pensamento fundamental que Jesus, com
base na confissão pública dele como o Messias por seus discípulos e o anúncio
256 A v in d a d o R e in o
da sua própria morte e ressurreição, fala logo em seguida, num sentido formal,
da sua ekklesia. Quando, no presente, Jesus é proclamado como o Messias pelos
discípulos, sua igreja também se manifestará como tal. Uma está estreitamente
ligada com o outro e procede naturalmente dele.
Além dessa perspectiva messiânica e do que já se torna visível com a vinda
de Jesus, ou seja, o ajuntamento da igreja messiânica, é necessário apontar, em
segundo lugar, para a rejeição do Israel incrédulo como o povo da aliança e a
concomitantç.formação do novo povo de Deus.
Já observamos que a relação especial entre Deus e Israel como seu povo é
um dos fundamentos do evangelho. Por esse motivo, Jesus dirige suas bem-aven-
turanças aos pobres, pois eles representam o verdadeiro povo de Deus, e também
por esse motivo sua misericórdia messiânica se estende às ovelhas perdidas da
casa de Israel. Ao mesmo tempo, observamos uma transição nessa ideia básica,
no sentido de que, ao lado de Israel e em seu lugar, aqueles que acreditam no
evangelho são considerados como o rebanho do Senhor, a semente de Abraão e
os filhos do reino.59
Esse resultado é da maior importância para a questão que está sendo discu
tida, pois essa rejeição de Israel e essa nova formação do povo de Deus não são
simplesmente alguma coisa do futuro escatológico, mas algo que já se iniciou
com a vinda de Jesus.
Com relação ao primeiro ponto - a rejeição de Israel - mencionamos
especialmente a parábola dos lavradores ímpios (M t 21.43-46). O começo da
parábola corre em paralelo próximo a Isaías 5.2 e, em seguida, se centraliza no
pensamento de que Israel é a vinha especial do Senhor. A elaboração desse tema
revela o julgamento no qual Israel incorreu por ter rejeitado o Cristo (o “filho”
do proprietário da vinha). É digno de nota que todos os três evangelistas citam,
nesse contexto, o Salmo 118, “a pedra que os construtores rejeitaram, essa veio a
ser a principal pedra, angular; isto procede do Senhor”. A menção feita à “cons
trução” significa o cuidado especial para com Israel como o povo do Senhor.60
Esse trabalho de construção é feito pelos líderes de Israel (os “construtores”) sob
o comando e supervisão de Deus. Os construtores, todavia, rejeitam a pedra que
havia sido destinada por Deus como a coroa da obra.61 Outra vez, isso significa
a rejeição de Jesus como o Messias. Deus, no entanto, o elevara acima de tudo
e de todos. Na edificação de Israel como seu povo, sua obra maravilhosa será
cumprida no Messias. M as isso não poderá ocorrer sem que o Israel incrédulo
e seus líderes sejam rejeitados como o povo de Deus. Em Mateus, a citação do
Salmo 118 é seguida pelas palavras “Portanto, vos digo que o reino de Deus vos
será tirado e será entregue a um povo que lhe produza os respectivos frutos” (v.
43). Esse “povo” não significa uma “nação” em particular, mas o novo povo de
Deus a quem, ao preterir o antigo Israel, Deus dará a salvação do reino.62 Nesse
A VINDA DO REINO E A IGREIA 257
Uma vez que ficou claro que a ideia geral representada pelo conceito de
ekklesia ocupa uma posição orgânica e integrante na estrutura da pregação
de Jesus acerca do reino dos céus, é possível, agora, discutir o conteúdo dos
pronunciamentos específicos sobre a ekklesia (em M t 16 e 18). A passagem
de Mateus 16.17-19 é a mais específica. Portanto, vamos tomá-la como nosso
ponto de partida.
A primeira questão é o que Jesus quer dizer com “tu és Pedro, e sobre essa
pedra edificarei a minha igreja {ekklesia)”. Essa declaração sugere que se trata do
povo de Deus (i.e., o povo do Messias) no sentido geral da palavra ou devemos
pensar numa forma especial desse povo, como supõem, por exemplo, Kattenbusch,
Schmidt, e outros que falam de uma “sinagoga-Messias-Jesus”?68 Com essa
expressão, eles querem dizer uma organização separada dos seguidores de Jesus
dentro da totalidade da comunidade judaica.
Se colocado desse modo, nossa escolha não é difícil - pelo menos no que diz
respeito a Mateus 16.18. Pois, em primeiro lugar, é questionável se tais “sinagogas
separadas” (isto é, distintas daquelas oficiais) existiram de fato, de maneira que o
uso lingüístico, ao qual Schmidt recorre, certamente ainda não foi estabelecido.69
E, além disso, a base factual para essa especialização70 da palavra ekklesia = kenischta
= “Sondersynagoge” (sinagoga especial) não foi ainda descoberta.
E verdade que tem sido apresentado o argumento de que a “edificação” da
igreja não é uma metáfora óbvia a não ser que ekklesia seja entendida como “povo
de Deus” e que essa objeção seria eliminada se concebêssemos a ekklesia como
kenischta, já que esta última palavra também pode indicar o edifício que abriga a
sinagoga.71 M as as seguintes objeções devem ser feitas a essa ideia:
260 A v in d a d o R e in o
somente a Pedro e não a seus sucessores.100 Outros estendem esses poderes dados
a Pedro também aos demais apóstolos, mas enfatizam seu caráter absolutamente
peculiar e einmalige (único).101
Em nossa discussão acima, apontamos para o lugar proeminente que Pedro
ocupou entre os discípulos (e, mais tarde, entre os apóstolos), de modo que po
demos falar dele como primus interpares (o primeiro entre iguais) (cf. M t 10.2).
Ainda assim, se o pronunciamento de Mateus 16.18 não for isolado delibera
damente, é impossível manter, mesmo por um momento, que ele unicamente ou
preeminentemente pode ser chamado de a pedra ou do fundamento da igreja; nem
é possível se provar que os poderes das chaves do reino dos céus foram atribuídos
exclusivamente a Pedro. Nesse caso, uma ideia dupla está em jogo, ou seja, a do
fundamento e a da autoridade.
Em ambos os casos, Pedro terá de ser encarado como o representante dos
outros discípulos. Com respeito à questão do fundamento da pedra, é suficiente
mencionarmos passagens como Efésios 2.20 e Apocalipse 21.14, nas quais os
apóstolos, juntos, são chamados de fundamento da igreja. Embora essas passagens
não sejam uma exegese direta de Mateus 16.18, elas mostram que, no que diz
respeito a esse assunto, não havia qualquer dúvida na pregação apostólica. Os
demais apóstolos compartilharam sua importância como fundamento da igreja
(cf. também G1 2.9). A esse respeito, é dificilmente possível falar de primado.
De fato, é claro que Pedro e outros apóstolos receberam uma posição única e não
transmissível com respeito à sua importância como fundamento. Isso, natural
mente, implica a caracterização da pedra (fundação). Esse é o motivo pelo qual a
questão da successio apostolica pode ser descartada. A posição de um fundamento
é, pela natureza do caso, intransmissível.
As coisas são diferentes, no entanto, quando se trata da autoridade. Aqui,
também, aplica-se a declaração de que todos os apóstolos participavam dela
do mesmo modo que Pedro, pois, independentemente do fato de que essa au
toridade é realmente aplicada à pregação apostólica como um todo (cf., p. ex.,
G 1 1.8-9; IC o 16.22), tanto João 20.21-23 quanto Mateus 18.18 sugerem que
essa autoridade não era pretendida apenas para Pedro. Mateus 18.18, em es
pecial, é importante, pois repete no plural praticamente as mesmas palavras de
autoridade dadas a Pedro.102
M as devemos ir um passo além. Em contraposição ao que tem sido dito
sobre a “pedra”, os poderes são concedidos não somente aos apóstolos, mas a
toda a igreja. O ofício dos doze apóstolos chamados por Jesus pode ter tido uma
natureza peculiar e “única”, mas, com base em Mateus 18.18, será difícil manter
que o poder de ligar e desligar era exclusivamente deles.103 Essa declaração per
manece verdadeira mesmo que todo o evangelho mostre que eles aceitaram sua
missão como apóstolos não apenas em virtude de algum dom carismático, mas
A VINDA DO REINO E A IGREJA 265
primariamente em decorrência do mandato que lhes foi dado por Cristo. Por
tanto, para refutar104 a sucessão apostólica ensinada pela Igreja Católica Romana,
torna-se necessário, em especial, enfatizar os aspectos positivos da autoridade
mencionados em Mateus 16.18-19. Isso significa dizer que não se pode falar
de uma hierarquia nesse caso, pois a tarefa de ligar e desligar foi, desde o início,
confiada à igreja e não a Pedro ou a outro apóstolo qualquer.
Para estabelecer essa declaração será necessário estudar Mateus 18 um pouco
mais detidamente. Esse é um dos grandes “sermões” ligados do Evangelho de
Mateus. O tema específico de Mateus 18 é a relação mútua entre os discípulos,
mas, vez após outra, transparece que a fala não se dirige somente aos doze discí
pulos (apesar de a anotação histórica no v. 1 “naquela hora, aproximaram-se de
Jesus os discípulos...”, possa sugerir isso à primeira vista).105 Esse capítulo tem a
ver com o que, no versículo 17, é chamado de “a igreja”. Não é injusto, portanto,
que o que se segue tenha sido chamado de norma para “a igreja”.106
Essa é uma implicação já do versículo 6, em que Jesus fala de “... um destes
pequeninos que creem em mim”. Esses pequeninos não são mais as criancinhas
mencionadas no versículo 5, mas os crentes simples, que, em sua atitude espiritual,
assemelham-se a essas crianças. O mesmo se aplica à declaração “não desprezeis
a qualquer destes pequeninos”, no versículo 10, e a “procurar a que se extraviou”,
nos versículos 12-14. Como transparece do versículo 14 (“assim, pois, não é da
vontade de vosso Pai celeste que pereça um só destes pequeninos”), a parábola
do pastor e seu rebanho, aqui, não é primariamente aplicável àquelas ovelhas
perdidas de entre os israelitas, que correm o risco de se perder, como, de fato,
ocorre em Lucas 15. A referência é ao cuidado pastoral que os discípulos terão
que dedicar aos “pequeninos” de entre os crentes. É verdade que alguns autores
pensam especialmente nos doze como pastores do rebanho,107 mas, diante do que
se segue - as instruções a serem seguidas no caso de um irmão que pecar - parece
ser necessário aplicar essa série inteira de ditos aos crentes em geral, isto é, à
igreja, pois o conteúdo do versículo 15 e seguintes trata de uma maneira muito
geral das relações mútuas entre os crentes, como fica evidente pela expressão “teu
irmão”.108 Portanto, no versículo 17, a igreja é mencionada como a entidade que
deve intervir se a admoestação pessoal e particular não surtir efeito. Disso tudo
fica claro que Mateus 18, repetidas vezes, trata da vida da igreja.
E por isso que, em nossa opinião, não pode haver qualquer dúvida de que opro
nunciamento sobre a autoridade, no versiculo 19, deve ser entendido como uma referência
ao que a igreja recebeu, como tal, de Cristo e como o que é devido à igreja como tal.
De fato, a transição dos doze mencionados no versículo 1, para os crentes,
e, finalmente, para a igreja, é bem fluente. Isso seria inconcebível se a autoridade
de Mateus 16.18 tivesse um caráter exclusivo, quer exclusivamente de Pedro,
ou também dos outros apóstolos, não importa quão únicos e não irrepetíveis
266 A v in d a d o R e in o
Com isso, o ponto de gravidade não é mudado do Espírito para a letra e da au
toridade divina para a responsabilidade humana. Cristo edificará sua igreja. Essa
é a promessa incondicional. M as ele fará isso por meio daqueles que ele conhece
como “seus” (M t 7.23) em sua disposição para ouvir sua Palavra, realizar a sua
vontade e edificar sobre o fundamento lançado pelos apóstolos.
Finalmente, podemos perguntar: Até que ponto a organização da igreja se
torna visível no evangelho? Em resposta, devemos observar que uma organiza
ção como tal, no sentido mais específico da palavra, dificilmente se percebe (se
estivermos considerando a igreja equipada com seus ofícios e funções). Em nossa
mente, Mateus 16 se refere à igreja como ekklesia no sentido geral e ideal da
palavra. Essa passagem é a carta de direitos da igreja, não seu plano elaborado.
Isso não altera o fato de que o conceito geral de ekklesia implica a noção
de unidade que se manifesta externamente. A ekklesia não é meramente uma
entidade ideal e invisível, mas também algo que se manifesta concreta e visivel
mente. Isso é evidente pelo fato de que os apóstolos não são somente ordenados
a pregar o evangelho - eles também recebem o poder das chaves. Isso lhes dá
autoridade para traçar a linha de demarcação, já aqui na terra, entre aqueles que
entrarão no reino e os que não entrarão. Essa autoridade implica a visibilidade
da igreja.
Em Mateus 18, tudo isso é ainda mais claro, porque, aí, é mencionada a
igreja local, à qual se pode recorrer e a qual, num determinado caso, pode se ex
pressar. De acordo com Klostermann, que segue as pisadas de Wellhausen, essa
passagem se refere à igreja de Jerusalém.113 Essa declaração, portanto, suposta
mente se originou na igreja de Jerusalém posterior. M as é difícil perceber como
essa opinião pode ser provada. A palavra “igreja” ocorre, aqui, sem qualquer outra
indicação, apesar de pressupor, aparentemente, um ambiente judaico (“gentio e
publicano”). M as tal ambiente é o pressuposto da pregação de Jesus como um
todo, mesmo quando ele fala do futuro.114 Além disso, a menção dos “dois ou
três”, com certeza, não pode se referir primariamente à igreja de Jerusalém. Temos
que entender aqui a igreja como ela haveria de formar-se após a morte de Jesus,
onde quer que o evangelho fosse pregado.
Apesar de, aqui, nessa passagem, também não existir qualquer menção
de uma organização posterior da igreja, é claro que, em Mateus 18, a igreja é
mencionada de um modo mais definido do que em Mateus 16. Essa é a razão
pela qual vários exegetas que estão preparados para aceitar a autenticidade dos
pronunciamentos sobre a ekklesia, em Mateus 16, acham que devem considerar
essa passagem de Mateus 18 como um acréscimo posterior (como, p. ex., Kat
tenbusch). Bem, é fato que, em Mateus 18, Jesus, aqui e acolá, fala de si mesmo
de uma maneira que não ocorre em nenhum outro lugar. Por exemplo, a frase
“aqueles que creem em mim” não ocorre em qualquer outro lugar nos sinóticos a
268 A v in d a d o R e in o
não ser aqui e na passagem paralela de Marcos 9.42. A frase “ali estou no meio
deles” (M t 18.20) é também muito fora do comum. Nesse caso, Jesus fala como
o Senhor exaltado. Essas palavras nos lembram o sermão de despedida de Jesus
no Evangelho de João. Além disso, o versículo 18, sem qualquer introdução, fala
da vida da igreja local.
Na minha opinião, deve-se considerar a possibilidade de que, numa certa
medida, nesse caso, bem como em outros, o evangelista influenciou a formulação
de diversas palavras de Jesus. Já que ele falou para a igreja e a partir dela, suas
palavras sobre “a” igreja, em Mateus 18, não precisam de explicações adicionais.
Além disso, as palavras “ali estou no meio deles” não parecem predizer a exaltação
de Jesus, mas sim pressupô-la. Tal pressuposição também pode ter sido formulada
pelo ponto de vista da igreja posterior.*
Por outro lado, é possível, em primeiro lugar, que Jesus tenha dito muito
mais acerca da formação da igreja do que o que nos chegou registrado nos
Evangelhos, pois é desnecessário dizer que, no Evangelho de Mateus, também,
a tradição das palavras de Jesus é preservada apenas em parte. E, em segundo
lugar, é claro que Mateus 18.19-20 fala somente dos inícios da formação da
igreja. A frase “dois ou três reunidos em meu nome” aponta para uma situação
em que a igreja ainda não havia recebido uma organização permanente e nem um
“endereço”, mas em que se manifestava somente na fé e no ajuntamento de uns
poucos indivíduos pessoalmente. Tudo isso é aplicável tanto ao tempo em que a
igreja ainda estava para ser formada quanto ao tempo em que a sua organização
havia alcançado um estágio de estabelecimento provisório (o tempo em que o
evangelista escreveu).
M as a coisa mais importante não é a forma em que essas palavras nos che
garam, é se Jesus, de fato, falou acerca da igreja e de sua formação a acontecer
no tempo após a sua morte. E, acerca disso, não pode haver qualquer dúvida.
A ideia de ekklesia ocupa um lugar orgânico em suas palavras e está longe de
ser um corpus alienum no evangelho do reino dos céus. E isso não só porque se
trata de algo que pertence ao futuro escatológico, mas porque também é uma
realidade histórica. Essa realidade foi dada, a princípio, na vinda de Jesus e na sua
autorrevelação como o Messias. E quanto à perspectiva referente ao tempo após
o sofrimento e a morte de Jesus, já vimos que o significado redentor da morte
e da ressurreição de Jesus não traz o fim, mas, ao contrário, a continuidade do
futuro terreno. O ajuntamento da igreja não terminou com a morte de Jesus - de
muitas maneiras, foi sua morte que realmente o tornou possível, em primeiro
lugar. Veremos a confirmação de tudo isso em nosso último capítulo, que trata
das questões relacionadas com as declarações de Jesus quanto ao futuro.
A VINDA DO REINO E A IGREJA 269
O que foi dito antes prepara o caminho para uma perspectiva resumida da
queles pronunciamentos encontrados no evangelho pelos quais Jesus encarregou
seus discípulos da pregação do evangelho do reino. E óbvio que esse encargo estava
estreitamente ligado com a ideia da ekklesia. A edificação da igreja, mencionada
em Mateus 16, vai de mãos dadas com a pregação do evangelho e seus frutos. Já
foi demonstrado que Jesus tinha em mente, especialmente, as atividades futuras
de seus discípulos quando discutiu o significado e os poderes conferidos a Pedro.
Aqui, nossa atenção se volta para aquelas passagens que mencionam claramente
a comissão que Jesus deu aos discípulos e a tarefa deles de pregar o evangelho.
A primeira passagem nesse contexto é a que trata de um incidente durante
a estada de Jesus na Galileia. E o envio dos discípulos mencionado em Mateus
10, Marcos 6 e Lucas 9, juntamente com o envio dos setenta (e dois),115 men
cionado em Lucas 10.
O que primeiro nos chama a atenção é a noção de “enviar” (apostellein) (M t
10.5; M c 6.7; cf. M c 3.14; Lc 9.2; 10.1) e “apóstolo” (apostolos) (M t 10.2; Mc
6.30; Lc 6.13; 9.10; cf. também M t 10.16; Lc 10.3). Pesquisas recentes baseadas
especialmente no conhecimento que temos do judaísmo posterior elucidaram em
todos os sentidos esse terminus technicus. A palavra (especialmente o substantivo
apostolos) deve ser abordada primeiramente a partir da esfera jurídica. Ela indica
um embaixador com uma missão especial e que age em nome de uma pessoa,
representando-a, e que recebeu plena autoridade e poderes para esse propósi
to.116 Consequentemente, lemos que, durante o seu ministério na Galileia, Jesus
deu autoridade ( exousia, M t 10.1; Lc 9.1) a seus doze discípulos (e mais tarde
aos setenta [e dois]) para expelir demônios, curar doenças e proclamar que o
reino dos céus estava próximo (M t 10.2,7,8 e paral.). Em plena harmonia com
o caráter de sua missão, eles relatam a Jesus o que haviam feito ao retornar (Mc
6.30, apaggello, cf. Lc 9.10). A essa altura ainda não havia a noção de um ofício
permanente. O apostolado deles - bem como o apostolado dos setenta (e dois)
em Lucas 10 - ainda tem uma natureza temporária. Disso se conclui que as ins
truções dadas por Jesus (bem como as que mais tarde foram dadas aos setenta [e
dois]) referem-se a esse encargo em particular e não precisam necessariamente
ter uma validade permanente e universal. Isso vale para o início da jornada de
les, em que não deveriam levar dinheiro nem comida (como fica claro de uma
comparação com Lc 22.35ss). Também não é permissível fazer aplicações com
respeito à pregação do evangelho a ser realizada mais tarde a partir da proibição
feita para que eles não fossem pelo caminho dos gentios e nem entrassem em
cidade de samaritanos (M t 10.5).Tratava-se de uma autorização particular dentro
de limites temporários e locais.117
270 A v in d a d o R e in o
Isso não diminui o fato de que, já nessa primeira missão, torna-se visível a
principal característica do que Jesus, mais tarde, confiará a seus discípulos como
um encargo permanente e contínuo, a saber, a pregação do evangelho em palavras
e obras. E verdade que não há qualquer menção explícita do estágio inicial da
formação de uma igreja. M as Jesus, de fato, diz aos discípulos que eles devem ir às
ovelhas perdidas da casa de Israel (M t 10.6). Desde o início, portanto, o propósito
da atividade deles em nome de Jesus é ajuntar o povo de Deus. Essa obra também
aparenta um caráter seletivo. Ao entrar nas cidades, eles devem procurar aqueles
que são “dignos”. Eles devem permanecer na casa destes, sem ficar se hospedando
de casa em casa (Lc 10.7). Além disso, eles devem dizer: “Paz seja nesta casa”.
Se a casa for digna dessa paz (M t 10.11), se houver nela um “filho da paz” (Lc
10.6), a paz deles repousará sobre ela, o que será comprovado pelo fato de que
os moradores os receberão e crerão em suas palavras (M t 10.14). Caso isso não
aconteça, a paz voltará para eles novamente, não terá qualquer efeito soteriológico.
Então, eles devem sacudir o próprio pó da cidade de suas sandálias, interromper
a comunicação com seus habitantes e, apesar de tudo, dizer-lhes: “Sabei que
está próximo o reino de Deus” (Lc 10.11). No dia do julgamento, haverá maior
tolerância para Sodoma e Gomorra do que para aquela cidade, mesmo que seus
habitantes pertençam a Israel (M t 10.15; Lc 10.12).
Tudo isso revela o caráter da primeira missão dos discípulos, que era peneirar
e ajuntar o verdadeiro povo de Deus. A chegada deles traz paz (eirene), isto é,
salvação no sentido mais abrangente da palavra. O que sela a bênção (shaloni) deles
é o fato de que foram “enviados” por Jesus. A bênção deles não é simplesmente
um desejo, mas se caracteriza como um dom que é aceito ou rejeitado. A missão
deles torna manifestos os que serão absolvidos no dia do julgamento, ela reúne
as verdadeiras ovelhas da casa de Israel.
De um ponto de vista objetivo, não é estranho que Mateus acrescente a essa
primeira missão dos discípulos toda uma série de pronunciamentos feitos por
Jesus que se referem à missão futura dos apóstolos depois da sua ressurreição (cf.
v. 17ss), pois, mesmo sem a grande comissão, registrada em Mateus 28, o evange
lho repetidamente mostra que essa tarefa missionária os aguarda no futuro, sem
que sejam mencionadas, no entanto, as palavras “enviados” ou “apóstolos”. Isso
ocorre particularmente nas parábolas acerca da administração e do cuidado dos
bens confiados por um senhor a seu servo por ocasião de sua ausência motivada
por uma viagem ao exterior (M t 25.14ss; Lc 19.12ss). Fica claro que, nesse caso,
Jesus refere-se a si mesmo e aos seus discípulos e que a administração e cuidado
de seus bens, dos quais seus servos haverão de prestar contas, é uma referência
ao chamado de seus discípulos no serviço do evangelho.118 Do mesmo modo, o
pensamento central dos sermãos de despedida encontrados nos sinóticos - os
quais pretendemos discutir adiante com mais detalhes - é que os discípulos,
A VINDA DO REINO E A IGREJA 271
este evangelho do reino por todo o mundo, para testemunho a todas as nações.
Então, virá o fim” (M t 24.14; cf. M c 13.10, “M as é necessário” - necessidade
histórico-redentora! - “que primeiro o evangelho seja pregado a todas as nações”).
Com respeito a isso, as seguintes observações devem ser feitas:
Jesus traçou a genealogia de Jesus até Adão (Lc 3.38) e que, em sua genealogia,
Mateus de modo proposital menciona as ancestrais gentias de Jesus pelo nome
(Tamar, Raabe, Rute; cf. M t 1.3,5). Imediatamente depois do nascimento de Je
sus, os sábios das terras dos gentios aparecem em Jerusalém (M t 2.1ss) e Simeão
publicamente testifica no templo que, nesse momento, Deus havia preparado a
salvação revelada a ele “diante de todos os povos”, uma “luz para revelação aos
gentios” (Lc 2.31-32). E, além disso, Mateus, mais de uma vez, ressalta o fato
de que o surgimento e as ações de Jesus são o cumprimento da profecia que, na
salvação prometida a Israel, incluía também os gentios (como já ocorre em M t
4.15, mas especialmente em 12.18-21). Quanto à própria pregação de Jesus,
devemos destacar o propósito claramente universalista de sua predição (por
ocasião da manifestação de fé do centurião romano, um gentio) de que muitos
virão do Oriente e do Ocidente e se sentarão à mesa com Abraão, Isaque e Jacó
no reino dos céus (M t 8.11; Lc 13.28), como também a descrição do julgamento
das nações (em M t 25.32 e outros lugares), no qual as ovelhas serão separadas
dos bodes. Além disso, a proclamação inicial de Jesus na sinagoga de Nazaré
contém, ao mesmo tempo, uma advertência implícita, ou seja, que, à semelhança
dos dias de Elias e Eliseu, a salvação pode ignorar Israel e passar a pertencer
aos gentios (Lc 4.25-27). As curas de pessoas gentílicas apontam para a mesma
direção, ainda que realizadas dentro das fronteiras do território dos Herodes,
isto é, na região dos gadarenos (M t 8.28-34ss), em Betsaida e Decápolis (Mc
7.31ss; 8.22). Nesse sentido, a cura dos dez leprosos se reveste de um significado
especial. Deles, somente um samaritano voltou, o que ocasionou as palavras de
Jesus: “Não houve, porventura, quem voltasse para dar glória a Deus, senão este
estrangeiro (allogenes)?” (Lc 17.11-19).
Essas palavras, à luz das quais outros ditos de Jesus também assumem um
propósito universalista (p. ex., M t 5.13-14, nos quais os discípulos são chamados
de luz do mundo e sal da terra; M t 13.38, onde o mundo é designado como o
campo da boa semente), são confirmadas de maneira enfática na parábola das
bodas, em Mateus 22.1-14, e na parábola do banquete, em Lucas 14.15-24. Não
podemos simplesmente equiparar essas duas parábolas;138 no entanto, elas têm,
em muitos aspectos, o mesmo objetivo. Apesar de os convidados para a salvação
terem apresentado toda sorte de desculpas, maltratado e matado os enviados do
Rei (de acordo com Lucas, depois que os pobres, aleijados, paralíticos e cegos
foram chamados), outras pessoas, as quais foram encontradas nas estradas e nas
ruas da cidade, foram compelidas a entrar. Esse último grupo certamente repre
senta os gentios.139 Sem dúvida, isso só aconteceu depois que o chamamento da
nação israelita fracassou. A mudança para os gentios, mesmo não mencionada
como tal, é inegável.140 O mesmo se aplica à parábola dos lavradores maus, a
qual já foi discutida anteriormente. Aqui se pronuncia o julgamento: o reino de
276 A v in d a d o R e in o
Deus será tirado “de vocês” (da nação de Israel, representada pelos lavradores) e
entregue a outro povo (ethne), que produzirá os frutos. O contexto deixa claro o
sentido: uma nova comunidade haverá de substituir o povo judeu. Aqui, também,
é intencionada a transferência da salvação para os gentios.
Sem dúvida, não há, ainda, qualquer menção explícita a uma missão entre os
gentios nas passagens mencionadas acima. Ainda assim, as duas últimas parábolas
apontam nessa direção de maneira natural, pois, na parábola do banquete (da
festa de casamento), o ponto principal é o chamado feito pelos mensageiros do
senhor (o rei) e a parábola dos lavradores maus fala de um povo que haverá de
produzir os frutos do reino de Deus. Esses frutos, indubitavelmente, são a fé e a
conversão, os quais pressupõem a pregação e a proclamação da salvação.
c) Esta última declaração pode ser deduzida de mais do que apenas de al
gumas passagens isoladas, por mais importantes que elas sejam, pois, apesar de a
universalidade da salvação já ter sido revelada no Antigo Testamento e confirmada
nos Evangelhos sinóticos de diversas maneiras e de essa salvação, desde então,
consistir basicamente na pregação do evangelho, essefato está inseparavelmente
unido ao cumprimento inaugurado pela vinda de Jesus. Pois, como já vimos ante
riormente, a maneira desse cumprimento é provisional, interina, e consiste mais
exatamente na pregação do evangelho, o qual tem seu fundamento e seu conteúdo
no sofrimento e morte de Jesus. Esse é o motivo pelo qual a pregação do evangelho
aos gentios é a conseqüência natural desse cumprimento, pois a universalidade da
salvação se concretiza no cumprimento e somente assim ela pode ser realizada
em conseqüência do caráter provisório do cumprimento. Essa modalidade espe
cífica do cumprimento é apresentada de maneira deturpada por autores tais como
Sundkler, Dahl, Kümmel, etc. Esse é o motivo pelo qual eles deixam de perceber
a ligação necessária entre a universalidade da salvação e a pregação.
Diante desses fatos, as antigas objeções141 feitas a partir de Mateus 10.5
(“Não tomeis rumo aos gentios, nem entreis em cidade de samaritanos”, etc.) e
de Mateus 15.24 (“Não fui enviado senão às ovelhas perdidas da casa de Israel”)
perdem sua força. Já falamos sobre o caráter provisional, local e temporário do
“tomeis rumo”, em Mateus 10.5. E o mesmo se aplica a Mateus 15.24. O fato
de que Jesus não considerava como tarefa sua ir aos gentios em nada prejudica
a tarefa futura dos discípulos. Já em Isaías 53, transparece que somente o so
frimento e a morte do Servo do Senhor abrem a salvação para os “muitos”. Ê
justamente isso que é confirmado na autorrevelação messiânica de Jesus. E essa
é a razão pela qual a pregação de Jesus até à sua morte se restringe a Israel; não
deve ser procurada na ideia centrípeta de que Jerusalém ou o Templo são o
centro do mundo.142 Somente depois da morte e da ressurreição de Jesus é que
o evangelho poderia ser anunciado aos gentios. Tudo isso se encontra tanto nas
profecias quanto na autorrevelação de Jesus. Não é o resultado inesperado de
A VINDA DO REINO E A IGREJA 277
uma “situação não escatológica” que se formou depois da morte de Jesus. Nesse
complexo de fatores, a rejeição do evangelho por parte de Israel desempenha
importante papel.143 E como se fosse a condição negativa para a pregação aos
gentios e para o conteúdo universal que agora se comunica ao conceito “povo
de Deus”. O ponto principal, entretanto, é que, na administração iniciada com
a vinda de Jesus, todos esses fatores juntos impelem com urgência a salvação a
romper as barreiras que, até então, a continham. Esse rompimento tornou-se
definitivo depois da morte de Cristo.
d) Com base no que foi dito acima, não pode haver dúvida quanto aos
pronunciamentos dos Evangelhos que anunciam a proclamação universal da
salvação no período posterior à morte de Cristo (Mt 26.13; M c 13.10)144ou sobre
aqueles pronunciamentos que explicitamente ordenam essa proclamação (Mt
28.16-20; Lc 24.46ss; M c 16.15ss). E verdade, no entanto, que outros autores
têm procurado negar a autenticidade de Mateus 28.16ss com base em outros
argumentos,145 especialmente porque defendem que a “fórmula trinitariana” seria
“prematura” aqui e também porque o conflito a respeito da missão aos gentios
descrito em Atos 15, por exemplo, seria ininteligível à época. Quanto ao primeiro
argumento, as palavras “em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo” não
devem ser concebidas como uma “fórmula” batismal. Muito pelo contrário, são
uma indicação do significado do batismo. Como tal, ninguém terá bases corretas
para argumentar que essas palavras “estão fora do escopo da pregação de Jesus”
e são, em conseqüência, secundárias.146 Quanto ao segundo argumento, deve-se
fazer uma distinção aguda entre a missão aos gentios e a maneira pela qual eles
seriam admitidos na igreja cristã. A missão, em si, nunca foi questionada. E
Mateus 28.16-20 não fala sobre o modo da admissão dos gentios.
Todavia, não importa de que maneira a última pergunta seja respondida em
detalhes - o mandamento para que o evangelho seja pregado a todas as nações
é, em todos os sentidos, a conclusão orgânica e natural da pregação do reino dos
céus. Em si, não é uma coisa estranha que os apóstolos não tenham entendido
imediatamente como cumprir a missão de pregar o evangelho a toda criatura,
seguindo a seqüência que lhes foi dada: Jerusalém, Judeia, Samaria e “confins da
terra” (cf. Lc 24.47; A t 1.8). M as isso em nada altera o fato de que esse manda
mento, em si, flui muito naturalmente da pregação de Jesus como um todo. E
uma necessidade histórico-redentora não somente em si mesma, mas também
vista dentro do escopo de toda a administração do cumprimento que começou
com a vinda e obra de Jesus (cf. dei, “é necessário”, M c 13.10). Ela dá significado
e propósito ao período subsequente do mundo: é uma das tarefas mais essenciais
que a igreja deve cumprir no mundo nesse período.
Finalmente, nesse contexto, devemos chamar a atenção para a ordem de
batizar. Tanto em Mateus 28 quanto no final de Marcos, essa ordem está ligada
278 A v in d a d o R e in o
mais que uma inclusão passiva e causativa no corpo de Cristo. A fé, por conse
qüência, não é uma condição, mas o efeito e resultado do batismo.148 Devemos
também mencionar a opinião de Cullmann de que o significado do batismo de
Cristo como aceitação do sofrimento e da morte se percebe também em dois
pronunciamentos nos quais Jesus fala do batismo antes de sua morte, a saber,
Marcos 10.38, “Podeis vós beber o cálice que eu bebo ou receber o batismo com
que eu sou batizado?”, e Lucas 12.50, “Tenho, porém, um batismo com o qual hei
de ser batizado; e quanto me angustio até que o mesmo se realize!” Em ambos
os casos, a expressão “ser batizado”, como uma indicação do sofrimento que se
aproxima, deve ser entendida em seu sentido próprio. O sofrimento e a morte
de Jesus em seu batismo já haviam sido simbolizados no batismo do Jordão, o
batismo “universal” que ele experimentou por todas as pessoas. Essa também seria
a explicação, segundo Cullmann, do fato de que o próprio Jesus não batizava. Ele
foi batizado somente em seu sofrimento e em sua morte.149
Em nossa opinião, a opinião de Cullmann é parcialmente uma construção,
mas também está, parcialmente, em conflito aberto com o Novo Testamento. Sem
dúvida, o batismo de Jesus indica também a sua humilhação. Isso está expresso em
Mateus 3.14-15 e pode ser, talvez, inferido de uma alusão a Isaías 42.1, embora
essa passagem não se refira exclusivamente à sua humilhação. Todavia, nada disso
pode provar que o batismo de Jesus é um símbolo de sua entrega voluntária ao
sofrimento e à morte, pois, em nossa opinião, não existe qualquer base no relato
do batismo de Jesus para que se possa estabelecer esse tipo de ligação direta.
O apelo a Marcos 10.38 e Lucas 12.50 fornece, em nossa opinião, apenas uma
semelhança de apoio a essa ideia. O uso de baptizein (batizar) é realmente im
pressionante. M as a inferência de que Jesus chama seu sofrimento e sua morte
de “batismo” porque seu batismo por João já representava isso para ele não nos
parece suficientemente justificada. O termo “batizar”, nessas duas passagens,
é usado no sentido metafórico geral de afundar, mergulhar,150 visto que não é
somente o sofrimento de Jesus que é referido como um “batismo”, mas também
o sofrimento de Tiago e João (Mc 10.39).
Sempre será difícil aferir com exatidão até que ponto esse uso incomum
de “batizar” em Marcos 10.38 e Lucas 12.50 tenha sido determinado, de algum
modo, pelo batismo de Jesus por João. Contudo, certamente não se pode aceitar
a maneira como Cullmann usa esse material para chegar à sua concepção de
que o sofrimento e a morte de Jesus representam um batismo “universal”. Aqui,
Cullmann se reporta a Mateus 3.15, mas o “cumprir toda a justiça” não pode ser
entendido como um ato universal que ocorre em favor de toda a humanidade,
em favor de cada um. Isso estenderia o batismo de Jesus quantitativamente. Mas
a palavra “toda”, na passagem, tem um sentido qualitativo, ou seja, Jesus e João
deveriam fazer tudo o que o Pai requeria deles (“nos”).
280 A v in d a d o R e in o
acerca do reino dos céus. Temos que prestar atenção especial à importância his-
tórico-redentora da Ceia do Senhor, isto é, a relação entre a Ceia do Senhor e
tudo o mais que chegou à nossa atenção nos capítulos anteriores com respeito
ao reino, tanto seu cumprimento como seu caráter provisório.
Desse ponto de vista, há um grande número de obras que têm, nas últimas
décadas, tratado da Ceia do Senhor. Nelas, a questão do importante conflito
confessional desde os dias da Reforma tem novamente se sobressaído, a saber, o
sentido das palavras literais da instituição na medida em que estão ligadas com
o pão e o vinho entregues por Jesus aos discípulos em relação ao seu corpo e seu
sangue. Especialmente na teologia sacramental recente, essa relação continua a
desempenhar um papel importante. Ainda assim, os limites dentro dos quais o
atual conflito está prosseguindo são muito mais amplos do que costumavam ser.
Eles são agora determinados pela visão geral da vinda de Jesus e de sua obra, espe
cialmente o reino dos céus proclamado por ele. Não deveríamos nos surpreender,
portanto, com o fato de que, no tratamento das palavras institucionais da Ceia do
Senhor, encontramos mais uma vez os mesmos problemas, embora num sentido
modificado, que chamaram a nossa atenção nos capítulos anteriores.
Isso se tornará mais claro para nós quando examinarmos as palavras ins
titucionais mais detidamente. Dois temas se sobressaem nelas. O primeiro é a
morte expiatória de Jesus, a qual já encontramos em outro contexto. Jesus, aqui,
aponta para sua morte próxima como um sacrifício substitutivo para remissão
de pecados. O segundo tema é o escatológico, expresso por todos os evangelistas
sinóticos, mas especialmente por Lucas. Esse tema aparece nas palavras de Jesus
em estreita ligação com a Ceia do Senhor, sobre o “vinho novo” que ele beberá
(com seus discípulos) no reino de Deus (M t 26.29; M c 14.25; cf. Lc 22.18) e
também nas palavras sobre o “cumprimento” da Páscoa no reino de Deus (Lc
22.16). Nos capítulos anteriores deste livro, foi visto que são exatamente esses
dois temas da pregação de Jesus que ocupam o centro de uma polêmica inces
sante. E, portanto, compreensível que essa polêmica se concentre no sentido da
Ceia do Senhor.
As principais questões que estão em jogo são: emprimeiro lugar, se a morte
expiatória determinou, desde o início, o caráter da Ceia do Senhor, e, em segun
do lugar, qual é a função da Ceia do Senhor na vinda do reino anunciado por
Jesus.
Ninguém deve se admirar de que aqueles que ainda compartilham a visão
liberal de que o evangelho original desconhece completamente o poder expiatório
do sofrimento e da morte de Jesus não podem confiar nas palavras institucionais
dos sinóticos para estabelecer o sentido original da Ceia do Senhor, pois essas
palavras mencionam o sangue da aliança, a ideia de sacrifício, etc. Com muita
frequência, essas palavras têm sido declaradas como não autênticas.
A VINDA DO REINO E A CEIA DO SENHOR 285
A teologia liberal, desse modo, eliminou os temas que considera ser obje-
táveis nas palavras da instituição da Ceia do Senhor e reteve pouco mais do que
a ideia de que ela era “uma refeição comemorativa, como uma recordação de um
momento inesquecível na história da Paixão”,1 ordenada por Jesus quando ele
viu que sua hora se aproximava. Muitos autores recentes, todavia, que também
rejeitam o tema da morte expiatória de Cristo, começaram a enfatizar o tema
escatológico que aparece nos três relatos da instituição da Ceia do Senhor e
derivam o seu sentido original desse tema.
A concepção de Lietzmann, em especial, tem sido um fator importante
nesse desenvolvimento.2 Esse autor faz a distinção entre dois tipos de eucaristia
nas antigas liturgias da Ceia do Senhor e supõe que elas podem ser percebidas
também no Novo Testamento, a saber, um tipo “Jerusalém” e outro “paulino”.
O primeiro tipo é, então, a continuação das refeições que eram frequentemente
compartilhadas pelos discípulos com Jesus antes de sua morte (as chamadas
chaburas com as quais os judeus estavam familiarizados). Elas foram continuadas
após a Páscoa na certeza prazerosa da presença de Cristo e não incluíam o
uso de vinho (aquilo que, no livro de Atos, se chama de “partir o pão”). Esse
exercício de comunhão à mesa era especialmente dirigido para a parousia do
Senhor, que se aproximava rapidamente, e até mesmo a antecipava. Esse é o
tipo Jerusalém, que, ao mesmo tempo, era também escatológico. Presume-se
que sua forma seja discernível na história de Lucas, de acordo com a redação
encontrada no códice D (nos quais os vs. 19b e 20 estão faltando). Esse tipo
de refeição deveria ser totalmente separado da celebração da Páscoa e de sua
ideia de sacrifício.
Supõe-se que outro tipo de celebração tenha surgido ao lado desse, o “pau
lino”, determinado pela ideia de sacrifício, a comemoração e a Vergegenwãrtigung
(representação) da morte de Jesus pelo pão e pelo vinho. Toda a ênfase recai
sobre os “elementos”. Eles se tornam o veículo do Espírito Santo, que efetua a
remissão de pecados e dá vida eterna aos participantes. Encontramos esse tipo
paulino nos registros de Mateus e Marcos. A ligação dele com a morte expia
tória de Jesus é o elemento essencial. Esse tipo logo sobrepujou o tipo original,
escatológico.3
Com base em considerações semelhantes, é feita a tentativa de reconstruir as
verdadeiras palavras de Jesus proferidas na Ceia do Senhor. Assim, Klostermann,
por exemplo, escreve que o relato da Eucaristia que nos chegou (em Marcos), se
tomado fora de seu contexto, demonstra ser uma história cúltica. Essa história
foi criada como uma etiologia para justificar a celebração da Ceia do Senhor em
círculos helênicos (isto é, seu objetivo era representar a eucaristia como um costu
me originado no próprio Jesus). Klostermann contrasta com isso a possibilidade
de que somente Marcos 14.25 (que fala do “vinho novo” no reino de Deus) seja
286 A v in d a d o R e in o
uma reminiscência de uma tradição mais antiga que deveria ser suplementada
com Lucas 22.14-18. De acordo com essa tradição extremamente truncada, Jesus
supostamente deu esperanças a seus discípulos de reunirem-se com eles em breve
na refeição messiânica no reino de Deus, pois vivia na certeza da iminente catástrofe
e do início do governo de Deus. M as ele não teve qualquer intenção de instituir
uma cerimônia comemorativa e não fez qualquer paralelo direto entre pão e vinho
e seu corpo e sangue. Klostermann procura fundamentar sua opinião recorrendo
à declaração de que, na eucaristia celebrada nas antigas igrejas da Palestina, o que
predominava era um tom alegre de esperança e não a comemoração da morte
de Jesus (At 2.46, onde ocorre a palavra aggaliasis, a qual é também usada para
expressar a alegria pela vinda do reino de Deus). Ele também acrescenta como
argumento o fato de que, nessa forma antiga de celebração, só era feita menção
do “partir o pão” e que não há nada acerca do vinho, o qual está tão diretamente
associado com o sangue de Jesus.4
Todavia, Plooy (concordando com Lohmeyer) corretamente ressaltou que o
motivo básico dessa argumentação se move num círculo vicioso. Primeiro, é feito
um tipo de suposição acerca do que, segundo os chamados “dados históricos”,
Jesus teria ou não teria pensado e dito na Ceia do Senhor; então, se os dados estão
comprovadamente contra essa suposição, o elemento perturbador é eliminado
como se fosse a “teologia da igreja”.5 ..
Na literatura mais recente, todavia, muitos autores abandonaram esse
preconceito com respeito ao tema da morte expiatória. H á um reconhecimento
crescente do fato de que, de acordo com a profecia de Isaías 53, o sofrimento e a
morte substitutiva ocupam um lugar integrante no evangelho e que é impossível
eliminar esse tema da morte expiatória da tradição concernente à instituição da
Eucaristia. Ao mesmo tempo, entretanto, uma ênfase crescente tem sido dada ao
caráter escatológico da Ceia do Senhor e, mais uma vez, a discussão se revolve
em torno da relação entre esses dois temas e em que sentido essa instituição de
Cristo deve ser entendida.6
As exposições de Albert Schweitzer sobre esse tema são características da
interpretação escatológica da Ceia do Senhor e muito influentes. Elas estão in
corporadas nas obras mais antigas dele, bem como em seu trabalho mais recente,
Die Mystik des Aposteis Paulus [O misticismo do apóstolo Paulo]. A perspectiva
de Schweitzer diverge da de outros autores, como Lietzmann, Klostermann, etc.
(cf. acima) porque ele também leva em consideração o tema da morte expiatória
ao determinar o caráter da Ceia do Senhor. Isso, todavia, não minimiza o fato de
que ele subordina totalmente esse elemento ao que considera a coisa principal,
ou seja, o significado escatológico da Ceia do Senhor.
O tema da morte expiatória se sobressai de modo ainda mais enfático nas
exposições de Rudolf Otto sobre a Ceia do Senhor.7 E verdade que esse autor,
A VINDA DO REINO E A CEIA DO SENHOR 287
também, explica a última ceia de que Jesus participou com seus discípulos como
uma instituição escatológica que não deve ser ligada com a refeição da Páscoa.
Como conseqüência da ênfase especial que ele dá ao sentido de Isaías 53 para
a autoconsciência messiânica de Jesus, Otto, todavia, se aproxima bastante da
antiga concepção de acordo com a qual o iminente sofrimento de Cristo, sua
morte e o poder expiatório deles foram decisivos para as palavras e atitudes de
Jesus durante a Eucaristia.
Schweitzer pretende definir o caráter real da Ceia do Senhor em conexão
direta com outras refeições que Jesus compartilhou com seus discípulos. Ele en
contra o exemplo mais glorioso disso na história da alimentação miraculosa das
multidões no lago de Genesaré (Mc 6.32ss). Uma tradição posterior erroneamente
buscou o caráter especial dessa refeição na satisfação miraculosa do apetite de
tantas pessoas com a ajuda de uma pequena quantidade de pão. Porém, de acor
do com Schweitzer, o ponto importante nessa refeição é o fato de que, para um
grande círculo de pessoas, Jesus, como Messias designatus, oferece uma celebração
preliminar do festival messiânico escatológico no reino de Deus, o qual estava
para chegar em breve. Desse modo, os participantes dessa refeição foram iniciados
de maneira cúltica como participantes do reino. Tudo isso ainda estava oculto
para eles. Eles ainda não conheciam Jesus como o Messias, mas o que era um
segredo nas primeiras refeições foi abertamente declarado por Jesus na última
ceia, em Jerusalém. Pois então o segredo messiânico foi divulgado e o círculo de
discípulos foi explicitamente chamado de a representação da nova comunidade
do reino de Deus. E, ao mesmo tempo, o tema do sofrimento aparece em cena,
o que é também algo especial. Somente mediante o sofrimento e a morte de
Jesus é que o reino se manifestaria. A essência da Ceia do Senhor, entretanto, era
independente da sua referência ao próprio corpo e sangue, apesar de consistir na
“festa cúltica preliminar da ceia messiânica no círculo de participantes que acre
ditavam no reino”.8 De acordo com isso, depois da morte de Jesus, os apóstolos
e os fiéis passaram a esperar a sua vinda e a ceia messiânica no mesmo aposento
onde Jesus havia celebrado a última ceia com eles. Ali, também, eles repetiram
essa refeição, em conjunto, como uma ceia de gratidão com vistas ao reino vin
douro e a parousia de Cristo. Apenas mais tarde, quando a fé da igreja perdeu
seu caráter escatológico, foi que o sentido original de “partir o pão” desapareceu.
A ênfase, então, mudou para o pão e o vinho como meio de comunhão com o
corpo e o sangue de Cristo. Em vez da concepção escatológica, o significado
grego-sacramental se sobressaiu.9
Assim, Schweitzer liga o tema do sofrimento na Ceia do Senhor com o
ponto de vista escatológico. Esse ponto de vista é acolhido na visão de Schweitzer
porque a ideia do sofrimento e da morte se constitui parte integrante da sua
escatologia.10 Esse é o motivo pelo qual Schweitzer não faz qualquer objeção a
288 A v in d a d o R e in o
considerar a última ceia como uma refeição pascal e rejeita como desnecessária
a distinção “artificial” feita por Lietzmann e outros entre dois tipos diferentes
de Eucaristia cristã.11Todavia, o caráter escatológico da Ceia permanece predo
minante. A Ceia do Senhor recebe seu significado apropriado da convicção de
Jesus de que, com sua morte, o reino começaria. E o prelúdio a comer e beber
no reino de Deus.
A discussão elaborada de Rudolf Otto a respeito da Ceia do Senhor começa
com uma reconstrução radical da história de Lucas sobre a última ceia.12 Ele
concorda também com Lietzmann quanto a não explicar a última ceia de Jesus
e seus discípulos do ponto de vista de uma refeição pascal, mas a partir de um
tipo mais geral de comunhão religiosa à mesa,13 as chamadas chabu ou chabura,
também mencionadas por Lietzmann. Nesse caso não havia necessidade de
vinho. A consagração religiosa consistia unicamente em abençoar o alimento (a
chamada eucaristia).
Na Ceia do Senhor, entretanto, Jesus passou entre eles uma taça de vinho.
E a taça no início da refeição, mencionada em Lucas 22.17. Nesse momento,
ele pronunciou as palavras escatológicas, referindo-se a beber o vinho novo no
reino de Deus. A taça, na última ceia, não tem qualquer relação com o sangue
ou com a instituição da aliança. E a taça da despedida e da reunião no reino
vindouro.14
Além disso, entretanto, Jesus distribuiu entre eles o pão, que representava de
acordo com R. Otto, seu corpo partido na morte. As palavras que acompanharam
o pão, “isto é o meu corpo”, deveriam ser ligadas a Lucas 22.29, onde, em virtude
da promessa da aliança, Jesus dá a seus discípulos uma participação no reino de
Deus.15 Por sua morte, “representada eficazmente”16 pelo pão partido, Jesus lega
o reino aos seus discípulos. Pois Otto acredita que pode apelar para a profecia
de Isaías 53 e 54 para essa ideia de delegar o reino com base no sofrimento e na
morte de Cristo.17
Até aqui, temos dado atenção aos representantes da ala mais radical na
literatura sobre a Ceia do Senhor. M as existe também uma longa lista de autores
que acreditam que essa interferência ousada, e frequentemente arbitrária, no
texto e o sentido dos Evangelhos é injustificada. E notável que a perspectiva de
que a passagem mais longa de Lucas é, de fato, a forma original esteja ganhando
cada vez mais aceitação por um número crescente de autores, apesar de, por um
longo tempo, essa perspectiva ter sido de modo geral rejeitada.18 Porém, mesmo
nos casos em que essa perspectiva não é defendida, a situação histórica na qual
os Evangelhos colocam a Ceia do Senhor tem sido esclarecida com base em
investigações cuidadosas e, desse modo, a confiabilidade da tradição sinótica
a respeito da última ceia tem sido mantida. Isso se aplica especialmente ao
reconhecimento de que o significado da Ceia do Senhor deve ser entendido
A VINDA DO REINO E A CEIA DO SENHOR 289
Nosso objetivo é obter uma percepção mais exata quanto ao sentido geral
da Ceia do Senhor dentro do escopo da administração da salvação inaugurada
pela vinda e obra de Jesus. Faremos isso concentrando-nos na tradição sinótica
referente à instituição da própria Ceia do Senhor. Ao fazer isso, somos confron
tados imediatamente com a diversidade encontrada nessa tradição. E impossível
evitar a discussão sobre essa diversidade, pois ela, aparentemente, desempenha
um importante papel com respeito à caracterização geral da ceia do Senhor.
Isso não se aplica às diferenças nas passagens sobre a eucaristia em Marcos e
Mateus. Na realidade, independentemente da questão com a qual estamos lidando
aqui, essas diferenças são, de maneira geral, muito leves e sem significado real.
A mais importante diferença entre esses relatos são as palavras da instituição do
cálice, “Isto é o meu sangue, sangue da [nova] aliança, o qual é derramado por
muitos”, às quais Mateus acrescenta: “'para a remissão depecados”. Desse modo, ele,
mais claramente do que Marcos, refere-se à profecia a respeito da nova aliança
de Jeremias 31.31ss.
As coisas ficam diferentes, todavia, quando incluímos Lucas na comparação.
Em primeiro lugar, há, então, aquela importante pergunta acerca da passagem
original, pois, em alguns manuscritos e em algumas versões antigas, os versículos
19b e 20 estão faltando. A passagem termina abruptamente com “Isto é o meu
corpo”. Estão faltando as palavras “oferecido por vós; fazei isso em memória
de mim”. Do mesmo modo, as palavras introdutórias do cálice estão faltando
no versículo 20. Essas palavras que faltam são exatamente aquelas que fazem a
conexão entre a última ceia e o sofrimento e morte de Jesus. O resultado é que
aqueles que consideram como secundário o tema da morte expiatória nas palavras
da Ceia do Senhor geralmente valem-se da passagem mais curta de Lucas. No
A VINDA DO REINO E A CEIA DO SENHOR 291
26 26 Enquanto co
miam, tomou Jesus um 19a E, tomando um
pão, e, abençoando-o, cf. v. 22 pão, tendo dado graças,
o partiu, e o deu aos o partiu e lhes deu,
discípulos, dizendo: dizendo: Isto é o meu
Tomai, comei; isto é o corpo
meu corpo.
19b oferecido por vós;
fazei isto em memória
de mim.
27 27 A seguir, tomou
um cálice e, tendo dado 20 Semelhantemente,
graças, o deu aos discí cf. v. 23 depois de cear, tomou o
pulos, dizendo: Bebei cálice, dizendo:
dele todos;
A VINDA DO REINO E A CEIA DO SENHOR 293
28 28 porque isto é
o meu sangue, o san Este é o cálice da nova
gue da [nova] aliança, aliança no meu sangue
cf. v. 24
derramado em favor de derramado em favor de
muitos, para remissão vós.
de pecados.
29 E digo-vos que, des
ta hora em diante, não
beberei deste fruto da
videira, até aquele dia cf. v. 25 cf. v.18
em que o hei de beber,
novo, convosco no reino
de meu Pai.
Como dissemos, essa introdução está faltando nos outros dois sinóticos e,
consequentemente, também a ênfase na perspectiva escatológica. Por esse motivo,
especialmente, uma distinção entre dois tipos de Eucaristia é defendida por
aqueles que consideram o tipo escatológico mais antigo e veem esses versículos
iniciais de Lucas como a parte mais original da tradição, colocando somente o
versículo final de Mateus e Marcos no mesmo nível.
Apesar dessa separação do motif escatológico do da morte expiatória ser,
em nossa opinião, totalmente arbitrária, teremos que fazer plena justiça à ênfase
dada à perspectiva escatológica em Lucas, ainda mais diante do fato de que há
294 A v in d a d o R e in o
indicações de que a tradição de Lucas é uma descrição mais exata e mais detalhada
do curso histórico dos acontecimentos do que a dos demais evangelistas.* Isso
está relacionado com uma segunda diferença que ocorre entre Lucas e Mateus
(e Marcos). Lucas relata que Jesus passou a taça duas vezes. A primeira vez é
mencionada imediatamente no início (v. 17) e não está relacionada com o sangue
de Jesus, mas com o beber do vinho no reino de Deus (v. 18). Mais adiante,
Lucas menciona novamente uma taça (v. 20), a qual, dessa vez, ele relaciona às
palavras de Jesus a respeito do sangue da nova aliança, como os demais sinóticos
o fazem também. Em Mateus e Marcos, por outro lado, somente na conclusão
da narrativa é que é feita menção de que Jesus passou a taça para os discípulos
e ambos ligam esse fato com “isto é o meu sangue, sangue da [nova] aliança” e
com a esperança escatológica (beber o “vinha novo”).
A base para nossa suposição de que Lucas fornece um relato mais exato dos
acontecimentos do que Mateus e Marcos é o fato de que ele menciona dois cálices,
o que é uma descrição mais elaborada. E também porque, já no início, em conexão
com o primeiro cálice, ele fala do “fruto da videira”. Essa era uma expressão fixa
nos ritos pascais judaicos. Ela era usada pelo pai de família ao dar graças pelo
primeiro cálice que era passado para todos, e não na ação de graças, no cálice
após a ceia30 (onde Mateus e Marcos a mencionam). Se pudermos corretamente
assumir que a menção de mais de um cálice em Lucas não se baseia em algum
tipo de confusão causada pela extensão da passagem, mas numa descrição mais
exata dos acontecimentos, e se, em antecipação aos resultados da nossa inves
tigação mais adiante pudermos tomar a expressão “fruto da videira” como uma
alusão aos ritos pascais, torna-se óbvio supor que a referência ao beber o vinho
no reino de Deus (a perspectiva escatológica) foi feita imediatamente no início
da ceia, exatamente como o outro dito acerca da ceia realizada no reino de Deus.
Assim, podemos concluir queJesus começou sua última ceia com seus discípulosfazendo
essa dupla referência ao reino de Deus.
E, assim, evidente que devemos considerar as palavras eucarísticas de Jesus e,
portanto, a instituição da Ceia do Senhor para a igreja cristã, dentro da estrutura
geral da pregação dele. E também claro que o ponto de vista escatológico é muito
importante para a determinação do caráter da Ceia do Senhor. Na realidade, isso
não transparece somente em Lucas, pois Mateus e Marcos também trazem as
palavras “Em verdade vos digo que jamais beberei do fruto da videira, até àquele
dia em que o hei de beber, novo, no reino de Deus” (Mc 14.25). Mateus acrescenta
“convosco” (M t 26.29). Isso, sem dúvida, salienta mais claramente o significado de
Marcos, de que Jesus não apenas se refere à sua própria exaltação e glorificação,
mas também à sua reunião com seus discípulos na manifestação vindoura do
reino de Deus. Nesse reino, o que agora é provisório e incompleto será novo
(uma palavra usada repetidamente com referência ao estado de cumprimento e
A VINDA DO REINO E A CEIA DO SENHOR 295
“não mais” e é particularmente evidente nas palavras iniciais do relato que Lucas faz
da última ceia. Aí Jesus diz que havia desejado ansiosamente comer aquela páscoa
com seus discípulos antes de seu sofrimento,pois (“pois vos digo”) não mais comeria
dela até que ela se cumprisse no reino de Deus (Lc 22.16). A causa desse desejo
intenso está na separação vindoura. Em nossa compreensão, isso inegavelmente
indica que essa páscoa e as palavras de Jesus trazem um tom de despedida que
aponta para o futuro. Essa é a razão pela qual o caráter geral da Ceia do Senhor
não pode ser visto como uma antecipação da iminência do reino de Deus, seja no
sentido de Schweitzer, que chamou essa antecipação de “a grande ilusão de Jesus”,
seja no sentido daqueles que a veem como cumprida na ressurreição de Cristo e
na celebração da Eucaristia pela igreja cristã. O próprio Jesus não quis dizer isso
com as palavras que proferiu na Ceia. Quando fala do “cumprimento da páscoa”
e do “vinho novo” no reino de Deus, ele tem em vista o futuro grandioso a ser
inaugurado pelaparousia do Filho do Homem. Aqui não se pode invocar como
auxílio a distinção entre o reino messiânico e o reino eterno de Deus, como se
as palavras de Jesus se referissem ao primeiro e não ao segundo,38 pois, indepen
dentemente do caráter duvidoso dessa distinção,39 Jesus, em Mateus e Marcos,
bem como em Lucas, especificamente fala de comer e beber no reino de seu Pai,
e portanto, no reino eterno. Além disso, em nossa opinião, não adianta recorrer
às chamadas “refeições pascais” ( Oestermahlzeiten), ou seja, as refeições feitas por
Jesus e seus discípulos depois da ressurreição, das quais Lucas e João falam e que
são mencionadas por Pedro em Atos 10.41. Essas refeições não tinham o caráter
de refeições festivas messiânicas, mas de confirmação da realidade da ressurreição
(corpórea) de Cristo (cf. Lc 24.41-43) e são mencionadas como tais por Pedro em
Atos 10.41. Também é praticamente impossível ver o alimento que era comido
nessa ceia, a saber, pão e peixe, como a “páscoa realizada” ou como o “vinho novo”
no reino do Pai. Não há duvida de que essas refeições depois da Páscoa são também
evidência de que a comunhão entre Jesus e seus discípulos havia sido novamente
restaurada, mas o que é dito nos ditos escatológicas da Eucaristia refere-se a algo
mais do que a essas refeições temporárias incidentais.
O mesmo se aplica à celebração da Ceia do Senhor na igreja cristã. Se essa
Ceia for considerada como uma continuação direta da última Ceia celebrada por
Jesus com seus discípulos,40 ela não pode ser concebida como o cumprimento
do que Jesus prometeu nessa Ceia com referência a beber do vinho novo, etc. A
Ceia do Senhor celebrada na igreja cristã depois da morte de Jesus, em comunhão
espiritual com o Senhor ressurreto (cf.M t 18.20), é somente a prefiguração deste
“comer e beber no reino de Deus”. Isso significa dizer que é a continuação e a
celebração da administração da salvação dirigida ao futuro,41 a qual foi inaugurada
pela vinda de Cristo. Nesse sentido, ela não transcende, de maneira factual, o que
Jesus já deu a seus discípulos para comer e beber na última Ceia.
298 A v in d a d o R e in o
memória de mim”, bem como o cantar o hino (hallet) ao final, estão em perfeito
acordo com a ceia da Páscoa.
Não pode haver dúvida nos sinóticos de que a última refeição de Jesus por
eles referida se tratava da celebração da Páscoa. E verdade que alguns autores têm
sugerido que essa refeição era uma preparação solene antes da Páscoa, a chamada
chabura. Porém, independentemente da questão sobre se tais refeições eram
costumeiras logo antes da refeição da Páscoa,48 os detalhes que já mencionamos
acima apontam claramente que se tratava da própria ceia da Páscoa.
Já por essa razão, não nos parece possível disputar a historicidade do relato
sinótico argumentando que, de acordo com as ordenanças judaicas, não era
possível realizar trabalho algum no dia 15 de Nisã. Se esse fosse o caso, então
carregar armas, a sessão do Sinédrio, a participação do povo nas atividades judiciais
romanas, a compra de uma mortalha para Jesus, etc. - tudo isso mencionado nos
sinóticos - seria incompatível com as leis, pois, em primeiro lugar, é inconcebível
que a tradição evangélica tenha se desviado tanto a ponto de fornecer um relato
que (apesar de ser verificável por qualquer judeu cristão nesse ponto, isto é, o
descanso no dia 15 de Nisã) estaria em conflito com os conceitos mais simples do
ritual festivo dos judeus. Além dessa objeção séria, há estudiosos, como Dalman49
e Billerbeck,50 que têm demonstrado, com base nos próprios escritos rabínicos,
que as ordenanças rabínicas referentes às ações narradas pelos sinóticos como
ocorridas no dia 15 de Nisã não são obstáculos intransponíveis.
A objeção histórica, portanto, deve reduzir-se apenas à descrição que João
aparentemente nos dá em 19.14 e em 18.28, de que, no dia da morte de Jesus, a
refeição pascal ainda tinha que ser feita. Como é bem conhecido de todos, somos
confrontados aqui com uma das questões mais difíceis sobre a relação entre os
sinóticos e João. A tentativa feita, no curso de nossa investigação, de estabelecer
algum tipo de acordo entre João e os sinóticos nesse ponto em particular não
deve ser considerada como meramente um exemplo da política de harmonizá-los
mesmo que não haja em João qualquer apoio para isso. Já observamos o argu
mento de Jeremias de que a refeição mencionada em João 13.1 tem claramente
o caráter de uma reunião festiva especial. Mas, em nossa opinião, os próprios
versículos 13.1 e 2 fornecem fortes argumentos em favor do ponto de vista de que
aqui se trata da ceia da Páscoa. João 13.1 começa com as palavras: “Ora, antes da
Festa da Páscoa ’ (pro de tes heortes tou pascha). No versículo 2, lemos “Durante a
ceia...” (kaideipnouginomenou). A combinação dessas duas informações se torna
bastante natural quando se entende a ceia mencionada no versículo 2 como a
refeição pascal. É verdade que o versículo 1 d iz 11antes da Festa da Páscoa”, mas
esse advérbio temporal não deve ser ligado com egapesen (tendo amado), que
é o verbo principal, e nem com o que se segue no versículo 2, mas com eidoos
(“sabendo”, 13.1). O significado, portanto, é que, já antes da Páscoa, Jesus sabia
302 A VINDA DO REINO
que seu fim estava próximo e, assim, agiu de acordo com isso durante a ceia
pascal. Em nossa opinião, esse advérbio de tempo (“antes”) só faz sentido se o
que é relatado no versículo 2 e seguintes aconteceu durante a própria festa da
Páscoa e se, portanto, deipnon indica a própria ceia pascal. Sem dúvida, a festa da
Páscoa não é explicitamente mencionada durante essa refeição, mas o argumento
do silêncio não se sustenta aqui, pois a instituição da Ceia do Senhor também
não é mencionada. Ainda assim, não é razoável assumir que o evangelista queria
combater essa instituição ou ignorá-la, ou que ele nada soubesse sobre ela. Não há
dúvida de que a Ceia do Senhor era celebrada ao tempo em que esse Evangelho
foi escrito e que sua origem era a última ceia de Jesus. Aqui somos confrontados
com o caráter peculiar do quarto Evangelho, que foi escrito para aqueles que já
conheciam o evangelho de Jesus Cristo (também historicamente).
Assim, alguns estudiosos tentam eliminar a aparente contradição entre João
e os sinóticos nesse ponto explicando as duas passagens “difíceis” em João (18.28
e 19.14) de modo a reconhecer que a morte de Jesus ocorreu no dia 15 de Nisã e
que a ceia pascal foi feita no dia anterior. Eles apoiam essa opinião naquilo que
o próprio quarto Evangelho sugere em 13.1 e seguintes quanto a essa refeição.
Consequentemente, fica difícil entender 19.14 e 18.28 como uma referência
à refeição costumeira da Páscoa. João 19.14 não oferece dificuldades maiores,
pois a palavra paraskeue pode ser concebida como um terminus technicus para
“sexta-feira”, do mesmo modo que, no versículo 31 (cf. v. AH),paraskeue significa
provavelmente o dia anterior ao sábado. O genitivo toupascha, então, significa
meramente (o dia anterior ao sábado) durante a festa da Páscoa.
O ponto interpretativo crucial realmente está no versículo 18.28. H á dife
rentes perspectivas possíveis aqui. A pluralidade delas mostra, por um lado, que o
assunto não é simples, mas, por outro, que não deveríamos falar de uma contra
dição cronológica evidente e insolúvel entre João 18.28 e os sinóticos. A maneira
mais simples é entenderpascha, em João 18.28, de um modo mais amplo do que
uma referência exclusiva à ceia em que o cordeiro pascal era comido. Zahn, por
exemplo, vê isso como uma indicação do mazzot pascal.51 Outros especialistas
em judaísmo, como Lightfoot e Schoettgen, recorrem ao Talmude para explicar
que a palavra significa “comer o sacrifício festivo” e, nisso, encontraram muitos
seguidores recentemente. Em nossa opinião, essa perspectiva tem muita coisa
em seu favor. Outros especialistas no Talmude, como D. Chwolson, J. Klausner
e Strack-Billerbeck, dizem que tanto João quanto os sinóticos nos dão um relato
exato dos fatos quando fixam a celebração da Páscoa num dia diferente. E alega
do que há uma diferença de opinião entre os próprios judeus quanto ao dia em
que a Páscoa deve ser comida. Presume-se que Jesus e seus discípulos seguiram
a perspectiva dos fariseus e celebraram a ceia um dia antes da celebração dos
saduceus, à qual João supostamente se refere em 18.28.32 Se essa perspectiva está
A VINDA DO REINO E A CEIA DO SENHOR 303
correta, lança-se uma luz diferente nas objeções baseadas nas diversas atividades
que supostamente aconteceram no dia 15 de Nisã (cf. acima). Apesar de não
haver uma solução que seja consenso entre todos quanto a essa dificuldade, a
mesma tem que ser reduzida à sua proporção correta, levando-se em conta que:
a) o relato dos sinóticos inegavelmente se refere à última ceia como a refeição
pascal; b) considerada em si mesma, a passagem de João 13.le seguintes pode
também ser entendida como uma descrição da Páscoa; c) que João 18.28 não
representa uma contradição evidente dessa perspectiva geral. Na discussão do
relato sinótico, em nossa opinião, não há, de um ponto de vista histórico, outra
maneira a não ser partir da pressuposição que a instituição da Ceia do Senhor
ocorreu durante a refeição da Páscoa.
Pergunta-se, agora, até que ponto esse fato lança luz quanto ao sentido dessas
palavras e ações. Não precisamos entrar em detalhes acerca da Páscoa judaica
para podermos compará-la com atos distintos ocorridos durante a última ceia.
Obviamente, nosso assunto agora é somente a posição e o sentido do pão e do
vinho da ceia pascal com os quais Jesus ligou as suas palavras bem conhecidas
acerca de seu corpo e de seu sangue.
O pão é mencionado com as palavras complementares “enquanto comiam”
(esthiontoon autoon, M c 14.22; M t 26.26). Essa é, possivelmente, a refeição pro
priamente dita que era comida após os primeiros pratos (que consistiam de ervas
amargas, ervas verdes e uma espécie de molho) e a liturgia pascal (na qual o pai
dava explicações à sua família sobre o significado da festa da Páscoa em resposta
a uma pergunta dos filhos sobre isso, após a primeira parte do hallel [salmo]
pascal ter sido cantada). Essa refeição consistia do cordeiro pascal assado, que
ficava sobre a mesa, pão sem fermento, ervas amargas, um tipo de fruta cozida e
vinho. O pão, do qual Jesus disse “isto é o meu corpo”, deve ter sido o pão ázimo
que era comido com o cordeiro pascal. A “bênção” mencionada aqui ( eulogesas,
M t 26.26; M c 14.22; eucharistesas, Lc 22.19) era a oração de gratidão feita antes
da refeição propriamente dita.
Com relação ao vinho, ficamos com a impressão, lendo Mateus e Marcos, que
se trata do vinho que era passado entre todos durante o prato principal, o chamado
“segundo cálice”. Conclui-se, de Lucas 22.20 (cf. IC o 11.25), que esse cálice era
bebido após a refeição ( meta to deipnesai). Era o terceiro cálice, durante o qual se
dava graças depois de terminada a refeição e que, portanto, era conhecido como
o “cálice da bênção”, o “cálice da gratidão” (potesion tes eulogia - IC o 10.16).53
Quando Jesus confere ao pão e ao vinho o significado de seu corpo e de
seu sangue, ele certamente faz isso numa analogia ao que o pai da família fazia
durante a celebração da Páscoa, ou seja, relacionar os elementos da ceia ao êxodo
do Egito. A questão, todavia, é o que Jesus quer dizer com essas palavras aqui,
“isto é o meu corpo”. De acordo com Dalman, Jesus teria dito, ao partir o pão,
304 A v in d a d o R e in o
den huguphi, cuja última palavra pode significar (isto é) “meu corpo” ou (isto é)
“eu mesmo”. Alguns estudiosos preferem este último sentido e sustentam que
Jesus não falou especificamente de seu corpo, mas de sua pessoa, querendo, desse
modo, garantir a seus discípulos a sua presença pessoal durante as futuras cele
brações comunais da Ceia do Senhor.54 Em nossa opinião, essa concepção está
errada. Mesmo se tomarmos a tradução do aramaico sugerida por Dalman como
ponto de partida,55 não é necessário traduzir “isto sou eu mesmo” em vez de “isto
é o meu corpo”. O texto grego, que é o que realmente importa, fala claramente
de sooma, “corpo”, e, portanto, representa outra concepção. Além do mais, o que
é dito acerca do sangue em seguida faz com que seja necessário traduzir “isto é
o meu corpo”.56 Corpo e sangue indubitavelmente ocorrem aqui como os dois
elementos que constituem o ser humano e que são separados na morte. E é da
morte de que se fala nessa passagem, pois o corpo de Jesus é mencionado como
o que é “oferecido por vós” (Lucas) e seu sangue como o que é “derramado em
favor de muitos, para remissão de pecados” (Mateus e Marcos). Tanto o “dar”
quanto o “derramar” se referem à morte iminente de Jesus.57
Esse é o motivo pelo qual Jeremias está perfeitamente correto em ligar as
palavras da última ceia com a terminologia dos sacrifícios.58 Na linguagem do
culto, a carne e o sangue do animal do sacrifício são repetidamente mencionados
e a expressão “derramar sangue” é também frequentemente usada. Além disso, de
acordo com Mateus e Marcos, Jesus se refere ao seu sangue como “meu sangue,
o sangue da aliança”, que é uma alusão óbvia a Êxodo 24.8, onde “o sangue da
aliança” também indica o sangue do sacrifício que era aspergido sobre o povo.
E nesse ponto, surge a questão sobre se Jesus, ao falar de seu corpo e de seu
sangue dessa maneira, indicava a si mesmo como o verdadeiro cordeiro pascal.
Essa opinião é defendida por muitos estudiosos.59 Entretanto, deve ser observado
que uma ligação direta como essa, entre a morte de Jesus e o sacrifício do cordeiro
pascal, não é explicitada. Em primeiro lugar, devemos manter em mente que Jesus
fala do “seu corpo” ao distribuir o pão e não ao servir a carne do cordeiro pascal.
A explicação de Dalman é que não havia um ritual para a distribuição e o comer
o cordeiro da Páscoa, de modo que Jesus não poderia tomar isso como ponto de
partida. Daí, portanto, já por esse motivo, Jesus tinha uma oportunidade melhor
durante o repartir do pão, que era partido e distribuído de maneira solene. Além
disso, o que estava pronto sobre a mesa já não servia como uma representação
adequada do “cordeiro levado ao sacrifício”, ao qual Jesus poderia se comparar,
pois já estava reduzido a um assado saboroso dividido em pedaços, servindo de
repasto festivo e, portanto, algo com o que Jesus dificilmente poderia associar
com seu próprio corpo.60
Não há dúvida de que é possível concluir que a carne do cordeiro posta
sobre a mesa dessa maneira não era apropriada para uma associação com o corpo
A VINDA DO REINO E A CEIA DO SENHOR 305
de Jesus, tanto quanto o pão que era repartido. Ainda assim, é inegável que, na
referência de Jesus ao seu próprio corpo usando o pão, e não a carne, não há uma
relação direta entre sua morte e a morte do cordeiro pascal. Isso é ainda mais claro
quando ele distribui o vinho. Nesse caso, Jesus fala de seu sangue e não faz refe
rência ao sangue do cordeiro pascal e sim ao sangue aspergido no estabelecimento
da aliança. E verdade que foram citados por alguns autores pronunciamentos da
literatura judaica que se referem ao sangue da Páscoa como o sangue da aliança,61
mas tais pronunciamentos são excepcionais e encontrados apenas na exegese dos
escribas.62 Conclusivo é o fato de que, por essas palavras, “isto é o meu sangue, o
sangue da [nova] aliança”, Jesus claramente cita as palavras do estabelecimento
da aliança no Monte Sinai (cf. também Hb 9.20)63 e não há qualquer alusão ao
sangue do cordeiro pascal sacrificado.
De tudo isso transparece que as palavras institucionais da ceia são inde
vidamente esticadas ao serem interpretadas assim: “Jesus diz ‘meu sangue é a
verdadeira carne pascal, meu sangue é o verdadeiro sangue pascal, eu sou o
verdadeiro cordeiro pascal’”.64
Em outras partes do Novo Testamento, Jesus é claramente indicado e ex
plicitamente referido como o verdadeiro cordeiro pascal (lC o 5.7; Jo 19.36; cf.
também Jo 1.29,36; lPe 1.19; Ap 5.6; 12.11) e suas palavras na refeição pascal
certamente justificam essa designação. Porém, apesar de todas essas considerações,
deve ser afirmado que, em especial, as palavras “isto é o meu sangue, o sangue
da [nova] aliança” colocam a morte de Jesus numa perspectiva mais ampla do
que meramente aquela da oferta pascal. Por esse motivo, a morte de Jesus deve
ser vista não apenas como o cumprimento da morte do cordeiro pascal, mas, de
modo mais geral, como o cumprimento de todo o culto sacrificial do Antigo
Testamento, o qual tornava possível a remissão de pecados do povo e a vida com
Deus na aliança. Esse caráter geral da morte expiatória de Jesus também trans
parece da alusão que ele faz a Isaías 53, ao dizer que esse sangue é “derramado
em favor de muitos”, e, dessa maneira, abrindo o caminho para a “nova aliança”
anunciada por Jeremias e Ezequiel. O pensamento grandioso e central é que a
morte de Jesus é o sacrifício eminentemente expiatório, o cumprimento de tudo
o que havia sido simbolizado como tal debaixo da antiga aliança. E o fruto desse
sacrifício expiatório abrangente e que cumpre todas as coisas que ele dá a comer
e a beber a seus discípulos como seu corpo e seu sangue.
Tudo nesse contexto depende de uma perspectiva correta da associação
entre o sacrifício e o que se come e bebe na mesa da comunhão. Nesse sentido, o
significado da Ceia do Senhor é inteiramente determinado pelo caráter da refei
ção pascal. O que era verdadeiro quanto à Páscoa, agora se aplica ao significado
“realizado” da Ceia do Senhor: é um repasto sacrificial, o repasto sacrificial num
sentido preeminente, isto é, aquele da nova aliança. Isso quer dizer que o comer
306 A v in d a d o R e in o
mesmo modo que a ceia pascal também não é. Entretanto, é uma ceia sacrifi-
cial. O sacrifício é o pressuposto e não o conteúdo da ceia. No repasto pascal,
o cordeiro não era morto outra vez (mas comido), da mesma maneira que Jesus
não se ofereceu num sentido parabólico na última ceia. Ele somente assegura
a seus discípulos, da maneira mais vivida, quanto ao fruto do sacrifício de sua
vida. Enquanto a última ceiafor vista na perspectiva da ceia pascal, não pode haver
dúvida acerca do significado das ações deJesus quanto ao pão e o vinho. E verdade que
Van der Leeuw não admite que a última ceia de Jesus tenha sido uma refeição
pascal,67 apesar das inegáveis declarações do evangelho. Porém, mesmo sem essa
estrutura (a qual, entretanto, longe de ser um mero palco, é, pelas evidências, o
próprio fundamento do relato da Ceia do Senhor), uma exegese cuidadosa das
palavras de Jesus jamais poderia inferir delas que, durante a Ceia, Jesus estava se
sacrificando “sob a forma de uma alegoria profética”.
Quando Jesus diz “isto é o meu corpo”, este touto não está de maneira alguma
se referindo ao que está partindo, mas ao que está distribuindo. A referência não
é ao ato de partir, mas ao alimento recebido das mãos de Jesus, “sob a forma de
uma alegoria profética”. Isso tem um significado fundamental para a compre
ensão da atitude de Jesus em relação ao pão. E verdade que, mais tarde, o partir
do pão foi também incorporado ao simbolismo, significando “o partir do corpo
de Cristo”.68 M as é muito duvidoso que essa extensão do simbolismo seja eficaz
e significativa. De nada adianta recorrer ao relato de ICoríntios 11.24, “que é
partido por vós” [assim na versão rev. e corrig.],pois essa não é uma interpretação
autêntica, pois é óbvio que a palavra “partido” não é original.69Além disso, o partir
do pão não sugere de modo algum o rasgar violento de um corpo humano. Era,
ao contrário, a ação costumeira de um pai de família a cada refeição. O pão não
era servido em fatias, era partido em pedaços. E mais, a ideia de “partir” a carne
ou o corpo era totalmente estranha à terminologia sacrificial. A ação sacrificial
consistia no derramar do sangue, não em rasgar a carne sacrificial. E, finalmente,
em outro lugar do evangelho é declarado de maneira enfática que, na morte de
Jesus —exatamente como na morte do cordeiro pascal - “Nenhum de seus ossos
será quebrado” (Jo 19.36). Porém, mesmo que alguém fosse sustentar que esse
“quebrar” pode se aplicar de maneira significativa ao que ocorreu com o corpo de
Jesus, é inegável que, na última ceia, esse simbolismo não foi expresso nas palavras
a respeito do pão. Portanto, está fora de questão falar de um ritual sacrificial.
Essa declaração se aplica ainda mais claramente ao vinho do que ao pão.
Quando Jesus diz “isto é meu sangue, o sangue da [nova] aliança, que é derramado
em favor de muitos”, essa declaração não pode ser uma referência ao colocar o
vinho na taça, mas somente à distribuição do vinho como o sangue de Cristo. E
isso pela simples razão de que colocar vinho numa taça não pode ser denominado,
linguisticamente, como um “derramar” ( ekkein).70 Quando Van der Leeuw
308 A v in d a d o R e in o
escreve que Jesus “derramou” o vinho como o sangue da nova aliança e infere
disso que, em essência, ele estava se sacrificando na ceia, ele está simplesmente
transferindo as suas próprias ideias para o texto original, e isso de modo radical.
Não há a menor sugestão na passagem de um “derramar” simbólico do vinho na
taça. O paralelismo entre colocar vinho numa taça e derramamento de sangue é
totalmente estranho ao texto e ao uso lingüístico normal. Além disso, é possível
inferir-se do ritual pascal que o vinho j á havia sido colocado na taça quando Jesus
aplicou a figura do seu sangue a ele.71 O que é simbolizado, portanto, não é a
autoentrega de Cristo, mas seus frutos para a vida de seus seguidores.72 Não é o
altar, mas é a mesa que caracteriza o que ocorre na Ceia do Senhor. O sacrifício
pressupõe o comer e o beber, mas ele próprio não pertence a essa “alegoria”.
Questionar isso não pode ser justificado nem por um momento, nem com base
na ceia pascal e muito menos com base numa exegese cuidadosa das palavras
ligadas com o pão e o vinho.
Esse é também o motivo pelo qual a tentativa repetida de se estabelecer uma
ligação entre a Ceia do Senhor e a encarnação é totalmente estranha ao mundo
de pensamento dos relatos sinóticos,73 pois “corpo” e “sangue” não representam,
aqui, em nenhum sentido, a carne como modo de existência do Verbo divino,
de modo que os que participam de seu corpo e sangue participam igualmente
de sua existência divino-humana. O que é transmitido aos discípulos de Cristo
nesse caso, em seu corpo e sangue, é a autoentrega dele à morte, nada mais. Esse
é o motivo pelo qual consideramos um equívoco supor que há alguma coisa a
mais no corpo e no sangue da Ceia do Senhor do que “os frutos da crucificação,
propiciação e remissão de pecados”. Alguns supõem que a realidade escatológico-
pneumática é também referida aqui, consistindo “na carne e no sangue do próprio
Cristo”, e não simplesmente “no seu fruto”,74 pois outra vez o corpo e o sangue
de Cristo ocorrem aqui como tais, não na sua condição terreno-temporal, nem
em seu estado glorificado, de tal modo que, após a ascensão de Cristo ao céu, o
comer e o beber de sua carne e seu sangue não podem ser considerados como o
recebimento de seus seguidores ou a entrada deles na realidade escatológica da
glorificação de Cristo. O ponto de vista a partir do qual o corpo e o sangue do
Senhor são considerados, quanto a isso, é o que ocorre em sua morte. Tudo o
que vai além disso, tudo o que supostamente indica o corpo e sangue de Cristo
como seu modo terreno ou celestial de existência, é uma metabasis eis alio genos,
uma representação equivocada da situação da Ceia do Senhor como uma refeição
sacrificial, bem como uma representação incorreta tanto da conexão entre essa
ceia e a Páscoa quanto da conexão entre a ceia e a refeição da aliança. A exegese
das palavras institucionais tem que ser determinada por essas ligações.75
O propósito que Jesus queria alcançar pode ser também inferido desse caráter
indisputável e claro de sua atitude em relação à última ceia. Ele ressaltou para seus
A VINDA DO REINO E A CEIA DO SENHOR 309
Por outro lado, nenhuma objeção real pode ser levantada contra a concepção
simbólica81 das palavras institucionais. Essa concepção não somente é óbvia na
situação em que essas palavras foram proferidas e na qual os discípulos seriam
incapazes de anexar-lhes qualquer outro sentido na presença corpórea de Jesus
- ela também está totalmente de acordo com a maneira gráfica, imaginativa e
simbólica de Jesus falar, a ponto de se ter mencionado corretamente, aqui, nesse
contexto, as suas parábolas.82 Além disso, o fato de que o texto grego tem estin
(“é”) não altera nada aqui. O verbo grego estin, de fato, pode expressar a identi
dade do sujeito e do atributo,83 mas isso não diminui o fato igualmente inegável
que estin, do mesmo modo, tem um significado comparativo ou simbólico (Mt
13.38-39 tpassim). Não existe a menor necessidade de que esse pronunciamento
seja precedido por uma comparação84 (cf. M t 5.13). E quanto ao argumento de
que pão e vinho não podem ter um sentido simbólico nesse caso, mas somente
um significado “realístico”, visto que não são símbolos naturais para a carne e
o sangue de uma pessoa,85 pode-se somente inferir dessa última circunstância
que devemos considerar primariamente o ponto de comparação. Quanto à “sua
natureza”, o sal não é um símbolo para o homem, mas, considerando um ponto
especial de similaridade entre ambos, Jesus disse ao povo, “Vós sois o sal da terra”
(M t 5.13).
Todavia, toda a narrativa da instituição da Ceia do Senhor mostra que Jesus
não estava simplesmente fazendo uma comparação entre o pão e seu corpo e entre
o vinho e seu sangue. Essas palavras foram acompanhadas de gestos significativos
(p. ex., a distribuição), os quais devem também ser incorporados no simbolismo,
bem como a exortação para que tomassem e comessem e bebessem. Pão e vinho
não são o corpo e o sangue de Jesus pelo simples motivo de que, objetivamente
e à parte desse gesto, eles têm alguma semelhança com seu corpo e seu sangue
dentro do escopo dessa ceia - mas por causa de seu uso ordenado por Jesus e
seguido pelos discípulos. Isso significa que eles são o que são porque Jesus dis
tribui esse alimento aos discípulos nessa situação e nesse sentido específico. E
essa é a razão pela qual os discípulos recebem seu corpo e seu sangue de maneira
simbólica no pão e no vinho. Assim, pão e vinho não somente descrevem o corpo e
o sangue de Jesus; eles tambémfuncionam de outra maneira, isto é, representando-os.
Portanto, quem recebe um recebe também o outro. Sem dúvida, isso só ocorre
da única maneira pela qual seu corpo e seu sangue podem ser recebidos, isto
é, de acordo com sua natureza, pois o corpo e o sangue de Jesus não são, obvia
mente, comida e bebida que podem ser tomadas com nossa boca física. Tudo
permanece simbólico, mas de uma maneira que esse gesto simbólico está ligado
com a realidade em virtude da ação realizada com pão e vinho como símbolos
do corpo e do sangue de Cristo. A exegese católico-romana e a antiga exegese
luterana erram não por causa da relação muito próxima que estabelecem entre
312 A v in d a d o R e in o
relação entre o signo e o que é significado e que, para o uso correto desse termo,
é da maior importância conhecermos o conteúdo, o res, do que é representado.
Aqui devemos reverter ao que foi dito na seção anterior a respeito do corpo e do
sangue de Jesus. Pois é considerado que, na Ceia do Senhor, Jesus sacrificou a
si mesmo de um modo prefigurativo e antecipatório. E compreensível que, na
repetição do gesto com pão e vinho, o sacrifício de Cristo como uma ação seja
considerado a cada vez como sendo uma representação real e presente. Essa é,
portanto, a opinião de muitos autores recentes, que começaram com a ideia da
Ceia do Senhor como um sacrifício, como é feito especialmente pela maioria de
teólogos romanistas e romanizadores mais recentes.
Em oposição a isso, devemos manter que, dentro do escopo dos relatos da
instituição da Ceia do Senhor, o conceito “representação” não pode se referir a
qualquer ação sacrificial pela qual Cristo sacrificou-se a si mesmo. Só pode ser
aplicado ao que é distribuído aos crentes, isto é, ao fruto, à propiciação, à remis
são de pecados efetuada pelo sacrifício de Cristo. Esse é o significado inegável e
central das palavras “meu corpo” e “meu sangue”. E o que pode ser compartilhado
num repasto sacrificial, como o alimento da redenção, como a taça da salvação.
Além disso, essa é a razão pela qual qualquer concepção dessa representação
como sendo baseada num novo ato divino de criação que tem sua forma básica
na encarnação do Logos e que transforma os elementos do pão e do vinho da
Eucaristia como sendo portadores da presença real da obra de salvação de Cristo,89
seria uma intrusão no evangelho de pensamentos de outro mundo. A Ceia do
Senhor se preocupa apenas com uma segurança real de salvação, não com uma
concepção presente ou atualização (para evitar o termo “repetição”) do fato único
da salvação. Não éa aquisição, mas a aplicação da salvação que é representada. Corpo
e sangue - e não devemos ir mais além - somente ocorrem na Ceia do Senhor
como o que pode ser compartilhado pelos fiéis. Essa é a única coisa na Ceia do
Senhor capaz de prolongação. A Ceia do Senhor representa salvação e a distribui
em virtude da palavra autoritativa e messiânica de Jesus e não porque, de um
jeito ou de outro, significa uma extensão in mysterio da encarnação do Logos
pelo poder de um ato divino de criação. Portanto, pertence ao milagre da obra
de Cristo, não ao milagre da sua pessoa.
Finalmente, isso também indica o fundamento da realidade do corpo e san
gue de Cristo concebido no sentido acima e a garantia da relação entre símbolo e
realidade. A sua explicação não se encontra na qualidade dos elementos do pão e
do vinho, nem na transformação deles no corpo e no sangue, nem ainda na ligação
material entre eles. Também não é permissível pensar de maneira subjetiva que a
associação real entre o pão e o vinho e o autossacrifício de Cristo se baseiam na
fé daqueles que recebem o pão e o vinho. Os discípulos são exortados a “tomar”,
“comer”, e “beber” e apenas nesse “tomar” eles participam do corpo e do sangue
314 A v in d a d o R e in o
daquele dia ou da hora ninguém sabe; nem os anjos no céu, nem o Filho, senão o
Pai” (v. 32 e paral.) e, em outro contexto, “é necessário que primeiro o evangelho
seja pregado a todas as nações” (Mc 13.10 e paral.).
Isso mostra que o “material” escatológico que nos é dado nos Evangelhos
sinóticos (mesmo à parte do que foi dito em capítulos anteriores sobre a presença
do reino dos céus) tem muitos aspectos. Portanto, não é de admirar que a discussão
sobre tudo o que se relaciona com esse material escatológico dos Evangelhos,
em geral, e a conhecida Nah-erwartung, em particular, forme um complexo
intricadamente entretecido. Tentaremos apontar alguns dos esboços principais
dentro dos quais este debate sobre a escatologia está sendo conduzido, em vez de
fornecer um levantamento detalhado dos mais diversos pontos de vista.
1. A posição mais radical quanto à pregação escatológica de Jesus é a de
fendida pelos que pensam que os Evangelhos, como estão, não nos fornecem
um relato confiável nem da vida e nem da pregação de Jesus. A complexidade do
material escatológico deveria, portanto, ser considerada como fruto da ação da
igreja posterior. Apenas alguns dos pronunciamentos de Jesus é que podem ser
considerados como históricos, ou seja, aqueles que tratam da chegada do reino
num curto período de tempo (os ditos específicos sobre o reino como estando
às portas, próximo). D e acordo com essa posição, as predições sinóticas sobre a
morte e a ressurreição de Jesus são de natureza secundária, isto é, foram produzidas
pela igreja, a qual retroinjetou nas palavras de Jesus o curso não escatológico da
História. Devido a isso, a tradição evangélica herdou um caráter internamente
contraditório. Esse ponto de vista, defendido especialmente na obra de Wrede,
Das Messiasgeheimnis in den Evangelien,5 é também defendido, embora de maneira
ligeiramente modificada, por autores como Klostermann6 e Bultmann. Nessa
concepção, o problema da correlação entre o Nah-erwartung e os pronunciamentos
sobre a aproximação da morte e da ressurreição de Jesus é eliminado simples
mente porque esses autores consideram estes últimos pronunciamentos como a
“teologia da igreja”. O mesmo pode ser dito, mutatis mutandis, com respeito ao
apocalipse sinótico, como é conhecido (Mc 13). A posição de Bultmann é que,
nesse caso, o que temos é um apocalipse judaico que foi adaptado de maneira
cristã e atribuído a Jesus.7 Ele se vale de uma hipótese formulada no século 19
(por Colani) que tem encontrado, desde então, muitos adeptos.8 De acordo com
essa hipótese, o Jesus histórico teria se abstido de qualquer indicação de sinais
prognósticos na natureza ou no mundo das nações (como descrito em M c 13),
bem como de uma descrição do último julgamento, da ressurreição e da glória
vindoura. Tudo se funde no pensamento único de que Deus, então, reinará, e que
essa realidade está próxima, às portas.9
2. Uma segunda posição tenta estabelecer uma relação estreita entre a
expectativa de um fim rápido e as profecias de Jesus a respeito de sua morte e
O FUTURO DO REINO DOS CÉUS 319
ressurreição. De acordo com ela, a pregação de Jesus que nos foi transmitida nos
Evangelhos tem mais valor histórico do que a interpretação mencionada acima,
no item 1. Encontramos a forma mais importante dessa opção na perspectiva do
pai do movimento da escatologia consistente, Albert Schweitzer. De acordo com
esse autor, é possível observar que há um desenvolvimento, na expectativa de Jesus,
na proximidade da chegada do reino de Deus. Em primeiro lugar, supõe-se que
Jesus já esperava a chegada do reino escatológico de Deus durante o tempo de
sua própria vida, isto é, durante o período em que ele enviou seus discípulos pela
primeira vez. Schweitzer baseia essa opinião em Mateus 10.23, que ele interpreta
como um anúncio de que o reino teria início durante a missão dos discípulos.
Porém, essa expectativa de Jesus não se concretizou - o primeiro adiamento. A
partir desse momento, Jesus retirou-se e passou a inclinar-se gradualmente para
a expectativa de que o reino viria somente se fosse forçado a isso, por sua própria
paixão e morte (o grande Drangsal, isto é, angústia ou sofrimento messiânico).
Assim, de modo surpreendente, Schweitzer faz a associação entre as declarações
de Jesus acerca da vinda do reino e aqueles acerca de sua morte próxima. Esse é
o motivo pelo qual, de acordo com Schweitzer, a perspectiva de Jesus quanto ao
futuro é restrita à sua paixão que se aproximava e à sua conseqüente morte. Essa
morte seria simultânea com a parousia do Filho do Homem. Assim, Jesus assumiu
a grande tarefa de sua paixão e morte para obter sua dignidade messiânica. E
nesse sentido que deveriam ser entendidos os pronunciamentos nos quais um
período antes do fim parece ser claramente indicado (Mc 9.1; 13.30; M t 23.39;
26.64). Partindo dessa Nah-erwartung, na qual, na mente de Jesus, a vinda do
reino coincidiria com sua morte e glorificação, Schweitzer dá a sua bem conhecida
interpretação da vida de Jesus como um todo e de todas as diferentes facetas de
sua pregação, como já explicamos em capítulos anteriores em diversas ocasiões.
M as seu ponto de partida é a expectativa da chegada iminente do reino no sentido
da apocalíptica judaica posterior. Isso se aplica à escatologia consistente como
um todo, bem como à explicação do desenvolvimento do cristianismo primitivo
e à história do dogma baseada nessa explicação, conforme descrito na grande
obra de Martin Werner.
Fica claro que, nessa interpretação, não resta mais espaço para aqueles
pronunciamentos dos Evangelhos que falam claramente de um tempo depois da
morte de Jesus. Isso se aplica especialmente ao assim chamado apocalipse sinótico,
na medida em que o mesmo pressupõe um interregno entre a morte de Jesus
e a parousia do Filho do Homem e, também, obviamente, às palavras de Jesus
sobre a ressurreição. A Nah-erwartung fica restrita à morte de Jesus. É aqui que
Schweitzer procura o critério para a autenticidade da tradição sinótica.10
Apesar de esse impressionante “experimento” exegético consistentemente
escatológico (como o próprio Schweitzer o chamava) ter tido, no geral, poucos
320 A v in d a d o R e in o
reino, mas o fato de que ele já veio. Esse wzo/z/básico foi elaborado especialmente
nos escritos de Cullmann, Kümmel, Schniewind, Michaelis, entre outros.
E óbvio também que, nessa perspectiva, a morte e a ressurreição de Jesus
não precisam mais ser simplesmente analisadas em sua relação com a parousia e o
futuro do reino. Muito pelo contrário, a morte e a ressurreição de Jesus formam a
conclusão (provisória) e a base do cumprimento que começou com sua vinda. Do
mesmo modo, o período entre a morte de Cristo e a parousia deixa de ser uma
“complicação” da Nah-erwartung das mais difíceis de explicar. Esse ínterim, ao
contrário, deve ser avaliado como o espaço mais indispensável para a realização e
a continuação do cumprimento já inaugurado. Podemos até mesmo dar um passo
adiante nessa posição totalmente diferente e dizer que os problemas relacionados
com a expectativa do futuro mudaram totalmente, pois, agora, o que escandaliza
ou levanta suspeita de ser “inautêntico” ou “a teologia da igreja”, etc., não é que
essa expectativa do futuro causa tensão com a Nah-erwartung ou que está em
conflito com ela. E muito mais o cumprimento já iniciado pela vinda de Jesus que
domina e, portanto, as passagens que parecem falar do fim de todas as coisas num
futuro próximo são a causa da dificuldade de uma perspectiva abrangente dos
pronunciamentos acerca do futuro. O problema, agora, é delimitar o tempo do
mundo dentro “desta geração” (Mc 13.30), e não da igreja, nem do apostolado,
nem do batismo, e nem da Ceia do Senhor.
Há, basicamente, duas soluções para esse problema.
coisas formam a verdade básica do evangelho, mas que essa verdade está muito
mais revestida no fato de que na pessoa de Jesus, o Cristo, o cumprimento já teve
início e a consumação do reino dos céus já começou.
b. As concepções mencionadas acima, na seção b, serão discutidas em mais
detalhes quando tratarmos dos assim chamados pronunciamentos sobre o terminus
temporal (cf. § 48 abaixo). No contexto presente, tomaremos como suficiente a
citação de Karl Barth, que, comentando o aparecimento de Jesus a seus discí
pulos depois da sua ressurreição e as palavras que ele disse naquela ocasião (Mt
28.16-20), escreveu o seguinte: “Tornou-se evidente que a petição Venha o teu
reino’, na oração do pai-nosso, não foi em vão; que esta geração’, isto é, a geração
de então, viva, certamente não passaria ‘sem que tudo isto aconteça’, como Jesus
disse em Marcos 10.30. Tornou-se claro que era verdade que alguns daqueles
que estavam ao redor de Jesus não passariam ‘pela morte até que vejam o ter
chegado com poder o reino de Deus’ (Mc 9.1). Ficou evidente que os discípulos
não terminariam de passar por todas as cidades de Israel antes de verem o Filho
do Homem voltar (M t 10.23). Agora, o Filho do Homem tinha chegado, agora
‘tudo’ tinha acontecido”.38Aqui, o problema da Nah-erwartung foi totalmente
eliminado. O que Jesus pregou como estando próximo, às portas, cumpriu-se de
fato, por meio da sua ressurreição e depois dela.
Contra o pano de fundo dessa polêmica a respeito da escatologia da qual
conseguimos apenas mencionar alguns dos principais elementos, tentaremos agora
discutir os complicados materiais sob alguns pontos de vista resumidos.
Com base em tudo o que foi estabelecido nos capítulos anteriores deste livro
a respeito do significado geral da pregação de Jesus acerca do reino dos céus, não
podemos senão rejeitar, como uma falsa representação do evangelho, as opiniões
radicais que consideram como originais, bem como a visão do próprio Jesus apenas
as passagens nos Evangelhos sinóticos que estão de acordo com uma expectativa
da chegada iminente do fim do mundo. Os representantes desses pontos de vista
sujeitam o evangelho ao conhecido método da crítica da forma, a qual se tornou
influente mediante a obra importante de Bultmann.39 Esse método requer que
se estabeleça, em primeiro lugar, a autenticidade de cada dito, parábola, etc., que
serão utilizados, antes que se possa expressar uma opinião quanto ao propósito da
pregação de Jesus. Em nossa opinião, não há a menor dúvida de que essa crítica
aplicada ao evangelho cria, erroneamente, a impressão de que ela opera com um
critério que deriva exclusivamente daforma do material da tradição, pois a decisão
quanto ao que deve ser considerado como original ou como uma forma secundária
326 A v in d a d o R e in o
hipótese é inaceitável para nós, visto que as profecias de Jesus quanto à sua pai
xão e morte estão longe de representar um gênero helenístico de teologia, já que
são totalmente orientadas para o Antigo Testamento (a profecia do Servo do
Senhor), como já estabelecemos detalhadamente acima.45 De acordo com nossa
convicção, a característica típica da autorrevelação de Jesus foi o próprio fato de
que ele identificou-se como o Filho do Homem de Daniel 7 e com o Servo do
Senhor de Isaías.
Não se pode negar a ocorrência de duas figuras diferentes nem o fato de que
as profecias que Jesus aplicou a si mesmo, desde o início, mostram duas espécies
distintas de figuras. Nas profecias escatológicas sobre o Filho do Homem, o
tema da paixão, morte e ressurreição está ausente. E, respectivamente, o que é
dito sobre a paixão, morte e exaltação do Servo do Senhor em Isaías 53 é de uma
natureza diferente da transferência divina de poder para o Filho do Homem em
Daniel 7. Jesus jungiu essas duas figuras nessas palavras paradoxais e misteriosas,
que o Filho do Homem (Dn 7) deve “ser rejeitado”, “sofrer muito”, “ser morto”
(Is 53) e ressuscitar dos mortos depois de três dias. Esse era o elemento novo e
“revolucionário” em sua autorrevelação messiânica. Ele transcendeu em muito
o ideal messiânico nacional (M t 22.41-46)46 e, por outro lado, deixou claro que
o caminho do Messias passava pelo sofrimento e pela morte, pois, o Filho do
Homem “não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate
por muitos” (M t 20.28).
Isso não significa, entretanto, que a combinação dessas duas figuras na autor
revelação de Jesus como o Filho do Homem e o Servo do Senhor é transparente
à primeira vista e que essas conexões factuais e temporais podem ser descobertas
de modo exato. Muito pelo contrário, há um véu cobrindo o anúncio messiânico
de Jesus feito por ele mesmo não somente para os olhos dos “de fora”, aos quais
não foi “dado conhecer os mistérios do reino de Deus” (Mc 4.11), mas também
aos olhos dos discípulos. Essa última declaração se aplica especialmente ao que
podemos chamar de uma combinação de Daniel 7 e Isaías 53. Quando os dis
cípulos professaram a glória messiânica de Jesus pela boca de Pedro, o anúncio
de sua paixão foi ininteligível para eles (M t 16.21ss; 17.23; M c 9.32; Lc 9.45;
Lc 18.34). Essa falta de discernimento da parte dos discípulos (Lc 24.25) es
tava relacionada não somente com a paixão e a morte iminentes de Jesus, mas
também com a sua ressurreição. Em Marcos 9.10-11, lemos que, quando Jesus
anunciou a sua ressurreição, os discípulos ficaram “perguntando uns aos outros
que seria o ressuscitar dentre os mortos”. Isso não pode significar que eles nunca
tinham ouvido falar da ressurreição geral dos mortos (cf. M c 12.18-27), mas
simplesmente que eles não compreenderam o que significava “que o Filho do
Homem se levantaria de entre os mortos”.47 E então eles perguntaram a Jesus se
Elias não deveria vir “primeiro” (isto é, antes de sua ressurreição). Aparentemente,
330 A v in d a d o R e in o
eles começaram com a ideia de que essa “ressurreição” dificilmente poderia sig
nificar outra coisa senão o que haveria de acontecer na consumação de todas as
coisas, isto é, a última e grande ressurreição. E isso porque, na expectativa judaica
do futuro, Elias estava ligado à vinda do Messias. Consequentemente, eles não
tinham qualquer noção da relação entre a ressurreição de Cristo e a parousia. E
isso aparece não somente em Marcos 9.9-10 e Mateus 17.9-10, mas fica evidente
também pela surpresa deles diante do fato da ressurreição de Jesus de entre os
mortos, como lemos nos Evangelhos. Tudo isso prova que a combinação da morte
e da ressurreição do Servo do Senhor com a parousia do Filho do Homem não
havia sido feita nas profecias e, portanto, nunca foi incorporada na expectativa
judaica do futuro e nem os próprios discípulos de Jesus a compreenderam e a
aceitaram até que ele ressuscitou de entre os mortos. No evangelho, essa falta de
compreensão é atribuída não apenas à indisposição dos discípulos, que fez deles
“néscios e tardos de coração para crer tudo o que os profetas disseram” (Lc 24.25),
mas também se deve, aparentemente, ao caráter da autorrevelação de Jesus antes
de sua exaltação.48 Quando Jesus familiariza seus discípulos com a sua paixão,
morte e ressurreição iminentes, é evidente que eles não só não compreenderam
o seu significado, mas que também estavam temerosos de perguntar-lhe sobre isso
(Mc 9.32). O véu permanece sobre a sua morte e esse véu aparentemente deve
ser mantido ali.49 Veja também Lucas 9.45: “Eles, porém, não entendiam isto,
e foi-lhes encoberto para que o não compreendessem;50 e temiam interrogá-lo
a esse respeito”51 (cf. Lc 18.34). Todas essas coisas são uma indicação de que o
pleno conhecimento do futuro lhes estava sendo negado, inclusive da parte de
Jesus (cf. Jo 16.12). Somente depois da ressurreição é que Jesus “lhes abriu o
entendimento” (Lc 24.45).52
Essas coisas contêm indicações importantes do que estamos discutindo aqui.
Para começar, há, de fato, a questão acerca de duas “linhas de pensamento” nas
profecias de Jesus acerca de seu próprio futuro. Uma delas termina na sua morte
e ressurreição, e a outra, em sua parousia. Essas duas linhas de pensamento têm,
cada uma, origem própria e permanecem paralelas em muitos casos. M as não
devemos, aqui, tratá-las como um antinômio, nem devemos pensar que ressur
reição e parousia são duas palavras para a mesma coisa. Muito pelo contrário,
a combinação da glória de Cristo como Filho do Homem com sua paixão e
morte permanece oculta enquanto ele não sai da sepultura. E os discípulos, de
qualquer modo, não compreendiam como uma dessas linhas de pensamento (a
da autorrevelação de Jesus de acordo com Is 53) e a outra (a de Dn 7) se com
binavam entre si. O intermezzo inesperado e incompreensível entre o presente e
o futuro grandioso era o grande drama da sua paixão e morte, juntamente com
sua ressurreição. E verdade que todas as declarações de Jesus sobre sua paixão e
morte são acompanhadas de declarações sobre sua ressurreição ao terceiro dia.
O FUTURO DO REINO DOS CÉUS 331
Esse é o motivo pelo qual a questão acerca da parousia não é mais a única e pelo
qual a pregação do evangelho do reino não é mais primariamente orientada para o
futuro, mas para o que já aconteceu em Jesus Cristo, especialmente em sua morte
e ressurreição como o cumprimento do tempo, da lei e das profecias.
Isso tudo é a primeira grande revelação trazida pela ressurreição referente
à manifestação do mistério na pregação prévia de Jesus.
Entretanto, a segunda revelação, que pode ser considerada como “igual à
primeira”, é que, na morte e na ressurreição de Jesus, a “segunda linha” que encon
tramos em suas profecias acerca do futuro (referentes à sua parousia) cruza com a
primeira (que parece ser restrita apenas à ressurreição). A ressurreição manifesta o
que estava oculto no tempo anterior a ela, a saber, que existe uma coerência estreita
e indissolúvel entre a exaltação de Jesus como o Servo sofredor do Senhor e sua glória
como o Filho do Homem investido de toda a autoridade no céu e na terra.
Essa coerência é encontrada em passagens como Atos 2.36, a qual é citada
frequentemente por declarar explicitamente que Deus exaltou Jesus à sua mão
direita como resultado da ressurreição e que o tornou Senhor e Cristo. O que é
dito aqui, isto é, que a ressurreição significou a investidura de Cristo de poder de
acordo com Daniel 7, é ainda mais claramente expresso na declaração de Jesus
depois da sua ressurreição: “Toda a autoridade me foi dada no céu e na terra”
(M t 28.18). Essa é uma referência clara à profecia de Daniel 7.14, não apenas
com relação ao fato, mas pela semelhança das próprias palavras. A ressurreição
não é somente a exaltação do Servo do Senhor, que teve que sofrer muito e ser
rejeitado, mas ela também revela que opoder do Filho do Homem se baseia totalmente
na entrega voluntária do Servo do Senhor. Isso já prefigura o futuro grandioso, a
“vinda nas nuvens”, pois, nas palavras de Jesus na ressurreição, já há um eco da
harmonia entre “céu e terra” pela qual ele ensinou seus discípulos a orar (M t
6.10). E verdade que, já durante sua vida terrena, o poder do Filho do Homem
foi colocado à disposição de Jesus (M t 9.6, etc.), mas as palavras “me foi dada”
(aoristo: edotheí) indicam a mudança que aconteceu no seu modo terreno de
existência como o Messias. O seu status e glória estão, agora, de acordo com o
que foi dito em Daniel 7 acerca do Filho do Homem, ao qual, também, “foi-
lhe dado domínio, e glória, e o reino”, quando ele foi ao Ancião de Dias com as
nuvens do céu.54
Além disso, em sua morte e depois da sua ressurreição de entre os mortos,
vieram os sinais da catástrofe do mundo e da palingênese (regeneração) que
ocorreriam na parousia do Filho do Homem. O Templo é julgado (“o véu do
santuário se rasgou”), o movimento escatológico do mundo é manifesto (“tremeu
a terra, fenderam-se as rochas”) e o ressurgir dos mortos é visto (“muitos corpos
de santos, que dormiam, ressuscitaram”, M t 27.51-53, cf. também v. 45: “houve
trevas sobre toda a terra”).55 Todos esses acontecimentos apontam claramente
334 A v in d a d o R e in o
(Mc 10.29-30). É evidente, também, que haverá um poder benéfico para protegê-
los nesta vida temporal enquanto eles obedecerem aos mandamentos de Jesus e
os anunciarem (M t 5.13; Lc 14.34-35; M c 9.50); e, com essa perspectiva, eles
devem pregar o evangelho a todas as nações (M t 28.28). Todavia, não há qualquer
promessa de que eles conseguirão cristianizar o mundo inteiro nem quaisquer
perspectivas de um reino teocrático. Ao contrário, a ênfase recai na necessidade
de perseverar em meio às aflições (Mt 10.22; 24.13; M c 13.13; Lc 21.19), na
perseverança na oração apesar da falta aparente de justiça (Lc 18.1-8), na vigilância
(M t 24.44; 25.13) e na fidelidade e sobriedade (Lc 21.34ss.).
Estreitamente ligados a isso, a vida e o destino dos discípulos e da igreja
são repetidamente colocados à luz escatológica. A vinda do Filho do Homem
é o pano de fundo que controla a totalidade da luta e das dificuldades deles. E
o seu consolo em épocas de perseguição (M t 10.23), o segredo de suas orações
constantes (Lc 18.1,8), o motivo de sua perseverança (M t 10.22) e o incentivo
à fidelidade e vigilância (Lc 21.36).
Não há dúvida de que nada disso anula a tarefa dos discípulos descrita tão
claramente em outros lugares. Além do mais, a norma de acordo com a qual eles
devem viver permanece a mesma. Nenhuma “ética do ínterim” ou “legislações
excepcionais” os proíbe de serem fiéis à vida, à terra e à cultura. Permanecem
como guia, de maneira inalterada, “a Lei e os Profetas” que Jesus sempre defendeu,
isto é, a lei de Deus, o Criador e Preservador do mundo, a qual foi dada para a
manutenção e o desenvolvimento da vida. Em tudo isso, o evangelho não só é
livre da tendência de depreciar a vida, como a escatologia consistente supunha,
mas, pelo contrário, ele aceita a vida durante o tempo que Deus nos deu para
desfrutá-la. De igual modo, ele indica a terra como o território da futura revela
ção de Deus. Entretanto, tudo aqui está sujeito à grandiosa condição do caráter
temporário e passageiro deste mundo e os discípulos aprendem que a vinda do
Filho do Homem é o acontecimento futuro real para o qual devem dirigir seus
passos e sobre o qual devem construir sua esperança e seus desejos.
E impressionante que essa referência repetida à vinda do Filho do Homem,
especialmente nos últimos sermões, como também antes deles, é apresentada
repetidas vezes como algo positivo, imediato e de real importância. Não há, em
lugar algum, qualquer indicação de que essa perspectiva futura vá demorar vários
séculos. Pelo contrário, aqueles que ouvem as palavras de Jesus são confortados
com a segurança de que Deus está “apressando-se” a fazer-lhes justiça (ver Lc
18.7) e eles são advertidos a não relaxarem sua vigilância (M t 25.1ss). Essa co
nexão imediata do futuro grandioso com o presente é o verdadeiro problema da
escatologia sinótica, especialmente se quisermos preservar a unidade do evangelho
e ser totalmente justos para com o tema do cumprimento desenvolvido nos capí
tulos anteriores deste estudo. E verdade que Cullmann, Kümmel, Liechtenham e
0 FUTURO DO REINO DOS CÉUS 337
- de que a vinda do reino em si era algo que poderia ser detectado somente pelo
olhar treinado dos “observadores”.62 Seu surgimento será de tal natureza (im
pressionante) que ninguém precisará de qualquer indicação para saber que ele
chegou e nem terá qualquer dúvida.63
Estritamente falando, essa exegese depende da maneira como as seguintes
palavras, altamente controvertidas,64 são explicadas: “Porque o reino de Deus
está dentro de vós” ou “entre vós” (entos humoon). Isoladas, essas palavras podem
muito bem ser entendidas como uma referência à autoconsciência de Jesus e ser
interpretadas dessa maneira: “O reino de Deus já está presente entre vocês. Quem
tiver olhos para ver não precisa mais ficar em dúvida”. Apesar de essa interpretação
ser bastante plausível dentro do escopo da pregação de Jesus, há uma importante
objeção contra ela. O que segue imediatamente no contexto do evangelho tem a
ver com a situação escatológica, para a qual o evangelista aparentemente achou
seu ponto de contato nos versículos 20 e 21. O que torna esse argumento ainda
mais convincente é o fato de que, nos versículos seguintes, a vinda escatológica do
Filho do Homem é anunciada com a rejeição do mesmo erro (de “Ei-lo aqui” ou
“Lá está”). Nesse contexto, é improvável, como conseqüência, que, nos versículos
20 e 21, Jesus tenha desejado tirar o foco do futuro escatológico e dirigi-lo para o
presente já “cumprido”. Essa conclusão é fruto também do uso do tempo futuro
no versículo 21 (“nem dirão”, Lc 17.21). Esse é o motivo pelo qual, em nossa
opinião, as palavras “porque o reino de Deus está entre vós” certamente se referem
à vinda escatológica do reino, como se conclui do uso da palavra “porque”. Ela
introduz a explicação da razão pela qual eles não dirão “Ei-lo aqui” ou “Lá está!”,
ou seja, quando o reino vier, ele estará no vosso meio, isto é, ele não precisará de
qualquer indicação adicional, pois encherá plenamente o horizonte de vocês. Além
disso, o versículo 24 emprega a imagem de um relâmpago com respeito à vinda
do Filho do Homem. Com frequência, a palavra “repentinamente” é empregada
na exegese dessa passagem,65 mas ela não se encontra no texto e, se empregada,
muda o ponto desse pronunciamento para outra coisa, visto que o foco aqui não é
a maneira súbita da vinda do reino, mas seu caráter inconfundível e dominante.66
Assim, podemos parafrasear a passagem desta maneira: “O reino não virá de um
modo que somente os peritos poderão perceber; nem haverá necessidade de que
digam ‘Ei-lo aqui’ ou ‘Lá está’, pois eis que, quando ele aparecer, estará no meio
de vocês como uma obra grandiosa do poder de Deus!”67
Nessa interpretação de Lucas 17.20-21, fica claramente excluída a questão
da rejeição de “sinais” ou de qualquer proibição quanto a observá-los. Torna-se,
portanto, desnecessário apontar contradição no evangelho quando, em outras
passagens, Jesus fala claramente de “sinais dos tempos” e de acontecimentos indi
cadores da chegada da parousia. Essa passagem em si também não está em conflito
com os ditos seguintes que falam da vinda da parousia de maneira semelhante
340 A v in d a d o R e in o
tenha feito esse sermão escatológico, admite que a profecia de Jesus de que não
ficaria ali pedra sobre pedra que não fosse derribada “não precisava de elaborações
complementares”. Ele se refere a Miqueias e Jeremias, que falaram da destruição
do Templo muito antes de ela acontecer.84
As verdadeiras objeções contra a autenticidade de Marcos 13 se concentram
nos pronunciamentos que descrevem o período final: Marcos 13.7-8 e paralelos
(a comoção entre as nações e os acontecimentos cósmicos); 13.12 e paralelos (a
inimizade entre as pessoas); 13.14-20 e paralelos (a grande tribulação); 13.24,27
e paralelos (a vinda do Filho do Homem). Essas declarações supostamente não
encontram paralelo nos demais relatos das palavras de Jesus. Além do mais,
é sustentado por alguns que eles estão em conflito total com aquelas palavras
de acordo com as quais não se pode saber o dia do Filho do Homem e que o
mesmo haverá de surpreender os que não vigiam e não são sóbrios, conforme é
expresso nas parábolas sobre vigilância que ocorrem no mesmo contexto. Esse
é o motivo pelo qual essas palavras são consideradas como material tradicional
judeu-cristão secundário.85
Em resposta a essa crítica, entretanto, deve-se manter, em primeiro lugar,
que, dentro do escopo de Marcos 13, não há contradição entre a “descrição
apocalíptica do fim” e o chamado à vigilância, pois ninguém sabe o dia e nem a
hora. O significado é simplesmente que, apesar de todos os sinais do fim que se
aproxima, as pessoas continuarão a viver com uma falsa paz na mente e relutantes
quanto a serem convertidas (cf. também Ap 9.20-21) e que se recusarão a levar em
consideração a vinda do Filho do Homem. Além do mais, o desconhecimento do
dia e da hora não é um argumento contra a autenticidade da descrição apocalíptica
dos sinais como tal, como veremos mais adiante,86 pois esse desconhecimento é
apenas com relação ao ponto exato no tempo em que a vinda ocorrerá. Quanto
a essa descrição apocalíptica como tal, não podemos considerá-la como um pro
duto da expectativa judaica posterior a respeito do futuro. Muito pelo contrário,
devemos vê-la à luz da revelação veterotestamentária, com a qual a pregação de
Jesus estava constantemente em harmonia. E certo que não estamos negando
que a literatura apocalíptica judaica posterior contém pontos que podem ser ra
zoavelmente relacionados com a expectativa que Jesus tinha do futuro. Há, nessa
literatura, todo tipo de informação, à qual Jesus poderia ter feito referência, na
medida em que essas informações estejam ligadas com o Antigo Testamento.87
M as é duvidoso que essa ligação possa ser feita em bases suficientes. Basta que se
familiarize com a natureza geral e a tendência desses escritos para que se descubra
a tremenda diferença entre a apocalíptica judaica e o sermão escatológico de
Jesus em Marcos 13 (e paral.). Os quadros bizarros e elaborados da apocalíptica
judaica, bem como as especulações complicadas com respeito à data do fim, eram
completamente estranhos à pregação de Jesus. Por outro lado, é difícil destacar um
344 A v in d a d o R e in o
único traço que ele tenha tomado emprestado da apocalíptica judaica posterior e
não do Antigo Testamento. As próprias partes cuja autoria de Jesus é negada por
constarem aparentemente na apocalíptica judaica estão repletas de alusões aos
profetas do Antigo Testamento e de citações deles. Que nação se levantaria contra
nação (Mc 13.8) é dito também em Isaías 19.2; fomes, catástrofes cósmicas no
fim dos tempos não são mencionadas somente nos livros de Enoque e 2 Esdras,
mas também em passagens como Isaías 8.21ss; 13.13; 24.17; Ezequiel 5.12ss;
Joel 2.30-31 e outros.88 Aparentemente, a expressão “princípio das dores” (arché
oodinoon - M c 13.8) é o terminus technicus dos rabinos, pelo menos no singular,
mas isso também está ligado com o uso do Antigo Testamento (cf. Is 26.17; 66.8;
Jr 22.23; etc.).89 De igual modo, o detalhe acerca da inimizade mútua entre as
pessoas que deveriam ser as mais próximas umas das outras (Mc 13.12 e paral.)
é expresso de maneira a remontar á profecia de Miqueias 7.6; e a expressão “o
abominável da desolação” (Mc 13.14 e paral.) é derivada de Daniel;90 a fuga dos
moradores da Judeia para as montanhas se encontra com mais certeza no Antigo
Testamento do que na literatura judaica.91
As palavras que descrevem a “grande tribulação” em Marcos 13.19 (e paral.),
por exemplo, “como nunca houve desde o princípio do mundo, que Deus criou,
até agora”, são encontradas não apenas no livro apócrifo A Ascensão de Moisés 8.1,
como também, de maneira levemente modificada, em Daniel 12.1 (na Septu-
aginta). Já a ideia do “abreviamento” dos dias daquela tribulação não encontra
um paralelo claro, seja no Antigo Testamento,92 seja na literatura judaica.93 E,
finalmente, a descrição da parousia propriamente dita, em Marcos 13.24-27 (e
paral.), é cheia de traços e expressões de caráter tradicional, mas é quase sempre
ao Antigo Testamento que sua origem pode ser traçada. É o caso com a profecia
de que o sol se escurecerá e que a lua não mais dará a sua luz, M c 13.24: M t
24.29; e que as estrelas do céu cairão do firmamento, M c 13.25; M t 24.25 (cf. Is
13.10; 24.23; E z 32.7; J1 2.10,31; 3.15). A perplexidade das nações, predita em
Lucas 21.25, “angústia entre as nações em perplexidade por causa do bramido do
mar e das ondas”, é, provavelmente, uma alusão ao Salmo 65.8. Além do mais,
a expressão “os poderes dos céus” (Mc 13.25 e paral.) é claramente emprestada
de Isaías 34.4. Finalmente, a vinda do Filho do Homem nas nuvens (Mc 13.26
e paral.) é com toda certeza um reflexo de Daniel 7.13-14.
Seria possível mencionar outros detalhes. M as, pelo que já foi mencionado,
é óbvio que, na sua pregação profético-escatológica, Jesus não recorreu à apo
calíptica judaica posterior e sim aos profetas do Antigo Testamento.94 A luz
dessa constatação, não há qualquer base para a declaração de que existem aqui
“elementos totalmente isolados da tradição” que não podem pertencer à tradição
mais antiga a respeito de Jesus devido a “conclusões derivadas da história da
tradição bem como de considerações críticas objetivas” e que es^es elementos
O FUTURO DO REINO DOS CÉUS 345
que precederá a vinda do reino. Esse é o motivo pelo qual a separação e a exclusão
desses pensamentos do ensino de Jesus é uma violação do caráter sobrenatural e
cósmico do futuro do reino dos céus, como anunciado por Jesus.
Nossa conclusão quanto ao sermão escatológico de Marcos 13.1-27, portan
to, só pode ser que ele está organicamente ligado com tudo o que Jesus profetizou
em outras passagens acerca do futuro grandioso e que qualquer tentativa de negar
a Jesus o conteúdo factual desse sermão é sem fundamento e deve ser rejeitada,
pois o conhecimento do que Jesus profetizou acerca do futuro do reino dos céus
pode ser seguramente inferido não apenas de Marcos 13 (e paral.) como também
de tudo o que nos é dado no restante do ensino de Jesus.
nas mãos dos homens e da falta absoluta de amor que haverá até mesmo entre
os relacionamentos mais próximos: muitos que, a princípio, pareciam amigos e
crentes, se tornarão traidores e inimigos.
Nesse contexto Marcos fala da pregação do evangelho a todas as nações, o
que deve ocorrer “primeiro”. Alguns autores não admitem dúvida quanto ao fato
de que essas palavras não podem pertencer a uma tradição que tenha sua origem
no próprio Jesus. Essa opinião se baseia parcialmente na objeção factual de que
o próprio Jesus não pensou na pregação do evangelho aos gentios.98 A isso é
acrescentado o argumentoyõrma/que considera o dito de Marcos 13.10 como des
locado do conteúdo propriamente dito, uma inserção, como algo colocado “entre
parênteses”.99Uma comparação entre os sinóticos revela que há, de fato, variações
consideráveis na composição desse sermão, o que não nos permite ignorar a in
fluência dos evangelistas na estrutura do todo. Isso se aplica igualmente a Marcos
13.10, como aparece claramente do fato que o mesmo pronunciamento ocorre
em Mateus num contexto diferente. Assim mesmo, esse dito não é um corpus
alienum num complexo de pensamentos totalmente diferente. Pelo contrário, ele
está de acordo com a tendência geral desse complexo de pensamentos, pois Jesus
prediz a seus discípulos que eles vão sofrer aflições, serão entregues aos tribunais,
açoitados nas sinagogas, levados diante de governadores e reis. Ainda que se pen
sasse que essas coisas ocorreriam apenas dentro da comunidade ou nação judaica,
apesar da menção aos “gentios” aos quais os discípulos deveriam ser testemunhas
de Cristo (M t 10.18), o grande pressuposto deve ser, então, de qualquer modo,
que eles deverão passar por tudo isso como ministros do evangelho. Em Mateus
24.9 é dito que eles serão odiados por “todas as nações” e tanto Mateus 24.31
quanto Marcos 13.27 dizem que os anjos “reunirão os seus escolhidos, dos quatro
ventos, de uma a outra extremidade dos céus”. Portanto, é inconseqüente manter
que em Mateus ou Marcos - em vista do significado de Marcos 13.27 e Mateus
24.31, que serão logo a seguir analisados em mais detalhes100 - a predição acerca
da missão entre os gentios seja um elemento estranho no contexto do apocalipse
sinótico. Não há, portanto, qualquer dificuldade em se aplicar a essa passagem
a conclusão do anúncio das dores, a saber, que os discípulos experimentarão a
ajuda de Deus (Lc 21.18) e que eles serão salvos se perseverarem e se suportarem
tudo o que eles têm de suportar por amor a Jesus.
Embora a ligação cronológica entre os acontecimentos (guerras, etc.)
mencionados em primeiro lugar e as vicissitudes dos discípulos não seja clara,
as duas séries de acontecimentos devem ser consideradas como se sobrepondo
parcialmente. Marcos as menciona, uma depois da outra, sem indicar o tempo.
Mateus tem a palavra “Então” (v. 9, tote), “naquela ocasião”. Lucas, entretanto,
diz que a perseguição ocorrerá antes de “todas estas coisas”, isto é, antes que uma
nação se levante contra outra, etc. Talvez possamos explicar essa última indicação
348 A v in d a d o R e in o
de maneira a sugerir que a perseguição dos crentes já terá começado antes que
os acontecimentos mencionados tenham atingido seu clímax na última grande
tribulação.101 De qualquer modo, as duas séries de acontecimentos representam
o período do “princípio das dores” que precede o drama final, o qual, segundo
Jesus diz (temporariamente), não é um fim em si mesmo. Portanto, isso é uma
indicação clara de que ninguém deveria se precipitar em tirar conclusões à parte
da menção da pregação do evangelho entre todas as nações.
Todavia, com base nessas passagens há pouco a ser dito acerca da duração
dessa perspectiva futura. Greijdanus observou que, na pessoa dos discípulos, Jesus
se dirige a todos os crentes no decorrer dos séculos, até o fim dos tempos, e que,
portanto, não há necessidade de procurarmos por falsos mestres antes de 70 d.C.
O mesmo se aplica, na opinião dele, aos fenômenos aterrorizantes mencionados
em Lucas 21.11. Ainda de acordo com Greijdanus, Jesus cobre todos os séculos
e aqui, também, inclui o que ocorrerá no fim do mundo.102
Em nossa opinião, as passagens mencionadas acima não garantem essa
ideia de que Jesus está revelando uma perspectiva futura que inclui os séculos
por vir. Essas passagens também não significam “o princípio das dores” revelado
repetidamente no decorrer de uma longa série de séculos através de impérios
sempre novos e poderosos, sinais e falsos cristos. Sem dúvida, os discípulos são
advertidos a não esperarem o fim imediatamente, pois ainda há muitos aconte
cimentos que precisam primeiramente ter lugar. M as é impossível inferir deles,
mesmo de modo aproximado, a “extensão” da perspectiva, quer ela vá se estender
por “anos” ou por “séculos”. Isso também se aplica ao pronunciamento de Marcos
13.10 (a pregação do evangelho a todas as nações). Não há qualquer dúvida de
que esse pronunciamento tem como objetivo enfatizar para os discípulos o fato
de que o fim não pode vir antes que o evangelho seja pregado a todas as nações.
E de nada adiantará restringir o propósito dessas palavras de um modo tão geral
que elas signifiquem apenas os gentios como os destinatários do evangelho, de
maneira a eliminar a questão do tempo.103 Muito pelo contrário, a categoria de
tempo é propositadamente expressa pelas palavras “'primeiro ’ (Marcos) e “então
virá ofim (Mateus). Esse é o motivo pelo qual devemos rejeitar a sugestão de que
a palavra “primeiro” significa “em primeiro lugar”, “em particular”, significando,
nesse contexto, que os discípulos deveriam lembrar, acima de tudo o mais, que
eles deveriam primeiro pregar o evangelho aos gentios quando fossem julgados
nos tribunais.104 Essa exegese parece por demais inspirada no desejo de eliminar
a ideia de tempo claramente presente no contexto. Essas palavras se referem à
pregação do evangelho a todas as nações e são, portanto, totalmente consistentes
com Mateus 26.13 (e paral.), onde Jesus fala do “todo o mundo”, e com a grande
comissão de Mateus 28.18-20, que também fala de “todas as nações” (cf. também
Lc 24.47; M c 16.15,20).
O FUTURO DO REINO DOS CÉUS 349
Isso tudo não significa, todavia, que seja possível tirar quaisquer conclusões
dessa comissão dada aos discípulos quanto à duração do período que precede a.pa
rousia do Filho do Homem. O que é certo é que esse cálculo envolve muitos anos.
Mas é muito duvidoso que possamos ir além disso e dizer que, aqui, abre-se aos
leitores uma perspectiva que se estende por séculos. Além do mais, as palavras “todo
o mundo” e “todas as nações” não possuem um significado geográfico e etnológico
extensivo. Elas são uma indicação intensiva e resumida, como, por exemplo, M a
teus 24.9, que diz que os discípulos terão de suportar o ódio de “todas as nações”,
e, ainda, como Paulo escreveu aos colossenses, mais ou menos trinta anos depois
disso, que o evangelho “em todo o mundo, está produzindo fruto e crescendo” (Cl
1.6). Podemos afirmar, sem dúvida alguma, que, à luz do cumprimento, ficou com
provado que as palavras de Jesus tinham significado muito extenso - inclusive num
sentido geográfico e temporal. M as isso é algo bem diferente da afirmativa de que
elas abririam uma perspectiva que incluísse muitos séculos. Ao contrário, devemos
dizer que o fato (da pregação do evangelho a todas as nações) é aqui declarado
com grande força, mas que não era possível calcular as suas implicações temporais,
mesmo de maneira aproximada ou apriori, pelos discípulos ou pela igreja posterior,
visto que tais implicações não foram reveladas por Jesus (cf. também At 1.6ss).
Isso não diminui o fato de que a maneira como Mateus e Marcos falam
da causa da tribulação vindoura é muito menos concreta e muito mais voltada
para a dessacralização do Santo dos Santos do que Lucas. Este, por sua vez, fala
do cerco de Jerusalém expressis verbis e exclusivamente. Não podemos, portanto,
nos satisfazer com a ideia de que a profecia de Marcos e Mateus sobre o “abo
minável da desolação” se cumpriu somente na queda de Jerusalém. Ê verdade
que a cor local e histórica (Judeia, inverno, sábado, mulheres, etc.) no quadro
dos acontecimentos aterrorizantes da abominação vindoura sugere que uma
aflição catastrófica deve ser esperada na Judeia, uma aflição que será um grande
desastre para a nação judaica. Essa é a justificativa para a descrição que Lucas faz
do cerco de Jerusalém por tropas hostis. Ainda assim, devemos manter enfati
camente que o que é dito em Marcos e Mateus sobre esses acontecimentos não
se cumpriu totalmente na queda de Jerusalém, pois é questionável se a descrição
do “abominável da desolação” pode ser considerada como tendo se cumprido
exaustivamente com a destruição do Templo em 70 d.C. A própria expressão, ao
contrário, sugere uma ação consciente e mais deliberadamente antirreligiosa, na
qual a inimizade ao Deus da revelação atinge o seu clímax e adquire sua forma
concreta. Como geralmente se admite, não foi encontrada um exemplo definido
de uma dessacralização do Santo dos Santos que seja tão blasfemo e idolátrico
nos acontecimentos em torno do ano 70 d.C. Essa é a razão pela qual a profecia
sobre o abominável da desolação às vezes tem sido aplicada à intenção de Calígula
de colocar uma estátua de si próprio noTemplo de Jerusalém, em 40 d.C .114M as
essa opinião deve ser totalmente rejeitada, pois transforma essa profecia num
incidente supostamente ocorrido no tempo após a morte de Jesus, que não teve
qualquer efeito sobre o Templo em si e que não tem qualquer apoio do contexto.
Isso não significa negar que os acontecimentos que tiveram lugar em torno do ano
70 d.C. são, de maneira geral, um cumprimento parcial da profecia, no que tange
à destruição do Templo, mas não nos parece que se aplica a alguma profanação
blasfema do Templo, pelo menos quanto ao que sabemos.
E ainda mais impressionante que, tanto em Marcos quanto em Mateus, a
tribulação com respeito a essa abominação é claramente ligada com os últimos
dias. E a tribulação que foi anunciada em Daniel 12.1ss, com praticamente as
mesmas palavras ( “angústia, qual nunca houve...”).Também a seguinte descrição
dos sinais no céu (cf. M t 24.29, “Logo em seguida à tribulação daqueles dias, o sol
escurecerá, a lua não dará a sua claridade, as estrelas cairão do firmamento, e os
poderes dos céus serão abalados”) tem claramente um caráter apocalíptico. Ê ver
dade que Lagrange tem tentado separar a profecia do “abominável da desolação”
da profecia sobre a grande tribulação aplicando a primeira exclusivamente à queda
de Jerusalém e à última exclusivamente à vinda do Filho do Homem. M as esse
esforço deve ser considerado um fracasso, pois o anúncio da grande tribulação
354 A v in d a d o R e in o
está ligado, numa relação de causa e efeito, com o que os fugitivos da Judeia
terão que sofrer por causa dos acontecimentos associados com o “abominável da
desolação” (“porque aqueles dias serão de tamanha tribulação como nunca houve
desde o princípio do mundo”, M c 13.19, etc.). Em nossa opinião, é impossível
afirmar, sobre qualquer base real, que Mateus 24.21 e Marcos 13.19 são o início
de algo novo na passagem.115
Tudo isso torna impossível considerar a destruição da cidade e do Templo
no ano 70 d.C. como o cumprimento completo da profecia sobre o “abominá
vel da desolação”. N a realidade, esse entendimento da profecia é apenas uma
conclusão exegética à luz do seu cumprimento. Ela tem pouco apoio da pas
sagem em Mateus e Marcos (cf. acima). E, com relação a Lucas, ele fornece as
provas, é verdade, de que a profecia em Mateus e Marcos se refere ao cerco de
Jerusalém por exércitos hostis - o que, em nossa opinião, só pode se referir ao
cerco da cidade feito pelos exércitos romanos. M as isso não é tudo, pois Lucas
faz uma distinção no que em Mateus e Marcos é uma unidade. Primeiro, Lucas
não menciona o “abominável da desolação”, mas fala do cerco de Jerusalém.
Além disso, em Lucas, a tribulação não tem o tom escatológico de Mateus e
Marcos. Ele não fala da thlipsis (a palavra que ocorre em Dn 12), mas de anagke.
Lucas também não nos dá uma descrição dessa tribulação usando a linguagem
de Daniel. Ele claramente restringe essa aflição ao que ocorre durante o cerco
de Jerusalém e depois. “Porque haverá grande aflição na terra e ira contra este
povo. Cairão a fio de espada e serão levados cativos para todas as nações; e,
até que os tempos dos gentios se completem, Jerusalém será pisada por eles”
(Lc 21.23-24). Não há, aqui, qualquer menção do traço escatológico acerca da
“abreviação dos dias”, como ocorre em Mateus e Marcos. Lucas também não
faz a ligação temporal imediata entre a aflição e os sinais cósmico-escatológicos
nos céus. Entre eles está “os tempos dos gentios”, que, em Lucas, de qualquer
modo, nos impede de abarcar num relance a tribulação e a parousia do Filho do
Homem. Lucas, desse modo, limita a perspectiva à destruição de Jerusalém e
à vinda do Filho do Homem. Ele abre a perspectiva escatológica somente no
versículo 25 e, a partir daí, não fala mais da “terra” (v. 23), mas do “mundo” (v.
26). Em Mateus e Marcos, tudo isso é muito mais difuso. Eles não fazem um
anúncio distinto do cerco e da queda de Jerusalém e, sim, uma conexão mais
direta com os acontecimentos escatológicos do período final. Só há uma maneira
de explicarmos isso, que é a fusão de dois temas, em Mateus e Marcos, que são o tema
da destruição do Templo e a angústia nacional da naçãojudaica e o tema do ponto de
vista escatológico, que repetidamente transpira de todas as partes. Esses dois temas
só podem ser distinguidos entre si aposteriori, isto é, à luz de seu cumprimento.
Todavia, devemos deixar sem resposta a pergunta sobre se devemos explicar de
modo semelhante a diferenciação mais clara que Lucas faz desses dois temas
0 FUTURO DO REINO DOS CÉUS 355
também &parousia, “M as a respeito daquele dia e hora ninguém sabe, etc.”. Por
tanto, em nossa opinião, restringir de modo rigoroso as palavras “todas [estas]
coisas” apenas aos sinais, com a exclusão da parousia propriamente dita, não se
justifica. Aqui, Jesus faz um resumo de todos os acontecimentos anunciados por
ele. M as, mesmo se “todas estas coisas” seja interpretado exclusivamente como
o que precede a vinda do Filho do Homem, não há qualquer razão na passagem
para se fazer uma restrição a mais nesses acontecimentos e fixar o limite para a
destruição de Jerusalém ou ao que se tornou manifesto nas perseguições e afli
ções do século I o. Já vimos que, em Mateus e Marcos, a profanação do Templo
e a grande tribulação escatológica final não podem ser separadas uma da outra.
Seria, portanto, arbitrário voltar a Marcos 13.4 para encontrar a explicação de
Marcos 13.30, como é feito, por exemplo, por Lagrange e Wohlenberg, pois,
então, torna-se necessário separar aquilo que se funde na passagem. E, em Lucas,
as coisas não são diferentes de modo algum. Ele distingue mais claramente entre
a destruição de Jerusalém e os sinais escatológicos após “os tempos dos gentios”
(21.24). Porém, em nosso entendimento, é totalmente arbitrário se recusar a con
siderar esses sinais nos versículos 31 e 32. A passagem diz explicitamente “estas
coisas” e “ tudo isto”, em ambos os casos se referindo claramente a tudo o que veio
antes. Consequentemente, quaisquer que sejam as dificuldades oferecidas por
essa passagem, não é permissível, segundo nosso entendimento, livrar-se delas
por meio de restrições arbitrárias ao sentido do texto.
A questão que permanece, entretanto, é quanto ao sentido de “esta geração”.
Que ela contém uma indicação da existência permanente do povo judeu - algo
que Schniewind considera plausível - até a segunda vinda de Jesus e que ela,
igualmente, traz implícita certa expectativa de salvação, parece-nos forçado. Não
vemos como enxergar esse sentido especial na passagem. De qualquer modo, se
for assim, foi expresso de maneira muito obscura e incidental. Em nossa opinião,
há apenas duas explicações possíveis. Primeira, que Jesus, aqui, fala de seus con
temporâneos e, portanto, diz que aquela geração, a geração que estava viva nos
seus dias, testemunharia tudo o que ele havia predito quanto ao futuro.
De acordo com esse ponto de vista - considerado como inevitável pelos
exegetas que rejeitam totalmente a escatologia exclusiva124- há autores que falam
de uma Perspektivenirrtum (erro de perspectiva) que deve ser explicado psico
logicamente. Num sentido mais profundo, não seria propriamente um erro se,
juntamente com os evangelistas, a declaração de Jesus fosse aplicada à sua morte
como o momento do cumprimento. Mas, em nossa opinião, essa explicação não
representa o sentido da passagem e nem o dos evangelistas. Outros falam de
um erro que, apesar de ser insignificante na pregação de Jesus, é difícil conciliar
plenamente com outras passagens que indicam que a data final para a parousia
é desconhecida.125
O FUTURO DO REINO DOS CÉUS 359
suficiente para isso. De acordo com Plummer, uma referência direta à.parousia está
excluída nesse caso pelo fato de que nenhum dos presentes dentre o público de
Jesus viveria o suficiente para testemunhá-la.128 Também entre intérpretes mais
recentes há aqueles que não querem explicar a segunda parte como se referindo
ao advento final do reino. Consequentemente, eles divergem quanto ao sentido
exato da passagem. Greijdanus escreve que o acontecimento predito em Lucas
9.27 “haveria de se fazer manifesto dentro de poucas décadas”, como transparece
das palavras “alguns há dos que aqui se encontram que, de maneira nenhuma,
passarão pela morte até que vejam o reino de Deus”. “Então”, prossegue Greijda
nus, “essa vinda do governo de Deus não pode se referir à ressurreição de nosso
Senhor, nem ao dom do Espírito Santo, que aconteceria naquele mesmo ano...
e nem pode se referir à vinda do nosso Senhor em julgamento, a qual está, até
agora, suspensa... e nem também pode significar a poderosa expansão do evan
gelho, pois isso aconteceu em poucos anos, comparativamente falando... devemos
pensar aqui sobre a destruição de Jerusalém... nessa destruição, Deus revelou seu
domínio real em seu julgamento, um precursor do julgamento no último dia”.129
Outros consideram ainda a possibilidade de que Jesus quis dizer, com a vinda do
reino com poder (Mc 9.1), a pregação do evangelho com os sinais miraculosos
que acompanharam a fundação da igreja,130 frequentemente incluindo também
o dom do Espírito Santo131 ou a ressurreição.132 Há outros, ainda, que explicam a
vinda do Filho do Homem (en tei basileia autou), ou ver a basileia de Deus vindo
com poder como uma referência à vinda de Cristo em sua igreja.133 Outros, ainda,
combinam as diferentes concepções e interpretam Marcos 9.1 (e paral.) como
uma profecia sobre o Pentecostes, bem como sobre a destruição de Jerusalém, a
expansão do evangelho e a conversão dos gentios.134
Em nossa opinião, as explicações acima mencionadas mostram o quanto
devemos ser cuidadosos em nos guardar de interpretar o sentido de um evangelista
diferentemente do outro, bem como da dominação de nossa perspectiva pessoal
sobre partes do texto. De acordo com Lohmeyer, Lucas deve ser entendido num
sentido não escatológico, em oposição a Mateus e Marcos. De acordo com Zahn,-
é Marcos quem deve ser interpretado desse modo em oposição a Mateus e Lucas.
Lagrange diz que Mateus fala da igreja, algo que não pode ser dito de Marcos e
Lucas. De acordo com Grosheide, é precisamente em Marcos e Lucas que essa
interpretação é a mais óbvia, em oposição a Mateus.
Segundo nos parece, será impossível eliminar, sem arbitrariedade, a vinda
escatológica do reino e do Filho do Homem da explicação de qualquer das três
passagens paralelas. Consideramos a restrição que é feita aos pronunciamentos de
Jesus sobre a revelação do Filho do Homem e do reino como uma referência ao
período anterior \parousia como uma violação inaceitável ao sentido claramente
manifesto da passagem nesse contexto. Em todos os três Evangelhos, a descrição
362 A v in d a d o R e in o
da parousia precede imediatamente essa passagem. Esse é o motivo pelo qual esse
pronunciamento não pode ser separado da parousia. A indicação acerca dela está
claramente em primeiro plano. Além disso, o sentido das palavras como tal prova
isso, como entendemos, especialmente, em Mateus e Marcos. Mateus diz “até
que, vejam vir o Filho do Homem no seu reino”. Não há uma única passagem na
tradição sinótica em que essa frase signifique a exaltação do Filho do Homem
antes (à aparte) da parousia. Por esse motivo, a parousia não pode deixar de ser
considerada em Mateus 16.28. A sugestão de Lagrange de que en basileia autou
é uma indicação da igreja deve ser rejeitada, visto que “igreja” e “reino” não se
fundem em nenhum lugar nos Evangelhos sinóticos.135 E, então, en basileia autou
não pode ser interpretada, nesse caso, num sentido espacial. A expressão indica
a dignidade real do Filho do Homem, como todos os intérpretes não católicos
romanos admitem.
O mesmo vale para Marcos 9.1, no que se refere a esta questão. Em nossa
opinião, “ter chegado com poder o reino de Deus” se refere explicitamente à
manifestação da glória do reino da qual, outra vez, é impossível separar a vinda
final do reino. E a interpretação de que as palavras en dunamei indicam uma fase
particular do desenvolvimento da vinda do reino divino, como Zahn diz, não faz
o menor sentido para nós. Essa interpretação tornaria necessário que assumísse
mos, contrariando o significado das atividades anteriores de Jesus na terra, que o
reino estaria para se manifestar em poder somente no período vindouro e antes
de sua última vinda. Essa posição contraria o testemunho das Escrituras como
um todo no que se refere à revelação do poder de Deus exatamente durante o
tempo da vida terrena de Jesus. Portanto, não podemos separar esse en dunamei
da manifestação do poder que será visto no final, especialmente na parousia do
Filho do Homem. E, no que concerne a Lucas, sua passagem simplesmente diz
“até que vejam o reino de Deus”. Se considerada em si mesma, essa declaração
pode se referir simplesmente à vinda do reino antes do fim, mas o contexto
implica claramente (cf. Lc 9.26) os acontecimentos escatológicos. Além disso, a
mera indicação do “reino de Deus” prova que algo mais está sendo referido aqui
do que apenas a revelação do reino antes da parousia, pois aqueles a quem Jesus
se dirige já tinham visto o reino na vinda e na obra de Jesus (cf., p. ex., Lc 8.10;
10.23-24). A promessa de que eles veriam o reino de Deus, portanto, não pode
ser isolada da sua revelação definitiva.
Em nosso entendimento, não há qualquer outra conclusão possível para to
dos os três Evangelhos a não ser que Jesus fala do ponto de vista profético, isto é,
num sentido abrangente e indistinto.136 Se, na exegese da passagem, é impossível
eliminar a parousia, é igualmente insustentável dizer que a profecia de Jesus não
tinha qualquer outra perspectiva a não ser a da sua parousia. Entre o tempo da
sua fala e a parousia, há o grande fato da ressurreição, da qual ele falou expressis
O FUTURO DO RErNO DOS CÉUS 363
de Cristo, após ele ter deixado este mundo. Gradualmente, o sermão de Jesus
assume aquilo que o apocalipse sinótico diz acerca das vicissitudes dos discípulos
durante a tribulação vindoura predita por Jesus. Alguns dos pronunciamentos
de Jesus são até mesmo verbalmente idênticos e muitos outros são factualmente
idênticos aos de Marcos 13 e Lucas 21 (cf. M t 10.17-21 com M c 13.9-13 e
Lc 21.12-17). Até mesmo encontramos outra vez em Mateus 24 o que é dito
em Mateus 10 (cf. 10.17,22 com 24.9,13). Em conseqüência, parece-nos sem
fundamento pensar em qualquer outra coisa que não a parousia quando Mateus
10.23 fala da vinda do Filho do Homem, pois a ressurreição, aqui, não deve
mais ser vista como algo que se aproxima, mas como algo que ocorre antes da
tribulação anunciada aos discípulos. Pensar que aqui a referência é ao poder e
à ajuda sobrenaturais do Senhor exaltado é fornecer uma interpretação muito
incomum da expressão sinótica “a vinda do Filho do Homem”. Não é permissível,
nesse caso, argumentar a partir de uma concepção particular do que é “possível”
à luz da realização. Aqui, as palavras devem receber o seu sentido mais óbvio. E,
quando fazemos isso, não podemos perceber como a referência zparousia possa
ser eliminada.143
O que, então, devemos entender com essa expressão acerca da fuga pelas
cidades de Israel que os discípulos não seriam capazes de completar antes da vinda
do Filho do Homem? Em nossa opinião, essas palavras só podem ser explicadas
no sentido mencionado acima, no qual a convergência dos temas particularistas
e escatológicos em Marcos e Mateus foi trazida à luz. Semelhante à explicação
que foi dada ali sobre a fuga da Judeia para as montanhas como estando em
estreita conexão com a tribulação final, as catástrofes cósmicas e o fim de todas
as coisas, encontramos aqui um quadro da perseguição dos discípulos durante o
tempo anterior à parousia, descrita dentro dos limites do território judaico.
que não podemos saber o momento de sua vinda, o que pode ocorrer mais cedo ou
mais tarde do que havíamos esperado, e até mesmo subitamente (exaiphes).
A mesma ideia é representada pela ilustração do “ladrão de noite” (M t 24.43;
Lc 12.39). Do mesmo modo, não podemos dizer que essa parábola tem como
objetivo nos forçar à vigilância “em vista da crise escatológica iminente que se
aproxima rapidamente”.153 Até mesmo esse elemento está faltando na parábola.
Se soubéssemos que um ladrão está vindo, não seria difícil frustrar seus planos.
Porém (como regra), geralmente desconhecemos tal fato. As chances de sucesso
do ladrão residem exatamente em nosso desconhecimento dos seus planos. Esse é
o motivo pelo qual sempre devemos estar alertas para sua possível vinda. O ponto
de comparação não é que o ladrão virá com certeza ou que ele virá em breve, e
sim que ninguém sabe se ele virá e, se vier, quando isso acontecerá.154
O pronunciamento mais forte com respeito ao nosso desconhecimento do
momento da vinda do Filho do Homem se encontra nas palavras de Mateus
e Marcos, “M as a respeito daquele dia e hora ninguém sabe, nem os anjos dos
céus, nem o Filho, senão o Pai” (Mt 24.36; M c 13.32). O próprio fato de que
o Filho está incluído entre aqueles que desconhecem quando ocorrerá o último
dia155 mostra quão secreta é a data de sua segunda vinda. Se a passagem dissesse
que “sobre aquele dia ninguém sabe”, poderia significar que, de maneira geral,
não há nada a ser dito sobre a parousia, pois a expressão “aquele dia” geralmente
se refere ao Dia do Senhor, o dia do julgamento (cf. M t 7.22). M as o que está
em jogo é o ponto exato no tempo daquele dia, como também transparece das
palavras “e hora”. Alguns autores fizeram a observação de que, estritamente
falando, essa característica básica torna todas as profecias escatológicas inúteis e
a consideram como estando em conflito com os “sinais”, etc., mencionados nas
passagens que antecedem a declaração, os quais nos permitem saber quando esses
acontecimentos grandiosos estarão próximos.156 No entanto, podemos dizer que
o pronunciamento em Marcos 13.32 e em Mateus 24.36 tem um caráter relativo
em vista do contexto em que ocorre. Dentro dos limites do que tem sido dito
sobre o futuro do Senhor, ninguém sabe coisa alguma sobre o momento no tempo
em que esse futuro terá início. Isso é totalmente desconhecido, é algo que “o Pai
reservou pela sua exclusiva autoridade” (At 1.7).
Até aqui, o resultado da nossa investigação mostrou que nenhuma conclusão
quanto a um limite de tempo pode ser inferida das passagens constantemente
mencionadas sobre a vinda imediata do dia do Senhor e a parousia do Filho do
Homem. O real propósito dessas passagens é compelir a necessidade de fidelidade
e vigilância. A ênfase recai sobre nosso próprio desconhecimento a respeito desse
acontecimento. Nós só deveríamos levar em conta a sua^afí/W proximidade (cf.
também M t 24.37ss). O fato de que as pessoas não se aperceberão da catástrofe
iminente, como nos dias de Noé {ouk egnoosan, “e não o perceberam”), prova a
O FUTURO DO REINO DOS CÉUS 369
insensatez delas. Todos deveriam estar cientes de que a parousia chegará de modo
inesperado.
M as isso não é tudo. Estritamente falando, essas declarações sobre vigilância
também significam que, a partir do momento em que foram feitas, o reino pode
vir a qualquer dia e, com ele, o julgamento final. Ainda assim, essa implicação
não estaria totalmente de acordo com a totalidade do ensino de Jesus. A julgar
por outras passagens, é evidente que Jesus não esperava que esse dia chegasse
num futuro próximo; portanto, o que ele diz sobre vigilância deve ser entendido
nesse contexto.
Assim, a parábola das dez minas em Lucas 19.11-27 tem certos detalhes
(como a partida do homem nobre e as ordens que deixou para os seus servos)
que estão estreitamente relacionados com Marcos 13.31ss (veja acima). Com
respeito ao tempo, todavia, a tendência é levemente diferente. Isso já é per
ceptível na introdução, a qual diz que Jesus contou essa parábola “visto estar
perto de Jerusalém e lhes parecer que o reino de Deus havia de manifestar-se
imediatamente”.157 Em reação a isso, Jesus declara que “certo homem nobre
partiu para uma terra distante, com o fim de tomar posse de um reino e voltar”.
Aparentemente, o sentido da parábola é que aqueles que esperavam que o reino
aparecesse imediatamente não estavam levando em conta o período interino
que deveria ocorrer primeiro. Esse período intermediário é representado nesse
caso pela partida do nobre e pelas tarefas que deu a seus servos, pois os mesmos
deveriam administrar seus bens durante a sua ausência. E muito difícil explicar
tudo isso de qualquer outro modo a não ser que se trata de uma referência à
partida de Jesus da terra para o céu e à vocação dos discípulos aqui na terra. A
parábola pressupõe a continuidade do tempo deste mundo depois da partida de
Jesus, e coloca uma ênfase especial na vocação dos crentes durante este período
intermediário.
De igual modo, a parábola dos talentos fala de um homem “ausentando-se
do país” (M t 25.14-30). Aqui nos é dito que o “senhor daqueles servos” retornou
“depois de muito tempo” (meta polun chronon, M t 25.19). Ê difícil acreditar
que esse detalhe não tenha valor algum para o sentido da parábola, diante
da aplicação clara que é feita entre a partida do senhor para uma viagem e a
partida do próprio Jesus. Assim, aqui a vinda do Filho do Homem é colocada
num futuro mais longínquo do que muitas pessoas suporiam.158 M ais uma vez,
ênfase especial é colocada sobre a missão confiada aos discípulos. A expectativa
da vinda de nosso Senhor não acarreta qualquer estagnação ou passividade na
vida de um discípulo; ao contrário, produz uma atividade santificada no serviço
de D eus.159
370 A v in d a do R e in o
a) Sem permitir que sejam enganados pelos rumores das falsas reinvidicações
messiânicas, os discípulos deveriam prestar atenção aos sinais dos tempos,
que já se manifestaram na vinda do nosso Senhor e foram anunciados
por ele (“discernindo os tempos”, a lição da figueira, a advertência contra
o “Ei-lo aqui! Lá está!”).
Portanto, não é difícil elaborar sobre esses temas de tal maneira que eles
se tornem mutuamente incompatíveis. Isso é ainda mais claro se compararmos
o item f acima com as letras a-c. A s advertências à vigilância (motivadas pelo
“porque não sabeis quando virá o dono da casa: se à tarde, se à meia-noite, se ao
cantar do galo, se pela manhã”) podem, em si mesmas, ser interpretadas de tal
maneira que seja possível, a qualquer momento, o Senhor retornar. Por outro
lado, transparece do apocalipse sinótico que acontecimentos muito grandiosos
e de grandes implicações devem acontecer antes daquele dia e que os discípulos
ainda têm uma grande missão a realizar com referência à ekklesia (a qual eles
representam) no mundo (cf. também letra g).
No entanto, não seria difícil interpretar cada um destes motifs, que, pela
tradição, nos foram entregues como uma unidade, ligados uns aos outros. Após
considerarmos todas as coisas, eles nada mais são que os eixos de um círculo
cujo centro é a certeza de que Deus está completando sua obra de consumação. Essa
verdade central nos compele a perseverar pacientemente e a permanecermos vigi
lantes e fiéis. Ela exige que o crente observe os sinais dos tempos, pois Deus está
realizando a consumação de acordo com um plano predeterminado. Ele revelou
esse plano a seu povo. Por outro lado, ele exige a tarefa grandiosa que os cristãos
têm de realizar neste mundo. Todas essas facetas têm que ser consideradas em
conjunto. Todas elas, todavia, são determinadas pela certeza e pela proximidade
da vinda do Filho do Homem, e também servem para transpor a vida dos crentes
para a realidade do reino vindouro.
372 A v in d a d o R e in o
certeza do futuro. “A segunda vinda de Cristo é exigida por sua primeira vinda;
a primeira está implícita na segunda e se segue necessariamente a ela, levando-a
ao seu pleno efeito e à sua completude. Portanto, é, na profecia do Antigo Testa
mento, comprimida num único quadro juntamente com a primeira vinda.”160Mas
não podemos dizer, à maneira da escatologia mais ou menos “consistente”, que
a proximidade d a parousia explica o presente cristológico e os pronunciamentos
a respeito do presente. Muito pelo contrário, o “irromper” da salvação, o caráter
de cumprimento do presente, desde o início inclui também o futuro como uma
realidade assegurada e garantida no presente. Assim, o caráter do presente como
cumprimento não deve ser abordado a partir da proximidade do futuro; antes, a
proximidade do reino vindouro deve ser abordada a partir da realidade do reino
presente. Essa é a verdade da declaração de que a proximidade da parousia é, num
certo sentido, somente outra expressão da sua absoluta certeza.
Esse é o motivo pelo qual não é tanto a proximidade quanto a certeza p a
rousia que domina os pronunciamentos escatológicos de Jesus. Esse, por exemplo,
é o propósito das parábolas sobre a vigilância. Devemos estar sempre preparados,
pois, apesar de o momento da vinda do Filho do Homem ser desconhecido e
incerto, o fato de que ele virá é certo. Essa certeza é a base da exortação aos dis
cípulos para perseverarem na fé, pois “não fará Deus justiça aos seus escolhidos,
que a ele clamam dia e noite?” A promessa de que Deus depressa fará justiça
procede da certeza que ele ouve as orações deles.
O mesmo se aplica ao que foi dito acerca dos sinais dos tempos. Esses
sinais, também, não servem primariamente para revelar a proximidade do fim,
mas para revelar o fato indubitável de que Deus está operando. Nesse sentido,
os fariseus e escribas pediram ajesus um sinal do céu e, no mesmo sentido, Jesus
repreendeu as multidões por não compreenderem “esta época”. O grande erro
deles não foi que se recusaram a ouvir que o reino estava próximo, pois, quando
isso foi anunciado, eles se ajuntaram a João e ajesus em grande número. O que
lhes faltava era o discernimento para ver que os sinais do reino e mesmo o próprio
reino eram visíveis nas palavras e ações de Jesus.
Com respeito ao grandioso sermão escatológico em Marcos 13 (e paral.),
aqui também Jesus desperta seus discípulos para a necessidade urgente de sobrie
dade e calma ao responder a pergunta acerca de “quando” essas coisas acontece
riam. Os acontecimentos que haveriam de atemorizá-los - guerras, revoluções,
etc. - “devem acontecer. Eles fazem parte do conselho de Deus e provam que a
história deste mundo está no seu final, no seu estágio decisivo. M as eles ainda
não são o fim. Eles são apenas o princípio das dores.
O fim não estará próximo e “às portas” até que o princípio das dores e os
grandes sinais sejam vistos, os quais aparecerão com a “abominação da desolação”.
Então, o que foi dito acerca da figueira, quando os seus ramos branqueiam e as
O FUTURO DO REINO DOS CÉUS 375
Finalmente, tudo o que foi dito até aqui pode nos dar uma perspectiva clara
deste fenômeno, que é a combinação dos vários quadros da História num quadro
único. As coisas que aparentam estar separadas por séculos quanto ao seu cum
primento, algumas vezes são abrangidas na profecia de Jesus no mesmo quadro
temporal e dentro do mesmo quadro local. Isso não significa que a expectativa que
Jesus tinha do futuro não tinha relação com o tempo e que lhe faltava qualquer
distinção temporal. A diferença entre o que vem primeiro e o que vem depois
nos é dada explicitamente (nos sinais, na precedência da pregação do evangelho,
etc.). Porém, não há qualquer perspectiva do tempo que inclua os séculos. A
grande tribulação do mundo, a última perseguição da igreja, a abominação da
desolação, as catástrofes cósmicas e, finalmente, a parousia do Filho do Homem
estão ligadas com o julgamento de Israel, os acontecimentos vindouros na Judeia
e a perseguição dos discípulos em território judaico. As expectativas escatológicas,
é verdade, não podem ser mantidas dentro da estrutura judaica particularista.
Com certeza, elas vão além disso. Os fins da terra, as nações do mundo e a terra
habitada (Lc 21.26) repetidamente são mencionados não apenas no anúncio do
juízo final, mas também no anúncio da profecia de salvação. Todos os povos da
terra terão, primeiro, que ouvir o evangelho; os eleitos serão reunidos dos quatro
cantos da terra, virão do Oriente e do Ocidente e se assentarão com Abraão,
Isaque e Jacó no reino dos céus. M as, ao mesmo tempo, as cidades de Israel, as
376 A v in d a d o R e in o
Introdução
Capítulo I
*. O “ Qaddisch” é uma oração judaica recitada no ritual diário da sinagoga e pelos enlutados em
cultos públicos, após a morte de parentes próximos. (N. do T.)
21. Veja, sobre isso, p. ex., E. Schürer, Geschichte des jüdischen Volkes, II4, 1907, p. 579ss. R. H.
Charles, A Criticai History o f the Doctrine o f a Future Life in Israel, in Judaism, and in Christi-
anity2, 1913, p. 167ss.; Strack-Billerbeck, op. cit., IV, 2, 1928, p. 799ss.; W. O. E. Oesterley, The
Doctrine ofthe Last Things, Jewish and Christian, 1908, p. 65ss. Sobre os textos referidos, p. ex.,
E. Kautzsch, Die Apokryphen und Pseudepigraphen des Alten Testaments, 1921.
22. Op. cit., I, p. 573.
23. Cf. também, p. ex., Delling, TW B, III, p. 461, o artigo sobre “kairos” .
24. Veja também F. Busch, Zum Verstãndnis der synoptischen Eschatologie, 1938, págs. 29-37.
Capítulo II
1. Isso é ressaltado enfaticamente por R. Otto, Reich Gottes und Menschensohn, 1934, p. 34ss.
2. R Feine, Theologie des Neuen Testaments7,1936, p. 73.
3. Cf. também G. Dalman, Die Worte Jesu, I2, 1930, págs. 76, 77.
4. Cf. ainda G. Gloege, Reich Gottes undKirche im Neuen Testament, 1929, págs. 40, 50; e H. D.
Wendland, op. cit., p. 15. M as, em oposição a isso, veja T. Zahn, Grundriss der neutestamentlichen
Theologie, 1928, págs. 6, 7.
5. D as Wesen des Christentums, 1905, págs. 34-45.
6. Veja, p. ex., K. Holl, Urchristentum und Religionsgeschichte2, 1927, p. 19; veja também,
§ 27, abaixo.
7. Die Eschatologie des Reiches Gottes hei Jesus, 1931, p. 14.
8. Op. cit., p. 13.
9. Op. cit., I, págs. 180, 181.
10. Veja abaixo, Capitulo V.
11. Sobre o significado específico da noção de aliança, veja, p. ex., Het Dogma der Kerk, org. por
G. C. Berkouwer e G. Toomvliet, 1949, p. 292ss
12. Cf. também o artigo de minha autoria, “ Verbond en Koninkrijk Gods” , publicado no Gereformeerd
Theologisch Tijdschrift, 1943, p. 97ss.
13. Sobre essa passagem e sua tradução veja abaixo, p. 52ss.
14. Cf. Wendland, op. cit., p. 17.
15. N as pegadas de A. Schlatter, G. Gloege defendeu esse ponto de vista com muita ênfase e bastante
detalhadamente em seu livro Reich Gottes und Kirche im Neuen Testament, 1929.
16. Cf., p. ex., S. Greijdanus, Het heilig Evangelie naar de beschrijving van Lucas, I, 1940,
p. 168.
17. Ela será formada em conexão com as passagens do Antigo Testamento que falam da “vinda”
escatológica de Deus e do M essias. “A palavra erchomai pertence ao mundo do pensamento da
epifania divina, Schneider, TWB, II, p. 664; cf. também Kümmel, op. cit., p. 67; F. Hauck, D as
Evangelium des Lukas, 1934, págs. 97, 98.
18. Veja ainda abaixo, p. 56ss.
19. Cf. Strack-Billerbeck, op. cit. 1, p. 115, “A ira futura significa o julgam ento de Gehinnom” .
20. Pelo menos de acordo com a versão mais provável, M arcos diz somente: “ Ele vos batizará com
o Espírito Santo” .
21. Assim , p. ex., S. Greijdanus, op. cit. I, págs. 170, 171.
22. E ssa é a visão recomendada, pois, nesse caso, o tema não é o Espírito Santo, m as o m ais poderoso,
cuja atividade tem um caráter duplo: salvar e punir. Também a cláusula aqui conectada, a saber,
“A sua pá, ele a tem na m ão” , etc., soaria, no mínimo, bastante inesperada, não uma continuação,
m as um contraste de pensamentos.
23. Cf. também J. Ridderbos, Het Godswoordderprofeten, I, 1930, p. 93.
N o ta s 383
24. P. ex., em Os Testamentos dos 12 Patriarcas : “Naquele tempo... o M essias... aparecerá; sobre
ele se abrirão os céus para derramar a bênção do Espírito do Santo Pai, enquanto ele mesmo der
rama o Espírito de graça sobre Israel para que todos se tomem filhos de Deus e andem nos seus
mandamentos. Os inimigos de Israel serão destruídos... o fim dos incrédulos é o fogo eterno...” .
Cf. Strack-Billerbeck, op. cit., IV, p. 803. E ssa ideia de que o significado dado por João subsista
especialmente nareintrodução do elemento do derramamento do Espírito Santo dentro da totalidade
da expectativa judaica futura salvando-o assim do esquecimento, como visto por W. Michaeli,
Tanfer, Jesus, Urgemeinde, 1928, p. 36, não nos transmite uma descrição confiável.
25. Isto é muito comumente aceito; veja, sobre a literatura posterior, p. ex., G. Sevenster, De
Christologíe van het Nieuwe Testament, 1946, p. 78ss.
26. A. Freiherr von Gall, Basileia tou theou, 1926, p. 430ss.
27. Cf. também, de minha autoria, Zelfopenbaring en Zelfverberging, 1946,p. 36ss.
28. Para a exegese dessa passagem , veja § 46.
29. Para m ais detalhes veja § 25.
30. Para a interpretação m essiânica de Dn 7.13 na antiga sinagoga, veja Strack-Billerbeck, op. cit.,
I, págs. 485, 957.
31. Cf., p. ex., Strack-Billerbeck, op. cit., I, p. 199.
32. Veja este ponto no § 24.
33. Para ser entendido como a visão escatológica de “ face a face” ,cf., p. ex., E. Klostermann, Das
Matthãusevangelium2, 1927, p. 37; Strack-Billerbeck, op. cit. I, p. 207.
34. Sobre essa passagem , veja a descrição detalhada no livro de minha autoria, De strekking der
bergrede naar Mattheiis, 1936, p. 88ss.
35. Cf. acima, seção 4.
36. Op. cit., págs. 56-80.
37. Op. cit., págs. 81-110.
38. Para um argumento m ais elaborado contra essa interpretação de Dodd, veja também W. G.
Kümmel, Verheiszung und Erfüllug, 1945, p. 19ss.
39. De olho no original aram aico pressuposto, precisam os traduzir am bos com o “ O reino de Deus
chegou” , The Parables o f the Kingdom6, p. 44; cf. também H. M. Matter, Nieuwere opvattingen
omtrent het Koninkrijk Gods in Jezus ’prediking naar de Synoptici, 1942, p. 30ss. Veja, ainda,
a opinião de R. H. Lightfoot, J. Leipoldt e A. T. Cadoux, em Küm m el, op. cit., p. 12.
40. Por isso, Dodd aceita que Mateus, aqui em 3.2, não soube discernir corretamente entre as palavras
de João e as de Jesus, o que mostra ser assim em outros lugares, op. cit., p. 48. E, no entanto, evi
dente que, por esse motivo, essa suposição afeta grandemente a credibilidade da visão de Dodd.
41. Cf. também Kümmel, op. cit., p. 14.
42. Op. cit., págs. 55, 56.
43. Cf. p. 12ss.
44. Bultmann se dissocia explicitamente das tentativas feitas pelos liberais e pelos adeptos da teologia
das religiões comparadas para purificar o N ovo Testamento de qualquer conteúdo “m ístico” , cf.
sua obra Neues Testament und Mythologie, 1942.
45. Cf. acima, p. 14.
46. Isso também é reconhecido por G. Delling, D as Zeitverstãndnis des Neuen Testaments, 1940,
p. 99; cf., ainda, Grundmann, TW B II, p. 21ss, o artigo sobre “ dei” .
47. Cf., abaixo, § 49.
48. Veja, sobre isso, também Kümmel, Verheiszung und Erfüllung, p. 88.
49. Delling, D as Zeitverstãndnis des N.T., 1940, p. 118.
50. Op. cit., p. 106.
51. Op. cit., p. 119.
52. Christus und die Zeit, p. 80. Cf., ainda, as objeções feitas por Schniewind contra Bultmann, em
Kerugma und Mythos, editado por Hans Wemer Barstsch, 1948, págs. 114, 116ss., 122ss.
53. Veja, também, abaixo, § 47.
384 A v in d a d o R e in o
reino. M as, então, a passagem parece afirmar que João permanecerá fora do reino e essa é uma
concepção que, para mim, é inaceitável; cf. também Klostermann, op. cit., p. 98.
70. Para uma explicação dessa tradução, veja, de minha autoria, Het Evangelie naar Mattheüs, I,
1941, págs. 216, 217 (nota). Para ver o outro lado, veja G. Schrenk, em TWB, I, p. 608ff., artigo
sobre “biazom ai” , e Kümmel, op. cit., p. 71. D e acordo com esses escritores, a tradução deveria
ser: “ o reino está sofrendo violência e os violentos o estão saqueando” . Eles, então, o entendem in
malam partem. A última parte é interpretada como dizendo que hoi biastai (“os violentos”) tentam
roubar o reino do homem. Alguns comentaristas explicam “ os violentos” como sendo o mundo
dos espíritos maus (assim , p. ex., M. Dibelius, Die urchristliche Ueberlieferung von Johannes
dem Tãufer, 1911, p. 26ff, em Kümmel, p. 72); outros se referem aos opositores judeus (assim ,
p. ex., Schrenk, op. cit., Wendland, op. cit., p. 48); outros deixam essa questão em aberto (K üm
mel, p. ex., op. cit., p. 72). A s objeções contra esse ponto de vista são: (a) que não há nenhuma
menção de tal oposição violenta ao reino em todo o contexto. É por esse motivo que Kümmel,
bem como Schrenk, separa esse dito do seu contexto tanto em Mateus como em Lucas; (b) que a
versão de Lucas fala muito decididamente de uma vinda benéfica da basileia ( evanggelizetaí); (c)
que o roubar da basileia por terceiros é um pensamento praticamente inaceitável; G. Sevenster,
De Christologie van het N. T., 1946, cita essa passagem como prova da presença da basileia, sem
fazer uma escolha entre os dois conceitos, págs. 19, 20.
71. O ponto de vista de Albert Schweitzer, de que arpazousin significa, às vezes, “ forçar” , ou seja, trazer
a vinda do reino para m ais perto à força (por realizações morais especiais, Mt 5-7, pelos discípulos
tomando sobre eles as aflições messiânicas, Mt 10, pelo autossacrifício de Jesus, M t 20. 28) é muito
cômodo para a explicação escatológica consistente de Schweitzer da vida de Jesus, mas não encontra
apoio nem no uso lingüístico nem no contexto; cf. também Schniewind, Matthew, p. 140.
72. Hauck, op. cit., p. 207; veja, também, E. Klostermann, D as Lukasevangelium, 1929, p. 167;
Greijdanus, op. cit., II, p. 786.
73. Veja abaixo, § 17.
Capítulo III
1. Veja, p. ex., Kümmel, op.cit., p. 64. Ele mostra muito claramente que a palavra ephthasen, aqui
usada, não pode ter o significado de eggiken, como também eggiken, em Mt 3.2,17 não pode ter
o significado de ephthasen.
2. D e acordo com R. Otto, op.cit., p. 79, essa referência à presença da basileia é uma prova de que
o que havia sido colocado em dúvida há muito já havia sido ensinado por Jesus. A palavra ara
significaria algo como “ realmente” , “ deveras” e voltaria a focalizar as declarações anteriormente
feitas por Jesus de que o reino havia chegado. M as esse ponto de vista só pode ser considerado
como uma suposição.
3. E ssa é uma alusão a Is. 49.24ss: “ Tirar-se-ia a presa ao valente? A caso, os presos poderiam fugir
ao tirano? M as assim diz o Senhor: Por certo que os presos se tirarão ao valente, e a presa do
tirano fugirá, porque eu contenderei com os que contendem contigo e salvarei os teus filhos” . Cf.
também Bultmann, Geschichte2, p. 103; R. Otto, op.cit., p. 77.
4. Cf. E. Stauffer, Die Theologie des N.T., 1945, págs. 103-105.
5. Johannes Weiss, Die Predigt Jesu vom Reiche Gottes, 1892, p. 88ss; cf. também W. M ichaelis,
Tãufer, Jesus, Urgemeinde, 1928, p. 74; R. Bultmann fala do “ sentimento glorioso da atitude
escatológica” e do “ sentimento escatológico de poder” , Geschichte, págs. 110, 174.
6. Cf. H. D. Wendland, Die Eschatologie des Reiches Gottes bei Jesu s , 1931, p. 48; Cf. ainda
Kümmel, op. cit., p. 65.
7. Cf. Schniewind, op. cit., p. 30; E. Stauffer, op. cit., p. 104; veja, ainda, §22.
8. Cf. ainda, de minha autoria, Zelfopenbaring en Zelfverberging, 1946, págs. 51, 52; G. Sevenster,
De Christologie van het N.T., 1946, p. 108.
386 A v in d a d o R e in o
três associados num único reino de demônios e pecado e os coloca em oposição ao domínio de
D eus e ao Espírito de D eus” .
29. Hen edesen ho satanas.
30. A. Plummer, A Criticai and Exegetical Commentary or the Gospel acc, to St. Luke,~ 1942, fala
de “um demônio” e se refere a L c 11.14; M c 9. 17, 25 e prefere entender isso como sendo uma
possessão demoníaca, págs. 341, 342; do mesmo modo, W. M anson, The Gospel ofLuke5, 1945,
p. 164, m as quanto a isso ele fala de um “traço secundário” , pois os sintomas comuns do estado
de estar possesso não estão presentes. Além disso, Jesus não trata esse caso como se estivesse
frente a um possesso. Greijdanus não vê esse como um caso de possessão, m as escreve: “ esse
era um sofrimento físico infligido pela atividade de Satanás” , op. cit., II, p. 652. E. Klostermann,
Markusevangelium, págs. 14, 15, escreve que, mesmo que, geralmente, a cura de enfermidades
e de possessão demoníaca seja distinta, também se torna manifesto, aqui e ali, um conceito m ais
primitivo, de acordo com o qual todas as enfermidades são causadas por demônios, e, como
evidência disso, ele cita também esse caso.
31. Epetimesen tooi puretooi.
32. Cf. Greijdanus, Luk. I, págs. 225, 226.
33. Greijdanus escreve: “ O Senhor trata a tempestade, as ondas, bem como a febre, como criaturas
racionais. Isso é m ais bem entendido no caso do poder dos demônios agindo na tempestade” ,
op. cit. I, p. 381.
34. Cf. Stauffer, Die Theologie des N.T., 1945, p. 104.
35. Stauffer em TWB o artigo sobre “epitiman” , II, p. 623.
36. Sevenster, op. cit., p. 32; cf. também Oepke, TW B II, p. 334, o artigo sobre “ egeiro” .
37. Cf. Wendland, op. cit., p. 238: “ Se Jesus se posiciona como o portador do poder vivo, purificador
e renovador de Deus, em contraste com o pecado, a enfermidade e os demônios, ele não pode ser
diferente em oposição à morte” .
38. Cf., p. ex., Klostermann, Markusev., págs. 116, 117.
39. Cf., de minha autoria, Mattheüs, II, 1946, p. 85.
40. K ai dunamis kuriou en to iasthai auton. D e acordo com alguns escritores, a palavra kuriou
significa o poder de D eus operando em Jesus e por meio dele; é, no entanto, m ais provável que
o nome kurios seja usado aqui para designar o próprio Jesus, do mesmo modo que em outros
lugares em Lucas.
41. Cf. Grundmann, op. cit., p. 308.
42. Cf., também, Sevenster, op. cit., p. 35ss; Matter, op. cit., p. 91.
43. Cf. H. W. Beyer, TWB, II, p. 601, o artigo sobre “ episkeptomaí” .
44. Cf., também, Kümmel, op. cit., p. 69.
45. É notável que o substantivo não é encontrado em Lucas, m as o verbo euaggelizesthai é usado
ainda com m ais frequência (p. ex., 4.18, 43; 8.1; 16.16; 20.1). Cf. J. Schniewind, Euangelion, I,
1927, p. 13.
46. Veja um ponto de vista diferente em J. de Zwaan, Inleiding tot het N.T., I, 1941, p. 21s.; cf.
também Schniewind, op. cit., p. 4.
47. Isso foi claramente estabelecido no livro de Schniewind com base em investigações anteriores
feitas por Johannes Muller, A. Schlatter (em Neutest. Theologie, I, 1909, de sua autoria) e M.
Burrows (“The Origin o f the Term ‘G ospel’” , em Journal ofBiblical Literature, 1925, págs. 21-33)
e em oposição ao ponto de vista de que a expressão euangelion (evangelho) tinha sido introduzida
posteriormente pela igreja, tendo se originado no helenismo (segundo Wellhausen, Einleitung in
die drei ersten Evangelien, 1905, p. 108ss.). Sobre a história dessa investigação, veja Schniewind,
Euangelion, 1927, págs. 5-18 e a literatura em WTB, II, p. 705.
48. Além de Is 52 e 61, a figura do mensageiro da paz que anuncia a intervenção salvadora de Yahweh
(como Rei) também é encontrada em Is 40.9; 41.27 (cf. ainda N a 2.1; SI 68.12). Veja a discussão
sobre essas passagens em Schniewind, op. cit., I, págs. 34-51; também J. Ridderbos, De profeet
Je saja IP, 1934, p. 126.
388 A v in d a d o R e in o
49. Cf., também Friedrich, WTB, II, págs. 712-714, o artigo sobre “ euaggelizom ai” e o material em
Strack-Billerbeck, III, 1926, págs. 4-11.
50. Veja ainda, de minha autoria, De strekking van de bergrede naar Mattheiis, 1936, p. 27.
51. Cf., também, Friedrich, TWB, II, p. 715, o artigo sobre “ euaggelizom ai” : “A mensagem cria uma
nova era e tom a o sinal do cumprimento m essiânico possível. A palavra trás para perto o domínio
de D eus” . A ssim também, em especial, Schniewind, Euangelion, I, p. ls s ., e pronunciamentos
feitos por outros autores (embora em sentidos bem diferentes) aqui mencionados.
52. Cf., p. ex., também W. Foerster, TWB, II, p. 566, o artigo sobre “ exousia” .
53. Conforme Kittel, TWB, IV, p. 106, o artigo sobre “ lego” .
54. Cf., também, Schniewind, D as Evangelium nach Markus5, 1949, p. 59ss.
55. phobeisthai, thambein, thaumazein, ekplettesthai, thorabeisthai, existasthai.
56. “Portanto, as expressões de medo e assombro servem para enfatizar o conteúdo revelacional e,
desse modo, o significado cristológico de inúmeras cenas sinópticas de Jesus.” G. Bertram. TWB,
III, p. 6, o artigo sobre “thambos” ; veja ainda p. 36ss, o artigo sobre “thauma” .
57. Didache kaine kat’exousian.
58. Cf., p. ex., Klostermann and Hauck sobre Mc 1.27; ainda G. Sevenster, op. cit., p. 41ss., e B er
tram, op. cit., p.6.
59. Conforme Kittel, op. cit., p. 128. E ele acrescenta: “M as essa não é a ‘teologia da igreja’ , porém,
de acordo com os inúmeros testemunhos da tradição reunida, é o conhecimento de Jesus sobre sua
m issão” . Cf., também, Friedrich, TW B, II, p. 725, o artigo sobre “ euaggelion” : “ O que foi dado
com a sua pessoa constitui o conteúdo do evangelho. Jesus introduz a basileia; em sua Palavra,
o reino é realizado” , p. 726.
60. Cf., também, K. L. Schmidt, TW B, I, págs. 588, 589, o artigo sobre “basileia” .
61. Conforme, p. ex., H. D. Wendland, op. cit., p. 41, em concordância com Michaelis. Ele não acredita
que o tempo presente estin esteja em conflito com esse, pois, em aramaico - a língua falada por
Jesus - não há equivalente. Também Kümmel, op. cit., p. 26, cf. p. 74, considera o significado
das bem-aventuranças como sendo “ escatológico-futuro” , como Klostermann que se refere a Mt
5.4-9; M c 10.14, D as Matthãusevangelium, p. 35. Ele caracteriza a posse da salvação como uma
prom essa; Das Lukasevangelium, p. 79. Zahn chama estin de um presente eterno, que também
pode ser estai. Que estin deve ser visto como futuro está implícito na ligação entre os vs. 3a e 10a
com 3b e 10b; “ Os pobres e os perseguidos não podem estar simultaneamente nessa condição e
em posse da basileia” , D as Ev. D. Matth.1', 1922, págs. 194, 195; cf. ainda Schniewind, Mattk,
p. 39. M as A. Schlatter, Der Ev. Matthãus, 1933, p. 134 diz: “ Com esse estin o futuro adentra
o presente. A os pobres lhes é dito terem parte na obra real de D eus como possessão atual” ; cf.
também Grosheide, Matth., p. 46, e A. Plummer: “ ‘é...’ não ‘ será’ . N ão é um a prom essa, como
nas bem-aventuranças seguintes, mas a confirmação de um fato” . A Criticai andExegetical Com-
mentary on the Gospel according to St. Luke5, 1942, p. 180.
62. Por isso, também não é claro o motivo pelo qual o reino dos céus não pode ser proclamado
como “ a p osse” dos pobres de espírito, como é, p. ex., a opinião de H. D. Wendland op. cit.,
p. 41. O que importa é o que é entendido por esse conceito. A qualificação “posse” não pre
cisa, necessariamente, indicar uma ideia imanente do reino destacado do caráter escatológico
e teocêntrico do reino. N ão é a ideia da imanência do reino como tal que é censurável, m as a
m aneira como tem sido com frequência definido; cf., também, M ichaelis, Es ging ein Sãmann
aus, 1938, págs. 113-116.
63. P. ex., J. Jerem ias, Die Gleichnisse Jesu, 1974, págs. 100, 101.
64. C. H. Dodd, The Parables o f the Kingdom6, 1943, págs. 112, 113.
65. E no mínimo duvidoso seguir em frente e considerar as circunstâncias encontradas na parábola
como parte integrante do simbolismo da parábola, ou seja, que o tesouro fora encontrado, da
primeira vez, acidentalmente e, da segunda vez, de uma maneira bastante diligente (cf. Matth.
I. p. 266).
66. Verheiszung imdErfiillung, 1946, p. 73, A. 193.
N o ta s 389
67. M ichaelis pergunta-se se o tesouro pode representar o próprio Jesus ou a palavra do reino (como
se o reino pudesse ser algo distinto de Jesu s e o evangelho por ele pregado; compare Mc 10.29
com L c 18.29!). M esm o que a parábola pareça apontar para algo presente, M ichaelis acredita que
é muito provável que, nesse caso, a referência seja ao próprio reino e, então, conclui que o tesouro
adquirido é “ ter parte no reino de D eus ou ser merecedor do reino” , op. cit., págs. 108-112. Há
outras opiniões sobre isto, como, p. ex., A. M. Brouwer, De Gelijkenissen, 1946, p. 152.
68. Dodd, com toda razão, op. cit., p. 113.
69. Veja o Capitulo VI.
70. Lehrbuch der Dogmen geschichte, I4, 1909, p. 81.
71. Jesus, 1929, p. 13; cf. também, de minha autoria, Zelfopenbaring, p. 15.
72. Neutest. Theol. I, págs. 308, 309.
73. Evangelium und Welt, 1929, p. 44; cf. também págs. 77, 78.
74. Cf. § 6.
75. Sobre o conceito da m essianidade de Jesu s formado por Schweitzer e seus partidários cf., de
minha autoria, Zelfopenbaring en Zelfverberging, págs. 8ss, 17ss.
76. E sse pensamento se encontra registrado em seu livro Tãufer, Jesus, Urgemeinde, 1928, como
também no livro menor: Reich Gottes und Geist Gottes nach dem N.T., 1931, p. 9.
77. G. Vos: The Self-Disclosure o f Jesus, 926, p. 83.
78. A. Schweitzer, D as Messianitãts undLeidensgeheimnis2 1929, p. 67.
79. Op. cit., págs. 68ss.; cf. também R. Otto, Reich Gottes und Menschemohn, 1934, p. 190ss.,
embora não aceite a m essianidade de Jesus como sendo puramente futura (entre outras, ele aplica
as declarações sobre a Paixão ao Filho do Homem ao presente, cf. p. 195).
80. N . B. Stonehouse, The Witness o f Matthew and M arkto Christ, 1944, p. 16ss.
81. G. Sevenster, op. cit., p. 101 ss.
82. Cf. também G. Vos, op. cit., p. 85: “ Está simplesmente fora de cogitação que Jesus tenha colocado
a indicação ao ofício propriamente dito como pertencente às coisas futuras” .
83. Cf., p. ex., H. J. Holzmann, D as messianische Bewusstsein Jesu, 1907, p. 45ss e a literatura
citada aí.
84. D os escritores m ais recentes, p. ex., Bultmann, Geschichte, p. 264 A.
85. Cf. p. ex., Hauck sobre M c 1.10, op. cit., p. 15: “ O enchimento do Espírito é o equipamento
para o oficio do M essias” .
86. A ssim W. M ichaelis, Reich Gottes und Geist Gottes nach dem N.T., p. 4. Veja, no entanto, J.
Ridderbos, De profeet Jesaja, II,2p. 205. Em outro lugar, em At 10.38, Jesus de Nazaré é referido,
explicitamente, como “ungido com o Espírito Santo e com poder” .
87. M ichaelis, op. cit., págs. 13, 17.
88. He toupneumatos blasphemia, M t 12.31; blasphemein eis topneuma to hagion, M c 3.29, cf.
L c 12.10
89. Eipein kata tou pneumatos tou hagiou.
90. Em oposição a M ichaelis, op. cit., p. 15.
91. Op. cit., p. 11.
92. Op. cit., p. 15.
93. Op. cit., p. 17.
94. Cf., também, Sevenster, op. cit., p. 101.
95. Segundo A. A. van Ruler, De Vervulling der wet, 1947, p. 83; cf. também R. Otto, op. cit., p.
13 ls s .; 167.
96. A. Hamack, “ Ich bin gekommen” , Zeitschr. F. Theol. Und Kirche 22, 1912, p. lss.
97. Op.cit., p. 105.
98. J. Schneider, TWB, II, p. 664, o artigo sobre “ erchomai” , cf. também Bultmann, Geschichte,
p. 168.
99. Segundo Bultmann, op. cit., págs. 163-174.
100. Cf. E. Stauffer, TWB, II, p. 345, o artigo sobre “ego” .
390 A v in d a d o R e in o
101. Cf. Greijdanus, op. cit., “ É verdade que o Senhor começou a acender este fogo com sua vinda
à terra; todavia, esse fogo foi totalmente aceso somente com o término de sua obra de redenção,
sua ressurreição, sua ascensão ao céu e com a descida do Espírito Santo” .
102. Cf., também, Manson, op. cit., p. 160; Klostermann, op. cit., p. 141.
103. Stauffer diz, acertadamente, sobre este assunto: “O que Jesus diz aqui não é uma nova percepção
de uma antiga verdade; o que ele exige não é meramente um novo avanço no caminho interminável
em direção ao ideal eternamente válido. A validade desse comando é inteiramente ligada à compe
tência de sua pessoa e à legitimidade de sua missão. O M essias veio e, capacitado pela autoridade
de Deus, convoca o seu povo. A validade de suas palavras deriva somente do seu ego” .
104. K. L. Schmidt, TWB, I, págs. 590, 591, o artigo sobre “B asileia” .
105. Elaborado especialmente em seu trabalho Kõnigsherrschaft Christi und Kirche im Neuen
Testament2, 1946.
106. Op. cit., págs. 11-19.
107. Cullmann, op. cit., p. 19, n. 24; Schmidt, op. cit., p. 582.
Capítulo IV
18. Cf., também ,Plummer, op. cit., págs. 230, 231; Klostermann, op. cit., p. 101; “ Os demônios
estavam com medo de que fossem mandados por Jesus, nesse momento, ao lugar de punição” ;
Joachim Jerem ias, TWB, I, p. 9.
19. A frase em Mc 5.10 é m ais fraca: “N ão os mandassem para fora do país” , m as também aponta
para a perda da liberdade de movimento dos demônios.
20. Cf. Delling em TWB, III, p. 402, o artigo sobre “kairos” : “ O inicio do poder m essiânico sobre
os demônios” . Fora de cogitação está a explicação dada por Zahn, de que, com a expressão “ o
tempo” , os demônios queriam dizer o tempo em que Jesus também podia comandar num país
pagão, op. cit., p. 367. O contexto não dá m argem para essa interpretação.
21. Cf. acima, § 9.
22. Gesch. d. syn. Trad., p. 224.
23. D as Mrkev., p. 47.
24. D as Ev. d. Mark., págs. 96, 97.
25. D as Ev. d. Mark., págs. 153, 154.
26. Evangile selon S. Marc., 1947, págs. 129, 130.
27. O. Bauem feind, Die Worte der Dàmonischen im Mr., 1927, págs. 42-45.
28. Op. cit.
29. D as Ev. d. Lk, p. 355.
30. Der Ev. Matth., p. 294.
31. The Gospel ofLuke5 (em The MoffattN. T. Comm.), 1945, p. 96.
32. Op. cit., I, p. 388.
33. Cf., p. ex., Zahn, op. cit., p. 350; veja também The Westminster Elistorical Atlas o f the Bible,
1946, págs. 83, 84.
34. “A pesar de a razão para isso não nos ser conhecida com certeza, é apropriado para nós contem
plarmos com reverência e adorarmos com devota humildade o julgam ento oculto de D eus” . Ioan.
Calv., In Harmonium etc. ed. Tholuck, 1833, p. 233.
35. Th. H. Robinson, The Gospel o f Matthew6 (em The Moffatt N. T.Comm.), 1945, p. 77.
36. The Mission and Message o f Jesus, 1946, p. 76.
37. Lembra-nos da explicação sobre os milagres dada pelo racionalista H. E. G. Paulus, 1828. Cf.
A. Schweitzer, Gesch. d. Leben Jesu Forschungf, 1933, p. 49ss.
38. E. P. Gould, A critic. andexeg. comm. on the Gospel acc. to St.Mark6,1921, p. 92.
39. Cf. § 10.
40. Cf., p. ex., também Schniewind, Matth., págs. 29, 30; M. Albertz., Die Botschaft das N. T., I,
1947, p, 13ss.
41. Veja, também, Klostermann sobre M c 1.38, op. cit., p. 19.
42. Cf. Schniewind, Markus, págs. 52, 53; Hauck, Markus, p. 28.
43. N o m esmo sentido, também, aparentemente, Klostermann, que nega que M arcos teria em mente
“uma im possibilidade m oral” , op. cit., p. 56.
44. Greijdanus quer explicar isso dizendo que os habitantes de Nazaré não levaram os seus enfermos,
“portanto ele não teve a oportunidade de curá-los” , Lukas, I, p. 215. M as isso não se encontra
escrito no texto e nem pode ser deduzido a partir da perspectiva de M c 6.2 e L c 4.23. Em Nazaré,
o povo realmente esperava e desejava ver milagres. Porém, precisamente, ao recusar-se a realizá-
los, Jesu s fez com que o propósito dos m ilagres sobressaísse ainda m ais claramente.
45. Cf. Hauck, op. cit., p. 98: “ei completa isso com ‘faça Deus isto e muito m ais a m im ’, uma
autoimprecação semítica que tem a intenção de ser um a afirmação bastante forte” . Schniewind
traduz: “ nunca m ais” , op. cit., p. 105.
46. Com respeito à expressão “três dias e três noites” , veja, de minha autoria, Mattheüs, I, págs. 244,
245; TWB, I, p. 148, sobre o artigo “haides” ; Schniewind, Matth., p. 157.
47. Mesmo que essa palavra não seja interpretada primariamente no sentido de tentação (diabólica), mas,
de preferência, no sentido neutro de “ colocar à prova” , seu significado factual é o de uma tentação no
sentido de Mt 4.8 (cf. também peirazein em Mt 4.1; M c 1.12; L c 4.2 e ho peirazoon em Mt 4.3).
392 A v in d a d o R e in o
que é explicada como sendo a ‘palavra’ é o evento de Cristo ( ‘das Christus-Geschehen’) que
ocorre em Jesu s” . E, na p. 124, ele escreve: “O que a explicação da parábola da semente com sua
aplicação do termo ‘a palavra’ tenta afirmar sobre Jesus, nada m ais é do que aquilo que constitui
o pano de fundo último para toda a tradição sobre Jesus: como nestas palavras: ego de lego humin
(Mt 5 .22ss), no julgam ento das cidades (Mt 11,20ss), no poder da palavra e a ação com referência
ao homem paralítico (Mt 9.5ss.)” .
73. Cf., também, J. Ridderbos, Predikende het Evangelie des Koninkrijks, 1911, págs. 64-74.
74. Schniewind, Markus, p. 73.
75. Isso se tom a ainda m ais evidente se, juntamente com Jerem ias, pudermos supor que a parábola
está baseada no costume de sem ear a semente antes de arar a terra: “ A gora se tom a compreensível
por que ele sem eia no caminho: ele semeia propositalmente no caminho que os moradores da
aldeia faziam ao cruzar o campo de restolhos porque este será arado com o resto do terreno. Ele
semeia, propositalmente, entre os espinhos que estão secos na terra de pousio porque por estes
também passará o arado. E não precisaremos m ais nos admirar de ver grãos de milho caindo em
solo rochoso porque as pedras estão cobertas por uma fina cam ada de solo fértil e são praticamente
indistinguíveis do campo de restolhos até que o arado tope com estes com um rangido. Portanto,
o que parece ser inapropriado para um ocidental prova ser a regra nas condições na Palestina” ;
op. cit., p. 6. Cf., também, G. Dalman, Arbeit und Sitte in Palãstina, II, 1932, p. 194, que, no
entanto, não chega a um a decisão.
76. Schniewind, Markus, p. 71.
77. Tudo isso recebe uma “dimensão” m ais profunda com os anúncios posteriores dos sofrimentos
e morte de Jesus. Isso será visto mais adiante, § 23.
78. Dodd, op. cit., págs. 180-183.
79. W. M ichaelís, E s ging ein Samann aus, zu sãen, 1938, págs. 34-39. Compare, no entanto,
também com págs. 44-45, onde M ichaelis admite que essa tendência não aparece na explicação
da parábola dada por Jesus. M ichaelis sugere, também, que, nos sinóticos, temos somente um
fragmento da explicação de Jesus. Cf., também, J. Jerem ias, Die Gleichnisse Jesu, 1947, p. 112,
o qual reafirma a interpretação de M ichaelis da parábola assim : “Apesar de qualquer fracasso, o
domínio real de D eus será revelado” (“ Aliem M iszerfolg zum Trotz kommt die Offenbarung der
Kõnigsherrschaft Gottes” ).
80. É bastante notável que, nas exposições valiosas de Küm m el e também nas de H. D. Wendland,
não se encontra qualquer discussão exaustiva sobre a parábola do semeador. O resultado disso é
que, para a determinação da natureza e da presença da basileia, uma informação bastante funda
mental seja ignorada, o que tem tido efeitos negativos sobre a interpretação das outras parábolas.
Aqui, também, a “ situação” que está na base da parábola e que a determina inteiramente parece
ser ignorada.
81. Cf., também ,Fr. Hauck, op. cit., p. 57, e A. Oepke em TWB sobre Mt. 10.26, o artigo sobre
“ kalupto” , III, 1938, p. 559 e o artigo sobre “krupto” , III, p. 974.
82. Nesse contexto, essa exegese parece ser m ais óbvia do que aquela em que o “ medir” não se refere
ao medir a si m esm o (isto é, a apropriação da salvação implícita na Palavra), m as ao medir aos
outros, ou seja, a m edida feita na pregação do evangelho (assim Hauck, op. cit., p. 57: “ Se eles,
ricamente, repartirem o evangelho ao povo à espera da mensagem da salvação, os discípulos
receberão uma rica recom pensa”). Porém, se fosse assim , deveríamos esperar que a frase com e
çasse assim : “ Atentai para o modo como (ou o que) pregais” e não “Atentai no que ouvis” ! Cf.
também Schniewind, op. cit., p. 77.
83. Cf. também § 15.
84. Cf., p. ex., A. M. Brouwer, Degelijkenissen, 1946, p. 143, e Zahn, D. Ev. d. Matth.A, 1922, págs.
493, 494; A. Schlatter, Der Evangelist Mattháus2, 1933, p. 442.
85. Em primeiro lugar, essa concepção está em conflito com o v. 38, onde é dito, de maneira explicita,
que o campo, onde o trigo e o jo io crescem juntos (não é a igreja, m as) é o mundo (kosmos). Por
tanto, a mistura do trigo e do jo io se refere ao intercurso de crentes e descrentes em todo o mundo,
394 A v in d a d o R e in o
em todos os tempos. Além disso, a visão acim a m encionada significaria a proibição da disciplina
eclesiástica tão enfaticamente ordenada por Jesus em outra parte. Zahn diz que esse não é o caso
aqui, m as deixa de comentar sobre o que fazer com o “ deixai-os crescer juntos” e o pensamento
da basileia na igreja visível e passagens como Mt 16.19; 18.15ss. À s vezes, tentam fundamentar
esse conceito no v. 41, em que é dito que os anjos de seu reino (ektes basileias) ajuntarão “ todos
os escândalos e os que praticam a iniqüidade” . Admitimos que, nesse caso, a palavra basileia não
é usada no sentido futuro-escatológico (como, p. ex., Bultmann: “ do reino que então aparece” , op.
cit., p. 203'), pois a erva daninha será removida da boa colheita que havia brotado; e também porque
foi usado o ek eletivo, e não o apo preventivo. N o entanto, a basileia não pode ser entendida como
uma “ comunidade visível” , “ a igreja” (assim Zahn, loc. cit.; c f também Klostermann, op. cit. p.
123). Aqui, basileia se refere, no sentido geral, àquilo que tem sido produzido pela boa semente
sem eada no mundo (cf. também Schlatter, op. cit., p. 455). Aqui, o foco não está na igreja como
comunidade santificada e separada de acordo com a lei de Cristo; cf. § 36.
86. A ssim , p.ex., já Jerônimo, veja Klostermann, op. cit., p. 121.
87. Cf. Dalman, Arbeit und Sitte, II, 1932, p. 325 e a literatura aí citada.
88. Portanto, a conclusão não é que “o julgam ento é adiado porque é preciso que os maus e os bons
se manifestem claramente” , pois, na parábola, o jo io ainda não é exterminado mesmo depois de
ser completamente manifesto. Também não é que “o total amadurecimento do m al e do bem
requer um adiamento do julgam ento” , pois o jo io não é poupado porque ainda precisa amadure
cer, m as sim por ser muito arriscado arrancá-lo antes do trigo. Portanto, nada de alegorias! Isso
não significa que o adiamento do julgam ento não está revelado na pregação de Jesus. Sobre esse
fato, veja § 20, 21.
89. Cf. também M. J. Lagrange, Evangile selon Saint Matthieu5, 1941, p. 278. Schlatter, também,
op. cit., p. 448, dá esta explicação: “No ambiente em que Jesu s se encontrava, todos pensavam
imediatamente num ju iz quando o M essias era mencionado. Será que Jesus não renunciou ao seu
ofício messiânico por sua paciência bondosa e sua graça perdoadora? A sua resposta foi que na
quele momento, o reino estava sendo proclamado sem restrições; perdão e chamado são oferecidos
a todos. Porém, isso não viola a ordem jurídica” . Schlatter acrescenta que a tarefa imposta aos
discípulos implica condições m istas na igreja e que essa parábola mostra (ainda m ais claramente
do que a parábola do jo io e do trigo) que a aplicação da ordem jurídica não é uma questão para os
discípulos. N o seu sentido absoluto (ou seja, de olho no julgam ento final), isso é correto, m as está
sujeito a ser mal entendido, pois, na igreja, há, certamente, uma ordem jurídica e a sua “ execução”
(pelo homem) é um mandamento. A s parábolas, aqui, não estão preocupadas com a igreja, mas
falam da m anifestação geral do reino no mundo. A purificação, n essa parábola, só pode estar se
referindo à purificação divina no juízo final. N essa parábola, há, ainda, menos advertência contra
qualquer ação prematura do que na parábola do jo io entre o trigo, “pois é totalmente impossível
pensar em retirar o peixe ruim da rede enquanto ainda se está pescando” , Lagrange, loc. cit. Os
problemas a respeito da igreja ficam fora da discussão. A inclusão da igreja nessa discussão apenas
confunde. E ssa observação também vale para a exegese de Zahn, op. cit., 501.
90. C. H. Dodd, op. cit., págs. 187-189. Ele escreve: “ O reino de Deus... é como o trabalho de pescar
usando uma rede de arrasto, pois o apelo é feito a todos indiscriminadamente; todavia, quanto à sua
natureza, é um trabalho seletivo; e, lembremo-nos, essa seleção é o julgamento divino, apesar de os
homens atraírem esse julgamento sobre si mesm os por causa de suas atitudes” ; p. 189.
91. Kümmel, op. cit., págs. 83, 84.
92. M ichaelis, op. cit., p. 122.
93. Schniewind, op. cit., p. 168; cf., também, Brouwer, op. cit., p. 155.
94. Cf., também, Michel TWB III, o artigo sobre “kokkos” , p. 811, para explicação deM t. 13.31-32
e passagens paral.: “ O homem que espalha a semente e o campo que a recebe são materiais cos
tumeiros para parábolas; neles, estão escondidas as referências m isteriosas de Jesus a si mesmo
e à sua pregação no mundo” .
95. Veja também a exegese elaborada e cuidadosa feita por H. M. Matter, op. cit., págs. 51 -60.
N ota s 395
136. Cf. Hauck, Markus, p. 103: “Em contraste com uma m era comunicação velada, essa predição
e ensino eram desvelados e abertos” .
137. Cf. Jerem ias, TWB IV, p. 1096, o artigo sobre “numphe” , embora ele seja da opinião de que
esse sentido alegórico é, originalmente, estranho a esse dito proverbial (para nós, essa conclusão
de Jerem ias não tem base suficiente).
138. P. ex., Bultmann, op. cit., p. 17; Jeremias, loc. cit.
139. Para detalhes, cf., também, Schniewind, op. cit., p. 157.
140. Cf. Klostermann, Lukasev., p. 141, “ Gethsemanestimmung” (o “m odo” do Getsêmani).
141. Cf., p. ex., Sevenster, Christologie, págs. 109, 110; e especialmente a discussão elaborada
e valiosa de todos os pronunciamentos da Paixão por Vincent Taylor, Jesus and His Sacrifice,
1948, págs. 82-200.
142. Cf. acima, § 18.
143. Cf., para detalhes, de minha autoria, Zelfopenbaring em Zelfverberging , 1946 págs. 5-20.
144. Como Greijdanus quer manter enfaticamente, Bizondere Canoniek, 1947, págs. 226, 227
145. Embora a voz vinda do céu depois do batism o de Jesu s seja um reflexo claro de ls 42.1 (indi
cando o Servo do Senhor).
146. Cf., de minha autoria, Matth. I, p. 60.
147. Veja também Sevenster, Christologie, p. 111.
148. A. Schlatter, Matth., p. 89. A perspectiva de Cullmann, Die Taufiehre des Neuen Testaments,
1948, p. 14, de que “ toda ju stiça” nesse caso significa algo como “ju stiça para todos” é, na minha
opinião, difícil de se manter.
149. Cf., p. ex.,G. Ch. Aalders em Christus de Heiland, 1948, p. 23ss.
150. Cf. R. Otto, Reich Gottes und Menschensohn, 1934, p. 209ss.; veja também, de minha autoria,
Matth. II, p. 17, nota.
151. Cf. G. Dalman, Jesus Jeschua, 1929, p. 110.
152. Em seu artigo muito valioso sobre “ lutron” , TWB IV, p. 341ss., Büchsel parece levar em pouca
conta esse fato ao dizer que as palavras sobre o resgate (M c 10.45) não se referem claramente a
Is 53, p. 344; cf. também os argumentos apresentados por Sevenster, Christologie, p. 112.
153. Cf., também, Beyer, TWB II, p. 85, o artigo sobre “diakoneo” .
154. Cf. Blasz-Debrunner, § 2 8 3 ,4 : “ o semítico circunscreve a relação reflexiva por meio de ‘n efas’
- alma; por conseguinte, na tradução do semítico, às vezes, encontramos ten psuchen autou” ; cf.
também Mt 20.28 (M c 10.45) com lT m 2.6.
155. Veja acima.
156. Em oposição à de Bultmann e Klostermann, que consideram essas palavras de natureza secundá
ria, por presumirem que as m esm as devam ser entendidas no sentido da doutrina helenístico-cristã
da salvação. Porém, veja a discussão de Procksch acerca dos equivalentes no Antigo Testamento
da palavra lutron para a elucidação do sentido de M c 10.45, Mt 20.28, TWB TV, p. 330ss., o artigo
sobre “ lutron” ; e veja também Taylor, op. cit., p. lOOss.
157. Cf., também, Dalman, Jesus Jeschua, p. 110 e Procksch, op. cit.
158. Veja, p.ex., também Büchsel, op. cit., p. 344. Sevenster, op. cit., p. 115.
159. Como Sevenster pensa (erradamente, na minha opinião). E le nega que Deus, nesse caso, bem
como em outros, seja tanto o sujeito quanto o objeto da reconciliação.
160. C f , também, a explicação elaborada de Büchsel, op. cit., págs. 345-348.
161. A ligação com Is 53 foi demonstrada claramente por Sevenster.
162. Cf., também, de minha autoria, o artigo “D e Christologie van het N .T.” , Geref. Theol. Tijdschrift,
ano 47, 1947, p. 60.
163. Abaixo, Cap. IX.
164. Cf., também, Taylor, op. cit., págs. 258ss; 278ss.
165. Cf., p. ex., A. Schweitzer, Gesch. d. Leben Jesu Forschung3, 1933, p. 193ss.; um resumo em
seu livro Das Messianitãts- und Leidens-Geheimnis2, 1929, págs. 1-3.
166. D as Messianitãts- und Leidens-Geheimnis, p. 89.
398 A v in d a d o R e in o
Capítulo V
22. A ssim , o pensamento antigo, iiberal, juntamente com toda espécie de literatura dominada pela
ideologia nacional socialista, explicou o contraste entre Jesus e os fariseus como racial, especial
mente contra a raça judaica! Então, Jesus deveria ter se originado na Galileia de uma população de
cosm ovisão mais sincretista e teria lutado contra a pretensão judaica de ser povo de Deus. Sobre
essas especulações fantasiosas, veja Oepke, Jesus und der Gottesvolkgedanke, a literatura citada e
também suas refutações cautelosas (!) mas conclusivas, Luthertum, 1942, págs. 33-53.
23. Veja § 2 1 .
24. A ssim , aparentemente, Oepke, op. cit., p. 45; cf. também Hauck sobre M c 3.14, op. cit., p. 45
e outros.
25. Schniewind: “ O número dos discípulos representa, numa forma m ais nova, as pessoas das doze
tribos, o novo rebanho de Deus” , Matth., págs. 123-124. E, com respeito ao extraordinário epoiesen
doodeka, em M 3.14, ele escreve: “Ele ‘fa z ’, ele ‘cria’ os doze... isso significa que Jesus cria o
novo povo das doze tribos, cf. Mt 19.28ss; o novo Israel, o novo povo de D eus” Markus, p. 65. E.
Lohmeyer, D as Evangelium des Markus, 1937, p. 75, descreve esse “povo de D eus” como “uma
entidade feita por D eus e, por isso, de valor escatológico” .
26. A exegese dessa passagem m ostra grande divergência entre os escritores. Alguns deles veem nela
uma indicação da restauração do povo de Israel; assim , p. ex., Zahn, Matth., p. 605; m as, em seu
comentário sobre o Evangelho de Lucas, essa visão é um pouco enfraquecida. N esse caso, ele
admite a possibilidade de existirem não israelitas entre o povo das doze tribos. Quanto a isso, ele
se refere a L c 3.8; 13.29, Lucas, p. 6 8 1 *. Schlatter menciona a expectativa judaica da união das
doze tribos, p. ex., em Josefo. N o entanto, ele não encontra tal figura em M ateus ou em qualquer
outro lugar do Novo Testamento. Em sua opinião, essa passagem fala somente do julgam ento sobre
todo o Israel a ser executado por Jesus, no que os discípulos cooperarão, Der Ev. Matth., p. 584.
Aparentemente, também Gutbrod tem a m esm a tendência, TWB III, p. 3 87, o artigo sobre “ Israel” .
Em sua opinião, o nome de Israel não se aplica em nenhum lugar nos sinóticos aos membros da
nova igreja. A opinião de Greijdanus também é de que a expressão “ as doze tribos de Israel” se
refere ao “povo de D eus com seus muitos privilégios antigos” e que a glória dos doze será o fato
de que, mesmo sendo desprezados, algum dia julgarão aqueles que rejeitam ao Senhor e a eles,
Lucas, II, p. 1067. N o m esm o sentido, também Plummer, St. Luke, 1942, (I.C. C.); págs. 502, 503,
e Allen, St. Matthew, 1947, (I.C.C.), p. 212, e, aparentemente, também Rengstorf, Lukas, p. 228.
N a nossa compreensão, essa visão é incorreta. Totalmente à parte do argumento de Zahn contra
ela, Matth., p. 604, os apóstolos sobre seus doze tronos são claramente lembrados na sua unidade
com “ as doze tribos de Israel” (ou seja, como representantes e regentes) e não como juizes que
vão punir Israel. Aqui, a tradução não deveria ser “julgando” , m as “governando” . A metáfora se
refere à glória futura das doze tribos sob o remado dos doze apóstolos e, portanto, só pode ser
entendida como uma indicação da igreja glorificada. A expressão “ as doze tribos de Israel” indica
a igreja futura, utilizando, para isso, o nome do povo antigo de Deus. E la é a continuação do povo
antigo de Deus e seu cumprimento; cf., para essa visão, Grosheide, Mattheiis, p. 232; Schniewind,
Matth., p. 201; T. S. Manson, no The Mission and Message o f Jesus, 1946, p. 509.
*. Ridderbos entende que a igreja substitui Israel sem, com isso, negar que há um futuro salvífico
para o antigo povo de Deus. Cf. seu comentário sobre Rm 11. 25, em seu livro Romeinen, p. 262.
(N. do T.)
27. Veja § 36.
28. Cf. § 38.
29. Cf., também Behm, TWB II, p. 34, o artigo sobre “ deipnon” .
30. Veja, sobre esse ponto de vista, também B. Sundkler, Jésus et lespaiens, em: Revue d'Histoire
et de Philosophie religieuses, 1936, págs. 462-499.
31. Veja, também, a importante argumentação de D. Plooy, Novum Testamentum regnum aeternum,
1932. Ele submete as palavras de Jesus a respeito da aliança no relato da última ceia a uma análise
lingüística elaborada e, a seguir, defende a tese de que o novo pacto inaugurado pela morte de
Jesus nada mais é do que aquilo que é indicado invariavelmente pelo termo “reino” . Ele ainda
400 A v in d a d o R e in o
se refere a um a frase interessante em L c 22. 29, “A ssim como meu Pai me confiou um reino, eu
vô-lo confio (diatithemai)” , frase essa que, em sua opinião e em vista do contexto como um todo,
foi formada pela analogia do diatithemai diathêkên; p. 20.
32. Cf. Schniewind: “Jr 31.31-34 é perceptível em todas as formas das palavras do cálice” . D. Plooy,
op. cit., págs. 9,10.
33. Sobre o problema crítico-textual da “ autenticidade” desse versículo, veja, p. ex., a bem elaborada
discussão de Greijdanus, Litkas II, págs. 1045-1053.
34. Cf., também, Behm, TWB II, p. 136, o artigo sobre “ diatheke” e IV, p. 452 o artigo sobre
“kainos” .
35. Cf. § 22.
36. Como é bem sabido, a passagem não é indiscutível. Alguns dos manuscritos 38. têm kai no
lugar de en; nesse caso, o versículo teria três partes. Outros manuscritos nem mesmo têm o en;
e, finalmente, há a questão sobre se devemos ler eudokia ou eudokias. Preferimos ler a p assa
gem sem kai (que pode ter sido acrescentado posteriormente por causa da analogia com o que
precede) e com en (uma interpretação que parece ser m ais difícil do que sem o en). Além disso,
escolhemos eudokias (com testemunha textual melhor e de interpretação m ais difícil); c f ainda
M . J. Lagrange, Evangile selon SaintLuc 3 1941, p. 77 e Schrenk, TWB II, págs. 145-747, o artigo
sobre “ eudokeo” .
37. Alguns escritores querem aplicar eudokia à boa vontade humana em relação a Deus e sua re
velação: povo de boa vontade ( bonae voluntatis). A ssim , p ex., Lagrange, loc. cit., seguindo a
Vulgata; também Zahn, op. cit., p. 145. M as, em nossa opinião, isso é um erro. Em primeiro lugar,
eudokia não é encontrado em Lucas nesse sentido e raramente no restante do N ovo Testamento
(em Paulo, Rm 10.1; F 1 1.15). Em todo caso, esse uso nesse contexto seria bastante extraordinário,
pois, em sendo assim , a boa vontade humana determinaria, realmente, a extensão da salvação
divina. Por outro lado, nesse cântico dos anjos, no qual tudo fala da glória de Deus, da graça de
D eus e da salvação de Deus, é muito m ais óbvio que a boa vontade de Deus fosse mencionada,
cf. Rengstorf, op. cit., p. 31; W. Manson, The Gospel ofLuke, 1945, p. 18; Plummer, op. cit., p.
58; Klostermann, op. cit., págs. 38, 39; Greijdanus, op. cit., I, págs. 115, 116 e principalmente
Schrenk, op. cit., págs. 748, 749.
38. “ O que foi dito não é nem é particularmente judaico nem universalístico sem quaisquer raízes
redentoras-históricas. E intencionado num sentido escatológico a respeito do povo escolhido de
D eus.” Schrenk, TWB II, p. 748.
39. Cf. Schrenk, op. cit., p. 739.
40. Schlatter, Matth., p. 383, vê isso de uma maneira um pouco diferente. Ele sugere uma consulta
celestial diante de Deus, na qual sua vontade é determinada. M as será que isso pode ser deduzido
da sim ples palavra emprosthen? Cf., também, Preuschen-Bauer, op. cit., s.v. emprosthen, sub d.
41. Bertram, TWB IV, p. 922ss., o artigo sobre “nepios” .
42. Cf., também, Schrenk, TWB II, p. 44, o artigo sobre “ekdikesis” .
43. Cf. Schrenk, TWB IV, p. 192, o artigo sobre “ eklektos” , e M ichaelis, D as hochzeitliche Kleid,
1939, p. 257.
44. Este é indicado pelo tempo aoristo, eudokesa, e pelo significado do verbo, cf. Schrenk, TWB II,
p. 738, o artigo sobre “ eudokeo” ; Zahn, Matth., p. 147. Greijdanus pensa diferente. Ele explica
eudokesa, em L c 3.22, somente como o prazer de D eus em Cristo por causa da obediência de
Cristo no batismo. Em nossa opinião, essa interpretação é equivocada.
Capítulo VI
4. Cf. Greijdanus, op. cit., 1, p. 86: “ Pois é essa gnose que é pretendida aqui, um conhecimento por
meio de nossa própria experiência, prazer, possessão” .
5. Bultmann, TWB I, p. 509, o artigo sobre “ aphiemi” ; Grundmann, TWB I, p. 307, o artigo sobre
“hamartano” , e muitos outros.
6. Cf., também, Grundmann, op. cit.
1. Veja § 11.
8. Cf., também, Schrenk, TWB II, p. 219, o artigo sobre “ dikaioo” .
9. Parece-me que o m esmo se aplica à interpretação que Bultmann faz do kerigma neotestamentário
(depois de aplicar a este a sua “ demitologização” ). Usando as categorias da filosofia existencial
(especialmente as de Heidegger), ele entende a rem issão graciosa dos pecados por D eus como a
libertação do homem do seu passado, ao qual ele se encontra aprisionado. M ais adiante, Bultmann
descreve essa rem issão também como libertar-se “ da esfera do visual, do disponível, do que esta à
mão, do mensurável, o que é, ao mesmo tempo, ‘a esfera do perecível’” . A liberdade de tudo isso é
descrita por ele como viver pela fé de que “ o invisível, o desconhecido, o indisponível, encontra o
homem como amor... e não significa morte para ele, m as vida” , Neaes Testament undMythologie,
incluso em H. W. Barstsch, Kerugma und Mythos, págs. 29, 30. Em outra passagem , ele chama
essa graça de “ o desapego de qualquer coisa que está disponível no mundo; consequentemente,
a atitude da dessecularização, da liberdade” , p. 31.
10. Sobre essas passagens veja também p. 182ss.
11. Cf. W. G. Kümmel, D as Bild des Menschen im N.T., 1948, p. 11 ss, contra Harnack e suas ideias
sobre o motivo básico do evangelho.
12. Cf., p. ex., Bultmann, TWB I, p. 508, o artigo sobre “aphiemi” .
13. De acordo com Schniewind, a frase “porque ele salvará o seu povo dos pecados deles” , Mt 1.21,
emprestada do SI 130.8; Das Ev. nach Matth., p. 13.
14. A ssim , também, p. ex., K. Holl, Urchristentum undReligionsgeschichte2, 1927, p. 19ss.
15. Veja também o Cap. V.
16. Bultmann se expressa da seguinte maneira a partir do seu ponto de vista (o da “teologia da igreja”):
“A nova e específica característica cristã (é) esta: que a igreja está ciente de ter recebido de Deus
remissão de pecados oferecida por meio do ato salvador manifesto em Jesus Cristo” , TWB I, págs.
508-509.
17. Cf., p. ex., Strack-Billerbeck, op. cit., IV, I, págs. 4-15.
18. Veja a descrição elaborada em E. Sjõber, Gottund die Siinder impalãstinischenJudentum, 1939,
p. 148ss.
19. Pelo menos não de acordo com a literatura rabínica. N a literatura apócrifa pseudepígrafa, prevalece
uma doutrina bem m ais rigorosa de meritoriedade e retribuição, Sjõberg, op. cit., p. 26ss.
20. Sjõberg, op. cit., p. 168.
* . E sses parágrafos de Ridderbos sobre a doutrina judaica da rem issão de pecados revelam sua con
cepção de que o judaísm o na época de Jesus era uma religião de mérito, legalista. E ssa perspectiva,
adotada pela maioria dos estudiosos conservadores do N ovo Testamento, contradiz e refuta a
chamada “ nova perspectiva sobre Paulo” , surgida muito tempo depois da publicação deste livro,
defendida por E. P. Sanders e N . T. Right, entre outros, a qual afirma que a soteriologia farisaica
era baseada na graça e não no mérito. (N. do T.)
21. Cf. Behm em TWB IV, p. 994ss, o artigo sobre “metanoeo” , e a literatura aqui mencionada; tam
bém W. G. Kümmel, Das Bild des Menschen im N.T., 1948, p. 8ss; J. Schniewind, D as biblische
Wort der Bekehrung, 1948, p. 7ss.
22. Aqui, a palavra strephomai é usada exatamente no mesmo sentido de metanoein.
23. A ssim , H. J. Holtzmann, Lehrbuch der neutest. Theol., I, 1911, págs. 218, 219.
24. Assim , p. ex.,H. Weinel, Bibl. Theol. Des N T *, 1928,p. 181, que fala do “tom zombador de rejeição
na palavra” ; cf. também Klostermann, “ se, em oposição a esses adversários, os conceitos ‘pecador’
e ‘homem ju sto ’ não significam k at’eirooneian, segundo Teofilacto” , D as Markusev., p. 27.
25. Cf., p. ex., Schrenk, TWB II, p. 191, o artigo sobre “ dikaios” .
402 A v in d a d o R e in o
26. A ssim , Schlatter, Der Ev. Matth., p. 309; cf. também Rengstorf, TWB I, p. 333, o artigo sobre
“ hamartoolos” .
27. Sobre essa exegese, cf. também Greijdanus, op. cit., II, p. 696.
28. Cf., também, de minha autoria, Mattheüs (K.V.), p. 184.
29. Greijdanus quer interpretar “ arrependimento” aqui de modo diferente, a saber, um arrependimento
semelhante ao arrependimento mencionado dos hamartooloi, “pecadores” . Em nossa opinião,
o ponto do paradoxo não é encontrado na palavra “ arrependimento” , mas sim na expressão
“ necessidade de” .
30. Cf. Kümmel, D as Bilddes Menschen im N.T., 1948, p. 10.
31. Veja também a discussão conclusiva sobre este assunto por G. Sevenster, Christologie, p. 54ss.
32. Veja, sobre essas passagens, como também sobre todo este assunto, de minha autoria, De strekking
der bergrede, págs. 126-128.
33. “ O coração é ímpio; o que se desenvolve nos vs. 19-23 é somente essa frase” , Schniewind sobre
M c 7.19, op. cit., p. 100.
34. Cf., também, p. ex., Sevenster, op. cit., págs. 50-56 e, de minha autoria, De strekking der ber
grede, págs. 126-128.
35. Cf., também, Grundmann, TWB I, p. 15, o artigo sobre “ agathos” .
36. Para essa tradução, veja § 33.
37. Veja § 2 9 .
38. Cf. Schniewind sobre M c 10.23-27, op. cit., págs. 131, 132.
39. A ssim , p. ex.,H. Windisch, Der Sinn der Bergpredigt, 1929, p. 95ss.
40. Cf. Windisch, op. cit., págs. 130, 141.
41. Cf. os argumentos de autores judeus, tais como J. Klausner, C. Montefiore e outros, como Strack-
Billerbeck, op. cit., IV, I, p. 15; e Windisch, op. cit., p. 102ss.
42. O texto (mallon) p a r ’ ekeinon é incerto, porém, o seu significado tem sido estabelecido, cf.
Blasz-Debrunner § 185.3*
43. E. Sjõberg, Gott und die Siinder impakistinischen Judentum, 1939; cf. também W. G. Kümmel,
Die Gottesverkündigung Jesu und der Gottesgedanke des Spãtjudentums, in: Judaica, I o ano,
1945, p. 57ss.
44. Cf., também, G. C. Berkouwer, Geloof en Rechtvaardiging, 1949, p. 11 lss.
45. Sobre a ideia de galardão nos evangelhos e sobre a sua relação com a doutrina judaico do mérito,
cf. os artigos escritos por Preisker e Büschsel no TWB IV, p. 699ss. o artigo sobre “misthos” , e ainda
1, p. 170ss., o artigo sobre “ apodidoomi” , especialmente F. K. Kam er, Der Vergeltungsgedanke in
der Ethik Jesu, 1927 e O. Michel, Der Lohngedanke in der Verkiindegung Jesu, in: Zeitschrift fiir
systematische Theologie 1932, p. 47ss.; G. Bom kam m , Der Lohngedanke im N.T., 1947.
46. Isso foi demonstrado corretamente por Büchsel, op. cit.
47. A palavra achreios parece ter sido uma qualificação corrente da classe social de escravos, no sentido
de “pobre” , “m iserável” , expressando que um escravo nunca podia nada, como também não podia
elevar-se acim a de sua posição de escravo, cf. Preuschen-Bauer, op. cit., p. 202, como também A.
Jülicher, Die Gleichnisreden Jesu, II2, p. 21, que, entre outras coisas, se refere a Deissmann.
48. Cf., de minha autoria, Matth., II, p. 73; cf. também Preisker, op. cit., p. 723.
49. Cf. § 17.
50. Lehrbuch der Dogmengeschichte, I4 1909, p. 81.
51. Op. cit., p. 18.
52. N os Países Baixos, essa herança da teologia liberal tem sido defendida especialmente nos es
critos de Windisch; porém, também por G. J, Heering e outros; a respeito disso, veja a crítica
fundamental a essa corrente teológica elaborada em G. Sevenster, Christologie, p. 47ss; também
M. H. Bolkestein, De verzoening, 1945, p. 52ss.
53. A ssim , p. ex., Windisch, Der Sinn der Bergpredigt, p. 96.
54. Cf. W. Twisselmann, Die Gotteskindschaft des Christen nach dem Neuen Testament, 1939, p. 44ss.
55. Embora, nesse caso, o texto seja incerto.
N otas 403
conexão com a exigência de Jesus (de estar disposto a perdoar), como fazem, p. ex., Zahn e
Greijdanus. Porém, na minha opinião, por causa da aplicação diferente desses ditos em Mt 17.20,
isso não é provável.
105. Cf. também Barth, op. cit., p. 773.
106. Veja, também, Bultmann, TWB I, p. 705, o artigo sobre “ginoosko” .
107. Cf. Klostermann, op. cit., p. 103.
108. Cf. Schniewind, op. cit., p. 150.
109. Cf. § 2.
110. Cf. Schniewind, op. cit.
111. Cf. Hauck, TWB III, p. 618, o artigo sobre “karpos” .
112. Cf., p. ex., Klostermann sobre Mt 8.22, op. cit., p. 78 e Greijdanus sobre L c 9.60, op. cit., I, p.
453; Bultmann, TWB IV, p. 898, o artigo sobre “nekros” .
113. A ssim Bultmann, op. cit.
114. E ssa possibilidade é considerada por Klostermann, op. cit., p. 160.
115. Isso é apontado por H. D, Wendland, op. cit., p. 67; cf. também P. Feine, Theologie des N.T.1,
1936, p. 84.
116. Cf. Greijdanus, op. cit., p. 534 e sua citação de Calvino.
117. Isso também é ressaltado por Rengstorf, op. cit. 131.
118. A ssim , p. ex., Klostermann, op. cit., p. 124.
119. Veja § 13 acima; cf. também W. Michelis, Reich Gottes und Geist Gottes nach demN.T., 1931,
p. 10ss.; E. Gaugler, Die Heiliging im Zeugnis der Schrift, 1948, p. 24ss.
120. Como é sabido, em geral, a tradução é incerta. A palavra geralmente traduzida por “ diariamente”
indica certa medida, a saber, aquela medida que é suficiente, cf. Matth., I, p. 132 e especialmente
W. Foerster, TWB II, págs. 587-595, o artigo sobre “ epiousios” .
121. H. Windisch, Der Sinn der Bergpredigt, 1929, págs. 17,18.
122. Jesus, 1929, págs. 147-158.
*. Teodiceia é um ramo específico da teologia e da filosofia que alm eja resolver o problema da
aparente incompatibilidade entre a existência do mal e do sofrimento e a existência de um Deus
onipotente, onisciente e bom. (N. do T.)
123. Bultmann tem uma fórmula levemente diferente em TWB IV, págs. 596, 597, o artigo sobre
“merimnao” , em que ele também discute M t 6.25-34: “A o homem... é dito que seu interesse
deve ser o domínio de D eus; então, as ansiedades concernentes à sua vida desaparecem” . E ele
acrescenta: “Por esses pensamentos, a exortação, em M t 6.25-33, é distinta da visão estoica... na
qual o cuidado ansioso com respeito aos meios de sobrevivência é, também, chamado de tolice,
referindo-se aos animais. Pois, na Stoa, a liberdade dos cuidados se baseia na convicção da divi
na ‘pronoia’ (que equipa toda criatura, e, portanto, também o homem, com o que ele precisa) e
especialmente no dogm a da liberdade do homem” .Veja, no entanto, também o livro de Bultmann
Gesch. d. Syn. Trad.2, p. 109.
124. Observe o quiasm o no pronunciamento seguinte!
125. Consequentemente, alguns escritores se posicionam contrariamente às palavras explícitas da
passagem , quando, para combater a doutrina da graça comum, dizem que, nesse caso, se fala
sobre os fatos concretos (chuva sobre os justos e sobre os injustos, sol sobre os maus e os bons)
e não sobre a disposição de Deus.
126. Jesus, p. 156.
127. U m paralelo extraordinário é encontrado em Jo 9.3-4. Também nesse caso, o problem a do so
frimento é levantado a partir de um conceito individualista de culpa, rejeitado por Jesus inclusive
em L c 13.1-5. Aí, no entanto, o significado de sofrimento não é dito como sendo um julgamento,
m as a glória de Deus pela graça, “para que o poder de Deus se mostre nele” . Sofrimento, calam i
dades, etc., não são somente um prelúdio do julgamento eterno de D eus; há, também, um tipo de
sofrimento no qual D eus é glorificado por meio de Cristo em sua graça e se tom a, portanto, um
exemplo e um prelúdio da salvação eterna.
406 A v in d a d o R e in o
128. Cf., também, Oepke sobre o “racional” e o “natural” na pregação de Jesus, TWB III, p. 584, o
artigo sobre “ apokalupto” .
129. Os dativos psuchei e s oomati devem ser interpretados como dativi relationis. M esm o que esse
ponto de vista seja rejeitado, ainda assim será necessário admitir que a despreocupação exigida
por Jesus não se refere à vida e ao corpo como tais, m as à maneira como esses são mantidos em
sua existência terrena; cf., de minha autoria, Matth., I, págs. 140, 141.
130. A tradução de tenpsnchen autou zemioothei é difícil, pois a pergunta é se o elemento de punição
também desempenha um papel, nesse caso, ao lado do elemento de perda, dano; cf. Schlatter, Der
Ev. Matth., p. 522 e Stumpff, TW B II, págs. 893, 894, o artigo sobre “zem ia” .
131. N esse caso, também, zemiootheis é m ais que apenas sofrer danos. Refere-se ao preço que deve
ser pago.
132. Cf., p. ex., Strack-Billerbeck, op. cit., I, págs. 429-431.
133. Cf. §12.
134. J. Ridderbos, Predikende het evangelie des koninkrijks, 1911, p. 94ss.
135. Veja, sobre isso, p. ex., J. Ridderbos, Elet Godswoord der profeten, II, 1932, p. 357ss; 468ss;
IV, 1941, p. 181ss; 204ss; cf. também § 1.
136. Cf. Strack-Billerbeck, op. cit.
137. Sobre o conceito aioon e a ideia “ linear” do tempo no N.T. veja, além de Sasse, TWB I, p. 202ss,
especialmente as exposições importantes de O. Cullmann, Christus und die Zeit, 1946, p. 3 lss.
138. Sobre esse assunto, veja especialmente Strack-Billerbeck, op. cit., I, p. 892ss; IV, 1, p. 344; IV,
2, p. 116ss; também Oepke, TWB I, 370, o artigo sobre “ anistemi” ; e Ph. H. Menoud, Le sort des
trépassés d ’après le Nouveau Testament, 1945, p. 27ss. Este último, no entanto, é da opinião de
que, por muito tempo, a crença na ressurreição entre os judeus foi uma opinião “m ais ou menos
opcional” e, em momento algum, um artigo de fé. Foi somente no século 3o. d.C. que se formulou
um anátema contra aqueles que negavam a ressurreição, loc. cit. Todavia, a posição dos saduceus
parece ter sido a exceção à regra.
139. Cf. Greijdanus, op. cit., II, p. 962 e, de minha autoria, Matth., II, p. 120.
140. Strack-Billerbeck, op. cit., I, p. 888ss; cf. também Menoud, op. cit., págs. 2 8 ,2 9 ; e Hauck, sobre
M arcos 12.25; op. cit., p. 146.
141. Compare, para isso, com, p. ex., Menoud, op. cit., págs. 11-21.
142. Cf. Strack-Billerbeck, op. cit., I. p. 200.
143. Schniewind, op. cit., p. 42.
144. Klostermann, op. cit., p. 37.
145. Schlatter, Der Ev. Matth., p. 136
146. Cf. Sasse, TWB I, p. 678.
147. Cf. para isso, também, H. D. Wendland, op. cit., p. 77ss, que rejeita a espiritualização moderna
nas interpretações do evangelho.
148. Cf. Wendland, op. cit., págs. 79, 80.
149. Veja, também, Bultmann, TWB II, págs. 864-867, o artigo sobre “ zao” .
150. Veja, p. ex., Zahn, op. cit., p. 701; Klostermann, op. cit., p. 229; Greijdanus, op. cit., II, págs.
1148, 1149.
151. A ssim , o “ estado intermediário não foi om itido” , como pensa, p. ex., M. van Rhijn, Een
blik in het ondenvijs van Jezus, 1924, p. 135. P. Althaus também admitiu isso, Die letzten
D in ge\ 1949, p. 143, que, em L c 23.43, se fala sobre um estado intermediário. Cf. também
O. Cullmann, Christus und die Zeit, 1946, págs. 21 2 ss.; Ph.H. M enoud, Le sort des trépassés,
1945, p. 45.
152. Cf., p. ex., Strack-Billerbeck, op. cit., págs. 1118, 1130; E. Stauffer, Die Theol. Des N.T., 1945,
p. 190.
N ota s 407
Capítulo VII
1. Veja § 29.
2. A quintessência desse assunto foi discutida na minha tese, De strekking der bergrede naar Mat-
theiis, 1936. Porém, não podem os simplesmente nos referir ao que está escrito nessa tese, pois
os mandamentos de Jesus abrangem m ais do que só o Serm ão do Monte e, também, porque o
propósito deste livro exige uma breve discussão da pregação moral de Jesus.
3. Já foi indicado que a expressão “ fome e sede de justiça” tem outro significado (cf. § 24). Podemos
nos perguntar se o termo “ju stiça” (de D eus), em 6.33, não deveria ser interpretado nesse sentido
(da revelação salvadora de Deus no seu reino, a qual proporciona justiça). E sse entendimento
não seria totalmente impossível, ainda que prefiramos a visão corrente (a saber, que, nesse caso,
“justiça” é a conduta na vida exigida por Deus).
*. Hendíade: frase que usa duas palavras ligadas por uma conjunção para expressar um conceito
complexo. (N. do T.)
4. Cf., p. ex., E. L. Schmidt, TWB I, p. 583 e H. D. Wendland, op. cit., p. 72.
5. Para uma discussão elaborada a respeito desses pontos de vista idealistas (por um lado, os de
H amack, Grimm, Weinel, Baumgarten, etc.; por outro lado, o de Tolstoi, a figura social de Je
sus, o evangelho social, etc.) cf., de minha autoria, “ De strekking der bergrede", págs. 192-204;
218-233.
6. J. Weiss, Die Predigt Jesu vom Reiche Gottes2, 1900, p. 139.
7. A. Schweitzer, Die Gesehichte der Leben Jesu Forsehung4, 1933, p. 594ss; 613ss; D as Messia-
nitãts-undLeidens-Geheimnis2, 1929, p. 19.
8. Um exemplo muito conhecido de uma motivação não escatológica é, p. ex., Mt 6.34, “Portanto, não
vos inquieteis com o dia de amanhã, pois o amanhã trará os seus cuidados; basta ao dia o seu próprio
m al.” Se a ética de Jesus fosse definida totalmente de maneira escatológica, teríamos, certamente,
esperado pelas palavras “pois amanhã será o fim” ou “ amanhã o reino de Deus virá” . Sobre isso, J.
H. Leckie está certo quando observa (em The World to Come and Final Destiny, p. 56): “E sse seria
um argumento bastante poderoso para ser usado se Jesu s tivesse a convicção de que o fim estava
próximo. No entanto, ele se contenta em basear seu apelo num pensamento simples e familiar,
indicando que as coisas do futuro serão iguais às do passado e que a experiência humana, patética,
continuará se repetindo”, citado por H. A. Guy, The New Testament Doctrine o f the “Last Things”,
1948, p. 69. Para o relacionamento entre “reino de D eus” e “ não se preocupar” , veja § 30.
9. Este último ponto já havia sido reconhecido por W eiss - sob protesto de alguns de seus
seguidores!
10. Cf., p. ex., Bultmann, Jesus, págs. 117-119.
11. Cf. § 29.
12. Veja, ainda, Gutbrod, TWB IV, p. 1053ss, o artigo sobre “ nomos” , e A. A. vanRuler, De vervulling
van de wet, 1947, págs. 327ss.
13. Cf., de minha autoria, Matth. I I .
14. Do ponto de vista da exegese e da história redentora, a exposição de Van Ruler sobre o que os
sinóticos têm a dizer sobre o cumprimento da lei é tanto importante quanto profunda; porém, ele
culpa erradamente (op. cit., 327-367) Gutbrod (op. cit., p. 1053ss) por não salientar mais claramente
a expiação m essiânica de Jesus como a satisfação da justiça de Deus e, portanto, da lei de Deus, e
seu ato sacrificial no Gólgota como a grande afirmação da lei divina, p. 330. E ssa verdade está, sem
dúvida, implícita também no kerygma sinóptico (veja cima, § 23). Porém, exegeticamente, ela não pode
ser demonstrada por meio dos pronunciamentos sinópticos sobre “ o cumprimento da lei” , posto que
esses pronunciamentos nada dizem a esse respeito. Aqui (e em outros lugares), a exegese e a historia
revelationis devem preservar seu próprio caminho, precisamente por causa da evidência do dogma.
15. Cf. também Gutbrod: “Além disso (i.e., além da vontade de Deus revelada na lei) não há nada mais para
ser cumprido por ele” (“ Darüber hinaus gibt es keine etwa von ihm zu vertretende Güte”), op. cit.
16. Cf., também, acima, § 29.
408 A v in d a d o R e in o
Capítulo VIII
3. E sse ponto de vista também é encontrado, p. ex., em K. Holl, Der Kirchenbegriff des Paulus in
seinem Verhãltniszu dem der Urgemeinde, 1921 e M . Goguel, L'idée de VEglise dans leNouveau
Testament, em: Origine et nature de VEglise, Paris 1939; cf. também Braun, op. cit. págs. 44,56-58,
e A. Verheul, De moderne exegese over apostolos, Sacris Erudiri, I, 1948, p. 380ss.
4. Gesch. der Leben-Jesu-Forschung, p. 416.
5. Die Frage nach der Echtheit von Mt 16. 17-19, Theologische Blãtter, 1941, p. 273.
6. A. Loisy, 1’Evangile et VEglise, 1902, p. 111; cf. também M. Wemer, Die Entstehung des christ-
lichen Dogmas, 1941, p. 74ss. Também M ichaelis, em seu livro Reich Gottes und Geist Gottes
nach dem Neuen Testament, 1930, parece ainda manter essa visão, cf. p. 20, embora, num livro
posterior a esse, Der Herr verzieht nicht die Verheissung, 1942, combata severamente a escatologia
consistente de Schweitzer e Wemer.
7. Bultmann, op. cit. p. 268.
8. Verheissung und Erfüllung, págs. 84, 85. Küm m el defendeu essa ideia m ais detalhadamente
em seu livro Kirchenbegriff und Geschichtsbewusstsein in der Urgemeinde und bei Jesu s (Sym-
bolae Biblicae Upsaliensis, Heft 1), 1943, m anuscrito este que, para mim, nos Países B aixos,
era inacessível. Também Dahl, m esm o não preparado para negar totalmente a autenticidade de
M t 16.18, contesta o pensamento de que Jesu s, n esse caso, tenha falado da organização do povo
de D eus como o verdadeiro Israel. Jesu s viu nos seus discípulos, no entanto, os representantes
do verdadeiro Israel, m as esse fato não pode ser interpretado no sentido de que ele reconheceu
na comunidade destes um povo m essiânico, um novo Israel ou a igreja (op. cit., p. 163). Por
enquanto, se esse tipo de ideia é realmente demonstrável, ela está relacionada à congregação
escatológica do futuro, não a da igreja em pírica de Cristo do presente (op. cit., 162). O único
caminho possível para reconhecer Mt 16.18 como autêntico é pela exegese que entende a
construção da ekklesia como um a indicação sim bólica da comunidade no reino escatológico
de D eus (p. 165).
9. Cf. Linton, op. cit., p. 175. Ele cita quatro argumentos: o estatístico (veja acima), o escatológico,
o da história da igreja (a posição de Pedro na igreja primitiva) e o psicológico. K. L . Schmidt
adota essa classificação em TWB, III, p. 524, o artigo sobre “ ekklesia” .
10. Cf., também, Linton, op. cit., p. 182 e Braun, op. cit., p.83.
11. Cf. abaixo, § 37.
12. Para a argumentação dessa hipótese de Ham ack, cf. Resch, Grill, Guignebert, Schnitzer, Soltau
e outros, cf. Linton, op. cit., p. 159ss.
13. Cf., p. ex., Bultmann, Gesch. d. syn. Trad.2, p. 148ss.
14. Cf., p. ex., também Schmidt, TWB III,p. 523, o artigo sobre “ ekklesia” .
15. Cf. Linton, op. cit., p. 158; Schmidt, op. cit:, também Bultmann: “ E claro que não é impossível
que, nos conteúdos especiais de M ateus (e Lucas), haja palavras do Senhor derivadas de uma
tradição antiga confiável” . Ele, no entanto, continua: “Porém, isso deve ser tomado plausível em
cada caso, separadamente; e o critério deve ser que essas palavras se encaixem no sermão, no
conteúdo conceituai e no relacionamento com as palavras do Senhor que podem ser reconhecidas
como antigas com base na tradição preservada em M arcos e nos ditos originais de Jesu s” , Die
Frage nach der Echtheit, op. cit., p. 268. E óbvio que esse critério é extremamente subjetivo
(“ combinar-se com” , e “pode ser reconhecido como” ).
16. F. Kattenbusch, Der Quellort der Kirchenidee, em: Festgabe A. V. Hamack, 1921, págs. 143-
112; Der Spruch über Petrus und die Kirche bei Matthãus, em: Theol. StudienundKritiken, 1922,
págs. 96-131; Die Vorzugstellung des Petrus und der Charakter der Urgemeinde zu Jerusalem,
em: Festgabe Karl Müller, 1922, págs. 322-351.
17. D er Quellort, op. cit., págs. 160, 161.
18. Op. cit., p. 162ss.
19. Op. cit., p. 166.
20. Op. cit., p. 169.
21. Der Spruch über Petrus, op. cit., p. 117ss.
N ota s 411
22. Cf., p. ex., G. Gloege, Reich Gottes undKirche im N.T., 1929, p. 262; H. D. Wendland, op. cit.,
p. 165ss.; J. Schniewind, D as Ev. nach Matth., 1937, p. 184; O. Cullmann, Christus und die Zeit,
1946, p. 132; A. J. Bronkhorst, Schrift en Kerkorde, 1947, p. 20, e principalmente K. L. Schmidt
(cf. abaixo).
23. Gloege, op. cit., p. 212ss.; 241ss.
24. Além da literatura acim a citada, em que a ideia do “remanescente” ocorre repetidamente, veja
também Newton Flew, op. cit., p. 39ss.
25. Jesus und der Gottesvolkgedanke, op. cit., p. 45ss; 58ss.
26. Cf. acima.
27. A ssim , p. ex., K. L. Schmidt, TWB IV, p. 524, o artigo sobre “ekklesia” ; veja, porém, também T.
Zahn, D as Ev. des Matth., 1922, p. 547.
28. Schmidt, op. cit.; cf. também Braun, op. cit., págs. 62, 69-75, 160.
29. Cf. Schmidt, TWB III, p. 529ss, e os escritos anteriores desse autor mencionados no início desse
artigo. O argumento dado por Kattenbush-Schmidt é seguido bem de perto por Bronkhorst, op.
cit., p. 20ss.
30. Cf. Braun, op. cit., p. 93ss.
31. E ssa ideia, como é do conhecimento geral, tem encontrado muitos adeptos em resultado da
influência do De Civitate Dei, de Agostinho; cf., p. ex., J. Wytzes, Augustinus ’ De Staat Gods
1947, p .13: “Agostinho m ostra algum a inclinação para considerar o reino de Deus independente
das comunidades humanas organizadas. Somente uma parte pequena de seu reino está “ em pe
regrinação” na terra e, como pode ser inferido de outros pronunciamentos, essa parte é a Igreja
Católica concreta daqueles dias” . Cf., ainda, Newton Flew. op. cit., p. 30.
32. Cf. acima, § 5.
33. “Quare hic meo iudicio simplex est parabolae scopus. Quam diu in hoc mundo peregrinatur
Ecclesia, bonis et sinceris in ea permixtos fore maios et hypocritas"... org. Tholuck II, 1833,
p .14.
34. ... "Evangeliipraedicationem scite comparat verriculo sub aquis demerso, utsciemuspraesentem
Ecclesiae statum confusum esse”, op. cit., p. 21.
35. Veja esse conceito em Newton Flew, p. 20.
36. A ssim , Joseph Schmidt, D as evangelium des Markus, 1933, p. 64 (em conexão com a parábola
do grão de mostarda): “D e acordo com o evangelho, a igreja não é o reino de Deus na terra” .
37. Cf. acima, § 19.
38. N a nossa opinião, a única expressão quanto a isso que pode causar algum a incerteza é o pronun
ciamento feito em Mt 13. 41 de que, no fim deste mundo, “Mandará o Filho do Homem os seus
anjos que ajuntarão do seu reino todos os escândalos...” M as, nesse caso, podem os nos referir à
nossa discussão no texto do § 19, n. 85, que dá a impressão de que basileia não significa a igreja,
m as é m ais geral, tudo o que veio da boa semente que foi semeada no mundo.
39. M. J. Lagrange, Evangile selon Saint Marc, 1947, p. 122. Ele acrescenta: “ Alguém pode se sentir
naturalmente inclinado a considerar o domínio como uma instituição que está se desenvolvendo
e se tom ará bastante extensa” . C f . Joseph Schmidt, n. 36.
40. Veja acima, § 21
41. Jesus andH is Church, 1945, p. 27.
42. Op. Cit., p. 28.
43. Cf., também, H. A. Guy, The New Testament Doctrine o f the “Last Things”, 1948, p. 71.
44. Veja, ainda, G. Ch. Aalders, Het boek Daniel, 1928, p. 134ss, 140.
45. Em nossa opinião, essa crítica a Kattenbusch e outros, feita por Bultmann, é irrefutável, op. cit.,
esp. 277. Cf., ainda, Oepke, Jesus und der gottesvolkgedanke, op. cit., p. 59.
46. Cf. Aalders, op. cit., p. 140.
47. Veja, também, Newton Flew sobre o fato de Kattenbusch recorrer a Dn 7: “ Provavelmente é mais
verdadeiro dizer que a ideia de ecclesia é como um rio seguindo purificado, vindo de um lago
grande da qual fluíram muitas correntes tributárias” , op. cit., p. 36.
412 A v in d a d o R e in o
81. A ssim Lutero, em seu Responsio ad librum Ambrosii Catharini, 1521; cf. em K . L. Schmidt,
Die Kirche des Urchristentums, em: Festgabe für Adolf Deissmann, 1927, p. 298ss; cf. também
Braun, op. cit., p. 86ss.
82. A ssim Strack-Billerbeck, op. cit., I, p. 732.
83. Cf. Grosheide, op. cit., p. 200.
84. Cf., também, Preuschen-Bauer, op. cit.
85. Cf., também, Zahn, D as Ev. d. Matth., págs. 539, 540. Ele também faz referência à palavra
aramaica keyphah que se encontra na base das duas palavras e que é, provavelmente, usada em
am bos os casos por Jesus.
86. Cf., também, H. Bavinck, GereformeerdeDogmatiekTV4, 1930, p. 320. “ A s palavras ‘estapedra’
só podem se referir à p essoa de Pedro, m as ele é uma pedra e tem provado ser essa pedra pela sua
confissão de que Jesus é o Cristo” .
87. Cf., acima, a citação de Calvino. Zahn, op. cit., p. 545, e Wendland, op. cit., págs. 175, 180
também representam esse ponto de vista. M as, nesse caso, Pedro não é chamado de “ a primeira
pedra” , mas a pedra sobre a qual toda a construção repousa.
88. A ssim , p. ex., Kattenbusch, Der Quellort der Kirchenidee, op. cit., p. 167, A 1; cf.; no entanto,
também seu livro Der Spruch überPetrus und die Kirche bei Matthaus, Neutestamentliche Fors-
chungen (Sonderheft der Theol. Studien und Kritiken), 1922, p. 121.
89. Cf., também, Jerem ias, TWB III, p. 749, o artigo sobre “kleis” .
90. N esse sentido, p. ex., Zahn, op. cit.; cf. também Jerem ias, op. cit., p. 750.
91. A opinião de Kattenbusch é que a expressão “ as chaves do reino do céu” significa a Escritura
que abre o reino, Der Quellort, op. cit., págs. 120ss, 126.
92. A. J. Bronkhorst, Schrift en Kerkorde, 1947, págs. 36, 37.
93. Jerem ias, op. cit., p. 750.
94. Cf. E. Schweizer, Das Leben des Flernn in der Gemeinde und ihren Diensten, 1946, p. 92, e a
literatura citada.
95. Em nossa opinião, é bastante duvidoso que Mt 16.18 deva ser explicado de acordo com a analogia
de 23.13, como Jerem ias e outros insistem. Em Mt 23.13, “ fechais o reino” significa colocar um
obstáculo prático diante do povo que os impede de entrar no reino (p. ex., por meio da doutrina
ou conduta). N esse caso, não se aplica a algum a autoridade ou atitude autoritária com respeito à
entrada no reino do céu.
96. Cf. Strack-Billerbeck, op. cit., I, p. 738ss; A. Schlatter, Der Evangel. Matthaus, p. 51 Oss. F.
Büchsel, TWB II, p. 59ss, o artigo sobre “ deo” ; Jerem ias, op. cit.
97. Seguindo o exemplo de Schlatter, Jerem ias aponta, especialmente, para esse uso (em certa p as
sagem do Talmude).
98. Em nossa opinião, isso acontece se, pelo poder das chaves, for entendida somente a separação
introduzida pela pregação do evangelho; assim, p. ex., H. D. Wendland, op. cit., p. 180, “D a atitude
adotada para com a mensagem se segue a inclusão no reino ou a exclusão deste, e, provindo deste,
ou participação na igreja do fim ou a separação desta... a autoridade do apóstolo não está baseada
em alguma conformidade le g a l, m as fundamentada na mensagem do reino confiada a ele, criando a
nova igreja” . N ão é difícil harmonizar as palavras de Mt 18.18 com essa visão. Wendland acha que
“ as experiências práticas da igreja primitiva tenha influenciado a sua redação” , op. cit., p. 183. R.
Newton Flew, Jesus and His Church, 1945, p. 97, também é inclinado a fazer essa explicação, “ O
ligar e desligar seria o resultado inevitável da pregação apostólica que era a palavra de julgamento.
O dito seria, então, paralelo a Lc 10.16, ‘Quem vos der ouvidos ouve-me a mim; e quem vos rejeitar
a mim me rejeita” ’. Esse ponto de vista também é encontrado em K. Barth, De apostolische geloo-
fsbelijdenis, (adaptado por K . H. Miskotte), 1935, p. 172, “A palavra (sobre as “chaves do reino do
céu”) não pode ser entendida se for tomada como uma extensão do oficio e da tarefa da igreja, m as é
a circunscrição da única coisa que pode ser válida, isto é, do ministerium verbi divini (ministério da
Palavra divina) no sentido que a autoridade e seu efeito são estabelecidos...” Cf., ainda, em oposição
a esse ponto de vista de Barth, e de outros, A. A. van Ruler, Religie en Politiek, 1945, p. 97ss.
414 A v in d a d o R e in o
sionou. M as, do que tem sido comissionado, a igreja deve ensinar nada menos que tudo, o total
alcance dessa ordem ministerial. E ssa é a base do N ovo Testamento do princípio escriturístico
com o qual precisam os dar as costas à Igreja Romana. Todo ensino na igreja só pode conter a
repetição do ensino apostólico” .
125. A partir desse elemento na Grande Com issão deve se refletir sobre a “m issão holistica” ( com-
prehensive approach; Hoekendijk, op. cit., p. 277ss.). Convém vigiar contra o ensino do “ evan
gelho social” e contra a transgressão dos limites dados ao ministério da igreja, mas, por outro
lado, deve-se reconhecer o significado abrangente do evangelho do reino a ser praticado desde o
início do trabalho missionário.
126. E ssa restrição à criatura humana é apoiada por Cl 1.23; cf. também Bauer, Würterbuch, 715, e
Foerster, TWB III, p. 1027, o artigo sobre “ ktizo” .
127. Cf. também o m asculino autous no final do v. 19 e no v. 20 pelo qual são indicados, não as
nações, m as os crentes comuns.
128. Cf., sobre essa teoria, p. ex., J. C. Hoekendijk, Kerk en Volk in de Duitse Zendingswetenschap,
1948, págs. 58ss, 108ss.
129. A ssim K. Barth, op. cit., p. 15.
130. A. von Ham ack, Die Mission undAusbreitung des Christentums, P , 1915, págs. 35-37,44. Para
uma descrição detalhada da literatura m ais antiga a respeito desse tema, cf. M. Meinertz, Jesus
und die Heidenmission2, 1925.
131. Die Mystik des Aposteis Paulus, 1930, págs. 176-178.
132. A ssim Bengt Sundkler, Jésus et les paiens, em Revue d'Histoire et de Philosophie religieuses,
1936, págs. 462-499, e, em conexão com este, N. A. Dahl, D as Volk Gottes, 1941, p. 145, 149s;
W. G. Kümmel, Verheissung undErfiillung, 1946, págs. 49, 50.
133. Op.cit., p. 470.
134. Strack-Billerbeck, op. cit., 1, p .181.
135. Veja m ais sobre isso em H.H. Rowley, The missionary method ofthe Old Testament, 1944; e
especialmente J. Blauw, Goden en mensen, 1950, p. 19ss.
136. Rowley, op. cit., p. 64.
137. Veja, também, R. Liechtenhan, Die urchristliche Mission, 1946, p. 31ss.
138. Cf., de minha autoria, Matth. II, págs. 109, 110
139. Para a exegese dessas parábolas, veja acima § 25.
140. Cf., também, Schniewind, Matth., p. 214.
141. Repetido por Kümmel, op. cit., p. 49s.
142. A ssim Sundkler, op. cit., p. 481ss. Em profecias como Is 2.2-4 já está clara a ideia centripetal
de que, de Jerusalém , sairá a L ei e a Palavra do Senhor para todos os povos da terra, e, com
razão, foi aplicada à pregação neotestamentária universal do evangelho; cf. G. Ch. Aalders,
Iets over exegese vanprofetische voorzeggingen, em Geref. Theol. Tijdschrift, 1926, p. 5; e P.
A. Verhoef, Die vraagstuk van die onvervulde voorsegginge in verband met Je sa ja 1-39, 1950,
págs. 275, 332.
143. Sobre os vários motivos, veja H. Schlier, Die Entscheidung für die Heidenmission in der Ur-
christenheit, em Evangelische Missions Zeitschrift, 1942, p. 166ss.
144. A objeção de que esses pronunciamentos não concordam com o prazo da sua volta estabelecido
por Jesus será estudada no último capítulo deste livro.
145. Cf., p. ex., Liechtenhan, op. cit. p. 42 (m as também p. 48ss); e W. Flemington, The New Testa
ment doctrine ofbaptism, 1948, p. 105ss.
146. Veja adiante.
147. Além das pesquisas anteriores (como J. Leipoldt, Die urchristliche Taufe im Lichte der Reli-
gionsgeschichte, 1928, e Strack-Billerbeck, op. cit., I, p. 102), veja J. Jerem ias, Hat die Urkirche
die Kindertaufe geübt? 2, 1949, e a literatura ali mencionada.
148. O. Cullmann, Die Tauflehre dês Neuen Testaments, 1948, p. 18ss.
149. Op. cit., p. 14, 15.
416 A v in d a d o R e in o
150. Sobre essa questão, veja também Oepke, TWB I, p 536ss, baptizo. Embora Oepke não tenha
podido tratar ainda da opinião de Cullmann, ele já rejeita uma interpretação semelhante (a de
Reitzenstein) sobre M c 10.38; L c 12.50.
151. Op. cit., p. 536.
152. Cf., p. ex., Oepke, op. cit., p. 537.
153. J. Jerem ias, Hat die Urkirche die Kindertaafe geiibt? 2, 1949, págs. 20, 21.
154. Cf., acima, § 28.
Capítulo IX
28. Op. cit., p. 70; cf., também, E. Gaugler, L a Sainte Cène (G. Deluz, J. Ph. Ramseyer, E. Gaugler),
1945, p. 56ss.
29. Veja um resumo dos prós e contras em Jerem ias, op. cit., págs. 75, 79, 80. N a 2a ed. do seu
livro; esse autor aderiu aos defensores da passagem m ais longa. U m a am pla discussão e defesa
da autenticidade dos vs. 19a e 20, também por S. Greydanus, op. cit., págs. 1045-1050, base
ando-se, esp., em P. Benoit, Le récit de la cène dans Lc XXII, 15-20, Revue Biblique, 1939, p.
357-393. Para a autenticidade da passagem , veja, também, E. Schweizer, D as Abendmahl, em
Theol. Zeitschr., 1946, p. 81ss.; E. Gaugler, Das Abendmahl im N.T., 1943, p. 20; G. Sevenster,
Kerk en Eredienst, 1946.
*. O autor não quer dizer, com isso, que M arcos e Lucas desprezam a seqüência histórica dos
acontecimentos ou que são inexatos historicamente, m as apenas que Lucas, conforme escreveu
na introdução do Evangelho, segue m ais de perto essa seqüência. (N. do T.)
30. Cf. Strack-Billerbeck, op. cit, IV, 1, p. 62 sub. c.
31. Schniewind, Mark, p. 173.
32. E ssa é a verdade da ligação entre “ cultura” e “ sacramento” .
33. Cf. H b 6 .4 ss.
34. Cf., também ,Kümmel, Verheissung undErfüllung, 1945, págs. 16, 17.
35. Cf. Greijdanus, op. cit. II, p. 1044; Klostermann, D as Lukasev., p. 288; Dalman, Jesus Jeschua,
1929, págs. 141, 142, 144.
36. Dalman, op. cit., p. 128; Jerem ias, op. cit., p. 103.
37. Cf., também, de minha autoria, Matth. II, 1948, p. 188; Zahn, D as Ev. des Matth.4 , 1922, p.
695.
38. Como Plooy sugere, loc. cit., Kerk en Eredienst, 1947, p. 4, 6ss.
39. Veja acima, págs.76ss. na nossa discussão sobre a opinião de Cullmann.
40. Cullmann, Urchristentum und Gottesdienst, p. 14ss, afirma que as primeiras ceias eucarísticas
na igreja cristã se referiam à última ceia, mas que, diante da luz ofuscante da ressurreição, a lem
brança do sofrimento vicário (o motif da morte propiciatória) retrocedeu e que essas refeições se
ligaram diretamente às refeições com Cristo entre Páscoa e Ascensão. Posteriormente, Paulo teria
se sentido obrigado a enfatizar novamente a lembrança do sofrimento. Isso é, na nossa opinião,
um a construção hipotética.
41. A pesar de M. Barth (op. cit., p. 47), que se atreve a denominar como “ simplesmente absurda”
essa continuação ou repetição da “prefiguração” da última ceia.
42. Veja, também, Behm, TWB III, p. 734, o artigo sobre “klaoo” .
43. Cf., também, de minha autoria, Woord en Sacrament na coleção Het Avondmaal, 1949, págs. 32,
33.
44. Veja o início deste capitulo.
45. Jerem ias, Die Abendmahlsworte Jesu2, 1949, págs. 7-9, menciona, bem contado, 79 autores (a
partir de Renan) que apoiam essa opinião. Os argumentos mencionados acim a são, em grande
parte, de Lietzmann, op. cit., p. 211 ss.
46. Op. cit., p. 18ss.
47. Veja, p. ex., Behm, op. cit., p. 733.
48. N egado enfaticamente por Jerem ias, op. cit., p. 23ss.
49. G. Dalman , Jesus Jeschua, 1929, págs. 80-98.
50. Strack-Billerbeck, op. cit., II, págs. 815-834.
51. Th. Zahn, Einleitung in das N.T. II3, 1924, págs. 518-530.
52. Veja, a respeito dessas opiniões e sua crítica, Jerem ias, op. cit., págs. 14, 15.
53. Cf. Strack-Billerbeck, loc. cit:, J. Jerem ias, Die Abendmahlsworte Jesu2, 1949, págs. 48,49.
54. A ssim Behm, TWB III, p. 735, o artigo sobre “klaoo” , recorrendo a Kattenbusch e R. Seeberg.
Cf., também, Schniewind, Markus, p. 173.
55. Tradução combatida por outros, como Jerem ias, op. cit., p. 102ss.
56. Como também o próprio Dalman, op. cit., págs. 130, 131.
418 A v in d a d o R e in o
57. Cf. M c 10.45; G 1 1.14; lT m 2.6; Tt 2.14. Veja, também, Büchsel, TWB II, p. 168ss, o artigo sobre
“ didoomi” ; Schlatter sobre Mt 20.28, op. cit., p. 602..
58. Op. cit., p. 105. Veja, também, V. Taylor, Jesus and his sacrifice, 1948, págs. 121, 261.
59. A ssim M. Barth, op. cit., p. lOss; Jerem ias, op. cit., p. 104.
60. Jesu s Jeschua , págs. 113, 115. Greydanus, Lukas II, p. 1056, dá uma explicação tipicamente
dogmática. Ele afirma que Jesu s escolheu o pão, e não a carne, pois, nesse caso, sempre seria
necessário o derramamento de sangue ao comer da Ceia do Senhor, e Jesus, exatamente pelo seu
autossacrifício na morte, acabou com todo esse derramamento de sangue para reconciliação dos
pecados. Contra isso, pode-se argumentar que nem todo derramamento de sangue tem o caráter
desse tipo, expiatório, e, por causa disso, a celebração memorial da morte de Jesus com carne não
teria prejudicado o significado da morte de Jesus. Porém, com isso, estamos na área de especulação
dogm ática e não da exegese!
61. Cf. Jerem ias, op. cit., p. 80ss
62. Cf. E. Gaugler, op. cit., p. 38.
63. Veja, também, Taylor, op. cit., p. 139.
64. A ssim M. Barth, op. cit., p. 13.
65. G. van der Leeuw, Sacramentstheologie, 1949, p. 52.
66. Op. cit., p. 54; cf., também, já p. 36.
67. Op. cit. p. 52. Ele aceita totalmente a opinião antiga de Lietzmann, sem dedicar uma palavra
sequer à esm agadora m assa de material apresentado pelos melhores conhecedores do judaísm o
(como Dalman, Billerbeck, Jerem ias) contra essa reconstrução violenta do evangelho.
68. A ssim Greijdanus, op. cit. II, p. 1054; R. Otto também enfatiza fortemente esse “ quebrar do corpo” ,
op. cit. p. 250. Ele supõe, entretanto, que Jesu s pensava que sua morte seria por apedrejamento
e, então, o seu corpo seria literalmente “partido” , p. 256.
69. Veja, também, Grosheide, sobre ICo 11.24, op. cit. p. 390: (apalavra) “ é uma glo ssa antiga, para
facilitar a compreensão do texto” .
70. Greijdanus fala de “ o vinho sendo derramado” , op. cit., p. 1085, aparentemente para, também, res
saltar uma analogia no “ derramar” entre vinho e sangue. M as no ritual pascal não se fala, em lugar
algum, sobre “ derramando” ou “transbordando” . E, com respeito à palavra ekcheo, quando é usada
para vinho, significa “ deixando derramar no chão” e, portanto, abrindo mão do conteúdo da bolsa ou
copo de vinho, (Mt 9.17, cf. L c 5.37; Ap 16.1ss..); cf. também Preuschen-Bauer, op. cit., p. 384.
71. Cf. Jerem ias, op. cit., 104, 105. Ali encontramos ainda m ais argumentos arqueológicos contra a
ideia de que a ação sacrificial tenha sido simbolizada.
72. “D er Tod Christi in seiner Heilsbedeutung" (“A morte de Cristo em seu significado soteriológi-
co” ), Behm, TW Bl,p. 173.
73. Sobre as chamadas “palavras eucarísticas” de Jo 6, cf., de minha autoria, o artigo “ Woord en
Sacram ent” , em Het Avondmaal, 1949, p. 39ss.
74. A ssim , G. C. van Niftrik, Luther en Calvijn over het Avondmaal, em Het Avondmaal, 1949, p. 59.
Van N . supõe poder recorrer às palavras institucionais para o seu ponto de vista, m as, em minha
opinião, isso é um total absurdo.
75. Cf., também, Behm, TWB I, p. 173, o artigo sobre “haim a” . “ O N ovo Testamento não está inte
ressado no sangue de Cristo como tal, m as, no seu sangue derramado, em sua vida tom ada dele
por meio da violência; o ‘ sangue de Cristo’ , como a ‘cruz’, é apenas uma outra expressão, mais
gráfica, da morte de Cristo em seu significado soteriológico” . Ele também explica as palavras
institucionais dessa maneira.
76. Todas as coisas essenciais já são encontradas na exegese dos Evangelhos feita por Calvino. Para
autores mais recentes, veja, p. ex., Stauffer, Theol. des N.T., p. 281ss., que menciona sete bases
exegéticas contra “ forçar” o estin das palavras de Cristo na última ceia.
77. Cf. G. C. Berkouwer, De Strijd om het Rooms-Katholieke dogma, p. 244.
78. Cf., p. ex.,H. Gollwitzer, CoenaDomini, 1937, p. 8ss. O mesmo no volume Abendmahlsgemeinschajf!
1937, p. 102ss, citando as palavras de Lutero, “ Ista verba (hoc est corpus meum) me ceperunt".
N ota s 419
79. Cf. Gollwitzer, Abendmahlsgemeinschaftl págs. 110, 111; cf., também, J. L oos, Het heilig
Avondmaal bij de Lutherschen, Kerk en Eredienst, ls t Jg ., 1945, p. 77ss.
80. Gollwitzer, op. cit., págs. 111, 112.
81. Cf. também Calvino, “ Hoc est corpus meum. Qhod is verbis panem consecratum fuisse dicunt,
utfieret carnis Christi symbolum, non improbo, modo recte hoc nomen ac dextre sumatur ”, Com-
ment. Org. T h o lu ck ll, 1833, p. 312.
82. Cf., p. ex., Jerem ias, Die Gleichnisse Jesu, 1947, p. 113.
83. M. J. Lagrange, Evangile selon Saint Marc, 1947, p. 113.
84. Lagrange, op. cit.
85. J. Schmid, D as Evangelium nach Markus, 1938, p. 168.
86. Otto fala de uma “ drastische Voraussage” (profecia drástica), pois, em sua opinião, o partir do
pão retrata o partir do corpo de Cristo. A nosso ver, essa interpretação está errada, e m ais errada
ainda quanto ao sentido em que Otto toma o partir do pão, a saber, como a descrição profética do
apedrejamento do corpo de Cristo, cf. nota 68.
87. R. Otto, op. cit., págs. 255-258.
88. Cf. van der Leeuw, op. cit., p. 263. Parece que esse conceito também é usado por muitos cató
licos romanos (especialmente pelos assim chamados teólogos do mistério) a fim de substituir a
terminologia crassa da transubstanciação.
89. Cf. Van der Leeuw, op. cit., págs. 249, 268 e passim.
*. O autor, sendo um seguidor do pensamento calvinista a respeito da ceia, não está sugerindo que
tomar os elementos em fé traz salvação ou perdão de pecados. É preciso levar em consideração
que ele está, aqui, refutando o conceito católico e o conceito luterano, os quais, de maneiras
diferentes, afirmam isso. (N. do T.)
Capítulo X
1. Veja a Introdução e também o relato histórico sobre a literatura m ais antiga em F. Busch, Zum
Verstãndnis der synoptischen Eschatologie, 1938, p. 3ss.
2. A ssim , ainda Bultmann, em 1949, D as Urchristentum im Rahmen der antiken Religionen, p.
96.
3. Cf., para a literatura m ais antiga, F. W. Grosheide, De verwachting der toekomst van Jezus Chris
tus, 1907, p. 7s; para a literatura posterior, E. Masselink, Eschatologische motieven in de nieuwe
theologie, 1946, págs. 39ss, 105ss.
*. E preciso lembrar que Ridderbos está escrevendo na década de 1960. Embora o cenário acadêmico
tenha se modificado bastante desde então, as obras e os temas que ele analisa continuam a ter
influência nos m eios acadêm icos teológicos do Brasil. (N. do T.)
4. Cf. Klostermann sobre Mt 10.23, op. cit., p. 89, e sobre M c 9.1, op. cit., págs. 79, 85, e sobre Mc
13.30, op. cit., p. 138; Lohmeyer, sobre M c 9.1, op. cit., p. 172, que observa outro conceito na
passagem paralela de L c 9.27 (a saber, que basileia - sem as palavras “ com poder” - deve ser
entendida como a comunhão de muitos crentes com D eus); W. C. Allen, sobre Mt 10.23; 16.28,
op. cit., págs. 107, 183; Gould sobre M c 9.1 e 13.30, op. cit., págs. 159, 253; M anson sobre Mt
10.23, The mission and message o f Jesus, p. 474; Hauck sobre M c 9.1 e 13.30, op. cit., págs. 106,
160; Schlatter sobre Mt 10.23 e 16.28, op. cit., págs. 342, 524.
5. Segunda edição, 1913. Sobre a interpretação que Wrede faz e a tendência radical cética que concorda
com ele, veja, de minha autoria, Zelfopenbaring en Zelfverberging, 1946, págs. 10-17.
6. N os seus bem conhecidos comentários sobre os Evangelhos sinóticos.
7. Geschichte der synoptischen Tradition2, 1931, págs. 129, 132.
8. Cf. Busch, op. cit., p. 5ss.
9. Bultmann, D as Urchristentum, p. 96ss.
420 A v in d a d o R e in o
10. Cf. Geschichte der Leben-Jesu-Forschung, págs. 390-433. N os passo s de Schweitzer, F. Buri,
Die Bedeutung der neutestamentlichen Eschatologie fiir die neuere protestantische Theologie,
1934, págs. 21-29; ibid. D as Problem der ausgebliebenen Parusie, Vox Theologica, 1948, págs.
104-126; M. Wemer, Die Entstehung des Christilichen Dogm as, 1941, págs. 61-79.
11. Cf., também, J. Jerem ias, Eine neue Schau der Zukunftaussagen Jesu, Theol. Blãtter, 1941,
págs. 217-222, Die Ding (i. e., a interpretação de todas as declarações de Jesus sobre o futuro
dessa expectativa de que o reino era iminente [Naherwartung]) liegen seit. A. Schweitzer’s
Forschungen in die Luft (essas coisas, desde as pesquisas de Schweitzer, ainda estão em grande
parte sem fundamento).
12. Outros tentaram provar que não apenas na pregação de Jesus, m as também na percepção da
igreja antiga, a ressurreição pode ser equiparada à parousia ; cf. a resenha de H. W. Barstsch,
Parusieerwartung und Osterbotschaft, Evangel. Theologie, 1947/48, págs. 115-126, por W. G.
Küm m el, D as Urchristentum, Theol. Rundschau, 1950, p. 21ss.
13. C. H. Dodd, The Parables o f the Kingdom, 194, p. 98. E sse ínterim supostamente apareceu pela
primeira vez em At 1.8.
14. Op. cit., p. 101.
15. Op. cit., p. 103.
16. Op. cit., págs. 105-110.
17. J. Jerem ias, Eine neue Schau der Zukunftaussagen Jesu, Theol. Blãtter, 1941, págs. 217-222.
18. A ssim , p. ex., Hauck, Markus, p. 194, seguindo J. Weiss.
19. Cf. E. Lohmeyer, D as Evangelium des Markus, 1937, p. 356, cf. p. 312. M ais detalhadamente
no seu Galiláa und Jerusalem, 1936, p. lOss. Veja, também, N. B. Stonehouse, The Witness o f
Matthew andMarkto Christ, 1944, págs. 3 9 , 114ss. 170ss; também H. Holtrop , De verschijningen
onzes Heeren te Jeruzalem en in Galilea, 1947, p. 161 ss.
20. A ssim M ichaelis em seu livro Tàufer, Jesus, Urgemeinde, 1928.
21. Christus und die Zeit, págs. 75ss, 130s; cf. Le retour du Christ, p. 25ss.
22. Verheissung und Erfüllung, p. 14ss.
23. Op. cit., p. 35ss.
24. Op. cit., p. 33ss.
25. Op. cit., p. 11.
26. Op. cit., p. 20.
27. Op. cit., p. 24.
28. Op. cit., págs. 29-33.
29. Op. cit., p. 92.
30. Op. cit., p. 95. N esse sentido, também R. Liechtenhan, Die urchristliche Mission, 1946, p. 14.
31. Markus, p. 115. N esse sentido, aparentemente, também Rengstorf, Lukas, p. 108, embora menos
claro.
32. Matthãus, p. 127.
33. W. M ichaelis, Der Herr verzieht nicht die Verheissung, 1942, p. 5ss.
34. Op. cit., p. 18ss.
35. Op. cit., p. 30ss.
36. Op. cit., p. 45.
37. Op. cit., p. 46ss.
38. Auslegung von Matthãus 28, 16-20, 1945, p. 5ss; cf., também, p. 11.
39. Die Geschichte der synoptischen Tradition2, 1931.
40. Veja os argumentos em Mattheus I (de minha autoria), p. 201. Cf., também, Schlatter, op. cit., p.
337; “ Isso não somente se refere ao que se espera deles ao serem enviados pelas vilas da Galileia,
mas é uma ocasião para a descrição de toda a atividade apostólica até a parousia ” ; Zahn, op. cit.,
p. 402; Grosheide, op. cit., p. 125; cf., também, a refutação de Schiewind, Matth., p. 127.
41. O argumento m ais importante de Werner é que, se essa palestra, como um todo, não corresponde
à situação do envio dos discípulos, não se pode explicar como ela foi incluída no evangelho nessa
N ota s 421
situação, op. cit., p. 71 s. Mas isso pode ser bem entendido do ponto de vista histórico do evan
gelista. N a época em que ele estava escrevendo seu Evangelho, a aflição dos apóstolos já tinha
começado. Seus leitores não se enganariam. Ao contrário, eles entenderiam melhor porque as
palavras sobre o envio e a profecia sobre a perseguição vindoura se juntaram, porque apostolado
e sofrimento andam juntos, cf., de minha autoria, Mattheus I, p. 202.
42. Veja sobre esse assunto m ais detalhadamente Zelfopenbaring en Zelfverberging (de minha
autoria), págs. 84, 85.
43. O apelo de Jerem ias à frase “ destruí esse santuário, e em três dias o reconstruirei” não pode
tomar plausível uma identificação da ressurreição com a parousia. E que, na tradição sinótica,
esse pronunciamento foi lembrado como “testemunho falso” pelos acusadores de Jesus, enquanto
a explicação dada em Jo 2.21 fala explicitamente sobre “ o santuário do seu corpo” . D e qualquer
modo, essas palavras são pouco transparentes em si m esm as e não podem servir como prova para
a tese de que “ em três dias” significava originalmente “ o dia do Filho do Homem” . A explicação
de M c 14.28 e 16.7 porLohm eyer, Hauck e outros também não contribui com nada em favor dessa
opinião. N ão há nenhum motivo para não se entender M c 14.28 (segundo a interpretação corrente)
como uma indicação do tempo depois da ressurreição. Talvez não fosse entendido pelos discípulos,
m as está muito claro em si. N ão pode ser deduzido que as palavras “indo para a G alileia” e o “ ver”
dos discípulos apontariam para a parousia. Muito pelo contrário, esse versículo mostra que, para
Jesus, ressurreição e parousia não coincidiam, mas que ele, depois da sua ressurreição e antes da
sua parousia, precisava dar aos seus discípulos tarefas importantes. Cf., também, Kümmel, op. cit.,
p. 43s.; N. B. Stonehouse, The Witness o f Matthew and Mark to Christ, 1944, p. 114ss. e 170ss.;
H. Holtrop, De verschijningen onzes Heeren te Jeruzalem en in Galilea, 1947, p. 161ss.
44. R. Bultmann, Die Frage nach der Echtheit von Mt 16, 17-19, em Theol. Blãtter, 1941, p. 279.
45. Cf. acima, § 22.
46. Cf. acima, § 6.
47. Cf., também, M. J. Lagrange, Evangile selon Saint Marc 6, 1942, p. 234.
48. Veja, também, de minha autoria, Zelfopenbaring en Zelfverberging, 1946, págs. 42, 86.
49. Cf., também, Lagrange, op. cit., p. 244: “ Parece, então, que Jesu s se contentou em fazer uma
predição geral... sem explicar-lhes os motivos da paixão, etc. Somente depois isso seria explicado
a eles” .
50. Hina. Greijdanus escreve: “Podem os tomar hina num sentido consecutivo (de sorte que); mas
também simplesmente num sentido final (para que) e, então, traduzi-lo com a palavra que. Porque
aqui, decerto, foi indicada um a decisão e intenção divina. Eles ainda não podiam suportar a plena
verdade... Isso viria depois” , Lukas I, p. 439.
51. Cf. Greijdanus: “ O Senhor mostrou sua majestade... que também causou uma grande impressão
nos seus discípulos e os destituiu da coragem de perguntarem-lhe o significado dessa declaração” ,
op. cit.
52. Cf. M ichaelis, também, sobre o caráter provisório, antes da ressurreição, das declarações de
Cristo sobre o futuro, Der Herr verzieht nicht die Verheissung, 1942, p. 29.
53. Christus und die Zeit, p.71, cf., também, págs. 126ss.; Leretourdu Christ, págs. 25ss; cf., também,
o seu artigo: D as wahre durch die ausgebliebene Parusie gestellte neutestamentliche Problem
(contra Buri), em Theologische Zeitschrift, 1947, p. 177ss; Küm m el também, op. cit., p.95
54. Cf. Schniewind, Matth., p. 271; Barth, Auslegung von Matthãus 28, 16-20, p. 13; O. Michel,
Menschensohn und Võlkerwelt, em: Evang. Missions Zeitschrift, 1941, p. 257ss.
55. Os defensores da “ escatologia consistente” explicam esse relato da seguinte maneira: quando,
em conflito com o dogma cristão original e básico sobre o significado escatológico da morte
e ressurreição de Jesus, os acontecimentos para a entrada da nova época não aconteceram, o
Nah-erwartung original da igreja cristã postulou que, na morte de Jesus, sinais semelhantes
ocorreram, nos quais a aproximação do fim foi anunciada claramente; cf. Wemer, op. cit., p. 90;
também Buri, Dei Bedeutung der neutest. Theologie, p. 26, que chama esses sinais “die einzigen
Ueberbleibsel der erwarteten kosmischen Endkatastrophe! ” (“ os únicos resíduos da esperada
422 A v in d a d o R e in o
catástrofe cósm ica final”). O que é fatal para essa exegese é o fato de que,em nenhum lugar nos
Evangelhos, há algum a indicação de que, com a morte de Jesus, há uma expectativa do início da
catástrofe cósm ica final.
56. Cf. acima, § 43.
57. Cf., p. ex.,H. A. Guy, The New Testament Doctrine o f the “Last Things, ” 1948, p. 59, com um
apelo a T. W. Manson.
58. Cf. Dodd, The Parables o f the Kingdom, págs. 83, 84.
59. Meta paratçrçsoos.
60. Cf., p. ex., Greijdanus, Lukas, II, p. 830.
61. Cf., p a ra paratçrein, também L c 6.7; 14.1; 20.20; etc.
62. É por isso que, na minha opinião, a tradução da Sociedade B íblica da Holanda: “ Het koninkrijk
Gods komt nietzóó, dat het te berekenen is ” (“ O reino de D eus não vem de tal maneira que possa
ser calculado” ) (como também Kümmel, op. cit., p. 17, e muitos outros) não está correta.
63. Greijdanus, op. cit., II, p. 829.
64. Em adição aos comentários, veja, p. ex.,W. G. Kümmel, D ie Eschatologie der Evangelien, 1936,
p. 13, e Verheissung undErfiillung, p. 19.
65. A ssim , p. ex.,Bultmann, Jesus, p. 39, “ mit einem Schlage” (de repente). Cf. Kümmel, Die E s
chatologie der Evangelien, 1936, p. 11, e Verheissung und Erfiillung, p. 19.
66. A ssim também Strack-Billerbeck, op. cit., I, p. 954 (sobre Mt 24:27, “ Der Vergleichungspunkt ist
hier nicht die Plõtzlichkeit derAnkunft des Messias, sondern die bei seinem Kommen jedermann
unwiderstehlich sich aufdràngende Sichtbarkeit seiner richterlichen Machtfiille.” (“ O ponto de
comparação nesse caso não é o caráter repentino da vinda do M essias, m as a visibilidade do caráter
completo do seu poder judicial, irresistivelmente se apressando sobre todos” ). Ele acrescenta - e
isso também é importante para o propósito de L c 17.20-21 - “Diese Vorstellung ist in der altjüdis-
chen Literatur selten. Meist musz der Messias die Israelieten erst miihsam überreden, dasz sie ihn
ais ihren Kõnig undErlõser anerkennen. Nach einer andren Tradition soll es zu den Obliegenheiten
des Elias gehõren, den bis dahin unbekannten Messias seinem Volke bekanntzugeben.” (“ E ssa
visão é rara na antiga literatura judaica. Em geral, o M essias deve persuadir os israelitas a que o
reconheçam como o seu rei e redentor. De acordo com outra tradição, um a das responsabilidades
de Elias será tomar conhecido ao povo o M essias anteriormente desconhecido” ).
67. N essa tradução e exegese, entos humoon é enfático (como também é na interpretação que rejeita
m os). É verdade que outros rejeitam essa tradução, pois pensam que entos significa “ dentro” . Eles
entendem o reino como algo interior, espiritual, que está presente dentro dos corações, cf., p. ex.,
R Feine, Theologie des N.T.,'1936, p. 79; e Dodd, op. cit., págs. 83, 84. E ssa também é atradução
de Lutero. Tirando o fato de que essa tradução nos distancia da situação escatológica (cf. acima),
ela deve ser considerada muito improvável pelo fato que Jesu s aqui fala aos fariseus; veja, além
disso, Greijdanus, op. cit. Entos não pode ser relacionado a um estado interior da mente, m as é
usado com o sentido de “ entre vocês, em seu meio” . O uso de entos (que raramente ocorre no N ovo
Testamento), ao invés de em, dá ênfase e tem um a função intensificadora em referência ao que é
entendido aqui: em seu meio\ cf., também , A. Sledd em The Expository Times, 1939, p. 233ss.
68. N ão foi estabelecido se essas palavras em M ateus são originais.
69. Cf., p. ex., Grundmann, TWB, II, p. 259.
70. A s dissensões entre am igos e as perturbações entre os homens em geral também ocorrem repe
tidamente nos apocalipses judaicos, como sinais do fim; cf. Strack-Billerbeck, op. cit., IV, 2, p.
978ss.
71. Para esse sermão e para a história da crítica dos pronunciamentos proféticos e escatológicos de
Jesus, veja a monografia de F. Busch, Zum Verstãndnis der synoptischen Eschatologie; Markus
13 neu untersucht, 1938.
72. Cf. Greijdanus, Lukas, II, págs. 982, 983; cf., também, Kümmel, Verheissung, p. 39ss.
73. Cf. Hauck, op. cit., p. 154, “ sunteleisthaipanta, ist dabei fa st terminus technicus, ” (“ ... etc. é
praticamente o terminus technicus aqui” ).
N ota s 423
103. A ssim M ichaelis, Der Herr verzieht nicht die Verheissung, p. 20, seguindo R Busch, Zum
Verstãndnis der synoptischen Eschatologie, 1938, p. 87ss.
104. M ichaelis, op. cit., p. 21.
105. Markus, p. 163. Schniewind é m ais reservado em seu comentário sobre Mateus. Ele diz que
M ateus se restringiu a apenas uma referência a Daniel, cujas palavras unicamente sugerem uma
profanação horrível do santo lugar. A diferença entre M ateus e M arcos é que M arcos fala sobre
o “ abominável da desolação” (to bdelugma tçs erçmooseoos) como uma palavra masculina (hes-
tçkota hopou ou dei). Supõe-se que isso indica uma pessoa, ou seja, o Anticristo. Mateus, por
outro lado, utiliza um gênero neutro (hestos). Schniewind também admite que o significado das
palavras em sua totalidade nos três Evangelhos é direcionado à Judeia. Porém, para Schniewind,
elas soam de tal modo que os detalhes sobre o cerco de Jerusalém não podem ser reconhecidos.
Portanto, isso também é entendido como uma conexão estreita entre essa agonia e a segunda vinda
de Cristo, Matth., págs. 235, 236.
106. Op. cit., p. 276; cf., também, Klostermann sobre M c 13.14, op. cit., p.135.
107. Der Evangelist Matthãus,2 1933, págs. 702-707.
108. Th. Zahn, D as Ev. d. Matth.,* 1922, págs. 666-670. A mesm a explicação é encontrada em G.
Wohlenberg, D as Ev. d. Markus,3 1930, págs. 333-336, que explica que a form a m asculina em
M arcos, hestçkota, indica que o “ abominável da desolação” não é meramente um ídolo, m as uma
profanação que procede de uma pessoa do sexo m asculino que, como um ídolo que se opõe a
Deus, exigirá que as pessoas o adorem. Cf. 2Tes 2.3ss; p. 334.
109. Das. Ev. d. Luk.,3-4 1920, págs. 651-655. Greijdanus explica a figura do futuro em Lucas no
mesmo sentido, op. cit., II, p. 996ss.
110. Evangile selon S. Matthieu,5 1941, págs. 462, 463, 466, 467; Evangile selon S. Marc.,6 1942,
págs. 340-343.
111. Evangile selon S. Luc.,5 1941, págs. 527, 528.
112. Lohmeyer percebe essa dificuldade. Ele diz que a frase “ quem está na Judeia” não é clara
(“unklar” ). Ele supõe que a sentença original era “ então fujam para as montanhas!” Em nossa
opinião, isso é um a mudança totalmente arbitrária. E mesmo se fosse essa a sentença, a ideia de
que, ficando nas montanhas, as pessoas estariam protegidas contra o Anticristo, continua sendo
estranha, o que também é a opinião de Lohmeyer, op. cit., p. 276.
113. Das. Ev. d. Luc., p. 652.
114. A ssim , p. ex., Torrey, cf. Lagrange, Marc., p. L IIss., 340. Klostermann, também, é da opinião
que “die Mc. zugrunde liegende altere Weissagung” (“ a profecia m ais antiga encontrada na base
de M arcos” ) se refere a isso, D as Marcusev., p. 135.
115. Lagrange reconhece a importância do argumento derivado de gar. Ele diz: “ C ’estprécisément
la difficulté de tout le discours ” (“ E ssa é exatamente a dificuldade de todo o sermão” ). Ele pensa,
entretanto, que, aqui, encontramos uma solda (“ soudure "), em vez de uma ligação orgânica (“ lien
organique”), que nos induziria a aceitar apenas um tema, Matthieu, p. 462. M as essa distinção
não pode, sem arbitrariedade, destituir o significado causativo da palavra gar da sua força nesse
contexto.
116. Cf., de minha autoria, Matth., II, p. 154.
117. Cf., p. ex., J. Ridderbos, Over de uitlegging der Heilige Schrift, em: Bijbels Elandboek, I,
1935, p. 4 0 lss. e a literatura citada ali. J. van Dodewaard, De gruwel der verwoesting (Mt 24.15
- M c . 13.14), Studia Catholica, 1944, p. 130, também recorre a isso. E, no mesmo espírito, cf.
F. W. Grosheide, Hermeneutiek, 1929, p. 205, sobre a exegese de M c 24. Ele também rejeita a
exegese combatida por nós, que relaciona um versículo ou uma expressão à queda de Jerusalém
e o outro à segunda vinda de Cristo: “ E sse procedimento parece não ser permitido porque destrói
a unidade da profecia em todos os sentidos. Porém, à semelhança do que acontece nas predições
do Antigo Testamento, teremos, às vezes, de explicar algum as das partes de uma profecia como
se referindo à destruição de Jerusalém, embora, na sua totalidade, ela se refira ao fim de todas
as coisas” , op. cit.
N o ta s 425
o sentido original (cf. acima, p. ex., Mc 8.12!). Büchsel acrescenta corretamente, “ In der Rolle,
die genea in den Worten Jesu spielt, zeigt sich das Umfassende seiner Absieht—sie ist a u f das
Volksganze, nicht a u f Einzelne gerichtet—und seine Schãtzung der Gemeinschaft in der Sünde ”
(“ O papel da palavra genea entre as palavras de Jesus m ostra o caráter abrangente da sua intenção
— é dirigido às pessoas em sua totalidade, não a indivíduos — e sua avaliação da comunidade
em pecado” ), op. cit. O fato de que a utilização da palavra “geração” por Jesus é determinada
especialmente por esse significado desfavorável e não pelo seu sentido temporal surge muito
claramente da circunstância de que sua utilização é inegavelmente baseada no Antigo Testamento,
no qual “ geração” ou “esta geração” também ocorre em malam partem, cf. Sl. 12.8, 95.10; Dt.
32.5; (Mt 17.17); c f . ,também, Gesenius-Buhl, Hebr. und Aram. Handwõrterbuch über das A.T.,
o artigo sobre “ dor” .
128. Op. cit., p. 250. Plummer menciona sete diferentes interpretações e seus defensores: 1. A trans
figuração no monte (a maioria dos Pais da igreja); 2. A ressurreição e ascensão (Calvino, Beza,
etc.); 3. O Pentecostes e os sinais que o seguiram (Godet); 4. A dissem inação do Cristianismo
(N õsgen); 5. O desenvolvimento interior do evangelho (Erasm o); 6. A destruição de Jerusalém
(Wetstein, Alford, etc.); 7. A segunda vinda do reino (Weiss, Holtzmann, etc.), op. cit., p. 249.
129. Op. cit., I,págs. 424,425. H. D. A. M ajor também considera essa explicação possível, TheMission
and Message o f Jesus, 1 9 4 6 ,p. 113; como também Lagrange sobre M c 9.1, op. cit., p. 227.
130. Lagrange, op. cit.
131. Cf. Wohlenberg sobre M c 9.1, op. cit., págs. 240, 241; e Grosheide sobre M t 9.27, “Jesu s fala
sobre a manifestação de poder que procederá dele, e que começou no Pentecostes” , op. cit., p. 207.
Também N. B. Stonehous, The Witnesses o f Matthew and Mark to Christ, 1944, p. 240.
132. Calvino é da opinião de que M c 9.1 (e paral.) deve ser compreendido no sentido da manifestação
da glória celestial de Cristo, que começou na sua ressurreição e foi, desde então, revelada em sua
totalidade na vinda do Espírito e na execução dos milagres; org. Thulock, II, 1833, p. 115.
133. A ssim M. J. Lagrange sobre M t 16.28, porque a vinda do Filho do Homem é mencionada aqui
en tçi basileiai autou. Ele escreve: “Le royaume du Fils de 1'homme, p ar opposition au royaume
duPère, c ’estprécisément 1'Eglise, comme le marque bien laparabole de Vivraie” (Mt 13.24) (“ O
reino do Filho do Homem, em contradição ao reino do Pai, é exatamente a igreja, como aparece
claramente na parábola do jo io ” ), S. Marc., p. 227; cf. S. Matthieu, p. 333. Lohmeyer acredita
que essa explicação é possível ao se tratar de L c 9.27, “ Lukas scheint die zeitliche Schwierigkeit
zufühlen; er lâszt die drei Worte ‘gekommen in Herrlichkeit'fort undgibt es damit frei, unter
der basileia tou theou auch an die Gottesgemeinschaft vieler Glàubiger zu denken” (“ Parece
que L ucas percebe a dificuldade temporal; ele omite as três palavras, ‘vir em glória’, e, portanto,
também possibilita uma interpretação de basileia tou theou como a comunhão de muitos fiéis
com D eus” ), Markus, p. 172. E finalmente, Grosheide diz que o termo basileia em M c 9.1 se
refere ao reino espiritual pregado por Jesus ao qual todos os fiéis pertencem, De Verwachting der
Toekmost van Jezus Christus, 1907, p. 97. É verdade que há dificuldades em Mt 16.28, m as essa
passagem menos transparente deve ser explicada em relação às passagens m ais claras, p. 98. Cf.
também o seu livro Matth., págs. 206, 207.
134. J. A. C. vanLeeuw en, op. cit., p. 154. A opinião de Zahn é digna de nota. Ele acredita que M tl 6.28
e L c 9.27 se referem à parousia. A respeito de M c 9.1, ele considera possível outra opinião. Ele
diz que o acréscimo de elçluthuian en dunamei é uma definição m ais avançada, num sentido
formal, da vinda do reino. Portanto, M arcos tem “eine, nicht leicht im voraus zu bestimmende
Phase in der allmãhlichen Entwicklung der herankommenden Gottesherrschaft an die Stelle
ihrer endgiltigen Verwirklichung gesetzf ’ (“M arcos substitui a realização final do governo divino
vindouro por uma fase em seu desenvolvimento gradual que não pode ser facilmente definido de
antemão” ). D. Ev. d. Luc., p. 381.
135. Acim a §36.
136. Cf. acima, §47. Zahn também chega a essa conceito. Em D. Evang. d. Matth. ele escreve (p.
675), “ Jesus hat also das eine undandere Mal (Mt 10.23; 16.28) das Wortvon seinem Kommen so
N ota s 427
gebraucht, dasz er die vorbereitenden Anfãnge des Endes (24,8.32 ss; Lc 21.28,31) nach Art der
prophetischen Rede mit dem Hauptpunkt der Endereignisse, seiner Parusie, zusammenfaszt. Daher
kõnnten die Jünger so fragen, wie 24.3 berichtet ist. Zu sagen dasz Jesus hierin sich geirtt und
falsch geweissagt habe, erscheint angesichts der ausführlicheren und daher die einzelnen Momente
des Zukunftbildes schãrfer sonderden Weissagungen Jesu ebenso tõricht, wie wenn iemand den
Tãufer einen falschen Propheten nennen wollte, weil das Himmelreich, dessen Nãhe er predigte,
nicht sofort so allseitig, wie er seinen Kommen vorstellte und schilderte, verwirklicht worden ist”
(“ Consequentemente, Jesus usa essa palavra sobre sua vinda [Mt 10.23, 16.28] de tal modo que,
de acordo com o caráter da profecia, ele resume os pontos principais dos acontecimentos finais,
i.e., sua parousia, com seus inícios preparatórios. Daí, a pergunta feita pelos discípulos em 24.3.
Alguns dizem que Jesus estava errado sobre isso e que ele enunciou uma profecia falsa. Todavia,
à luz das predições m ais elaboradas de Jesus, as quais distinguem fortemente certos momentos
individuais no quadro do futuro, dizer que ele errou é uma tolice comparável a chamar João Batista
de falso profeta porque o reino dos Céus, cuja proximidade ele proclamou, não foi imediatamente
e completamente realizada como ele tinha descrito” .) E suficientemente claro que, quanto ao mais,
não podemos identificar o discernimento profético de Jesus em relação ao futuro com as expectativas
dos discípulos e nem com a percepção do Batista, e Zahn também não tenta fazê-lo.
137. A opinião de Greijdanus (cf. Plummer) de que, no momento em que Jesus disse essas palavras
(“ alguns há, dos que aqui se encontram, que de maneira nenhuma passarão pela morte” ), a res
surreição estava perto demais para que essas palavras fossem aplicadas a ela, é, em nossa opinião,
indefensável, especialmente se for mantido em mente que essas palavras não precisam pressupor
que a maioria do público teria morrido antes do cumprimento da profecia. E ssas palavras bem
que podem indicar que ver o Filho do Homem em sua glória real era o grande acontecimento na
vida daqueles que iriam presenciá-lo.
138. Cf., também, de minha autoria, Matth., II, págs. 2 2 ,2 3 ; e, também de minha autoria, Zelfopen
baring en Zelfverberging, 1946, págs. 86, 87.
139. De Verwachting der toekomst, págs. 92, 93; cf. também o seu comentário, p. 127.
140. Op. cit., págs. 204, 205.
141. Op. cit, págs. 127, 128.
142. N. B. Stonehouse, The Witness o f Matthew and Mark to Christ, 1944, p. 240. Para apoiar sua
explicação, ele recorre ao fato de que falta qualquer alusão às nuvens no céu, à presença dos
anjos, etc. Um a opinião semelhante é encontrada em Calvino. De acordo com ele, Cristo, aqui,
promete aos seus apóstolos, que enfrentavam uma tremenda tarefa, que lhes m ostraria o seu reino
por meio do poder do seu Espírito, org. Tholuck, I, 1883, p. 246.
143. Cf. também a argumentação conclusiva de Grosheide, De Verwachting, p. 91ss.
144. Cf., p. ex., Greijdanus, Lukas, II, págs. 843, 849ss; Kümmel, op. cit., p. 33
145. Talvez isso também seja claramente dito no v. 7. Greijdanus traduz: “N ão irá D eus certamente
vingar os seus eleitos... apesar de que, em relação a eles, D eus espere um longo período?” (kai
makrothumei ep ‘autois), op. cit., II, p. 848ss; cf. também Rengstorf, “ auch wenn er über ihnen
langmütig bleibt?” (“ até m esm o quando ele se mantém paciente em relação a eles?” ); op. cit.,
p. 185 (em concordância com Schlatter). E ssa tradução, porém, não é certa, como R engstorf
também admite; cf. também Klostermann, op. cit., págs. 178, 179; e Plummer, op. cit., p. 414.
M as há nesse caso a questão sobre o fato de que D eus não age imediatamente, m as atrasa a sua
ação. E as palavras ep ’ autois não podem se referir a inimigos, m as devem significar os eleitos.
Então, porém, makrothumei não pode depender de ou mç. Se isso fosse verdadeiro, a resposta
à prim eira pergunta deveria ser “ sim ” e à segunda pergunta deveria ser “ não” . A s traduções
de Greijdanus e Rengstorf, então, parecem conter o sentido verdadeiro, cf. também Plummer,
op. cit. Portanto, essa passagem enfaticamente indica a espera divina. Porém, tendo em vista a
obscuridade da passagem , não devem os enfatizar esse ponto demasiadamente.
146. Cf. também Greijdanus, op. cit., II, p. 850. “ Ele se atrasa porque ainda há muitas coisas que
precisam acontecer. M as, em toda a sua obra, Deus age rapidamente.”
428 A v in d a d o R e in o
147. Cf. Plummer, “ ...independentemente de quanto tempo uma oração parece ser impedida...” e
Rengstorf, “ Darum mahnt Jesus auch besonders zur Geduld’’ (“ E por isso que Jesus exorta [seus
discípulos] a terem paciência”), op. cit., p. 186.
148. Dodd, é verdade, acha que essas parábolas, transmitidas pelos evangelistas, foram remodeladas e
aplicadas à situação depois da morte de Jesus, m as que, originalmente, elas se referiam à situação
durante a atividade de Jesus na terra, i.e., à crise que começou com o surgimento de Jesus e que
chegaria ao seu clím ax na sua Paixão. Ele compara os ditos sobre vigilância com a advertência de
Jesus no Getsêmani (“vigiai e orai para não cairdes em tentação” ), The Parables, págs. 154-174,
m as essa noção é baseada na suposição de que Jesus tinha a expectativa de que a parousia do
Filho do Homem seria simultânea com a sua morte e ressurreição; cf. acima, § 43
149. Cf., p. ex., Klostermann, op. cit., p. 199.
150. Cf., de minha autoria, Matth., II, p. 164.
151. M ichaelis, Der Herr verzieht nicht die Verheissung, p. 5.
152. Kümmel, op. cit., p. 29.
153. Jerem ias, Theol. Bl., 1941, p. 221.
154. “D as Bildvom D ieb... steht derjüdischen Ueberlieferungvòllig entgegen. Dort wirderwartet,
dasz man die Tage des Messias vorher errechnen kann” (“ A ilustração do ladrão... é totalmente
contrária á tradição judaica. N essa tradição, supunha-se que o dia do M essias poderia ser calculado
de antemão” ); Schniewind, Matth., p. 240.
155. Isso também é um argumento importante em favor da autenticidade dessas palavras, cf. Kümmel,
op. cit., págs. 22, 23. Cf., e.g., Klostermann, Markusev., págs. 138, 139, sobre as dificuldades de
antigos exegetas com essas palavras.
156. Cf. em Lohmeyer, Markus, p. 283.
157. N esse caso, também, a crítica radical nega a historicidade dessa ligação e, portanto, a origi
nalidade do significado transmitido à parábola por essa ligação; cf., p. ex., Bultmann, Gesch. d.
syn. Trad.2, págs. 208, 360, “Sehr deutlich ist auch Lk. 19,11 eine von Lkfür die Parabel von den
anvertrauten Geldern konstruierte Einleitung, die Angabe einer Situation, aus der nach seiner
Meinung die Parabel verstanden werden soll, die er aber aus seinem Verstãndnis erschlossen hat, ”
p. 208 (“L c 9.11 é claramente uma introdução construída por Lucas para a parábola dos denários
e indica uma situação que, na sua opinião, explica a parábola. Porém, ele gerou essa situação
mediante o seu próprio entendimento.”). M as provas dessa afirmação não podem ser dadas. É certo
que Lucas pensa a partir de certa interpretação da parábola. M as como pode Bultmann, além de
suas próprias pressuposições arbitrárias, provar que essa interpretação não é aplicável à situação
histórica delineada por L ucas?
158. Cf. também Klostermann, que diz que nesse caso nós devemos somente nos importar com a
opinião do evangelista, op. cit., p. 203.
159. Cf., também, de minha autoria, Matth., II, p. 172.
* . E importante observar que Ridderbos, mesmo admitindo a participação ativa dos escritores
dos Evangelhos na elaboração dos m esm os, não vai ao ponto de admitir que, nesse processo,
os evangelistas criaram e introduziram material próprio, como fazem os críticos da forma e da
redação. (N. do T.)
160. H. Bavinck, Gereformeerde Dogmatiek, IV ,4 1930, p. 667.
161. Com o mesmo sentido P. A. Verhoef também escreve sobre o “ logo” profético do Antigo Tes
tamento, “ Por outro lado, deve ser admitido que o grande futuro está, num sentido geral, muito
próximo. Visto de um ponto de vista subjetivo, a vinda do domínio completo divino tem sido
atrasada por m ais tempo do que o esperado... M as não é somente isso. A vinda do ‘D ia do Senhor’
é uma realidade contínua, dinâmica e imanente. Vista objetivamente, está presente e muito próxi
ma! Está presente nos julgam entos temporais ou evidências da graça com a qual o Senhor Deus
visita a humanidade de cada época. M as também está próxim a no sentido de que todo julgamento
temporal ou evidência da divina salvação precede, como seu mensageiro, a manifestação completa
do grande ‘dia’ . Portanto, os profetas viam a vinda desse dia e por isso eles falavam a língua que
N otas 429
transcende infinitamente as teorias racionalistas de muitos dos acadêm icos da nossa época” . Die
vraagstuk van die onvervulde voorsegginge, 1950, págs. 312, 313.
162. Cf., sobre isso, também Verhoef, op. cit., págs. 31ss; 307ss.
In d ic e d e a ssu n to s
Aliança 26, 38, 39, 139, 142, 150-161, Eleição 152s, 158-160,194,262, 406
1 6 7 ,1 7 8 ,1 8 0 ,1 8 1 ,1 8 3 ,1 9 3 -1 9 5 , Encarnação 84, 89, 312, 317
217, 221, 238, 260-262, 264, 284, Escatologia 1 1 ,1 4 -2 0 ,2 3 ,3 1 ,5 0 ,5 1 ,53s,
288, 292, 294, 297, 298, 308-313, 56, 75, 80, 9 1 ,113s, 134,140,199,
3 1 8 ,3 3 7 ,3 8 8 ,4 0 5 ,4 0 7 ,4 2 0 202, 214-216, 243, 253, 278, 291,
Anticristo 94, 354-358, 360, 432, 433 293s, 321-324, 330, 332, 341s,
Antigo Testamento 22, 25s, 28s, 32, 34, 3 6 0 ,3 6 3 ,3 6 8 ,3 7 0 ,3 7 5 ,3 7 9
38, 40, 46-48, 55, 67, 70s, 79, 91, Escatologia histórico-final 15
1 2 8 ,1 3 6 ,1 3 9 ,148s, 151s, 154,167, Escatologia realizada 23, 50, 51, 293
1 6 9 ,1 7 7 ,179s, 182,1 9 0 ,2 0 1 ,2 0 6 , Escatologia supra-histórica 15,17
218, 222s, 228, 231-233, 238s, Escola da história das religiões 10,13
242s, 2 5 2 ,2 5 7 ,2 6 4 ,2 7 8 ,2 8 0 ,2 9 9 , Escola escatológica 10, 79, 91,257, 258
309, 334, 348-350, 356, 379, 382, Espírito Santo 42s, 47, 71, 81- 83, 95,
387s, 404s, 416, 431-434 157,19 7 ,1 9 8 ,2 1 0 ,2 7 5 ,281s, 285s,
Apocalipses judaicos 17, 22, 34, 53, 55 289,299, 326, 340, 366
Auto-ocultamento messiânico 134,136 Evangelho, o 9 ,1 2 -1 4 ,1 9 s,2 4 ,51,53,58,
61s, 70-72, 78, 80, 83, 92, 97, 99,
Batismo 43, 64, 80-83, 130, 133s, 137, 121, 129-131, 134, 136, 140, 143,
160, 164, 197, 218, 273, 281-286, 1 4 5 -1 5 4 ,1 5 7 -1 5 9 ,1 6 1 ,1 6 3 ,1 6 5 -
327 1 6 7 ,1 7 2 ,1 7 5 -1 7 8 ,1 8 6 ,1 9 3 ,195s,
Batismo de Jesus 8 2 ,137,282-284 198, 209, 214, 228, 240, 253, 256,
2 6 6 ,2 6 8 ,2 7 1 ,2 7 3 -2 7 5 ,2 7 8 ,280s,
Ceia do Senhor 139,177, 264, 285, 287- 284,288, 306, 313, 3 1 8 ,322s, 330,
318,327 337, 340, 341, 353, 354, 380, 381
e a refeição pascal 292, 303-311 Evangelho social 22, 39,121
interpretação católico-romana 256, Expiação 139,221,295,331
267, 315
interpretação luterana 314, 315 Filho do Homem 13, 22, 28, 31, 44-52,
Conflitos com os escribas 224 72, 79s, 85s, 92, 102s, HOs, 115-
Cristologia 20, 81, 83, 89,129 117, 120, 126-130, 132s, 135s,
Crítica da forma 19, 78, 132, 330s, 381, 138-143, 178, 188, 209, 227, 249,
387, 393 2 5 1 ,257s, 2 6 2 ,3 0 1 ,3 1 9 ,3 2 2 ,3 2 4 -
Cruz 65, 102, 133, 136, 139, 141, 143s, 3 2 7 ,3 2 9 -3 4 4 ,3 4 6 ,3 4 8 -3 5 1 ,354s,
195, 204, 210, 284, 293, 313, 319, 359-382
337, 340,427
Ín d ic e de a ssu n to s 431
Gentios 27, 69, 151, 155, 273, 279-281, Morte de Jesus 45, 50, 86, 133, 137s,
352s, 356, 359, 363,366 140-143, 177, 248, 266, 271s,
280s, 283s, 286, 288-291, 293s,
Importância universal do reino 53-55 301, 303, 305s, 308s, 311, 324,
Interpretação existencial 16 327s, 332s, 336s, 339, 358, 368,
Interpretação mitológica 54 397,400, 402, 407,426, 430,437
Israel 25-33, 36, 39, 4 2 - 44, 47s, 55, 66,
68s, 7 3 ,8 5 ,9 5 ,1 0 8 ,1 1 7 ,125s, 128, Ordenanças de Jesus 105
1 3 0 ,1 4 8 ,1 5 0 -1 6 0 ,167s, 170,179-
181, 183, 197, 208, 217, 224, 230, Palavra, a 9,29, 41, 48, 51, 61, 68, 70, 72,
238, 248, 252, 257, 260-262, 264, 76, 81s, 94, 9 6 ,1 11,113-115,121,
274, 276-281, 285, 293, 304, 310, 124,126, 143, 147, 150,164, 174,
330, 332, 340, 350, 362, 368-370, 188, 196, 207, 210, 238, 252-254,
380, 382, 3 8 7 -3 8 9 ,4 0 5 -4 0 7 ,417s 256, 259, 267, 275, 283, 290, 306,
311, 314, 319, 339, 344, 353, 356,
Jejum 58s, 226-229 359, 392, 394s, 397, 399, 401,409,
Julgamento, demora do 1 1 0 ,114s 415s, 42 0 ,4 2 2 ,4 2 6 ,4 3 0
Justiça (retidão) 13, 22, 32, 36, 49, 87s, Parábolas 2 1 ,23s, 40,54,77,96,104-110,
105s, 1 1 1 ,1 1 3 ,1 2 1 ,1 3 7 ,1 4 0 ,1 4 7 - 113, 115, 117, 120-123, 126, 128,
1 4 9 ,159s, 169-174,176,185-190, 1 3 3 ,1 4 0 ,1 4 3 ,1 4 5 ,1 5 5 ,1 6 5 ,175s,
1 9 4 ,1 9 9 ,2 0 0 ,2 0 8 ,2 1 3 -2 1 5 ,2 1 7 - 179, 183, 201, 247, 255, 274, 279,
2 2 0 ,2 2 3 ,2 2 6 ,231s, 234,241-243, 280, 315s, 329,339, 348, 370-372,
2 5 0 ,2 5 4 ,2 5 8 ,282s, 293,297,328, 376, 379, 398-401, 416, 423, 432,
3 4 1 ,361s, 371,377-379,381,383, 437
404s, 411, 414s, 422 Parousia 15, 21, 44, 47s, 79, 84, 86, 249,
Justificação pela fé 38,166 2 5 8 ,2 6 2 ,2 7 6 ,2 8 4 ,286s, 289,291,
301, 322, 324, 326s, 329s, 332-
Kerygma 9, 18-20, 33s, 49, 80, 163, 176, 339, 342s, 345s, 349, 351, 354,
178, 182, 197, 210, 218, 278, 339, 359,361-370, 3 7 2 -3 8 0 ,3 8 2 ,428s,
415 434-437
Paternidade de Deus 176,179-181,183-
Lei 1 0 ,9 9 ,1 1 2 ,1 2 6 ,1 3 1 ,141s, 1 5 6 ,168s, 1 8 5 ,1 9 8 ,2 0 1 ,204s,
1 7 2 ,1 8 9 ,194s, 217-245,338,341, Pecado 39, 68s, 93, 137, 139, 163, 165,
401,415-417 16 7 -170,172s, 175-177,189,216,
Literatura apócrifa 409 2 2 3 ,229s, 2 3 2 ,241s, 393s, 434
Literatura pseudepígrafa 29, 410 Pregação do evangelho 9,14, 59, 66, 70-
Literatura rabínica 29, 31,180, 266, 286, 74, 100, 103, 110, 112, 118s, 121,
304, 409 124s, 1 3 0 ,1 4 2 ,1 4 3 ,1 4 5 ,1 5 4 ,1 5 7 ,
209, 221, 239, 247, 254, 261-263,
Mediador 9 5 ,1 4 1 ,1 5 6 ,1 8 2 , 397 273-276, 280, 285, 310, 318, 338,
Messianismo 46 352-354, 366, 378, 380,400,421
Milagres 59, 66-70, 73s, 83, 85, 9 9 ,1 0 0 - Pressupostos antropológicos 195
104, 109,135, 141, 210, 275, 326, Produção de frutos 37,185,195
339, 392s, 398,423,435 Providência 8 1,131,137,198-205
432 A v in d a do R e in o
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