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A n a tu re za do reino, seus a s p e c t o s c u m p rid o s , sua

p re s e n ç a no m u n d o c o m o re su lta do da prim e ira


v in d a de Cristo e sua c o n s u m a ç ã o futura.
A vinda do reino © 2010 Editora Cultura Cristã. Título original The coming of tbe kingdom © 1962
por Herm an Ridderbos. Traduzido e publicado com permissão da P & R Publishing, 1102 Marble
Road, Phillipsbug, New Jersey, 08865, U S A . Todos os direitos são reservados.

l â edição - 2010 - 3.000 exemplares

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Cláudio M arra (Presidente)
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Augustus Nicodemus Lopes
M inka Schalkwijk Lopes
Revisão
Vagner Barbosa
Claudete Água
Filipe Delage
Editoração
Lidia de Oliveira D utra
Capa
Leia Design
R5435v Ridderbos, Herman
A vinda do reino/ Herman Ridderbos; tradução de Augustus Nicodemus Lopes e
M inka Schalkwijk Lopes. _São Paulo: Cultura Cristã, 2010

432 p.

Tradução de The coming o f the kingdom

IS B N 9 7 8 - 8 5 - 7 6 2 2 - 3 4 1 - 2

1. Escatoloogia 2. Teologia bíblica 3. Reino de Deus I. Título

236 C D D


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Superintendente: Haveraldo Ferreira Vargas


Editor: Cláudio Antônio Batista Marra
S u m á r io

Prefácio de Raymond Zorn.......................................................................................... 7


Introdução....................................................................................................................9

I. O caráter geral do reino dos céus (o pano de fundo)............ .......................25


1. O Antigo Testamento.................................................................................. 25
2. O judaísmo posterior................................................................................... 29
3. Nenhum apriori escatológico....................................................................... 32

II. O caráter geral do reino dos céus (João Batista e Jesus).......... ..................35
4. Teocêntrico................................................................................................... 35
5. Dinâmico..................................................................................................... 40
6. Messiânico................................................................................................... 42
7. Futuro...........................................................................................................48
8. Presente........................................................................................................ 56

III. O reino chegou (o cumprimento)...................... ....................................... 63


9. O Maligno vencido.................................................................................... 63
10. O poder de Jesus para realizar milagres......................................................66
11. A pregação do evangelho........................................................................... 70
12. A posse da salvação.................................................................................... 74
13. Jesus é o Cristo........................................................................................... 78

IV. O reino chegou (seu caráter provisório).....................................................90


14. Presença e futuro........................................................................................ 90
15. O tempo do Maligno................................................................................ 92
16. O milagre como um sinal.......................................................................... 98
17. Falando por parábolas.............................................................................. 103
18. O semeador............................................................................................. 109
19. A demora do julgamento.........................................................................114
20. O efeito da Palavra................................................................................... 118
21. Procurando o perdido............................................................................... 123
22. O Servo do Senhor.................................................................................. 129
23. O reino e a cruz........................................................................................ 138
6 A v in d a d o R e in o

V. O evangelho do reino (o tema básico)........................................................144


24. O evangelho dos pobres...........................................................................144
25. A nova aliança.......................................................................................... 149
26. O beneplácito do Senhor.........................................................................156

VI. O evangelho do reino (salvação)............................................................... 161


27. A remissão de pecados.............................................................................161
28. A paternidade de Deus.............................................................................177
29. O cumprimento da vontade do Pai..........................................................183
30. A paternidade de Deus e a vida temporal................................................ 196
31. A paternidade de Deus e a vida eterna.................................................... 203

VII. O evangelho do reino (os mandamentos)..............................................210


32. “Reino de Deus” e “justiça”...................................................................... 210
33. O cumprimento da lei............................................................................. 215
34. A aplicação da exigência do amor........................................................... 236

VIII. A vinda do reino e a igreja...................................................................... 243


35. Pontos de vista gerais...............................................................................243
36. Basileia e ekklesia......................................................................................249
37. Fundamento e autoridade....................................................................... 259
38. Apostolado e batismo...............................................................................269

IX. A vinda do reino e a Ceia do Senhor....................................................... 283


39. O tema duplo da Ceia do Senhor............................................................ 283
40. O significado histórico-redentor da Ceia do Senhor...............................290
41. O caráter da ação de Jesus na última ceia.................................................299
42. Símbolo e realidade..................................................................................309

X. O futuro do reino dos céu s..........................................................................316


43. O problema da “nah-erwartung” ............................................................. 316
44. Ressurreição z paronsia.............................................................................325
45. O futuro grandioso como ponto de orientação........................................ 334
46. O “discernimento dos tempos” ................................................................ 337
47. O sermão escatológico de Marcos 13 e paralelos.................................... 340
48. Os pronunciamentos conhecidos como “limite de tempo” ......................356
49. O significado das “parábolas da parousia” ................................................ 365
50. Cumprimento e consumação................................................................... 370
51. Profecia e História...................................................................................375

N otas.................................................................................................................... 379
índice de assuntos.............................................................................................. 430
P re fá c io a e d iç ã o a m e r ic a n a

É com um profundo sentimento de privilégio que esta obra monumental,


escrita pelo Dr. Herman Ridderbos, professor de Novo Testamento desde 1942,
no Seminário Teológico de Kampen, Holanda, é apresentada ao mundo de língua
inglesa. O Dr. Ridderbos, estudioso de renome internacional, escreveu muitos
livros em sua língua materna, mas somente em anos recentes vários desses livros
foram traduzidos para o inglês, para o enriquecimento do público de língua
inglesa. Este livro, originalmente publicado em língua holandesa em meados da
década de 1960, continua sendo uma contribuição sólida de valor permanente a
respeito do fascinante tema do reino de Deus. Sua publicação, agora, pela primeira
vez, em inglês é, portanto, bem-vinda.
Numa época em que muito do que é ensinado e escrito sobre o reino de
Deus é de natureza especulativa e baseado em concessões feitas ao naturalismo
da ciência moderna ou à abordagem “demitologizante” da alta crítica, e que foi
condicionado por pressupostos inconstantes e frequentemente equivocados, é
revigorante encontrar um teólogo da estatura do Dr. Ridderbos que aceite a
reivindicação de plena integridade da Escritura e permite que a mensagem da
Bíblia fale por si mesma. E, como o Dr. Ridderbos habilidosamente comprova, a
mensagem da Escritura é capaz de se defender e digna de ser ouvida. Em vez de
abordar a Escritura com pressupostos especulativos inadequados, ou até mesmo
com pressupostos filosóficos, o Dr. Ridderbos governa sua exegese por meio
de uma abordagem totalmente bíblico-teológica, ou seja, a Escritura deve ser
entendida como fornecendo sua própria interpretação à luz das circunstâncias
histórico-gramaticais de sua comunicação ao ser humano pelo Deus soberano do
universo que é, ao mesmo tempo, o Redentor pactuai de seu povo.
A base para uma compreensão da vinda do reino de Deus, portanto, é centra­
lizada em Jesus Cristo. E ele, como o Messias prometido por Deus, que dá resposta
às questões e aos problemas sobre a natureza do reino, o modo de sua vinda, a
maneira em que ele agora está presente na História e seu futuro, sua realização
final além da História. E a ele, portanto, que devemos nos voltar se quisermos
aprender sobre a plena importância e o pleno significado do domínio de Deus
como definido por este conceito bíblico, “o reino de Deus”. Consequentemente,
8 A v in d a d o R e in o

o Dr. Ridderbos concentra sua atenção na vinda do reino como proclamada pelo
próprio Jesus, de acordo com o testemunho dos Evangelhos sinóticos. Das palavras
e obras de Cristo, aprendemos o pleno alcance e significado do reino. Em resumo,
descobrimos que o reino veio na redenção realizada por Cristo, cuja realidade e
poder salvador, como anunciados no evangelho, são experimentados pela fé por
meio da união com Cristo. No entanto, a plena e final realização do reino ainda
aguarda a volta triunfal de Cristo em poder e glória nas nuvens do céu.
A apresentação que o Dr. Ridderbos faz do reino é completa e abrangente
e leva em conta uma ampla variedade de interpretações influentes e variadas,
inclusive as da erudição crítica. Além disso, sua exegese é magistral e satisfatória
na medida em que ele repetidamente organiza poderosos e irrefutáveis argumentos
para refutar pontos de vista equivocados ao mesmo tempo em que estabelece a
validade de suas conclusões.
Todos os leitores tirarão proveito do estudo do conteúdo deste livro e
certamente obterão uma melhor compreensão da natureza do reino, de seus
aspectos cumpridos e de sua presença no mundo como resultado da primeira
vinda de Cristo, juntamente com sua consumação ainda futura, a ser realizada
em sua segunda vinda.

Raymond O. Zorn
Fawn Grove, Pa.
In tro d u çã o

O tema central da mensagem de Jesus, como ela chegou até nós nos Evan­
gelhos sinóticos, consiste na vinda do reino de Deus ou, como Mateus geralmente
o expressa, do reino dos céus. Isso não é devido apenas à ocorrência freqüente
dessa fórmula nos três primeiros Evangelhos, a qual os distingue da tradição de
João no que diz respeito à sua forma e maneira de expressão; ela aparece também
da caracterização recapitulativa da pregação de Jesus, que eles fazem em diversas
passagens.
Jesus começou o seu ministério com a pregação do evangelho de Deus, di­
zendo: “O tempo está cumprido, e o reino de Deus está próximo; arrependei-vos
e crede no evangelho”. E desse modo que Marcos 1.14-15 inicia a descrição da
vinda de Jesus e de sua atividade na Galileia. Em Mateus e Lucas, encontramos
a mesma passagem em palavras diferentes (cf. M t 4.17, 23; 9.35; Lc 9.11). Em
Lucas 4.43, nos é dito, nas próprias palavras de Jesus, que o propósito de sua
missão estava na pregação do reino de Deus. A palavra de Deus que ele pregou
(Lc 8.11) é, portanto, também chamada de “a palavra do reino” (M t 13.19); e
o evangelho que resume por inteiro o kerygma do Novo Testamento (Lc 4.43;
8.1; 16.16) tem como conteúdo o reino de Deus e a sua vinda. Portanto, pode-se
dizer acertadamente que a pregação de Jesus e de seus apóstolos, como um todo,
tinha a ver com o reino de Deus1 e que, na proclamação do reino feita por Jesus
Cristo, estamos frente a frente com essa forma específica de expressão pela qual
ele nos deu a totalidade de sua revelação de Deus.2
Essas observações preliminares mostram que, para se obter uma percepção
do sentido e do caráter da revelação que o Novo Testamento faz de Deus, dificil­
mente se poderia mencionar um tema que tivesse a mesma importância que este
do reino dos céus. Devemos, ainda, acrescentar que dificilmente qualquer outro
tema na área de pesquisa no Novo Testamento tem provocado uma variedade
maior de opiniões ou provocado controvérsias tão ferozes. Essas controvérsias
têm ocorrido especialmente nos últimos cinqüenta anos.” O estudo do confronto
dessas opiniões divergentes traz o grande risco de envolver o estudioso em todo
tipo de problemas que, aparentemente, foram introduzidos mais tarde, no evan­
gelho, a partir do pensamento do mundo moderno, os quais não conduzem a
10 A v in d a d o R e in o

uma compreensão correta do propósito da pregação de Jesus. Por outro lado, a


controvérsia é também uma fonte rica de instrução para o pesquisador atento.
Acima de tudo, ela confirma que o poder da verdade divina, que encontra a sua
expressão mais sublime e variegada no evangelho do reino dos céus, repetida­
mente se sai vitoriosa contra todas as limitações e compromissos humanos. Como
introdução ao tema de nosso estudo propriamente dito, queremos, portanto, em
primeiro lugar, nos familiarizar com os principais pontos de vista que têm sido
adotados mais recentemente pelos mais diferentes intérpretes do evangelho, no
que respeita ao caráter geral do reino proclamado por Jesus.
Por mais de cinqüenta anos, o estudo do sentido geral do reino de Deus tem
sido dominado pelos questionamentos levantados pela assim chamada escola es­
catológica.3Johannes Weiss pode ser mencionado como o “pai” desse movimento.
Em 1892, ele publicou Die Predigt Jesu vom Reiche Gottes [A pregação do reino
de Deus por Jesus], que até hoje se mantém como uma obra de importância.
Nessa obra, Weiss ataca o uso que o influente teólogo daquele tempo, Albrecht
Ritschl, faz do conceito de “reino de Deus”. Ritschl pensava que podia recorrer
à pregação de Jesus para apoiar sua própria concepção. Ele entendia o reino de
Deus como uma comunidade eticorreligiosa fundada por Jesus e composta por
todos aqueles que desejam praticar a lei evangélica do amor, uma comunidade
que deve ser incentiva pela igreja. N a opinião de Ritschl, o caráter desse reino
de Deus é inteiramente imanente, pois pertence a este mundo presente e é for­
temente determinado pela ideia do desenvolvimento e pela atividade humana.
A lei fundamental desse reino encontra-se nos mandamentos de Jesus e fornece
um caráter predominantemente ético a todo o processo de sua vinda e de sua
revelação.4
De acordo com Weiss, todavia, a concepção de Ritschl a respeito do reino de
Deus não podia de maneira alguma encontrar apoio no evangelho. Suas origens
deveriam ser procuradas na perspectiva de Kant do reino da virtude e na teologia
do Iluminismo. Como um representante da escola da história das religiões, Weiss,
por outro lado, argumentou que a pregação de Jesus a respeito do reino de Deus
só poderia ser entendida à luz e no contexto do mundo de pensamento do seu
tempo, especialmente aquele dos escritos apocalípticos judaicos posteriores. Dessa
perspectiva, cada concepção do reino de Deus como uma comunidade imanente
em curso de desenvolvimento ou como um ideal ético, deve, consequentemente,
ser rejeitada, pois é claro que o reino de Deus é um acontecimento inteiramente
futuro e escatológico, pressupondo o fim deste mundo. Portanto, não é possível
que se revele já neste mundo, pois o fato de o reino de Deus que Jesus proclamou
estar próximo, às portas, nada mais era do que o início do novo mundo aguardado
na literatura apocalíptica e que se manifestará depois da subversão catastrófica
da era presente.
In t r o d u ç ã o 11

É verdade que há passagens no evangelho que apresentam esse reino como


já tendo chegado e, consequentemente, como já presente. De acordo com Weiss,
nossa primeira preocupação deveria ser investigar a sua autenticidade e o quanto
elas são derivadas de uma concepção espiritual posterior do reino. Para ele, a
pregação do reino que se encontra no Evangelho de João pertence a esse tipo
de concepção espiritual posterior do reino, no qual o elemento escatológico é
bem menos predominante. Contudo, ainda restam passagens nos Evangelhos
sinóticos nas quais Jesus fala do reino como estando presente (as assim chamadas
Gegenwartstellen, referências “presente”, tais como M t 12.28 e outras). Contudo,
para Weiss, nesses casos Jesus estava numa espécie de êxtase espiritual, no qual
via os primeiros inícios de um grande irromper, e, assim, fala da vinda do reino
num sentido proléptico. Entretanto, continua Weiss, nem sempre Jesus viveu sob
o encanto dessa alta tensão. Pelo contrário, a princípio, Jesus esperava a vinda
do reino antes da sua morte. Somente depois, sob o impacto de experiências
decepcionantes, foi que ele adiou o tempo da vinda do reino. Contudo, é inques­
tionável a questão da revelação gradual do desenvolvimento da ideia dessa vinda.
O reino virá subitamente, por uma intervenção irresistível de Deus, e levará a
atual dispensação ao seu fim.
O eco dessa ideia central escatológica é ouvido por Weiss especialmente
nos mandamentos de Jesus. Eles não indicam o padrão do reino de Deus
em seu desenvolvimento neste mundo, mas são condições para a entrada no
reino futuro. Eles não funcionam apenas como condições, mas são também
inteiramente escatológicos quanto ao caráter. O radicalismo da ética de Jesus
é o radicalismo daqueles que sabem que o fim está próximo e que, portanto,
abandonaram, em princípio, todos os interesses e possessões mundanos. Agora
que o fim do mundo pode chegar a qualquer momento, não faz sentido discutir
a respeito do certo ou do errado. Foi essa sensação de crise que deu origem
aos mandamentos de Jesus. Eles não podem ser compreendidos como regras
de conduta dadas para todas as épocas e aceitáveis em qualquer período, mas
como uma espécie de “legislação excepcional”. D o mesmo modo que, em tempos
de guerra, a ordem normal das coisas é temporariamente suspensa e tudo se
torna subserviente à causa maior, os mandamentos radicais de Jesus devem ser
compreendidos somente a partir da sua expectativa escatológica da chegada
do reino de Deus.5
A pessoa que mais defendeu energicamente essa nova interpretação do
evangelho e que pode, portanto, ser chamada de propagandista mais típico da
concepção escatológica, é Albert Schweitzer. Os escritos de Weiss foram dedi­
cados especialmente à pregação de Jesus, mas Schweitzer, em complementação,
tenta provar que a perspectiva de Weiss é também a chave longamente procurada
para se compreender a vida de Jesus. Schweitzer fala de “escatologia consistente”.
12 A v in d a d o R e in o

Se Jesus viveu na expectativa de que o fim estava próximo, a história de sua vida
deve ter sido dominada por essa expectativa. Assim, Schweitzer chega a uma
descrição inteiramente nova e parcialmente fantástica da vida de Jesus. Em seu
livro Das Messianitãts— und Leidensgeheimnis [A messianidade e o segredo do
sofrimento]6 e especialmente em sua obra volumosa Vom Reimarus zu Wrede [De
Reimarus a Wrede],7 (publicada mais tarde sob o título Die Geschichte der Leben-
Jesu-Forschung [A história da pesquisa da vida de Jesus]),8 Schweitzer fornece
uma análise brilhante dos esforços feitos pela teologia desde o Iluminismo para
se chegar a uma visão consistente da vida de Jesus.
Schweitzer mostra claramente o quanto toda a história da exegese havia
sido determinada não pela objetividade histórica, mas pelo preconceito teológico
subjetivo. Ele critica especialmente o retrato liberal de Jesus, aceito durante muito
tempo por um grande número de teólogos da escola moderna. O professor de
Schweitzer, H. J. Holtzmann, o maior representante da escola liberal, foi um dos
autores desse retrato liberal. Schweitzer simpatiza mais com figuras da história
da pesquisa do Novo Testamento tais como Reimarus, Strauss e Bruno Bauer,
os quais, em sua opinião, descreveram a vida de Jesus de uma maneira comple­
tamente livre de todas as premissas dogmáticas. Ele mostra que foram especial­
mente esses radicais que perceberam que Jesus viveu numa tensão escatológica, a
qual, de acordo com Schweitzer, já havia sido indicada no livro de Weiss sobre a
pregação de Jesus a respeito do reino. Portanto, na tradição desses predecessores,
Schweitzer tenta descrever a vida de Jesus como uma vida inteiramente dominada
pelo dogma escatológico.9
A reconstrução escatológica consistente que Schweitzer fez da vida de Jesus
não encontrou muito apoio. Apesar disso, essa perspectiva tem permanecido como
característica da posição teológica de tendência escatológica. Por um lado, tinha
como objetivo protestar contra a humanização e eticização do evangelho e contra
a distorção conseqüente do retrato de Jesus encontrado nos Evangelhos. Por ou­
tro lado, esse movimento lutou pelo que considerava uma retificação puramente
histórica. Esses autores, que viam a vinda do reino mencionada no evangelho
exclusivamente como o início da grande catástrofe final, somente podiam afirmar
isso se considerassem que a pregação de Jesus acerca da proximidade do reino
era o resultado de uma ilusão. Assim, foram forçados a basear a imitação ética de
Jesus - a qual havia fascinado especialmente Schweitzer, que a qualificou como “a
entrega heróica da vida” - em algo diferente da sua expectativa escatológica. Eis
o motivo pelo qual tanto Weiss como Schweitzer recorreram a uma perspectiva
idealista moderna para suas respectivas teologia e cosmovisão.10 Assim, a obra
deles não resultou numa nova teologia fundamentada no evangelho. Ela somente
frustrava os esforços anteriormente empreendidos de se estabelecer uma ligação
entre o evangelho e a concepção teológica corrente.
In t r o d u ç ã o 13

Esse fracasso é uma das razões pelas quais os grandes representantes da


interpretação escatológica, a princípio, tiveram tão pouca influência. Eles não
conseguiram dar expressão teológica ao caráter escatológico da pregação de Jesus,
o qual haviam redescoberto. O resultado de suas atividades foi somente que, por
um tempo, o caráter escatológico do reino de Deus pregado por Jesus foi sendo
reconhecido cada vez mais. M as esse caráter era considerado como meramente
a expressão mítica ou contemporânea da mudança espiritual que acontecia no
homem e no mundo quando as pessoas começaram a ouvir os mandamentos de
Jesus e a regular suas vidas por esses mandamentos.
Um aspecto característico desse esquema^ôrma (escatológico) versus con­
teúdo (espiritual-moral) foi, por exemplo, o que outro representante conhecido
da escola da história das religiões, W. Bousset, acrescentou para refutar o livro
de Johannes Weiss. Bousset admitiu que a pregação de Jesus era inteiramente
baseada na concepção escatológica. Porém, na opinião dele, uma distinção clara
deveria ser feita entre o caráter “fenomenológico” e o “inteligível” da mensagem
e da personalidade de Jesus. O elemento apocalíptico na pregação de Jesus, sua
expectativa do reino de Deus, suas palavras a respeito do “Filho do Homem”
foram consideradas como sendo apenas as formas de uma convicção metafísica,
de acordo com a qual um mundo eterno, invisível e de uma ordem superior, cir­
cundava nosso pequeno mundo. “Esse dualismo era a casca da tremenda seriedade
moral e da profundidade religiosa do evangelho. M as o miolo irrompeu através da
casca em todos os lugares.”11 O resultado é que, de acordo com Bousset, Jesus não
vivia controlado por uma sensação de crise nem deu mandamentos excepcionais
aos seus discípulos que não teriam, então, qualquer futuro. Mas, ao contrário do
que Weiss tinha dito, Jesus pregou um tipo positivo de ética no qual este mundo
era aceito, e, por meio da fé em Deus Pai, ele realmente se libertava do estado
de espírito escatológico. Como um historiador da religião, Bousset tentou, desse
modo, fazer justiça à perspectiva histórica da pregação de Jesus e ainda deixar
espaço para o Jesus ideal concebido pela teologia liberal ritschiliana.
Houve outros representantes influentes da escola mais antiga, como Harnack
e Wellhausen, os quais fizeram uso do esquema forma-conteúdo com o obje­
tivo de apelar para o evangelho como base para a sua teologia liberal, e, assim,
rejeitar a hipótese da tensão escatológica na pregação de Jesus, uma vez que esta
não se encaixava de modo algum na concepção ética evolucionista do reino de
Deus que eles defendiam. Assim, em sua obra Das Wesen des Christentums [A
natureza do Cristianismo], Harnack relegou a um plano totalmente secundário
o aspecto escatológico da pregação de Jesus. Na verdade, ele admitiu que o reino
dos céus pregado por Jesus deve ser compreendido como um domínio futuro e
externo, como um reino que se manifestará sobre a nova terra. Porém, na opi­
nião de Harnack, essa estrutura da pregação de Jesus deve ser entendida à luz
14 A v in d a d o R e in o

das condições da época na qual ele viveu. O interesse de Jesus não estava nesses
elementos da sua mensagem. O conceito de um reino de Deus interior, presente
na alma dos homens, deve ser considerado como tendo origem na própria pos­
sessão espiritual de Jesus. Devemos, portanto, abstrair esse “elemento essencial”
do seu ambiente contemporâneo e nos lembrar que o reino de Deus não se
preocupa com “principados e potestades, nem com demônios e anjos, mas com
Deus e a alma, com a alma e seu Deus”.12 Desse modo, Harnack reconstruiu os
traços escatológicos da pregação de Jesus e continuou a recorrer ao evangelho
como base da sua teologia racional-moral. E verdade que ele não colocou tanta
ênfase no elemento social como Ritschil havia feito em sua concepção do reino
de Deus, mas encontrou o elemento dominante da pregação de Jesus no valor
individual da alma humana.
Dessa maneira, e de outras semelhantes, a teologia liberal, antes da Primeira
Guerra Mundial, tentou manter como elemento apropriado e duradouro aquele
que era considerado o objetivo espiritual da pregação de Jesus, em que pese o
fato de que reconhecia historicamente a “escatologia do evangelho”. Por outro
lado, descartou tanto quanto foi possível os elementos cósmicos e escatológicos
endgeschichtlische (histórico-final), considerando-os não essenciais.13 A teologia
liberal adotou uma posição muito forte especialmente com respeito à interpretação
escatológica dos mandamentos de Jesus. Em conseqüência das pesadas críticas
que foram feitas à explicação escatológica do reino de Deus, até mesmo Weiss foi
obrigado a declarar na segunda edição da sua obra que nem tudo da pregação de
Jesus era controlado pela sua expectativa escatológica, e que nem todos os seus
mandamentos poderiam ser interpretados como “mandamentos de crise”. Ele
admitiu, por exemplo, que o mandamento duplo do amor não somente era válido
para épocas excepcionais antes da vinda do reino, mas que era um mandamento
para todas as épocas, que havia sido dado com essa intenção. Dessa maneira, Weiss
separou grandes porções da religião de Jesus e de sua pregação ética do conceito
do reino de Deus, dando origem a um dualismo no conteúdo do evangelho que
é difícil de explicar. Por um lado, esse dualismo contém a pregação do evangelho,
isto é, o evangelho da crise, e, por outro lado, espera-se que nele seja achada uma
fé perfeita não escatológica, que não tem nada a ver com a pregação do reino.
Essa visão dualista do evangelho14foi rejeitada enfaticamente pelos defensores da
interpretação escatológica consistente,15 mas encontrou muitos defensores, como
transparece dos escritos do conhecido H . Windisch, como, por exemplo, o que ele
escreve sobre o Sermão do Monte. Windisch faz distinção entre duas correntes
na pregação sinóptica de Jesus, isto é, a proclamação profético-escatológica da
salvação e do julgamento e um ensino de sabedoria radicalmente purificado.16
Todas essas perspectivas têm contribuído para diminuir a autoridade da inter­
pretação escatológica da pregação de Jesus e têm tornado cada vez mais claro que
In tro d u çã o 15

o assim chamado motivo da crise não poderia ter sido o motivo dominante que
pudesse levar os estudiosos a uma compreensão correta do objetivo do evangelho
original. Tem se tomado mais e mais manifesto que os mandamentos de Jesus,
especialmente, formam um obstáculo intransponível para qualquer interpretação
escatológica consistente da pregação do reino dos céus.
Por outro lado, se o reino dos céus tinha um sentido primário escatológico,
deve se tornar cada vez mais claro que esse sentido dificilmente poderia servir
como uma “estrutura” ou “casca” para a concepção ética liberal do evangelho.
E notável como essa verdade subitamente parece ter raiado sobre um círculo
cada vez maior de pessoas e como a “escatologia do reino de Deus” se tornou
repentinamente o ponto focal de interesse. Dessa vez, foi discutida como uma
realidade, realidade essa encarada não somente com respeito ao seu aspecto his-
tórico-exegético, mas também no sentido inteiramente teológico.17 Foi somente
assim que a estrutura da teologia liberal entrou em colapso. Apesar de todas as
pesquisas histórico-exegéticas de seus próprios defensores, ela não tinha sido
capaz de manter o seu otimismo e a sua concepção ética do reino de Deus.
Porém, agora, ela teria que ceder lugar à teologia da crise, que, aparentemente,
iniciou-se diretamente do evangelho. Porventura a pesquisa histórica não tinha
estabelecido que a pregação de Jesus sobre o reino também submetia todos os
dados humanos ao julgamento radical da intervenção de Deus que estava tão
próxima, às portas?
Apesar de tudo, é claro que esse novo desenvolvimento do pensamento
escatológico estava destinado a encontrar um sério obstáculo no próprio evan­
gelho. Weiss e Schweitzer tinham tentado mostrar que toda a pregação de Jesus
era baseada na convicção de uma catástrofe final que se aproximava e que era
a origem de sua consciência fundamental de crise. M as segue-se que qualquer
estudioso que desejar orientar sua teologia por essa concepção do reino de Deus
será confrontado com a tarefa inevitável de responder ao que Schweitzer, com um
senso inexorável de realidade, repetidamente chamou de “a demora à^farousia .
Não é de admirar que tenha começado a ficar evidente a necessidade de uma
nova concepção escatológica para a manutenção da interpretação escatológica
como um princípio teológico e não somente como algo histórico (como Weiss
e Schweitzer). Essa nova concepção teria de ser diferente da dos fundadores
do movimento escatológico.18 Desse modo, surgiu o que pode ser chamado de
uma mudança da escatologia histórico-final (endgeschichtliche) para a escatolo­
gia supra-histórica.* Isso significa que a escatologia não está mais preocupada
com o que está ao final da linha do horizonte da História - isto é, a história
final (<endgeschichtliche), mas com o que é supratemporal, o divino, aquilo que, a
cada momento, determina a existência do mundo e do homem. Nesse quadro
escatológico, a categoria do tempo é eliminada. A pregação da proximidade do
16 A v in d a d o R e in o

reino dos céus não deve mais ser entendida no sentido da proximidade do fim
do mundo, do encurtamento gradual do tempo ou do seu advento. Porém, essa
mensagem deve ser entendida como uma indicação da relação imediata de cada
momento da História com a eternidade. As “últimas coisas”, portanto, assumem
um sentido diferente. A indicação temporal “pós” é substituída por “trans”. Não
se questiona uma proximidade no sentido temporal. Cada momento pode ser o
último, e, a cada hora, o apelo é válido: “o reino está próximo”.
Essa nova interpretação do caráter escatológico da pregação de Jesus é cla­
ramente baseada em premissas dogmáticas e sua influência na ciência do Novo
Testamento não tem sido menor do que a influência da ideologia da teologia
liberal. Como representante da transição típica do antigo conceito eticoimanente
do reino de Deus para a nova interpretação existencial-escatológica, devemos
mencionar a obra de M . Dibelius, Evangelium und Welt [O evangelho e o mun­
do].19 Nesse livro, a crença na proximidade do fim do mundo, a qual é, aparente­
mente, a base da pregação de Jesus, é chamada de vestimenta histórica do que é
supra-histórico e permanente no cristianismo. Por seu intermédio, as palavras de
Jesus ganharam uma realidade crescente e uma seriedade inevitável. Não somente
isso, essa perspectiva escatológica dá à pregação de Jesus um caráter peremptó­
rio incondicional,20 que não mais depende de qualquer situação ou possibilidade
históricas. Tudo isso transmite ao homem uma nova base para a vida,21 elevada
acima de qualquer contingência temporal, e o capacita a estar em comunhão com
o que é eterno e não perecível, no que Jesus chamou de reino de Deus.
Contudo, nessa perspectiva, a escatologia do Novo Testamento não foi sufi­
cientemente levada a sério, porque a concepção imanente do reino de Deus ainda
tem sido mantida, apesar de libertada de qualquer determinação histórica. A esse
respeito, Dibelius seguiu Harnack e a teologia liberal. Todavia, não é Dibelius,
mas Bultmann, o representante típico dessa nova (e por seu turno “consistente”)
perspectiva escatológica do evangelho. Ele, também, é da opinião de que de­
veríamos distinguir, no evangelho, entre o conteúdo revelacional propriamente
dito, e a “mitologia contemporânea” que expressa esse conteúdo essencial. De
acordo com Bultmann, essa mitologia inclui a pregação da proximidade do fim
do mundo. Esse direcionamento para o fim absoluto se constitui no elemento
essencial e permanente no conceito do reino dos céus. “O domínio de Deus é
algo miraculoso, e o miraculoso como tal é aquilo que é absolutamente diferente
e oposto a todo aqui’ e a todo ‘agora’.”22 A pregação da basileia [reino] é a pre­
cipitação da convicção de que “mesmo no agora’ o homem é confrontado com
a necessidade de decidir, porque o ‘agora’ é a última hora para ele.”23 A basileia,
portanto, não é uma condição ou uma entidade que se concretiza na terra. Ela não
interessa para Jesus como uma condição escatológica, mas como “o acontecimento
miraculoso, que significa a grande decisão entre “ou isto ou aquilo”, que induz
Intro d u çã o 17

o homem a chegar a uma decisão”.24 O domínio de Deus não entra no mundo,


mas conclama o homem a tomar uma decisão contra o mundo.
K. L. Schmidt é também um representante dessa nova perspectiva esca­
tológica no famoso dicionário de Kittel Wõrterbuch zum N. T. [Dicionário do
Novo Testamento].25 De acordo com ele, o reino de Deus na pregação de Jesus
é puramente futuro. No sentido negativo, isso significa que “é o oposto de tudo
o que é presente e terreno, de tudo que é aqui e agora”. Nesse sentido, Schmidt
literalmente concorda com a fórmula de Bultmann e de R. Otto. No sentido po­
sitivo, esse reino de Deus é uma catástrofe acontecida em certos eventos descritos
como o drama escatológico encontrado nos apocalipses judaicos. Entretanto,
não é conclusivo que Jesus tenha se apropriado de concepções dos seus contem­
porâneos, mas o ponto importante é que ele conscientemente não foi tão longe
quanto eles foram. Jesus desistiu de retratar o estado final e os cálculos dos sinais
dos tempos. Em contraste com o judaísmo, ele enfatiza o fato que sua vinda não
pode ser calculada, que ninguém pode dispor dela de um jeito ou de outro, que é
uma causa totalmente divina. A declaração negativa de que o reino de Deus não
é senão um milagre deve ser mantida rigorosamente. A verdade negativa de que
o reino de Deus é o totalmente diferente, aquilo que é absolutamente “supracós-
mico e anticósmico”, é a coisa mais positiva que pode ser dita sobre ele, falando
de maneira geral. “A concretização do governo de Deus é futura. E esse futuro
determina o presente do homem.”26
Não é de admirar que, com o correr do tempo, essa nova interpretação da
pregação de Jesus também tenha encontrado séria oposição. A interpretação do
futuro bíblico como uma tensão permanente entre tempo e eternidade e a expli­
cação da proximidade do reino em termos de uma situação de decisão existencial,
na qual o homem se encontra momento a momento diante de Deus, claramente
demonstram a marca de uma reinterpretação filosófica do evangelho. E mais
fácil falar aqui de uma explanação alegórica do que de uma exegese aceitável
do evangelho. E verdade que tentativas vigorosas têm sido feitas para vindicar
a identidade do Novo Testamento e de sua “escatologia supra-histórica”. Karl
Barth, por exemplo, pensou durante um tempo que poderia recorrer ao Novo
Testamento e silenciar cada protesto contra essa concepção. “Pois, no Novo Tes­
tamento, o fim não é um acontecimento temporal, nem uma derrocada fabulosa
do mundo; não tem qualquer relação com qualquer catástrofe histórica terrestre
ou cósmica, mas é ofim real; tanto é o fim que 1.900 anos (de história da igreja)
não somente significam pouco, como, na verdade, não significam absolutamente
nada com respeito à proximidade ou a distância do fim...”27 M as tem se tornado
progressivamente evidente28 que essa eliminação da categoria temporal e essa
mudança da perspectiva realista e cósmica do Novo Testamento para uma con­
cepção puramente existencial da escatologia recente, no fundo, significam somente
18 A v in d a d o R e in o

abrir mão da expectativa neotestamentária do futuro (uma Enteschatologisierung


[deescatologização]). Esse é o motivo pelo qual essa nova escatologia é inacei­
tável, por mais que tente estabelecer como perspectiva teológica dominante o
elemento essencial da mensagem do Novo Testamento a respeito do reino. Ela
é vulnerável à mesma crítica feita à antiga escola, que tentou distinguir entre
os elementos “fenomenológicos” e “inteligíveis”, entre a “forma” e a “essência”
da pregação de Jesus.29 Em oposição a isso, outros têm argumentado que, no
fundo, todo esse raciocínio é uma abstração idealista da verdade (revelação) e
da História.30 O caráter temporal da escatologia do Novo Testamento tem sido
mantido com grande ênfase. Assim, por exemplo, apoiando a oposição de Robert
Winkler à escatologia consistente,31 Wendland afirma que toda teologia que
elimina o elemento do que é final ( endzeitlich) e futuro da noção de escatologia
aliena-se do conhecimento da fé do Novo Testamento.32 Em anos mais recentes,
essa perspectiva foi expressa com uma clareza maior, por exemplo, por Kümmel,
o qual declara que não existe mudança no fato de que, para Jesus, a predição
da futura ocorrência da consumação escatológica tem um sentido prospectivo
real.33 Especialmente Cullmann, na sua obra Christus und die Zeit [Cristo e o
tempo], mostrou que o conceito linear de tempo é característico da escatologia
e da soteriologia bíblicas. A história da salvação é o cerne do kerygma do Novo
Testamento e qualquer pessoa que tente encontrar um ponto de orientação ar-
quimediano além dele deveria saber que está se opondo à mensagem cristã como
tal. Esse é o motivo pelo qual Cullmann rejeita qualquer tentativa da parte de
Schweitzer e de seus seguidores de chegar a uma interpretação “teológica” do
evangelho, enquanto ignoram a expectativa da chegada do fim, o qual, historica­
mente falando, eles sustentam que é uma ilusão. Ele também mostra a Bultmann
que é impossível examinar esse conceito “mitológico” do fim desta era como o
cenário para essa forma do conteúdo central do evangelho. Em oposição a tudo
isso, Cullmann mostra que a salvação pregada no evangelho está estreitamente
ligada a um curso progressivo de tempo que incluiu o passado, o presente e o
futuro. E essencial que estejamos intensamente alertas quanto a essa concepção
rigorosamente retilinear de tempo no Novo Testamento, em contraposição ao
conceito grego de tempo circular, e que mantenhamos o conceito retilinear em
oposição a qualquer tipo de metafísica na qual a salvação é sempre restringida
ao lado oposto da linha entre Deus e o homem {Jenseits).34
Ao reconhecermos o sentido real da categoria do tempo na pregação de Jesus,
já não é mais possível ignorarmos o ato final do drama da História descrito nas
partes endgeschichtliche [histórico-finais] do evangelho. Também não podemos
passar silenciosos diante do sentido da História e do sentido cósmico do reino
dos céus, se o nosso objetivo é realizar uma exegese verdadeiramente teológica
dos Evangelhos. Obviamente, nesse contexto, uma realidade renovada e uma nova
In t r o d u ç ã o 19

importância (agora teológica) serão anexadas às questões ligadas com a proximidade


histórica do fim, em geral com a Naherwartung (o advento iminente) de Jesus,
tão enfaticamente colocado por Weiss e Schweitzer. Também não é acidental
que, com o declínio da fase supra-histórica ( uebergeschichtliche) da interpretação
escatológica, se faça necessário outra vez defender a própria posição contra a tese
original apresentada por Weiss e Schweitzer, especialmente contra aquela acerca
da Naherwartung. Além disso, outros, tais como Buri e Werner, estão fazendo
tentativas novas e enérgicas para estabelecer o fato de que a reconstrução histórica
que Schweitzer faz da história evangélica original é irrefutável. Haveremos de
retornar a essas coisas quando estivermos trabalhando com o tema da perspectiva
futura da pregação de Jesus a respeito do reino.35
Enquanto isso, a controvérsia a respeito do objetivo da pregação de Jesus não
somente tem se concentrado no sentido da escatologia evangélica, mas também
nos seus limites.Já fizemos menção da impossibilidade de se explanar o todo da
pregação de Jesus, e, em particular, os seus mandamentos, partindo da expectativa
do fim. Weiss também admite que isso é impossível. E verdade que Bultmann
pensou que poderia manter a unidade entre a mensagem escatológica e a ética
de Jesus concebendo os mandamentos de Jesus meramente como exortações para
que se chegasse a uma decisão, isto é, como uma mensagem puramente escatoló­
gica.36 Porém, à parte da abstração das qualidades naturais da ideia escatológica
do Novo Testamento evidenciada nesse esforço, a concepção somente é possível
se a unidade do kerygma sinótico for dissolvida, como querem os expoentes da
crítica da forma. O kerygma é dividido por eles num grande número de peque­
nas unidades de tradição, cada uma delas supostamente passível de investigação
quanto à sua origem.
Isso se aplica não somente aos mandamentos de Jesus, mas ao todo da
pregação do reino dos céus que chegou até nós. Tem se tornado cada vez mais
claro que não se poderá atribuir a Jesus um grande número de declarações im­
portantes e de elementos do evangelho se a sua pregação for considerada do
ponto de vista da crise, do fim que se aproxima e da ideia de “decisão”, pois, a
pregação sinótica do reino não se preocupa exclusivamente com a aproximação
e com a expectativa da chegada do reino no futuro, nem com seus elementos
étnicos e nem com as suas declarações sobre a história da salvação. Porém, em
muitos aspectos, a mensagem evangélica tem o caráter de cumprimento. Com o
objetivo de provar a verdade dessa afirmativa em bases evidentes, uma restrição
injustificável tem sido feita recorrendo-se às chamadas “declarações de presença”
(i. e., aquelas passagens que declaram explicitamente a presença do reino). M as
tem sido percebido, com clareza cada vez maior, que não se trata de uma questão
de alguns poucos pronunciamentos espalhados, mas do caráter do evangelho como
um todo, como o evangelho do cumprimento, e que, nesse caso, tudo depende
20 A v in d a d o R e in o

da perspectiva tomada quanto a pessoa deJesus. Em outras palavras, a questão do


significado do reino da pregação de Jesus é, no fundo, uma questão de conteúdo
cristológico do evangelho.
Schweitzer viu a importância desse fato e reconheceu que, onde Cristo está,
ali está o reino. A revelação do reino é a revelação de Cristo. O reino de Deus e o
Messias são correlatos. Em perfeita harmonia com essas concepções escatológicas
consistentes, Schweitzer, todavia, também representou a messianidade de Jesus
como algo que não tinha ainda começado, mas que era simplesmente uma honra
a ser conferida a ele no tempo futuro. Jesus não era o Messias, mas o Messias
designado. Sem dúvida, aqui, também, a ala radical da crítica tentou separar o
objetivo da pregação de Jesus de sua pessoa. Desde que a pregação do reino seja
concebida como uma mensagem puramente ética - como foi feito, por exemplo,
por Harnack - essa separação dificilmente pode ser contestada a partir de uma
posição puramente factual (i.e., independentemente de considerações históri-
co-exegéticas). Do mesmo modo, se a pregação do reino, conforme Bultmann
acredita, é concebida somente como um apelo por uma “decisão” (Entscheidung)
diante do “fim” que se “aproxima”, a questão sobre se Jesus se considerava realmente
como o Messias que haveria de vir pode ser vista como tendo uma importância
secundária (nebensãchliche).37Todavia, quando alguém examina o evangelho com
a mente aberta e leva em consideração a posição central que ele determina para
Jesus como o Cristo, não é mais possível determinar um sentido futuro ao reino
dos céus. E, portanto, o reconhecimento enfático do conteúdo cristológico do
kerygma sinótico que tem revelado os limites do objetivo escatológico no evan­
gelho do reino para um círculo amplo de pessoas, sem recair nas hipóteses da
teologia liberal.
Obras características da reação à concepção escatológica após a Primeira
Guerra Mundial são, por exemplo, as obras de D. G. Gloege, Reich Gottes und
Kirche im N. T. [O reino de Deus e a Igreja no N .T.],38 e H . D. Wendland, Die
Eschatologie des Reiches Gottes bei Jesus [A escatologia do reino de Deus segundo
Jesus].39
Esses escritos são típicos da nova interpretação do evangelho. Eles partem
da qualificação escatológica do conceito reino de Deus. Por um lado, rejeitam a
noção de que o reino está se desenvolvendo neste mundo como uma entidade
imanente. Por outro, rejeitam a característica básica da escatologia radical, de
acordo com a qual o reino supostamente tem um caráter meramente futuro.
Assim, Gloege coloca grande ênfase no sentido dinâmico do conceito “rei­
no de Deus” que ele interpreta como sendo a atividade escatológica redentora
e julgadora de Deus. Essa atividade real não pode ser meramente limitada ao
futuro, diz Gloege. N a ação de Jesus como o Messias, o domínio de Deus - que
também é seu - já realmente começou.40 Presente e futuro se fundiram numa
In t r o d u ç ã o 21

unidade orgânica e viva de ação (kbendig-organische- Wirkungseinheit) na atividade


messiânica de Jesus. Como o Messias, Jesus introduz o reino de Deus como um
poder operante no presente. Entretanto, Gloege não quer saber de um reino
de Deus como um dado permanente, nem mesmo na pessoa de Jesus como tal.
Consequentemente, seu caráter dinâmico, a presença do reino tem sua forma
aparente visível não na pessoa de Jesus como tal, mas em sua ação, mas essa ação,
no entanto, é uma ação de Jesus como o Cristo de Deus.41
Igualmente importantes e influentes são as exposições de Wendland. Ele
reconhece plenamente os méritos do movimento radical-escatológico em oposição
aos conceitos anteriores sobre o reino de Deus como imanente e presente. “Não
podemos retornar além da concepção escatológica.”42 Isso não significa dizer que
“escatológico” se fundiria com “futuro”. O reino de Deus não tem a ver somente
com o tempo do fim (endzeitlich), mas também é supratemporal ( ueberzeitlich),
preexistente, eterno. Essa eternidade, entretanto, não deve ser concebida como
atemporalidade. O reino eterno pode irromper no tempo, e de fato o faz, ou seja,
em Cristo. As declarações a respeito de sua presença não devem ser compreen­
didas exclusivamente num sentido subjetivo, como antecipações psicológicas,
como Weiss acreditava. Também não é admissível nos firmamos na opinião de
Bultmann, de acordo com a qual o reino transcendente de Deus coloca o homem
diante de uma “decisão” a todo momento. M as o reino vem para dentro deste
mundo no milagre divino operado em Cristo. Essa presença, no entanto, não deve
ser compreendida num sentido exclusivamente dinâmico, como Gloege fez. Ela
também consiste em Cristo como um dom divino, com a criação da nova vida,
em ser adotado como filho de Deus. Em todas essas relações entre o reino e o
mundo, essa presença está, no entanto, ligada à pessoa do mensageiro do reino.
“A resposta final para a pergunta quanto à natureza da presença do reino de Deus
sempre será de caráter cristológica. Quem quer que negue a personificação do
reino no Portador do reino esvazia a realidade da presença do reino de seu poder.”43
Esse fundamento cristológico da presença do reino e do caráter do evangelho
como cumprimento encontrou expressão de todos os tipos na literatura recente.
Pode ser dito que, no Theologisches Wõrterbuch [Dicionário teológico] de Kittel, a
maioria dos artigos que discutem o conteúdo “teológico” dos Evangelhos Sinóticos
é dominada por esse conceito, o que, por sua vez, tem contribuído grandemente
para o seu próprio reconhecimento. Todos os tipos de monografias relacionadas
com partes da pregação de Jesus (p. ex., as parábolas, a igreja, a última ceia, a
redenção, a parousia) se baseiam nesse pensamento, chegando, assim a resultados
bem diferentes.44 No que se segue, seremos confrontados com tais resultados nas
mais diferentes formas.
Como foi indicado, essa perspectiva cristológica integral da pregação sinó-
tica do reino dos céus na literatura recente vem acompanhada por uma ênfase
22 A v in d a d o R e in o

definida no significado histórico-redentor da vinda do reino. O que Jesus prega não


é uma verdade eterna e o que ele traz não é somente uma nova espiritualidade,
uma nova disposição. Também não se trata de uma nova forma de sociedade (no
sentido do evangelho social) ou de uma ação levada a efeito pelos homens e que,
lentamente, se desenvolve até sua consumação.
A vinda do reino de Deus certamente deve ser encarada como a concretiza­
ção do grande drama da história da salvação no sentido do Antigo Testamento
e dos apocalipses judaicos. Essa concretização não é somente uma questão de
futuro, entretanto. Ela já começou. A grande permuta dos éons (eras) aconteceu.
O centro da História está na vinda de Cristo, em sua vitória sobre os demônios,
em sua morte e ressurreição. Nesse sentido, autores como Jeremias,45 Stauffer,46
Matter,47 Cullmann,48 Kümmel,49 e outros tentam fazer justiça tanto ao caráter
escatológico quanto ao caráter presente do reino. Stauffer, por exemplo, declara
que a teologia contemporânea ainda entende o tempo mais ou menos à maneira
de Kant, como uma forma humana de intuição (Anshauungsform). O Novo Testa­
mento, entretanto, considera o tempo como a forma da ação divina.50 Esse ponto
de partida também capacita Stauffer a falar da presença do reino. Ele veio com o
Filho do Homem. Ele discute essa vinda especialmente quando Cristo ataca os
poderes demoníacos. O conceito do reino nas palavras de Jesus tem uma ênfase
pronunciadamente polêmica. Jesus penetra a partir do mundo celestial no reino
terreno do homem forte. O poder do grande adversário é atacado. A Civitas Dei
[Cidade de Deus] deve ter chegado e um dia será totalmente vitoriosa.51
O quadro fornecido por Matter é um pouco diferente. Ele também é muito
crítico do pensamento de que a concretização do reino ocorre dentro dos limites
deste mundo, especialmente quando o assunto é a participação humana na 'edi­
ficação” ou na “expansão” do reino de Deus. Entretanto, Matter não aceita uma
concepção realista-dinâmica do reino no sentido pretendido por Gloege e outros.
Ao contrário, ele vê o reino como a onipotência permanente e estática de Deus.
Em virtude de sua natureza divina, Cristo participa desse poder, o qual é revelado
de maneira intermitente no mundo. A vinda do reino, portanto, de acordo com
Matter, não deve ser vista numa linha horizontal, mas é sempre vertical. A “pro­
ximidade” não é temporal, mas espacial. As relações entre a primeira e a última
vinda de Jesus não são, em primeiro lugar, de natureza religiosa e moral. “Essas
relações são cósmicas. Este mundo já foi uma vez o cenário das revelações do poder
de Deus; um dia será outra vez assim, no pleno sentido da palavra, no ‘futuro’ de
Jesus Cristo. O ínterim pode, desse modo, também ser chamado de ‘basileia.
Jesus Cristo está também agora no controle do curso das coisas até mesmo no
seu aspecto natural. Ele manifesta o seu poder neste mundo tanto na origem dele
quanto no seu declínio e queda.” Quanto ao caráter dessa relação, Matter menciona
o Apocalipse de João, cujo tema principal é a basileia como um ínterim.52
In tro d u çã o 23

As perspectivas apresentadas por Stauffer, Matter e outros são o extremo


oposto da antiga teologia imanente que procurava o centro da mensagem de Jesus
no valor infinito da alma humana individual ou na espiritualização da sociedade
humana. Essa tendência antiga descartava cada doutrina a respeito dos anjos,
demônios, tronos e poderes por considerá-las como construções daquela época
(.zeitgeschichtelisch). A diferença da concepção escatológica, contudo, é que, nessas
exposições, a presença do reino é ensinada sem hesitação. O caráter supra-hu-
mano e cósmico do reino é outra vez colocado no centro. A história dramática
da salvação se sobressai especialmente em Stauffer. A vinda de Cristo é o fato
decisivo no grande conflito entre o reino de Deus e o do diabo.
Para Cullmann, também, esse grande momento da consumação da história
da salvação é a essência da vinda do reino proclamada por Cristo. Onde Cristo
age e opera, o futuro já está sendo decidido. O tempo após a primeira vinda de
Cristo e antes da sua segunda vinda é o tempo entre a batalha decisiva e o “Dia
da Vitória”.53 A tensão temporal entre o presente e o futuro já existe para Jesus,
na medida em que, em sua pessoa, o futuro pode ser considerado como tendo já
se cumprido e devendo ainda ser esperado.54 Para apoiar o conceito do reino pre­
sente e futuro, Cullmann também pode recorrer a Kümmel, cujo livro Verheiszung
und Erfüllung, publicado em 1946, mais uma vez trouxe a questão da presença
e do futuro do reino para o debate. Cullmann também é da opinião de que, em
princípio, a presença do reino, bem como o cumprimento das promessas, foram
dados no grande ato da história da salvação, a vinda de Jesus Cristo. Devemos
admitir, de fato, que Kümmel faz isso com uma grande reserva e depois de eli­
minar do evangelho todos os tipos de pronunciamentos e motivos que ele supõe
que “não devem ser atribuídos a Jesus”. Esse autor também reconhece a grande
importância da interpretação escatológica do evangelho do reino sem que, entre­
tanto, negue o elemento predominante do cumprimento. Todavia, essa presença
do reino não deveria ser concebida como uma entidade em desenvolvimento na
terra ou no coração dos homens, pois ela consiste apenas na pessoa de Cristo,
em sua pregação e em sua ação. Em todas essas coisas, o reino de Deus vindouro
se torna visível e presente.55
Por último, deve ser mencionado que a perspectiva exclusiva da presença
do reino, bem como a perspectiva da escatologia consistente, ainda encontram
defensores capazes e poderosos. Como proponentes da perspectiva escatológica
consistente, já mencionamos os nomes de F. Buri e M . Werner. A ideia de que
Jesus considerava o reino como tendo definitivamente chegado em sua própria
vinda foi defendida mais recentemente por C. H. Dodd, em sua influente obra
The Parables of the Kingdom [As parábolas do reino]. O seu ponto de vista é o da
assim chamada escatologia realizada. As declarações de Jesus acerca da presença do
reino não podem ser contestadas. M as isso significa também que todo o esquema
24 A v in d a d o R e in o

escatológico foi necessariamente transposto. O eschaton se tornou presente, em vez


de futuro, e, da esfera da expectativa, passou para a esfera da experiência. O que
o apocalipse quer dizer com “reino de Deus” só poderia ser expresso “em termos
de fantasia”. Jesus falou a respeito dele como se falasse sobre um objeto de expe­
riência.56 Embora o evangelho, na sua forma presente, também contenha todos os
tipos de pronunciamentos acerca do futuro, Dodd pensa que não existe em lugar
nenhum a questão do futuro do reino. Essa perspectiva está estreitamente ligada
com a concepção especial que Dodd tem do que Jesus quis dizer por basileia. Em
sua opinião, a basileia pertence inteiramente à esfera espiritual. Dodd interpreta o
evangelho do ponto de vista da história da salvação (em particular, as parábolas),
mas acha que, na totalidade, essa expectativa escatológica se cumpriu no mundo
espiritual do qual Jesus deu testemunho. Assim, ele explica todas as parábolas do
reino de Deus com base na perspectiva exclusiva da sua presença.
A exegese de Dodd, que encontrou uma reação favorável no mundo an-
glo-saxônico57 é, na realidade, um retorno à antiga concepção liberal do reino
de Deus num sentido científico moderno. Isso prova que, também na teologia,
não há nada de novo debaixo do sol. Isso pode nos induzir a nos mantermos tão
longe quanto possível de qualquer pressuposição ideológica a respeito do reino
e a dedicarmos todos os nossos esforços ao estudo do que o texto dos Evangelhos
nos ensina a respeito da pregação de Jesus acerca do reino dos céus.
I
O CA RÁ TER G ERAL DO
R EIN O D O S CÉU S

1. 0 PANO DE FUNDO

1. O Antigo Testamento

Quando Jesus apareceu em Israel após a pregação de João Batista com a


proclamação: “Arrependei-vos, porque está próximo o reino dos céus” (M t 4.17;
cf. 3.2), ele não forneceu qualquer outra explicação ou descrição a respeito do
acontecimento que se avizinhava, pelo menos de acordo com a tradição que
nos chegou. Isso é uma indicação de que a expressão “reino dos céus” não era
desconhecida daqueles a quem a sua mensagem era dirigida, mas que tinha sido
calculada para produzir uma reação imediata por parte dos ouvintes. A parte
excepcional e espetacular do aparecimento de João Batista e de Jesus não foi que
eles falaram do “reino dos céus”, mas que eles anunciaram a Israel que esse reino
estava próximo, às portas.
Essa circunstância nos leva a procurar a origem e explorar o pano de fundo
da expressão “reino dos céus”, usada tanto por Jesus como por João com tanta
ênfase. Que ideias o povo associava a essa conclamação ao arrependimento?
Para encontrar uma resposta a essa pergunta, não podemos simplesmente
nos referir ao Antigo Testamento, pois a expressão “reino dos céus” não ocorre
nele. Ela aparece somente nos escritos judaicos posteriores" e é razoavelmente
certo que não tenha se tornado uma frase padrão até esse período posterior (pré-
cristão), vindo, mais tarde, a ser usada por Jesus e por João Batista como base para
o ensinamento deles. Todavia, as bases desse uso lingüístico, especialmente a ideia
significada por ele, estão enraizadas profundamente na revelação divina do Antigo
26 A v in d a d o R e in o

Testamento e na expectativa da fé. Sem esse pano de fundo veterotestamentário,


nem a fé judaica posterior no reino dos céus nem a proclamação desse reino no
Novo Testamento podem ser compreendidas. E por esse motivo que temos de,
em primeiro lugar, considerar o ambiente em que a expressão nasceu.
Como foi dito, o Antigo Testamento não menciona o “reino dos céus”.
Igualmente, “reino de Deus” nem de longe é uma expressão padrão no Antigo
Testamento, como é no Novo. Existem apenas umas poucas passagens que
contêm o equivalente de basileia no sentido de realeza ou do domínio real de
Deus.1 De fato, com frequência, Yahweh é indicado pessoalmente como rei,
especialmente nos salmos e nos profetas,2 e o Senhor é chamado de rei.3 Essa
aplicação do conceito de rei para Yahweh é encontrada também nas partes mais
antigas do Antigo Testamento,4 e, portanto, devemos rejeitar a afirmação de que
a ideia de Yahweh ser um rei surgiu somente nos tempos pós-exílio, em imita­
ção ao assim chamado Deutero-Isaías.5 Isso se tornará ainda mais claro quando
entrarmos um pouco mais profundamente nesse conceito. E preciso fazer, aqui,
uma distinção dupla.
Em primeiro lugar, o Antigo Testamento fala de um tipo geral e de um
tipo particular da realeza do Senhor. O primeiro tipo tem a ver com o poder
universal e o domínio de Deus sobre o mundo todo e sobre todas as nações e é
fundamentado na criação dos céus e da terra.6 O segundo indica a relação es­
pecial entre o Senhor e Israel.7 M ais tarde, isso veio a ser chamado de teocracia,
num sentido especial, e coincide, em muitos aspectos, com a aliança de Deus no
Antigo Testamento.
Além disso, uma distinção pode ser feita entre as passagens nas quais a
realeza de Yahweh inclui igualmente o passado e o futuro, ou, como Von Rad
coloca, “que enfatizam o caráter quase atemporal da realeza de Yahweh”,8e as pas­
sagens nas quais o elemento dominante é o de expectativa, de Yahweh revelar-se
e manter-se como rei em plena glória. Esta última ideia da realeza vindoura de
Deus é encontrada especialmente nos livros mais recentes do Antigo Testamento,
particularmente nos dos profetas. Sua origem está estreitamente ligada com a
vida nacional de Israel. Durante o período no qual a existência nacional de Israel
estava declinando cada vez mais e os poderes do mundo ameaçavam esmagar a
nação, surgiu uma forte tensão entre a majestade de Deus revelada a Israel (ou
seja, seu poder sobre o mundo inteiro e sua relação particular com Israel, de quem
ele era rei) e o desenvolvimento concreto da História. Essa tensão foi aliviada pelo
que os profetas revelaram acerca da manifestação futura da majestade de Deus.
Essa expectativa do futuro é de tamanha importância no escopo da revelação
profética divina, que pode ser considerada como o centro de toda a promessa
de salvação veterotestamentária.9 As mais proeminentes dessas profecias se en­
contram em Isaías 40- 55; c£, por exemplo, 40.9-11; 52.7; e, certamente e não
O CARÁTER GERAL DO REINO DOS CÉUS - O PANO DE FUNDO 27

menos impressionante, em Isaías 24- 27. Também nos livros dos outros profetas,
essa profecia do reino vindouro de Deus é um elemento essencial, cf. Obadias
21; Miquéias 4.3; Sofonias 3.15; Zacarias 14.16-17.
O conteúdo dessa grande expectativa de salvação é multifacetado. Uma
característica essencial da profecia é a sua descrição do reino vindouro de Deus
em termos da nacionalidade de Israel. Israel será restaurado como uma nação;
o Senhor terá o seu trono em Jerusalém; os inimigos de Israel serão subjugados.
Apesar disso, repetidamente, essas ideias parecem se referir a uma realidade maior,
espiritual e imperecível. O futuro reino de Deus será inaugurado pelo grande Dia
do Senhor, o dia do julgamento para a parte apóstata de Israel, como também
para as nações em geral. Ao mesmo tempo, todavia, é dia de libertação e salvação
para o povo oprimido do Senhor. N a descrição de ambos os dias, encontramos
características que irrompem através da realidade temporal10 e que se referem a
uma dispensação inteiramente nova, como ao julgamento final, cf. Oséias 4.3;
Isaías 2.10ss, e outros lugares; e também à salvação vindoura, cf. Oséias 2.17;
Miquéias 4.1s; Isaías 9.1-6; 11.1-lOss. A salvação vindoura é imperecível (Is
51.6); uma realidade supramundana começará (Is 60.1ss.); um novo céu e uma
nova terra virão à existência (Is 60.19; 65.17; 66.22); a morte será aniquilada (Is
25.7ss.); os mortos serão ressuscitados (Is 26.19). Em oposição ao castigo eterno
do ímpio, virá a bênção eterna dos redimidps (Is 66.24). Nos pontos culminantes
da profecia, esse futuro feliz revela a sua universalidade; basicamente, ela consiste
na ruína e na derrocada do poder do mundo (Is 26.21; 27.1) e na participação dos
gentios na felicidade de Israel (Is 25.6; 45.22; 51.4-6); nesse dia, o Senhor será
o rei de todo o mundo (M q 4.1ss.). Como já foi dito, esse quadro da realidade
sobrenatural do reino divino irrompendo através das fronteiras da dispensação
temporal-mundana não é a característica usual das profecias. Como regra, a des­
crição que eles fazem permanece dentro dos limites da vida aqui na terra. Ainda
assim, no fundo, essa profecia, na sua totalidade, enloca essa salvação eterna e
indestrutível: “Todos os julgamentos temporais anunciados pelos profetas são
tipos do grande julgamento do mundo; todo tipo de bênção que foi profetizada
se refere à perfeita felicidade do grande futuro”.11
Quanto à relação entre o conceito veterotestamentário do reino de Deus
e a expectativa messiânica da salvação, foi declarado enfaticamente que esses
dois conceitos deveriam ser claramente distinguidos um do outro. Sem dúvida,
é verdade que o conceito da vinda do futuro estado de bênção no qual Yahweh
assumirá a sua realeza no sentido pleno da palavra é sempre desacompanhado
de qualquer menção ao Messias-Rei. M as um não pode ser separado do outro,
porque o que é dito a respeito do reino vindouro de Deus não tem outro alcance
que não aquele das profecias a respeito do reino messiânico da paz (cf. Is 9.11;
32). Ele é o governante futuro do mundo (Is 11.9-10); pelo menos de acordo com
28 A v in d a d o R e in o

algumas das profecias, sua realeza também exibe um caráter sobrenatural (cf. M q
5.2); em resumo, tudo o que se aplica à futura manifestação divina do Rei também
se aplica ao governo do Messias-Rei. Em outras palavras, é o mesmo que dizer
que é o Senhor que outra vez afirmará seu governo sobre Israel e manterá sua
realeza sobre todo o mundo no Messias-Rei vindouro e por intermédio dele, ao
passo que, inversamente, também nas passagens em que apenas a manifestação
vindoura da realeza de Deus é mencionada, ela deve ser ligada com a promessa
do Redentor-Rei da casa de Davi.
As profecias de Daniel têm uma importância individual para a compreensão
do pano de fundo da pregação de Jesus a respeito do reino de Deus. Em especial,
elas esclarecem a antítese entre o que pode ser concisamente formulado como o
império terreno e o reino de Deus. Em oposição ao poder de Nabucodonosor,
que usurpou direitos reais divinos, mantém-se em primeiro lugar que o malkuth
[reino] de Deus é eterno e infinito (Dn 4.25), e que, portanto, ele é livre para
conceder o domínio real a quem quiser. M as esse pensamento genérico ganha mais
concretude quando dizemos que Deus irá, de fato, esvaziar os impérios munda­
nos do domínio deles; e que ele dará o domínio à figura daquele que, nas visões
noturnas do profeta, se dirige ao Ancião de Dias no seu trono flamejante “um
como o Filho do Homem”: “Foi-lhe dado domínio, e glória, e o reino, para que os
povos, nações e homens de todas as línguas o servissem; o seu domínio é domínio
eterno, que não passará, e o seu reino jamais será destruído” (Dn 7.9ss.).
Na explicação do sonho de Daniel, é dito que “os santos do Altíssimo re­
ceberão o reino e o possuirão para todo o sempre, de eternidade em eternidade”
(Dn 7.18). Isso não deveria ser interpretado como se o Filho do Homem e os
santos fossem idênticos, argumentando-se que o primeiro age como representante
do último ou que, na expressão “os santos do Altíssimo”, é o Filho do Homem
quem está sendo definido. O Filho do Homem é aquele cujo reino os santos
do Altíssimo um dia irão compartilhar. Aqui, também, o futuro reino de Deus
é mencionado, no qual a figura do Filho do Homem fará o seu povo participar
nas bênçãos do domínio de Deus.12 Embora o Messias-Rei da casa de Davi não
esteja sendo mencionado aqui e o fato de que, em geral, as características terre­
nas nacionais foram trocadas por características transcendentes-apocalípticas, é
claro que aquele que aparece na forma do “Filho do Homem” do futuro glorioso
receberá domínio mundial das mãos de Deus e que é ele que se constitui na
bênção do grande futuro.
Finalmente, além das profecias no sentido mais estreito, devemos mencionar
também os assim chamados “salmos da ascensão ao trono” como testemunhas do
Antigo Testamento sobre o domínio divino vindouro, tais como Salmos 47; 93;
96; 97; e 99. Eles, também, falam de Deus se tornando Rei e falam da revelação
do seu poder a todas as nações. Apesar de, em primeira instância, esses salmos
O CARÁTER GERAL DO REINO DOS CÉUS - O PANO DE FUNDO 29

terem de ser explicados como se referindo a algum acontecimento histórico (p.


ex., SI 47 - a chegada da arca?), ainda assim, no fundo, esses salmos também
dão expressão à expectativa de uma revelação final e definida da majestade de
Yahweh, da qual toda manifestação do seu poder na história da salvação já revela
um começo. A interpretação da sua entronização somente no sentido cúltico
(isto é, como a ascensão anual de Yahweh ao trono, a qual supostamente deve
ser celebrada no culto com uma procissão solene), de acordo com o conceito
defendido por Mowinckel,13 baseia-se somente em analogias do mundo pagão,
pois não se conhece em Israel algo como uma festa de ano-novo.*
Para resumir o que encontramos, podemos dizer que, no Antigo Testamento,
a expressão “reino de Deus” ainda não ocorre naquele mesmo sentido invariável
com que aparece no Novo testamento. Todavia, a ideia de um reino vindouro
de Deus, consistindo em sua realeza divina universal sobre todo o mundo, para
o bem do seu povo e para a derrocada de todos os poderes que se opõe ao seu
domínio, tem sido em Israel, desde os tempos antigos, um dos motivos centrais
da expectativa da salvação. Fundamentada na confissão de que Deus é rei (realeza
presente), surge a expectativa de que ele se tornará rei no sentido intensificado
e escatológico (realeza futura).

2. O judaísmo posterior

Em contraste com as declarações verbais e pessoais sobre a realeza de Yahweh


no Antigo Testamento, encontramos quase que invariavelmente a expressão abstrata
malkuth shamaim na literatura judaica posterior. A tradução literal dessa expressão é
“reino ou realeza dos céus” (basileia toon ouranoon).14Em harmonia com a tendência
judaica de evitar, sempre que possível, o uso do nome de Deus, a palavra shamaim
(céus) deve ser considerada simplesmente como uma circunlocução da palavra
“Deus”. Esse é o motivo pelo qual ela ocorre invariavelmente sem artigo nesse
grupo de palavras.15 Embora entre os rabinos malkuth shamaim seja uma expressão
padrão, ela ocorre apenas raramente na literatura rabínica, em comparação com seu
uso lingüístico nos Evangelhos,16 e não tem, nem de longe, o significado central que
basileia toon ouranoon (tou theou) tem nos Evangelhos. Isso também transparece no
fato de que malkuth no sentido de malkuth shamaim nunca é usado independen­
temente na literatura pseudepígrafa e rabínica, como ocorre com o termo basileia
nos Evangelhos. Toda vez que malkuth é usado de maneira absoluta na literatura
judaica, sempre indica o domínio terreno e pagão (romano).17A expressão malkuth
shamaim tem um sentido duplo na literatura judaica posterior.
Em primeiro lugar, ela indica o domínio moral de Deus sobre todos os
homens, implícito na criação do homem por Deus, um domínio ao qual a
30 A v in d a d o R f jn o

humanidade renunciou, até que, entretanto, na raça de Abraão, ele fosse outra
vez reconhecido e mantido sobre Israel, especialmente naTorá. A natureza desse
domínio é especialmente caracterizada pela frase “tomar e lançar sobre os ombros
o jugo do malkuth shamaim . “Jugo”,18 aqui, é entendido como a confissão do mo-
noteísmo e a obediência à Torá. Esse “jugo” é tomado sobre os ombros quando,
à semelhança dos prosélitos, as pessoas aderem ã religião judaica, mas também
onde quer que, outra vez, se sujeitem aos seus mandamentos. Um exemplo dessa
obediência são a leitura e a recitação diárias do resumo do monoteísmo e da Torá,
o chamado Shema (Dt 6.4-8).19 Essa especificação vai tão longe a ponto de a frase
“tomar sobre os ombros o jugo do malkuth shamaim se torna uma frase técnica
para: recitar o suposto Shema. Geralmente, entretanto, malkuth shamaim, nesse
sentido, tem um significado espiritual.
Juntamente com isso - e este é o segundo ponto - malkuth shamaim tem
uma aplicação muito mais ampla, ou seja, a indicação do domínio mundial de
Deus que se aproxima, o qual libertará Israel dos poderes dos pagãos e sujeitará o
mundo das nações a Deus. Nesse sentido, malkuth shamaim significa: “o reinado
de Deus sobre toda a humanidade, plenamente concretizado pelo reconheci­
mento de sua majestade pelo mundo inteiro”.20 A manifestação desse malkuth
shamaim é repetidamente o objeto das orações judaicas. Assim, por exemplo, o
Qaddisch' se inicia com as palavras: “Glorificado e santificado seja seu [de Deus]
grande nome no mundo que ele criou de acordo com o seu beneplácito. Que ele
estabeleça o seu domínio real e inicie a libertação do seu povo e que ele traga
o seu Messias e redima o seu povo durante o tempo de vida dele, e durante os
seus dias, e no tempo da vida de toda a casa de Israel, logo e em breve; e tu
dirás Amém”.
Quanto ao conteúdo da expectativa futura assim indicada, havia uma grande
diversidade de concepções.21 Para que se tenha conhecimento do que realmente se
acreditava em alguns círculos antes e durante o tempo do nascimento de Cristo,
os escritos pseudepígrafos e apócrifos desse período são de uma importância
especial. M as eles estão longe de apresentar uma perspectiva escatológica que
seja unânime. Consequentemente, é muito difícil declarar precisamente qual era
a perspectiva futura dos judeus no início da era cristã. Além das declarações que
começam com as profecias da restauração do povo de Israel e da casa de Davi,
outros escritos colocam maior ênfase no caráter sobrenatural-transcendente do
grande tempo da salvação.
Um escrito característico da primeira perspectiva é a obra pseudepígrafa
Os Salmos de Salomão, em que as expectativas futuras que ocorrem são de natu­
reza terrena e nacional. O reino (messiânico) do futuro permanece dentro dos
limites da vida terrena e não encontramos em lugar nenhum qualquer menção
de um mundo futuro que seja de uma dispensação diferente ou sobrenatural.
O CARÁTER GERAL DO REINO DOS CÉUS - O PANO DE FUNDO 31

Uma grande ênfase é colocada na libertação de Israel dos seus inimigos e sobre
o estado de bênção resultante.
Na obra Os Testamentos dos Doze Patriarcas, entretanto, a expectativa com
respeito ao futuro nacional é também acompanhada de alguns elementos que cla­
ramente exibem um caráter sobrenatural: o reino messiânico vindouro acarretará
a redenção de todo o cosmos, a ressurreição dos mortos, o julgamento universal
de todo o mundo e a vida eterna no paraíso de Deus.
Algumas partes do livro de Enoque e o livro chamado A Ascensão de Moisés
vão ainda mais longe nessa direção. Não existe neles qualquer questão de um
reino messiânico terreno, mas o reino futuro é colocado, em vez disso, no mundo
celestial vindouro. Pelo menos no livro de Enoque, o Messias aparece na figura
sobrenatural do Filho do Homem (provavelmente uma analogia de D n 7). Aqui,
o mundo vindouro é relacionado dualisticamente com o mundo atual. O âmbito
em que o domínio de Deus será revelado não é a terra, mas o céu.
Em outros livros, tais como a obra ú ú k .í Apocalipse de Baruque e em 4Esdras,
há uma síntese das duas concepções. O domínio messiânico terreno da era final,
depois da ressurreição dos mortos e do julgamento do mundo, será seguido pelo
reino celestial vindouro, no qual o Messias também aparecerá, dessa vez para um
governo eterno, celestial. O quadro escatológico nacional é, aqui, simplesmente
uma transição para a escatologia transcendente e celestial. Em 4Esdras, entretanto,
a terra, renovada e renascida dessa vez, será novamente o lugar da nova era do
mundo, depois de este ter sido julgado.
Com respeito às concepções encontradas na literatura rabínica, existe pouca
informação disponível do período rabínico mais antigo (até 70 d.c.). O material
rabínico desse período é muito escasso. Somente antes de 70 d.c. é que encon­
tramos fontes mais ricas ao nosso dispor. Delas fica evidente que, falando de
maneira geral, os estudiosos rabínicos sustentavam as mesmas perspectivas que
encontramos em 4Esdras. O estado miserável deste mundo será seguido pelos
dias do Messias, que culminarão com o estabelecimento do malkuth shamaim
sobre a terra. Esse é o mundo futuro que começará depois da ressurreição e do
dia do julgamento.
Fica evidente, a partir desses dados, que não existe nenhuma concepção
fixa de um estado futuro de bênção do malkuth shamaim e que as concepções
que existiam, somente de modo gradual é que vieram a adotar uma forma fixa.
Isso também se aplica à posição que o Messias ocupava na expectativa do fu­
turo. Até onde podemos verificar, os escritos judaicos pré-cristãos e a literatura
rabínica posterior não tratam desse assunto de maneira proposital. Em nenhum
lugar, escreve Kuhn, encontramos o pensamento de que o reino do Messias é o
malkuth shamaim ou que o Messias trará o malkuth shamaim por meio das suas
obras.25 Ainda assim, no contexto mais amplo da escatologia judaica, há uma
32 A v in d a d o R e in o

estreita conexão entre expectativa do M essias-Rei vindouro e a expectativa da


revelação do malkuth shamaim. Deve ser levado em conta, todavia, que frequen­
temente falta uma delimitação clara das várias noções e que, no grande número
desses escritos, todos os tipos de concepções se misturam e passam por certo
desenvolvimento e modificação. Nas obras pseudepígrafas mais antigas, escritas
antes do período cristão, como Os Salmos de Salomão e Os Testamentos Dos Doze
Patriarcas, a expectativa da bênção futura é equiparada ao reino do Messias, seja
num sentido nacional, como em Os Salmos de Salomão, ou no esquema de uma
visão dualista de mundo, como em O Testamento dos Doze Patriarcas. Nessa linha
de pensamento, que é inteiramente baseada no Antigo Testamento, no que diz
respeito ao sentido absoluto do domínio messiânico, a expectativa do governo
final de Deus como rei se cumpre na e pela vinda do Messias. Ele fará com que
as prerrogativas reais de Deus sejam reconhecidas novamente na glória eterna
do reino messiânico. O seu reino é idêntico ao malkuth shamaim.
Nos escritos apócrifos posteriores, produzidos antes da era cristã, e espe­
cialmente nos escritos depois do início da era cristã, surge a ideia de que a vinda
do Messias não coincide com a grande época de salvação. Essa era somente virá
no fim do mundo atual (olam ha-zeh)', no entanto, precederá a vinda do mundo
futuro (olam ha-ba); ela precederá a ressurreição dos mortos e trará a Israel so­
mente uma libertação provisória.
E claro que, de acordo com essa última opinião, o malkuth shamaim não
coincide com o reino messiânico, mas abrange muito mais. Ele encontrará o
seu ponto culminante somente no âmbito da justiça e da paz na nova terra, da
qual, de acordo com essa concepção posterior, o reino messiânico será somente
a transição.
Resumindo, podemos dizer que, na literatura escatológica judaica, o malkuth
shamaim é compreendido como revelação universal vindoura do reinado de Deus,
com a qual o aparecimento do Messias está estreitamente ligado. Como a ex­
pressão malkuth shamaim tem um sentido muito geral, não é possível delimitar o
seu significado com exatidão no que diz respeito ao olam ha-zeh e ao olam ha-ba.
Ela engloba a autojustificação de Deus revelada na época final, em oposição ao
mundo apóstata, bem como a sua entrega no reino eterno de paz [IC o 15.24],

3. Nenhum a priori escatológico

Diante desse breve sumário das profecias do Antigo Testamento e das ex­
pectativas do judaísmo mais recente quanto ao futuro, não pode restar qualquer
dúvida quanto ao significado da proclamação de João Batista, e da proclamação
de Jesus, logo em seguida: “arrependei-vos, porque está próximo o reino dos
O CARÁTER GERAL DO REINO DOS CÉUS - O PANO DE FUNDO 33

céus”. Era o anúncio de uma realidade totalmente abrangente na história da


salvação. As descrições das futuras manifestações do reinado de Yahweh, que
eram correntes em Israel e no curso da História antes do aparecimento de Jesus,
podem ter sido muito variadas; entretanto, uma coisa é clara, a saber, que essas
palavras de João e de Jesus resumiam tudo o que tinha sido o objeto da profecia
veterotestamentária e da expectativa de Israel quanto ao futuro, desde os tempos
antigos. Essa não era meramente a opinião subjetiva dos primeiros espectadores
que foram a João e, mais tarde, a Jesus, da Judeia e de Jerusalém, até mesmo de
toda a província dos judeus, quando ouviram o rumor dessa proclamação. Era
também a intenção dos próprios pregadores dessa mensagem extraordinária e
sensacional. Esse ponto fica claro o suficiente nas palavras que Marcos acrescentou
no início do kerygma neotestamentário: o tempo está cumprido. “O tempo”, ou seja,
o grandioso momento decisivo da História, prometido pelo próprio Deus para a
total revelação da sua glória real; o tempo da libertação do seu povo e da punição
dos seus inimigos. Seria esse tempo que traria a consumação e que havia agora
alcançado a sua “plenitude”.23 Por esse motivo, o caráter geral da pregação de Jesus
sobre o reino foi qualificado, desde o seu início, como a pregação do cumprimento,
no sentido profético, histórico-soteriológico da palavra. A interpretação da sua
pregação não tem qualquer outra tarefa senão esclarecer o máximo possível o
significado do cumprimento anunciado.
Ainda assim, esse fato não nos desobriga da tarefa - e este é o segundo ponto
ao qual daremos a nossa atenção - de investigar o significado do tema central da
pregação de Jesus, que é a ideia do reino dos céus, repetidamente mencionada
por Jesus. Dentro dos limites de sua própria proclamação, estudaremos essa ideia
de perto. Seria um procedimento não muito histórico e, portanto, irreal, separar
a concepção do “reino dos céus” do seu pano de fundo histórico. M as, por outro
lado, a breve exposição histórica feita acima pode nos ensinar que essa concepção
é muito complicada. Ela foi entrelaçada com toda sorte de motivos divergentes
num processo que durou séculos. Portanto, não é possível, diante dessa realidade,
analisar a pregação de Jesus quanto ao reino dos céus do ponto de vista apocalíp­
tico do judaísmo posterior, como tem sido frequentemente feito. Ê verdade que
existem, supostamente, duas correntes principais e distintas quanto às expectativas
futuras dos judeus no início da era cristã, a saber, uma tendência nacionalista-
messiânica e a tendência profético-apocalíptica que, supostamente, representaria
a matriz da cosmovisão de Jesus. Todavia, nosso breve sumário já provou que essa
é uma questão em abertó, ou seja, será que não se trata de uma distinção muito
esquematizada? A expectativa apocalíptica do futuro também ocorre, como já
vimos, numa grande variedade de formas, de tal modo que, certamente, não é
possível falar simplesmente do “dogma escatológico” do judaísmo mais recente.
E, além disso, devemos nos lembrar que, ao tratar com os seus contemporâneos,
34 A v in d a d o R e in o

Jesus em nenhum lugar recorre a esses apocalipses judaicos, mas sempre à totalidade
do Antigo Testamento.
Consequentemente, a questão sobre o que Jesus quis dizer com a vinda do
reino, ou sobre o que ele não pode ter querido dizer com essa expressão, cer­
tamente não pode ser respondida à luz da expectativa do futuro esposada pelo
setor apocalíptico do judaísmo posterior, como fazem Weiss e seus seguidores.
Só é possível dar uma resposta a essa questão à luz do próprio kerygma sinótico,
com contínua consulta às referências feitas ao Antigo Testamento. Todas essas
considerações nos levam a não começarmos de certo a priori escatológico para,
em seguida, julgarmos a confiabilidade histórica da tradição sinótica acerca da
pregação de Jesus, como se tal a priori fosse um critério apropriado para o que
Jesus “pode” ou “não pode” ter dito a esse respeito. Muito pelo contrário, devemos
investigar a tradição evangélica como a única fonte disponível de conhecimento
da pregação de Jesus, como um dado independente.24 Somente dessa maneira
poderemos trilhar o caminho da “História”. E verdade que a pregação de Jesus
e todo o curso do cristianismo iniciado por ela não devem ser equivocadamente
concebidos como um fenômeno atemporal, mas somente à luz de todos os tipos
de “dados” históricos. Contudo, por outro lado, o segredo e o milagre implícitos
da pregação do reino dos céus, desde o início, não residem nessa relação como
tal, mas na maneira inteiramente nova em que essa pregação foi feita. Esse é o
motivo pelo qual toda tentativa historicamente orientada de explicar esse segredo
e de encontrar uma abordagem a esse milagre terá de se concentrar no caráter
peculiar e específico dessa pregação.
II
O CA RÁ TER G ERA L DO
R EIN O D O S C ÉU S

2. J oão B a tista e J e su s

4. Teocêntrico

Antes de discutirmos o conteúdo da pregação de Jesus como a proclamação


da grande consumação da história da salvação, é importante que estudemos mais
de perto o pensamento geral, ou talvez possamos dizer a ideia geral que está na
base do conceito do “reino de Deus” ou “reino dos céus” à luz do pano de fundo
indicado no capítulo anterior. E verdade que essa expressão havia se tornado, num
certo sentido, uma expressão padrão. O judaísmo posterior a usava para indicar
sua expectativa do período vindouro da salvação. M as isso não quer dizer que a
expressão fosse, em si mesma, interessante somente como um terminus tecnicus.
Pelo contrário, ela implicava certas noções que são de extrema importância para
nossa compreensão do caráter geral da pregação de Jesus.
Essa última declaração deve ser mais enfatizada, já que o conceito de “reino
dos céus” ocupa uma posição central na pregação de Jesus. Como conseqüência, o
conceito de reino de Deus adquiriu um conteúdo muito complicado na pregação
de Jesus1 a ponto de, como veremos, não ser possível circunscrever seu conteúdo
da mesma maneira em todo lugar. Isso não diminui o fato, entretanto, de que essa
realidade abrangente foi corretamente descrita como a “vinda do reino”. Portanto,
a ideia que jaz na base desse conceito pode ser chamada de pré-requisito para a
compreensão da pregação de Jesus como um todo.
A primeira coisa a fazer é estabelecer que não há diferença concreta entre
as expressões “reino dos céus” e “reino de Deus”. Somente Marcos usa uma
36 A v in d a d o R e in o

combinação das duas. Lucas quase que invariavelmente usa “o reino de Deus”
também com o sentido absoluto de “o reino”, cf. 12.32; 22.29. Mateus, por outro
lado, usa a expressão “o reino de Deus” apenas umas poucas vezes, a saber, 12.28;
19.24; 21.31,43. Quase que em todos os demais lugares (de acordo com Feine,
32 vezes2), ele usa “o reino dos céus”. Não há, todavia, qualquer razão para se
designar um sentido diferente para essas expressões. A combinação “reino dos
céus” é a tradução literal do hebraico malkuth shamaim. O uso quase invariável
que Mateus faz da expressão “reino dos céus” está ligado ao uso lingüístico fixo no
judaísmo, no qual o nome de Deus era geralmente evitado. Provavelmente Jesus
(exatamente como João Batista) fez uso dessa combinação corrente na época.
Por outro lado, é compreensível que Marcos e Lucas, que escreveram a cristãos
que originalmente eram pagãos, tenham evitado a expressão judaica específica e
falado de maneira direta de o “reino de Deus”. E, portanto, mais provável que a
última expressão seja secundária em relação à primeira (e não o inverso).3 Além
disso e ao mesmo tempo, pode ser inferido do que foi dito, com um alto grau de
probabilidade, que os esforços repetidos para se detectar uma diferença teológica
nessa dualidade de expressão se deva a uma falsa compreensão. Essa dualidade de
expressão deve ser compreendida como idêntica no significado, como está sendo
cada vez mais reconhecido.4
Caso essa perspectiva seja aceita como já estabelecida, fica claro que o gran­
dioso futuro anunciado por Jesus é considerado inteiramente a partir do ponto
de vista da realeza divina. E, então, não é uma questão de uma declaração geral
atemporal com respeito ao poder e ao reino de Deus, mas especialmente da sua
concretização redentora-histórica que um dia será testemunhada. Esse é o motivo
pelo qual a ideia da vinda do reino é preeminentemente a ideia da autoafirmação
real de Deus, da concretização do seu reino, de sua vinda ao mundo com o objetivo de
revelar a sua majestade, o seu poder e o seu direito reais.
Se o nosso objetivo é obter uma perspectiva correta do propósito geral da
pregação de Jesus, essa ideia absolutamente teocêntrica do reino dos céus deve
sempre ser levada em consideração. E o motivo básico da sua pregação. Ela explica
o motivo pelo qual, desde o início, o anúncio da plenitude do tempo tinha um
conteúdo duplo, tanto na pregação de Jesus quanto na pregação de João Batista,
ou seja, redenção e julgamento. Tanto uma como outra são conseqüência direta
do plano de Deus. O reino significa redenção porque Deus sustenta sua justiça
real para com aqueles que, como seu povo, confiam nele. E significa julgamento
porque Deus mantém a sua vontade real em oposição a todos que resistem à sua
vontade. Isso exclui qualquer elemento nacionalista. Não são os pagãos que são
convocados ao arrependimento em primeiro lugar, mas a nação de Israel. E a
glória de Deus, não a preeminência do povo, que é colocada no centro, tanto do
início quanto durante o curso da pregação do reino.
O CARÁTER GERAL DO REINO DOS CÉUS - JOÃO BATISTA E JESU S 37

Na pregação de João Batista, isso se torna imediatamente bastante evidente.


Nesse caso, o anúncio do julgamento é predominante. M as ele tem um caráter
inteiramente ético. Tendo em vista a vinda de Deus, o primeiro requerimento
é a conversão. Ninguém pode apelar para o fato de ser descendente de Abraão.
Sem dúvida, Deus haverá de cumprir sua promessa a Abraão, mas quem quer que
queira escapar da ira vindoura deve produzir frutos dignos do arrependimento.
No anúncio do reino, tudo se concentra no divino “quant à moi” (a sua própria
glória), na sua autojustificação e na afirmação de si mesmo contra tudo que se
opõe à sua realeza.
Essa perspectiva teocêntrica é também decisiva para a pregação de Jesus
acerca do reino. Ela aparece muito claramente, por exemplo, nas três primeiras
petições da oração do pai-nosso. A petição para a vinda do reino está colocada
entre as outras duas, isto é, entre aquela que pede a santificação do nome de
Deus e a outra que sua vontade seja feita (M t 6. 9-10). N a primeira petição,
o sentido da vinda do reino é descrito como a persuasão eficaz de Deus no
homem para que reverencie as virtudes divinas (“santificado seja o teu nome”).
E isso está em acordo com fazer a vontade revelada dele na terra, como ela é
feita no céu. A vinda do reino é, portanto, primeiramente a revelação da gló­
ria divina, a reafirmação e manutenção dos direitos de Deus na terra no seu
sentido mais pleno.
Esse é o motivo pelo qual qualquer interpretação antropocêntrica e huma-
nística da pregação de Jesus, a qual, por exemplo, desempenha uma parte impor­
tante na chamada teologia liberal, tem de ser rejeitada. Típica desta última no
começo deste século é a obra influente de Harnack, Das Wesen des Christendums
[A natureza do Cristianismo], Nessa obra, o centro e o motivo prevalecentes na
pregação de Jesus são procurados na ideia de que o homem é filho de Deus e no
reconhecimento fundamental do valor infinito da alma humana individual.5Tem
sido corretamente observado, também por parte da própria teologia liberal, que
esse conceito de nobreza indestrutível do homem, ou o conceito da afinidade
essencial da alma com Deus, pode ser a base de todas as religiões soteriológicas
fora do cristianismo, mas que seria uma falsificação da pregação de Jesus enraizar
o caráter fundamental do seu anúncio do reino numa tese como essa.6 Deve ser
enfaticamente sustentado, e com boa razão, que a pregação de Jesus, ao contrá­
rio, é muito mais dominada pela convicção de que o homem perdeu seu valor e
que, apesar disso, Deus está desejoso de aceitá-lo, ou, como Wendland coloca
de modo paradoxal, “Não é o valor, mas a falta de valor do homem aos olhos de
Deus... que leva o homem para esse relacionamento com Deus”.7 Esse é o motivo
pelo qual Wendland vê o centro da concepção de Deus ensinada por Jesus no
conceito de que Deus concede remissão de pecados e que está desejoso de salvar
pecadores, não justos.8
38 A v in d a d o R e in o

Ainda assim, por mais profunda e mais “evangélica” que essa perspectiva seja
do que as interpretações humanísticas do evangelho, ela não expressa adequada­
mente a “essência” da ideia do reino. Um autor como Billerbeck também toma
como central esse ponto de vista soteriológico na sua valiosa caracterização da ideia
do reino dos céus. Entre outras coisas, ele escreve o seguinte: “A ênfase não está na
soberania divina tentando realizar alguma coisa para Deus, mas no seu propósito
de salvar homens”.9 Embora essa descrição possa ser típica da concepção luterana
ortodoxa do evangelho, não está em harmonia com o tema teocêntrico básico do
“reino dos céus”. E, igualmente, conceitos como a redenção, a remissão de peca­
dos, a bênção do reino, por mais que estejam no centro da pregação de Jesus, só
podem ser compreendidos corretamente de um ponto de vista teocêntrico, porque
são bênçãos derramadas pelo reino. N a vinda do reino, Deus se revela a si mesmo,
primeira e prioritariamente, como o criador e rei que não abandona o mundo à sua
própria perdição, mas que é o Salvador do seu povo, aquele que faz as promessas.
Ele se comprometeu solenemente a redimi-los. Essa visão teocêntrica profunda
encontra consistentemente a base da redenção e do julgamento na soberania di­
vina, na manutenção da sua própria obra e palavra. Ela não é somente o motivo
básico da revelação divina que ocorre repetidas vezes no Antigo Testamento, mas
é também a base do evangelho do reino de Deus, no qual tudo se apoia na mensa­
gem evangélica de Jesus. Todas essas coisas não somente estão implícitas na ideia
original do reino de Deus, mas também determinam a totalidade da estrutura
e da forma da pregação de Jesus. Isso será demonstrado em mais detalhes num
capítulo em separado que trata do conteúdo dessa pregação.10
O que foi dito até aqui naturalmente indica que uma perspectiva abrangente
e mesmo infinita se abre com a ideia do reino de Deus, precisamente porque ela
é dominada inteiramente por um ponto de vista teocêntrico. A ideia do reino de
Deus indubitavelmente representa uma concepção especial da dramática história
da salvação dentro da totalidade da revelação divina. Outras partes da Escritura
contêm princípios diferentes de integração, conceitos dominantes diferentes.
Deveríamos, portanto, nos guardar de absolutizar uma concepção à custa de outra.
Ainda assim, não pode ser negado que a ideia do reino em si é mais ampla e mais
universal do que, por exemplo, a ideia do pacto divino ou mesmo da própria ideia da
justificação do pecador pela fé, que, em outros lugares (Deuteronômio, Romanos,
Gálatas), resume e estabelece a grande obra da redenção de Deus. Na concepção
da aliança, tudo se concentra na ligação especial entre o Senhor e seu povo e nas
virtudes de Deus que são reveladas nele. O conceito da justificação do pecador pela
fé é também uma perspectiva importante para a totalidade da história da revelação,
como transparece da maneira pela qual Paulo escreve sobre ela. Todas essas coisas
estão também estreitamente ligadas com a vinda do reino, pois ela tem a ver com a
realização das promessas de Deus ao seu povo. Veremos, portanto, mais adiante, o
O CARÁTER GERAL DO REINO DOS CÉUS - JOÃO BATISTA E JE SU S 39

quanto os conceitos de aliança e de reino de Deus estão estreitamente relacionados,


e também como Deus leva avante, de maneira completa, seu plano de salvação na
revelação do seu reino, apesar do pecado e da deslealdade humanos. Ainda assim,
nem a ideia da aliança, nem a ideia da justificação - para mencionar apenas duas
concepções proeminentes - podem representar o pensamento completo do reino
de Deus, pelo menos enquanto são interpretados em seus significados específicos.11
A ideia do reino de Deus é mais abrangente exatamente porque não somente se
orienta para a redenção do povo de Deus, mas também para a autoafirmação de
Deus em todas as suas obras. Coloca não somente Israel, mas também as nações
pagãs, o mundo e mesmo toda a criação na ampla perspectiva da concretização
de todos os direitos e promessas de Deus.12
Nisso, também, se pode encontrar a grande importância da pregação de
Jesus sobre o reino vindouro, como o início e a inauguração do Novo Testamento.
Essa pregação aponta imediatamente para o nível no qual o estágio decisivo da
história da salvação, que agora foi inaugurada, se cumpre. Essa proclamação
teocêntrica do início também permanecerá em vigor quando, mais tarde, no
Novo Testamento, todos os tipos de facetas diferentes do mesmo processo de
cumprimento virão à frente. Ao final, portanto, veremos todas as coisas retornando
ao princípio, quando o livro de Apocalipse, ao descrever o grande estágio final
da obra de Deus, eleva a uma expressão ainda mais sublime o mesmo tema que
domina a inauguração dessa obra.
Esse caráter absolutamente teocêntrico do reino de Deus na pregação de
Jesus também significa que sua vinda consiste inteiramente na ação do próprio
Deus e que é totalmente dependente de sua atividade. O reino de Deus não é
um estado ou condição, nem uma sociedade criada e promovida pelo homem (a
doutrina do “evangelho social”). Ele não virá por meio de uma revolução terrena
e imanente, nem mediante ações humanas morais; não são os homens que o
preparam para Deus. Todos esses pensamentos são uma interpretação superficial
da ideia tremenda da plenitude e da finalidade da vinda de Deus como rei para
redimir e para julgar. De um ponto de vista humano, portanto, o reino dos céus
é, acima de tudo, algo pelo qual se deve orar e esperar com perseverança. A sua
vinda não é nada menos do que o grande irromper divino, ou “fender dos céus”
(Is 64.1), o começo da operação do dunamis divino (Mc 9.1). O reino dos céus,
portanto, é absolutamente transcendente em sua origem, é a revelação da glória
\doxa) de Deus (M t 16.27; 24.30; M c 8.38; 13.26, etc.). Esse é o motivo pelo qual
a doxologia ao final do “pai-nosso”, que ocorre em muitos manuscritos (“pois teu é
o reino...”), mesmo que não esteja no original, é ainda a fórmula mais apropriada
concebível para concluir a “oração do reino”. O reino não somente tem a ver com
Deus, ele também se origina com ele. A vinda do reino só pode ser compreendida
com base na ação miraculosa e todo-poderosa de Deus.
40 A v in d a d o R e in o

5. Dinâmico

Estreitamente ligada com a exposição acima está o fato de que a ideia do


reino de Deus tem uma conotação fortemente dinâmica. Nós já vimos que o
Antigo Testamento frequentemente fala da vinda do reino como a vinda de uma
pessoa. A mesma observação é verdadeira quanto ao uso que Jesus faz da palavra
“basileia”. Até aqui temos traduzido essa palavra como reino (de acordo com o
uso lingüístico corrente), mas, em grego, ela pode significar realeza, domínio real
e reino. Não há dúvida de que “domínio”, como o exercício da atividade real, era
o uso mais proeminente da palavra nos vários pronunciamentos centrais a res­
peito do “reino de Deus” nos Evangelhos. O sentido espacial de reino é, então,
secundário. Quando a passagem diz que basileia toon ouranoon “está próximo”
(M t 3.2; 4.17; Lc 21.31); que “vem” ou que “está vindo” (Lc 17.20; M c 11.10),
não devemos imaginar em primeiro lugar uma entidade espacial ou estática que
está descendo do céu; pelo contrário, devemos pensar num domínio real divino
iniciando de maneira presente e efetiva a sua operação; portanto, devemos pensar
na ação divina do rei. A conhecida passagem de Mateus 11.12 e as passagens
paralelas falam de maneira muito característica da chegada da basileia como
“um poderoso irromper”, “abrir caminho à força”,13 e Marcos 9.1 fala do reino
“chegado com poder”.
Com base nesse sentido da palavra basileia, tem sido corretamente afirmado
que há uma conotação pessoal na expressão “o reino dos céus”.14 A manifestação
do reino dos céus não pode ser concebida como um acontecimento metafísico
impessoal, mas como a vinda do próprio Deus como rei. Essa concepção se origina
numa série de parábolas a respeito do reino de Deus. YUra&pessoa definida sempre
está no centro dessas parábolas e a ação dela demonstra o sentido do reino. Essa
pessoa é, com muita frequência, nenhum outro senão o próprio Deus, ou o seu
Filho agindo em seu nome e de acordo com a sua instrução. Assim ocorre, por
exemplo, na parábola do homem que tinha semeado boa semente no seu campo
(M t 13.24ss), do rei que pediu contas aos seus servos (M t 18.23ss), do homem
que contratou obreiros para a sua vinha (M t 20.1ss), de certo proprietário que
plantou uma vinha (M t 21.33ss), de certo rei que fez uma festa de casamento para
seu filho (M t 22.1ss), de um homem que ia viajar para um país distante, chamou
seus servos e lhes entregou os seus bens, e mais tarde retornou (Mt 25.14ss). Em
todas essas parábolas, o tertium comparationes repetidas vezes se encontra no que
o personagem central das parábolas faz, resolve, ordena, enquanto o propósito
de todas elas é mostrar que Deus agirá de maneira semelhante quando da vinda
do reino.
M as esse ponto de vista não deve ser absolutizado, por mais importante
e essencial que ele seja para a nossa compreensão da ideia geral do reino dos
O CARÁTER GERAL DO REINO DOS CÉUS - JOÃO BATISTA E JESU S 41

céus. É verdade que alguns autores têm se recusado a determinar para a palavra
basileia, nessa combinação, qualquer outro sentido além daquele de domínio, e
que têm se recusado a traduzi-la como “reino”.15 Em nossa opinião, essa posição
é insustentável pela natureza do caso. Para que o domínio seja eficaz, ele deve
criar ou manter um território onde possa operar. Portanto, a ausência de qualquer
ideia de um reino espacial seria muito estranha. Além do mais, na pregação de
João Batista e na pregação de Jesus, existem claramente algumas outras facetas
além do tema irresistível e poderoso do reino vindouro. H á também a questão
da consumação do reino, como um estado de paz e felicidade na qual os benditos
de Deus “tomarão lugares à mesa com Abraão, Isaque e Jacó” (M t 8.11), irão
“comer pão" (Lc 14.15), beber do “fruto da videira” (M t 26.29, cf. 22.1ss). O reino
é representado como uma ordem de coisas na qual haverá “superiores e inferiores”
(M t 5.19; 11.11; 18.1,4); como uma ordem imperial na qual o rei assentar-se-á
no seu trono e seus ministros se assentarão à sua direita e à sua esquerda (M t
20.21); na qual o justo brilhará e da qual o ímpio será lançado fora (M t 13.43).
Em outra passagem, a concepção aparenta ser de certa atmosfera espiritual que é
interiormente estranha para a pessoa ou para a qual ela deve estar preparada (Lc
9.62; M c 12.34). O reino é ocasionalmente representado como certo bem que
deve ser “procurado” por causa da salvação que ele traz (M t 6.33; cf. 7.7; 13.14);
um presente do Pai celestial (Lc 12.32), concedido a alguns (M t 5. 3,10; 19.14) e
“tirado” de outros (Mt 21.43); um presente que pode ser “herdado”, “ser tomado
como possessão”, “ser tomado à força” (M t 25.34; 11.12) e que está sendo “pre­
parado” por Deus para o seu povo escolhido (M t 20.23; 25.34, etc.). Todas essas
passagens mostram a grande variedade de concepções e também o fato de que o
sentido do reino não deveria ser forçosamente estreitado pela absolutização de
certo sentido ou faceta do reino à custa de outros.
Isso não elimina o fato de que o reino dos céus pregado por João Batista e
por Jesus é, antes de tudo, um processo de caráter dinâmico; em primeiro lugar,
porque esse reino não pode ser, nem por um momento, concebido à parte do
poder divino manifestado por ele na redenção e no julgamento; em segundo lugar
porque, na pregação de João Batista e de Jesus, a vinda e o progresso do reino vêm
à frente de tudo. Eles não são entendidos como o futuro estado de coisas à época
do cumprimento. Essa dinâmica tremenda da vinda divina coloca o mundo dos
anjos em ação (M t 1; Lc 2); enche o império do diabo de assombro (M t 4.3ss.;
M c 1.24; M t 12.29); sim, faz até mesmo com que Satanás caía do céu (Lc 10.18);
essa dinâmica impregna tudo e se propaga por tudo e todos que são tocados por
ela, pois a vinda do reino é o estágio inicial do grande drama da história do fim.
Ela lança o homem e o mundo numa crise. E esse fato que fornece um poder
insistente e também ameaçador ao apelo: “arrependei-vos, porque é chegado o
reino dos céus”. A pregação de João Batista, em especial, expressa isso de um
42 A v in d a d o R e in o

modo inquestionável: “Já está posto o machado à raiz das árvores”, e, “aquele
que vem depois de mim... A sua pá, ele a tem na mão” (M t 3.10-12). E esse é o
motivo pelo qual Jesus diz que não veio trazer paz ao mundo, mas espada (M t
10.34); ele até mesmo diz que veio para lançar fogo sobre a terra (Lc 12.49ss.).
Em tudo isso, e por trás de tudo isso, está a ideia de que a vinda do reino será
cheia de poder e de energia. Ela confronta o homem com a necessidade de tomar
decisões importantes, que definirão o todo da sua existência. Esse conceito do
reino deveria despertar a todos do estado de falso repouso e complacência em
que se encontram.

6. Messiânico

A tradição veterotestamentária da manifestação futura de Deus como rei e


a tradição dos judeus nos dias de Jesus provam a estreita ligação existente entre a
ideia do futuro reino de Deus e a da personalidade por vir que, de maneira geral,
pode ser indicada como o Messias. Sem dúvida, ele é anunciado e descrito em
todos os tipos de maneiras e raramente é explicitamente chamado pelo nome
“M essias”. Apesar disso, pode-se dizer que a expectativa do Messias é uma das
associações mais essenciais evocadas pelo conceito do reino dos céus.
Assim que cruzamos o portal do Novo Testamento, esse pensamento é
confirmado, pois a introdução ao evangelho, de acordo com Lucas, contém o
pensamento do reino de Deus e da restauração de Israel sob a forma do anúncio
do M essias-Rei (Lc 1.32-33 - a mensagem do anjo a Maria). Além disso, o
hino de Maria aponta para a graça divina que lhe foi concedida (o privilégio de
ser a mãe do Messias) como evidência da compaixão de Deus pelo seu povo (o
conceito do reino de Deus - Lc 1.50ss.). Zacarias também louva o Senhor, que
visitou e redimiu o seu povo, para que esteja a salvo dos seus inimigos (o reino
de Deus), levantando-lhes uma poderosa salvação na casa de Davi (Messias - Lc
1.68ss.). Ambos os conceitos, o do Messias e o do reino, se fundem. Do mesmo
modo, o anúncio do anjo a respeito do nascimento de Jesus na cidade de Davi e
o hino dos anjos (Lc 2.9-14) são claramente determinados por esse contexto. E
verdade que o hino dos anjos não menciona explicitamente a vinda do reino de
Deus. M as a proclamação de “glória (doxa) a Deus nas alturas” e a proclamação
escatológica “paz na terra” nada mais são que um sumário da bênção futura que
se realizará na vinda do reino e por meio dele.
Deve ser observado que, em todas essas declarações, tanto a ideia do reino
quanto a ideia do Messias assumem uma forma nacional em muitos aspectos. O
reinado do Messias sobre a casa de Jacó, entretanto, será eterno. Ele será gerado
pelo Espírito Santo (Lc 1.33-35). Todas essas características - e também os
O CARÁTER GERAL DO REINO DOS CÉUS - JOÃO BATISTA E JE SU S 43

acontecimentos da noite de Natal - são indicações do caráter sobrenatural do


Messias e da sua realeza.
A pregação de João Batista confirma essa simultaneidade do reino de Deus
e o Messias, pois João anuncia o reino dos céus apontando para a pessoa daquele
que ele descreve como “aquele que vem depois de mim”, o qual “é mais poderoso
do que eu, do qual não sou digno de desatar-lhe as correias das sandálias”.
Em si mesmo, esse anúncio daquele “que vem depois de mim” é bastante
vago. Também, mais tarde João fala daquele “que estava para vir” (M t 11.3; Lc
7.19). Tem sido sugerido que João já havia claramente falado do Messias antes,16
de modo que nesse momento apenas uma indicação geral seria suficiente. Em
nossa opinião, deve-se duvidar dessa opinião. Essa referência vaga de João deve
ser considerada, pelo contrário, como uma característica da sua pregação e de sua
expectativa messiânica. Isso está de acordo com o caráter sobrenatural e divino
da pessoa e da obra “daquele que está para vir”. Quem ele é e o que ele é é algo
tão exaltado e misterioso que só é possível falar de sua pessoa em termos gerais.17
Não se pode duvidar nem por um momento que João viu o Messias nessa pessoa.18
Também não há a possibilidade de qualquer dúvida de que a descrição que João
faz da importância do Messias passa longe do ideal nacionalista messiânico e é
inteiramente dominada pelo conceito do julgamento transcendente e universal
que ocorrerá quando do aparecimento do rei que estava para vir. João o chama
de “a ira vindoura” (Mt 3.7; Lc 3.7), que indica o julgamento final.19 O mesmo
pensamento é expresso pelas palavras “já está posto o machado à raiz das árvores”
(M t 3.10; Lc 3.9) e também pelo fato que aquele de quem João é o arauto e o
preparador do caminho traz uma pá em sua mão e limpará completamente a sua
eira; ele recolherá o trigo em seu celeiro e queimará a palha em fogo inextinguível
(Mt 3.12; Lc 3.17). Tudo isso aponta para o julgamento mundial final que foi con­
fiado a este que está por vir, o julgamento ao qual não somente os pagãos estarão
sujeitos, mas também todo o Israel. A concepção de João sobre o Messias que está
para vir também transparece do anúncio sobre o batismo com o Espírito e com
fogo (M t 3.11; Lc 3.26),20 o batismo que será feito por aquele que virá depois dele,
em contraste com o batismo do próprio João com água. Não devemos considerar
o batismo com o Espírito Santo e o batismo com fogo como a mesma coisa, isto
é, que o fogo se refere à purificação abrasadora feita pelo Espírito no coração do
pecador.21 Nessas duas metáforas, somos confrontados com o duplo significado
da vinda do reino: aqueles que serão salvos receberão uma medida poderosa da
operação do Espírito, e aqueles que serão perdidos serão abandonados ao fogo,
isto é, à perdição (cf. também M t 3. 10,12).22 Salvação e perdição são os dois
estágios nos quais se dividirá o futuro tremendo que se aproxima, de acordo com
as profecias: primeiro, a descida do Espírito Santo, e, depois, o dia do julgamento
(cf. J12.28-32; E z 36.26ss.; Zc 12.9-10).23 A mesma coisa se encontra, levemente
44 A v in d a d o R e in o

modificada, nos apocalipses pseudepígrafos pré-cristãos, os quais explicitamente


descrevem a vinda do Messias a partir dessa dupla perspectiva.24
Tudo isso prova, em primeiro lugar, que a pregação de João Batista a respeito
do reino que haveria de vir é acompanhada pelo anúncio da chegada do Messias;
em segundo lugar, que o conceito messiânico não se reveste de uma roupagem
nacional (como na introdução de Lucas), mas deve ser tomado no sentido trans-
cendente-escatológico. Esse conceito não aparenta ter sido orientado por profecias
e expectativas que restringem sua perspectiva à futura restauração de Israel e à
sua libertação dos inimigos. Ao contrário, ele segue profecias que descrevem
o grandioso futuro em cores profético-apocalípticas, como um acontecimento
cósmico e universal, como o fim deste mundo e o início de um mundo futuro. Ê
por isso que “aquele que estava para vir” é descrito por João dessa maneira.
Além do mais, a pregação de Jesus sobre o reino é uma revelação acerca do
Messias. A conexão só pode ser completamente demonstrada se a totalidade da
autorrevelação messiânica de Jesus for investigada como ela é encontrada nos
Evangelhos. Entretanto, essa demonstração está além do escopo deste capítulo,
que tem como único objetivo discutir o caráter geral do reino dos céus pregado
por João e Jesus. Nós nos restringiremos às declarações que, na pregação de Jesus,
ligam a vinda e o significado do Messias com a vinda e o significado do reino.
Primeiro, então, é notável que, nos Evangelhos sinóticos, o próprio Jesus fale
do Cristo apenas esporadicamente. Quanto a isso, a passagem de importância
especial é Mateus 24.5 (cf. v. 23ss; M c 13.21). Aqui, Jesus adverte seus discípulos
contra pessoas que se passarão pelo Cristo. Ele faz isso em resposta à pergunta
acerca do sinal da sua parousia e do “fim do mundo”. Aqui, também, encontramos
a ideia da vinda do reino em conexão com o aparecimento do Cristo. N a maior
parte dos casos, entretanto, Jesus não fala do Cristo, mas do Filho do Homem.
Pode ser dito, portanto, que o caráter messiânico do reino dos céus pregado por
Jesus é determinado pelo lugar central ocupado pelo “Filho do Homem” no
reino por vir.
E praticamente desnecessário apresentar provas para essa última declaração.
“Reino de Deus” e “Filho do Homem” são conceitos correlatos na pregação de
Jesus. A “vinda do Filho do Homem” (M t 10.23) é sinônimo de a “vinda do reino
de Deus”, como se pode ver de uma comparação entre Mateus 16.28 e Marcos
9.1. Isso tudo explica passagens que falam do “reino do Filho do Homem” (M t
13.41; 16.28); do Filho do Homem “se assentar no trono da sua glória” na rege­
neração (M t 19.28); da “vinda” ([parousia - M t 24.27ss); “um dos dias” (Lc 17.22);
“no seu dia” (Lc 17.24); “o sinal do Filho do Homem” (Mt 24.30); “Quando vier
o Filho do Homem na sua glória” (M t 25.31), e também “o Filho do Homem
assentado à direita do Todo-Poderoso e vindo com as nuvens do céu” (M t 26.64).
A sua glória é a glória do pai e do santos anjos (Lc 9.26). Todas essas indicações
O CARÁTER GERAL DO REINO DOS CÉUS - JOÃO BATISTA E JESU S 45

somente descrevem a convergência do reino por vir e o Filho do Homem. Ê ele


que tem de consumar a vinda do reino e executar o julgamento divino, e em cujas
mãos, portanto, toda a autoridade foi colocada.
Essa correlação entre os conceitos “reino dos céus” e “Filho do Homem” é
especialmente importante para a definição do caráter geral do reino dos céus.
Ela prova, em grande parte, que a pregação de Jesus é orientada pela profecia de
Daniel 7.13ss.25 Nessa profecia, aparece a figura do “Filho do Homem” vindo
nas nuvens do céu ao encontro do “Ancião de Dias” e recebendo o domínio, a
glória e o reino que haverá de abranger todas as nações e que terá um senti­
do eterno e imperecível. Nessa profecia, como, de fato, em todas as visões de
Daniel, o caráter universal e transcendente da vinda do reino é muito proemi­
nente. O “Filho do Homem” é, consequentemente, não somente um homem
comum investido de um governo temporal e terreno. M as, no grande drama
escatológico, é um homem a quem foi dada autoridade divina ilimitada e a
quem o domínio real e universal de Deus foi confiado. A figura do “Filho do
Homem” não ocorre nesse sentido somente na profecia de Daniel (cap. 7), mas
também no livro de Enoque e no Apocalipse deEsdras. Em todos esses lugares, a
personagem na qual o futuro grandioso do reino de Deus se concretizará reflete
uma importância que transcende em muito a de um rei israelita nacional ou de
um descendente humano da casa de Davi. Ele foi investido de uma dignidade
sobrenatural e divina. E dessa dignidade e autoridade que Jesus fala diante do
Sinédrio, quando adverte seus membros acerca da vinda do Filho do Homem.
Essa dignidade, descrita em palavras semelhantes em Daniel 7, é aquela da qual
Jesus fala depois da sua ressurreição: “Toda a autoridade me foi dada no céu e
na terra” (M t 28.18). E evidente que esse significado sobrenatural e universal
do “Filho do Homem” determina, em grande medida, o caráter do reino dos
céus pregado por Jesus.
Está acima de qualquer crítica o fato de que tudo isso está implícito no caráter
messiânico do reino dos céus. Em outras palavras, dentro do escopo do evangelho
e da expectativa judaica do futuro, é evidente que esse “Filho do Homem” é o
Messias. E verdade que alguns autores querem fazer a distinção entre duas figuras
rivais na expectativa posterior judaica do futuro, isto é, entre o Messias e o Filho
do Homem. O primeiro, supostamente, representa o ideal profético-nacional de
um rei, e, o último, de um juiz transcendente-apocalíptico do mundo. E, retor­
nando ao tempo antes dos Evangelhos, alguns escritores aplicaram a distinção
acima mencionada à pregação de João Batista e à de Jesus. D e acordo com Von
Gall, tanto Jesus quanto João rejeitaram as expectativas proféticas a respeito do
Messias e, em vez disso, aderiram à crença de uma figura apocalíptica do Filho do
Homem descrita em Daniel e Enoque. Depois da morte de Jesus, seus seguidores
supostamente atribuíram a ele tanto a dignidade de Messias quanto a de Filho do
46 A v in d a d o R e in o

Homem. E essa é a razão pela qual nos Evangelhos - produto da igreja posterior
- existe uma mistura confusa dessas duas figuras diferentes.26
Toda essa concepção está baseada na hipótese gratuita da existência na expec­
tativa judaica do futuro de duas formas mutuamente excludentes e competitivas
de expectativas judaicas quanto ao futuro. Mas, mesmo que elas tenham existido
entre o povo, não há a mínima indicação de que João Batista e Jesus aceitavam
essa antítese. Pois esses dois tipos de expectativas do futuro que são colocadas
lado a lado, ou, como afirma Von Gall, que são opostas entre si, são encontradas
não somente na literatura judaica posterior, como também têm o seu pano de
fundo no próprio Antigo Testamento. No Antigo Testamento existe a figura
do Messias, o rei, da casa de Davi, e a do Filho do Homem. Se vamos aceitar
a hipótese de Von Gall, Jesus e João Batista teriam realmente rejeitado a maior
parte da expectativa profética veterotestamentária quanto ao futuro. Eles teriam
que ser considerados como revolucionários espirituais radicais, não somente no
fórum dos seus próprios contemporâneos, mas também naquele fórum de toda a
revelação histórica divina. Essa concepção não está em conflito apenas com tudo
o que conhecemos dos Evangelhos - a única fonte de nosso conhecimento da
vida de Jesus - mas também torna toda a história do cristianismo ininteligível.
Em oposição à característica principal da doutrina de Jesus e da sua expectativa
do futuro, seus seguidores teriam atribuído a ele o ideal messiânico que o próprio
Jesus havia rejeitado, não somente no sentido nacionalista, mas também como
o ideal messiânico em geral.
Em contraste com isso, todavia, temos o testemunho dos Evangelhos
de que a pregação de Jesus sobre o reino era dominada pela identificação do
Messias com o Filho do Homem. Isso é muito mais plausível até mesmo com
base nessas considerações históricas gerais. M ais adiante, verificaremos que, na
autorrevelação de Jesus, não somente esses dois conceitos ocorrem juntos, mas
também outros, como o Servo sofredor de Isaías 53. Nesse aspecto, também, a
sua pregação do reino é o cumprimento das Escrituras no sentido completo da
palavra. E a essa luz que devemos ver a proeminência indubitável da expressão
“o Filho do Homem” na pregação de Jesus a respeito do reino. Isso não implica
a anulação do antigo “messianismo profético”, mas, ao contrário, trata-se de uma
indicação da importância sobrenatural e divina que, à luz de toda profecia, deve
ser atribuída ao prometido filho de Davi.
O fato de que Jesus não baseou sua mensagem exclusivamente na visão de
Daniel, mas na totalidade da palavra de Deus no Antigo Testamento, se percebe
claramente pelo diálogo notável ocorrido entre ele e os fariseus acerca do filho de
Davi e que chegou até nós em todos os três Evangelhos sinóticos (M t 22.41-46;
M c 12.35-37a; Lc 20.41-44). Nessas passagens os fariseus são confrontados de
maneira oficial e aberta com a pergunta: “O que pensais vós do Cristo? De quem
O CARÁTER GERAL DO REINO DOS CÉUS - JOÃO BATISTA E JE SU S 47

é filho?” (M t 22.42). Em reação à resposta dos fariseus, “De Davi”, Jesus cita o que
Davi, inspirado pelo Espírito Santo, disse acerca do Messias: “Disse o Senhor ao
meu Senhor: Assenta-te à minha mão direita, até que eu ponha os teus inimigos
debaixo dos teus pés”. E conclui com a pergunta: “Se Davi, pois, lhe chama de
Senhor, como é ele seu filho?”
Essa passagem é frequentemente citada para provar que Jesus (ou a igreja
posterior) queria negar a descendência davídica do Messias. M as essa opinião,
sem dúvida, é errada.27 Jesus não rejeita o testemunho veterotestamentário de
que o Messias é filho de Davi. Ele queria expor o significado desse reinado daví-
dico do Messias à luz de todo o Antigo Testamento. Ele aparentemente se opõe
àquela interpretação da filiação davídica do Messias de acordo com a qual este
último estava investido de uma realeza humano-nacional para a libertação da
nação judaica. Jesus contradiz essa perspectiva ao insistir no próprio testemunho
profético de Davi acerca do reinado totalmente sobre-humano e divino do M es­
sias. O Messias receberá o domínio divino e será investido de uma honra e um
poder sobre-humanos a ponto de até mesmo Davi, seu pai, falar dele como seu
“Senhor”. Essa passagem nada tem a ver com (a refutação de) o reinado davídico
do Messias, mas com a sua importância e o seu caráter. Está claro que as palavras
acerca disso no Salmo 110.1 estão totalmente de acordo com o quadro de Daniel
7 sobre a autoridade do Filho do Homem. Essa é a razão pela qual Jesus cita o
Salmo 110.1. Isso não significa que, no Antigo Testamento, quando o Messias,
como filho de Davi é mencionado, esse caráter divino, sobre-humano e universal
do seu reinado seja expresso em palavras claras. A pregação de Jesus, todavia, tem
como objetivo fazer com que as profecias concernentes ao M essias-Rei davídico
e aquelas concernentes ao Filho do Homem de Daniel 7 sejam entendidas na
sua unidade mais profunda. Não se pode negar que, desse modo, Jesus entrou em
conflito com o ideal nacionalista messiânico. Repetidas vezes, percebemos que
a pregação messiânica de Jesus era estranha ao povo e aos seus líderes e que ele
acabou entrando em conflito com eles. E nesse sentido que teremos de entender
as advertências de Jesus contra os falsos rumores messiânicos: “Eis que ele está
no deserto”; “Ei-lo no interior da casa” (Mt 24.26; cf. Lc 17.23).
Em contraste com tudo isso, Jesus faz com que a vinda, a parousia do Filho
do Homem, seja como “relâmpago fuzilando, brilha de uma a outra extremidade
do céu”, ou seja, revelando a sua glória divina, de maneira indubitável, a todos que
o verão.28 Aqui, também, temos a ligação da expectativa do Messias com a grande
manifestação escatológica da sua glória. M as é do M essias-Rei prometido por
Deus a Israel que Jesus fala aqui. Pois a relação especial é sempre mantida entre
Israel e essa figura do futuro, que tem sido delineada dessa forma. Isso aparece
muito claramente em Mateus 19.28, onde Jesus promete aos seus discípulos que,
na palingênese, quando o Filho do Homem se assentar no trono da sua glória, eles,
48 A v in d a d o R e in o

também, se assentarão em tronos para julgar as doze tribos de Israel (cf. Lc 22.30).
Aqui, as referências à palingênese (a regeneração de todas as coisas) e ao Filho
do Homem no seu trono, indicam o caráter universal e sobre-humano da realeza
messiânica, enquanto que, no “julgamento das doze tribos de Israel”, a ligação
com Israel foi mantida.29 Isso deixa claro que, na pregação de Jesus, as chamadas
expectativas “profética” e “apocalíptica” a respeito do Messias ocorrem juntas. O
Filho do Homem não é nenhum outro que o Messias, o filho de Davi.30 Mas,
mutatis mutandis, o filho de Davi é o Filho do Homem, aquele que foi investido
de autoridade divina e universal. E a relação entre Israel e o Messias deve ser
julgada e compreendida a essa luz.
Portanto, podemos concluir que a pregação de Jesus sobre o reino dos céus é,
ao mesmo tempo, a pregação sobre o Messias. E também que essa messianidade
é especificamente determinada pela expressão “o Filho do Homem”, de acordo
com Daniel 7. E a essa luz que devemos compreender o caráter geral do reino
dos céus pregado por Jesus.

7. Futuro

O que foi dito na seção anterior sobre o caráter messiânico do reino dos céus
pregado por Jesus revela claramente a tendência escatológica da sua pregação. Ê
verdade que esse termo está, terminologicamente falando, longe de ser irrepreen­
sível, pois ele procede da dogmática, e, nesse sentido (isto é, como escato-Zogztf),
não é aplicável à pregação não dogmática e não sistemática de Jesus. Entretanto,
a palavra “escatológica” tornou-se, numa certa medida, usual como uma qualifi­
cação do conteúdo da pregação de Jesus. Ela pode ser usada na medida em que
expressar que a vinda do reino pregado por ele era, em seu cumprimento, nada
menos do que o início do grande eschaton da História. Nesse sentido, não pode
haver qualquer dúvida de que o anúncio que Jesus fez do futuro não seguia o
fluxo das expectativas nacionalistas judaicas, encontradas, por exemplo, nos Salmos
de Salomão. Esse anúncio, pelo contrário, deve ser visto como a continuação da
predição transcendente e apocalíptica do futuro contida nas profecias do Antigo
Testamento e nas expectativas que se basearam nessas profecias.
Nada mais precisamos acrescentar, em termos de argumento, ao que já foi
dito acerca do sentido da “ira vindoura” e do aparecimento “daquele que estava
para vir”, para mostrar que Jesus, nesse sentido, podia começar a sua pregação a
partir da pregação do seu predecessor, João Batista. Na própria pregação de Jesus,
a descrição desse futuro é elaborada a partir de muitos pontos de vista. Ela não
se restringe somente ao julgamento final, como acontece na pregação de João,
conforme a temos registrada, nem se restringe \parousia do Filho do Homem.
O CARÁTER GERAL DO REINO DOS CÉUS - JOÃO BATISTA E J e SUS 49

Jesus descreve, de várias maneiras, o que acontecerá como conseqüência do início


do próprio reino. E nesse sentido, por exemplo, que o tempo futuro dos verbos das
bem-aventuranças deve ser compreendido (M t 5.3ss.). Nas bem-aventuranças,
Jesus descreve a bênção do reino dos céus como a herança da [nova31] terra, cheia
da justiça divina,32 como o ver a Deus,33 como a manifestação dos filhos de Deus.
Cada uma dessas expressões aponta para algo além da ordem do mundo presente,
para o estado de bênção e perfeição que será revelado no mundo futuro.34 Esse
caráter escatológico (referente ao fim do tempo) do reino de Deus pregado por
Jesus é uma das principais pressuposições da totalidade do seu kerygma e as re­
ferências a ele são como um fio de ouro entretecido com a textura completa do
evangelho. E nesse sentido que devemos conceber o estado de perfeição moral
pelo qual Jesus ensinou seus discípulos a orar e que agora se encontra somente
no céu (M t 6.10). Jesus se refere a esse futuro glorioso em lugares como M a­
teus 7.21, quando fala da entrada no reino dos céus; ele fala do assentar-se com
Abraão, Isaque e Jacó no reino dos céus (M t 8.11, cf. Lc 13.28-29); do justo que
brilha como o sol no reino do seu Pai (M t 13.43); da vinda do Filho do Homem
no seu reino (M t 16.28); da vinda do reino com poder (Mc 9.1); do assentar-se
à sua direita no seu reino (M t 20.21, cf. M c 10.37); daqueles que, à sua direita,
herdarão o reino no dia do julgamento (Mt 25.34); do vinho novo que o Cristo
beberá no reino de seu Pai (M t 26.29, cf. M c 14.25, Lc 22.18). É difícil negar que
essas passagens, e muitas outras, falam de uma outra realidade - uma realidade
“escatológica”. Isso é confirmado pelos pronunciamentos nos quais Jesus fala
sobre a realidade futura como sendo “a consumação do século” (sunteleia tou
aioonos) (M t 13.49), “regeneração” (palingenesia) (M t 19.28), “vida eterna” (zooe
aioonos) (Mt 19.29). Com respeito a esta última, ele diz que será dada “no mundo
vindouro” {em tooi aiooni tooi erchomenooi). O mesmo contraste entre este mundo
e o mundo futuro é pretendido quando Jesus fala dos “filhos deste mundo” {oi
huioi tou aioonos toutou) e “os filhos da ressurreição” {tes anastaseoos huioi) (Lc
20.36), porque a entrada no reino e o compartilhar da salvação do grandioso
futuro são precedidos pela ressurreição. Declarações desse tipo estão espalhadas
pelos Evangelhos. Elas mostram que a visão escatológica do futuro não forma
um mero cenário ou limite da pregação de Jesus. Não se pode mais restringi-la
exclusivamente aos chamados apocalipses sinóticos (M t 24.4-36; M c 13.5-37;
Lc 21.8-36). Em vez disso, ela é um elemento essencial da sua pregação do reino
do céu. Nesse sentido, não pode haver dúvida de que a interpretação escatológica
do evangelho se justifica, na medida em que se opõe ao pensamento imanente
da teologia ética e liberal. Ela defende enfaticamente o caráter transcendente e
futuro do reino dos céus pregado por Jesus.
Entendido dessa maneira, o reino pregado por Jesus tem o caráter de uma
consumação, apesar de muitas tentativas terem sido feitas para relegar essa
50 A v in d a d o R e in o

característica a um plano secundário, tanto quanto possível, para, desse modo,


esvaziá-la de seu poder.
A teologia liberal mais antiga, como vimos, usa o esquema forma-con-
teúdo com esse objetivo. As declarações escatológicas de Jesus, supostamente,
estabeleciam somente o esquema formal da verdadeira essência da sua pregação:
o reino dos céus como uma entidade eticorreligiosa. Isso ocorreu, sem dúvida,
em parte, como uma reação aos exageros da interpretação escatológica. Dodd
recentemente modificou a perspectiva liberal, orientando-a no sentido de uma
escatologia realizada, como tem sido chamada. Nessa perspectiva, supõe-se que
Jesus nunca falou do futuro do reino e que transformou toda a escatologia do
reino de Deus numa questão de experiências espirituais presentes.35
Obviamente, Dodd não pode negar que, de acordo com os Evangelhos,
Jesus falou acerca do futuro. Ele considera tais pronunciamentos, em parte,
como predições de acontecimentos históricos que ainda estavam por vir, como,
por exemplo, a paixão e a morte de Jesus, a perseguição de seus discípulos,
os sofrimentos e a queda da nação judaica. Enquanto essas predições forem
realmente atribuídas a Jesus (e não à igreja posterior, como predições depois
do acontecimento, isto é, vaticinia ex-eventu), de acordo com Dodd elas não se
constituem em prova alguma contra a tese básica de que Jesus somente pregou
a presença do reino. Elas apenas provam que o irromper da salvação só poderia
acontecer mediante uma crise, na qual Jesus teria de sacrificar a sua própria
vida e o povo judeu teria de ser submetido à punição. Tudo isso, todavia, tem
o seu lugar “dentro” do reino realizado e não pressupõe de maneira alguma um
reino futuro.36 Nessas profecias não há “escatologia de salvação” no sentido de
revelações posteriores do reino de Deus na terra. Ao lado delas também encon­
tramos a expectativa de um futuro apocalíptico, extra-histórico, no evangelho,
de acordo com Dodd. M as esse futuro supostamente não tem relação com o
reino vindouro, mas somente com “o dia do Filho do Homem”, como um acon­
tecimento apocalíptico futuro. Dodd também acha que apenas uma pequena
parte dessas profecias pode ser atribuída à pregação de Jesus. A maioria delas
é derivada de outras fontes. No entanto, Jesus aparentemente falou algumas
vezes de tais acontecimentos apocalípticos. Esses pronunciamentos são difíceis
de serem ligados a referências históricas. Aparentemente, há duas tendências na
pregação de Jesus que desafiam qualquer harmonização: a tendência ética, que
não leva em consideração o fim, e a tendência apocalíptica-escatológica. Esta
última terá de ser explicada como declarações simbólicas para que se harmonize
com o restante. A ordem eterna do reino chegou, o reino futuro não deve mais
ser esperado, mas o seu sentido é tão absoluto que a experiência temporal não
pode exauri-lo. Essa ideia é expressa de maneira “simbólica” por meio dos pro­
nunciamentos escatológicos.37
O CARÁTER GERAL DO REINO DOS CÉUS - JOÃO BATISTA E JE SU S 51

O que foi dito acima mostra que, apesar das restrições que Dodd faz às
declarações escatológico-futuras de Jesus, suas adaptações críticas do evangelho
não podem refutar que tais pronunciamentos têm um papel mais ou menos impor­
tante na pregação de Jesus. E, em nossa opinião, essa circunstância invalida toda
a elaboração de Dodd de que Jesus falou somente de uma escatologia realizada
do reino do céu. Pois é impossível separar as passagens concernentes ao “Dia
do Senhor” e ao “futuro do Filho do Homem” daquelas concernentes ao “reino
dos céus”. Mesmo que alguém estivesse disposto a concordar com as operações
hipercríticas que Dodd aplica ao evangelho, permanece inaceitável a separação
entre o que ele reconhece como pronunciamentos apocalípticos de Jesus e o que
reconhece como sendo acerca da vinda do reino?* Pois não pode haver qualquer
dúvida de que todos os acontecimentos apocalípticos futuros mencionados no
evangelho só podem ser concebidos como circunstâncias acompanhantes dentro
da estrutura maior do advento do reino.
Porém, à parte dessa objeção intransponível, a tese principal de Dodd de que
o evangelho não fala do futuro do reino, mas somente da sua presença, é insus­
tentável. Para que isso seja demonstrado, é importante analisar cuidadosamente
os pronunciamentos que mencionam explicitamente o aspecto futuro.
Primeiramente, devemos mencionar a pregação inicial tanto da parte de João
Batista quando de Jesus, que já mencionamos várias vezes: “o reino de Deus está
próximo” ( eggiken). Dodd tem defendido habilmente a tese de que a expressão
“está próximo” deveria ser traduzida como “chegou”. Ele traduz eggiken, em
Marcos 1.15 e Mateus 4.17, da mesma maneira que ephtasen, em Mateus 12.28
e Lucas 11.20. Ele recorre à Septuaginta, que, algumas vezes, traz eggiken como
a tradução do hebraico naga e do aramaico meta, os quais significam “alcançar”,
“chegar”. Esses dois verbos, entretanto, também são traduzidos na Septuaginta
pela palavra phthanein. Daí segue-se a conclusão de que não existe diferença no
sentido pretendido entre ephthasen (“chegou”), em Mateus 12.28, e eggiken, em
Marcos 1.15 e Mateus 4.17.39Uma investigação mais profunda provou, entretanto,
que eggizein, no uso da Septuaginta, quase sempre significa “aproximar-se”, e não
“vir”, e pode ter o sentido mais amplo de “chegar” somente de vez em quando,
enquanto no grego secular não temos qualquer exemplo desse uso. Além disso,
seria ainda muito estranho para o mesmo evangelista primeiro usar um verbo, e,
depois, outro, para um conceito tão central e colocar a palavra incomum eggiken
em destaque. Finalmente, devemos presumir que, já na proclamação inicial (cf.
M t 3.2), João Batista havia falado da presença do reino, o que, entretanto, está em
conflito com o pleno propósito da sua proclamação tanto quanto da concepção que
João tinha do reino.40 E por isso que Mateus 4.17 deveria ser indubitavelmente
traduzido da mesma maneira que Mateus 3.2, como “está próximo”. Em alguns
lugares, então, a vinda do reino significa um acontecimento futuro.
52 A v in d a d o R e in o

O futuro do reino também é mencionado de maneira não menos clara na


passagem bem conhecida de Marcos 9.1, em que Jesus disse: “Em verdade vos
afirmo que, dos que aqui se encontram, alguns há que, de maneira nenhuma,
passarão pela morte até que vejam ter chegado com poder o reino de Deus”. A
passagem paralela em Lucas (9.27) simplesmente diz “até que vejam o reino de
Deus”, enquanto Mateus diz “até que vejam vir o Filho do Homem no seu reino”
(isto é, majestade real) (16.28). Apesar de Marcos 9 fornecer algumas dificuldades
com referência à indicação do tempo, não se pode negar que se refere ao reino
que ainda está sendo esperado, como transparece da expressão en dunamei e das
passagens paralelas em Mateus. O reino é mencionado como uma realidade futura.
Com o objetivo de fugir dessa conclusão, Dodd traduz “até que eles vejam que
o reino de Deus veio com poder” e explica esse “vejam” como “despertar para o
fato” de que o reino de Deus chegou. Não se discute, entretanto, que idein, nessa
passagem, não indica algo que já veio, mas, ao contrário, a consciência de algo
que ainda está para vir, como transparece claramente da versão de Mateus, que
usa o particípio presente (erchomenon) ,41
Essa não é uma passagem isolada. Em outros lugares, também, o reino dos
céus é mencionado como uma realidade inteiramente futura. Mencionamos apenas,
por exemplo, Mateus 8.11: “Digo-vos que muitos virão do Oriente e do Ocidente
e tomarão lugares à mesa com Abraão, Isaque e Jacó no reino dos céus”. O mesmo
se aplica a Mateus 26.29 (cf. M c 14.25; Lc 22.18). Jesus declara: “Jamais beberei
do fruto da videira, até àquele dia em que o hei beber, novo, no reino de Deus”, ou,
na versão levemente diferente de Lucas: “até que venha o reino de Deus”. Dodd
acha que essas passagens (exceto a versão de Lucas que ele chama de secundária)
não são uma resposta para a pergunta sobre se Jesus esperava ou não esperava
uma “chegada” posterior ou próxima do reino independentemente do que já havia
acontecido durante o seu próprio ministério. Não se deve supor que as passagens
mencionadas sejam referências a uma “vinda” futura do reino neste mundo, mas, ao
contrário, a uma ordem de coisas transcendentes fora do espaço e do tempo.42
Entretanto, é essa ordem transcendente em Lucas 22.18 —quer seja uma
fonte secundária ou não, isso não tem importância; a interpretação do evangelista,
em qualquer caso, é mais autêntica do que a da ciência moderna - que tem sido
indicada como a vinda do reino. Essa ordem também não pode significar um
estado celestial eternamente presente, mas exatamente a erupção antecipada do
reino de Deus sobre a terra. E, sem dúvida, correto dizer que essa ordem não
tem um caráter temporal-terreno, mas é a ordem do novo céu e da nova terra.
Contudo, essa manifestação vindoura do reino não pode ser eliminada da prega­
ção de Jesus com base nos “pronunciamentos presente” que ele fez. Ao contrário,
tal manifestação futura é a principal pressuposição e a perspectiva constante de
toda a sua pregação.
O CARÁTER GERAL DO REINO DOS CÉUS - JOÃO BATISTA E JESU S 53

Não pode haver dúvida de que, na pregação de Jesus, a grandiosa perspectiva


futura foi mantida. Assim, todo o conceito de que o reino dos céus é um bem
exclusivamente eticorreligioso, uma comunidade espiritual ou uma ordem social
dentro dos limites deste mundo, está em conflito direto com o evangelho. A isso
devemos acrescentar que essa expectativa do futuro tem um caráter universal
e realista e que não é de modo algum permissível sublimar essa “escatologia
do reino de Deus”. Nesse caso, devemos nos opor especialmente àqueles que,
conquanto coloquem grande ênfase no caráter escatológico do reino de Deus
pregado por Jesus, no entanto, mediante a sua “exegese teológica”, destituem
de poder o sentido evidente dos pronunciamentos de Jesus com respeito ao
futuro. Isso é feito pelas interpretações já mencionadas acima,43 que sustentam
que a proximidade ou o futuro do reino não devem ser concebidos no sentido
linear-temporal, mas como expressões do fato de que a existência humana está
relacionada à realidade de Deus momento a momento. Não é raro que essas
perspectivas falem do caráter “mitológico” das concepções do Novo Testamento,
que, para eles, são supostamente derivadas dos apocalipses judaicos posteriores.
No que se refere ao grande cataclismo cósmico, o colapso do mundo, o conflito
entre Deus e Satanás, atribuem sua existência à influência da religião dualista
persa. Mas, para o homem moderno, ela só tem valor como formas de expressão
de certos pensamentos religiosos.
De modo semelhante, os fundadores do movimento escatológico, Weiss e
Schweitzer, tentaram ligar o caráter escatológico do evangelho com a sua pers­
pectiva moderna do mundo. Em tempos recentes, Bultmann, em especial, exigiu
a Entmythologisierung (demitologização) do Novo Testamento.44 Bultmann fala
da pregação escatológica de Jesus como se fosse a existência humana colocada na
crise da decisão (Entscheidung). Dibelius formulou essa pregação como a “atuali­
zação” e a “elevação ao que é incondicional” transmitido às palavras de Jesus sob
o impacto de sua expectativa escatológica. Otto menciona a ideia de “santidade”
como o poder motivador secreto na formação das concepções escatológicas.
Em oposição a isso, devemos ressaltar dois pontos. Em primeiro lugar, deve
ser reconhecida a perspectiva repetidamente mencionada em tempos recentes de
que a concepção de tempo não pode ser eliminada da pregação escatológica do reino
dos céus sem prejudicá-la.45A vinda do reino é a consumação da História, não no
sentido do fim de um desenvolvimento natural, mas no sentido do cumprimento
do tempo designado por Deus (Mc 1.15) e no sentido do que “deve” acontecer
antes dele. Essa última fórmula é característica da pregação escatológica (cf. Ap
1.1) e também da pregação de Jesus (cf. M t 17.10; 24.6; Mc 13.10; Lc 24.44). Os
acontecimentos vindouros não são representados apenas como o destino irresistí­
vel, mas como o curso da história da salvação ordenado de acordo com o conselho
de Deus.46 Isso prova que a vinda do reino deve ser concebida não somente no
54 A v in d a d o R e in o

sentido espacial-vertical (cf. Ap 1.10), mas também no sentido temporal-horizon-


tal. E por isso que a sublimação do conceito de escatologia (isto é, a substituição
do conceito ubergeschichtlichte pelo de endgeschichtliche) é uma falsa representação
do fato central que a História foi incluída na grande obra de Deus de salvação.
Esse fato é evidente na totalidade da escatologia bíblica bem como na pregação
de Jesus. Quaisquer esforços para eliminar dos Evangelhos os pronunciamentos
de Jesus sobre o fim esperado deste mundo estão em conflito com o testemunho
inegável da tradição sinótica, pois, de várias maneiras, estas falam do futuro que
se seguirá depois da expiração do tempo. Estão em conflito também com o caráter
factual, profético-escatológico da pregação de Jesus. O futuro do reino não tem a
ver somente com a “decisão” individual do homem diante da realidade divina, mas
com a consumação da obra divina na História e com respeito à História. Ê por
isso que o sentido prático-existencial da pregação do reino vindouro é expresso
não somente pelas categorias de “conversão”, “decisão”, Entscheidung, mas também
em termos de “paciência”, “perseverança”, “vigilância” e “fidelidade”. Isso é expresso
de maneiras diferentes nas parábolas do reino que discutiremos mais adiante.47
Tudo isso se opõe não somente às concepções propostas por Bultmann, Dodd e
outros que consideram o conceito escatológico total do futuro meramente como
indicação mitológica ou simbólica do relacionamento imediato do homem com
a realidade divina, que não tem “depois” nem “antes”.48 M as, mutatis mutandis,
essas considerações também se opõem às exposições de Delling, de acordo com as
quais todas as outras perspectivas temporais foram relativizadas pela consumação
efetivada pela vinda de Cristo. Nesse contexto, Delling fala somente do “efeito
posterior” da consciência escatológica49 e da vitória50ou mesmo do cancelamento51
do tempo pela eternidade, que penetrou com Cristo no tempo. É verdade que o
tema da consumação é extremamente importante para a totalidade da pregação
de Jesus, bem como para a expectativa do futuro. M as o pleroma [plenitude] que
veio com Cristo não cancela de modo algum o caráter futuro escatológico do
reino pregado por Jesus e da salvação esperada pelos fiéis. Também, do ponto de
vista do “cumprimento em Cristo”, o reino é concebido como sendo o futuro e
os cristãos, como os herdeiros dos bens futuros. Portanto, a categoria do tempo
é mantida como sujeita e subserviente ao plano divino de salvação. O fruto do
pleroma que começou com Cristo não é a vitória sobre o tempo, mas sobre o que se
opõe à consumação da obra divina no tempo. Desse modo, Cullmann pode, com
razão, dizer: “E, portanto, característico da concepção do Novo Testamento que
o calendário continue também para a história da salvação depois de Cristo. Não
é um tempo novo que foi criado com Cristo, mas uma nova divisão do tempo ,52
Em segundo lugar, deve ser colocado que nem o caráter temporal-futuro,
nem a importância universal-cósmica podem ser admitidos como representações
míticas sem prejuízo para o cerne e a ideia do reino de Deus pregado por Jesus.
O CARÁTER GERAL DO REINO DOS CÉUS - JOÃO BATISTA E J e SUS 55

Isso não é uma questão dos traços realísticos do quadro da crise cósmica futura
encontrada nos apocalipses judaicos posteriores, pois, para começar,53 há uma
diferença marcante entre a pregação de Jesus acerca do futuro grandioso e a
pregação dos apocalipses judaicos. Estes últimos contêm um quadro fantástico e
candente do Endgeschichte e do mundo vindouro, o qual está totalmente ausente
no evangelho. Em contraste, há uma grande sobriedade e moderação na descrição
dos Evangelhos do colapso e da consumação do mundo, a vitória sobre Satanás
e a ressurreição do corpo. M as, mesmo assim, é um princípio hermenêutico bem
fundado que a descrição profética das ações do julgamento divino e da re-criação
não pode ser explicada pelo relato de uma testemunha ocular, pois essas ações
transcendem qualquer experiência e compreensão humanas.
Contudo, essa circunstância em nada diminui o fato de que a ideia do reino
dos céus implica participação de toda a vida criada na vinda do reino, ao qual
pertencem especialmente a ressurreição e a recriação no sentido mais essencial
da palavra. E isso não somente porque toda a existência humana é determinada
pela realidade que a Escritura chama de “o reino de Deus”. A pregação do reino
não é certo molde condicionado pelos tempos à doutrina bíblica da situação ou da
existência humana. Não consiste numa antropologia teológica, mas em revelação
concernente a Deus. Esse caráter teocêntrico predominante da ideia do reino de
Deus está estreitamente ligado com a importância universal da vinda do reino.
Toda a revelação de Deus no Antigo Testamento e na pregação de Jesus está
baseada no fato fundamental da criação do céu e da terra por Deus. A terra é do
Senhor. A Bíblia desconhece totalmente um dualismo original entre Deus e o
mundo (como encontramos nas religiões persas), entre espírito e matéria; assim
mesmo, porém, reconhece a queda e o abandono do mundo a um poder hostil
a Deus. E por esse motivo que a vinda do reino, como a reafirmação do direito
e da glória de Deus, também consiste na redenção e na restauração da vida, no
sentido tanto material quanto espiritual. Porque Deus é Deus, isto é, o Deus da
revelação, o Criador do céu e da terra, o Santo que se comprometeu com Israel,
com sua promessa e seu pacto, as “proporções” do reino são universais. Enquanto
o mundo não responder ao propósito de Deus e permanecer sujeito à morte, a
glória de Deus estará velada, seu nome não será santificado e a oração pela vinda
do reino não será respondida.
De modo geral, nem as profecias, nem Jesus, apresentam argumentos a
respeito dessas coisas. Eles simplesmente declararam a universalidade do reino
de Deus com uma segurança absoluta, como um “algo natural”. Sua pregação não
é baseada em especulação cosmológica, mas na revelação a respeito de Deus. E,
portanto, estreitamente ligada e, por assim dizer, dada como a ideia do reino de
Deus. Isso fica evidente pela “prova” que Jesus dá aos saduceus da ressurreição dos
mortos. Por que Deus se comprometeu com Abraão, Isaque e Jacó, há também
56 A v in d a d o R e in o

uma ressurreição dos mortos, porque “ele [Deus] não é Deus de mortos, e sim
de vivos” (M t 22. 31-32).54 Esse é o motivo pelo qual não é possível separar o
“conteúdo revelacional” do “molde” universal da pregação do reino. O caráter
teocêntrico do reino de Deus, como ensinado pela revelação divina, transmite
um conteúdo universal à ideia de reino de Deus, sem a qual seria inconcebível.
Não é primariamente o conteúdo “cosmológico”, mas o conteúdo “teológico”
do evangelho que está em jogo, especialmente na sua relação com a realidade
da criação, da queda e da História. A tentativa de “demitologizar” a escatologia
evangélica é, portanto, no fundo, uma sublimação neoidealística do evangelho.
Não somente afeta a “casca”, como também o “cerne”, porque está em conflito
flagrante e irreconciliável com os motivos mais profundos que determinam a
ideia do reino de Deus.55

8. Presente

O futuro caráter consumador do reino dos céus está, sem qualquer dúvida,
de acordo com todo o pensamento básico da pregação de Jesus, como transparece
dos seus numerosos pronunciamentos. Ao lado desses pronunciamentos, Jesus
também fala da vinda do reino como uma realidade que está sendo cumprida já
durante o tempo da sua pregação, e, assim, antes da crise do Endgeschichtelichte
e da consumação de todas as coisas. Esse fato é predominante na revelação da
salvação no Novo Testamento. Isso nos leva ao ponto no qual a pregação de Jesus
revela uma modalidade fundamentalmente diferente de tudo o que havia sido
profetizado e esperado quanto ao reino dos céus antes dele.
Essa diferença também pode ser encontrada entre a pregação de Jesus e
a pregação de João Batista. E verdade que Jesus repete as palavras de João, “o
reino de Deus estí próximo”, as quais, como já vimos, ainda não significam que
o reino esteja presente. M as há também descrições da pregação inicial de Jesus
que aparentam expressar mais do que o anúncio do que estava próximo, e, con­
sequentemente, implicam mais do que o que pode ser dito a que pregação de
João Batista continha.
Já de início podemos apontar para as palavras com as quais Marcos descreve
a proclamação inicial de Jesus: “O tempo está cumprido, e o reino de Deus está
próximo; arrependei-vos e crede no evangelho” (Mc 1.15). Especialmente as
palavras iniciais, “O tempo está cumprido”, referem-se a algo que encontrou a
sua consumação, seu estágio final, no presente. Portanto, kairos [tempo] signi­
fica o grande momento do início do grandioso futuro apontado por Deus em
seu conselho e que foi anunciado pelos profetas.56 Ao lado de “está próximo”,
já temos, portanto, o “está cumprido”. Sem dúvida alguma, as duas expressões
O CARÁTER GERAL DO REINO DOS CÉUS - JOÃO BATISTA E JE SU S 57

devem ser compreendidas em conexão uma com a outra. “Próximo”, na expres­


são “está próximo”, não tem o mesmo significado que “chegou”, “está presente”,
como se pode ver claramente no teor da pregação de João. A frase “o tempo está
cumprido” terá, portanto, de ser compreendida como a indicação de que o limiar
do grande futuro foi alcançado, que a porta foi aberta e que os pré-requisitos da
realização da obra divina de consumação estão presentes, de modo que, agora, o
drama divino conclusivo pode começar. E por isso que a proclamação inicial de
Jesus acerca da proximidade do reino parece falar de um ponto mais avançado
no tempo do que aquele de João, que ainda não havia mencionado o início do
cumprimento.
E fácil provar que essa distinção entre o momento histórico-redentor
representado por Jesus e aquele representado por João Batista é baseada numa
exegese não muito sutil de Marcos 1.15, mas que se torna cada vez mais evidente
no evangelho. Em primeiro lugar, devemos nos referir à proclamação inicial de
Jesus, de acordo com o Evangelho de Lucas, na sinagoga de Nazaré. Ali, Jesus
proclamou, pela primeira vez, a bem conhecida profecia da salvação de Isaías
61 (Lc 4.18-19) e, em seguida, disse: “Hoje se cumpriu Escritura que acabais de
ouvir”. Aqui, mais uma vez, ele usa o tempo perfeito do verbo grego, “se cum­
priu”. O objeto desse cumprimento não é o kairos [tempo], mas “as Escrituras”, e,
mais precisamente, Isaías 61, que anuncia “o ano aceitável do Senhor”. Só pode
significar aquilo que, em outro lugar, é chamado de a vinda do reino ou a era
messiânica,57 como se depreende das seguintes palavras em Isaías 61.2: “o dia
da vingança do nosso Deus”, que é o “D ia do Senhor” que precede a revelação
da salvação.
Essa passagem é extremamente importante para a compreensão da vinda
do reino de acordo com a pregação de Jesus. O que está claro é que, aqui, o
tempo do cumprimento grandioso é apresentado como tendo já definitivamente
iniciado. Isso se percebe pela ênfase sobre “hoje” e pela frase “que acabais de
ouvir” (que temos que entender como uma analogia da expressão mais comum
“diante de vossos olhos”). Com base na repetição de “está cumprido”, com a
qual Jesus inicia a sua pregação, não pode haver dúvida, em nossa opinião, de
que a salvação sintetizada na expressão “a vinda do reino” não é somente algo
que virá no futuro, mas que também encontra cumprimento no presente. Nisso
somos confrontados com uma diferença redentora-histórica fundamental entre
a proclamação de João Batista e a proclamação de Jesus. João Batista anunciou
como algo futuro o que Jesus começou a indicar como presente e como realidade
atual. Ou seja, a visão sintética de João a respeito do grandioso acontecimento do
futuro se torna diferenciada na pregação de Jesus na medida em que esse grande
acontecimento é descrito tanto como já tendo acontecido no “presente” quanto
como uma expectativa futura.
58 A v in d a d o R e in o

Em consonância com tudo isso, o caráter geral da ação e da pregação de


Jesus difere do caráter da ação e da pregação de João. Além disso, em consonância
com essa diferença estão as declarações explícitas e muito significativas feitos pelo
próprio Jesus a respeito da diferença entre ele mesmo e João, que encontramos
em mais de uma passagem dos Evangelhos.
Com relação à primeira declaração, apontamos para o fato inegável de que,
em comparação com a pregação de João, a pregação de Jesus introduziu certo
abrandamento da severidade. A pregação de Jesus não é dominada, como era a
pregação de João, pela certeza do julgamento vindouro, mas é, ao contrário, uma
proclamação de salvação.58 Essa salvação é de um significado imediato e atual e,
assim, não se torna eficaz apenas depois do julgamento e da conseqüente crise
cósmica. Esse abrandamento se encontra nos estágios iniciais do cumprimento
do “tempo” e das “Escrituras” e, assim, da vinda redentora do reino. Ele carac­
teriza não somente a pregação de Jesus como também todas as suas ações, em
contraste com as de João Batista. João é um pregador da penitência, que nega a
si mesmo qualquer luxo ou conforto e vive uma vida ascética no deserto. Jesus,
por outro lado, participa da vida diária. M ais de uma vez foi convidado para
casamentos e festas (M t 9.10; Jo 2.1ss). Em oposição a João, ele veio “comendo
e bebendo” e foi chamado “um glutão e bebedor de vinho” por seus inimigos
(M t 11.19; Lc 7.34), “amigo de publicanos e pecadores”.59 Do episódio bem
conhecido acerca do jejum (M t 9.14-17; Lc 2.18-22; Lc 5.33-39), vemos que
essa diferença é realmente característica da posição de Jesus em comparação à
de João com respeito ao reino dos céus. Os discípulos perguntaram a Jesus por
que eles não jejuavam,60 enquanto os discípulos de João (como os fariseus) o
faziam com frequência (Lc 5.33). A resposta de Jesus foi: “Podeis fazer jejuar os
convidados para o casamento, enquanto está com eles o noivo?” Essas palavras
mostram claramente que os discípulos de Jesus estavam numa posição funda­
mentalmente diferente da dos discípulos de João. De importância especial é a
razão que Jesus dá: “enquanto está com eles o noivo”. Embora Jesus empregue,
aqui, a linguagem de uma ilustração, o sentido da sua declaração é muito claro.
E a presença do próprio Jesus a causa da grande mudança. Além disso, o exemplo
foi escolhido de tal maneira que essa pessoa não é somente o anunciado, mas
ele próprio é o centro e a causa da alegria e da felicidade que tiveram início com
sua vinda. Isso também pode ser percebido pelo fato de que essa condição será
perturbada e interrompida (“Dias virão, contudo, em que lhes será tirado o noivo,
e nesses dias hão de jejuar” - M t 9.15), o que, evidentemente, se refere ao que
aconteceria com a pessoa de Jesus. Embora, dentro do escopo de todo o evangelho,
o significado messiânico desses pronunciamentos seja inegável, não se pode dizer
que o termo “noivo”, nesse contexto, seja um título explicitamente messiânico.
Nesse caso, Jesus fala de si mesmo de um modo implícito, velado, coisa que
O CARÁTER GERAL DO REINO DOS CÉUS - JOÃO BATISTA E JESU S 59

veremos acontecer repetidas vezes. Uma coisa é clara, todavia. O estilo de vida
de João Batista e dos seus discípulos é totalmente direcionado para a preparação
da vinda do reino, especialmente para a vinda do julgamento (jejum e orações),
enquanto os discípulos de Jesus podiam viver na certeza alegre da erupção do
grandioso tempo da salvação e podiam se comportar de acordo com isso , porque
pertenciam a ele.bl Se aderissem à pregação de João, seriam como as pessoas “que
põe remendo de pano novo em veste velha... vinho novo em odres velhos”. Apesar
de Jesus não ter desaprovado as ações de João, é claro que, nesse momento, algo
“novo” havia aparecido, algo que não estava em harmonia com as “velhas” formas
de vida. Também essas concepções representam os dois estágios da dispensação
da salvação separados um do outro pelo elemento do cumprimento.
Essa diferença entre os momentos redentores-históricos e, também, até
mesmo na dispensação da salvação, dos quais João e Jesus falam e agem, é mais
explícita e distintamente indicada na conhecida passagem de Mateus 11.7-19
e Lucas 17.24-35. O ponto de partida é a pergunta de João feita a Jesus por
intermédio de alguns dos seus discípulos: “És tu aquele que estava para vir, ou
havemos esperar outro?”. Nesse caso, também, o critério do momento históri-
co-redentor é o significado da pessoa de Jesus.62 No seu anúncio do reino, João
tinha falado daquele “que vem depois de mim” e tinha esperado que ele fosse
o inaugurador do reino. Agora, ele aplica o título “aquele que estava para vir” a
Jesus sob a forma de uma pergunta.63 A pergunta de João fornece evidência de
incerteza e confusão, como também se pode ver na resposta de Jesus. Sem dúvida,
João, no início, tinha considerado Jesus como “aquele que estava para vir” (cf. M t
3.13-17), mas a maneira da manifestação de Jesus não correspondeu à própria
concepção de João e à sua pregação.
A resposta de Jesus a João não trata diretamente do significado da sua pró­
pria pessoa, mas claramente reivindica o caráter consumador da sua atividade,
e, portanto, da vinda do reino, pois Jesus aponta aos mensageiros de João seus
próprios milagres e a pregação do evangelho aos pobres. A maneira em que Jesus
fala dessas coisas claramente nos lembra da sua proclamação inicial na sinagoga
de Nazaré (acima citada). Jesus também se refere às profecias acerca do tempo
grandioso da salvação, que encontram seu cumprimento nesses milagres e na sua
pregação e lançam luz no sentido e na importância das suas atividades (cf. Is 35.5;
29.18; 61.1). Apesar de Jesus não dar uma resposta direta à pergunta de João e
de evitar fazer uma declaração pública da sua messianidade, o objetivo das suas
palavras não pode ser outro senão apontar para o cumprimento das profecias, e,
assim, da presença do reino de Deus. É verdade que ele claramente mostra que
nada disso pode ser estabelecido de maneira experimental: “E bem-aventurado
aquele que não achar em mim motivo de tropeço”, isto é, que não encontrar uma
razão para incredulidade na maneira pela qual eu estou agindo e no modo pelo
60 A v in d a d o R e in o

qual o reino de Deus está se revelando. Ainda assim, a conexão no grego entre
“bem-aventurado” e “em mim” também implica que a vinda presente de Jesus e
suas ações já continham o segredo da revelação do reino dos céus.
Muito característico do que estamos discutindo aqui, e também muito im­
portante, é a seqüência dessa passagem, também em Mateus e Lucas (bem como
nas palavras a respeito de João Batista, as quais ocorrem num outro contexto;
veja Lc 16.16). A razão é que Jesus, nesse momento, vai mais fundo quanto ao
significado de João para a história da revelação. Embora as pessoas o tivessem
em pouca conta (cf. M t 11. 7-8; Lc 7. 24-25,33), João era um profeta; na ver­
dade, mais do que um profeta. Ele também pertencia ao objeto das profecias
concernentes à salvação vindoura e tinha um lugar na realização da promessa
do grande futuro, ou seja, aquele que preparava o caminho do rei (cf. M l 3.1;
M t 11.10; Lc 7.27): “Este é de quem está escrito: Eis aí eu envio diante da tua
face o meu mensageiro, o qual preparará o teu caminho diante de ti”. Então,
seguem-se as palavras tão discutidas: “Em verdade vos digo: entre os nascidos de
mulher, ninguém apareceu maior64 do que João Batista” (M t 11.11); (de acordo
com Lc 7.28: “entre os nascidos de mulher, ninguém é maior do que João”); mas
o menor no reino de Deus é maior do que ele”.
Para que as duas partes dessa passagem sejam compreendidas em sua mútua
conexão,65 a primeira deve ser entendida como a indicação do lugar e da impor­
tância de João no período anterior à vinda de Jesus, a dispensação das profecias.
Nesse período, João é o maior de todos, como o profeta enviado por Deus e como
o pioneiro escatológico do Senhor anunciado pelas profecias.66 Contudo, seu signi­
ficado permanece restrito ao tempo da expectativa; no cumprimento da promessa,
na vinda do reino dos céus, ele não desempenha papel algum. E por isso que o
menor no reino (oficiais, servos e obreiros de Deus) é maior do que ele. Existe
uma longa lista de opiniões quanto ao sentido dessa declaração de Jesus. Na minha
opinião,67 a melhor de todas é aquela que considera João como o precursor do rei
e, consequentemente, ainda pertencendo ao tempo anterior ao reino dos céus, ou
seja, antes do tempo do cumprimento que começou com a vinda de Jesus e com
sua obra. Devemos ter em mente o lugar de João na história da revelação, lugar
este que deve ser encontrado na dispensação da promessa e da expectativa. Em
oposição a isso está “o menor no reino de Deus”, isto é, qualquer pessoa que viva e
trabalhe conscientemente na luz da dispensação do cumprimento. Ele é “maior” do
que João somente no sentido68 de que João não se elevou ao nível do presente e do
cumprimento da salvação. Nesse caso, a questão não é se João participará ou não
na bênção do reino, mas a compreensão e a proclamação do que está acontecendo
nesse momento. Aí, o reino é referido como uma entidade presente.69
Tudo isso é corroborado pelo que se segue em Mateus 11.12: “Desde os
dias de João Batista até agora, o reino dos céus está irrompendo em seu caminho
O CARÁTER GERAL DO REINO DOS CÉUS - JOÃO BATISTA E JE SU S 61

com vigor, e os violentos (aqueles que usam todas as suas forças) se apoderam
dele como de um despojo” (tradução do autor). Não há certeza quanto ao modo
correto de traduzir essa passagem,70 mas não pode ser negado que o reino dos
céus está aqui representado como uma entidade presente. De acordo com nossa
tradução, ele está irrompendo em seu caminho, está se afirmando pela força,
usando violência neste mundo. Isso tem acontecido (o processo está em curso)
“desde os dias de João Batista”. Temos que compreender a palavra “desde” num
sentido exclusivo, e não num sentido inclusivo. João está no limiar, ele lidera a
transição da antiga para a nova dispensação; ele próprio ainda pertence ao antigo
período. Com Jesus, a nova era chegou, a era do reino dos céus, irrompendo com
força no mundo. Inversamente, é também uma questão de “apropriar-se”, “apo­
derar-se” do reino “como um despojo”. Isso significa se esforçar pela redenção
oferecida pelo reino sem se deter por coisa alguma, usando todos os esforços e
sacrificando tudo por amor do reino71. A frase: “os violentos se apoderam dele
como de um despojo” é formada pela analogia de “irromper em seu caminho com
força”. Uma corresponde à outra.
Finalmente, o mesmo pensamento é encontrado também na passagem
paralela de Lucas 16.16: “A Lei e os Profetas vigoraram até João; desde esse
tempo, vem sendo anunciado o evangelho do reino de Deus, e todo homem se
esforça por entrar nele”. Aqui, também, João é indicado como o heilsgeschichtliche
Grenzscheide72 (a linha demarcatória na história da salvação; cf. A t 10.37). Desde
a sua missão, a nova dispensação do evangelho e do reino de Deus começou e,
de todas as partes, as pessoas correm para entrar nele. Isso requer muito esforço
e determinação, mas é dessa maneira que elas entram. Isso tem sido possível
“desde esse tempo”, isto é, depois que João veio e fez a sua obra. O que ainda era
uma questão futura na pregação de João, embora estivesse próxima, tornou-se
realidade com a vinda de Jesus. Nele, o futuro das profecias passou para o cum­
primento presente.
Em resumo, concluímos que, mesmo que algumas das afirmações acima
estejam sujeitas a mais de uma explicação, já podemos afirmar que Jesus falou
da vinda do reino como uma realidade presente. Isso não significa - e este é um
fato estabelecido - que não há espaço para o futuro do reino, ou que é necessário
distinguir entre dois tipos de reino, um do presente e outro do futuro. Significa
que o grandioso reino do futuro se tornou presente. Seu caráter fundamental­
mente escatológico foi mantido. É o grande reino, é a vinda de Deus ao mundo
para redenção e julgamento. O futuro, por assim dizer, penetra no presente. O
mundo da redenção de Deus, a grande totalidade das suas obras conclusivas e
consumadoras, irrompeu no presente tempo do mundo. Isso representa um fato
inteiramente novo, que era, em muitos aspectos, incompreensível e inaceitável
para os contemporâneos de Jesus, aquilo que Jesus haveria de chamar “o mistério
62 A v in d a d o R e in o

do reino”.73 O reino começará antes do tempo do grande julgamento, o tempo já


está cumprido antes da chegada do “fim do mundo”. Nossas investigações poste­
riores se concentrarão no modo como esse “cumprimento” deve ser considerado
em conexão com a consumação final e qual é o significado e o conteúdo desse
cumprimento sem uma consumação. Nessas coisas, somos confrontados com a
parte mais específica e característica da pregação de Jesus sobre a vinda do reino.
Por agora, devemos nos abster de outras qualificações com respeito a esse aspecto
duplo, isto é, do presente e do futuro, inerentes ao anúncio de Jesus sobre a vinda
do reino. Continuaremos a manter a terminologia do evangelho, a qual, por um
lado, fala do cumprimento do tempo e do cumprimento das Escrituras como uma
nova dispensação da salvação que começou com a vinda de Jesus Cristo e com a
sua obra. Por outro lado, Jesus prega a vinda do reino como uma futura revelação,
a qual o evangelho indica como a consumação de todas as coisas. Podemos também
usar outros termos derivados da linguagem dos Evangelhos, mas esses dois, cum­
primento e consumação, têm a vantagem de qualificar a presença da vinda de Jesus
e de sua obra como o início da grande era da salvação, e, além disso, mantêm a
esperança do significado definitivo e final do reino como algo do futuro.
III
O R EIN O C H EG O U

1. O CUMPRIMENTO

9. O Maligno vencido

A resposta para a pergunta: “Em que consiste a grande mudança acontecida


com a chegada do reino, que foi iniciado pela atividade de Jesus?” encontra-se de
modo fundamental e inequívoco na declaração feita em Mateus 12.28 e Lucas
11.20. Nessas passagens, Jesus fala muito enfaticamente da presença do reino: “Se,
porém, eu expulso os demônios pelo Espírito de Deus (Lucas traz: ‘pelo dedo de
Deus’), certamente é chegado o reino de Deus sobre vós”. E muito acertado que
as últimas palavras dessa passagem sejam traduzidas pelo perfeito “é chegado”,
apesar da crítica de alguns escritores. Isso pode ser visto, independentemente
da questão lingüística,1 por todo o contexto, especialmente pelo que se segue
em Mateus. Aqui, Jesus responde à calúnia dos fariseus que haviam dito que
ele expulsava os demônios pelo poder de Belzebu, o maioral dos demônios. Ele
mostra o absurdo da acusação, comparando o poder do diabo com o poder de um
reino, de uma cidade ou de uma casa, isto é, com uma unidade organicamente
coerente. Se um demônio expulsar outro, o reino dos demônios não permane­
cerá, mas cairá dividido. M as isso não acontece. Esse é o motivo pelo qual só
existe uma explicação para o poder de Jesus sobre os demônios, que é oriundo
do Espírito (ou do “dedo de Deus”). Por esse poder, Jesus era capaz de expulsar
os demônios. O oposto de Satanás e do seu reino é Deus e o domínio que está
à sua disposição, isto é, o reino de Deus. O poder desse reino e, portanto,2 a sua
presença é a explicação para o domínio de Jesus sobre os demônios. Tudo isso é,
mais tarde, confirmado em Mateus 12.29 (cf. M c 3.27) pelo que é dito acerca do
homem forte,3 cuja casa só pode ser tomada depois que ele próprio for amarrado.
64 A v in d a d o R e in o

Do mesmo modo, a expulsão dos demônios prova a vitória de Jesus4sobre o diabo


e, assim, o irromper do reino dos céus.
Desse modo, o movimento escatológico exclusivo dificilmente pode negar
que os Evangelhos falam da presença do reino. Johannes Weiss explica essa
passagem dizendo que Jesus havia falado numa espécie de êxtase profético. Que
ele ficava ocasionalmente nessa condição estática e, nessas ocasiões, via sinais de
que o reino já havia chegado. Consequentemente, nessa passagem, ele falou do
reino somente num sentido proléptico.5 M as essa interpretação está em conflito
com a realidade da expulsão dos demônios.6
Essa não é uma passagem isolada. Toda a luta de Jesus contra os demô­
nios é determinada pela antítese entre o reino dos céus e o domínio de Satanás.
Repetidas vezes, o poder superior de Jesus sobre Satanás e sobre o domínio de
Satanás prova a entrada do reino de Deus no presente.
Isso já havia sido demonstrado, no início, pela tentação no deserto. Não
pode haver dúvida de que era a realeza messiânica de Jesus que estava em jogo.
Por três vezes consecutivas, essa realeza é o ponto de partida de Satanás, re­
trocedendo às palavras divinas sobre Jesus no seu batismo (M t 3.17; M c 1.11;
Lc 3.22; M t 4.3,6; Lc 4.3,9), Em especial, a tentação com respeito a “todos os
reinos do mundo” (M t 4.8ss; Lc 4.5ss) mostra o que estava em jogo no conflito
entre Jesus e Satanás. Aqui, Satanás aparece como “o príncipe deste mundo” (cf.
Jo 12.31; 14.30; 16.11), que se opunha ao reino de Deus e que sabe que Jesus
disputará esse poder com ele no nome de Deus. Nesse caso, então, junto com
a messianidade, o reino de Deus está em jogo. Ao mesmo tempo, parece que a
vitória sobre Satanás a ser obtida pelo reino de Deus não é somente uma questão
de poder, mas, primeiro e acima de tudo, trata-se de uma questão de obediência
da parte do M essias.7 O Messias não deveria fazer uso arbitrário da autoridade
que lhe fora confiada. Ele tem de obter o poder que Satanás oferece somente da
maneira determinada por Deus. E por esse motivo que a vitória de Jesus começa
com a rejeição da tentação. Isso também marca a chegada do reino, embora essa
vitória tenha que ser renovada, repetidas vezes, durante sua vida na terra (cf.
Lc 4.13; M t 16.23 e paral.; 26.38 e paral.; 27.40-43 e paral.).
Desde o início da atividade pública de Jesus, seu poder sobre Satanás já
havia se firmado. Isso é provado não só pela expulsão dos demônios em si, mas
também pela maneira pela qual os endemoninhados se comportavam em sua presença
(cf. M c 1.24; Lc 4.34; M c 5.7; M t 8.29; Lc 8.28,31). Quando Jesus se apro­
xima, eles levantam um clamor, obviamente de medo. Eles mostram que têm
um conhecimento sobrenatural8 da sua pessoa e do significado da sua vinda (cf.
M c 1.34; 3.11). Eles o chamam de “o santo de Deus”, “o filho de Deus”, “Filho
do Altíssimo”. Com isso, eles reconhecem a sua dignidade messiânica (cf.
Lc 4.41). Eles consideram a vinda de Jesus como a destruição deles (Mc 1.24;
O REINO CHEGOU - CUMPRIMENTO 65

Lc 4.34) e seu tormento (M t 8.29; M c 5.7; Lc 8.28). Eles se sentem impotentes


e tentam apenas prolongar sua existência na terra (Mt 8.29; M c 5.10) e imploram
a Jesus que não os mande para “o abismo”, isto é, o lugar da sua perdição eterna
(Lc 8.31, cf. Ap 20.3ss).9 Tudo isso mostra que, na pessoa de Jesus, a vinda do
reino se tornou uma realidade presente, pois a base do exercício do poder de Deus
sobre o diabo e o seu governo é a vinda do reino.
Finalmente, devemos nos referir, nesse contexto, a Lucas 10.18-19. Jesus
havia enviado os setenta (ou 72) que retornaram para ele com júbilo, relatando o
sucesso de sua missão. E, então, Jesus declara: “Eu via Satanás caindo do céu como
um relâmpago. Eis aí vos dei autoridade para pisardes serpentes e escorpiões e
sobre todo o poder do inimigo, e nada absolutamente vos causará dano”. Assim,
ele aceita o regozijo daqueles que havia enviado e mostra-lhes o fundamento do
seu poder sobre os demônios.10 O sentido geral disso é claro: o próprio Satanás
havia caído com grande força de sua posição de poder.11 Isso é o que Jesus viu
com seus próprios olhos. Por isso os ajudantes de Satanás não podem manter-se
de pé. Não é fácil determinar se Jesus tinha um acontecimento particular em
mente com a frase “eu via”. Se ele tinha, qual era? Alguns autores sugerem que
Jesus estava se referindo à tentação no deserto.12 Outros acham que Jesus se refere
a alguma experiência13 que havia tido durante o tempo em que seus mensageiros
estavam ocupados executando a sua missão.14Alguns escritores pensam que Jesus
se refere à queda de Satanás no futuro, que ele viu com os olhos do espírito; essa
queda se deve à destruição do poder de Satanás pela obra de Jesus na terra, e,
especialmente, por sua morte na cruz.15 È difícil determinar. Na nossa opinião, a
explicação mais óbvia deve ser procurada na simpatia que Jesus demonstrou por
seus discípulos durante a missão deles. Portanto, as palavras “eu via” expressam
a certeza de Jesus quanto à vitória sobre Satanás, vitória que ele conquistou du­
rante a ausência dos seus discípulos. Para o nosso argumento, todavia, a decisão
acerca da exegese dessa passagem é somente de importância secundária. O que
realmente conta é que o que foi dito nesse caso é essencialmente o mesmo que foi
dito em Mateus 12.28 e Lucas 11.21: o grande momento da quebra do domínio
de Satanás chegou ao mesmo tempo em que veio o reino dos céus. A redenção
não é mais um acontecimento futuro, mas tornou-se presente.
Nesse conflito, foi o próprio Jesus quem quebrou o poder de Satanás e con­
tinua a fazê-lo. Isso transparece do que se segue, quando ele expõe aos discípulos
o poder que lhes havia dado para pisar serpentes e escorpiões e sobre todo o poder
do inimigo, de tal maneira que, também no futuro, nada lhes seria impossível. O
“inimigo”, mais uma vez, é Satanás. Serpentes e escorpiões são mencionados aqui
como instrumentos dele (SI 91.13), por meio dos quais ele, traiçoeiramente,
tenta destruir o homem. Porém, todo o poder que Satanás tem à sua disposição
para trazer morte e destruição sobre a terra (cf., p. ex., Hb 2.14) foi colocado em
66 A v in d a d o R e in o

sujeição aos discípulos. Tudo isso indica e confirma que o grande momento da
salvação, o cumprimento da promessa, o reino dos céus, chegou. “O poder todo-
abrangente da Civitas Diaboli foi esmagado, a Civitas Dei irrompeu.”16

10. O poder de Jesus para realizar milagres

Associado com o que foi dito acima está o fato de que a vinda e a presença
do reino são concretizadas e evidenciadas na totalidade do poder de Jesus para
operar milagres.17 Isso não é tão claramente expresso nesse caso como o é na
expulsão de demônios, é verdade, mas está implícito no fato de que a pregação
de Jesus sobre o reino e os seus milagres são repetidamente mencionados em
conjunto (cf., p. ex., M t 4.23; 9.35). Jesus anunciou o reino com palavras e obras.
Além do mais, na resposta que Jesus deu a João Batista, há uma indicação clara de
que a vinda do reino foi manifesta nas curas miraculosas realizadas por Jesus.18 E
também, a frase “o reino dos céus é tomado por esforço”, em Mateus 11.12, não
deveria ser entendida meramente como uma referência ao poder da pregação do
evangelho, como alguns autores fazem ao se apegarem demais ao euaggelizetai de
Lucas 16.16, pois essa passagem também se refere aos milagres de Jesus. A esse
respeito, mencionamos Mateus 13.16 e Lucas 10.23: “Bem-aventurados, porém,
são os vossos olhos, porque veem; e vossos ouvidos, porque ouvem”. Esse “ver” e
“ouvir” se referem a ver os milagres e ouvir a pregação do evangelho (cf. M t 11.5).
Eles tornam o cumprimento das promessas visível e audível, a vinda da grande
era da salvação, coisas que muitos profetas e muitos justos em vão desejaram ver
e ouvir. Os milagres de Jesus revelam a vinda do reino de Deus.
A ligação concreta entre a realização do reino e os milagres de Jesus, que
pode ser encontrada em todo lugar, tem tanta importância quanto essas indica­
ções deliberadas isoladas. Os milagres de Jesus ocuparam um lugar que, em todos
os aspectos, é orgânico e “natural” na ideia da vinda do reino, enquanto torna
visível a restauração da criação e expõe assim o significado todo-abrangente e
redentor do reino.
E verdade que o sentido histórico-redentor desses milagres tem sido ques­
tionado. Eles têm sido interpretados como evidência de certo talento carismático
da parte de Jesus. Como conseqüência, esses milagres têm sido comparados
parcialmente com os milagres atribuídos aos carismáticos do mundo helenís-
tico e judaico daqueles dias.19 Um exemplo é Rudolf Otto, cujo conceito bem
conhecido diz que Jesus é descrito nos Evangelhos - de uma forma que Otto
designa de relatórios “hagiológicos” - como o “santo” típico, cujos dons caris­
máticos são característicos. Além disso, Otto caracteriza Jesus como um tipo
conhecido na história das religiões (como, p. ex., Paulo, os profetas de Israel, os
O REINO CHEGOU - CUMPRIMENTO 67

sufis maometanos, Blumhardt, e outros).20 Ele sustenta que esse tipo é claramente
mencionado no evangelho, por exemplo, quando Jesus é chamado de “o santo de
Deus”, que ele supõe ser equivalente à expressão “homem de Deus”21 do Antigo
Testamento. Otto define os dons carismáticos do tipo histórico-redentor como
misteriosos “excessos de disposições e aptidões” que têm, no mínimo, analogias
na vida psíquica em geral22 e que ele tenta elucidar com a ajuda de fenômenos e
observações psicoterapêuticos modernos.23
Foi corretamente provado em mais de um lugar que não existe espaço para
esse tipo de explicação dentro do corpo dos Evangelhos sinóticos.24 É verdade
que, aqui e ali, pode ser encontrada uma aparente e semelhança parcialmente
muito natural23 entre os aspectos fenomenais dos milagres de Jesus e aqueles que
ocorrem em todos os tipos de histórias antigas, como, por exemplo, o uso de sa­
liva nas curas (Mc 7.33; 8.2326). M as isso em nada diminui o fato de que o pano
de fundo e a explicação dos milagres do Novo Testamento possuem um caráter
exclusivo. Eles não repousam sobre algum talento personalista-carismático ou
sobre um poder miraculoso, mas na descida do reino dos céus transcendente (Lc
10.7-9). Isso pode ser deduzido do fato notável de que, em mais de uma ocasião,
Jesus delega seu poder miraculoso aos seus discípulos (M t 10.1; M c 6.12,13,30;
Lc 9.2, cf. também M c 9.28-29). Os milagres de Jesus são atos messiânicos de
salvação, têm um caráter escatológico.27
Essa relação concreta entre a vinda do reino e os milagres de Jesus é manifesta
não apenas pela expulsão dos demônios, mas também pelos outros milagres de
Jesus, pois todos eles provam que o poder de Satanás foi quebrado e que, portanto,
o reino chegou. Ao mesmo tempo, é evidente que as doenças são consideradas,
de maneira geral, como uma conseqüência do domínio de Satanás e que a luta de
Jesus contra o Maligno não ocorre somente no campo da ética, mas também no
domínio físico.28 Assim, por exemplo, em diversos casos, a possessão demoníaca
é mencionada como a causa de doenças físicas (p. ex., M t 9.32ss; 12.22ss; M c
9.25), ou a possessão é mencionada em primeiro lugar numa série de doenças
físicas (M t 4.24). Ao mesmo tempo, Satanás também é considerado como a
causa de todos os tipos de sofrimentos físicos sem qualquer menção de posses­
são demoníaca. Por exemplo, em Lucas 13.11,16, lemos sobre uma mulher que
tinha “um espírito de enfermidade... andava ela encurvada”. No versículo 16 é
dito que “Satanás trazia presa” essa mulher.29 Aparentemente, não se trata, aqui,
de possessão demoníaca.30 Satanás é mencionado, no sentido mais geral, como
a causa do sofrimento. Não apenas serpentes e escorpiões, mas também doenças
e morte pertencem ao poder (dunamis) do inimigo (Lc 10.19).
A esse respeito, não devemos omitir o uso peculiar da palavra “repreender”
por ocasião de curas físicas e outros milagres. E dito que os demônios foram
repreendidos por Jesus não somente quando ele lhes determinou que não o
68 A v in d a d o R e in o

tornassem conhecido (cf. M c 3.17ss), mas também quando ordenou que se reti­
rassem de suas vítimas (Mc 9.25). O mesmo termo é também usado em Lucas
4.39 com referência à febre da sogra de Pedro.31 Pode-se perguntar se essa palavra
foi escolhida em vista da influência demoníaca nessa doença.32A mesma pergunta
ocorre quando Jesus repreendeu o vento (Lc 8.24).33 Apesar do pressuposto de
que, nesse caso, não há uma ligação direta entre o poder do diabo e os elementos
naturais revoltosos cruzando o caminho de Jesus, a palavra “repreender” indica
a autoridade absoluta de Jesus sobre o reino natural e sobre todas as influências
destruidoras operantes nele como resultado do pecado e da maldição do mundo.
Essa é, todavia, também uma manifestação da vinda do reino de Deus. Cristo
penetra na província do príncipe deste mundo e conquista os poderes hostis
que devastam a criação.34 “Ele é outra vez o Governante, o Senhor e o Rei da
natureza.”35 Ele não somente se opõe ao poder do inimigo no reino natural, mas
também, como Filho de Deus, tem à sua disposição todas as riquezas do seu Pai,
como transparece da repetida multiplicação de pães que realizou.
A conexão entre a vinda do reino e o poder miraculoso de Jesus é mais clara­
mente visível naqueles milagres que têm sido com frequência questionados e cujo
lugar no evangelho tem sido abertamente atribuído à assim chamada “formação de
lendas” em tempos posteriores pela igreja. Refiro-me, por exemplo, à ressurreição
de mortos (M t 9.18ss e paral.; Lc 7.11ss). Os próprios Evangelhos não refletem
sobre o significado da morte e da ressurreição de mortos. Mas, à luz da pregação
do reino como um todo, esse significado é claro: é exatamente na libertação da
morte que a salvação do reino atingiu seu clímax. “Os mortos são ressuscitados
porque é na ação de Jesus que esse reino, no qual não haverá mais morte alguma,
está começando a se concretizar” (Ap 21.4 e 20.14).36 Consequentemente, tem
sido corretamente afirmado que qualquer pessoa que queira compreender a obra
de salvação de Jesus a partir da ideia do reino de Deus e a partir de seu ofício
messiânico não pode traçar uma linha racional de demarcação entre os assim
chamados milagres possíveis ou impossíveis,37 pois, o reino de Deus revelado em
milagres significa redenção de todo o mal e restauração da vida como um todo.
E notável, além disso, que o julgamento da nação incrédula e impenitente,
provocado pela vinda do reino dos céus, é demonstrado até mesmo pelo milagre
do ressecamento de uma figueira (Mt 21.18-22; M c 11.12-14; 20-24). Apesar
de o sentido da maldição da figueira ter provocado uma grande diversidade de
opiniões e toda sorte de explicações arbitrárias a respeito da “origem” dessa his­
tória miraculosa,38 a figueira ressecada certamente tem, em nossa opinião, um
significado simbólico. Ela é uma profecia do julgamento que haveria de vir sobre
Israel por causa da sua esterilidade.39 Considerado dessa perspectiva, esse milagre
é a contraparte dos milagres salvadores e ocupa um lugar orgânico no escopo da
pregação do reino e na totalidade dos milagres de Jesus.
O REINO CHEGOU - CUMPRIMENTO 69

O termo dunamis, que indica o poder de Jesus para realizar milagres, pode ser
considerado mais ou menos como um terminus technicus. Portanto, Marcos 6.14
diz: “nele operam forças miraculosas”; Marcos 5.30 diz ainda: “dele saíra poder”;
ou ainda, “o poder do Senhor40 estava com ele para curar” (Lc 5.17); ele comanda
os espíritos imundos com uma autoridade maravilhosa (Lc 4.36). Os próprios
milagres são mais de uma vez chamados de dunameis (M t 7.22; 11.20; 13.54)
ou simplesmente dunamis (Mc 6.5). Considerando o significado mencionado
acima dessas obras miraculosas de Jesus, esse dunamis engloba como um todo o
significado do poder divino da consumação, fazendo com que o nascimento de
Jesus seja um milagre já desde o início (Lc 1.35), determinando a totalidade da
sua ação e do curso de sua vida (Lc 4.14, cf. A t 10.38). Ele é Aquele em quem
se concretiza nesse momento a glória de Deus, também indicada como dunamis
(cf. M t 26.64), e a vinda definitiva de Deus ao mundo (cf. M c 9.1; 13.26)
acompanhada pelo dunamis divino. “Esse poder escatológico é o poder histórico
conduzindo o mundo e a História para o seu objetivo.”41
A partir de todos os tipos de traços característicos, segue-se que os milagres
só podem ser entendidos dentro do escopo da vinda do reino.42 Portanto, eles
são repetidamente indicados como o cumprimento de profecias (cf. M t 11.5
e 8.17) ou como evidências de que Deus “visitou” seu povo com as bênçãos
da salvação (Lc 7.16). Essa “visitação” deve ser entendida como a libertação
antigamente prometida do povo de Deus, que havia sido longamente esperada
(cf. Lc 1.68,78).43 Repetidas vezes, os milagres de Jesus sugerem ao povo, que
não o conhece como o Messias, que ele pode ser o filho de Davi (M t 12.23).
Alguns daqueles que queriam ser curados por ele incidentalmente se dirigiam
a ele como tal (M t 9.27; 15.22; 20.30 e paral.); como também os discípulos o
adoram como o filho de Deus por causa de seu poder sobre o vento e sobre o
mar (Mt 14.33). E por esse motivo que a impenitência de Israel será julgada com
muito mais severidade do que a de qualquer outra nação, exatamente por causa
dessas manifestações do poder de Jesus (M t 11.21ss, e paral.). Por outro lado,
a crença em Jesus como o Governante soberano enviado dos céus dará direito
aos gentios de se assentarem com Abraão, Isaque e Jacó no reino dos céus (M t
8.8-11 e paral.). Além do mais, o ponto central dos milagres é a glorificação de
Deus (M t 9.8; Lc 5.26; 17.17-18ss) também por aqueles que não pertencem ao
povo de Israel no sentido mais restrito da palavra (M t 15.31, “glorificavam ao
Deus de Israel”). Um milagre, tanto quanto a pregação, no sentido de ser uma
revelação do reino de Deus, é uma confrontação que exige uma decisão a favor
ou contra Jesus como o vencedor do Maligno e como o portador do Espírito
de Deus (M t 12.30-31 e paral.; M c 9.39-40); de fé (M t 8.10; 9.28; 15.28) ou
de incredulidade (M t 13.58), a dureza de coração (Mc 3.5) e o pecado contra o
Espírito por causa da manifestação clara do reino de Deus (M t 12.31 e paral.).
70 A v in d a d o R e in o

Por essa razão, o milagre em si não é a coisa mais importante, nem mesmo o
compartilhar do poder miraculoso de Jesus, mas, muito mais, a participação na
redenção do reino, redenção esta revelada pelo milagre (Lc 10.20, cf. também Mc
I.38, onde Jesus interrompe os milagres para ir a outro lugar pregar o evangelho
de Deus com as palavras “pois para isso é que eu vim”, cf. Lc 4.42-44). Isso nos
leva a outro ponto.

II. A pregação do evangelho

Em resposta à pergunta de João Batista, “És tu aquele que estava para vir?”,
Jesus faz referência não apenas aos seus milagres, mas também à pregação do
evangelho aos pobres: “aos pobres está sendo pregado o evangelho”. Fundamen­
talmente, essas palavras indicam que o cumprimento da promessa da vinda do
Messias e do reino se manifesta não somente nos milagres de Jesus, mas também
na sua pregação. O mesmo pensamento se encontra registrado em outras pala­
vras, em Lucas 16.16: “A Lei e os Profetas vigoraram até João; desde esse tempo,
vem sendo anunciado o evangelho (as boas-novas) do reino de Deus”. Aqui, a
dispensação da Lei e dos Profetas é colocada em contraposição à pregação do
evangelho do reino de Deus. Em outras palavras, na pregação do evangelho foi
concretizado aquilo que era somente uma expectativa na Lei e nos Profetas. Esse
é o motivo pelo qual Jesus pode chamar os discípulos de bem-aventurados não
somente pelo que eles veem, mas também pelo que ouvem. Nesse sentido, eles
eram mais favorecidos, acima dos crentes do Antigo Testamento, mesmo em
relação aos seus mais importantes representantes (M t 13.16-17; Lc 10.23-24).43
A pregação do evangelho não é uma prova menos importante do que os milagres de que
o reino dos céus chegou.
Para uma perspectiva correta dessas declarações gerais, é de especial im­
portância considerarmos o termo evangelho mais detidamente. A pregação de
Jesus é repetidamente sintetizada por esse termo (p. ex., M t 4.23; 9.35; 24.14;
26.13; M c 1.14-15; 8.35; 13.10).44 Apesar de essa palavra ser usada com relação
à totalidade da pregação do reino dos céus (não exclusivamente para indicar a
salvação, mas também para indicar o julgamento trazido com o reino, cf., p. ex.,
Lc 3.18), a palavra significa notícias boas ou alegres, que caracterizam o conteúdo
da pregação de Jesus como a proclamação da salvação.45
Tudo isso sobressai contra o pano de fundo da palavra evangelho no Antigo
Testamento, especialmente como encontrada na segunda parte das profecias de
Isaías.46 Ali, o mensageiro das boas-novas é mencionado, o mebasser, que prega o
domínio real de Yahweh, o raiar da nova era (Is 52.7), trazendo salvação e paz a
Sião. Em Isaías 61, o mensageiro da salvação se apresenta como aquele que fala,
O REINO CHEGOU - CUMPRIMENTO 71

aquele que foi ungido com o Espírito do Senhor e enviado para levar boas-novas
aos mansos (lebasser). Apesar de este reino de Yahweh também implicar conflito
e ira (cf. Is 52.10; 61.2), é anunciado como uma mensagem de alegria. Pois essa
manifestação real de Yahweh é feita em benefício dos oprimidos, quando ele
ergue o “seu santo braço” contra os seus inimigos. Esse é o motivo pelo qual as
boas notícias podem ser anunciadas como novas de salvação e de alegria, porque
são dirigidas ao seu povo.47
Entre os judeus que viviam na época de Jesus, afigura do mensageiro da paz
em Isaías tinha permanecido viva. O mebasservirá, o tempo messiânico começará.
Nem sempre é dito quem é esse mensageiro. M as, com a sua chegada, o malkuth
shamaim (o reino dos céus) começará.48
Portanto, é aqui que descobrimos as raízes do uso que Jesus faz da palavra
“evangelho”. Mesmo que os lugares rabínicos fossem eliminados, ainda é evidente
que Jesus se identifica com o mensageiro da alegria mencionado em Isaías, pois
as palavras mencionadas acima - aos pobres está sendo pregado o evangelho —não
são somente uma citação de Isaías 61.1; são, também, a sua proclamação inicial
do evangelho. De acordo com Lucas, Jesus explicitamente declara que a profecia
do mensageiro da alegria de Isaías 61 se cumpre nesse momento, enquanto ele
está se dirigindo aos seus ouvintes. Esse mensageiro foi ungido com o Espírito
Santo e enviado para pregar o evangelho ao pobre (Lc 4.21). E à luz desse pano
de fundo veterotestamentário que devemos interpretar o sentido original da
expressão “o evangelho do reino dos céus”. Segue-se que, na pregação do evan­
gelho, quando ecoava nos ouvidos do público de Jesus, o reino dos céus havia se
tornado uma realidade presente: o mebasser, aquele que traz as boas notícias ao
pobre, apareceu; o grande momento da salvação começou.
Do mesmo modo, as bem-aventuranças, tanto na tradição de Mateus
5.3 e seguintes como em Lucas 6.20 e seguintes, devem ser consideradas em
conexão com o pano de fundo do Antigo Testamento. Elas podem ser vistas
como o exemplo clássico da pregação de Jesus acerca do reino dos céus, tanto
com respeito ao lugar que ocupam no evangelho como pelo tom notadamente
solene e enfático das palavras de Jesus.49 Todavia, essas bem-aventuranças são
direcionadas, em primeiro lugar, ao pobre (de espírito) e, portanto, são a mais
autêntica ilustração da pregação do reino dos céus qualificada em Lucas 4 e 7
(Mt 11) como o evangelho.
Portanto, o evangelho pregado aqui não é meramente uma promessa nem
consiste apenas no fato de que a salvação se aproxima. Apesar de ser ainda futura
no que diz respeito à sua perfeita consumação, tornou-se fundamentalmente
um fato no momento presente. E verdade que Jesus nunca usa os termos “fun­
damentalmente” e “consumação plena”. Ele sempre fala da basileia como uma
unidade. Mas, ao lado dos pronunciamentos concernentes ao futuro, encontramos
72 A v in d a d o R e in o

pronunciamentos concernentes ao presente. A pregação não é caracterizada apenas


como profecia e anúncio, mas também como proclamação epromulgação.50
Isso é explicado primariamente pelo poder ou autoridade com a qual Jesus
prega o evangelho do reino. Sua palavra não é apenas um sinal - ela está carregada
de poder - e tem à sua disposição a substância, a salvação que ela própria define:
não é somente uma palavra, mas “fará o que apraz” àquele que a pronuncia. Esse
é o motivo pelo qual, ao fim, não existe diferença entre a palavra com a qual
Jesus expele os demônios e a sua pregação do evangelho. Em ambos os casos, a
palavra e o que ela indica formam uma unidade. Em nenhum lugar essa conexão
é vista tão claramente como na história da cura do paralítico (Mc 2.1-12 e paral.).
Nesse caso, a pregação do evangelho vem primeiro: “Filho, os teus pecados estão
perdoados”. Os escribas consideram essa declaração uma blasfêmia e Jesus lhes
pergunta: “Qual é mais fácil? Dizer ao paralítico: Estão perdoados os teus peca­
dos, ou dizer: Levanta-te, toma o teu leito e anda?” O que está em jogo aqui é o
poder da palavra, isto é, a pregação do evangelho: “Quem pode ( dunatai) perdoar
pecados, senão um, que é Deus?” O homem que fala dessa maneira é capaz de
cumprir o propósito de suas palavras? De modo afirmativo, esse pensamento é
expresso da seguinte maneira: “Ora, para que saibais que o Filho do Homem
tem sobre a terra autoridade para perdoar pecados” (exousian echei... aphienai...
epi tes ges). O que interessa nesse caso não é a pregação do perdão de pecados
ou a promessa que Deus haverá de perdoá-los (cf. 2Sm 12.13), mas a remissão
de pecados em si, como transparece do tempo presente do verbo no versículo 5
(“teus pecados estão perdoados”) e das palavras sobre a terra. O que é algo novo e
sem precedentes aqui não é o anúncio do perdão, mas o fato de que esse perdão
também está sendo realizado na terra.51 Esse é o poder de Jesus (exousia) como o
Filho do Homem, isto é, como aquele a quem foi dado o poder real, de acordo
com Daniel 7.14, e nisso se manifesta a presença do reino dos céus. Nesse sentido,
a pregação de Jesus da basileia coincide com a sua revelação.
A multidão, também, percebe a autoridade com a qual ele prega o evangelho,
apesar de permanecer ignorante do seu segredo real. A maioria se ofende com essa
autoridade, porque sente que é blasfêmia o ser humano falar com uma autoridade
que pertence somente a Deus (Mc 2.7 e paral.).
Esse é o motivo pelo qual os adversários de Jesus foram capazes de tentar
enredá-lo “em alguma palavra” (em logoot) (M t 22.15; M c 12.13; Lc 20.20,26), pois
perceberam nas suas palavras a reivindicação de autoridade absoluta e também o
seu caráter perigoso.52 Outros, entretanto, reagiram de um modo mais positivo.
Assim, por exemplo, por ocasião da cura do paralítico, a multidão se encheu de
temor e louvor a Deus, “que dera tal autoridade aos homens” (M t 9.8). Apesar
de não conhecerem verdadeiramente a Jesus (eles concebiam o que Jesus man­
tinha como autoridade do Filho do Homem como uma exousia dada por Deus
O REINO CHEGOU - CUMPRIMENTO 73

“aos homens”),53 eles reconheceram a autoridade de Jesus para perdoar pecados


quando testemunharam o milagre. Destacam-se também as muitas expressões
de “temor”, “admiração”, “espanto” e “estranhamento” que descrevem o espírito
da multidão quando via os milagres e ouvia a sua pregação.54 Repetidas vezes,
essas reações e outras semelhantes são registradas (cf., p. ex., M c 1.27; Lc 4.36;
M c 10.24; M c 5.20; Lc 11.14; M t 12.23 e outros lugares). Esses termos não têm
como objetivo, entretanto, somente fornecer descrições histórico-psicológicas da
impressão que Jesus causava nas multidões. Os evangelistas queriam indicar que
as palavras e as obras de Jesus revelavam o sobrenatural, o absoluto, o divino, de
tal modo que até as multidões se tornavam conscientes do fato.55 Como já foi
dito, essa admiração não era causada apenas pelos milagres que testemunharam,
mas também pela pregação que ouviam (cf. Lc 4.22; M t 22.22). Eles estão es­
pantados não somente diante do conhecimento e da sabedoria de Jesus, ou da sua
eloqüência, mas, no fundo, estão reagindo aos poderes e à autoridade revelados
em suas palavras. Nesse sentido, não há diferença entre a pregação de Jesus e seus
milagres. Ambos revelam o mesmo controle soberano que pertence somente a
Deus. Jesus precisava apenas dizer “uma palavra”; ele tinha só que ordenar, como
um centurião comandava seus homens (M t 8.8; Lc 7.7, eipe logoot, cf. também M t
8.16). Isso também pode ser claramente percebido na reação da multidão mara­
vilhada em Marcos 1.27, quando eles veem o poder de Jesus sobre os demônios e
exclamam, cheios de “admiração”: “Que vem a ser isto? Uma nova doutrina! Com
autoridade56 ele ordena aos espíritos imundos, e eles lhe obedecem!” Os milagres
deixavam claro para eles que a “nova doutrina” que Jesus trazia (a do reino) era
eficaz e, portanto, era pregada com autoridade.S/ Essa doutrina era, ao mesmo
tempo, poder. A proclamação do reino é também a revelação do reino.
Repetidamente, exousia é mencionada como o elemento na pregação e na
doutrina de Jesus que provocava a admiração da multidão. Ele “os ensinava como
quem tem autoridade” {hoos exomian echoon), Marcos 1.22; Mateus 7.28-29, cf.
também Lucas 4.32: “porque a sua palavra era com autoridade” (en exousiai). E
isso era verdadeiro não somente com respeito à pregação do evangelho como a
proclamação da redenção, mas também com relação aos mandamentos de Jesus.
Em Marcos 1.22 e Mateus 7.29, a pregação de Jesus é referida dessa maneira em
oposição à dos escribas. E verdade que os mestres de Israel também falam com
autoridade (cf., p. ex., M t 23.3-4); seus mandamentos, também, reivindicam vali­
dade. Entretanto, eles derivam a sua autoridade de outra fonte, pois “na cadeira de
Moisés, se assentavam” (M t 23.3); eles recorriam aos preceitos dos ancestrais (Mt
5.21ss). A doutrina de Jesus, entretanto, se baseia em sua própria autoridade (cf. a
frase repetida “eu, porém, vos digo” no Sermão do M onte). Os seus mandamentos
são dados com uma autoridade absoluta e têm validade ilimitada. Mesmo que os
céus e a terra passem, as suas palavras não haverão de passar (Mc 13.31ss).
74 A v in d a d o R e in o

Está claro que tudo isso só pode ser explicado pelo significado da pessoa
e da missão de Jesus. Era isso que a multidão admirada percebia nos milagres
(M t 12.23), ao ouvir a sua pregação: “quem é este que até perdoa pecados?”
(Lc 7.49). A presença do reino, tanto nas ações de Jesus quanto na sua pregação
do evangelho, a salvação que ele proclama, a posse da bem-aventurança que ele
atribui aos pobres de espírito, repousam no segredo da pessoa de Jesus. A única
exegese satisfatória do evangelho do reino em todas as suas facetas é a cristológica.
No fim, tudo deve se concentrar na autorrevelação de Jesus. O cumprimento, as
boas notícias que Jesus havia trazido, não pode ser, de modo algum, separado de
sua própria pessoa, como se fosse, por exemplo, uma doutrina proclamada por
ele e espalhada pelos apóstolos. O cumprimento está presente na sua pessoa, “no
acontecimento histórico” que é dado com ele, o qual é ele.5s

12. A posse da salvação

H á mais uma faceta do cumprimento proclamado pela pregação de Jesus


sobre o reino dos céus. Um estudo mais cuidadoso dos Evangelhos nos ensina
que, na vinda de Jesus, o reino dos céus não somente se revela como um poder
que destrói o domínio do Maligno e restaura a vida, que, até então, estava sujeita
à doença e à morte, ou como uma mensagem de salvação e bem-aventurança
pregada aos pobres de espírito com autoridade absoluta. E também um presente,
no qual, todos os que o recebem da parte de Deus, podem deleitar-se como se
já estivessem de posse de uma salvação futura que um dia lhes será plenamente
concedida.
Esse aspecto da vinda do reino se destaca já nos termos59 que Jesus usa em
sua pregação: “vosso Pai se agradou em dar-vos o seu reino” (Lc 12.32). Ele será
tomado dos judeus impenitentes e entregue a outros (M t 21.43). Cristo confia
(idiatithemai) o reino aos discípulos, exatamente como o Pai confiou-lhe o reino (Lc
22.29). Por outro lado, as pessoas devem receber o reino de Deus como crianças
(Mc 10.15); devem buscá-lo (M t 6.33); elas haverão de herdá-lo (M t 25.34); etc.
M as, totalmente à parte dessa terminologia, esse sentido do reino está também
implícito em sua própria natureza. Exatamente porque a pregação do reino é feita
por Jesus com absoluta autoridade, não somente em palavras e promessas, mas
também com o estabelecimento daquilo que é proclamado, a vinda do reino não
apenas consiste, necessariamente, na sua proclamação, mas traz consigo o dom da
salvação. Portanto, pode ser dito que, nesse dom, recebemos e possuímos o próprio
reino. Relacionado com isso temos o pensamento de que entramos no reino dos
céus, uma palavra que ocorre com frequência nos Evangelhos (Mt 5.20; 7.21; 18.3;
19.23; 23.13; M c 9.47; Lc 11.52ss); que estamos no reino (maior, menor, longe,
O REINO CHEGOU - CUMPRIMENTO 75

etc., cf. M t 5.19; 11.11; M c 12.34, etc.). Esses termos deixam claro que o reino
dos céus pode ser compartilhado de uma maneira ou de outra, que ele muda a
vida dos que o recebem, que, pela virtude do ato de Deus, ele se torna um dom,
uma possessão, um domínio vital daqueles a quem esse privilégio é concedido.
Para nossos propósitos, é de particular importância determinar até que
ponto esse dom, a possessão da salvação, já aparece na pregação de Jesus à luz
do cumprimento (i.e., o fato de o reino j á ter chegado). Em várias das passagens
mencionadas acima, esse dom é exclusivamente representado como algo que
pertence ao futuro grandioso (c£, p. ex., Lc 12.32; M t 25.34ss). E, na maioria
dos casos em que a passagem menciona entrar no reino, temos de entender que
se refere a pessoas às quais foi dado compartilhar na bem-aventurança eterna
(M t 7.21-22; 19.23; cf. v. 27ss). Contudo, não nos parece estranho, depois de
tudo o que discutimos nas páginas anteriores, que o reino dos céus seja referido
como um dom e uma possessão que já é recebida e desfrutada no presente. E
bem verdade que, entre aqueles que mantêm a presença da basileia em oposição à
escatologia exclusiva, há diversos autores que nem querem ouvir falar disso. Essa
posição é, em grande parte, uma reação deles contra a aplicação de uma doutrina
idealística de valores à pregação de Jesus. Ainda assim, não se pode negar que a
terminologia dos Evangelhos fala do reino como um bem soteriológico e não se
pode sustentar que receber esse bem seja algo que pertence somente ao futuro.
A proclamação da salvação da basileia tem a ver, desde o início, com o dom nela
implícito, o qual é dado aos fiéis já no presente.
Num certo sentido, essa última ideia é a essência do evangelho do reino.
Aqui, igualmente, deveríamos apontar para as bem-aventuranças (M t 5.3ss; Lc
6.20ss), nas quais Jesus, de maneira muito especial, proclama o reino dos céus
como a bem-aventurança, a salvação dos pobres. E verdade que o verdadeiro
caráter dessas beatitudes reside no fato de que a salvação pregada é anunciada
como um bem a ser revelado plenamente somente no futuro. No entanto, já é,
no presente, posse dos pobres de espírito. Pois quando nos é dito que eles são
abençoados porque deles é ( estin) o reino dos céus, devemos levar totalmente a
sério o tempo presente do verbo. Algumas tentativas têm sido feitas de com­
preender a salvação concedida aos pobres de espírito num sentido puramente
escatológico-futuro (em vista dos pronunciamentos “futuros” em M t 5.4ss e Lc
6.21ss) e qualificar o estin em Mateus 5.3,10 e Lucas 6.20 somente como uma
promessa.60 Apesar de a concretização plena da salvação prometida aos pobres
de espírito ser algo que, em parte, pertence ao futuro de acordo com o restante
das beatitudes, esse fato não significa que essa bênção não possa ser concebida
como algo a ser dado e recebido no presente.61
Além disso, quando, em outros lugares na Escritura, o reino é representado
como um tesouro, isso também não deveria ser considerado como algo pertencente
76 A v in d a d o R e in o

apenas ao futuro. É verdade que, em mais de uma passagem, o reino é referido


como o “tesouro nos céus” que deve ser agora ajuntado e que é o local onde nosso
coração deve estar (M t 6.19-21, cf. v. 33). Esse é também o sentido da passagem
paralela em Lucas 12.33: “fazei para vós outros bolsas que não desgastem, tesouro
inextinguível nos céus, onde não chega o ladrão, nem a traça consome”. Ao jovem
rico Jesus diz: “vai, vende os teus bens, dá aos pobres e terás um tesouro no céu”
(M t 19.21). Outra imagem é a do “galardão nos céus” e a do “galardão junto de
vosso Pai celeste” (M t 5.12; 6.1ss.). E claro que todas essas imagens indicam
algo que transcende a realidade presente deste mundo, porque está nos céus e é
preservada nos céus para os fiéis até a sua revelação no reino vindouro de Deus
(cf. lPe 1.4; C l 1.5).
No entanto, o reino não deveria ser concebido como exclusivamente futuro.
Repetidamente temos a impressão que a salvação do reino é designada aos dis­
cípulos e aos fiéis em geral como uma realidade presente. Assim, em Mateus 13.
16-17 (cf. Lc 10.23-24), os discípulos são chamados de “bem-aventurados” por
causa do que veem e ouvem naquele exato momento. Não faz sentido pensar nessa
bem-aventurança somente no sentido profético, do mesmo modo que não fará
sentido destituir as palavras de Jesus ao paralítico (veja acima) do seu significado
imediato para o presente. Para Zaqueu, de Jericó, Jesus diz com grande ênfase:
“Hoje houve salvação nesta casa” (Lc 19.9); e, aos discípulos, que devem se alegrar
porque os nomes deles estavam (tempo perfeito) arrolados nos céus (perf. ; Lc
10.20); à mulher que louvou a mãe de Jesus como bendita, ele disse: “Antes, bem-
aventurados são os que ouvem a palavra de Deus e a guardam” (Lc 11.27-28).
Do mesmo modo, podemos apontar para Marcos 10.15 (Lc 18.17): “Em
verdade vos digo: Quem não receber o reino de Deus como uma criança de maneira
nenhuma entrará nele”. Mesmo se interpretarmos o “entrar” no reino no sentido
futuro-escatológico, o que, nessa passagem, é, aparentemente, a coisa óbvia a se
fazer, o “receber” o reino precisa ser compreendido como alguma coisa que precede
a “entrada” nele. O sentido não é obscuro. Trata-se, certamente, do recebimento
do evangelho, da fé em Jesus. Mas, como as palavras de Jesus não são somente
linguagem e sinais, mas também poder e realidade, a palavra do reino precisa
também ser referida como o próprio reino. N a pregação, a salvação já foi dada.
Esse é o motivo pelo qual é sempre difícil traçar a linha demarcatória entre o
presente e o futuro da salvação, e, em muitos casos, é até mesmo errado pretender
estabelecê-la. Frequentemente, todos os tipos de passagens são selecionados de
modo atomístico em declarações concernentes ao “presente” e aqueles acerca do
“futuro”, como se essa seleção fosse final. Mesmo se, por meio de certo método
de redução, pudéssemos reter um número limitado de passagens que ensinam a
presença da salvação e a possessão soteriológica dessa bênção designada para os
fiéis expressis verbis, pouco significaria, pois, na sua revelação presente e futura,
O REINO CHEGOU - CUMPRIMENTO 77

o reino dos céus é uma unidade e a pessoa de Jesus, em quem a promulgação


da salvação está baseada, é a mesma para o presente e o futuro. Esse é o motivo
pelo qual a salvação, o tesouro, a propriedade que representa o reino dos céus
para os fiéis, abarca tanto o presente quanto o futuro. Isso não significa que cada
referência à salvação tenha um significado presente. Quando, nos Evangelhos
sinóticos, Jesus fala do reino como “a regeneração” (Mt 19.28) ou como a “vida
eterna” (M t 19.29), ele quer dizer o que acontecerá e será dado “no mundo por
vir” (Mc 10.30; Lc 18.30). Assim, podemos nos perguntar se a frase “entrar no
reino dos céus” é exclusivamente usada para a entrada na vida eterna. Em nossa
opinião, isso é muito questionável, para dizer o mínimo, diante de passagens
como Mateus 23.13; 7.13 e Lucas 13.24, nas quais a entrada no reino claramente
significa mais do que um momento escatológico. Em qualquer caso, Mateus
11.11 fala de alguém ser mais ou ser menos no reino num sentido presente.
Ainda assim, apesar da sua importância, isso não é decisivo para o que queremos
discutir aqui. Decisivo é o fato de que a presença e a unidade do reino dos céus
e da pessoa que foi investida de autoridade divina estão na base da presença da
salvação e que já, por esse motivo, pode-se falar do reino como uma possessão
presente de salvação.
Em nossa concepção, esse é o sentido no qual devemos entender a parábola
do tesouro escondido num campo e também o sentido da parábola da pérola de
grande valor (M t 13.44-46). E verdade que as opiniões diferem com respeito ao
tertium comparationis nessas parábolas; um autor aponta para o valor infinito62 do
reino, outro para o sacrifício63 que essa pérola exige.64 Na nossa opinião, ambos
os sentidos são válidos, apesar de o sentido do valor infinito ter a prioridade.
O reino representa um tesouro que deve ser desejado acima de todas as demais
coisas e que é realmente cobiçado por todos que têm sido agraciados com o
privilégio de vê-lo.
Essas parábolas, também, são o tema de todo tipo de discussão a respeito da
possessão da salvação, isto é, se pertencem ou não ao momento presente. Kümmel
pensa que Jesus desconhece completamente o reino como “presente neste mundo”
e declara que essas parábolas não podem ser apresentadas como prova disso.65
Michaelis mantém que o tesouro de Mateus 13.44-46 refere-se somente ao reino
futuro.66 N a minha opinião, ele está errado. Em primeiro lugar, considerada em
si mesma, a parábola aparenta falar de alguma coisa presente, em vez de algo que
seja exclusivamente futuro. O “caçador de tesouros” tanto quanto o “mercador” se
apoderam do tesouro que desejam ter e não meramente adquirem o direito a ele
ou uma perspectiva de vir a tê-lo. Entretanto, a maneira de colocar o problema é
totalmente imprópria. A questão não é somente a presença ou o futuro do reino
dentro do escopo dessas parábolas; a questão está ligada com o caráter do reino
pregado por Jesus.67
78 A v in d a d o R e in o

Num capítulo68 à parte, examinaremos o que constitui a salvação do reino


que Jesus designa aos seus seguidores como um dom e um tesouro já na vida
presente. Por enquanto, basta concluir que o reino dos céus também significa a
concessão da salvação para os crentes e que é também presente como tal e que
a explanação e o segredo dessa forma do cumprimento está na pessoa daquele
que determina essa bênção ao seu povo pela virtude da sua autoridade e do seu
poder. N a associação com ele, o dom do que ele proclama é garantido incondi­
cionalmente e concedido a eles.

13. Jesus é o Cristo

Nas exposições precedentes, repetidas vezes deparamos com o fato de que


a explicação real e mais profunda da presença do reino deve ser procurada na
pessoa do próprio Jesus. O segredo da presença do reino dos céus consiste na
vitória de Jesus sobre Satanás, em seu poder miraculoso ilimitado, na sua auto­
ridade irrestrita para pregar o evangelho, em seus pronunciamentos de bênção e
na concessão da salvação para o seu povo. Não pode haver dúvida de que somos,
nesse caso, confrontados com o caráter messiânico e cristológico do reino dos céus
e que o cumprimento total do que Jesus proclama como uma realidade presente está
baseado nofato de que ele próprio, Jesus, é o Cristo.
E verdade que, da parte da crítica moderna, têm sido feitas tentativas para
negar essa relação essencial e indissolúvel entre a pessoa e o conteúdo, o ofício
messiânico e o evangelho. É bem conhecido que Harnack pensou, certa feita,
que poderia separar o evangelho do reino da pessoa de Jesus como o Cristo, o
Filho de Deus.69 Em tempos recentes, Bultmann também opinou que a questão
sobre se Jesus se considerava o Messias era de “importância secundária” com
respeito à interpretação do evangelho.70 Contudo, essas declarações só podem
ser mantidas se o evangelho transmitido for destituído de seu sentido claro e
inconfundível. Mesmo o grande teólogo liberal H. J. Holtzmann reconheceu,
com muita relutância, que era impossível eliminar o capítulo inteiro da auto-
consciência messiânica de Jesus como um corpus alienum do evangelho do reino,
porque, sem a messianidade de Jesus, a história evangélica perde a sua espinha
dorsal.71 Críticos posteriores, incluindo aqueles da escola da “crítica da forma”,
fizeram declarações semelhantes. Assim, por exemplo, Dibelius escreve que o
evangelho se concentra na pessoa de Jesus: “Não é que ele tenha algo do reino
para compartilhar com eles [seus discípulos], mas, pelo contrário, pelo poder da
compulsão do reino, ele se comunica com o reino”. Ele é responsável pela vinda
do reino não somente com sua palavra, mas também com sua pessoa. Ele não
é somente o porta-voz de Deus, mas a fonte de energia do novo ser,72 no qual
O REINO CHEGOU - CUMPRIMENTO 79

consiste, de acordo com Dibelius, a essência real do reino dos céus (despida de
seu molde “mitológico”).
Numa seção anterior,73 provamos que a ideia do reino dos céus é de de­
terminação messiânica. Isso é verdadeiro não apenas com relação ao Antigo
Testamento e à expectativa judaica intertestamentária do futuro, mas também
na própria pregação de Jesus o reino de Deus e o Messias (especialmente como o
Filho do Homem) são conceitos correlatos. Consideramos essa relação somente
num sentido objetivo, isto é, sem dar atenção à autorrevelação messiânica de Jesus.
Nossa discussão tratou principalmente daqueles pronunciamentos que falam da
identidade da vinda do reino com a vinda {parousia) do Filho do Homem. Agora,
entretanto, devemos enfatizar plenamente o aspecto subjetivo, de tal maneira que
a totalidade da proclamação de Jesus sobre o cumprimento, isto é, sobre a vinda
do reino como uma realidade presente, corra paralela à autorrevelação de Jesus
como o Messias que foi enviado a este mundo por Deus, uma autorrevelação na
qual a sua proclamação se baseia.
Quanto a isto - o cumprimento! - é especialmente o significado da presente
concretização da messianidade de Jesus que está em discussão, pois, aqui, tam­
bém, encontramos a afirmação da escola escatológica exclusiva que reconhece a
conexão intrínseca entre o reino de Deus e o Messias, mas que atribui a ambos
um caráter puramente futuro. Do mesmo modo, supõe-se que Jesus falou do reino
como uma entidade exclusivamente futura e que, também, falou do Messias (o
Filho do Homem) como a figura grandiosa do futuro. Schweitzer deu expressão
fértil a esse pensamento com sua expressão Messias designatus. Como tal, supõe-se
que Jesus considerava-se como aquele que havia sido designado e destinado por
Deus como o Messias na grandiosa revolução cósmica. Essa interpretação esca-
tológica-radical da autoconsciência messiânica de Jesus ainda é vigorosamente
defendida por autores como M . Werner e F. Buri.74 Outro autor, Michaelis, adota
a expressão Messias designatus, mas apenas para dizer que a messianidade de Jesus
começou somente com os acontecimentos da Páscoa e do Pentecostes. Portanto,
de acordo com ele, segue-se que Jesus não reivindicou dignidade messiânica
durante a sua vida terrena, mas que somente a sustentou como uma perspectiva
de messianidade para o futuro.75
Como mostraremos em mais detalhes, essa tese tem um importante elemento
de verdade na medida em que Jesus, por uma parte considerável, se refere ao exer­
cício de seu ofício messiânico no futuro. Em tais casos, ele fala frequentemente
de si mesmo como o Messias vindouro. O autor Vos corretamente observou que,
quando Jesus fala da parousia do Filho do Homem, muitas vezes tais declarações
não devem ser entendidas como a segunda vinda, mas simplesmente como a vinda
do Messias (cf. M t 24.27,37,39). Do mesmo modo, Jesus fala em outros locais da
sua futura revelação como se fosse a sua vinda (Mc 13.26; M t 24.30,42; Lc 12.40;
80 A v in d a d o R e in o

17.30; 18.8ss).76 De tudo isso poderíamos inferir superficialmente que o Filho


do Homem ainda não veio. A perspectiva da escatologia consistente, portanto,
quer compreender todas as passagens em que Jesus se proclama como o Filho
do Homem de uma maneira antecipatória, no sentido proléptico.
Porém, quando examinada cuidadosamente, é evidente que essa concepção
é totalmente insustentável. Ela resulta de explicações muito estranhas das decla­
rações “Filho do Homem”, como por exemplo, Marcos 8.31, que é parafraseada
como se segue: “como aquele que será o Filho do Homem, eu tenho de sofrer
grandemente”.77 Essa interpretação é obrigada a tratar de modo secundário outras
passagens que, inegavelmente, falam da presença atual do Filho do Homem, como
por exemplo, Mateus 8.20; 11.19; 12.32; 12.40; 13.37,41; 16.13. Supõe-se que,
nesses versículos, que contêm declarações de Jesus sobre si mesmo que não são
messiânicas, foram inseridas tradições posteriores contendo a autorrevelação do
Filho do Homem.78
Em si, não é impossível que a tradição tenha mudado declarações de Jesus
sobre si mesmo para declarações a respeito do “Filho do Homem” (cf., p. ex.,
M c 8.27 e M t 16.13). M as não se pode derivar das fontes disponíveis uma única
razão pela qual tal mudança teria sido causada por uma “adaptação messiânica”
posterior da atividade e autorrevelação da pré-messianidade de Jesus ou da sua
não messianidade. Pois não somente o kerygma evangélico como um todo está
baseado na certeza de que Jesus é o Messias, a ponto de que, consequentemente,
quem quiser designar um sentido meramente futuro-messiânico aos pronun­
ciamentos “Filho do Homem” está obrigado a sujeitar todo o evangelho a tal
redução, como também o evangelho será destituído da sua essência real e da sua
base mais fundamental se nos recusarmos a atribuir aos pronunciamentos de
Jesus sobre si próprio o seu significado messiânico presente. O mesmo ocorrerá
se nos inclinarmos a interpretá-los como fruto de uma tradição posterior. Apesar
de não podermos ser exaustivos aqui, o sumário a seguir pode nos mostrar a im­
possibilidade de postular, a partir das fontes à nossa disposição, uma concepção
e um quadro pré-messiânicos da vinda de Jesus e da sua obra.
A. A atividade de Jesus entre o povo é precedida pela indicação divina da
sua messianidade por ocasião do seu batismo no rio Jordão por João (M t 3.17;
M c 1.11; Lc 3.22). Essa indicação é repetida durante a transfiguração de Jesus
no monte, isto é, na véspera da sua paixão e morte (M t 17.5; M c 9.7; Lc 9.35).
Podemos deixar de lado a questão com respeito a se o pronunciamento “Este
é (Tu és) meu Filho amado” é aplicado somente ao ofício messiânico de Jesus
ou se indica também a relação ontológica entre Deus Pai e o Filho, como, por
exemplo, é assumido por Stonehouse79 e Sevenster80. De qualquer modo, Jesus é
proclamado o Messias tanto no seu batismo como na transfiguração no monte.
Esse fato transparece claramente dos predicados messiânicos: o amado, o esco­
O REINO CHEGOU - CUMPRIMENTO 81

lhido, das palavras “em quem me comprazo” (cf., p. ex., Is 42.1-4; M t 12.18) e
da versão das palavras divinas em Lucas 3.22, as quais indicam Jesus como rei
messiânico nas palavras do Salmo 2.7. Essa indicação não pode ser explicada
no sentido proléptico.81 Ela claramente coloca a vinda de Jesus e a sua obra à
luz do presente (cf. também as palavras “ouvi-o” durante a transfiguração). Essa
designação qualifica desde o início toda a obra seguinte de Jesus (cf. tb. M t 4.3
e paral.).
B. Outro ponto estreitamente ligado a esse é a descida do Espírito Santo sobre
Jesus seguida da voz celestial (M t 3.16; M c 1.10; Lc 3.22). Esse fato, também,
tem claramente um significado messiânico. Tal significado não pode ser concebido
em termos de uma cristologia psicológica82 ou de uma cristologia adocionista.83
Pelo contrário, significa a divina preparação de Jesus para a tarefa que lhe havia
sido confirmada pelo pai como o Messias (cf., p. ex., Is 11.2; 61.1ss.).84 Devemos
entender do mesmo modo Lucas 4.18, onde Jesus aplica as palavras de Isaías
61.1 a si mesmo: “O Espírito do Senhor está sobre mim, pelo que me ungiu para
evangelizar os pobres”. Mesmo se em Isaías 61.1 os conceitos “ungir” e “Espírito
Santo” forem cuidadosamente mantidos separados,85 visto que a unção não se
refere à designação para o ofício, ainda assim isso não diminui o fato que o dom do
Espírito tinha como seu propósito o exercício do ofício. É verdade que, em outra
passagem, Michaelis se refere a esse fato como “a investidura de Jesus para o seu
aparecimento como o Messias designado”.86 M as essa restrição à futura messia-
nidade não é encontrada na exegese dessas palavras, mas nas premissas gerais de
Michaelis. Repetidas vezes aparecem evidências de Jesus sendo capacitado com
o Espírito já durante a sua atividade terrena e de que ele tinha o Espírito Santo
à sua disposição por causa da sua messianidade. Por exemplo, em Mateus 12.28,
onde Jesus disse explicitamente que ele expulsava os demônios pelo Espírito de
Deus, e que, portanto, o reino já havia chegado. Essa passagem mostra que o fato
de Jesus ter sido investido do Espírito Santo (o aspecto messiânico) coincide com
a vinda do reino. No mesmo contexto — não somente em Mateus, mas também
em Marcos 3.29 — a calúnia dos escribas é considerada como blasfêmia87 ou como
falar mal contra o Espírito Santo.ss O poder que transforma a palavra de Jesus em
ato, a autoridade com a qual ele fala, provêm do Espírito Santo, com o qual ele
foi capacitado e o qual, como Messias, ele tem à sua disposição.
Essas coisas não estão meramente baseadas numas poucas declarações;
elas formam as premissas da ação de Jesus como o Messias, enviado por Deus e
sendo guiado e impelido pelo Espírito Santo em tudo. Depois do seu batismo
no Jordão, “o Espírito o impeliu para o deserto” (Mc 1.12); ele foi “levado pelo
Espírito ao deserto” (M t 4.1). Ele “cheio do Espírito Santo, voltou do Jordão e
foi guiado pelo mesmo Espírito, no deserto” (Lc 4.1). Assim, sua tentação no
deserto é descrita não meramente como algo que aconteceu debaixo da direção da
82 A v in d a d o R e in o

providência de Deus, mas como um encontro do Messias divinamente designado


e cheio do Espírito Santo com o grande adversário. O fato de que Jesus era
impelido pelo Espírito, bem como estava cheio dele, também explica por que
a investida do tentador estava destinada ao fracasso desde o início. E também
o segredo da palavra de poder de Jesus depois da terceira tentação: “Retira-te,
Satanás!” (M t 4.10). Pois é a palavra poderosa por meio da qual o Messias re­
preende Satanás e que, desde o início, o obriga a reconhecer a superioridade e
autoridade do M essias.89
Essa investidura do Espírito Santo como privilégio messiânico de Jesus é um
dos temas básicos do evangelho, apesar de não ser explicitamente mencionada a
cada vez. Em Lucas 4.14, é dito mais uma vez que “Jesus, no poder do Espírito”,
voltou para a Galileia. Essa declaração, também, deve ser compreendida em
estreita conexão com Lucas 3.22 e Lucas 4.1. Ser capacitado com o Espírito é o
princípio e o poder de toda a atividade de Jesus, e, do começo ao fim, marca a sua
ação no cumprimento de seu dever messiânico. Devemos entender o poder de
Jesus de conceder o Espírito Santo aos homens dessa mesma maneira. Relembro
ao leitor a palavra de João Batista, de que aquele que viria depois dele batizaria
não somente com água (como João), mas com o Espírito Santo, como o gran­
dioso dom messiânico e escatológico de salvação. E verdade que esse batismo
com o Espírito não foi imediatamente realizado assim que Jesus começou suas
atividades: ele foi prometido aos discípulos para depois da sua ressurreição, como
uma revelação da presença de Deus (At 1.5). Isso não significa dizer, entretanto,
que, antes disso, Jesus era somente o Messias designado. Mostra apenas que a
messianidade de Jesus não foi plenamente desenvolvida de uma vez. Esse pen­
samento receberá nossa atenção em mais detalhes mais adiante.
Na sua obra Reich Gottes und Geist Gottes nach dem Neuen Testament [O reino
de Deus e o Espírito de Deus de acordo com o Novo Testamento], Michaelis
tenta mostrar que os Evangelhos sinóticos falam de maneira reservada que Jesus
possui o Espírito Santo. Lucas representa esse conceito mais enfaticamente do
que Mateus e Marcos, mas Michaelis sugere que, nesse caso, temos que lidar
com uma “adaptação proposital da tradição evangélica”.90Assim, ele aceita Lucas
4,14 e 4.18 somente com alguma reserva; ele é da opinião de que, na história da
tentação, Jesus não foi impelido ao deserto pelo Espírito que ele havia recebido
no batismo, mas por um “poder estranho”.91 D e qualquer modo, essa passagem
é supostamente a única na tradição mais antiga de acordo com a qual Jesus foi
impulsionado debaixo da compulsão irresistível do Espírito. Michaelis considera
Mateus 12.28 (“pelo Espírito de Deus”) como secundário à luz de Lucas 11.20
(“pelo dedo de Deus”). Dessa perspectiva, só nos resta o registro do recebimento
do Espírito no batismo de Jesus, e, até certo ponto, também o dito acerca da
blasfêmia contra o Espírito. E, ainda assim, Michaelis pensa que essas poucas
O REINO CHEGOU - CUMPRIMENTO 83

passagens são suficientes para declarar que a tradição via Jesus como o portador
do Espírito Santo e que o próprio Jesus também se considerava assim. Entretanto,
essa perspectiva raramente é colocada em destaque. Michaelis explica esse fato
ressaltando que, em suas ações na terra, Jesus era somente o Messias designado. A
relação do reino de Deus com o Espírito de Deus só é mencionada na medida em
que Jesus era o portador do Espírito na sua qualidade de Messias designado.92
Não podemos evitar o pensamento de que Michaelis arbitrariamente res­
tringe a posição que o Espírito Santo ocupa nos Evangelhos sinóticos em favor da
sua perspectiva do caráter futuro da messianidade de Jesus. Mas, por outro lado,
o número de passagens nas quais o Espírito Santo é citado é comparativamente
pequeno. E também verdade que, durante a sua atividade terrena, Jesus não se
apresentou como aquele que batizava com o Espírito Santo. A esse respeito,
portanto, na tradição sinótica do reino dos céus, o batismo com o Espírito é ainda
uma questão futura. Na minha opinião, o grande erro de Michaelis é que ele
aparentemente ignorou as ações de Jesus como tal. Todos os seus milagres e todas
as suas palavras eram controlados por uma consciência absoluta de autoridade e
eram, na verdade, gerados pelo dom e pelo poder do Espírito Santo, apesar de
esse fato nem sempre ser mencionado explicitamente em cada caso. O pequeno
número de passagens que mencionam que Jesus tinha o Espírito não pode ser
explicado como se Jesus fosse somente o Messias do futuro. Muito pelo contrá­
rio, esse pequeno número de referências se deve ao fato de que a messianidade
de Jesus é a própria pedra angular da tradição de que ele tinha o Espírito. Isso
explica por que não era necessário ficar repetindo esse ponto. As ocorrências
pouco freqüentes não representam qualquer “limitação” da messianidade de
Jesus; pelo contrário, representam uma quantidade abundante de certeza de que
a sua autoridade era a autoridade do Messias, pois não é tanto a posse do Santo
Espírito, mas a vinda do Messias, que é o fundamento do evangelho e a prova
de que o reino chegou.
C. Podemos chamar de notável o fato de que Jesus, na tradição sinótica,
nunca se chama explicitamente de Messias e que, mais de uma vez, impôs si­
lêncio àqueles que se dirigiram a ele, invocaram-no ou o confessaram como tal.
Esse fenômeno receberá a nossa atenção num contexto posterior. Esse fato tem
sido usado das mais diversas maneiras para provar o caráter não messiânico ou
pré-messiânico das ações de Jesus. M as isso só pode ser avaliado de maneira
própria depois da verificação de que todo o evangelho está cheio de todo tipo de
declarações da parte de Jesus que dão testemunho da autoridade absoluta que ele
reivindicou. Essas declarações só podem ser explicadas à luz da sua relação única
com o Pai e a partir da sua autoconsciência messiânica. E verdade que há críticos
que têm se ocupado em fazer a distinção entre o que pode ser “histórico” e o que
é resultado da “cristologia da igreja”. M as esse esforço para distinguir entre o que
84 A v in d a d o R e in o

Jesus “pode ter dito” e o que ele “pode não ter dito” é, em si mesmo, internamente
contraditório. Com base em certas convicções supostamente científicas, os críticos
se sentem inclinados a considerar como não autêntica e secundária cada uma
das declarações de Jesus que nos foram transmitidas e que nos testificam da sua
autoconsciência sobrenatural e exclusiva. M as não se trata apenas de uns poucos
pronunciamentos relevantes, e sim de todo o caráter da autorrevelação de Jesus.
Nessa autorrevelação, a sua messianidade é revelada excepcionalmente somente
de um modo direto e aberto. Contudo, depois de um exame mais cuidadoso,
fica evidente que cada palavra que Jesus diz sobre si mesmo, apesar de frequen­
temente fazê-lo de maneira indireta e, em muitos casos, implícita, procede de
uma autoconsciência que excede todos os limites naturais e que não pode ser
compreendida de nenhuma outra maneira senão em conexão com a sua missão
messiânica. Portanto, procuraremos trazer à luz a unidade indissolúvel de tudo
o que nos foi transmitido com respeito à autorrevelação messiânica de Jesus em
vez de discutirmos separadamente a crítica que é feita aos diferentes tipos de
suas declarações.
O clímax da tradição sinótica a esse respeito se encontra nas palavras de
Mateus 11.27 e de Lucas 10.21-22. Aqui, Jesus louva o Pai porque “ocultastes estas
coisas aos sábios e instruídos e as revelaste aos pequeninos”. E acrescenta: “Tudo
me foi entregue por meu Pai. Ninguém conhece o Filho, senão o Pai; e ninguém
conhece o Pai, senão o Filho e aquele a quem o Filho o quiser revelar”.
Essas palavras tanto se referem à missão (messiânica) e à autoridade de Jesus
quanto ao que pode ser chamado de igualdade de identidade de essência93 entre o
Pai e o Filho, pois o mistério do Filho é colocado nas mesmas bases do mistério
do Pai e a comunicação da revelação concernente ao Pai e ao Filho é privilégio
exclusivo de ambos. Tanto um quanto o outro são de grande importância nesse
contexto, não somente para o objetivo de trazer à luz o significado sobrenatu­
ral da messianidade de Jesus, mas também para manter o seu caráter presente.
Pois qualquer que seja o sentido em que a pessoa de Jesus esteja relacionada ao
futuro, a relação ontológica entre o Pai e o Filho, indicada aqui, não pode estar
se referindo ao futuro. Ela pressupõe a preexistência da pessoa de Jesus. Desse
fato, segue-se que seria um absurdo abrigar o pensamento de uma messianidade
puramente futura em conexão com a vida de Jesus aqui neste mundo, pois, no
sentido acima, Jesus era o Filho de Deus e sua existência terrena não poderia ser
destituída do seu caráter messiânico sem que o sentido da sua encarnação e da
sua existência humana antes da parousia se tornasse totalmente problemáticos. A
ideia de um Messias designado significa realmente a “total destruição do dogma
cristológico”.94
A verdade disso é ainda mais enfática na medida em que Jesus - embora
com alguma reserva, como se estivesse apenas fazendo apenas algumas alusões
O REINO CHEGOU - CUMPRIMENTO 85

- repetidamente falou de sua missão messiânica no tempopassado, isto é, como algo


de que ele já tinha sido encarregado e que agora estava realizando. E assim em
Mateus 11.27a e em Lucas 10.22a, palavras que estão intimamente relacionadas
com a proclamação do poder e da autoridade de Jesus depois da sua ressurreição
(Mt 28.18). Desse contexto, transparece que essas palavras se referem aos milagres
de Jesus, isto é, ao presente, e não somente ao futuro.
O mesmo tempo verbal passado é encontrado em passagens a respeito da
vinda de Jesus ou a respeito da vinda do Filho do Homem, os assim chamados
ditos elthon (do grego elthon, “veio”). Num estudo desses ditos, Harnack tentou
demonstrar que eles não tinham qualquer significado messiânico.95 M as essa
perspectiva estava totalmente baseada em premissas naturalísticas, como, por
exemplo, Sevenster já provou.96 Está sendo agora cada vez mais reconhecido em
geral que esses ditos têm um significado cristológico especial e que eles pressu­
põem a preexistência de Jesus. A “vinda” mencionada aqui deve ser entendida
como a “vinda do céu”. A palavra pertence ao mundo do pensamento da epifania
divina.97A crítica radical dos nossos dias parte das mesmas premissas dos teó­
logos liberais de antigamente, mas atribui um sentido mais profundo à tradição
sinótica. Entretanto, nega a autenticidade desses ditos e sente-se autorizada a
caracterizar praticamente todos eles como um produto de tempos posteriores.98
E inegável que esses ditos elthon, tais como estão, dão testemunho de que Jesus
tinha consciência de ter sido chamado. O conteúdo desse chamado aparece,
num exame mais cuidadoso, como sendo nada mais do que o chamado messi­
ânico. Jesus veio chamar “pecadores ao arrependimento” (Mc 2.17ss.); “lançar
fogo sobre a terra” (Lc 12.49); trazer a espada e não a paz (M t 10.34ss, cf. Lc
12.51ss); ele não veio destruir a Lei ou os Profetas, mas cumpri-los (M t 5.17);
“proclamar o reino de Deus” (Mc 1.38). Podemos acrescentar ditos introduzidos
por frases como: “Não fui enviado senão...” (M t 15.24). “Não fui enviado senão
às ovelhas perdidas da casa de Israel” (cf. também Lc 10.16, M c 9.37, M t 10.40).
Além disso, Jesus refere-se a si mesmo como Filho do Homem que veio “salvar
o perdido” (Lc 19.10, em alguns manuscritos Lc 9. 56; M t 18.11 também); ele
não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate por muitos
(Mc 10.45; M t 20.28; cf. também M t 11.18-19; Lc 7.33-34). Nas declarações
desse tipo, existem muito mais coisas implícitas do que apenas autoconsciência
profética, apesar de essa autoconsciência também pertencer à autorrevelação
messiânica de Jesus.
Alguns escritores consideram os ditos elthon, em si, como fórmulas messiâni­
cas, e recorrem a Lucas 7.2099 (cf. M t 11.2, em que erchomenos claramente aponta
para o Messias). Apesar de esse argumento ser um pouco forçado (em outras
passagens, há também a questão da “vinda” de João Batista — M t 11.18), o que
é dito acerca do caráter e do propósito da vinda de Jesus mostra que esses ditos
86 A v in d a d o R e in o

elthon têm, de fato, uma importância messiânica preponderante. Assim, portanto,


“lançar fogo sobre a terra” (Lc 12.49), por exemplo, terá de ser entendido como
a discórdia trazida pelas palavras e obras de Jesus; todavia, do versículo 50 em
diante, transparece que, para que essa reação aconteça, o sofrimento e a morte
de Jesus são também requeridos.100 Tudo isso está ligado com a grande divisão
causada pela vinda do reino ao mundo.101 Esse fogo não começa na terra, mas é
lançado na terra a partir do céu - ignes ille non est nativus terrae [“esse fogo não
é nativo da terra”] (Bengel).Tudo isso fala mais do que sobre uma missão profé­
tica, fala de uma tarefa messiânica, de uma autoridade messiânica. O mesmo se
aplica à discórdia dentro da família trazida por Jesus (M t 10.34-36; Lc 12.51-53).
Cumpre-se a bem conhecida profecia escatológica de Miqueias 7.6, que fala da
grande confusão que caracteriza o tempo do fim. Nessa passagem, Jesus diz que
ele veio para cumprir essa profecia. Ele é não somente o sujeito da profecia, mas
é seu objeto, a partir do momento em que ele apareceu.
O propósito da vinda de Jesus nada mais é que o cumprimento da missão
messiânica. Isso pode também ser claramente percebido pelos ditos elthon acerca
do Filho do Homem. Eles mostram, de modo inequívoco, que Jesus não somente
se chama de Filho do Homem no sentido proléptico, mas enfatiza o fato de que
o Filho do Homem veio. Kparousia profetizada em outros lugares não exclui o
fato de que o Filho do Homem já veio. E de especial significado que os pronun­
ciamentos de Jesus acerca da missão terrena do Filho do Homem não são apenas
uma indicação da sua majestade e autoridade em acordo com Daniel 7.13ss (cf.,
p. ex., Lc 19.10 e M c 2.10), mas também, em medida não inferior, uma indicação
de que ele é aquele em quem a profecia do Servo sofredor se cumpre (Mc 10.45 e
paral.). Apesar de Jesus falar de maneira velada acerca de si mesmo, inclusive nos
ditos elthon, não pode ser negado que esses ditos têm um significado messiânico
em conexão com a totalidade da autorrevelação de Jesus, e, portanto, falam da
messianidade dele no transcorrer de sua vida terrena.
H á também uma relação próxima entre esses ditos elthon e aqueles ditos
chamados de pronunciamentos ego (do grego “eu”), nos quais enfaticamente Jesus
manifesta plena consciência da sua autoridade e de seu poder. Um exemplo é a
frase que ele repete várias vezes, ego de lego humim (“eu, porém, vos digo” — M t
5) em que, em contraste com o que os antigos disseram, ele pronuncia a sua
palavra de autoridade.102
De especial importância são aquelas palavras nas quais Jesus coloca como
critério de salvação e rejeição o fato de pertencer a ele e ter comunhão com a
sua pessoa (ego). Essas declarações não são exclusivamente relacionadas com o
futuro, como, por exemplo, nos ditos de julgamento, em Mateus 7.23, “Apartai-
vos de mim” (cf. também 25.41). Nesses ditos, ouvimos o futuro juiz do mundo
falar. Jesus nega que tenha existido qualquer relacionamento pessoal entre ele e
O REINO CHEGOU - CUMPRIMENTO 87

os obreiros da iniqüidade: “nunca vos conheci”. Ele os afasta de si e, com isso,


demonstra o seu julgamento. Por outro lado, já no presente, ele convida todos os
que estão cansados e sobrecarregados, dizendo: “Vinde a mim” (M t 11.28). Isso
é mais do que um chamado para cumprir os seus mandamentos, é nada menos
que o chamado messiânico do Salvador. Para os que “estão cansados e sobrecar­
regados” há salvação nele e ele lhes dará descanso. Ir a ele e ter comunhão com
ele é o grande pré-requisito da salvação.
Esse é o modo de compreender as declarações que mostram que o critério
para a entrada no reino reside na atitude adotada com respeito à própria pessoa
de Jesus (ego). Essa consciência de absolutismo encontra abundante expressão,
por exemplo, num dito como Mateus 12.30, “Quem não é por mim, é contra
mim” (cf. também M c 9.40). A conclusão do sermão por ocasião da comissão
dos discípulos em Mateus 10 é totalmente dominada pela consciência que Jesus
tem de sua absoluta autoridade (vs. 32-42). Aqui, Jesus fala de “me confessar”
(homologein en emoi) e de “me negar” (arneomai me)\ de “amar o pai ou a mãe,
o filho ou a filha mais do que a mim” (huper eme), de alguém não ser “digno de
mim” (ouk estin mou axios); de “seguir-me” (akolouthein hopiso mou), de “perder
a vida por minha causa” (heneken emoü) e de “receber-me” (dechestai eme), o que,
por um lado, é o mesmo que receber o seu discípulo, e por outro, receber aquele
que o enviou (v. 40). Em todas essas expressões, que têm seus paralelos nos
outros Evangelhos e que podem ser multiplicadas por muitas outras passagens
semelhantes (cf., p. ex., M t 16.24-25; 18.5; 19.29), Jesus fala do Cristo em cuja
pessoa e obra reside a decisão maior e final para o mundo e para o homem, e
em cuja pessoa Deus vem ao mundo com sua graça e justiça, com sua salvação e
maldição. Esse é o motivo pelo qual, na pregação de Jesus, o ego (eu) messiânico
se alterna com a ideia de basileia toon ouranoon (reino dos céus) ou tou theou (de
Deus). Isso é verdadeiro não apenas com relação ao futuro (cf., p. ex., M c 9.1 e
M t 16.28), mas também com relação ao presente. Aquilo que é chamado “deixar a
casa, ou irmãos... por amor de mim e por amor do evangelho”, em Marcos 10.29,
e, em Mateus 19.29, “por causa do meu nome”, é chamado “por causa do reino
de Deus”, em Lucas 18.29. “O nome de Jesus e a sua mensagem, o próprio Jesus
Cristo, são identificados com o reino de Deus.”103
Com base nessas informações, não pode haver dúvida alguma acerca do
caráter messiânico presente da vinda de Jesus e de sua obra. E assim, também
o significado do cumprimento proclamado por Jesus é revelado quanto à sua
essência real. O reino dos céus chegou porque Cristo chegou. Ele é a autoba-
sileia (“o próprio reino” — Orígenes). Portanto, o que ele diz, faz e concede é
a manifestação do cumprimento do tempo, a revelação da salvação que Deus
prometeu conceder. Por esse motivo, também a modalidade da revelação do
reino é dependente da revelação do Cristo. Isso tem conseqüências de longo
88 A v in d a d o R e in o

alcance para uma perspectiva correta tanto quanto à presença como quanto ao
caráter provisório da vinda do reino. No nosso próximo capítulo, entraremos mais
profundamente neste assunto.
A título de apêndice, mencionamos a opinião de O. Cullmann com respeito
à relação entre a messianidade de Jesus e a vinda do reino de Deus.104 Ele pensa
que a discussão interminável com relação ao reino de Deus no Novo Testamento,
se o mesmo é presente ou futuro, deve tomar outra direção se a diferença temporal
óbvia for mantida em vista entre basileia tou huiou (reino de Cristo) e basileia
to theou (reino de Deus). Ele se refere a iCoríntios I5.23ss como prova dessa
distinção. De acordo com Cullmann, o Regnum Christi (reino de Cristo) tem seu
fundamento na sua ressurreição e se inicia efetivamente com sua ascenção. Nesse
meio tempo, esse Regnum Cristi se mistura temporariamente com este éon, o que
significa dizer que a aniquilação definitiva dos poderes hostis a Deus ainda está
adiada. O estágio final do reino de Cristo ocorrerá na sua segunda vinda. Então,
terá início o conflito final. Dessa maneira, o Regnum Christi, com seu ato final,
alcançará o primeiro ato do mundo vindouro, o aioon melloon (era vindoura) da
nova criação. Na medida em que esse ato final já se sobrepõe parcialmente à era
vindoura, Cullmann o identifica com o milênio de Apocalipse 20.4ss. Depois
disso, “Cristo entregará o reino a Deus” e então o reino de Deus começará.
D e acordo com Cullmann, já que a obra de Cristo é decisiva para toda a
história do mundo, tanto no passado quanto no futuro, há a possibilidade de
todos as declarações caracteristicamente prolépticas concernentes ao reino no
Novo Testamento. Como tal, ele menciona como exemplo as declarações de
Jesus de que o reino já veio. “Agora que Jesus vive na terra, que veio a obter a
vitória por meio da sua morte, esses pronunciamentos prolépticos são naturais.”
E assim, segundo Cullmann, que se deve explicar por que, no Novo Testamento,
a distinção no uso lingüístico em geral entre a basileia do Pai e a do Filho não
é consistente. Esse reino de Cristo, é verdade, não pode ser separado do reino
do Pai, com relação ao seu conteúdo, do mesmo modo que o Filho não pode ser
separado do Pai. M as o reino de Cristo representa uma entidade separada no
sentido temporal, começando com a ascensão, continuando agora e encontrando
seu estágio final do início do mundo vindouro.105
Em tudo isso, há duas importantes perguntas implícitas. A primeira é se
os pronunciamentos acerca da vinda do reino antes da morte e da ressurreição
de Cristo têm um caráter proléptico. A segunda é se é permissível considerar o
Regnum Christi em sentido temporal, precedendo o reino escatológico de Deus
que é puramente futuro.
A primeira tese, como já vimos, é também defendida por Michaelis. Em
nossa opinião, não faz justiça ao significado da pessoa e da obra de Cristo antes
da sua morte e de sua ressurreição, pois, apesar de a morte e a ressurreição de
O REINO CHEGOU - CUMPRIMENTO 89

Cristo serem de importância fundamental para a concretização do seu reino, a


concretização não começa com elas. O início do reino não reside na morte e na
ressurreição de Cristo, mas na sua vinda (cf. acima), isto é, em sua encarnação.
Assim como não é possível sustentar, com base na passagem frequentemente
citada de Atos 2.36, que Deus o tornou Cristo somente ao ressuscitá-lo de entre
os mortos, de modo que a cristologia sinótica pode ser chamada de proléptica
(Cristo designado), também não se pode afirmar que a presença do reino começa
somente com a morte e a ressurreição de Cristo. Uma coisa está indissoluvel-
mente ligada à outra e uma concepção proléptica dos pronunciamentos a respeito
do reino nos Evangelhos traria, naturalmente, a implicação do pensamento do
Messias designado para o tempo anterior à sua ressurreição. O que foi dito até
aqui provou que ambas as perspectivas são insustentáveis. A realeza de Cristo e a
vinda da basileia correspondente não estão baseadas meramente na sua exaltação,
mas, como vimos (M t 11.27; 3.17, etc), no beneplácito eterno do Pai o qual foi
proclamado já no início da sua carreira, e que encontra sua base mais profunda
na unidade entre o Pai e o Filho.
A segunda tese de Cullmann está ligada a isso. Sem dúvida, com base em
ICoríntios 15.23, podemos falar da “entrega da basileia de Cristo ao Pai”. Mas,
em nossa opinião, seria muito esquemático colocar essa distinção temporal na
base de todo o Novo Testamento e falar de “uso inconsistente” com referência
às passagens nas quais essa distinção não é encontrada. Não se pode dizer com
certeza que essa distinção seja um “requerimento absoluto”, como Cullmann faz,
em oposição à K. L. Schmidt. No Wõrterbuch [Dicionário] de Kittel, Schmidt
escreveu: “a basileia Christi (o reino de Cristo) não pode ser citada a não ser em
conexão com a de Deus”.107 O evangelho, todavia, não conhece essa distinção,
seja em palavra, seja em substância. A maior objeção contra essa perspectiva é
que, desse modo, a noção de basileia tou theou assume um caráter puramente
escatológico futuro. Isso não está baseado no evangelho, mas sim em conflito
com ele em todos os aspectos. Pelo contrário, basileia tou theou ocupa lugar de
destaque no evangelho. E, por meio da vinda e da obra de Cristo, começou a ser
concretizado a partir daquela hora.
IV
O R EIN O C H EG O U

2. S eu c a r á t er provisório

14. Presença efuturo

O argumento que foi apresentado no capítulo anterior acerca da chegada


do reino dos céus pregada por Jesus estabelece de maneira firme que Jesus não
sustentava que a vinda do reino era somente uma realidade a ser esperada num
futuro mais ou menos imediato. Além disso, ele proclamou o reino como o cum­
primento atual da profecia veterotestamentária acerca da salvação, manifestada
em sua pessoa e obra. Tudo isso nos impede de seguir a escola da escatologia
“consistente”, seja na sua concepção histórica original, que considera Jesus
como um pregador de um reino de Deus ilusório, exclusivamente futuro, seja
em sua concepção idealista ou existencialista posterior desse “pensamento” ou
acontecimento escatológico. Essa escola teve seus méritos, pois despiu o con­
ceito neotestamentário do reino de Deus das ideias modernas do Iluminismo,
que havia sido o modelo para concepção do liberalismo teológico do “reino de
Deus”. A escola escatológica tentou encaixar o conceito do reino de Deus em seu
próprio molde histórico, isto é, no molde da profecia e da escatologia do Antigo
Testamento. Apesar disso, a interpretação escatológica, em sua forma exclusiva
e consistente, é absolutamente insustentável, pois é a negação da autorrevelação
de Jesus como o Messias em quem a profecia se cumpriu e a salvação veio. E, por
essa razão, a interpretação escatológica exclusiva não deixa espaço para o reino
em sua presença real e beneficente.
Tudo isso não significa que a declaração “o reino dos céus é chegado” exaure
tudo o que pode ser dito. Num capítulo anterior, vimos - em oposição, por
exemplo, à concepção de C. H. Dodd - que Jesus repetidamente fala do futuro do
O REINO CHEGOU - S E U CARÁTER PROVISÓRIO 91

reino de Deus e que esse futuro tem o caráter da consumação e do cumprimento


de todas as coisas. Isso constitui a parte surpreendente dos pronunciamentos de
Jesus concernentes à presença do reino e sua autorrevelação messiânica. Eles
reivindicam a presença atual do reino e do Messias enquanto o grande momento
da consumação ainda não chegou. A vinda do reino, como proclamada por Jesus,
portanto, tem um caráter incompleto e provisório.
Ao mesmo tempo, devemos nos guardar contra uma representação por
demais esquemática. E digno de nota que o próprio evangelho não faz distinção
entre a presença do reino e o futuro desse reino. Diz apenas num lugar que o
reino dos céus chegou e, em outra passagem, que o reino chegará. E geralmente
é sempre muito difícil determinar se o reino está sendo referido no presente ou
no futuro.
Esse fenômeno se deve não apenas à falta de uma terminologia distintiva­
mente sistemática, que, sob muitos aspectos, é característica do evangelho - ele
certamente tem também um significado factual que não deve ser negligenciado
por causa de distinções que são por demais superficiais, como, por exemplo, a
primeira e a segunda vinda (apesar de essas distinções poderem ser feitas com
base nos fatos). Esse fenômeno, repito, está baseado na unidade do reino dos céus
e na unidade da Pessoa a quem esse reino foi dado. Tudo isso significa que, no
fundo, estamos tratando de uma vinda, um cumprimento, uma obra consumada
de Deus, como transparece claramente de Lucas 4.18ss. Nessa passagem, o cum­
primento realizado das Escrituras é referido em termos da grande renovação no
período final. Por esse motivo, qualquer tentativa de dividir a vinda do reino em
duas partes separadas deve ser rejeitada. O reino dos céus aparecendo no mundo
com a vinda de Cristo significa nada menos que o fim da profecia (M t 11.13;
Lc 16.16), a prisão de Satanás (Mt 12.28), a maravilhosa e abrangente redenção
da vida (M t 11.5; Lc 4.18-19), a autoridade e o poder do Filho do Homem
(Mc 2.10) e a bem-aventurança para o pobre de espírito (M t 5.3). Qualquer
tentativa de depreciar esse caráter, seja pela aplicação de uma redução eticizante
ou simbolizante ou pela separação entre o presente e o futuro, é uma dissolução
do conteúdo do evangelho do reino. Em vez disso, deveríamos considerar que a
característica e a peculiaridade da pregação deJesus é a proclamação que elefaz do reino
em seu significado escatológico consumado, como uma realidade tanto presente quanto
futura. O cumprimento está aqui, e, ainda assim, o reino está por vir. O reino chegou,
mas o seu cumprimento está pendente. Um dos pressupostos fundamentais para se
entender o evangelho é manter essa unidade em vista.
Ao mesmo tempo, em muitos sentidos essa unidade se constitui num
problema, o qual não pode ser resolvido pelo intelecto humano, pois se refere à
unidade e à extensão da obra divina de salvação em Jesus Cristo. Era especial­
mente urgente para aqueles que - depois da pregação de João Batista - viram
92 A v in d a d o R e in o

Jesus aparecer proclamando que o tempo havia sido cumprido e que o reino
tinha vindo. Seus ouvintes simplesmente supuseram que a vinda do reino traria
o Dia do Senhor, o julgamento do mundo e o fim da realidade terrena. E esse
problema que encontrou expressão na pergunta do grande arauto e testificou de
sua incerteza e de sua dúvida: “Es tu aquele que estava para vir ou havemos de
esperar outro?” (M t 11.3).
Temos que investigar esse problema da modalidade da vinda do reino, que
já havia se iniciado nas palavras e obras de Jesus, e a relação entre essa presença
do reino e seu futuro. Haveremos não somente de identificar e comparar as de­
clarações diretas sobre esse ponto, mas teremos que discutir a questão à luz do
evangelho como um todo.

15. O tempo do Maligno

H á grande tensão entre os pronunciamentos do Senhor concernentes à


vinda do reino (presente e futuro!). Nada melhor do que demonstrar esse fato
pelo exame do que Jesus diz no evangelho com respeito ao contínuo poder do
Maligno. Num capítulo anterior, citamos a declaração de Jesus na qual ele rei­
vindica sua vitória sobre o Maligno (o “amarrar do homem valente”, §9). Essa é
uma das provas mais claras no evangelho da presença do reino dos céus. Ao seu
lado, todavia, encontramos, no evangelho, evidências inequívocas de que o poder
de Satanás não havia cessado e que, tanto para Jesus como para seus discípulos,
esse poder é uma ameaça contínua e incessante.
Esse fato claro pode ser percebido, por exemplo, na oração do pai-nosso, na
forma como Mateus a registrou, em que Jesus ensina seus discípulos a orar: “Não
nos deixes cair em tentação; mas livra-nos do mal” (6.13). A primeira parte se
refere ao poder do diabo. “Tentação” não é somente uma situação que acarreta o
perigo de queda no pecado,1mas inclui, igualmente, a influência ativa do Maligno
sobre uma pessoa para causar a sua queda. Nossa oração, portanto, diz: “Não nos
deixes cair nas mãos do tentador”.2 A segunda parte não deveria ser explicada
como “livra-nos do mal”, mas, em nossa opinião, como “livra-nos do Maligno”.
Em defesa do termo neutro “mal” apela-se para 2Timóteo 4.18 e para o Didaquê
10.5.3 Mas, em defesa do termo pessoal, “o Maligno”, existem fortes razões, se
não mais fortes ainda, para recorrer a Mateus 12.28-29; 13.19,39; Marcos 8.33;
Lucas 10.19; 22.31. De qualquer modo, nesse contexto, não é possível deixar de
fora o Maligno. A oração do pai-nosso foi totalmente inspirada pela vinda do
reino, como transparece nas três primeiras petições. Ela até mesmo se refere à
revelação perfeita do reino (M t 6.10c!). A vitória sobre o Maligno é, com respeito
à vinda do reino, um dos pontos principais do conteúdo da oração. Essa petição
O REINO CHEGOU - SE U CARÁTER PROVISÓRIO 93

posterior, portanto, dificilmente poderá ser concebida de outra maneira que não
em conexão com o próprio Maligno.
De acordo com Schweitzer, essa oração deve ser entendida num sentido
estritamente escatológico. A “tentação” é a grande aflição no drama messiânico
pendente no qual o mundo hostil se levanta uma última vez antes da vinda do
reino. Os discípulos deveriam, então, orar para que fossem preservados desse
sofrimento pela onipotência de Deus.4 Schweitzer relaciona esse pensamento
ao conflito pessoal do próprio Jesus no Getsêmane e às advertências de Jesus
aos seus discípulos para não entrarem em “tentação” (M t 26.41). Existem outros
que também concebem a “tentação” da qual Jesus fala no Getsêmane como o
sofrimento escatológico das “angústias” messiânicas (cf. M t 24.9).s
Essa última opinião, todavia, é insustentável dentro do escopo dos Evange­
lhos, especialmente dentro dos chamados discursos apocalípticos dos sinóticos.
Eles falam de um futuro mais distante do que o da morte e dos sofrimentos de
Jesus.6 E também um estreitamento arbitrário e construtivo da sexta petição se
a tentação mencionada nela for aplicada somente à “aflição” vindoura do período
final.7 Isso, contudo, não altera o fato de que, tanto nesse caso quanto na história
da Paixão (especialmente na cena do Getsêmane), devemos estar conscientes da
estreita ligação entre a tentação e a ameaça da parte do Maligno e a ideia do
reino. Assim como, desde o início do ministério de Jesus, o Maligno dirigiu seus
ataques especiais para fazê-lo cair (a tentação no deserto), do mesmo modo os
discípulos de Jesus são o alvo especial da inimizade e do propósito maligno de
Satanás. Isso transparece na oração do pai-nosso, na qual a libertação do Maligno
é a conclusão da oração pela vinda do reino. Também fica evidente em passagens
como Lucas 22.31, na qual Jesus declara, especialmente à luz de seu sofrimento
e de sua morte, que Satanás os reclamou para peneirá-los como trigo, mas ele
orou por eles, para que a fé que eles tinham não desfalecesse. Nesse versículo, a
palavra “reclamou” (exetesato), “desejou ter”, é impressionante. A representação
corresponde à de Jó 1.9ss (cf. Ap 12.10; Zc 3.1ss).8 Satanás aparece como aquele
que exige que os discípulos sejam provados. Ele quer que sejam expostos como os
que ficam ao lado de Deus e participam da sua salvação sem que mereçam isso.
Talvez esse “peneirar como trigo” signifique a obra também atribuída ao Messias
por vir no último julgamento (M t 3.12) e, assim, Satanás é aqui representado
como o Anticristo,9 que, no fogo da prova, tentará arrastar para si todos que
aparentam pertencer a Deus. De qualquer modo, ele age aqui como o grande
adversário de Cristo que quer roubar dele o seu prêmio.10
E em oposição a isso que Jesus faz a sua oração. H á um contraste impres­
sionante entre exigir e orar. Na oração, há um elemento de submissão. Aqui,
também o ego de (“Eu, porém”) não pode ser ignorado (cf. acima, §13). E o ego
messiânico.11 Cristo protege seus discípulos nas provações a que são submetidos.
94 A v in d a d o R e in o

Ele não pode evitar que as provações lhes sobrevenham, já que, por um tempo,
ele precisa entregá-los nas mãos do tentador (cf. M t 26.31), pois essa é a “hora”
de seus inimigos e “o poder das trevas” (Lc 22.53). Somente mais tarde a rei­
vindicação de Satanás poderá ser rejeitada (cf. Ap 12.10). No momento, isto é,
no momento em que o próprio Jesus tem que se entregar, sua oração se levanta
sozinha em oposição à reivindicação de Satanás. Mas, como oração do Mediador,
ela é suficiente para manter a fé dos discípulos durante a provação.
Isso tudo mostra que, tanto na vinda de Jesus como em sua obra, a luta
contra Satanás atingiu uma crise e que essa luta não está terminada, mas tem de
prosseguir com toda a energia. A vitória obtida por Jesus como o Cristo ainda
não é definitiva. Isso é aplicável a ele mesmo: depois da tentação no deserto, o
diabo se aparta dele “até momento oportuno” (Lc 4.13), o que significa, qualquer
que seja o modo em que a frase seja traduzida,12 que Satanás haveria de voltar.
Também se aplica à vida que Jesus redimiu do poder do Maligno. Jesus adverte
enfaticamente contra esse poder em Mateus 12.43-45 (cf. Lc 11.24-26).
Essa passagem em Mateus fala primeiramente do espírito imundo que sai
de um homem, numa maneira típica de se referir aos demônios que são expul­
sos dos possessos diante de um poder superior. É muito impressionante que a
advertência contra a reincidência no mal antigo se encontre, tanto em Mateus
como em Lucas, em estreita ligação com as passagens referidas como “sermões
Belzebu”, nas quais Jesus testifica da maneira mais clara possível do seu poder
superior sobre o diabo e da vinda do reino manifestada nessa superioridade (cf.
acima, §9). Esse “sair do espírito imundo” deve ser, portanto, concebido como
sendo resultado da ação de Jesus. E, como transparece de Mateus 12.45 (“Assim
também acontecerá a esta geração perversa”), isso se refere não apenas a um caso
concreto, mas ilustra a totalidade da ação salvadora de Jesus manifestada em
Israel. Esse fato implica vitória sobre Satanás e é evidência (para a fé) da vinda
do reino. Tudo isso, contudo, é acompanhado da advertência: o espírito imundo
retornará à sua presa. Ele ainda não foi banido da terra; foi expulso da habitação
humana somente por um período, como alguém que é temporariamente expulso.
Ele anseia por voltar e voltará para “a casa” de onde saiu. E, ao encontrá-la “vazia,
varrida e ornamentada”, ou seja, não ocupada por um novo habitante (o Espírito
Santo!), retornará com um bando completo de demônios e tomará posse outra
vez da antiga casa, de modo que “o último estado desse homem será pior que o
primeiro”.
Isso tudo mostra claramente que, com a vinda e o ministério de Jesus, o
poder do Maligno não cessou. Somente em comunhão com Cristo é que existe
alguma proteção contra as hostes do diabo. A velha casa precisa mudar seus
habitantes. Não é suficiente que ela fique temporariamente vazia e que aparente
ser um modelo de ordem e limpeza. Exatamente por causa do estágio decisivo no
O REINO CHEGOU - SEU CARÁTER PROVISÓRIO 95

confronto, o perigo de um contra-ataque e de sucumbir inteiramente ao Maligno


é maior do que nunca.
Essa realidade dos ataques contínuos e cada vez mais ferozes de Satanás
é um dos elementos no conteúdo das parábolas do reino. Jesus representa essa
realidade de maneira especial na parábola do joio e do trigo (M t 13.25; cf. tb.
v.19). Sempre tem sido questionado se é possível, no mundo real, a ideia de um
inimigo semear o joio. H á paralelos em outras histórias populares que mostram
que essa elaboração da parábola é perfeitamente possível de um ponto de vista
formal no escopo do ensino de Jesus, e que não precisa ser atribuída a uma
modificação grosseira posterior da imagem original.13 E, mesmo assim, não há
como negar que a imagem é determinada pelo propósito explícito de apontar
para o inimigo. Se a preocupação fosse somente com o joio, a menção deles se­
ria suficiente, como ocorre com os espinhos na parábola do semeador. Então, é
claro que o inimigo não funciona apenas como uma parte para criar o ambiente
da parábola, mas como um elemento essencial da realidade representada, como
transparece também da explicação no versículo 39: “o inimigo que o semeou é
o diabo”. A inimizade extrema do inimigo que executa o ato inimaginável de
semear joio é uma imagem da pior das oposições que o diabo faz à vinda de Jesus
e à sua obra. Não é a imagem usual e costumeira da demonstração do poder do
diabo, mas sua determinação amarga de se posicionar contra a vinda e a obra
de Jesus. A base que ele tem para fazer isso é a crise que o reino dos céus tem
causado nos domínios do Maligno.
Isso mostra mais uma vez que a continuidade da inimizade e do poder do
Maligno não deve, nem por um momento, abalar a fé na vinda do reino e do M es­
sias. Essa continuidade somente indica a modalidade especial da vinda do reino,
fazendo com que a realidade dessa vinda se torne ainda mais evidente e óbvia.
Uma confirmação e uma elucidação notáveis do que foi dito encontra-se
na história da cura do possesso em Gadara (M t 8.28ss; M c 5.1ss.; Lc 8.26ss).
Nesse caso, também, acima de tudo, o poder de Jesus sobre o diabo se torna
manifesto. Aí, também (cf. §9), lemos acerca dos gritos de terror com que os
demônios encontram Jesus, reconhecendo-o como o Filho de Deus e lançando-se
aos seus pés. Isso mostra o conhecimento que tinham do “mistério do reino” e
do Cristo.14 Eles também suplicam e rogam a ele que não os “atormente” antes
do tempo (basanizein) . Embora essa palavra ocorra com vários sentidos diferen­
tes, nesse contexto não pode significar nada menos que os sofrimentos eternos
do inferno, para o qual os demônios já temem ser enviados15 (Ap 20.10,14).16
Na parte da história que se segue em Lucas 8.31, é dito que eles pediram a
Jesus que não os enviasse para o abismo (eis ten abusson apelthein). De acordo
com Greijdanus, a palavra abusson indica a morada dos demônios durante esta
dispensação terrena, que deve ser diferenciada do “lago de fogo” no qual serão
96 A v in d a d o R e in o

lançados depois do julgamento.17 Independentemente do que seja, de qualquer


modo, o “mandar sair para o abismo” tem de ser concebido de acordo com o
“tormento” mencionado no versículo 28, e, portanto, como um exílio forçado
dos demônios para o lugar de sua punição,18 onde não mais estarão de posse de
sua liberdade normal de movimento.19 Isso também é indicado pela expressão
“antes do tempo” (pro kairou), na versão de Mateus 8.29, isto é, antes do ponto
no tempo determinado por Deus, quando o poder lhes será tirado e eles serão
entregues à tortura de sua punição eterna. Esse kairos é, portanto, o momento
em que o poder de Satanás terminará, enquanto, ao mesmo tempo, o poder de
seu grande oponente, o Messias, terá início.20 Foi isso que os demônios reco­
nheceram e foi a vinda dele que os encheu de terror. M as, ao mesmo tempo,
eles protestam contra serem entregues ao tormento final já, nesse momento. Esse
ponto no tempo, esse kairos, ainda não havia chegado. Por um lado, eles sabiam
que estavam totalmente debaixo do poder de Jesus, e, por outro, sabiam que
lhes restava, ainda, algum tempo aqui neste mundo antes do julgamento final.
Portanto, nessa situação, eles imploram a Jesus, diante de sua intenção manifesta
de expulsá-los, que permita que eles entrem nos porcos. E Jesus atende ao pedido
deles. Eles são forçados a deixar o infeliz endemoninhado, mas ficam livres para
entrar na vara de porcos.
Tudo isso é uma importante indicação do caráter do poder de Jesus sobre
os demônios e da natureza do reino que começou com sua vinda. A permissão
que Jesus dá aos demônios para entrarem nos porcos não deve ser considerada
como uma espécie de concessão aos espíritos imundos. Jesus não negocia com os
demônios. E nem a entrada deles nos porcos significa o fim deles. Em vez disso,
significa a automanutenção (provisória) dos demônios, pois o objetivo e a obra
deles é a destruição da criação de Deus. A aquiescência de Jesus ao pedido deles
se deve ao fato, assim pensamos, de que também na opinião de Jesus o tempo
do tormento dos demônios realmente ainda não havia chegado. Ao permitir que
entrassem nos porcos, Jesus restitui-lhes a liberdade (embora somente no local
que Jesus lhes designou) para continuar a sua obra de destruição. Isso explica o
sentido do exorcismo de demônios de maneira geral: ele ainda não põe fim ao
poder de Satanás, mas é a garantia e o símbolo da sua derrota definitiva. E nesse
sentido que os pronunciamentos de Jesus sobre a queda de Satanás do céu21 têm
de ser entendidos. A vitória é um fato, mas manifesta-se apenas como um sinal.
Não pode ainda ser plenamente levada a efeito. Essa concretização terá de esperar
“o tempo” (kairos) apontado por Deus.
A exegese acima acerca da entrada dos demônios nos porcos foi obtida de
J. Ridderbos, Predikende het Evangelie des Koninkrijks [Pregando o evangelho
do reino], 1911, p.60ss, e parcialmente de F. W. Grosheide, Het heiligEvangelie
volgensMattheüs [O santo evangelho segundo Mateus], 1922, págs. 109,110; veja
O REINO CHEGOU - S E U CARÁTER PROVISÓRIO 97

também, de minha autoria, Mattheüs, I, p. 177. Em apoio a essa visão, podemos


ainda mencionar Apocalipse 12.12, onde é dito que o diabo ainda tem algum
tempo e um lugar na terra determinado por Deus mesmo após a [primeira]
A Índa de Jesus.
A passagem do exorcismo praticado por Jesus e a entrada dos demônios
nos porcos tem sido sujeita às mais variadas interpretações. As sete explicações
que considero principais são as seguintes:

a) A permissão de Jesus para os demônios entrarem nos porcos, os quais


em seguida se afogaram no mar, expressa o assim chamado “tema do
diabo enganado”. E assim que pensam, por exemplo, Bultmann,22 Klos-
termann,23 Lohmeyer,24 seguindo os passos de Wellhausen. Assim, os
demônios é que são os enganados aqui. A explicação de Wohlenberg25 e
de Lagrange26 tende na mesma direção, apesar de eles não partirem do
tema literário, como Bultmann, mas da realidade do que foi contado no
evangelho. Wohlenberg chega mesmo a pensar que os demônios de fato
“deixaram o país”. Talvez, diz ele, devamos imaginar que eles tenham sido,
de fato, banidos “para o abismo”. Em nosso entendimento, o afogamento
dos porcos no mar não é uma derrota imprevista dos demônios, mas o
propósito explícito de suas tentativas destruidoras.

b) O enganado foi Jesus, não os demônios. Pelo fato de os demônios serem


os responsáveis pela destruição da vara de porcos, é Jesus quem tem de
abandonar a região.27 Essa explicação, que tem poucos adeptos, é incom­
patível com o testemunho da superioridade de Jesus sobre os demônios
que encontramos em todas as demais partes do evangelho, em particular
nessa história. Na realidade, essa explicação transforma o testemunho
evangélico exatamente em seu oposto.

c) O afogamento dos porcos no mar é supostamente uma prova do milagre


(de acordo com o evangelista). Assim pensa Klostermann,28 recorrendo
a Jerônimo. De acordo com outros, a destruição dos suínos deu ao pos-
sesso a certeza de sua libertação, conforme pensam Zahn,29 Schlatter30 e
Manson.31 Essa explicação é exagerada. Em nenhuma das demais histórias
de endemoninhados, “provas” como essa ocorrem. E, quanto ao possesso,
isso não era necessário para que ele tivesse certeza de sua libertação e de
que os demônios não voltariam.

d) De acordo com Greijdanus, a permissão que Jesus deu aos demônios para
entrarem nos porcos é, talvez, uma indicação de que seus donos eram
judeus e que estavam sendo punidos por criarem porcos.32 Sem entrar
na questão sobre se seria plausível que Jesus punisse aqueles homens que
98 A v in d a d o R e in o

haviam infringido a lei cerimonial com o afogamento de dois mil porcos,


tudo na história (inclusive os porcos) indica que isso ocorreu em território
gentio.33 Imaginar que os donos dos porcos eram judeus é apenas uma
especulação.

e) De acordo com Calvino, o pedido dos demônios foi uma tentativa deles
de levarem os habitantes daquela região a se voltarem contra Jesus, e a
permissão de Jesus foi um teste para os gerasenos. E também possível
- assim pensa Calvino - considerar essa permissão como uma punição.
Ele continua: Caeterum ut nulla nobis constet certa radio occultum tamen
Dei iudicium reverenter respirece etpia humilitate adorare convenit.MAssim,
Calvino hesita. Em nossa opinião, sua explicação acrescenta mais um mo­
tivo, o qual dificilmente, todavia, poderia ser a razão principal que levou
Jesus a dar a permissão. Certamente existe evidência, aqui, da superstição
dos pagãos, os quais estavam receosos da presença prolongada de Jesus.
Mas é bastante duvidoso que se possa inferir da permissão que Jesus deu
aos demônios que ele estava testando aqueles pagãos, visto que Jesus não
havia ainda operado entre eles.

f) A cura do homem possesso e o pânico dos porcos foram, posteriormente,


relacionados entre si, apesar de, historicamente, formarem uma coincidên­
cia acidental. E assim que pensam Robinson35 e Major.36 Consideramos
essa explicação puramente racionalista.37

g) O pavor dos porcos não pode ser explicado como resultado da entrada dos
demônios neles. Foi causado por um último espasmo do lunático, antes
da sua cura, segundo Gould.38 Essa explicação, também, tenta se livrar
do caráter sobrenatural do relato e não pode servir como uma exegese da
passagem.

16. O milagre como um sinal

A trégua mencionada acima, concedida ao Maligno e ao seu poder sobre a


terra, está estreitamente ligada tanto com o significado dos milagres de Jesus quan­
to com o caráter geral da dispensação da salvação inaugurada pela sua vinda.
Em nossa exposição, chegamos à conclusão39 de que os milagres de Jesus
têm um caráter escatológico como atos messiânicos de salvação. Isso se conclui
da ligação que o evangelho aponta entre as atividades do diabo e as doenças,
moléstias e desastres que ameaçam o homem. Isso também transparece do
fato de que a cura de pessoas doentes, a ressurreição de mortos, etc., deve ser
O REINO CHEGOU - SEU CARÁTER PROVISÓRIO 99

considerado como a renovação e a recriação de todas as coisas, manifestando a


chegada do reino dos céus.
Esses milagres, todavia, são apenas incidentais e não devem ser vistos, por­
tanto, como um início do qual o todo haverá de se desenvolver gradualmente,
mas como sinais do reino vindouro de Deus, pois as curas e as ressurreições de
mortos, realizadas por Jesus, têm apenas um significado temporal. As pessoas
que foram curadas e ressuscitadas podiam adoecer e, finalmente, morreriam de
novo. Quanto a isso, em nenhum lugar os milagres de Jesus servem a algum
propósito. Eles sempre são meios empregados por ele em sua atividade e sempre
permanecem subservientes à pregação do evangelho.
Os seguintes pontos devem ser assinalados:

a) Já por ocasião da tentação do Senhor no deserto pelo diabo, ficou evidente


que o poder miraculoso de Jesus era totalmente dirigido para a tarefa que lhe foi
confiada pelo Pai. Isso se aplica à tentação de transformar pedras em pães bem
como à sugestão de Satanás de que Jesus se lançasse do alto do pináculo do templo
confiado no poder protetor dos anjos. A questão, nesse caso, não era a escolha
entre duas ideias messiânicas diferentes, uma das quais foi proposta pelo diabo
a Jesus: um Messias que realizasse milagres, desejasse popularidade e recebesse
domínio mundial, enquanto o ideal contrário é supostamente representado por
Jesus, pois ele realmente opera milagres, recebe poder sobre o mundo e será
reconhecido por todos. M as ele receberá todas essas coisas apenas do modo que
foi determinado por Deus. Quando o Pai permite que sofra fome no deserto, ele
não deve evitar isso, mas deve depender da palavra onipotente de Deus, a qual
pode mantê-lo vivo mesmo sem pão. Do mesmo modo, ele não deve obter o
favor dos homens por meio de milagres e sinais. Ao contrário, deve exercer o seu
poder miraculoso em sujeição ao Pai e em subserviência à sua missão. Seguir no
caminho contrário seria, também para ele, tentar “o Senhor, teu Deus” (M t 4.7).
Nenhuma dessas coisas desacredita a sua dignidade como o Messias e o renovador
da vida. Já no deserto - depois da tentação - os anjos foram servi-lo (M t 4.11).
Isso revela que ele é o Cristo, o filho de Deus, que está acima de todos os anjos
(Hb 1). Nisso o reino dos céus é revelado, na renovação da terra, na libertação
do homem da maldição, de acordo com Marcos 1.13: “estava com as feras”.
Esse fato aponta para o estado de coisas do Paraíso (e também para o governo
messiânico), no qual os animais selvagens servem ao homem sem feri-lo (cf. Jó
5.23; Is ll.ó ss; 65.25). M as esse quadro é, igualmente, proléptico, revelando o
paraíso no deserto. O poder miraculoso de Jesus e o reino de Deus nele revelado
estão, ainda, provisoriamente preso a outras leis. Ele próprio obterá o poder no
céu e na terra somente por meio da humilhação, do sofrimento e da morte (M t
28.18). Esse curso do Messias também determina a manifestação do reino dos
100 A v in d a d o R e in o

céus. Os dois são correlatos não somente em sua manifestação, mas também em
seu caráter velado. E por isso que o velamento do Messias significa também o
velamento do sinal, como transparecerá mais claramente em nossa discussão
acerca da autorrevelação de Cristo como o Servo do Senhor.

b) À parte da modalidade especial da autorrevelação de Cristo e da nature­


za de sua própria missão messiânica, vemos que os milagres de Jesus, repetidas
vezes, recuam para os bastidores em comparação com a sua pregação. Eles não
têm qualquer objetivo próprio a não ser servir como evidência do seu poder.40
Isso fica evidente já no início do Evangelho de Marcos (Mc 1.36-38). Quando
o poder miraculoso de Jesus revelado em Cafarnaum faz com que as multidões
se ajuntem, ele se retira para a solidão. Ao retornar a pedido dos seus discípulos,
pois o povo o buscava, diz: “Vamos a outros lugares, às povoações vizinhas, a fim
de que eu pregue também ali, pois para isso é que eu vim” (Mc 1.38). Jesus declara
claramente o propósito de sua missão messiânica (cf. Lc 4.43, epi touto apestalen).
Contudo, as palavras “pois para isso é que eu vim” ou “fui enviado” não devem ser
entendidas como se referindo exclusivamente à sua pregação,41 cf. Marcos 1.39
(o contexto mostra que a ênfase era na sua pregação em todos os lugares). Porém,
em oposição ao desejo de seus discípulos de levá-lo de volta a Cafarnaum, onde
as multidões estavam agitadas por causa de suas curas, Jesus explicitamente se
recusa a ser detido por tal comoção. Seu objetivo mais importante e acima dos
demais não é a cura do maior número possível de pessoas, com o objetivo de
manifestar o reino dos céus sobre a terra, mas sua tarefa real é a pregação.42Apesar
de estarem estreitamente ligados com a natureza e o significado da pregação, os
milagres eram apenas um fenômeno secundário; ou seja, eram sinais da verdade
da sua proclamação de que o reino dos céus havia chegado.

c) Esse é o motivo pelo qual há uma estreita ligação entre um milagre ope­
rado por Jesus e z je d o povo. Eles são mutuamente dependentes. Por um lado, o
milagre serve para fortalecer a fé na missão e na autoridade de Jesus (cf., p. ex.,
M c 2.1-2). Por outro, não há lugar para a ocorrência de um milagre onde este
não seja esperado em fé. O exemplo mais impressionante desse fato é a declara­
ção em Marcos de que Jesus “não pôde fazer ali (em Nazaré) nenhum milagre,
senão curar uns poucos enfermos, impondo-lhes as mãos” (Mc 6.5). A causa foi
a incredulidade. Esse fato tem sido explicado como se Jesus dependesse psiqui­
camente daqueles a quem deveria curar.43 Porém, noutro contexto, está registrado
que Jesus também realizou milagres a distância (cf. M t 8.13; Jo 4.50). E, quanto
aos habitantes de Nazaré, fica evidente, em Lucas 4.23 (cf. também M c 6.2),
que os habitantes esperavam e desejavam os milagres de Jesus. Quando, todavia,
ele realiza poucos milagres (ou nenhum), a causa registrada é que os moradores
O REINO CHEGOU - SEU CARÁTER PROVISÓRIO 101

de Nazaré não creram nele (Lc 4.22) e mesmo se ofenderam com o que ele fazia
como se fosse algo indigno dele (Mc 6.3-4). Portanto, aqui, a questão não é se
Jesus possui o poder de operar milagres, mas se ele estava livre para operar milagres
em todas as circunstâncias. Onde não há fé, não há lugar para um milagre. Ele
não podia operar milagres ali porque, em tais circunstâncias, o milagre tomaria
o caráter de um ato de poder sem o pano de fundo do qual os milagres derivam
seu significado e que permite que sejam compreendidos. As palavras “não pôde
lazer”, em Marcos 6.5, portanto, devem ser entendidas como uma impossibi­
lidade dentro do escopo da tarefa e da atividade de Jesus.44 Aparentemente, é
nesse sentido, também, que a versão de Mateus deve ser entendida, quando ele
diz simplesmente que Jesus não fez muitas obras miraculosas ali por causa da
incredulidade dos moradores da cidade (M t 13.58).
O que foi dito acima também explica por que, em mais de uma ocasião, Jesus
se recusou a dar um sinal quando desafiado por seus inimigos. Isso se aplica não
somente a ele pela razão mencionada no ponto (a) acima (cf. M t 4.1-7; 27.39ss
e paral., como o desafio feito ao pé da cruz por seus adversários), mas também de
modo geral (M t 12.38ss; 16.1ss, p. ex., o pedido de um sinal, cf. Jo 7.3ss; IC o 1.22).
A palavra “sinal” aqui (semeion) significa, aparentemente, a inequívoca prova divina
(“do céu”) de que Jesus realmente agia com poderes messiânicos e divinos. Como
tal, os adversários de Jesus consideravam seus milagres como insuficientes. Isso
revela que não somente aos olhos dos inimigos explícitos de Jesus, mas também
da multidão em geral, os seus milagres não eram vistos como provas concretas
da sua missão e da vinda do reino. Às vezes, as multidões duvidavam (cf. M t
12.22-23), pois o verdadeiro significado do milagre só era discernido quando a
fé estava presente. Consequentemente, embora Jesus, em geral, não deixasse de
realizar milagres perante o povo, o sentido próprio e profundo destes permanecia
encoberto para a maioria. A decisão com respeito a Jesus não se encontrava nos
milagres como tais, mas no segredo de sua pessoa e de sua pregação.
Ele rejeitava com palavras fortes e cheias de autoridade o desafio daqueles
que, abertamente, se opunham a ele (cf. M t 8.12, “em verdade vos digo que a esta
geração jam ais ,s se dará sinal algum”). Em Mateus 16.2-3 (pelo menos de acordo
com manuscritos muito antigos), Jesus os repreende por não poderem “discernir”
“os sinais dos tempos” (cf. Lc 12.54-56). Isso mostra que há realmente sinais que
indicam que o tempo em que eles viviam era um tempo especial, qualificado,
um momento decisivo no curso da História. Porém - como uma geração ímpia
e adúltera - eles eram incapazes de discernir o significado decisivo dos sinais,
uma vez era necessário ter fé para isso. E por isso que Jesus não lhes daria outro
sinal senão o sinal do profeta Jonas. Esse dito enigmático nos foi dado de forma
mais elaborada em Mateus 12.40. Ali, Jesus prediz que o Filho do Homem
permanecerá no coração da terra do mesmo modo que Jonas esteve no ventre
102 A v in d a d o R e in o

do monstro do mar por três dias e três noites.46 E esse é o sinal que será dado a
“esta geração”.
Quanto a esse dito, é verdade que somente os que têm ouvidos para ouvir
podem entendê-lo. O seu sentido, entretanto, é inequivocamente percebido à luz
do seu cumprimento. Nesse caso, também, é evidente que a revelação do reino
está ligada à do Messias. Mas, antes de tudo, ele é aquele que tem de sofrer,
morrer e ressuscitar antes de entrar em sua glória como o Filho do Homem e
Juiz do mundo. Daí, por esse motivo, ele mesmo, a vinda do reino e os milagres,
só podem ser percebidos pela fé.

d) Tudo isso mostra claramente o sentido dos milagres operados por Jesus.
Eles indicam a vinda do reino e também são sinal tanto da veracidade do poder
messiânico de Jesus como do conteúdo da sua pregação. M as, como sinais do
“tempo” (kairos) iniciado com a vinda de Cristo, serão entendidos somente pela
fé, E possível escandalizar-se com respeito a Jesus e sua pretensão, não obstante
seus milagres (Mc 6.2-3; M t 11.2-6). Isso decorre do fato de que o reino, em
seu irromper visível e palpável (os milagres), seja somente de caráter provisório.
Os milagres indicam a vinda do reino e apontam para a palingênese cósmica
mencionada por Jesus em Mateus 19.28. M as eles não são o início dessa palin­
gênese, como se ela consistisse no término dos milagres. O fato de incorporar a
ressurreição dos mortos e a renovação do mundo indica que ela não pertence à
época atual. Ela até mesmo pressupõe a precedência da catástrofe cósmica (cf.
M t 24.29,35,39; 2Pe 3.7,10,12,13; Hb 12.26-29). É por isso que os milagres
têm somente um significado incidental. Esse é o sentido de autoridade dada
por Jesus aos discípulos para curar os doentes, ressuscitar os mortos, purificar os
leprosos, expelir demônios (M t 10.1, etc.). M ais ainda, isso deve também signi­
ficar que eles não recebem a promessa de levar o domínio de Satanás a um fim
“antes do tempo” e nem de introduzir um estado de salvação e felicidade na terra.
M as eles são instruídos a mostrarem os sinais da absoluta competência e poder
de Cristo, e, assim, espalharem e confirmarem a fé na vinda do reino em Jesus
Cristo. Isso eles devem fazer dentro do escopo da obra messiânica de salvação
realizada por Cristo e em sujeição ao modo pelo qual essa obra se manifesta na
época do presente mundo.
Isso significa que um milagre é tanto uma demonstração do poder de
Jesus sobre o Maligno quanto um sinal da futura palingênese. M as isso só tem
importância em associação com a pregação do evangelho e em subserviência a
ele. Em nenhum lugar dos Evangelhos encontramos um milagre que tenha uma
função independente ou transcendente separada da pregação do evangelho. No
evangelho, qualquer outra tentativa de revelar os poderes miraculosos de Cristo
é originada pelo diabo e por aqueles que tentam a Cristo (peirazontes) (M t 16.1;
O REINO CHEGOU - SEU CARÁTER PROVISÓRIO 103

M c 8.11; Lc 11.16), 47 e é rejeitada de maneira enérgica e firme por ele (cf.


também Lc 9.54-55). Para ele, essa tentativa significa um desvio do caminho
determinado pelo Pai, uma antecipação do tempo que ainda não chegou. E por
isso que um milagre, em si mesmo, não é uma salvaguarda contra o julgamento
final nem necessariamente concede participação no reino dos céus àqueles a
quem aconteceu (cf. Lc 17.17-19: os nove leprosos que não deram glória a Deus)
nem àqueles por meio de quem o milagre foi operado (cf. M t 7.22: “em teu nome
não expelimos demônios, e em teu nome não fizemos muitos milagres?”). E
por esse mesmo motivo que Jesus responde àqueles que retornaram a ele de sua
viagem missionária com um relatório das obras maravilhosas realizadas em seu
nome desta maneira: “Não obstante, alegrai-vos, não porque os espíritos se vos
submetem, e sim porque o vosso nome está arrolado nos céus” (Lc 10.20). E
verdade que a fórmula absoluta usada aqui para expressar o contraste deve ser
compreendida num sentido relativo (veja esse estilo semítico, p. ex., em Jo 6.27),
pois há também razão para alegrar-se com o poder de Cristo sobre Satanás.
M as o exercício desse poder não dá a ninguém garantia de cidadania no reino
dos céus. Essa cidadania depende de outra coisa, ou seja, fé na proclamação do
evangelho e em Jesus como o Cristo (cf. v. 21ss.).

17. Falando por parábolas

As parábolas deJesus concernentes ao reino dos céus elucidam explicitamente e


de um modo multiforme aquilo que poderia ser inferido apenas indiretamente
do evangelho acerca da modalidade do reino dos céus que havia começado com
a vinda de Jesus. Começaremos com o sentido histórico-redentor e a explicação das
referidas parábolas.
Ultimamente, a concepção de que as parábolas são formas usadas para
expressar pensamentos e lições morais válidos universalmente tem sido abando­
nada. Por sua vez, essa interpretação, defendida especialmente na famosa obra
de Jülicher,48 foi uma reação à explicação alegórica desenfreada que atribuía um
sentido simbólico a todas as imagens e aspectos nas parábolas, levando, com
muita frequência, aos resultados mais fantásticos. Em oposição a essa tendência,
Jülicher rejeitou qualquer exegese alegórica, mesmo as dadas no próprio evangelho,
como na explicação da parábola do semeador (M t 13.18-23 e paral.), do joio e
do trigo (13.36-43) e da rede (13.49-50), etc. Ele quer interpretar as parábolas
como ilustrações de uma realidade de vida observável universalmente, da qual
também uma lição geral pode ser extraída para nossa vida moral e espiritual.
Esse conceito estava de acordo com a visão liberal do reino dos céus pregada por
Jesus e, consequentemente, levava a uma explicação ética muito superficial das
104 A VINDA DO RETNO

parábolas (p. ex., a parábola do senhor e dos servos é vista como uma exortação
para que se cumpra fielmente as obrigações; a parábola do rico louco é uma
imagem da dependência do homem; a parábola dos talentos significa que não
existe recompensa sem esforço; etc.).
A visão escatológica consistente deu às parábolas uma interpretação intei­
ramente escatológica. Ela tentou deixar claro que Jesus fala acerca da certeza do
reino vindouro, especialmente no conhecido capítulo das parábolas, Marcos 4,
e passagens paralelas.49 Essa visão levou ao desenvolvimento da noção de que
explicações generalizantes e atemporais, como, por exemplo, as de Jülicher, não
fazem justiça ao evangelho. Desde então, o foco tem sido a pergunta sobre o
significado real das parábolas dentro do escopo das pregações e atividades de
Jesus. Deve ser feita, aqui, uma menção especial a The Parables of the Kingdom,
de C. H. Dodd, já citada por nós.50 Embora tenha uma visão predominantemen­
te ética do conceito do reino, ele não considera as parábolas como padrões de
uma moralidade absoluta e sim como uma explicação detalhada da modalidade
da dispensação da salvação que se iniciou com a vinda de Cristo. Também em
Joachim Jeremias encontramos uma nova tentativa de “colocar as parábolas no
contexto da vida de Jesus”, como ele mesmo diz na sua descrição da interpretação
de Dodd. Ele seguiu Dodd nisso, apesar de sua própria visão do reino dos céus
ser bastante diferente da de Dodd.51 E verdade que tanto Dodd quanto Jeremias
sustentam que várias das parábolas que nos chegaram só podem ser explicadas à
luz da situação da igreja cristã posterior, mas, em todas as parábolas, há mais ou
menos um eco da situação histórica da vida de Jesus.
Embora, por um lado, nem sempre seja possível indicar os detalhes da
situação em que as parábolas foram contadas, fica claro, por outro lado, que
devemos julgar o significado delas de acordo com o conteúdo geral da pregação
de Jesus, ou seja, como ilustrações do reino dos céus proclamado por ele. Como
tal, as parábolas são frequentemente introduzidas com a fórmula “o reino de
Deus (dos céus) é semelhante...”, etc. Assim, Marcos 4.26 (a da semente); 4.31
(a do grão de mostarda; cf. Lc 13.18) e Lucas 13.20 (a do fermento); em Mateus
13.44 (a do tesouro escondido num campo); em 13.45 (a da pérola de grande
valor); 13.47 (a da rede); em 18.23 (a da remissão de pecados); em 20.1 (a dos
trabalhadores na vinha); em 22.2 (a do banquete de casamento); em 25.1 (a das
virgens prudentes e as néscias), cf. também 25.14 (a dos talentos). M as mesmo
que essa fórmula não ocorra, as parábolas não podem ser consideradas como
uma parte independente da pregação de Jesus para propagar verdades morais de
caráter geral ou princípios dogmáticos. Pelo contrário, elas estão estreitamente
ligadas com o caráter histórico-redentor especial da missão e da pregação de
Jesus. As parábolas ilustram as diferentes facetas de sua pregação. Elas podem
servir para elucidar as ordenanças de Jesus ou podem apontar as deficiências
O REINO CHEGOU - SEU CARÁTER PROVISÓRIO 105

dos oponentes, ou, ainda, incentivar os discípulos a permanecerem vigilantes e


expectantes. Elas também formam um elemento importante na proclamação do
reino como uma realidade presente, dando-nos mais informação revelacional-
histórica sobre ele.32
Isso é aplicável especialmente às parábolas de Marcos 4 e Mateus 13 e
em partes relevantes em Lucas. Aqui, mais uma vez, o propósito das parábolas,
como tais, não é mencionado. Contudo, é inegável que, nessas parábolas, Jesus
penetra mais profundamente na modalidade da vinda do reino de Deus. Já ressalta­
mos que há um problema com respeito à dialética especial das palavras de Jesus
concernentes ao reino como algo que já chegou e que, ao mesmo tempo, deve ser
esperado, como uma realidade que é, ao mesmo tempo, presente e futura. Isso era
um problema significativo para os discípulos. Nessas parábolas, esse problema é
abordado; torna-se o principal motivo para elas. Portanto, teremos de considerar
essas parábolas do ponto de vista da história da salvação.
E isso o que Schweitzer e Dodd fazem também. Vamos nos restringir a
esses dois pontos de vista diametralmente opostos, cada um dos quais com suas
próprias pressuposições quanto à vinda do reino. De acordo com Schweitzer e
muitos outros, Jesus quer explicar nessas parábolas de que modo o reino virá', já
de acordo com Dodd, como o reino j á veio. Em nossa opinião, um exame mais
cuidadoso das parábolas mostrará que nenhuma dessas opiniões faz justiça ao
conteúdo das parábolas. E exatamente o caráter complexo da revelação do reino
- que é tanto presente quanto futuro —que é o objeto real das parábolas.
E particularmente importante para a compreensão desse sentido específico
das parábolas observar o que, de acordo com os três Evangelhos sinóticos, Jesus
diz a respeito do seu propósito ao falar por meio de parábolas ao responder a uma
pergunta feita pelos discípulos. “Por que lhes falas por parábolas?” (M t 13.10). De
acordo com Lucas 8.9, eles queriam saber o significado da parábola do semeador,
enquanto em Marcos 4.10, é dito que eles perguntaram de maneira geral sobre
o sentido de “todas as parábolas”. Essa pergunta dificilmente significaria que as
parábolas, como forma de ensino, eram um fenômeno desconhecido ou estranho
para os discípulos ou para a multidão, pois Jesus adota um método de ensino que
era muito favorecido pelos rabinos53 como uma ilustração e uma explanação que
visavam aguçar a mente do ouvinte. Este, por sua vez, deveria possuir a percepção
fundamental requerida do sentido daquilo que é ensinado pelo mestre (cf. “Quem
tem ouvidos [para ouvir], ouça” - M t 13.9; M c 4.9; Lc 8.8ss.).54 Os discípulos
não estão preocupados com a forma da parábola como tal, mas com a razão pela
qual Jesus não expressava seus pensamentos à multidão de maneira direta, sem
empregar alegorias. Nessa mesma ocasião, os discípulos demonstraram estar em
dúvida quanto ao propósito da parábola do semeador (Lc 8.9; cf. M c 4.13, “Não
entendeis esta parábola?”).
106 A v in d a d o R e in o

Jesus responde ao questionamento deles: “A vós outros é dado conhecer os


mistérios do reino dos céus (Marcos: “A vós outros vos é dado conhecer o mistério
do reino de Deus”), mas àqueles não lhes é isso concedido... por isso, lhes falo
(Lucas: “aos demais”) por parábolas (Marcos: “mas, aos de fora, tudo se ensina
por meio de parábolas”); porque (Marcos e Lucas, “para que”) vendo, não veem;
e, ouvindo, não ouvem, nem entendem” (M t 13.13).
A maioria dos comentaristas, por razões preconceituosas e sem levar em
conta considerações críticas a respeito do texto, não considera que essas palavras
sejam originais nesse contexto.ss De acordo com eles, essas palavras perturbam
a coerência do pensamento. Todavia, em nossa opinião, essas palavras trazem
a chave para a compreensão do objetivo especial que Jesus tinha com essas
parábolas. Pois essas palavras declaram que o sentido das parábolas só pode ser
percebido por aqueles a quem o mistério (ou os mistérios) do reino tem sido (foi)
dado (a conhecer). Isso não pode significar que o reino dos céus, como objeto
da promessa e da expectativa profética, é um mistério desconhecido para os que
“estão de fora”. Pelo termo “mistério” ou “conhecimento dos mistérios” do reino
dado (perfectum) aos discípulos em contraposição à multidão, se quer dizer o
conhecimento especial e real do reino, como foi revelado na vinda de Jesus. E o
conhecimento que, em outras passagens, também é indicado por Jesus como
um dom especial de Deus aos discípulos, como resultado de revelação divina
(M t 11.25, “Graças te dou, ó Pai, Senhor do céu e da terra, porque ocultaste
estas coisas aos sábios e instruídos e as revelaste aos pequeninos” e 16.17, “não
foi carne e sangue que to revelaram, mas meu Pai, que está nos céus”). Acima de
tudo, é o conhecimento da salvação presente em Cristo, o conhecimento de que o reino
chegou emJesus como o Cristo.56
Tudo isso é expresso e confirmado ainda mais claramente em Mateus 13.16,
quando, em oposição à multidão, os discípulos são chamados de bem-aventurados
porque veem e ouvem, o que, de acordo com o versículo 17, se refere ao início da
salvação que muitos profetas e homens justos desejaram ver, mas em vão.57
Esse conhecimento do mistério do reino, ou seja, essa percepção do cum­
primento que começou com Cristo, é o grande pré-requisito para que alguém
seja capaz de compreender as parábolas e tenha permissão para isso. Sem esse
conhecimento, uma parábola permanece um traje verbal para pensamentos que
podem ser associados a muitas coisas instrutivas em si mesmas, mas cujo propósito
histórico-redentor específico (ou seja, aquele que tem a ver com a vinda do reino) não
pode ser compreendido.
O fato de Jesus falar por parábolas tem um efeito duplo: de um lado, é uma
revelação; de outro, oculta alguma coisa. Isso está em harmonia com a totalidade
do caráter e da modalidade da revelação do reino concedida na vinda de Jesus.
Esse falar por parábolas, num sentido particular, é até mesmo indicado como o
O REINO CHEGOU - SEU CARÁTER PROVISÓRIO 107

cumprimento de profecia,58 cf. Salmo 78.2, que é explicado em Mateus 13.35


desta maneira: “Abrirei em parábolas a minha boca; publicarei coisas ocultas
desde a criação do mundo”.
O Salmo 78.2 também menciona “parábolas” (hebr.: mashal\ LXX:parabolai),
mas no sentido mais geral de provérbio, dito, pronunciamento poético, pois nesse
salmo o poeta relata a história do antigo Israel em declarações curtas e concisas. Essa
história contém “segredos”, isto é, tem um propósito e um pano de fundo secretos.
Esses “segredos” devem ser revelados por meio desse “dito” em seu sentido real,
isto é, revelado àqueles que têm a capacidade espiritual para compreendê-los.
Nesse sentido, as palavras de Jesus são o cumprimento das profecias. Em
suas palavras ele expressa (isto é, coloca em palavras) os segredos do início. Ele
revela a realidade e o cumprimento do quefo i pregado muito tempo atrás. E esse o
sentido de sua palavra e também de suas parábolas: elas têm como objetivo levar
ao coração dos ouvintes que o passado foi cumprido no presente e o modo como
isso aconteceu; ou, para colocar de maneira messiânica, de que maneira a salvação
do reino tornou-se uma realidade presente.59
Esse mesmo caráter histórico-redentor do que Jesus ensina por parábolas
pode ser inferido da conclusão do sermão das parábolas em Mateus 13, nos
versículos 51 e 52. Nesse caso, Jesus primeiro pergunta a seus discípulos se eles
compreenderam “todas estas coisas”. E quando eles respondem afirmativamente,
Jesus fala do escriba instruído60 no reino dos céus ( matheteutheis tei basileiai toon
ouranaan), que é semelhante ao pai de família “que tira do seu depósito coisas
novas e coisas velhas”. Muito importantes, nessa passagem, são as coisas novas
que são até mesmo mencionadas em primeiro lugar. Isso não se refere somente
à forma de instrução, mas especialmente ao seu conteúdo.61 Apesar de as coisas
velhas não serem descartadas, as coisas novas agora têm prioridade. Elas são
as coisas novas que vieram com Jesus,62 as coisas novas da divina economia da
salvação.63 Elas, portanto, consistem na realização do que havia sido prometido
e esperado desde tempos antigos. E por isso que o escriba versado no reino dos
céus tem que pregar tanto as coisas velhas como as novas, tanto profecia quanto
cumprimento. No tesouro do qual retira as coisas, ele tem à sua disposição um
novo tema: a vinda do reino no Messias. E nisso que se constitui a grande dife­
rença entre ele e os escribas que até então haviam instruído o povo a respeito do
reino, mas que podiam falar dele apenas em termos do futuro.
Tudo isso mostra que grande ênfase é colocada na presença do reino dos
céus, especialmente nas parábolas. N a sua instrução aos discípulos, Jesus lhe dá
um sentido mais profundo na realidade do que começou com ele. Eles mesmos
estão preparados para a tarefa de serem pregadores desse cumprimento.
Por outro lado, as parábolas indicam a maneira velada especial na qual o
reino veio. A sabedoria oferecida nele, os mistérios revelados nele, só são passíveis
108 A v in d a d o R e in o

de serem conhecidos por aqueles que tiveram o privilégio de compreender o


segredo fundamental, isto é, a vinda do reino em Cristo. Aos que estão de fora
e que basicamente não sabem de que se trata, essa maneira de falar do reino
tende a manter o segredo velado. Tanto Marcos como Lucas expressam esse
pensamento de maneira muito incisiva: aos de fora, tudo é contado em parábolas
para que eles, vendo, não vejam, etc. Essa é uma citação de Isaías 6.10, em que
a sentença de endurecimento dos corações é pronunciada contra o povo incré­
dulo e esse propósito é também indicado como sendo o propósito da pregação. A
mesma punição é dada àqueles que não creem em Cristo e na sua pregação. Eles
são impedidos de obter um entendimento mais profundo e que está implícito
nas parábolas. Essa cegueira é um propósito porque não se baseia somente na
incredulidade, mas é causada por ela (Mateus traz porque em vez de para que).
Essa passagem não significa que, aos de fora, é negada qualquer possibilidade
de crer (cf., p. ex., Lc 19.42). Eles somente não obtêm a oportunidade de serem
mais instruídos no segredo do reino. Quando Mateus, em 13.34, confirma mais
uma vez que Jesus não disse nada à multidão exceto por parábolas, ele não quis
dizer que Jesus se havia isolado completamente deles ou que havia se retirado
espiritualmente deles. Todo o tempo em que Jesus esteve entre o povo, todas as
suas ações, sua pessoa, seus milagres e seu contínuo chamado ao arrependimento
e conversão foram uma pregação para eles, até o fim (cf., p. ex., Lc 23.28,41-43).
Porém, onde quer que nenhuma mudança fundamental tenha ocorrido e onde os
corações permaneceram intocados, as palavras de Jesus permanecem enigmáticas
em muitos aspectos, e ele lhes deu somente respostas indiretas e veladas quanto
a si mesmo, quanto ao reino que ele proclamava. Essas respostas continuaram
enigmáticas à luz da persistente incredulidade deles. Esse aspecto caracteriza não
somente as parábolas, mas os ditos enigmáticos de Jesus, como, por exemplo,
Mateus 16.4, o dito acerca de Jonas; cf. também 21.26, “nunca lestes: D a boca de
pequeninos e crianças de peito tiraste perfeito louvor?” também a resposta evasi­
va, por exemplo, em 21.23-27 (a questão sobre a autoridade de Jesus); a disputa
obscura, por exemplo, 22.41-46 (o Filho de Davi e o Senhor de Davi); e outras.
Em tudo isso não há dúvida do julgamento divino endurecendo o coração deles
e ocultando a verdade, enquanto, ao mesmo tempo, a fé também é um dom da
graça de Deus, da sua soberana boa vontade somente (cf. M t 11.25-26, em que
Jesus agradece ao Pai porque “ocultaste estas coisas aos sábios e instruídos e as
revelaste aos pequeninos”. E Cristo acrescenta: “Sim, ó Pai, porque assim foi do
teu agrado”; veja também M t 22.14). M as nem a predestinação divina e nem o
milagre da fé como um dom (M t 11.25; 13.11; 16.17) eliminam o enigma e a
responsabilidade da incredulidade (cf., p. ex, M t 11.20-24; 23.37).
Tudo isso, especialmente o falar em parábolas e tudo o mais que pode ser
equiparado com elas, indica a específica modalidade da revelação do reino dos
O REINO CHEGOU - SEU CARÁTER PROVISÓRIO 109

céus que começou com a vinda de Jesus. O reino chegou, o Messias foi revelado,
mas isso só pode ser discernido pela fé, o que eqüivale a dizer, pela graça de Deus.
Um dia isso será mudado. Então, até mesmo os inimigos verão o reino e terão
de reconhecer o Filho do Homem (M t 23.39; 26.64). O método da pregação
do evangelho está de acordo com essa modalidade especial, embora, num sen­
tido diferente, antes e depois da morte e da ressurreição de Jesus (cf. M t 10.27;
16.20; 17.9 e outros lugares),64 mas sempre de tal modo que a pregação do reino
tem um efeito duplo, isto é, de revelar e de ocultar, de graça e de julgamento (cf.
também M t 10.12-15).

18. O semeador

Os conteúdos das parábolas, mais do que sua forma, esclarecem o sentido e


o caráter especial do reino que teve o seu início com a vinda de Cristo. Pois, como
parábolas, é de sua natureza servir de explicação e de argumento65 para aqueles
que têm ouvidos para ouvir.66 Especialmente nos capítulos bem conhecidos que
as contêm (p. ex., M t 13, M c 4) e nas passagens correspondentes em Lucas, as
parábolas foram contadas para elucidar o relacionamento da proclamação de Jesus
a respeito da presença do reino, por um lado, e com a demora do julgamento,
por outro. Esse relacionamento estava muito longe de ser transparente para os
discípulos.
A parábola do semeador tem prioridade sobre as outras não somente como
a primeira da série, mas por causa de seu propósito. Em muitos sentidos, ela é
o ponto de partida e a base para se entender todas as demais parábolas que se
seguem.67 Isso fica evidente também pela pergunta que Jesus fez aos seus discí­
pulos: “Não entendeis esta parábola e como compreendereis todas as parábolas?”
(Mc 4.13).68 Nas parábolas que seguem, encontramos as figuras do lavrador,
do campo, da semente, etc., repetidas vezes. Elas são, em muitos sentidos, uma
elaboração da primeira parábola.
D a pergunta feita por Jesus, de acordo com Marcos 4.13, transparece (do
mesmo modo que em Lc 8.9) que os discípulos não entenderam a parábola.
Esse fato traz à luz que seu propósito não era uma instrução geral pedagógica,
psicológica ou mesmo homilética acerca de pregadores e ouvintes e os riscos que
existem durante o processo de ouvir. Se a parábola não tivesse outro propósito
que não fosse o de transmitir esse sentido geral, então a falta de compreensão dos
discípulos com respeito a um simbolismo tão simples não nos deixaria perplexos.
M as a parábola dificilmente serviria como meio para manter seu significado um
segredo “para os que estão de fora”. Uma simples palavra pode “trair” seu signi­
ficado! O ponto fundamental da parábola, no entanto, é algo muito especial: o
110 A v in d a d o R e in o

pontofundamental é o elemento histórico-redentor; isto é, a relação entre os aconteci­


mentos descritos na parábola e a revelação do reino dos céus.69 Esse relacionamento
se mantém obscuro para os discípulos, embora tenham sido privilegiados com a
capacidade de entender as coisas do reino (isto é, a presença do reino). E, por­
tanto, a revelação desse fato é a parte mais essencial da explicação acrescentada
por Jesus à parábola.
Tem sido observado com justiça que o mistério da parábola não reside em
sua obscuridade ou complexidade, mas na sua própria simplicidade.70 E isso vale
não somente para a parábola propriamente dita, mas também para sua explicação.
O único fato espetacular é que nessa parábola (i.e., na semeadura da semente pelo
semeador, na perda de uma parte da semente, na falta de frutificação de outra
parte, etc.) o ponto fundamental verdadeiro é a revelação do reino dos céus, de
tal modo que a parábola é realmente sobre o mistério do reino.71
N a verdade, esse fato é confirmado pela simples declaração: “O semeador
semeia a palavra” (Mc 4.14), ou, de acordo com o registro de Lucas, “A semente
é a palavra de Deus” (8.11). Pois é exatamente essa palavra que contém o mis­
tério do reino. E por isso que Mateus diz nesse caso “a palavra do reino”. Essa
expressão significa a palavra de Deus, no sentido que ela tem na pregação de Jesus
acerca do reino. E a “palavra”, a “palavra de Deus”, a “palavra do reino,” a palavra
de poder messiânica decisiva que Cristo, como o Filho do Homem, tinha para
dizer sobre a terra e na qual eo ipso o reino é revelado e chegou.72 E o fato de que
isso pode ser comparado a uma semente e de que aquele que fala a palavra pode
ser comparado a um semeador é a instrução acerca da modalidade do reino dos
céus que chegou com e em Cristo.73 E esse o propósito histórico-redentor da
parábola. Seu aspecto espetacular é sua simplicidade, a qual é a confirmação de seu
pressuposto incompreensível: este é o caminho do reino de Deus, “um semeador
saiu a semear - e nada mais; e isso significa o mundo novo de Deus”.74
O que isso sugere com respeito ao significado e à manifestação do reino dos
céus proclamado por Jesus pode ser inferido da elaboração da parábola. Um exame
mais cuidadoso mostra que ela enfatiza duas coisas: sua falta de frutos e os frutos
da obra do semeador. A primeira é demonstrada pela perda da semente semeada
à beira do caminho, nas rochas e em meio aos espinhos. Esses são os obstáculos
atribuídos a Satanás na explicação (M t 13.19; Mc 4.15; Lc 8.12); eles são devidos
à condição superficial do coração humano (solo rochoso) e à sua mentalidade
mundana (espinhos). Eles não podem ser atribuídos à falta de cuidado da parte
do semeador,75 mas indicam a realidade do “caminho do mundo”. E assim que as
coisas acontecerão quando a semente for semeada (elas não podem ser evitadas);
é assim que são as pessoas às quais a palavra vem.
Contudo, a parábola não somente esclarece as dificuldades e a modalidade
velada da revelação do reino. Ela não fala somente de sementes caindo à beira
O REINO CHEGOU - SEU CARÁTER PROVISÓRIO 111

do caminho, sobre as rochas e entre os espinhos e, desse modo, tornando-se in­


frutíferas. Ela fala também de sementes que caem em boa terra e que frutificam
de acordo com a lei de uma multiplicação grande e maravilhosa. Tem sido dito
que, após a tripla descrição elaborada da perda da semente, a boa terra parece
ser mais ou menos uma exceção. O quadro da perda de três quartos da semente
é supostamente um pouco grotesco, mas talvez seja isso mesmo que Jesus quis
dizer, pois o resultado habitual da Palavra de Deus é nulo.76 Em nossa opinião,
essa opinião é exagerada. A parábola não diz que três quartos da semente perma­
neceram infrutíferos. Não nos é dada nenhuma proporção. Ao lado das muitas
possibilidades de não haver colheita, ou mesmo de haver uma colheita ruim,
encontramos a possibilidade maravilhosa de uma colheita a trinta, sessenta e
a cem por um. Pode até mesmo ser verdade que a pregação do evangelho seja
frequentemente infrutífera (M t 7,13ss; 22.14), mas a parábola do semeador
não é pessimista. Ela aponta para o maravilhoso poder germinante da semente
juntamente com as possibilidades de fracasso. Na parábola, Jesus certamente não
quer atrair nossa atenção exclusivamente para a manifestação oculta do reino
ameaçada e limitada por forças de todos os tipos; ele também aponta para sua
operação e seus frutos miraculosos. Estes podem estar ocultos até mesmo dos
discípulos, mas eles virão, com certeza, com uma abundância impressionante!
Essa é a intenção da parábola, não somente equilibrar as expectativas e abrir os
olhos dos discípulos para o caráter provisório da dispensação da salvação iniciada
com Cristo, mas também reavivar as suas esperanças e dirigir a atenção deles
para o que está por vir. Ela contém uma rica promessa para o futuro e também
para a futura obra dos apóstolos.
Resumindo, podemos dizer que, na instrução básica dessaparábola, Jesus dá uma
percepção muitofundamental do reino que começou com a sua vinda. Aqui se torna
claro o caráter específico da pregação de Jesus sobre o reino. Ela consiste na
revelação de que a vinda escatológica de Deus ao mundo, que conquista todas as
coisas, segue o caminho da semente. E, além disso, que o Messias, a quem Deus
deu toda autoridade e poder, assume a figura do semeador.77 É nesse caminho que
virá o tempo da colheita, isto é, a consumação. Quem quer que entenda isso, não
somente conhece o mistério (que a salvação chegou), mas também o significado
da revelação escondida. Apesar do poder de Satanás, da dureza dos corações,
dos cuidados do mundo e da ilusão das riquezas, a colheita está preparada pelo
trabalho poderoso de Deus e pela obra de Cristo.
Essa interpretação da parábola enfatiza seu caráter histórico-redentor. Ela
diverge das interpretações mais recentes, que também sublinham esse sentido
específico, mas que são baseadas ou numa concepção exclusivamente presente
do reino dos céus ou numa interpretação totalmente futura. Uma análise mais
cuidadosa, todavia, mostra que é precisamente à luz dessa parábola que nenhuma
112 A v in d a d o R e in o

dessas duas perspectivas é sustentável e que a interpretação defendida no § 14,


de que o reino é tanto presente quanto futuro, é claramente confirmada nessas
parábolas.
A primeira perspectiva é vista em Dodd, de acordo com quem, na parábola
do semeador e na parábola da semente (Mc 4.26ss), Jesus quer ensinar aos seus
ouvintes que, com sua vinda, o tempo da colheita chegou. Existem obstáculos de
todos os tipos, é verdade, mas Jesus oportunamente, nesse caso, quis deixar bem
claro que nenhum lavrador atrasa a colheita por causa de alguns trechos ralos no
campo. O sentido, portanto, é que existe uma safra abundante e que Jesus está
preocupado especificamente com colhê-la.78
Em oposição a esse entendimento de Dodd, a outra interpretação sustenta
que, nessas parábolas, há somente a questão do reino futuro de Deus. Nesse
sentido, Michaelis pensa que, por semente (a palavra), Jesus não quer dizer a
presença do reino, mas somente o anúncio da vinda do reino. Supostamente, o
propósito do todo é funcionar como uma exortação aos discípulos para que se
apliquem e perseverem, pois, apesar de todas as obstruções, o reino virá, com
certeza, no tempo aprazado.79
Todavia, por causa da sua parcialidade, as duas perspectivas não fazem justiça
à parábola. Isso é visto mais claramente na interpretação de Dodd. Sua descrição
“da situação” é correta: os discípulos são mais esclarecidos com relação à presença
do reino. Mas essa presença não deve ser buscada na safra, mas na semeadura. Não é
a parábola do colhedor, mas do semeador. È aqui que Dodd, obviamente, precisa
recorrer a uma mudança e a uma distorção do sentido da parábola. É verdade que
a colheita é apresentada como um prospecto, mas isso não se refere ao presente,
e sim ao futuro. A colheita é a ilustração usual da manifestação final do reino
(cf. M t 13.39). Nesse caso, a rejeição liberal da escatologia contida na pregação
de Jesus vinga-se de Dodd. Desse modo, o caminho de uma exegese correta é
bloqueado, apesar da perspectiva correta de Dodd acerca da “situação” na qual
a parábola foi contada - que ele chama “der Sitz-im-Leben” [“seu ambiente vi-
vencial”] . O resultado é que Dodd tem que recorrer a acréscimos exagerados (a
chamada por mais trabalhadores).
A concepção escatológica parcial começa com uma visão correta da colheita
como sendo a futura manifestação do reino, mas não consegue ir mais adiante
e deixa de descobrir o ponto central da parábola. Esse ponto consiste não na
verdade geral (“suplementada” ou não no sentido de Michaelis) de que, apesar
de tudo, o reino virá, com certeza. Esse não era o problema real que precisava
permanecer oculto da multidão. Era, ao contrário, a pressuposição comum com­
partilhada tanto pelos discípulos quanto pela multidão, isto é, que o reino de
Deus significa colheita, julgamento, fim. O que Jesus quis ensinar aos discípulos
foi a relação entre o que eles tinham aceitado pela fé, o “mistério do reino” (ou
O REINO CHEGOU - SEU CARÁTER PROVISÓRIO 113

seja, que Jesus Cristo e o reino haviam chegado), e a demora do fim, a colheita,
a consumação. Essa tensão é a ocasião, a “situação” da parábola. E é exatamente
essa tensão que é ignorada por essa interpretação escatológica parcial da parábola.
Os discípulos, contudo, haviam entendido que o reino e o Cristo haviam chegado
- o que é negado por essa concepção escatológica parcial. Essa situação, isto é,
do reino como uma realidade presente, requeria uma resposta diferente daquela
dada pela perspectiva da “escatologia conseqüente”! Se essa “situação” não for
claramente compreendida e declarada, essa parábola, que é parte da pregação de
Jesus, permanecerá ininteligível e sua exegese se perderá em generalidades.80
Tudo o que foi dito acima tem sua conclusão e confirmação provisórias nos
importantes aforismos que concluem todo o complexo da tradição da parábola do
semeador em Marcos e Lucas. Isto é, o aforismo de que a luz não deve permanecer
oculta, mas colocada no velador, aforismo esse que é seguido por essa declaração
geral: “Pois nada está oculto, senão para ser manifestado”, etc., e a advertência:
“Atentai no que ouvis. Com a medida com que tiverdes medido vos medirão
também, e ainda se vos acrescentará. Pois ao que tem se lhe dará; e, ao que não
tem, até o que tem lhe será tirado” (Mc 4.21-25; Lc 8.16-18, cf. M t 13.21).
De acordo com o contexto, esses aforismos só podem se aplicar ao caráter
da instrução dada nesse caso.81Jesus diz que o propósito de se acender uma luz
é sempre espalhá-la, e que o que permaneceu oculto por um longo tempo está
obrigado a vir à luz. Isso se aplica, em primeiro lugar, à forma da pregação. Haverá
uma época em que os discípulos tornarão público o que está velado sob a forma
de parábola (cf. também M t 10.26-27, onde as palavras “pois nada há encoberto,
que não venha a ser revelado” são seguidas de “o que vos digo às escuras, dizei-o
a plena luz; e o que se vos diz ao ouvido, proclamai-o dos eirados”).
Portanto, mesmo na proclamação do evangelho há um clímax que vai do
mistério à revelação. Um dia, o mistério do semeador será revelado e os de fora
ouvirão a palavra acerca do reino e acerca de Jesus como o Cristo, sem qualquer
situação específica ou ocultamento. Essa tarefa dada por Jesus aos seus discípulos
tem a ver com a futura pregação deles e está estreitamente ligada com o presente
auto-ocultamento de Jesus como o Cristo (veja §22, mais adiante). A ressurrei­
ção ocasionará uma pausa ( caesura) por meio da qual uma grande mudança será
efetuada na maneira pela qual o reino será pregado.
No entanto, esses aforismos se referem não apenas à forma e à proclamação
do reino, mas também ao reino como tal. Um dia, ele perderá sua modalidade
oculta e se manifestará plenamente revelado. Isso está explicitado não somente
pelo propósito geral do dito “Pois nada está oculto, senão para ser manifestado”
(em conexão com M c 4.11), mas também pelos ditos finais concernentes à ma­
neira verdadeira de se ouvir. Já que o mistério haverá de se tornar público, ouvir
é muito importante agora. Pois o que haverá de ser recebido em última instância
114 A v in d a d o R e in o

no reino de Deus depende do que a pessoa “possui” agora, pois, “ao que tem se lhe
dará; e, ao que não tem, até o que tem lhe será tirado”. E aquilo que uma pessoa
“tem” depende do ouvir, isto é, da maneira com que ela se torna responsável pela
palavra do reino que tem sido espalhada como a semente. Esse ouvir é, agora, “a
medida com que tiverdes medido” (Mc 4.24). Se essa medida for rica e grande,
isto é, se o reino, como é pregado, for aceito com grande zelo e receptividade,
uma porção rica será recebida em medida semelhante na revelação vindoura do
reino, e mais “se lhe dará”. A revelação trará uma salvação e uma bênção ainda
mais ricas do que alguém ousa esperar, mesmo ouvindo com fé.82
Aqui, também, tudo se concentra na unidade do reino no presente e no
futuro. O que alguém recebe do Semeador também será recebido do Juiz em
medida dobrada. Somente aqueles que conhecem o mistério no presente parti­
lharão da revelação no futuro, pois a semente é a palavra do reino de Deus pela
qual ele vem ao mundo em Cristo.

19. A demora do julgamento

Outra parábola intimamente ligada à do semeador é a do joio entre o trigo


e a sua explicação (M t 13.24-30; 36-43). Quanto ao seu conteúdo, nada mais
é que uma elaboração e uma especificação da parábola do semeador. Ela tam­
bém começa com uma descrição da figura do semeador (v. 24) e, na explicação
acrescentada no versículo 37, é, agora, explicitamente declarado que o semeador
da boa semente é o Filho do Homem (uma identificação que, como já indicamos na
parábola do semeador, é fundamental para a correta compreensão de toda essa
seção da pregação de Jesus).
Essa parábola também começa a partir de uma percepção do mistério do
reino. O reino chegou. Jesus é o Cristo - esse é o grande pressuposto. A parábola
traz outra vez à luz a modalidade dessa realidade de cumprimento. Ela dá an­
damento à instrução anterior, isto é, o reino virá pela Palavra, que sai como uma
semente, e o Messias vem na forma de um semeador.
Essa parábola também fala dos obstáculos que a semente encontra após ter
sido semeada. Dessa feita, esses obstáculos não são representados pela ilustração
de um terreno estéril, mas pela do inimigo que semeia joio no meio do trigo
(mas, comp. com M t 13.19). Até esse ponto, as duas parábolas mostram uma
realidade factual e podemos nos referir à primeira parábola com o objetivo de
entender a segunda.83
O elemento novo na segunda parábola é a pergunta dos servos do senhor
do campo se não seria melhor que eles retirassem o joio de vez e a resposta do
dono de que essa retirada só será feita no tempo da colheita. H á uma opinião de
O REINO CHEGOU - SEU CARÁTER PROVISÓRIO 115

que essa passagem tem a ver com a igreja e que, nela, Jesus quer advertir contra
um excesso de zelo, como se fosse possível executar, aqui na terra, a separação
que é privilégio do Filho do Homem no julgamento final.84 Essa exegese muda
completamente o ponto em discussão e nos priva da visão correta da parábola.
Porque, para não mencionar as outras objeções intransponíveis,85 o que os
servos sugerem ao patrão não é algo provisório, uma separação até que se diga o
contrário, que só pode ser aplicada aos seres humanos pelos seus companheiros
(na igreja). O que eles propõem é a separação final do joio do trigo e a sua ex-
terminação. Ou, para colocar de modo real, a separação definitiva no julgamento
divino. A questão entre os servos e o dono do campo não é quem vai executar
a separação, nem que tipo de separação, mas quando ela ocorrerá. Apesar de os
servos desejarem realizar uma separação imediata, o senhor determina que ela
seja adiada até o dia da colheita, pois - assim ele diz aos servos - dessa maneira,
não correrão o risco de arrancar o trigo juntamente com o joio.
Essa parábola, mais uma vez, lança luz sobre a relação entre a presença e o
futuro do reino. Ela trata o problema levantado pelos pronunciamentos sobre a
presença atual do reino, isto é, o adiamento do julgamento final e a continuação
da mistura de bons e maus, mesmo depois de o reino ter chegado.
A resposta é uma continuação direta do que apareceu na parábola do
semeador. Já que o reino chegou como uma semente e já que o Filho do Homem
é, primeiro, o semeador (v. 37), antes de ser aquele que colhe (v. 41), o julgamento
final é adiado. A demora está implícita nessa diferença. Quem semeia não pode
colher imediatamente. O adiamento do julgamento é determinado pela moda­
lidade do reino de Deus que já chegou com Cristo.
Ignorar esse ponto de vista leva a uma superficialidade óbvia na concepção
do significado da parábola. Isso ocorre quando a presença do reino não é levada
em conta e o reino é representado como sendo uma realidade exclusivamente
futura. Então, a explicação que se dá, nesse caso, é que Jesus queria admoestar
seus discípulos a terem paciência porque a separação que eles esperavam seria
realizada somente no juízo final (essa é a interpretação, p. ex., de R. Bultmann,
Gesch. D. synopt. Tradition [História da tradição sinótica], 2a. ed., 1931, págs.
202-203; W. Michaelis, Sãmman, págs.74-75). Porém, desse fato os discípulos
já estavam convencidos. O que precisava ser explicado a eles era o adiamento
do julgamento mesmo após Jesus, o Cristo, ter chegado. O problema não residia no
fato de que o reino do Messias ainda não havia chegado, mas, ao contrário, na
presença atual tanto do Messias quanto do seu reino. Isso, todavia, é negado por
Bultmann e Michaelis. Outros escritores são da opinião de que Jesus ensina aos
seus discípulos que a separação entre os ímpios e os bons é um privilégio exclu­
sivo do Filho do Homem, com o qual os homens não deveriam se intrometer
(como H. D. Wendland, op. cit., p. 35; W. G. Kümmel, op cit., p. 82). M as, se
116 A v in d a d o R e in o

isso é verdade, o ponto central da parábola não é descoberto, pois o fato de que
a separação tinha de ser feita pelo Filho do Homem (e não por seres humanos)
não precisava ser dito aos discípulos com o propósito de capacitá-los a dominar a
sua impaciência. Muito pelo contrário, essa convicção foi a causa da impaciência
deles. A mesma razão pela qual lhes foi dado conhecer os mistérios do reino e
pela qual vieram a reconhecer Jesus como o Filho do Homem também tornou
problemático para eles o adiamento do dia do julgamento. Como seria possível o
reino ter vindo sem fazer a separação entre os ímpios e os bons? Essa era a causa
da impaciência deles e é a isso que a parábola dá uma resposta.
Nesse sentido, o ponto de partida de Dodd é muito mais recomendável,
apesar de ele só estar disposto a aceitar a presença do reino. De acordo com
ele, o objetivo de Jesus, nesse caso, é instruir aqueles que acham difícil aceitar a
vinda do reino pelo fato de que ainda existem muitos pecadores em Israel. Mas
a interpretação que Dodd faz da parábola é muito típica dele. Ele pensa que
Jesus dá a seguinte resposta aos que duvidam: do mesmo modo que o dono de
um campo não adiaria a colheita porque nesse tempo aparece o joio no meio do
trigo, a vinda do reino não é adiada pelo fato de existirem pecadores em Israel
(Dodd, op cit., p.185). Se quisermos seguir Dodd, não devemos eliminar “tão
completamente quanto possível” a explicação da parábola nos versículos 36 a 42,
onde a colheita é fixada para “a consumação do século”, mas teremos até mesmo de
reverter o significado da própria parábola. Ela fala da colheita como o momento
em que a separação não pode mais ser adiada, o momento em que ela deve ser
realizada. Em outras palavras, ela fala da futura manifestação do reino, o que,
entretanto, Dodd rejeita enfaticamente. Do que foi dito acima, transparece que
tanto a negação da presença quanto a negação do futuro do reino nos priva da
possibilidade de obter a perspectiva correta dessas parábolas.
Podemos nos perguntar a que ponto o propósito geral da parábola pode ser
elaborado além disso, principalmente com respeito ao temor do dono do campo de
que, junto com o joio, o trigo também venha a ser arrancado. É esse um “elemento
simbólico” ou pertence somente ao imaginário da parábola? A dificuldade de se
chegar a uma interpretação bem embasada dos detalhes se deve ao fato de que
não estamos certos da causa do medo do dono do campo. Geralmente se assume
que o joio, aqui (latim: lolium temulentum), era tão parecido com o trigo que, pelo
menos naquele estágio, era muito difícil distinguir um do outro.86 Autoridades
modernas sobre a Palestina, entretanto, são da opinião de que a causa é outra,
pois, quando o joio se torna visível, o grão de trigo já está formado (v. 26). Então,
não havia mais qualquer perigo de confundir os dois. M as outro perigo havia
tomado o lugar do primeiro risco, já que as raizes de ambas a plantas podem ter
se entrelaçado tanto nessa fase, que o joio não poderia ser arrancado sem o risco
de arruinar o trigo.87
O REINO CHEGOU - SEU CARÁTER PROVISÓRIO 117

No nosso entendimento, todos esses detalhes não podem ser explicados


num sentido “espiritual” sem o risco de cairmos numa alegorização ilegítima.
Além disso, a explicação nos versículos 36-43 não menciona nada desse tipo. E
possível dizer que, na parábola, há a questão de um processo duplo de amadure­
cimento, ou seja, do mal e do bem, mas não se pode derivar da parábola em que
sentido isso ocorre. Nesse contexto, temos que abrir mão e deixar como está. E
dito que a separação, isto é, o julgamento, só ocorrerá no futuro. E isso é derivado
da natureza da obra do semeador. Em nossa opinião, uma interpretação a partir
dessa parábola quanto ao adiamento do dia do juízo final que vá além disso não
é possível.88
A parábola da rede lançada ao mar (Mt 13.47-50) tem o mesmo objetivo
da parábola do joio e do trigo, o qual fica claro pela grande semelhança entre as
duas explicações (13.40-42 e 13.49-50). Aqui, também, o que está em jogo não
é uma porção pedagógica de sabedoria e sim, claramente, o elemento histórico-
redentor. Mais uma vez, Jesus instrui seus discípulos quanto à manifestação do
reino no presente e no futuro.
Ele agora usa a ilustração de uma rede para indicar a pregação do evangelho.
Essa pregação, repetidas vezes, é comparada com a atividade da pescaria, tão
familiar aos discípulos (cf. M t 4.19; Lc 5.10). O centro da atenção é, de modo
especial, o modo como essa pescaria é feita. Primeiro, a rede é arrastada no mar
e somente depois de este trabalho ter sido completado é que os pescadores vão
para a praia inspecionar o que foi apanhado e fazer a seleção apropriada. Essa é
uma ilustração da maneira como o reino vem. A pregação revela o reino, pois os
“pescadores de homens” são empregados do Cristo. M as o reino virá de modo
diferente do que se pode supor. Esse mistério é o verdadeiro tema da parábola.
Cristo (e o seu reino) primeiro vem para ajuntar, e, então, posteriormente, so­
mente após o término desse ajuntamento, é que ele faz a separação definitiva e
se revela em sua glória perfeita.89
Aqui, também, a parcialidade da concepção atual do reino como sendo ex­
clusivamente futuro obscurece o sentido da parábola. Esse entendimento é mais
uma vez encontrado em Dodd. Ele elimina inteiramente a característica futuro-
escatológica da seleção dos peixes como se encontra em Mateus 13.49-50. Em
sua opinião, a seleção mencionada pela parábola ocorre por meio das diferentes
reações das pessoas ao chamado geral do evangelho.90 Outros, como Kümmel,
por exemplo, sustentam que, nesse caso, não há qualquer referência a um aspecto
atual do reino. A parábola apenas destaca a seriedade da intimação feita a todos
os convertidos diante da separação que ocorrerá no julgamento final.91 Michaelis
vai um passo além. Ele concebe a pescaria como algo que acontecerá no dia do
juízo final.92 Outros, ainda, consideram que a pescaria não se refere ao reino, mas
à igreja que estava por vir.93
118 A v in d a d o R e in o

Em nossa opinião, a separação dos peixes na parábola se refere inegavelmente


ao julgamento final, do mesmo modo que a pescaria em si se refere à pregação
atual do evangelho. Querer negar o primeiro é uma modernização ilícita do
evangelho. E, no que se refere ao segundo, o versículo 49 mostra claramente
que a analogia entre o trabalho dos pescadores e o dos anjos, no fim do mundo,
não deve ser encontrada no ajuntamento dos peixes, mas na separação deles. O
verdadeiro ponto em discussão, nesse caso, como na parábola do joio, é se existe
aqui somente uma advertência a respeito do julgamento do reino que está por
vir ou se nos são dadas mais informações acerca do reino que já está presente
no mundo. As palavras iniciais da parábola dizem que “o reino dos céus é ainda
semelhante a uma rede”. Estritamente falando, isso quer dizer que não somente
a separação dos ímpios e dos justos, que vai acontecer no juízo final, pertence ao
reino, mas que o ajuntamento também pertence (a pescaria com a rede eqüivale
à pregação do evangelho nesta dispensação). E verdade que não devemos tirar
muitas conclusões das palavras introdutórias, pois elas indicam apenas apro­
ximadamente o ponto de comparação entre o reino e o conteúdo da parábola.
Essa fórmula introdutória é frequentemente apenas um ponto de partida (cf., p.
ex., 13.24; 20.1; 22.2; 25.1). Contudo, isso não quer dizer que se trata de uma
conclusão previamente estabelecida afirmar que não se pode comparar o reino
dos céus com o trabalho inicial da rede, e sim apenas com o trabalho final da
escolha dos peixes pelos pescadores. N a verdade, devem existir razões de peso
para podermos excluir o trabalho inicial da rede - que também é parte dessa
parábola sobre o reino - do tertium comparationis.
E esse argumento é fortalecido por uma visão objetiva da parábola. Se seu
objetivo exclusivo fosse indicar a separação futura entre os ímpios e os justos,
devemos nos perguntar por que Jesus precisou de uma parábola separada para
ilustrar uma verdade que era aceita universalmente. O tertium comparationis entre
o reino e a rede deve ser procurado especialmente na fase inicial de ajuntamento
dos peixes [ekpantous genos), bem como na separação posterior entre o ímpio e
o justo. Aqui, também, o mistério (guardado dos que estão de fora) é revelado
aos discípulos. Eles não estão enganados. Jesus é o Cristo. O reino chegou. Mas,
daqui por diante, ele virá suo modo (à sua própria maneira).

20. O efeito da Palavra

As seções anteriores mostraram que a dispensação da salvação que co­


meçou com a vinda de Jesus possui um caráter preliminar e velado em muitos
sentidos. Ela pressupõe um período intermediário antes da manifestação final
do reino.
O REINO CHEGOU - SEU CARÁTER PROVISÓRIO 119

Nas parábolas do semeador, do joio e da rede, o sentido desse período inter­


mediário foi tornado claro, por um determinado ponto de vista. O adiamento do
julgamento final não é exclusivamente negativo, de tal maneira que simplesmente
mantém os discípulos em suspense, fortalecendo e purificando a sua fé, mas tem
também um sentido positivo. O tempo da espera é o tempo da semeadura, o
mistério é uma oportunidade, o Filho do Homem espalha a semente e joga a
rede no mar. E isso revela o caráter messiânico da sua obra nesta dispensação,
pois sua Palavra é autoritativa.
Esse significado positivo da demora do julgamento é claramente ensina­
do em outras três parábolas, a saber, a da semente (Mc 4.26-29), a do grão de
mostarda (M t 13.31-32) e a do fermento (M t 13.33). Num certo sentido, elas
expressam a mesma ideia das três parábolas mencionadas acima. Ainda assim,
merecem um tratamento em separado, pois estão orientadas para a ideia da in­
fluência crescente e do poder vitorioso da salvação concedida na vinda de Cristo,
em vez da ideia de resistência e obstrução.
Com respeito à parábola da semente, partimos da percepção obtida acima
de que, aqui, também, “o homem que lança a semente à terra” significa o próprio
Cristo.94Isso é percebido também pelo versículo 29: aquele que colhe é o juiz que
virá julgar o mundo, o qual é também indicado pelas palavras finais do versículo
29, as quais derivam da profecia escatológica de Joel 3.13. Este e o semeador (cf.
M t 13.37ss.) são a mesma pessoa.95 Em nossa opinião, portanto, não pode haver
nenhuma dúvida de que nesse caso, também, o reino aparece como uma realidade
presente. O semear da semente é uma obra messiânica. Esse é o ponto de partida
e ele só pode ser reconhecido como tal por aqueles que conhecem o mistério (v.
10), isto é, que Jesus é o Cristo e que, com ele, a salvação chegou. O propósito
da parábola, portanto, é elucidar a relação entre o que é agora perceptível do
Cristo e o que ainda se pode esperar dele (v. 29). Essa elucidação se encontra no
que é descrito como a natureza do trabalho de “semear”. Implica dependência
da condição do solo e se levanta contra todos os tipos de obstrução (veja acima);
todavia, à parte de todos os outros fatores, também significa que a colheita será
feita somente após a decorrência de certo período de tempo. O ínterim, contu­
do, não é perda de tempo, pois alguma coisa acontecerá durante esse período de
espera. As coisas prosseguem em seu curso normal. A semente brota e alcança
certa altura. Isso ocorre “não sabendo ele como”, ou seja, de modo despercebido,
pois a terra frutifica por si mesma, espontaneamente. Isso não significa que ele não
se preocupe mais com seu labor - como se somente dormisse e acordasse como
o semeador do versículo 27 - mas sim que, enquanto ele deixa a semente por si
mesma por um tempo, o processo de amadurecimento continua sem parar e que
a colheita se aproxima. E esse é o grande propósito, pois, quando o fruto está
maduro, ele logo mete-lhe a foice.
120 A v in d a d o R e in o

Os elementos importantes são a certeza da safra - a despeito da aparente


passividade temporária do lavrador - e também opoder germinal da semente como
a causa dessa certeza, pois a certeza da safra vindoura está indissoluvelmente
associada à ação da semente no solo. A parábola enfatiza esse ponto. Aqueles
que apontam somente para a certeza da colheita ignoram a operação da semente
no solo.96 Portanto, todas as parábolas sobre a colheita são explicadas do mesmo
modo, suas características individuais são niveladas e eliminadas. Essa é uma
reação à interpretação que aplica a ideia moderna da evolução à vinda do reino.
Essa interpretação é certamente incorreta, mas não deveríamos evitá-la simples­
mente amputando o propósito da parábola. Aqui, Jesus mostra mais de perto
a relação entre o presente e o futuro. Nessa parábola, o futuro não é somente
garantido - a colheita virá tão logo (euthus) o tempo esteja amadurecido para
isso - mas está também diretamente ligado ao presente. A palavra é enviada, isto
é, a palavra autoritativa do Cristo. Ela não cai no solo e volta vazia. A pregação
do evangelho é, em si mesma, a garantia máxima da vinda do reino. Ela traz o
reino irresistivelmente cada vez mais para perto.
Essa interpretação mantém, portanto, a presença e o futuro do reino e
aponta para a relação interna entre os dois. Ela, portanto, representa, novamente,
a rejeição da interpretação escatológica parcial,97que só consegue enxergar, nesse
caso, uma consolação por causa da certeza do futuro e uma exortação à paciência
no presente. O reino virá, com certeza, sem que sejamos capazes de acelerar ou
impedir essa vinda. Isso é verdadeiro, mas não faz justiça à garantia manifestada
no presente. Num certo sentido, podemos dizer que esse último pensamento
sugere um processo de desenvolvimento na vinda do reino, mas isso não deve ser
concebido como um reino que opera na alma ou na sociedade humana como um
princípio independente em desenvolvimento. Nem pode ser identificado como
certa forma de vida social que está em curso de desenvolvimento (como, p. ex.,
o evangelho social), mas sim à operação da palavra divina neste mundo, que não
pode ser separada da pessoa de Cristo. E, por essa razão, só pode ser considerada
como a vinda do reino. A opinião de Dodd deve ser totalmente rejeitada, pois ele
vê a presença do reino na colheita e cita Mateus 9.37-38 em apoio a essa opinião.
Ele pensa que o tempo da semeadura e da espera tem a ver com a vinda de Cristo
e que Cristo, agora, mete a foice no grão amadurecido, isto é, ele ceifa o que foi
semeado anteriormente pelos profetas. Essa ideia, todavia, está em conflito com
tudo o que a colheita significa nesse mundo de pensamento. Podemos, aqui,
mencionar nossa discussão acima sobre a parábola do semeador e a do joio no
meio do trigo. Os mesmos argumentos se aplicam igualmente aqui.
Estreitamente relacionada a essa parábola está a parábola do grão de mostarda.
Ela tem os mesmos pressupostos: a semente, o semeador, o campo. Aqui, também, o
ponto principal é a modalidade da salvação que chegou e se cumpriu em Cristo.
O REINO CHEGOU - SEU CARÁTER PROVISÓRIO 121

O traço específico deve ser achado no grão de mostarda, que é uma das
menores sementes (M t 17.20). Porém, quando cresce, é maior do que qualquer
outra hortaliça e pode até ser comparada com uma árvore, em cujos galhos as aves
dos céus podem construir seus ninhos. Essas palavras concordam com Daniel
4.21, onde a glória de Nabucodonosor e de seu império é descrita. O objetivo
da parábola é, claramente, contrastar o começo pequeno e insignificante com o
cumprimento glorioso. Isso deve ser aplicado ao reino e à sua vinda. Trata, mais
uma vez, do caráter confuso da atual manifestação do reino e de Cristo para
aqueles que conhecem o mistério do reino. Seu princípio pode parecer pequeno
e insignificante, não tenhamos dúvidas sobre isso. M as lembremo-nos do grão
de mostarda. Um dia o reino dos céus ultrapassará os reinos deste mundo (Dn
4) em glória.
Nesse caso, devemos, igualmente, rejeitar a opinião de Dodd de que o
tamanho enorme da semente de mostarda plenamente desenvolvida se refere à
manifestação do reino que já chegou com Jesus e cujas bênçãos já foram colo­
cadas à disposição de todos os homens. O processo do desenvolvimento oculto
agora teria chegado ao fim.98 M as essa opinião está totalmente em conflito com
a tendência geral do ensino de Jesus nessas parábolas. Essa parábola, também,
tem uma conclusão escatológica.
No entanto, mesmo se a opinião de Dodd for rejeitada, permanece uma
controvérsia irreconciliável quanto à questão sobre se Jesus, nesse caso, contrasta
exclusivamente o futuro grandioso do reino com a sua presença atual (qualquer
que seja a forma em que é concebida; p. ex., como um sinal) - de modo que,
nesse caso, Jesus quis fazer um contraste somente entre o começo e o fim - ou
se existe também alguma indicação do processo do desenvolvimento do reino que
acontece no meio-tempo." Em nossa opinião, a ênfase reside no cumprimento
glorioso que serve de conforto para aqueles que se admiram com o início pequeno
do reino. Ainda assim, é antinatural manter os olhos fixos somente no princípio
e no fim e eliminar de todo jeito tudo o que existe no meio. Tudo depende da
ideia que é formada quanto ao caminho no qual o progresso é feito do início ao
fim maravilhoso. Pois o fato de que a vinda final do reino é totalmente baseada
na ação de Deus mostra que o fim não é a finalização de um processo imanente
de desenvolvimento. E isso é verdadeiro também com relação ao início. O todo
da manifestação do reino é fruto da ação divina. A semente é a Palavra de Deus
falada por Cristo com autoridade. Essa palavra de poder, um dia, fará nova todas
as coisas.100 Porém, entre o princípio e o fim, existe uma História. Nessa História,
a Palavra progrediu e teve efeito. Não se pode pensar nesse progresso no sentido
da ideia moderna de evolução, mas como o plano e a obra de Deus. Portanto, os
discípulos devem aguardar os atos vindouros de Deus. Podemos considerar que
a árvore, com seus galhos, significa a abrangência mundial do reino, ao mesmo
122 A v in d a d o R e in o

tempo em que subjuga os pagãos.101 De qualquer modo, esse progresso da palavra


de Jesus é uma ilustração clara do crescimento da semente.102 Certamente, não
devemos nos permitir eliminar esse pensamento, apesar de o final glorioso ser
enfatizado de modo especial.
E, finalmente, a parábola do fermento. Tem sido corretamente observado
que essa parábola também tem seu início no caráter decisivo da ação de Jesus.103
Esse é o acontecimento grandioso, o mistério do reino de Deus que os discípulos
conhecem. Essa situação é o ponto de partida da parábola e requer elucidação
(veja acima) inclusive para os discípulos.104
A questão é: onde está o tertium comparationis [a terceira parte da compara­
ção]?. E a influência do fermento, a grande diferença entre o começo e o fim, ou a
atitude adotada pela mulher, a saber, esperar pacientemente? Matter defende essa
última perspectiva. De acordo com ele, a parábola não tem um caráter didático,
mas encorajador: ela exorta os discípulos a vigiarem pacientemente.103 O que
é notável, todavia, é que esse elemento de vigilância está faltando na parábola.
Parece um pouco forçado inferir106 tudo isso da palavra “até”.107 Além disso, é
duvidoso se deveríamos identificar a atitude dos discípulos com o que a mulher
faz. Se estivermos dispostos a supor que há uma questão de personificação aqui,
podemos dizer que a mulher faz o que Cristo faz. Ele é o semeador e é também a
pessoa que “esconde o fermento nas três medidas de farinha”. Em nossa opinião,
o reino certamente deve ser comparado com o fermento.
Isso dá origem ao mesmo problema encontrado nas duas parábolas an­
teriores. O contraste, nesse caso, é somente entre o início (a mulher esconde o
fermento) e o fim (até que o todo esteja fermentado)? Seguindo essa linha, de
acordo com a interpretação estritamente escatológica, o reino que abarca todas as
coisas virá, apesar de seu começo diminuto no presente parecer dizer o contrário.
O processo de fermentação do todo não é o ponto focal do quadro.108
Sem dúvida, essa parábola (como a precedente) é escatológica no sentido de
que leva à fermentação total da massa. Isso indica a certeza do futuro glorioso,
apesar de seu início pequeno109 no presente. M as a base sobre a qual esse elemento
da fermentação, no seu sentido ativo, é separado do significado da parábola é
igualmente incompreensível nesse caso. Será que o fermento é caracterizado
somente pelo seu começo pequeno e seu grande resultado? Não será que a ideia
do fermento sugere a todo simples leitor (isto é, àquele que não está influenciado
por problemas científicos) o conceito do efeito constante, que é tão típico do fer­
mento? Em nossa opinião, não existe a possibilidade exegética de lidar com o
contraste “começo-final” de modo tão exclusivo nessa parábola a ponto de que
o que ocorre no ínterim não seja levado em consideração. Esse método não é
possível aqui, pois não foi possível na parábola da semente e é menos possível
ainda no caso do grão de mostarda.
O REINO CHEGOU - SEU CARÁTER PROVISÓRIO 123

Devemos manter a ideia do efeito constante,110 mas não no sentido de


um princípio “que opera espontaneamente”, como na perspectiva do processo
evolucionário imanente. E Deus quem usa a palavra “eficaz”. Podemos apenas
perguntar se essa operação constante é qualificada adicionalmente aqui (dife­
rentemente da semente que cresce espontaneamente). Nesse contexto, a palavra
kruptein [esconder] é importante. Ela significa apenas “colocar dentro”111 ou
devemos preferir o sentido mais fértil da palavra, “esconder”?112 Não podemos
realmente dizer que a mulher esconde intencionalmente o fermento. Portanto,
não podemos inferir disso que a característica essencial do reino é o fato de que
ele não pode ser visto. Além disso, o efeito do fermento certamente se manifesta
(o crescimento da massa). Ainda assim, a palavra “escondeu” tem seu sabor
próprio, de modo que deve ter sido escolhida visando à situação. Era precisa­
mente o mistério, o começo oculto da manifestação do reino que precisava ser
elucidado. E importante observar que esse mistério não é sinal de fraqueza. O
fermento opera, e o mesmo faz a Palavra. E sua operação tem um caráter totali­
tário. Fermenta cada parte do alimento. A parábola da semente lança luz sobre
a operação como tal; a do grão de mostarda indica a extensão dessa operação; a
parábola do fermento se preocupa com a intensidade da operação. Não apenas se
concentra na totalidade, na extensão, mas também em cada parte do todo e nas
suas relações. Na sua manifestação final, o reino abarcará todas as coisas, tanto
no sentido intensivo quanto extensivo. Mesmo agora, essa tendência do reino
deve seu poder à palavra divina.

21. Procurando o perdido

Na seção anterior, foi amplamente demonstrado que a pregação do evangelho


na dispensação do reino dos céus, que começou com a vinda de Jesus, ocupa um
lugar muito importante. E essa pregação contínua uma das razões pela qual o
julgamento vindouro ainda é adiado.
Esse fato leva ao ponto de vista de que, consequentemente, na vinda de Jesus,
a possibilidade da conversão e da salvação se tornou consideravelmente maior.
A pregação de João Batista foi tão sinistra e ameaçadora porque ele disse que o
machado já estava “posto à raiz da árvore” e sobre aquele que estava vindo: “A
sua pá, ele a tem na mão”. E evidente que, com a vinda de Jesus, por um lado, o
cumprimento tornou-se um fato; por outro, no entanto, o tempo da graça também
foi estendido. Essa extensão é importante, mas a pregação da graça é igualmente
importante. O próprio evangelho opera, agora, com uma força inteiramente nova
e com um conteúdo intensificado; é a pregação do cumprimento; é a mensagem da
graça de Deus revelada em Cristo que agora inicia o seu curso neste mundo.
124 A v in d a d o R e in o

Também é verdade que o adiamento do julgamento não representa, de modo


algum, o enfraquecimento do chamado urgente e sério ao arrependimento que
caracteriza a pregação de Jesus. Em nenhum lugar isso aparece de maneira mais
clara do que na parábola da figueira estéril (Lc 13.6-9), que trata também do
julgamento vindouro. Ê a seqüência da conversa de Jesus com algumas pessoas
que lhe haviam contado sobre o massacre dos galileus por Pilatos. Nessa ocasião,
Jesus ensinou a seus ouvintes a buscarem a causa mais profunda desse escândalo
que Deus não havia impedido - bem como a causa de todos os desastres que
ocorrem com o homem (a torre de Siloé) - não na culpa individual específica
das vítimas, mas na natureza impenitente geral do homem.
Não há dúvida de que o propósito da parábola da figueira infrutífera é
reforçar esse chamado ao arrependimento, ressaltando a certeza da chegada do
julgamento. Mesmo assim, nessa parábola, Jesus primeiro fala de um ano de
prorrogação garantido à videira pelo dono da vinha em resposta à intercessão
do viticultor. A questão é até que ponto os detalhes funcionam como símbolos.
Em conexão com o que antecede, cortar a figueira certamente não significa a
expulsão dos ímpios da igreja, como Michaelis defende.113 Se não quisermos nos
abster inteiramente de outras especificações, podemos dizer que o corte da figueira
representa o julgamento divino sobre Israel. Isso sugere a queda de Jerusalém
também predita em outras passagens de Lucas (cf. 19.43-44; 21.20ss). M as o
“cortar” mencionado no versículo 7, junto com o “dar fruto”, no versículo 9, nos
lembram fortemente o quadro que João Batista pintou do julgamento final (Lc
3.9; M t 3.10; cf. 7.19).114 Nesse caso, ganha importância a perspectiva de que
o agricultor é o próprio Jesus,115 interpretação seguida por Zahn, que chega a
sugerir que os “três anos”, no versículo 7, representam o tempo a partir do apa­
recimento de João Batista.116 Em nossa opinião, é difícil que essa personificação
seja suficientemente garantida pelo contexto. M as o significado da parábola não é
obscuro. Além da referência ao julgamento iminente, encontramos a prorrogação
de um ano pelo agricultor aparentemente aceito pelo dono da plantação. Por meio
disso, Jesus indica que Israel não tem mais o direito de existir, mas que Deus
prolongou a oportunidade para o arrependimento, embora, nesse momento, o
limite extremo da sua paciência foi alcançado. Essa é uma indicação clara de que
o julgamento esperado com a vinda do reino foi mais uma vez adiado devido ao
decreto gracioso de Deus. Portanto, essa parábola lança luz sobre o caráter da ação
de Jesus. Ele traz o julgamento, mas não imediatamente. Sua tarefa messiânica
tem, também, como objetivo, salvar muitas pessoas do julgamento vindouro do
mundo por meio da sua pregação do evangelho.
Em consonância com isso está a concepção que Jesus tinha de sua tarefa.
De importância especial é a caracterização geral dada em Mateus 9.35-38 (cf.
também M c 6.34), onde é dito que, ao ver as multidões, Jesus “compadeceu-se
O REINO CHEGOU - SEU CARÁTER PROVISÓRIO 125

delas, porque estavam aflitas e exaustas como ovelhas que não têm pastor”. Outra
imagem é acrescentada, isto é, a da seara: “A seara, na verdade, é grande, mas os
trabalhadores são poucos. Rogai, pois, ao Senhor da seara que mande trabalhado­
res para a sua seara” (cf. também Lc 10.2). Encontramos a mesma descrição em
Mateus 10.6; 15.24. Nesse caso, a passagem fala das “ovelhas perdidas da casa de
Israel” (taprobata da apoloota). Esse conceito to apoloos não é encontrado somente
nesse sentido geral, mas também num mais individual, como, por exemplo, na
história de Zaqueu. Em oposição ao murmúrio desaprovador da multidão quando
ele entrou na casa de um homem pecador, Jesus disse: “Hoje, houve salvação nesta
casa, pois que também este é filho de Abraão. Porque o Filho do Homem veio
buscar e salvar o perdido”. Algo importante que é característico dos pensamentos
que se encontram na base dessas declarações é a parábola da ovelha perdida (Lc
15.1-7), mais uma vez em contraste com os “noventa e nove justos que não neces­
sitam de arrependimento” (v. 7). Em Mateus, igualmente, encontramos a parábola
da ovelha perdida (18.12-14), mas, como transparece do contexto, nesse caso se
aplica às relações dentro da igreja cristã.117 Em Lucas 15, a parábola da ovelha
perdida é seguida pelas parábolas da dracma perdida e do filho pródigo (vs. 8-10,
11-32), nas quais o conceito de “o perdido” mais uma vez tem um papel especial
(vs. 8-9,24,32). Acrescente-se a isso os ditos que especificam que o propósito
da vinda de Jesus foi procurar e salvar pecadores, como Mateus 9.13: “Pois não
vim chamar justos, e sim pecadores ao arrependimento”. Esse tema é elaborado
e explicado nas histórias em que Jesus, em contraste com os fariseus, se mistura
com pecadores notórios (cf., p. ex., Lc 7.37,39: Jesus é ungido por uma mulher
pecadora, e a palavra hamartoolos [pecadora] é usada duas vezes).
O interesse especial de Jesus pelo que está “perdido” é também muito
importante por causa de uma antítese religiosa dentro da nação judaica de seus
dias. Eles cultivavam a ideia de “uma nação dentro da nação”, uma ecclesiola in
ecclesia [uma pequena igreja dentro da igreja]. A verdadeira nação de Deus era
representada pelo partido dos fariseus e aqueles que observavam a interpretação
rigorosa da lei feita por eles, especialmente com respeito à pureza levítica e às
obrigações devidas aos sacerdotes. A antítese era formada pela massa daqueles
que não podiam obedecer à lei de modo tão escrupuloso, os chamados amhaãrets,
“o povo da terra”.118 Apesar de a expressão “o povo da terra” não aparecer nos
Evangelhos (c£, todavia Jo 7.49), não pode haver dúvida de que a expressão “os
perdidos”, aos quais Jesus se refere repetidas vezes, designa aquela categoria geral
de pessoas que eram desprezadas pelos fariseus e que haviam sido relegadas por
estes à sua própria sorte. Dentre estes, a ênfase recaía especialmente nos “pe­
cadores” ou “publicanos e pecadores” mencionados nos Evangelhos em estreita
conexão com “os perdidos”. Estes eram não somente os que viviam em conflito
aberto com a lei de Deus e que eram, em conseqüência, mantidos a distância
126 A v in d a d o R e in o

pelo povo comum e pelos fariseus. Geralmente essa categoria de “publicanos e


pecadores” incluía também aqueles que não se submetiam às instituições farisaicas
especiais.119 A mesma ideia está incluída na expressão “os perdidos”. São os que
foram abandonados a si mesmos, as ovelhas sem pastor que não mais eram vistas
como pertencentes ao verdadeiro povo de Deus.
Essas informações mostram a importância, no geral, das ações de Jesus em
buscar e salvar aqueles que estavam por se tornar, humanamente falando, vítimas
do julgamento. Elas também provam a necessidade de se prestar atenção aos
aspectos especiais de cumprimento, ou aos aspectos do reino, manifestos nelas.
Nesse caso, também, o caráter geral da vinda de Jesus e da sua obra é re­
presentado de modo incorreto em duas maneiras mutuamente antitéticas. Por
um lado, as passagens nas quais Jesus age como o que procura “os perdidos” são
citadas para provar que a mensagem escatológica e messiânica não é o cerne do
evangelho, que o “reino dos céus” existe apenas como uma força interior. “Aqui
está a transição completa do conceito de Deus como uma força que opera in­
teriormente. Do mesmo modo que ele chama os pobres e os doentes para irem
a ele, ele também chama os pecadores e esse chamado é decisivo. “O Filho do
Homem veio buscar e salvar o perdido.” Somente agora é que qualquer traço
externo e puramente futuro aparenta ter sido eliminado...”120 Na medida em que
a “estrutura” messiânica e escatológica é ainda retida, é espiritualizada como se
fosse o sentido do “julgar” e do “separar” da pregação de Jesus. O “julgamento”,
então, não é mais considerado como futuro, mas presente na vinda e na palavra
de Jesus. O caráter “messiânico” da ação de Jesus é reduzido, desse modo, a essa
espiritualização.121
Outros sustentam que esses ditos acerca da busca do “perdido” são evidências
do caráter exclusivo ou eminentemente futuro do reino dos céus na pregação de
Jesus. N a opinião deles, essas passagens tratam apenas da preparação para a vinda
do reino. Por essa razão, eles dão pouca ou nenhuma atenção - ao contrário da
conceituação espiritualizante do reino de Deus mencionada acima - aos muitos
escritos de data posterior acerca dessas passagens com respeito a uma definição
do reino.
Em nossa opinião, essas perspectivas implicam um estreitamento duplo cla­
ramente demonstrável da ideia do reino que está na base da pregação de Jesus.
Indubitavelmente, os pronunciamentos acerca da busca pelo “perdido”
pressupõem um adiamento do julgamento e provam claramente o caráter preli­
minar da vinda e da obra de Jesus. Qualquer tentativa feita pela teologia liberal
e moderna de espiritualizar o julgamento anunciado por Jesus e omitir o caráter
futuro e final do evangelho, como se fosse algo acidental e não essencial, com
base nesse evangelium in evangelio, está em contraste evidente com o caráter geral
do reino segundo a pregação de Jesus.
O REINO CHEGOU - SEU CARÁTER PROVISÓRIO 127

Outra séria falsa representação do significado da pregação de Jesus é a


negação do caráter messiânico da sua obra redentora em favor do “perdido”.
Isso implica também a negação de sua função como cumprimento. N a verdade,
trata-se de uma parte integral da manifestação do reino.
A figura do Messias e da vinda do reino é representada não somente na
procura do perdido, que emerge da figura do semeador (evidente nas diversas
parábolas da semente), porém também está clara nas próprias palavras associadas
à obra do Redentor. Isso transparece em expressões como “ovelhas sem pastor” ou
“ovelhas perdidas”, ou ainda “o perdido”. E verdade que essa última expressão virou
quase um clichê, de modo que nem sempre é possível determinar se a metáfora
original ainda é percebida (veja, p. ex., Lc 19.10). Além do mais, a metáfora foi
estendida (a dracma perdida; o filho perdido, isto é, o filho pródigo). Isso, toda­
via, não diminui o fato de que o sentido do conceito original “o perdido” deve
ser procurado na expressão “ovelhas perdidas”. Essa metáfora é essencialmente
importante por causas da ocorrência freqüente da comparação entre o povo de
Israel, no Antigo Testamento, com um rebanho de ovelhas ou simplesmente com
ovelhas que foram deixadas ao relento por líderes e pastores designados e que,
então, se espalharam. Como conseqüência, ficaram perdidas, por assim dizer,
como propriedade do Senhor,122 mas, então, recebem a promessa do Senhor de
que ele haverá de ter compaixão delas, que as encontrará e as trará de volta. O
Messias por vir, como pastor verdadeiro, é, então, contrastado com os pastores
ímpios (especialmente em Ez 34 e Jr 23.1-6). A época vindoura da salvação não
será somente a da libertação do povo de Deus de seus inimigos pelo Messias e
a separação final entre as ovelhas e os bodes, mas também o tempo em que ele
ajuntará o verdadeiro povo de Deus123 e os unirá num único rebanho.
A luz disso, devemos considerar a obra salvífica de Jesus com respeito àqueles
que estavam perdidos. Essa obra de ajuntá-los, que é mencionada por Jesus como
sendo o propósito de sua vinda (M t 12.30; Lc 11.23: “quem comigo não ajunta
espalha”), não é apenas uma preparação, mas também uma manifestação do reino.
Nela, Jesus atua como o Messias, aquele que procura e salva o povo de Deus. O
pastor é, ao mesmo tempo, o rei. Isso é também salientado pelos inícios messiâni­
cos de diferenciação em diversos desses pronunciamentos, os quais têm a ver com
aqueles que estão perdidos: “Não fui enviado senão às ovelhas perdidas da casa de
Israel” (M t 15.24); “não vim chamar justos, e sim pecadores ao arrependimento”
(M t 9.13); “o Filho do Homem veio buscar e salvar o que se havia perdido” (Lc
19.10). Essas palavras testificam da consciência messiânica de autoridade e de
poder que já apontamos.124 Essa autoridade também inclui procurar aqueles que
se perderam. Nisso, Jesus / o Messias e nisso o reino se realiza.
Quanto a isso, também a segunda parte de Mateus 9.35-38, na qual Jesus
fala da colheita, é importante. Como regra geral nas parábolas de Jesus, a colheita
128 A v in d a d o R e in o

representa o julgamento final e os ceifadores são os anjos (cf. acima §19). Aqui,
entretanto, os obreiros são seres humanos. Portanto, a “colheita” deve ser enten­
dida como o cenário dos seus labores que está ali, pronto para eles. Ao mesmo
tempo, a colheita indica cumprimento. A busca e ajuntamento daqueles que
estavam perdidos é o começo da colheita. A colheita futura está sendo realizada
onde quer que Cristo proclame a Palavra de Deus com autoridade.125 Isso não
significa, como Dodd sustenta, que a ideia da colheita e do julgamento final deva
ser aplicada exclusivamente ao presente; é, na verdade, uma exceção que a colheita
se refira ao presente. Todavia, é evidente que, na busca das ovelhas perdidas, algo
da futura colheita está sendo cumprido, o qual, de maneira especial, concretiza
a dispensação da salvação do reino.126
Para mencionar somente um último ponto, tudo isso é confirmado nas
palavras bem conhecidas de nosso Salvador em Mateus 11.28: “Vinde a mim,
todos vós que estais cansados e sobrecarregados, e eu vos aliviarei”, as quais
também se aplicam a esse contexto. Pois os que estão “cansados e sobrecarrega­
dos” estão com problemas não por causa de suas “preocupações” ou “pecados”,
mas especialmente pela “opressão” das prescrições farisaicas. Eles devem ser
considerados como “ovelhas sem pastor” nesse sentido particular.127 Não é uma
mensagem eterna de descanso para a alma deles. Essas palavras se originam da
consciência de que o grandioso momento decisivo dos tempos chegou, e de que
a redenção divina só pode ser buscada e encontrada em Cristo.128 Nessas palavras
do Salvador, Deus estende seus braços ao seu povo errante. Esse é o motivo pelo
qual, nesse caso, o reino está presente, apesar de todos os seus mistérios e de seu
caráter preliminar.
Qualquer tentativa,129 portanto, de se elaborar uma doutrina da redenção
que não seja baseada na pessoa e na obra de Jesus como o Cristo deve ser rejei­
tada. Com base nesses ditos que falam da busca pelo perdido, teríamos apenas
a mensagem do amor paternal de Deus, o qual, todavia, estaria em contraste
evidente com o caráter histórico-redentor do evangelho. Só é possível que as
ovelhas perdidas sejam buscadas, que o filho pródigo retorne, que a salvação seja
pregada a publicanos e pecadores porque Jesus é o Cristo e porque, nele, o reino
de Deus chegou. Essa é a grande pressuposição das palavras de Jesus como Sal­
vador com respeito ao que se havia perdido. Se separarmos essas palavras dessa
pressuposição, destituímos o evangelho de sua base. Sem dúvida, isso também
implica que Jesus, como o Cristo, é o esperado juiz do mundo, o Filho do Homem
sobre as nuvens dos céus. Além disso, não deveria haver controvérsia quanto ao
caráter cristológico do seu evangelho como um todo, incluindo o “evangelho
aos pecadores”. Na próxima seção, nossa tarefa será elucidar a “cristologia” dos
Evangelhos em relação com a modalidade especial do reino de Deus.
O REINO CHEGOU - SEU CARÁTER PROVISÓRIO 129

22. O Servo do Senhor

O teor de tudo o que foi destacado nas seções anteriores deste livro se cen­
traliza num único ponto: a pessoa de Jesus como o Cristo. Nele está o mistério
de sua vinda, o cumprimento do reino dos céus (§13). Em sua ação e automanifes-
tação também se encontram a reflexão e a explicação do caráter preliminar desse
cumprimento. Esse último ponto deverá ser agora explicado em mais detalhes.
O conteúdo “cristológico” do evangelho tem dois pontos focais. Um deles é
formado por tudo o que foi dito acerca do Filho do Homem e seu poder. Nele já
brilha algo da sua glória escatológica. M as, ligado a isso, há também algo mais,
algo que é co-determinante, especialmente de seu caráter preliminar. E o fato de
que o Filho do Homem só pode exercer seu poder e glória de uma maneira especial,
determinada a elepor Deus. E é desse modo que ele próprio tem que obter a salvação
que prega a outros, ou seja, em sujeição e abandono à vontade de seu Pai.* Ou,
para dizer de uma vez nas palavras em que o conteúdo cristológico do evangelho
encontra a sua expressão mais fértil: o Filho do Homem e\ ao mesmo tempo, o Servo
do Senhor. Estes são os dois pontos focais que,juntos, determinam o conteúdo do
evangelho. Somente se ambos forem plenamente levados em consideração é que
poderemos entender o cumprimento que se iniciou com a vinda de Jesus, pois ele
jaz não somente na autoridade pessoal pela qual Jesus proclamou salvação, mas
também, e não em menor escala, na maneira pela qual a salvação é obtida por
ele como o Cristo. Portanto, torna-se claro que a pregação do evangelho, apesar
de espalhada como semente, ultrapassa tudo o que até agora havia sido revelado
em Israel. E o evangelho do cumprimento, pois não apenas proclama a salvação
que chegou, mas também no que essa salvação se baseia. Tanto uma coisa como a
outra formam o conteúdo da revelação e a história de Jesus como o Cristo.
A messianidade de Jesus, apesar de ser identificada por ele mesmo, desde o
princípio, com o Filho do Homem de Daniel 7, move-se, todavia, de um modo
que é determinado não somente por glória e poder, mas também por outros
fatores. Isso pode ser visto imediatamente quando, após ter sido proclamado
como o amado Filho de Deus por ocasião de seu batismo no rio Jordão, ele foi
guiado pelo Espírito ao “deserto”. Ali ele deveria ser tentado pelo diabo. A pa­
lavra “tentado”, já de início, salienta o que deve ser discutido aqui. O encontro
de Jesus com o diabo não tem o caráter de uma prova de força, como pretendido
em Mateus 12.29, mas, trata-se de um teste ao qual Jesus tem de se submeter
para provar sua perfeita obediência ao Pai e seu compromisso com o mandato do
Pai. A intenção do tentador, portanto, não é tirar de Jesus sua certeza messiânica
ou fazê-lo duvidar do deleite do Pai expresso por ocasião do batismo. Mas, de
acordo com o relato de Mateus (pelo menos nas duas primeiras tentações), o
diabo tenta induzir Jesus a usar seus poderes messiânicos de um modo que não
130 A VINDA DO REINO

está de acordo com seu mandato. Em oposição a isso, Jesus recorre por três vezes
ao que “está escrito”. Desse modo, declara que, como o Messias e Filho de Deus,
ele também está sujeito à palavra de Deus e encontra nela a sua direção.
O conteúdo material das tentações mostra o caráter da missão messiânica
de Jesus. Por enquanto, ela inclui necessidades (a fome no deserto), exclui qual­
quer prova de força espetacular com a providência divina (a segunda tentação
em Mateus) e não concede a Jesus o governo imediato sobre todos os reinos do
mundo (como foi oferecido a ele pelo diabo). Já estabelecemos que essa tentação
não tem a ver com a posse de honra e de poder sobre a terra, mas somente com
o modo pelo qual Jesus haveria de obtê-los. Aqui, entretanto, fica evidente que
a concessão de dignidade e autoridade messiânicas plenas a Jesus (cf. M t 28.18)
era caracterizada desde o início não somente como obediência e sujeição à von­
tade do Pai, mas, ao mesmo tempo, exigia a sua disposição de aceitar até mesmo
aquilo que não parecia coadunar-se com sua divinamente proclamada dignidade
como o Filho de Deus.
Para que se tenha uma percepção da missão messiânica e da obediência de
Jesus, é importante considerar o uso freqüente, nos Evangelhos, da expressão
“é necessário” {dei) e da palavra “propriedade” (prepon), as quais Jesus deveria
observar ao levar avante sua tarefa. Esse “é necessário” (ou “deve/m”) ocorre com
muita frequência no Novo Testamento (especialmente em Lucas). Em primeiro
lugar, ele indica a vontade de Deus em geral, e, então, especificamente se refere
ao que deve ocorrer para a execução do conselho divino nos acontecimentos
escatológicos (cf., p. ex., Ap 1.1; 4.1; 22.6; M t 24.6; M c 13.10). A totalidade da
ação de Jesus como o Messias está sujeita a esse “é necessário” especial funda­
mentado na vontade divina para efetivar a consumação.130Já havia determinado
a sua conduta como um menino de 12 anos, quando estava no templo no meio
dos doutores da lei (Lc 2.49, “Não sabíeis que me cumpria [dei] estar na casa de
meu Pai?”). Esse “me cumpria” o acompanha a cada passo de suas ações entre os
israelitas (Lc 4.43, “E necessário [dei] que eu anuncie o evangelho do reino de
Deus também às outras cidades”; Lc 13.16, “por que motivo não se devia \_dei\
livrar deste cativeiro... esta filha de Abraão”; Lc 19.5, “Zaqueu, desce depressa,
pois me convém [dei] ficar hoje em tua casa”).
M as é especialmente o final da vida terrena de Jesus que deve estar sujeito a
esse “é necessário”. A partir do momento em que Jesus contou a seus discípulos,
pela primeira vez, que lhe “era necessário” sofrer muito (M t 16.21; M c 8.31;
Lc 9.22), essa palavra, dei, ocorre repetidas vezes, especialmente em Lucas. Ela
pode ser usada para indicar Jerusalém como o lugar ordenado pelo decreto de
Deus, onde Jesus encontrará a sua morte (cf. Lc 13.33, “Importa [dei], contudo,
caminhar hoje, amanhã e depois,131 porque não se espera que um profeta morra
fora de Jerusalém”); ou para confirmar a necessidade de sofrimento antes da vinda
O REINO CHEGOU - SEU CARÁTER PROVISÓRIO 131

do Filho do Homem (cf. Lc 17.25, “M as importa [dei] que primeiro ele padeça
muitas coisas e seja rejeitado por esta geração”). Ou, também, para designar certas
facetas de seu sofrimento como o caminho do Messias prescrito pelos profetas (cf.
Lc 22.37, “Pois vos digo que importa que se cumpra em mim o que está escrito:
Ele foi contado com os malfeitores”).
Essa última citação mostra que o conteúdo desse importa foi não somente
determinado pelo conselho oculto de Deus, como também foi revelado, em
muitos aspectos, nas Escrituras. Por essa razão, não somente foi prescrito para o
Messias, como também poderia, portanto, ser compreendido por todos aqueles
a quem as Escrituras tinham sido “abertas” (Lc 24.25-27; a explicação dada aos
dois discípulos no caminho de Emaús - “Porventura, não convinha [dei\ que o
Cristo padecesse e entrasse na sua glória?”; cf. 44,46).
Essas passagens indicam que, em obediência ao Pai, Jesus, como o Messias,
tinha de cumprir uma tarefa que lhe havia sido imposta por Deus e que uma parte
considerável dela consistia em seu sofrimento e morte decretados pela vontade
divina com o objetivo da consumação final. Tem-se tentado anular o significado
disso tudo com a explicação de que essas declarações explícitas sobre a necessi­
dade dos sofrimentos são vaticia ex eventu (profecias depois dos acontecimentos)
atribuídas à igreja cristã posterior.132 Outros têm pensado que, somente por causa
da atitude do povo é que Jesus chegou gradualmente à certeza de que Deus o
havia destinado ao sofrimento e à morte. Eles tentam sustentar essa opinião
com base em considerações psicológicas de vários tipos,133 ou seja, que Jesus
havia tido um tipo de conscientização psicológica ou certeza com respeito à sua
morte iminente. Pensam que era impossível que Jesus soubesse de antemão de
sua morte em detalhes.134
Em oposição a esses conceitos, deve-se manter que a ideia do sofrimento
e da morte de Cristo e a sua necessidade é um dos elementos mais essenciais do
kerigma de Cristo nos sinóticos. Desde o princípio, ela também determinou as
ações de Jesus em palavras e atitudes. Qualquer pessoa que queira atribuir essas
declarações à igreja cristã posterior deve, consequentemente, rejeitar todo o caráter
histórico do kerigma. Ou, então, deve reduzi-lo ao ponto de que reste apenas
muito pouco que seja certo acerca do Jesus histórico. Essa crítica, todavia, como
é encontrada no grupo radical da escola da crítica da forma, não está preocupada
com o caráter literário do evangelho, mas somente com os fatos registrados em
si, como foi mostrado mais de uma vez e das mais variadas formas.135
Uma análise cuidadosa dos Evangelhos mostra que o tema do sofrimento
se constitui não somente de uns poucos pronunciamentos explícitos feitos por
Jesus, os quais, se necessário fosse, poderiam ser eliminados sem qualquer prejuízo
para a estrutura do kerigma sinóptico. M as essa análise mostra que essas predi-
ções explícitas foram preparadas de várias formas diferentes na história anterior
132 A v in d a do R e in o

e foram seguidas por outras posteriormente. Todas elas têm um pano de fundo
muito mais profundo do que o curso da História como tal.
Quanto à História antes do acontecimento, existe, em primeiro lugar, certo
número de declarações isoladas no evangelho, as quais, de maneira mais velada,
falam da necessidade de sua total humilhação antes do anúncio explícito de
seu sofrimento (cf. M c 8.32, “E isto [seu sofrimento] ele expunha claramente”,
parresiai)PbComo, em primeiro lugar, o que ele disse acerca do noivo, em Mateus
9.15 e nas passagens paralelas. Fica claro, pela comparação do versículo 15a com
15b, que, nesse contexto, o noivo é uma indicação alegórica do M essias.137 E dito
que ele está com os convidados para o casamento somente temporariamente e que
haverá um dia em que ele será tirado deles. Essa é uma alusão implícita à morte de
Jesus. Muitos autores se sentem inclinados, de imediato, a tomar a segunda parte
dessa declaração sobre o noivo como uma “formação secundária”.138 Porém, essa
perspectiva está baseada num petitio principii [petição de princípios, um raciocínio
circular] e não tem provas. Também não há qualquer necessidade de mudar esse
dito para uma época na qual Jesus supostamente estava mais convencido de seu
fim iminente por causa da crescente inimizade do povo. Devemos, muito pelo
contrário, entender que essa palavra foi dita num tempo em que Jesus ainda não
havia falado abertamente e em detalhes aos seus discípulos sobre seu sofrimento
e sua morte, muito embora ele mesmo estivesse plenamente seguro quanto a isso.
O mesmo é verdadeiro sobre aquele dito enigmático no qual Jesus compara o
caminho do Filho do Homem ao caminho de Jonas: “assim como esteve Jonas
três dias e três noites no ventre do grande peixe, assim o Filho do Homem estará
três dias e três noites no coração da terra” (M t 12.40).139 E também aplicável à
declaração que diz “As raposas têm seus covis, e as aves do céu, ninhos; mas o
Filho do Homem não tem onde reclinar a cabeça” (M t 8.20). Essa citação men­
cionada por último não se refere aos sofrimentos e à morte de Jesus, mas indica
que o lar do Filho do Homem não se encontra em lugar algum na terra. Ele tem
que suportar dificuldades e recusas. Em resumo, ele está a caminho da cruz. Para
o seu público inicial, essas palavras podem não ter tido esse significado, mas, no
escopo da tradição como um todo, é claro que Jesus fala de maneira “significativa”
e que, desde o princípio, o conceito de sofrimento foi integrado à totalidade do
kerigma histórico de Cristo.
À medida que a história que nos é contada pelos evangelistas prossegue,
essas declarações se tornam mais numerosas e lúcidas. Especialmente depois da
conversa que Jesus teve com seus discípulos nas vizinhanças de Cesareia de Filipe,
o sofrimento iminente passa a ser anunciado por meio de todo tipo de ilustrações
e parábolas. Isso ocorre, por exemplo, quando Jesus menciona “o cálice que eu
bebo... ou o batismo com que eu sou batizado” (Mc 10.38; cf. M t 20.22); ou no
seu “término” após o “hoje e amanhã” (Lc 13.32-33). Em outra passagem, ele
O REINO CHEGOU - SEU CARÁTER PROVISÓRIO 133

fala de novo sobre o “batismo” com o qual há de ser “batizado”140 e de como se


“angustia até que o mesmo se realize” (Lc 12.50). Fala, ainda, de seu sepultamento,
para o qual ele sabe que foi destinado de antemão (Mt 26.18); fala do assassinato
do filho pelos lavradores ímpios. E há muito mais que pode ser citado de seus
pronunciamentos acerca de seus sofrimentos e de sua morte, os quais se tornam
cada vez mais claros e diretos á medida que o tempo do seu fim se aproxima.141 Do
que já foi aduzido aqui, é evidente que a ideia do sofrimento permeia o evangelho
como fermento e que, sem esses pronunciamentos, é impossível extrair qualquer
sentido coerente da totalidade das ações e palavras de Jesus.
H á outro fenômeno que pode ser ressaltado para confirmar nossa última
declaração: o auto-ocultamento messiânico de Jesus. Apesar de sua autorrevelação
ser inconfundível para aqueles que tinham “ouvidos para ouvir”, era implícita
em muitos aspectos.142 Devemos acrescentar, entretanto, que, em mais de uma
ocasião, Jesus rigorosamente proibiu aqueles a quem tinha sido dado conhecer
o mistério do reino - e, portanto, o mistério do Messias - que o tornassem co­
nhecido como tal.
O reconhecimento desse fenômeno - frequentemente indicado como o
mistério do Messias - tem desempenhado um papel importante na pesquisa
histórica sobre a vida de Jesus desde o final do século 18. Aqui não é o lugar
para iniciar uma discussão elaborada sobre isso tudo, pois o reconhecimento da
pregação de Jesus acerca do reino tem sido considerado, por alguns, como tendo
somente importância indireta - o que é um erro! Na medida em que a pregação
de Jesus sobre o reino dos céus foi considerada como uma questão essencial­
mente imanente, eticorreligiosa - no estilo da velha teologia liberal - seu auto-
ocultamento foi considerado como uma evidência do fato de que o momento
messiânico-escatológico não pertencia originalmente à autoconsciência de Jesus.
Essa consciência assumiu um local fixo em seu pensamento gradualmente, quando
sua missão humana parecia ter falhado. Portanto, qualquer alusão a ela durante
o tempo em que essa consciência messiânica ainda estava se desenvolvendo nele
foi rejeitada vigorosamente por Jesus.
A perspectiva antagônica a essa é a chamada de escatologia conseqüente.
Ela sustenta que, desde o início, Jesus estava consciente de sua missão como o
Messias designado por Deus, mas impôs silêncio sobre o assunto para aqueles que
eram iniciados nesse mistério. A razão para esse silêncio era o caráter inteiramente
futuro do reino de Deus e do ofício messiânico que o acompanhava. A essas duas
perspectivas “históricas” opõe-se a concepção cética radical. Qualquer que seja o
sentido que ela atribua à pregação do reino de Deus, é cética quanto à autocons­
ciência messiânica de Jesus. De qualquer modo, ela considera os elementos de
auto-ocultamento na autorrevelação de Jesus (qualificada por essa escola como
um motif\ tema] religioso) como uma adaptação posterior da tradição acerca de
134 A v in d a d o R e in o

sua vida. Isso implicaria uma reminiscência do tempo em que ainda era sabido
que Jesus não tinha se colocado na posição de M essias.143
No momento, não pretendemos entrar nos problemas históricos desse
“mistério do Messias”. Nosso assunto, neste contexto, é o sentido relativo aos
fatos, em relação à questão sobre se o tema de seus sofrimentos, desde o início,
determinou, ainda que em parte, a missão messiânica de Jesus e sua autorreve-
lação. Para encontrar uma resposta, devemos, em primeiro lugar, reunir as várias
informações que nos são fornecidas, especialmente no Evangelho de Marcos.
Em primeiro lugar, devemos apontar para as repetidas proibições que
Jesus fez contra a divulgação de seus milagres (cf. M c 1.43-45; 5.43; e 7.36).
Relacionadas com essas passagens estão aquelas declarações em que ele tenta
fugir e se esconder das multidões (Mc 1.35-38, 45; 4.35; 5.1; 6.32; 7.24; 9.30) e
as em que se isola com aqueles que queriam ser curados por ele (Mc 5.40; 7.33;
8.23, cf. v. 26). E verdade que esse material traz somente indicações indiretas,
mas há passagens nas quais ele enfaticamente evita os demônios e os proíbe de
o tornarem conhecido como o Messias, quando eles se dirigiam a ele como tal
aos gritos (Mc 1.25,34; 3.12). Encontramos esse mesmo fenômeno frequente­
mente expresso e descrito nas mesmas palavras ou em palavras proximamente
relacionadas depois da confissão de Pedro nas vizinhanças de Cesareia de Filipe
(Mc 8.30) e também depois da transfiguração no monte (Mc 9.9). Ali, os três
discípulos recebem a ordem para não relatarem a ninguém o que tinham visto
antes que o Filho do Homem ressuscitasse dentre os mortos (cf. também passa­
gens paralelas em Mateus e Lucas).
Não há dúvida de que essas ordens incidentais para guardar sigilo não
deveriam ser entendidas de maneira geral e absoluta, pois Jesus aceita honra
messiânica ao final de sua vida e se revela ao Sinédrio como o Filho do Homem
que estava para vir. Também não se pode tratar da mesma maneira os fenômenos
acima mencionados, pois as restrições impostas por Jesus à sua autorrevelação
devem ser explicadas, em parte, a partir de motivos determinados por ocasiões
distintas. Ainda assim, os motivos peculiares e mais profundos não são exauri­
dos desse modo, pois será uma representação equivocada do evangelho se144 o
auto-ocultamento de Jesus for reduzido somente a algo que depende da ocasião,
negando-se, assim, a esse auto-ocultamento uma tendência geral e um significado
mais profundo.
A primeira explicação direta para o auto-ocultamento encontra-se em
Mateus 12.15ss. Aqui, a proibição de Jesus contra a publicidade de sua pessoa
é vista como o cumprimento da profecia de Isaías acerca da aparência do Servo
do Senhor, o qual não procura angariar o favor do povo mediante ostentação e
publicidade. Essa conexão entre a aparência de Jesus e a do Servo do Senhor em
Isaías é muito importante, pois esse Servo do Senhor teria de pagar pela culpa de
O REINO CHEGOU - SEU CARÁTER PROVISÓRIO 135

muitos e submeter-se ao sofrimento e à morte antes de ser exaltado. Em outras


passagens, portanto, Jesus motiva a proibição de torná-lo conhecido, de maneira
geral, referindo-se aos seus sofrimentos e à sua morte. Ele faz isso especialmente
depois da confissão de Pedro nos arredores de Cesareia de Filipe. Em todos os
três Evangelhos, essa confissão é seguida de uma recomendação enfática para
manter sigilo, motivada pelo sofrimento e pela morte aos quais o Filho do Homem
tem que se submeter, como fica evidente, em particular, pelo contexto de Lucas
9.21-22. De fato, a mesma coisa se encontra em Marcos 9.30-31, onde Jesus
se retira e não quer que ninguém o saiba. Na explicação dessa conduta, lemos
também: “Porque ensinava os seus discípulos e lhes dizia: O Filho do Homem
será entregue nas mãos dos homens”. Do mesmo modo, esse tema é, também, a
base da ordem para guardar segredo depois da transfiguração no alto do monte.
Os três discípulos iniciados são proibidos de anunciar a glória messiânica que
tinham visto “até que o Filho do Homem ressuscite dentre os mortos” (M t 17.9;
Mc 9.9; cf. Lc 9.36).
E claro que esse tema do auto-ocultamento messiânico de Jesus é um dado
importante para nós na busca de uma resposta para a questão do lugar da ideia
do sofrimento na totalidade da atividade de Jesus.
Mesmo que não queiramos atribuir um significado exclusivo a este tema para
a explicação do auto-ocultamento de Jesus e mesmo que este auto-ocultamento
se encontre numa tensão estranha com o que o evangelho nos relata em outro
lugar sobre as proclamações altaneiras da chegada visível e audível do reino dos
céus, não podemos deixar de perceber que Jesus mostrou uma notável reserva
quanto à sua messianidade e que essa reserva está em estreita conexão com sua
missão de, como Messias, levar sobre si o sofrimento e a morte. Portanto, isso
implica que o tema do sofrimento tem um fundamento muito mais profundo
no evangelho do que pode ser estabelecido pelas declarações que o mencionam
explicitamente. A salvação messiânica revelada na vinda de Jesus não se funda­
menta exclusivamente em sua autoridade e glória sobrenatural, mas também em
sua humilhação e em sua rejeição. O evangelho do reino, como um todo, deve
ser também qualificado como o evangelho da cruz não somente por causa dos
pronunciamentos deliberados de Jesus acerca de seus sofrimentos, mas também
por causa da modalidade da totalidade de sua autorrevelação messiânica (casu
quo\ auto-ocultamento).
O significado próprio e importante de tudo isso só pode ser compreendido
se tentarmos manter em mente o sentido da tarefa de sofrer que foi assumida e
realizada por Jesus desde o início.
Já vimos que a necessidade divina de sofrimento à qual Jesus estava sujeito
como o Cristo pode ser conhecida da profecia do Antigo Testamento. Isso fica
evidente pelas próprias palavras de Jesus (cf. Lc 22.37; 24.26,44-46) e não menos
136 A v in d a d o R ein o

ainda pelas fórmulas frequentemente repetidas pelos evangelistas ao descreverem


o sofrimento e a morte de Jesus: “para que se cumprisse”, “como está escrito” e
outras (cf., p. ex., M c 14.21; 14.27; cf. Zc 13.7; M c 14.34, cf. SI 42.6,12; Mc
15.34; cf. SI 22.2; Lc 24.46, cf. SI 31.6). O sofrimento e a morte de Jesus não
foram um decreto do destino, nem foram de acordo meramente com um decreto
divino sobre ele que poderia ter sido inferido da providência. Foi o desenrolar
da vontade de Deus de nos salvar, a qual havia sido determinada de antemão e
tornada conhecida por meio dos profetas.
Especialmente digno de nota é o acordo entre a via dolorosa de Jesus e a
profecia do Servo do Senhor de Isaías 53. Mesmo antes que seu sofrimento co­
meçasse, esse acordo se tomou visível. Na discussão acima, já ressaltamos o fato
de que a conduta modesta e humilde de Jesus era o cumprimento do que está
dito em Isaías 42.1-4 acerca do caráter da obra do Servo do Senhor. Também é
importante que, em Mateus 8.16-17, as muitas e diferentes curas de Jesus são
consideradas como o cumprimento da profecia de Isaías 53.4: “ele tomou sobre
si as nossas enfermidades e as nossas dores levou sobre si”. Aí encontramos o
pensamento de que, em sua obra messiânica, Jesus leva o fardo da doença e do
sofrimento das pessoas. E verdade que, nessa passagem, Jesus não aparece como
aquele que leva esse fardo sobre si mesmo em seu sofrimento (como faz o Servo
do Senhor, em Is 53.4). M as a ideia dessa transferência está claramente presente
e é explicada à luz da profecia de Isaías 53.
Quanto a isso, devemos igualmente discutir as palavras que Jesus disse a João
Batista quando este não queria batizá-lo: “Deixa por enquanto, porque, assim, nos
convém cumprir toda a justiça” (M t 3.15). E verdade que, também nesse caso,
não há uma ligação direta com as profecias a respeito do Servo do Senhor.145
Está implícito tanto na recusa de João quanto na resposta de Jesus (“deixa por
enquanto”) que o batismo de Jesus, num certo sentido, era um absurdo. A ordem
que Jesus agora cumpre é de caráter preliminar e temporário. Haverá um tempo
em que estará de acordo com a expectativa de João. O “agora” é o tempo presente
de ocultamento da glória de Jesus.146 E isso acarreta a tarefa de ser ele mesmo
batizado como qualquer outro pecador e de seguir o curso que Deus exigiu dele,
bem como João também, nessa questão (o cumprimento de toda justiça). Isso
implica que, em suas tarefas oficiais, Jesus deve estar unido aos pecadores e levar
os pecados deles sobre si mesmo.147“Ele se associa com os pecadores e se coloca na
categoria dos culpados não para obter a salvação para si mesmo e nem por causa
de sua própria culpa por fugir da ira vindoura, mas porque ele e a igreja formam
uma unidade e é o portador da graça divina e da misericórdia divina.”148
Tudo isso adquire o sentido mais profundo no sofrimento e na morte de
Cristo. O pensamento dominante nesses dois acontecimentos é novamente a
tarefa de levar sobre si mesmo o pecado e a sua solidariedade com os pecadores.
O REINO CHEGOU - SEU CARÁTER PROVISÓRIO 137

E a profecia do Servo do Senhor sofredor está continuamente por trás. É verdade


que somente um pronunciamento nos chegou no qual o próprio Jesus denomina
seu sofrimento e sua morte como o cumprimento de Isaías 53 (Lc 22.37, “Pois vos
digo que importa que se cumpra em mim o que está escrito: Ele foi contado com
os malfeitores”; cf. M c 15.28). Mas, em Marcos 9.12, encontramos uma alusão
clara a Isaías 53 quando Jesus diz: “como, pois, está escrito sobre o Filho do H o­
mem que sofrerá muito e será aviltado?” Em si mesma, a expressão “está escrito”
não precisa necessariamente se referir a uma passagem da Escritura em particular.
Nem os sofrimentos do Messias foram preditos somente em Isaías 53.149 M as as
palavras “será aviltado” (literalmente, “considerado como nada” - exouthenetheí)
dificilmente podem ser explicadas de outra maneira senão como a tradução dos
termos correspondentes em Isaías 53.3.150 E, do mesmo modo, a frase “sofrer muitas
coisas” (cf. 8.31) é um sumário muito apropriado de tudo o que está escrito em
Isaías 53 acerca do Servo do Senhor. Finalmente, devemos apontar para Marcos
10.45; 14.24 e passagens semelhantes com a expressão que aparece frequentemente,
“por muitos”. Esses “muitos” não são outros senão aqueles mencionados em Isaías
53.11, 12a, 12b, cf. 52.15, um fato que tem sido cada vez mais reconhecido.151
Nesse caso, também, há um acordo verbal entre as palavras de Jesus a respeito de
seu sofrimento e aquelas das pessoas sobre o Servo sofredor do Senhor.152
Isso nos leva às declarações que dão uma explicação explícita do sofrimento
e da morte de Jesus, ou seja, aquelas que falam do “resgate” (Mc 10.45; M t 20.28)
e do que Jesus disse acerca do significado da sua morte por ocasião da última
ceia (Mc 14.24; M t 26.28; Lc 22.19-20). A primeira passagem descreve a missão
messiânica de Jesus (“o Filho do Homem veio...”) como serviço. Esse “serviço”
é referido num sentido muito abrangente, isto é, não somente como a expressão
que resume toda a atividade do seu amor ajudador, mas também da oferta de
sua vida, que leva à sua morte.133 Assim, ele “serve” para a salvação de outros e se
sacrifica por outros. Esse fato é posteriormente caracterizado desta maneira: o
Filho do Homem veio “para dar a sua vida (psyche) como resgate por muitos”. As
últimas duas palavras se referem ao “resgate”, como fica evidente pela ordem das
palavras, e não ao “dar”. Ou seja, o autos sacrifício de Jesus tem um sentido único.
Por meio dele, “muitos” são redimidos. Eles não poderiam ter pago o preço por
si mesmos. Ele intercede por eles, produzindo, no lugar deles, o que é necessário
para que sejam libertos. A palavra usada aí para “vida” (psyche) indica o caráter
totalmente abrangente desse “preço”. Não indica apenas um aspecto particular
da existência humana, mas seu sentido é alguma coisa como “ele mesmo”,154 ou
seja, a totalidade da existência concedida ao homem por Deus em todas as suas
possibilidades e associações (também com respeito ao próprio Deus).
Essa substituição significa fornecer um resgate (lutron). A parte da ligação
especial com Isaías 53,155 essa palavra certamente deve ser entendida à luz da
138 A v in d a d o R e in o

mentalidade do Antigo Testamento,156 na qual “resgate” (kofer) indica um paga­


mento feito por uma vida condenada (cf. Ex 21.30; Nm 35.31). A possibilidade
desse pagamento depende da disposição da pessoa a quem ele é oferecido.157 O
oferecimento de um resgate significa a liberação do estado de culpa. A culpa
aqui referida é somente aquela do homem para com Deus.158 E por isso que não
pode haver dúvida quanto a quem o preço é devido. E verdade que esse ponto
não está dito expressis verbi [em palavras explícitas] na passagem, mas ele não
pode ser eliminado.159 De fato, a resposta está implícita no contexto, mesmo que
essa ideia de dar um resgate venha a ser concebida no sentido geral e tedioso
de “liberação” ou “redenção”, pois, sem dúvida, o homem tem que ser liberado
de seu estado de culpa diante de Deus. Além disso, em seu sofrimento e morte,
Jesus serve a Deus. Deus quer que seu Filho sofra. E a Deus, obviamente, que o
preço deve ser pago, a ele, cujos direitos foram violados e devem ser restaurados.
A possibilidade dessa restauração é uma evidência da graça. Todavia, a terrível
natureza do pecado deve ser exposta e os direitos de Deus devem ser afirmados
em oposição ao pecado. O sentido do pecado como também o sentido do perdão
só podem ser entendidos na morte do Filho do Homem enviado pelo próprio
Deus para esse propósito.160 E por isso que o Filho tem que pagar o resgate em sua
imensurável obra de amor e substituição. Ficará cada vez mais claro que esse é o
sentido quando a passagem, em sua totalidade, for estudada à luz de Isaías 53.161
Aqui, o preço pago pelo Servo do Senhor é explicitamente chamado de oferta
pelo pecado em Isaías 53.10. E na oferta pelo pecado que a ideia da satisfação
do direito divino violado apresenta-se claramente.162
Nenhum outro sentido pode ser atribuído aos ditos de Jesus durante a última
ceia, quando ele se referiu ao seu corpo que seria “dado” pelos que são seus, isto é,
entregue à morte; e do seu sangue, o sangue da aliança, que seria derramado para
que muitos obtivessem o perdão de seus pecados. Retornaremos a essa passagem
quando formos discutir o sentido da Ceia do Senhor.163 No presente contexto,
todavia, já podemos declarar que, ao qualificar seu sangue como o sangue da
aliança, Jesus lhe dá o significado de uma oferta feita pela expiação dos pecados
daqueles que são seus. Essa oferta é a possibilidade bem como a base do cum­
primento da promessa da nova aliança (Jr 31.33).

23. O reino e a cruz

N ão pode haver dúvida que todos esses fatos, tanto a maneira do


autossacrifício de Jesus, sua vida e morte, quanto o significado dessa morte, são da
maior importância para uma compreensão verdadeira da história da salvação com
respeito à manifestação do reino dos céus proclamada por Jesus. Pode até mesmo
O REINO CHEGOU - SEU CARÁTER PROVISÓRIO 139

ser dito que o tema do sofrimento é um dos fatores mais constitutivos a determi­
nar o significado da pregação de Jesus sobre o reino.164 O Filho do Homem foi
investido por Deus de todo poder e autoridade para revelar o seu domínio e era,
ao mesmo tempo, aquele que “tinha” de sofrer e morrer. Ele veio para se entregar
como resgate por muitos. Tudo isso é a parte mais característica e “revolucionária”
da autorrevelação messiânica de Jesus - considerando-se a correlação existente
entre o Messias e o reino dos céus - e, consequentemente, também da revelação
do reino. A negação dessa ligação ou o fato de não lhe fazer suficiente justiça,
portanto, é uma das causas mais importantes para o surgimento de interpretações
parciais e erros na explicação da pregação de Jesus sobre o reino.
Ao mesmo tempo, o fim do evangelho (o kerigma do sofrimento, morte e
ressurreição) traz à luz de maneira surpreendente o significado profundo de todos
os tipos de declarações e de parábolas. Ignorar o tema do sofrimento na pregação
de Jesus acerca do reino é característica manifesta da interpretação que ainda está
influenciada pela imagem de Jesus concebida pelos liberais.165
Tem crescido cada vez mais a percepção de que deixar de tratar de maneira
justa a ideia do sofrimento destitui o evangelho, como um todo, do seu poder.
Aqui também a escatologia consistente, liderando uma crítica radical, tem lançado
ataques violentos à concepção liberal. Tem-se tentado estabelecer uma unidade
orgânica e indissolúvel entre a ideia de sofrimento no evangelho e o conceito
escatológico do reino de Deus. A teoria bem conhecida de Schweitzer serviu
ao mesmo propósito. Ele sustentou que, depois de esperar em vão pela irrupção
do reino, Jesus começou a ficar cada vez mais convencido de que somente a sua
própria morte poderia trazer o reino à realidade. Essa morte tinha um caráter
de substituição, pois, em seu sofrimento e em sua morte, Jesus tomou sobre
si a angústia que, de acordo com dogmas judaicos, teria de ser suportada pelo
mundo antes da vinda do Messias e do reino. D e acordo com Schweitzer, Jesus
morreu realmente pelos pecados dos homens, num sentido diferente da teoria
de Anselmo.166
Essa concepção pode, de certo modo, ser apontada como um exemplo da
mais completa alienação da teologia moderna em relação à ideia do sofrimento
e da morte no evangelho. Porém, num sentido formal, ela faz mais justiça ao
sentido fundamental que o sofrimento e a morte de Jesus têm para a vinda do
reino dos céus. Outros, também, têm tentado atribuir ao sofrimento e à morte
de Jesus um lugar mais importante no centro do evangelho, e isso com a ajuda
de toda sorte de paralelos histórico-religiosos.167 Assim, eles tentam estabelecer
uma relação mais próxima entre o reino dos céus e o “tema do sofrimento”.
Ao mesmo tempo, no entanto, há muitos autores que continuam a ignorar a
correlação entre esses dois dados centrais do evangelho. Seguindo os passos dos
teólogos liberais em seus estudos sobre Jesus, eles atribuem somente um sentido
140 A v in d a d o R e in o

secundário à ideia do sofrimento e destituem essa ideia do seu sentido substitutivo


e mais profundo. Ou então eles consideram o significado da pregação de Jesus
sobre o reino em si mesmo (i.e., à parte da ideia do sofrimento que encontramos
nos evangelhos).
Em nossa opinião, o significado do sofrimento e da morte de Jesus para a
vinda do reino deve ser examinado da maneira mais exata possível.
Em resumo, os seguintes pontos devem ser investigados:

a) Enquanto os sofrimentos, a morte e a ressurreição de Jesus não se tornam


fatos, o reino dos céus só pode acontecer de modo muito parcial. Estreitamente
relacionado a isso está tudo o que foi dito até aqui acerca do caráter preliminar
da manifestação do reino, do poder do Maligno que ainda permanece e do
mistério do reino dos céus. Tem sido incorretamente inferido desses fatos que,
enquanto Jesus não havia cumprido ainda sua missão de sofrer e morrer, ele ainda
não era o Messias no sentido próprio da palavra e o reino era somente algo a
ser esperado no futuro. Essa perspectiva é incorreta porque tudo o que Jesus fez
e sofreu em obediência aos comandos de Deus era parte e parcela de seu ofício
messiânico no sentido pleno do termo. E, em tudo isso, o reino havia chegado. O
mundo da redenção de Deus não foi revelado somente no poder de Jesus sobre
o Maligno, em seus milagres e na sua pregação autoritativa da salvação. Em não
menor proporção, foi também revelado, e estava presente, na obediência perfeita
do Servo do Senhor para fazer a vontade do Pai, no fato de que ele tomou sobre
si as enfermidades de seu povo, no seu autossacrifício substitutivo como um
resgate por muitos. Esse é o conceito do mediador, que cumpre a lei, oferece o
sacrifício, expia a culpa e, representando seu povo em tudo isso, o redime. Isso
também é o reino dos céus. Aqui o tema teocêntrico168 do reino se apresenta de
modo incomparável. Em Cristo, Deus mantém seus direitos reais e realiza sua
redenção real. M as isso ocorre não somente em Cristo como o Filho do Homem
investido de toda autoridade, mas também em Cristo como o Servo obediente
e em Cristo que sofre e morre por muitos. O julgamento e a redenção do reino
dos céus são concretizados não somente por intermédio dele, mas também por
ele e nele. Ê por isso que a história do seu sofrimento é cheia de indicações que,
de modo inequívoco, indicam o castigo que caiu sobre o Filho do Homem (o
Getsêmani, Pilatos, a cruz!). É por isso que a sua ressurreição é o estágio final
de tudo o que Deus revela na terra acerca do seu reino. De maneira essencial e
antecipatória, o grande drama escatológico que inaugura a vinda do reino acon­
tece nele como Mediador.
Tudo isso também indica que, com a vinda de Jesus, o reino não pode ser
totalmente revelado de uma única vez. O Filho do Homem não pode vir nas
nuvens do céu antes de sofrer muitas coisas e antes de ser rejeitado por “esta
O REINO CHEGOU - SEU CARÁTER PROVISÓRIO 141

geração” (Lc 17.25). E, desse modo, é também determinada a maneira pela qual
o reino dos céus haveria de manifestar-se para o presente.

b) Isso dá origem à pergunta sobre se, e até que ponto, o sofrimento, a


morte e a ressurreição de Jesus significam um adiamento do julgamento e uma
extensão do tempo deste mundo; em outras palavras, se o autossacrifício do Filho
do Homem na morte não implicou a possibilidade e a necessidade de renovar
a demora da redenção definitiva do reino de Deus e da consumação do mundo.
Essa questão está estreitamente relacionada com outras que serão discutidas
adiante em conexão com a teoria conhecida como Naherwarúung (o advento
iminente). Sua solução provisória será encontrada se prestarmos atenção aos
seguintes pontos:
Em primeiro lugar, como vimos, o sofrimento e a morte de Jesus mostram
algo do julgamento divino e até mesmo do grande dia do Senhor. O resgate
que Cristo teve de pagar pelos “muitos” não foi nada menos que ser entregue ao
julgamento de Deus no lugar destes “muitos”. Nesse sacrifício, Jesus sofreu em
antecipação, por assim dizer, tudo o que os que são seus teriam de suportar de
acordo com a lei, por causa de seus pecados. M as nisso ele também lhes deu a
garantia da redenção perfeita deles. Ele lhes abriu as portas do paraíso (Lc 23.43)
e lhes deu a certeza do reino (Lc 22.29-30); em resumo, ele lançou o fundamento
legal de toda a pregação do evangelho. Aqui também está a possibilidade de seu
povo continuar a viver neste mundo. Por mais que anseiem a perfeição do reino
de Deus (cf., p. ex., Lc 18.7), a vida deles, entretanto, está fundamentada no
cumprimento, no pagamento, na redenção realizada pela morte e pela ressur­
reição de Jesus. O corpo e o sangue de Jesus podem, de agora em diante, ser sua
comida e bebida. A nova aliança que Deus prometeu que faria com seu povo, na
qual esqueceria seus pecados e escreveria suas leis no coração deles (Jr 31.33-34),
foi inaugurada em seu sangue169 e se tornou, assim, possível e legalmente válida
(Lc 22.29). Isso significa que, para os participantes dessa propiciação, a linha
grandiosa de demarcação está não apenas no futuro, mas também no passado: na
absolvição e na renovação da vida que ele, ao entregar-se como resgate, adquiriu
e aplicou-a a todos eles. Nesse sentido, podemos sem dúvida dizer que, no sofri­
mento, na morte e na ressurreição de Jesus, o caráter preliminar do reino dos céus
é confirmado. Já que a totalidade da vida se baseia na absolvição e na renovação,
a consumação de todas as coisas pode esperar, por assim dizer. Um novo nível
foi alcançado, de modo que tudo que for velho é passado, mas o caminho que
leva ao topo ainda está aberto.
Em segundo lugar, a pregação do evangelho só poderia se desenvolver plena­
mente depois da morte e da ressurreição de Jesus. Somente então seria permitido
falar livremente de Cristo em sua glória (cf. M c 9.9). Somente então o véu poderia
142 A v in d a d o R e in o

ser levantado, o véu que estava sobre seu sofrimento e sua morte, e a pregação
do evangelho poderia se tornar a pregação da cruz no sentido mais profundo da
palavra. Exatamente porque Jesus colocou uma ênfase tão grande na necessidade
de se continuar a pregar o evangelho —considerando que os fundamentos mais
profundos sobre os quais o evangelho repousa são o sofrimento, a morte e a
ressurreição de Jesus - isso significa uma continuação do “dia da graça” e do
tempo da conversão.
Terceiro, em conexão muito próxima com o que foi dito, isto é, que Jesus,
especialmente em relação ao seu sofrimento e sua morte, fala acerca dos “muitos”
pelos quais paga o resgate e derrama seu sangue. Qualquer que seja o sentido
em que esse termo seja compreendido,170 é claro que, com “muitos”, Jesus quer
dizer uma grande quantidade de pessoas, um número maior do que aqueles que
ele havia trazido para próximo de si durante sua vida terrena. Aqui, trata-se
especialmente dos “muitos do futuro”, exatamente como, em outras passagens,
existe a questão dos muitos frutos produzidos pela semente do evangelho. Essa
multidão será o fruto do evangelho, no qual a morte salvadora de Jesus será
pregada. Desse modo, as parábolas do semeador e da semente adquirem um
sentido mais profundo, proveniente do sofrimento e da morte de Jesus. O que é
semeado é a palavra, mas, na base dessa palavra, está também o cumprimento de
suas ações messiânicas em sua morte. E, por ser essa palavra, ela produz “muito”
fruto, tendo primeiramente que “crescer” e “amadurecer”, isto é, desenvolver sua
força no tempo futuro. O sofrimento e a morte de Jesus possibilitam um novo
futuro, fornecem um adiamento e criam novas oportunidades para a continua­
ção da vida na terra, porque a força que está dentro delas para os “muitos” deve
se expandir e comunicar como fermento na massa, como o grão de mostarda
insignificante, que chega a um grande crescimento. Não é somente porque o
sofrimento e a morte de Jesus pertenciam ao futuro que o reino não podia ser
consumado, mas, também depois desse grande acontecimento salvífico, o reino
precisa de mais tempo, outra vez, para poder atingir o seu objetivo e produzir o
fruto que está incluído nele para “muitos”.

c) Do mesmo modo, percebemos que a ressurreição de Cristo comunica um


grande estímulo aos apóstolos para a pregação do evangelho. O próprio Ressurreto
os chama para essa tarefa depois de mostrar-lhes, a partir das Escrituras, a ne­
cessidade do sofrimento e da morte do Cristo (Lc 24.25ss, 44ss). A autoridade
real do Filho do Homem, que lhe foi conferida pelo Pai, uma autoridade que
abrange céus e terra (M t 28.18), é colocada, antes de tudo, à disposição dessa
pregação do evangelho.
Esse poder infinito chama os discípulos para uma tarefa contínua, cuja
execução se torna possível por causa da comunhão infinita que o Cristo lhes
O REINO CHEGOU - SEU CARÁTER PROVISÓRIO 143

promete (toda a autoridade, todas as nações, todos os dias; M t 28.18, 20; M c


16.20). Destes fatos, a saber, do sofrimento, da morte e da ressurreição de Cristo,
os enviados devem ser testemunhas (Lc 24.46-48). Dessa maneira se abre um
novo futuro, por causa do evangelho da cruz e do avanço dessa pregação, a qual
pode ser o meio para se medir o progresso do tempo da salvação e a esperança
da consumação dos séculos (cf. M t 24.14).171
V
O EVANGELHO DO REIN O

1. O TEMA BÁSICO

24. O evangelho dos pobres

Nos dois capítulos precedentes, prestamos atenção, acima de tudo, ao


caráter histórico-redentor da pregação de Jesus sobre o reino dos céus. Ficou
estabelecido que Jesus falou da presença do reino em mais de um sentido, isto
é, da consumação dos tempos e do cumprimento das Escrituras, e também que
esse cumprimento tem apenas um caráter preliminar e que ainda aponta para
um futuro que está distante.
Repetidamente deparamos com o significado da pregação do evangelho. Por
um lado - como vimos - essa pregação é evidência de que o reino veio, visto que
as coisas anunciadas nessa proclamação do evangelho não são apenas palavras,
mas atos, não somente um som, mas realidade. Elas são apoiadas pela pessoa de
Cristo e estão fundamentadas na sua obra, especialmente no seu sofrimento e na
sua morte. Por outro lado, também vimos que é exatamente essa continuação da
pregação do evangelho que se constitui no caráter preliminar da vinda do reino.
Isso está implícito, de maneira especial, nas parábolas que tratam do sentido
histórico-redentor da pregação do evangelho.
Tudo isso nos leva a considerar o conteúdo da pregação do evangelho, que
é descrito desse modo. Não há dúvida de que, no que foi dito acima, acabamos
por tocar nesse conteúdo de várias maneiras. Ainda assim, estávamos somente
preocupados com pontos de vista formais e gerais. Nossa tarefa, agora, será entrar
em detalhes quanto ao conteúdo real dessa pregação, bem como sua estrutura
interna, que a controla, e o propósito que ela tem para o presente.
A primeira vista, o evangelho do reino dos céus consiste em duas partes, que
formam uma unidade indivisível. A primeira tem a ver com o dom, a salvação, que
O EVANGELHO DO REINO - O TEMA BÁSICO 145

é oferecida no evangelho.1A outra, com a exigência, o comando no qual a salvação


encontra sua expressão. Estamos conscientes de que essa divisão é um tipo de
esquema ou padrão que, como tal, não ocorre na pregação de Jesus. Também
vamos ficar cada vez mais cientes do fato de que o dom da salvação anunciada
contém também uma ordem, e que, vice-versa, essa ordem, essa exigência do reino,
também pertence à salvação proclamada por Jesus. M as há motivo para se fazer
distinção entre as duas coisas, considerando a natureza do caso. Á semelhança do
exemplo grandioso e glorioso da pregação de Jesus sobre o reino no Sermão do
Monte, primeiro encontramos as bem-aventuranças, e, depois, os mandamentos.
Devemos aplicar essa divisão e regular o curso de nossa investigação de acordo
com esse exemplo.
No entanto, quando examinamos o assunto com mais cuidado, parece que
outro ponto deveria preceder esse tratamento proposto, pois tão logo intentemos
circunscrever o evangelho pregado por Jesus, somos confrontados com certas
pressuposições que conferem uma expressão e uma estrutura muito peculiares
a essa pregação da salvação. O evangelho do reino não é algo totalmente novo,
mas o cumprimento do que é antigo. Isso se aplica aos mandamentos, como
veremos, e, do mesmo modo, à salvação proclamada por Jesus. A totalidade da
proclamação da salvação é determinada terminologicamente e de maneira factual
pela história da salvação que a precede e não pode ser entendida sem ela. Antes
de entrarmos no conteúdo propriamente dito da salvação anunciada por Jesus, é,
portanto, necessário revelar os próprios fundamentos que determinam o padrão
completo e a estrutura da pregação de Jesus. Desse modo, tentaremos obter uma
perspectiva mais exata do significado especial da pregação de Jesus a respeito da
salvação, bem como no sentido de seus mandamentos.
A importância dessa consideração pode se tornar imediatamente manifesta
se prestarmos atenção ao fato notável de que, na primeira parte da sua pregação
sobre o reino dos céus, Jesus qualifica repetidamente o evangelho como o evangelho
dospobres. Essa expressão é encontrada na primeira pregação de Jesus na sinagoga
de Nazaré (Lc 4.18) em conexão com a profecia de Isaías 61. Também ocorre
na resposta que ele deu a João Batista, com mais detalhes acerca do sentido da
sua vinda e da sua atividade (Mt 11.5; Lc 7.22). E as bem-aventuranças, que são
um exemplo característico da sua pregação,2 tanto em Mateus quanto em Lucas,
começam com a menção dos pobres de espírito [na versão ARA, “humildes de
espírito” (n. do e.)], os quais são enfaticamente indicados (autoi) como aqueles
para quem a salvação do reino está destinada.
Diante da natureza do caso, devemos tentar obter uma melhor percepção do
significado do evangelho levando em conta a estreita ligação entre “o reino dos
céus” e “os pobres (de espírito)”. E bem conhecido o fato de que alguns, como
Harnack, por exemplo, basearam toda a sua concepção eticorreligiosa do reino
146 A v in d a d o R e in o

dos céus nas bem-aventuranças, porque, em sua opinião, as bem-aventuranças


sobre os pobres de espírito indicam a raiz da nova justiça, que é a humildade?
Em contraste com isso está a perspectiva daqueles que partem de uma
concepção totalmente diferente do reino dos céus e que, consequentemente,
conferem um sentido bastante diferente à expressão programática “o evangelho
dos pobres”. Assim, por exemplo, Bultmann entende os “pobres de espírito” como
os pecadores e considera essa indicação como a confirmação do caráter objetivo e
transcendente do reino. Ao se dirigir aos “pobres” em primeiro lugar, Jesus supos­
tamente prega o evangelho do reino como um ato soberano de Deus, como um
dom puramente escatológico, do qual homem nenhum pode ser o distribuidor.4
De modo geral, pode-se dizer que, na literatura recente sobre o tema, prevalece
a concepção de que o conteúdo do evangelho não tem um sentido imanente-
ético, mas sim transcendente-soteriológico. De acordo com isso, os “pobres de
espírito” são concebidos como “pecadores”, ou, pelo menos, como aqueles que
estão perturbados pelo sofrimento e pela angústia. Eles estão destinados ao reino
de Deus porque esperam nele para sua redenção.5
Não há qualquer dúvida de que a expressão “pobre de espírito” não pode
ser interpretada no sentido de um novo ideal eticorreligioso de “ser” pregado ou
transmitido por Jesus, que incorpora o sentido do reino dos céus propriamente
dito. Por outro lado, também não se pode dizer que a expressão significa uma
necessidade geral e uma susceptibilidade à redenção divina, de acordo com a qual
a salvação do reino de Deus está supostamente implícita num sentido eterno e
universal. Pelo contrário, devemos determinar o sentido específico e historica­
mente determinado da qualificação “pobre de espírito” e, a partir desse ponto,
estudar o caráter e o conteúdo do evangelho do reino.
Isso se tornará mais claro na medida em que estudarmos o pano de fundo
veterotestamentário tanto da noção de “pobre” (ptoochos) quanto de “pobre de
espírito” (ptoochos tooipneumati). O primeiro caso é equivalente ao hebraico ani,
e o segundo tem um sentido próximo de anaw. Ambas as palavras transmitem
a ideia de um tipo de aflição ou opressão. A última {anaw, pobre de espírito) se
refere particularmente à humildade do sofredor durante sua aflição. Seu sentido
é mais ou menos o mesmo da palavra “manso” (no sofrimento), o “praüs” de M a­
teus 5.5, que é usado, nesse caso, também, como sinônimo de “pobre de espírito”.
Temos também de entender a palavra “pobre” quando ocorre sozinha (Lc 4.18;
6.20; 7.22), como equivalente a “pobre de espírito”. Além disso, a palavra hebraica
ani tem essa conotação (cf. SI 18.28; 72.2; 74.19). Mencionamos também Lucas
4.18; 7.22 (concordando com a Septuaginta), a qual traduz o hebraico anawin de
Isaías 61.1 como “os mansos”. E, em Mateus, “pobre” e “pobre de espírito” [que na
versão A R A está traduzido como “humilde de espírito” (n. do e.)] evidentemente
têm o mesmo sentido (cf. 5.5 com 11.5).
O EVANGELHO DO REINO - O TEMA BÁSICO 147

Esses “pobres” ou “pobres de espírito” (“mansos”) ocorrem repetidas vezes


no Antigo Testamento, particularmente nos Salmos e nos profetas. Eles repre­
sentam os que são socialmente oprimidos, os que sofrem debaixo do poder da
injustiça e são assediados pelos que só se preocupam com o seu próprio proveito
e influência. Ao mesmo tempo, eles são os que permanecem fiéis a Deus e que
esperam sua salvação somente no reino de Deus. Eles não pagam o mal com o
mal nem lutam contra a injustiça usando a injustiça. E por isso que, em meio à
impiedade e ao mundanismo, eles formam o verdadeiro povo de Deus. Como tal,
eles são, repetidas vezes, confortados com a promessa da salvação vindoura do
Senhor e com a manifestação de sua redenção real (cf. SI 22.27; 25.9; 34.3; 37.11;
72.12-13; 147.6; Is 11.4; 29.19; etc.).
O conceito “pobre” ocorre mais de uma vez nesse sentido também nas es­
crituras judaicas posteriores e pré-cristãs. No momento - e esse é o pensamento
que é acolhido ali, também - o povo de Deus está disperso entre os pagãos; os
piedosos e os ímpios estão misturados naquele que, desde os tempos antigos, tinha
sido o povo de Deus. Porém, um dia, o verdadeiro Israel será reunido por Deus e
se tornará manifesto. Esse núcleo dopovo de Deus é, então, chamado de os ptoochoi,
os penetes, imitando os textos do Antigo Testamento, especialmente nos Salmos
de Salomão. E a estes que está relacionado tudo o que havia sido prometido pelos
profetas e que era esperado ansiosamente nos círculos daqueles cujas esperanças
estavam em Deus quanto à salvação de Israel como o povo de Deus.6
E contra esse pano de fundo que teremos que analisar “os pobres” a quem o
evangelho é pregado, bem como “os pobres de espírito” e os “mansos” das bem-
aventuranças. Não estamos interessados, aqui, num novo ideal ético, nem mera­
mente na indicação de alguma injustiça social que precisa ser reparada. Também
não somos, aqui, confrontados com alguma noção religiosa geral do conhecimento
de algumas imperfeições impessoais e pecados, como se tal conhecimento pudesse
preparar alguém para o reino de Deus. Pode-se dizer que o conceito “pobre” é
determinado tanto socialmente quanto num sentido eticorreligioso. M as, acima
de tudo, essa palavra deriva seu sentido do fato que esses “pobres” e “mansos”
são os portadores da promessa da salvação desde os tempos antigos, num sentido
especial, pois são o verdadeiropovo de Deus. E, em contraste com os que colocaram
sua esperança aqui neste mundo, eles esperam a salvação que Deus estendeu ao
seu povo como “a consolação de Israel” (Lc 2.25; cf. 6.24; 16.25; M t 5.4).
Tudo isso é confirmado pela qualificação subsequente dos “pobres de espírito”
que Jesus dá nas bem-aventuranças, especialmente nas palavras “os que choram” e
“os que têm fome e sede de justiça” (Mt 5.4,6; cf. Lc 6.21). E verdade que muitos
escritores pensam que essa justiça é uma concordância subjetiva com a exigência
de Deus, e, por isso, explicam a “fome” e a “sede” como tristeza pelas imperfeições
morais.7 Em nossa opinião, essa perspectiva deve ser decisivamente rejeitada, pois,
148 A v in d a d o R e in o

em primeiro lugar, Lucas 6.21 não menciona “justiça” de modo algum; fala somente
de “vós que chorais” e “vós que tendes fome”. Na seção que vem depois, a dos “ais”,
o oposto dos que “choram e têm fome” são aqueles que “estão fartos” e que, “agora,
riem”. Em nossa opinião, é claro que essas palavras se referem aposição social dos
que “riem”, etc., neste mundo (cf. Jo 16.22,20) e à ousadia deles, baseada na sua
posição (e não em suas qualidades morais). Em contraste com eles, estão os “pobres”
que, agora, “têm fome” e “choram”, isto é, aqueles que esperam a redenção de Deus
para o seu povo, redenção do poder da opressão e da injustiça, as quais prevalecem
no tempo atual.8 E esse anseio pela libertação que é indicado como “fome e sede
de justiça nas bem-aventuranças em Mateus.
Isso também está em harmonia com o que é dito em outro lugar acerca da
“justiça” em conexão com o pobre e o manso. O artigo definido grego já sugere
que a expressão se refere a algo suprapessoal, à justiça “no pleno sentido da pala­
vra”, a justiça divina. E é precisamente essa justiça divina que é, repetidas vezes,
representada no Antigo Testamento como a esperança e a consolação do pobre
e do oprimido.9 Não deve ser entendida no sentido paulino de justiça forense
imputada, mas como a justiça do rei,10 a qual será trazida à luz um dia para a
salvação do oprimido e dos excluídos e que será executada especialmente pelo
Messias (sobre esse conjunto complexo de pensamentos veja, p. ex., 2Sm 14.5ss;
2Re 6.26ss; Jr 23.6; 33.6, etc.). É essa a “justiça” que os pobres de espírito e os
mansos aguardam no Sermão do Monte. E é a eles que essa justiça é prometida.
Esse conceito é decorrente, em todas as formas, da ideia do reino de Deus. Quando
Deus iniciar o seu governo como rei, seu povo oprimido, que espera nele para
todas as coisas, será farto com sua justiça e aqueles que, agora, estão fartos terão
motivo para chorar.
O próprio ensino de Jesus contém uma confirmação muito clara e uma ilus­
tração desse pensamento, que é a parábola do juiz iníquo (Lc 18.1-8). Também
essa parábola é dominada pelo pensamento do direito dos pobres. E à luz disso
que a figura da viúva deve ser vista, quando ela pede justiça contra seu adversário
(v. 3) em palavras que lembram o Salmo 43.1. Aqui, também, a metáfora é de uma
vida que tem fome dejustiça. Porém, não só na própria parábola, mas também na
aplicação, o pensamento da justiça redentora ocorre duas vezes: “Não fará Deus
justiça11 aos seus escolhidos, que a ele clamam dia e noite?” e, de novo, “digo-vos
que, depressa, lhes fará justiça” (Lc 18.7-8).
A justiça aqui mencionada não é outra senão a libertação (da opressão) à
qual o povo de Deus (seus escolhidos) pode reivindicar como a salvação que seu
rei lhes prometeu. E é essa salvação que é proclamada como “o evangelho dos
pobres” na pregação de Jesus sobre o reino.
Em nenhum outro lugar está mais clara a natureza e o significado da ligação
entre o “reino de Deus” e os “pobres” do que no cântico de Maria (Lc 1.46-55).
O EVANGELHO DO REINO - O TEMA BÁSICO 149

Esse cântico é dominado pelo mesmo pensamento do “evangelho dos pobres” e


seu conteúdo está relacionado muito estreitamente com o das bem-aventuranças.12
Nesse caso, também, encontramos o contraste entre o “Poderoso” e o “humilde”,
entre aqueles que “têm fome” e os “ricos”, e a menção da intercessão redentora do
“Poderoso” e de que “agiu com o seu braço valorosamente”. Aqui, também, está
a bem-aventurança que a serva de Deus recebe em seu estado de “humildade”,
por causa da salvação.
A base de tudo isso é explicitamente mencionada no cântico de Maria: o fato
de que Deus “amparou a Israel, seu servo,13 a fim de lembrar-se da sua misericórdia14
a favor de Abraão e de sua descendência, para sempre”. E esse relacionamento, o
qual também forma a base da salvação dos pobres, que é proclamado nas bem-
aventuranças e que expõe a primeira definição do evangelho do reino de Deus.
Ê claro que a salvação do reino dos céus proclamada por Jesus deve ser vista,
desde o princípio, contra o pano de fundo de sua própria determinação histórica.
Acima de tudo, Jesus se dirige aos “pobres” ou “pobres de espírito” e o evangelho
do reino dos céus como um todo pode ser caracterizado como “o evangelho dos
pobres”. M as isso não significa, como com frequência se presume, que, por causa
disso, o evangelho é universalizado, excedendo, assim, os limites de seu escopo
particularizado. A mensagem da salvação não é colocada no nível comum da
humanidade em geral. Ao contrário, essa mensagem é propositalmente adaptada
à relação especial que Deus estabeleceu desde tempos antigos entre seu povo e
si mesmo. Sem dúvida, o caráter espiritual dessa relação é fortemente enfati­
zado, como transparece também dos anúncios de desastre que seguem o relato
das bem-aventuranças em Lucas. Apesar disso, é evidente que a designação da
salvação aos pobres se fundamenta, acima de tudo, no relacionamento especial,
histórico-redentor, entre Deus e seu povo.
A base da descrição do evangelho como o evangelho dos pobres se encontra na
realidade da aliança de Deus com seu povo e na sua relação teocrática com ele. E a
esse verdadeiro povo de Deus que as bem-aventuranças são dirigidas. E a ele que a
salvação do reino é concedida como direito legal. E essa relação especial que, do início
ao fim, codetermina o conteúdo e a estrutura do evangelho do reino dos céus.
Esse fato nos induz a examinar de maneira mais cuidadosa toda a prega­
ção de Jesus e a não nos satisfazermos com uma mera caracterização geral do
evangelho do reino.

25. A nova aliança

Behm fez a observação15 de que a palavra aliança (diatheke) é usada somente


uma vez pelo próprio Jesus e que não ocorre no restante do evangelho. M as esse
150 A v in d a d o R e in o

fato, diz Behm, não diminui a importância central do conteúdo dessa noção nos
Evangelhos. Veremos que essa opinião é, indubitavelmente, correta. Somente
será necessário deduzir, a partir dos próprios Evangelhos, uma definição exata
do conteúdo desse conceito na pregação de Jesus.
Já no princípio, nas histórias do nascimento de Jesus, somos confrontados
com o aspecto da aliança, como, por exemplo, no anúncio do nascimento de Jesus
a Maria pelo anjo (Lc 1.32ss). Aqui, Jesus é apresentado como o rei da casa de
Davi. Outras passagens são o cântico de Maria (Lc 1.54ss) e, especialmente, o
cântico de Zacarias (Lc 1.68-79), no qual a salvação vindoura é caracterizada
como ter redimido “o seu povo”, ter suscitado “plena e poderosa salvação na casa
de Davi”, a libertação “dos inimigos”, como o uso “de misericórdia com os nossos
pais”, e como ter se lembrado “da sua santa aliança”, etc. Uma indicação adicional
importante se encontra na mensagem do anjo a José, de que Jesus salvará “o seu
povo” de pecados deles (M t 1.21), o que, certamente, é uma referência a Israel.16
O mesmo é visto na mensagem aos pastores, na qual há a questão das boas-novas
de grande alegria que o será para “todo o povo”17 e que indica Belém como “a
cidade de Davi” (Lc 2.10-11). Essa é uma alusão evidente ao fato de que o nas­
cimento de Cristo é o cumprimento da promessa da aliança com Israel. Simeão,
também, fala da mesma maneira quando diz que a salvação dada com Cristo em
seu nascimento é “a glória do teu povo de Israel” (Lc 2.32).
Em todas essas passagens, a ideia da aliança de Deus com seu povo se
apresenta da mesma maneira. Elas falam da “casa de Davi”, “o povo de Deus”,
“Israel” e “todo o povo” ou “teu povo de Israel”. A essa altura, ainda não é
mencionada qualquer separação interna dentro do povo de Israel. E verdade
que, no cântico de Maria, “os poderosos” e “os soberbos” são contrastados com
os “humildes”, e os “ricos” são contrastados com “os famintos”. M as o cântico
prossegue e diz, em seguida, aquele “que amparou a Israel, seu servo” (Lc 1.54).
No cântico do anjo, paz na terra é prometida àqueles “a quem ele quer bem”,
mas, aparentemente, isso deve ser entendido no mesmo sentido das palavras que
mencionam a grande alegria “que o será para todo o povo” (Lc 2.10,14).18 Além
do mais, há, também, declarações que atribuem um sentido universal à salvação,
em consonância com os profetas, como, por exemplo, Lucas 2.14 (paz na terra)
e 2.30-32 (“...a tua salvação, a qual preparaste diante de todos os povos: luz para
revelação aos gentios”). M as isso não diminui nada do fato de que toda a parte
inicial do evangelho fala da vinda da salvação prometida a Israel e, portanto, vê
o evangelho do reino do ponto de vista da teocracia do Antigo Testamento e da
aliança entre Deus e Israel.
Entretanto, seria incorreto inferir disso que a abertura do evangelho é do­
minada por um particularismo que atribui a salvação do Senhor exclusivamente
ao povo empírico de Israel. Muito pelo contrário, devemos compreender esses
O EVANGELHO DO REINO - O TEMA BÁSICO 151

pronunciamentos no sentido de que, no raiar da salvação do Senhor, a ideia de


Israel como povo de Deus se apresenta fortemente no seu sentido ideal e espiritual,
o qual pode ser conhecido pelos Salmos e pelas profecias do Antigo Testamento.
Desse ponto de vista, e sem diferenciação posterior, o evangelho fala de “Israel” e
do “povo do Senhor”, etc. Todavia, não podemos dizer que, nesse momento, já o
verdadeiro Israel espiritual está sendo contrastado com o povo carnal. A salvação
do Senhor é aplicada ao povo do Senhor como um todo em virtude da aliança. A
totalidade de Israel é vista a partir do seu núcleo e é chamada de afortunada.
A primeira vista, a pregação de João Batista parece contradizer essa perspec­
tiva de Israel como o povo de Deus. O conceito da totalidade é aqui substituído
pela chamada ao arrependimento, que traz um forte caráter pessoal e torna a
salvação na vinda do domínio de Deus dependente dessa conversão pessoal. Em
sua pregação penitencial, João rejeita de maneira muito incisiva qualquer confiança
na descendência de Abraão (Mt 3.9). Tudo isso pode parecer individualismo
religioso, que não leva em consideração a eleição de Israel como o próprio povo
de Deus. Porém, isso acontece somente na aparência, pois mesmo sem levarmos
em consideração passagens como Lucas 1.77, que menciona a preparação do
“povo” de Deus como sendo a tarefa especial de João, transparece, da sua própria
pregação, que o Batista liga a promessa com os filhos de Abraão. Nessa passagem,
só encontramos o pensamento germinal de uma determinação inteiramente nova
para o conceito de “filhos de Abraão”. Isso está implícito nas bem conhecidas
palavras: “Destas pedras Deus pode suscitar (egeirai) filhos a Abraão” (Mt 3.9).
Nesse caso, em primeiro lugar, o conceito “filhos de Abraão” foi redefinido.
Não significa todos os que nasceram de Abraão, mas os filhos verdadeiros de
Abraão,19 os filhos a quem “as promessas foram feitas”, como disse Paulo em
Gálatas 3.16. Aqui se vê, portanto, que a promessa foi cumprida e que o povo de
Deus é formado apesar da incredulidade e da aversão de Israel. Aqui, também,
se vê ofator que é realmente constitutivo da semente de Abraão e a base verdadeira
pela qual se pertence a ela. Não se encontra na descendência biológica nem na
atividade humana, mas no poder vivificador de Deus (egeirai).20Toda confiança
carnal na descendência de Abraão é rejeitada, mas não se desiste do significado e
da determinação histórico-redentora da ideia do povo de Deus (a promessa feita
a Abraão!). Ao contrário, esse significado é revelado em seu sentido mais próprio
e profundo ao ser atribuído à graça de Deus que recria tudo livremente.21
Nas ações e na pregação de Jesus, encontramos a ideia mencionada acima
da totalidade de Israel como o povo de Deus e também, de fato, a ideia do novo
Israel substituindo o antigo. Ambos os conceitos são expressos desde o início e
continuam a existir lado a lado, mesmo quando a linha de demarcação no Israel
histórico se torna cada vez mais acentuada. M as aqui se apresenta, sem maior
diferenciação, o aspecto geral de Israel como o povo de Deus.
152 A v in d a d o R e in o

Desde o início, Jesus se volta para Israel como um todo como o povo de
Deus, a quem a libertação do reino dos céus foi prometida. Como “filhos do
reino” (M t 8.12), eles se encontram numa relação especial com o que foi dado e
revelado na vinda de Cristo. Pode-se dizer, portanto, que, a eles, o reino foi dado
como um privilégio especial (de outro modo, não se poderia “tirar” esse reino
deles e “entregue a um povo”, como está dito em M t 21.43). Eles são “os filhos”
que têm direito ao pão, o qual não pode ser dado aos “cachorrinhos” (Mc 7.27;
M t 15.26). Nessas passagens e em outras, fica claro o quanto o ponto de partida
das ações de Jesus estava fundamentado no relacionamento histórico e particular
entre Deus e Israel. Essa relação tem a ver não somente com o “povo dentro do
povo”, mas com todos que pertencem ao povo. Não há qualquer menção de um
tipo de evangelização universalista que irrompesse pela ideia da eleição e daquela
do povo de Deus.22
Nesse contexto, devemos lembrar23 as palavras de Jesus sobre o Salvador,
nas quais ele indica que o propósito de sua vinda foi buscar “o perdido”. Essas
palavras são importantes não apenas porque revelam claramente o caráter sal-
vífico das ações de Jesus, mas porque enfatizam fortemente sua ligação com o
povo de Israel.
A condição de “perdido” mencionada aqui não deve ser entendida como um
declínio religioso em geral, mas como uma ovelha desgarrada que vagueia para
longe do rebanho e que, portanto, perdeu-se em relação ao Senhor do rebanho, isto
é, Deus. E verdade que as passagens que falam do “perdido” (a ovelha, o filho
pródigo, etc.!) são usadas para provar que Jesus havia rompido com a ideia par-
ticularista de que Israel, como povo eleito, era o povo de Deus. Supõe que Jesus
insistiu num tipo de individualismo religioso no valor infinito da alma humana
individual (como na parábola em que o pastor se preocupa com uma única ovelha
que se desgarra, etc.). M as isso é incorreto. A “perdição” dos pecadores e publica-
nos que Jesus procurava remediar consistia na total separação deles do rebanho,
isto é, o povo de Deus. E é por isso que eles corriam o risco de perder a salvação
prometida a esse povo de Deus. O interesse especial que Jesus manifestou em
sua atividade messiânica em favor dos perdidos, sua compaixão, se fundamenta
claramente no fato de que eles pertenciam ao povo de Deus. Ele busca as ovelhas
perdidas da casa de Israel e procura e salva o publicano perdido e desprezado
“pois que também este é também filho de Abraão” (Lc 19.9).Todo o povo, mesmo
aqueles membros menos distintos, são o rebanho de Deus, e como tais, objeto
da misericórdia e do amor redentor de Jesus.
Ao lado disso, há outra característica na pregação de Jesus, a reprovação tanto
no sentido coletivo quanto no individual. Do mesmo modo que João Batista,
Jesus traçou a linha divisória dentro da nação judaica. As bem-aventuranças
são o exemplo clássico do cumprimento da promessa de Deus ao seu povo, mas
O EVANGELHO DO REINO - O TEMA BÁSICO 153

àqueles a quem faltam as características espirituais desse povo de Deus, Jesus


prega “ai de vós” com uma ênfase ameaçadora. O anúncio que ele faz do reino é a
pregação do evangelho, e, ao mesmo tempo, a proclamação do julgamento dentro
da nação de Israel. Não é o fato de pertencerem a Israel que os salvará, mas o
arrependimento. O rico que foi ao inferno apela para essa relação com Abraão e
é chamado de “filho” pelo próprio (Lc 16.24-30), mas nem ele nem seus “cinco
(!) irmãos” podem ser salvos se não obedecerem a “Moisés e aos profetas”. Apesar
de Jesus restringir as suas atividades aos limites da nação judaica (M t 10.5-6), ele
declara que “os filhos do reino serão lançados para fora”, enquanto muitos virão
do Oriente e do Ocidente e se sentarão à mesa com Abraão, Isaque e Jacó no
reino dos céus (M t 8.10-12; cf. Lc 4.25-27). As vilas incrédulas de Israel serão
punidas mais severamente no dia do julgamento do que os pagãos (M t 11.20-24;
12.41ss). Ao final de sua pregação, quando se torna óbvio que o povo, como um
todo, não o aceita, Jesus, então, anuncia explicitamente que Israel, como o povo
do Senhor, será rejeitado e seus privilégios serão dados a outro “povo” (Mt 21.40-
41,43; 22.8ss; 23.38-39ss).
Todavia, nada do que foi dito acima diminui o que tem uma importância
especial na estrutura da pregação de Jesus acerca do reino, ou seja, que a vinda
de Cristo e a salvação por ele concedida aos que creem nele permanecem qualifi­
cadas pela aliança de Deus epelo relacionamento com Israel estabelecido nessa aliança.
Contudo, em consonância com o que observamos a respeito do significado da
expressão “filhos de Abraão”, empregada por João Batista, vemos também que, na
pregação de Jesus, o caráter da relação especial entre Deus e Israel se aprofundou
e se tornou mais definitivo. Os mesmos conceitos que foram aplicados ao círculo
histórico e empírico de Israel em tempos antigos, num sentido inclusivo, e que
foram também aplicados por Jesus, são usados também num sentido exclusivo para
indicar a comunidade daqueles que aceitam o evangelho em fé, e que, portanto,
herdarão o reino. A expressão “filhos do reino” (M t 8.12), indicando o Israel
“segundo a carne” é, agora, usado no novo sentido da “boa semente” (M t 13.38).
O relacionamento especial com Deus, que, a princípio, se aplicava a todo o Israel,
é, agora, restringido (e estendido) aos que respondem à pregação do reino com
fé e arrependimento e que foram eleitos por Deus para esse fim.
Essa mudança, perceptível nos Evangelhos, encontra sua base já no Antigo
Testamento (Jr 31). É muito característico do ensinamento de Paulo que a inclusão
no povo de Deus (i.e., no relacionamento da aliança) não acontece pela ligação
externa estabelecida no nascimento, mas todas essas categorias são aplicáveis, no
sentido próprio e original da palavra, apenas ao povo verdadeiro e fiel de Deus,
povo que ele elegeu. E verdade que, nos Evangelhos sinóticos, essas coisas não
são explicitamente mencionadas nesses termos, mas não é difícil aduzir evidências
factuais e - até certo ponto - evidências terminológicas da questão como tal.
154 A v in d a d o R e in o

Essas evidências já são perceptíveis desde o início, quando Jesus reuniu um


círculo de doze discípulos ou apóstolos (Mc 3.14; M t 10.1-2; Lc 22.14, etc.).
Esse número não é meramente simétrico ou arbitrário, mas tem um significado
histórico-redentor. Ele deve, sem dúvida, ser relacionado ao número das doze
tribos de Israel. E isso não só porque nesse número Jesus convoca Israel como
um todo para dentro do reino dos céus, apesar da infidelidade e incredulidade
da nação, exortando-a ao arrependimento,24 mas, com muito mais probabili­
dade, porque esses doze discípulos representam o novo povo de Deus.25 Uma
comparação entre Mateus 19.28 e Lucas 22.30 favorece bastante essa exegese.
Jesus promete a seus discípulos, nessas passagens, que, “na regeneração” (eles) se
assentarão “em doze tronos para julgar as doze tribos de Israel”. Aqui, também,
o número doze é especificado e se refere especificamente às doze tribos de Israel.
Em nossa opinião, a expressão “na regeneração” prova que as doze tribos se refe­
rem ao povo escatológico de Deus, o qual só pode significar a comunidade dos
que herdarão a salvação do reino dos céus.26 Essa comunidade é chamada de “as
doze tribos de Israel” porque o plano da salvação de Deus tem sua continuação
nela e sua aliança com Israel alcança seu propósito e destinação nele.‘ Apesar de o
antigo Israel rejeitar o cumprimento das promessas de Deus em Cristo e, por sua
vez, ser rejeitado por ele, a aliança como tal permanece em vigor. A dispensação
soteriológica que começou com a vinda de Cristo não somente exibe a estrutura
interior da aliança: os doze discípulos são sua imagem externa simbólica. Essa
é a ligação com a ideia de ekklesia encontrada em outras partes da pregação e
instrução de Jesus, como teremos ocasião de demonstrar em mais detalhes.27
Deve-se também atribuir um sentido especial às parábolas das bodas (Mt
22.2-10) e da grande ceia (Lc 14.16-24). Essas parábolas são corretamente citadas
como prova do sentido universal (no sentido de inclusão dos gentios) do reino dos
céus.28 M as o conceito da aliança também é mantido nelas. Aqueles que foram
convidados primeiro (os judeus) não atenderam ao convite. Recusaram-se sob
toda sorte de pretextos. Apesar disso, o anfitrião leva avante seus planos para a
festa de casamento, apesar da má vontade deles. Ele providencia para que a festa
aconteça, por mais inusitados e estranhos que sejam os meios que emprega. Isso
é um paralelo com as palavras de João Batista de que Deus é capaz de “destas
pedras” suscitar filhos a Abraão. Nessas parábolas, a ideia do povo de Deus e a
da aliança estão no centro, como transparece das ilustrações usadas para indicar
a salvação: banquete, festa de casamento, que são termos geralmente usados para
a salvação escatológica29 prometida a Israel, junto com as palavras notáveis do
anfitrião em Lucas 14.23: “Obriga a todos a entrar, para que fique cheia a minha
casa”. Essa “casa” é a comunidade do povo de Deus e a compulsão exercida pelos
servos ao comando do anfitrião não se destina, em primeiro lugar, a identificar
quem são os convidados para a festa, mas, ao contrário, estabelecer que o plano da
O EVANGELHO DO REINO - O TEMA BÁSICO 155

salvação de Deus seja levado adiante apesar da má vontade de Israel.30 Embora


os convidados tenham se recusado a ir, a festa acontece. Isso concorda com o que
vimos acima, que a ideia da aliança permanece em vigor, apesar da má vontade
do povo histórico de Deus. A diferença é que, agora, outros substituem os que
foram originalmente chamados, os quais se tornam os convidados na festa de
casamento do Senhor.
Toda a estrutura do evangelho pregado por Jesus é determinada pela ideia
da aliança. A evidência mais clara desse fato se encontra na única declaração de
Jesus que nos foi preservada em que ele explicitamente menciona essa aliança.
Trata-se do pronunciamento feito por ocasião da última ceia. Nele, Jesus se
refere à sua morte próxima e diz que “isto é o meu sangue, o sangue da [nova]
aliança, que é derramado em favor de muitos, para remissão de pecados” (Mt
26.28; cf. M c 14.24; Lc 22.20). Essas palavras são importantes porque colocam
a atividade messiânica de Jesus no contexto da aliança.31 Sua morte é o selo da
aliança e sua conclusão temporária. Porém, elas são importantes, acima de tudo,
porque revelam, de modo incomparável, o fundamento, o caráter e a amplitude
dessa relação na aliança.
E importante observar que as palavras proferidas na última ceia, em suas
diferentes versões,32 claramente ecoam a profecia de Jeremias 31.31-34, na qual
uma nova aliança é mencionada. Isso já é percebido na tradição de Marcos e
Mateus. As palavras “para a remissão de pecados” têm que ser entendidas em
conexão com Jeremias 31.34. Essa conexão com Jeremias 31 é declarada de
maneira ainda mais clara em Lucas 22.20,33 que fala da “nova aliança no meu
sangue”, em que, aparentemente, há uma referência direta à promessa da “nova
aliança” em Jeremias 31.34 Essa referência a Jeremias 31 é importante porque,
de acordo com a profecia, o próprio Senhor Deus realizará as condições do seu
cumprimento para a manutenção da nova aliança, pois ele escreverá a sua lei no
coração de seu povo. Com esse objetivo, ele perdoará suas antigas iniquidades e
não mais se lembrará de seus pecados (Jr 31.33-34).
D e acordo com essas palavras proferidas na última ceia, essa comunhão de
graça entre Deus e seu povo é garantida pelo próprio Deus, e, portanto, é inque-
brantável e encontra sua base e força na morte e no sofrimento substitutivos de
Cristo, pois é seu sangue que, como o sangue da aliança, é derramado por muitos
para a remissão de pecados, e, portanto, torna possível a nova e eterna aliança.
Ele é o mediador dessa aliança e das misericórdias renovadoras do coração que
são prometidas nele.
E evidente que, nessa declaração, a salvação dada em Cristo e por ele
anunciada se concentra na ideia do pacto. Desse modo, é revelado o significado
real e mais profundo da mensagem dos anjos antes e imediatamente depois do
nascimento de Jesus. Do mesmo modo, revela-se o significado do cântico de
156 A v in d a d o R e in o

Maria e de Zacarias acerca da salvação do povo de Deus, nos quais é dito que
ele “salvará o seu povo dos pecados deles” (M t 1.21), da “grande alegria, que o
será para todo opovo” , pois “hoje vos nasceu... o Salvador, que é Cristo o Senhor”
(Lc 2.10-11) e quando eles falaram da salvação do povo de Deus “no redimi-lo
dos seus pecados” (Lc 1.77). Aí se revela o mistério de todas as declarações que,
em síntese, expressam a salvação do reino como o evangelho dos pobres, a salvação
dos perdidos, etc. Todo o evangelho do reino pode ser explicado em termos das
categorias da aliança prometida por Deus.
Ao mesmo tempo, é perfeitamente claro que as palavras “Israel”, “seu
povo” e “povo de Deus”, que ocorrem, em muitos sentidos, com um significado
semelhante no início do evangelho, agora assumem um novo significado. Por
um lado, seu significado se torna mais restrito, e, por outro, é entendido em
conexão com Israel como o povo histórico e empírico de Deus. O povo de Deus
é formado por aqueles por quem Cristo derramou seu sangue, o sangue da
aliança. Eles participam da remissão de pecados trazida por ele e da comunhão
inquebrantável com Deus na nova aliança, que ele tornou possível. Na sua pre­
gação na última ceia, Jesus se refere a eles como os muitos pelos quais seu sangue
é derramado. Essa designação também ocorre na conhecida declaração acerca
do resgate (M t 20.28; M c 10.45).35 Essa palavra tem sido equiparada, algumas
vezes, à palavra “todos” e interpretada num sentido universalista. M as o contexto
contradiz essa explicação de todos os modos possíveis. Os “muitos” são aqueles
que recebem a remissão de seus pecados em Cristo e por meio dele, e que são,
portanto, capacitados para participar da salvação do novo pacto de acordo com
a profecia em Jeremias 31. À luz da totalidade do evangelho, eles são o povo que
aceitou a pregação do evangelho em fé e conversão. São eles, e mais ninguém,
que recebem a salvação do reino. Eles são “Israel”, “povo de Deus” e é a eles que
todas as promessas do pacto se aplicam. A rejeição de Israel como povo de Deus
não elimina a ideia da aliança, mas confere a ela um conteúdo novo, ou, pelo
menos, mais definitivo. O caráter particular da graça e da comunhão com Deus
é plenamente mantido, mas o círculo no qual essa graça é concedida e onde o
povo de Deus se encontra não é mais aquele do Israel empírico, mas aquele dos
que recebem remissão de pecados na morte de Cristo e cujos corações foram
renovados pelo Espírito Santo.

26. O beneplácito do Senhor

Somente à luz do que foi dito acima é que podem ser entendidos os pronun­
ciamentos que designam a salvação dada na vinda de Cristo àqueles que foram
eleitos. Num certo sentido, o evangelho do reino pode ser caracterizado como
O EVANGELHO DO REINO - O TEMA BÁSICO 157

“o evangelho dos eleitos” tanto quanto como o evangelho “dos pobres”, como
fizemos nos parágrafos acima.
E verdade que, em contraste com esta última distinção, a primeira não
ocorre no evangelho (motivo pelo qual não queremos apresentá-la aqui). Toda­
via, isso não afeta a realidade de que os herdeiros da salvação do reino dos céus
são constantemente designados como o objeto do beneplácito de Deus ou da
sua eleição. Uma análise mais cuidadosa, todavia, mostra que esses locais estão
estreitamente relacionados com aqueles nos quais a ideia do povo de Deus pre­
domina no sentido qualificado acima.
Essa relação é manifesta desde o início, já no nascimento de Cristo, quando
os anjos louvam a salvação que veio como “paz na terra entre os homens, a quem
ele quer bem” (Lc 2.14).36 Na eudokia (beneplácito, bem-querer), a graça livre e
salvadora de Deus encontra expressão,37 a qual é a base da salvação proclamada
aqui. Nela, o elemento do amor na eleição divina se apresenta fortemente. A
questão é quem são esses homens a quem Deus quer bem? No versículo 10,
encontramos a grande alegria mencionada “que o será para todo o povo”. Esses
dois pronunciamentos foram mais de uma vez considerados como contraditórios.
No entanto, a frase “os homens a quem ele quer bem” não restringe o grupo, em
primeiro lugar, no qual haverá a paz messiânica e escatológica. Ao contrário, a
frase contém uma qualificação positiva. Não é um setor definido dentro do círculo
do “povo”, pois a “grande alegria será para todo o povo”. Assim, temos de expli­
car essa primeira frase em estreita relação com a última e rejeitar uma exegese
individualista das palavras “os homens a quem ele quer bem”. Essas palavras são
uma definição do povo a quem a grande alegria foi prometida. E, vice-versa,
“todo o povo” do versículo 10 não pode indicar o povo empírico de Israel, mas
o povo de Deus no seu sentido verdadeiro e ideal. Não significa Israel em sua
descrença obstinada, mas Israel como o povo a quem foi dado o privilégio de
receber a promessa de Deus na qual fixa sua esperança e pela qual é redimido.38
Isso mostra novamente que o evangelho do reino é determinado, desde o início,
pelo relacionamento particular entre Deus e seu povo e que esse relacionamento
se baseia no beneplácito divino.
Em outra passagem, também, o evangelho do reino é derivado do bene­
plácito divino. Isso é, por exemplo, muito óbvio em Lucas 12.32: “Não temais, ó
pequenino rebanho; porque vosso Pai se agradou em dar-vos o seu reino”. A ideia
do povo de Deus como herdeiros do reino dos céus está implícita na maneira
como Jesus se dirige aos seus discípulos, “não temais, ó pequenino rebanho”. A
ênfase na pequenez do rebanho - “pequenino rebanho” - implica que o “povo de
Deus” significado aqui é somente o remanescente, uma lembrança aparentemente
desvanecente do que haviam sido no passado e do que se esperava que fossem.
E por isso que havia razão para temer que esse pequeno remanescente pudesse
158 A v in d a d o R e in o

também perecer. E, ainda assim, esse remanescente do rebanho tinha sido preser­
vado e sua libertação era certa da parte de Deus, pois tal libertação repousava na
eudokia do Pai, o “conselho divino”, livre e independente de qualquer influência
humana. Esse conselho não tem como propósito apenas a redenção da igreja na
basileia, mas também efetua essa redenção.”39 Estes três conceitos - o povo de
Deus, o reino dos céus e a eleição - não apenas são coordenados como também
determinam um ao outro. O dom da basileia é para o povo que Deus elegeu
desde tempos antigos e que vem à luz no seu sentido mais próprio e profundo na
aceitação de Jesus por parte desse povo, como o Cristo, o Portador da salvação do
Senhor. Nesse caso, também, a eleição não é concebida em termos individuais,
mas como a eleição do povo de Deus. Do mesmo modo, a magnitude desse povo
não é determinada por fatores históricos e biológicos, mas pelo decreto divino
livre e salvador.
Devemos igualmente entender as conhecidas palavras de Jesus em Mateus
11.25-26 em consonância com esse ponto (cf. Lc 10.21ss): “Graças te dou, ó Pai,
Senhor do céu e da terra, porque ocultaste estas coisas aos sábios e instruídos e
as revelaste aos pequeninos. Sim, ó Pai, porque assim foi do teu agrado” (houtoos
eudokia egeneto emprosthen sou). Nesse caso, também, a separação feita dentro do
próprio Israel pela vinda de Jesus é atribuída ao beneplácito soberano de Deus.
As palavras emprosthen sou são de difícil tradução, mas constituem uma caracteri­
zação notável do decreto de Deus. Esse decreto, por assim dizer, é algo que Deus
imaginou e que tem procurado executar, como seu propósito.40 O caráter salvífico
desse beneplácito do Senhor consiste na manifestação do reino (“estas coisas”) aos
“pequeninos” inepioí). Isso indica não somente uma mentalidade particular, mas
se refere ao povo do Senhor, pobre e destituído, que é desprezado pelos “sábios e
instruídos”, mas que colocou a sua esperança na ação redentora de Deus em seu
favor. O conceito nepioi, pequeninos, é muito semelhante ao sentido àepraeis, os
mansos, e d eptoochoi, os pobres41 (M t 11.28ss). E o pronunciamento de que eles
são o objeto do beneplácito de Deus mais uma vez demonstra que o evangelho
do reino está profundamente enraizado na revelação especial de Deus a Israel
e que deve ser entendido, acima de tudo, como a proclamação da salvação ao
verdadeiro povo do Senhor.
Em nenhum outro lugar esse ponto é visto com maior clareza do que na
parábola do juiz iníquo. Nesse caso, a salvação vindoura do reino, que deve ser
objeto das incessantes orações dos fiéis (Lc 18.1, cf. 18.8), é chamada de “a justiça
aos seus [de Deus] escolhidos” (ten ekdikesin toon eklektoon autou, v. 7, cf. v.8). Já
mostramos, acima, que essa “justiça” ou essa “compensação” é o mesmo que foi
prometido aos pobres de espírito e aos que têm fome e sede de justiça. Desse
modo, confirma-se a nossa observação feita no início desta seção, ou seja, que o
termo “eleitos” e a expressão “pobres de espírito” se referem às mesmas pessoas.
O EVANGELHO DO REINO - O TEMA BÁSICO 159

A expressão “justiça aos seus escolhidos” (Lc 18.7), que, literalmente, no


original grego, é “justiça dos seus escolhidos”, ilustra muito bem o que queremos
estabelecer quanto a isso. Por um lado, a designação “a justiça” dos pobres significa
que existe uma base firme para sua fé na salvação do Senhor e para sua incessante
oração para que ela se realize. A sua libertação é sua ekdikesis, seu “direito” ou
“justiça”, sua satisfação,42 na qual eles baseiam sua reivindicação. Num sentido, isso
dá à oração certo caráter de processo judicial, por mais paradoxal que esse termo
possa parecer. Significa que a eleição não é um decreto divino desconhecido do
homem, mas o motivo pelo qual os eleitos “clamam dia e noite” a ele. Pressupõe
que essa eleição cria um relacionamento no qual o eleito recebeu as promessas de
Deus quanto à sua satisfação e redenção. Com base nisso, eles podem orar pela
vinda do reino como um direito que lhes foi concedido por Deus. Esse relacio­
namento está, também, na base das bem-aventuranças. Ê uma base semelhante
à da aliança, na qual Deus garantiu a libertação de seu povo da opressão.
Por outro lado, a expressão “justiça aos seus escolhidos ’ implica também que
o relacionamento especial entre Deus e seu povo oprimido se baseia unicamente
na graça divina livre e salvadora com respeito ao povo que será salvo.43 Essa é a
base mais profunda da participação deles no domínio de Deus e, portanto, da
sua obediência quanto ao chamado que lhes é dirigido (M t 22.14). Num sentido
negativo, essa expressão ressalta o fato de que nem a ligação biológica com Israel, e
nem uma reivindicação baseada na atividade humana dá a eles o direito à salvação
do reino, mas somente a graça soberana de Deus. Mas, ao mesmo tempo, isso
implica que essa relação não deve ser identificada com fatalismo ou quietismo.
A ideia da eleição é fortemente enfatizada exatamente porque ela deve nos levar
à oração incessante da fé.
Finalmente, deve ser dito, como complemento, que essa ideia de eleição,
tão óbvia no evangelho do reino, é determinada cristologicamente. Assim como
Cristo, em sua mansidão (M t 11.29), representa o verdadeiro povo de Deus e seu
sangue sela a nova aliança e abre o caminho para a recepção da salvação contida
nele (cf. Lc 22.20; M t 26.28), do mesmo modo também Cristo é o centro e a
concretização do beneplácito divino. Isso é visto, em primeiro lugar, nas passa­
gens em que Jesus é anunciado enfaticamente como o objeto em quem Deus
se compraz, a saber, por ocasião do batismo no Jordão e na transfiguração no
alto do monte (M t 3.17; M c 1.11; M t 17.5, cf. 12.18). Nesse caso, também, o
“comprazimento” de Deus significa o mesmo que o decreto divino.44 Em virtude
desse “bom prazer”, Cristo foi eleito pelo Pai para sua missão messiânica (cf.
Lc 9.35: ho eklelegmenos). Assim, a eleição dos que receberão o reino dos céus se
concentra na eleição do Cristo, em quem eles são salvos.
O deleite de Deus em seu povo é chamado à existência em Cristo e por meio
dele. Isso transparece do que se segue das palavras de Cristo em Mateus 11.25-26,
160 A v in d a d o R e in o

com respeito ao beneplácito de seu Pai. Ali, seu bom prazer é explicado pelo fato
de que o Pai entregou todas as coisas a Cristo em virtude do mesmo decreto e
que ninguém conhece o Filho senão o Pai e que ninguém conhece o Pai senão
o Filho e aquele a quem o Filho quiser revelar. O mistério do conhecimento do
Pai, isto é, essa revelação aos filhos de Deus, com base no beneplácito de Deus,
está totalmente nas mãos do Filho. Nele, esse beneplácito se realiza e, dele, Cristo
é também o objeto. E o Filho que é eleito pelo Pai para ser o portador do ofício
messiânico. E é nele, também, que o beneplácito de Deus em relação ao seu povo
se fundamenta e se concretiza.
Em resumo, podemos dizer que a proclamação do evangelho do reino como o
evangelho dos pobres repousa sobre o relacionamento pactuai entre Deus e seu povo, o
qual encontra sua origem mais profunda no beneplácito divino.
A confirmação e a renovação dessa aliança recebem sua base e caráter da palavra
e da obra de Cristo, especialmente de sua morte expiatória. Elas formam a grande
pressuposição e consumação da bem-aventurança do reino dos céus, reino esse anunciado
por Jesus de todas as maneiras e que pode ser examinado agora por nós em seus vários
aspectos.
VI
O Ev an gelh o d o r e in o

2. S alvação

27. A remissão de pecados

Tem sido corretamente dito que é característico de todo o kerygma do


Novo Testamento que a redenção nele oferecida é concebida principalmente
como vitória sobre a culpa e o pecado, e não como, por exemplo, nas religiões
voltadas para o culto da natureza e as religiões de mistério. Nessas religiões, a
redenção é concebida como a libertação da transitoriedade à qual o homem está
sujeito durante o transcurso de sua vida neste mundo.1 Em outras concepções de
redenção, a fé na libertação é baseada na convicção da nobreza inerradicável do
homem ou sobre certa igualdade metafísica da alma com Deus, a qual, no final,
receberá o que lhe é devido. Porém, o evangelho começa com a ideia da separação
entre Deus e o homem2 e com a profunda angústia moral na qual o homem se
encontra diante de Deus. Essa perturbação é tão profunda e dominante por causa
da culpa do homem diante de Deus. Devido a essa culpa, o homem, com toda
a sua existência, corre o risco de ser entregue ao julgamento divino.3Portanto, a
redenção consiste na remissão de pecados, na comunhão entre Deus e o homem,
o qual é intrinsicamente pecador. Nesse caso, também, o evangelho contradiz
todos os conceitos de libertação encontrados fora do cristianismo.
Um exame mais cuidadoso da pregação de Jesus acerca do reino dos céus
e do kerygma da sua vinda redentora ao mundo provará de modo convincente a
verdade dessa declaração.
Quando o nascimento de Jesus é anunciado, o nome que lhe é dado por
ordem de Deus, sintetizando o todo do seu significado, é interpretado da seguinte
maneira: “porque ele salvará o seu povo dos pecados deles” (M t 1.21). A palavra
162 A v in d a d o R e in o

traduzida por “salvará” tem um sentido muito geral e inclusivo, como a palavra
hebraica na qual o nome Jesus é baseado. Ela indica Jesus como Messias, Salvador,
Redentor. Ela não somente tem, portanto, um sentido negativo e preventivo, mas
também um conteúdo muito positivo. O sentido central e mais profundo implícito
nesta obra do Salvador é o fato de que Jesus liberta seu povo dos pecados deles. O
mesmo pensamento é expresso no cântico de Zacarias, quando diz, a respeito de
João Batista, que ele “precederá o Senhor, preparando-lhe os caminhos, para dar
ao seu povo conhecimento da salvação, no redimi-lo dos seus pecados' (Lc 1.76ss).
Esse conhecimento não é meramente conhecimento acerca de um objetivo que
ainda é uma promessa não realizada, mas, ao contrário, o conhecimento que será
dado e comunicado agora, e, portanto, um conhecimento experiencial que nunca
antes havia sido concedido nesse sentido.4 A remissão de pecados é representada
aqui como o dom do cumprimento que começou com Cristo como uma possessão
“escatológica” da salvação.5 Esse é o motivo pelo qual o conhecimento dessa
salvação é descrito como a vinda e o dom da salvação longamente esperados do
Senhor, como a visita de Deus ao seu povo.
A pregação de João Batista anunciando o reino dos céus se concentra na
remissão de pecados. Seu chamado ao povo para que se arrependa resultou na
vinda deles “confessando os seus pecados” (M t 3.6). O seu batismo é mencionado
como “batismo de arrependimento para a remissão de pecados” (Mc 1.4; Lc 3.3).
Essa “remissão de pecados” não significa uma afirmação feita por João àqueles
que haviam sido batizados por ele de que seus pecados haviam sido perdoados.
Nem indicava algum tipo de lavagem de pecados realizada pelo batismo de João,
mas, como transparece do contexto da pregação de João como um todo, a isenção
do julgamento vindouro: eles fugiram “da ira vindoura” (M t 3.7; Lc 3.7). João
os exorta a se arrependerem, a se voltarem e a se livrarem de seus pecados, de
modo que aqueles que obedecerem possam, daí para frente, ouvir a sentença de
isenção exoneradora em definitivo da boca daquele que haverá de vir e que é mais
poderoso do que João. A remissão de pecados, consequentemente, é, nesse caso,
a “salvação de Deus”, que seria vista na vinda do Senhor (Lc 3.6).
Não há dúvida de que, na própria pregação de Jesus, o conceito de remissão
de pecados não é tão central como na pregação de João.6 Entretanto, na procla­
mação inicial de Jesus na sinagoga de Nazaré, na qual ele anuncia o cumprimento
das profecias e a inauguração do grandioso tempo da salvação, a ideia de aphesis
desempenha imediatamente uma parte importante. Apesar de essa palavra poder
ser traduzida como libertação (de cativos - Lc 4.18) e como liberdade (para os
quebrantados de coração) e não como remissão, o contexto também claramente
sugere a ideia de remissão de pecados, pois essa libertação se baseia em remissão
e absolvição. Pois a totalidade da salvação que começou com a vinda de Jesus é
caracterizada, de modo conciso, como o ano aceitável do Senhor. Essas palavras
O EVANGELHO DO REINO - SALVAÇÃO 163

originalmente indicavam “o ano do jubileu” ou “o ano do clangor das trombetas”,


no qual, por exemplo, as dívidas dos israelitas que haviam se tornado pobres e
escravos deveriam ser perdoadas, e eles mesmos deveriam ser libertos da escravi­
dão e terem suas propriedades restituídas (cf. Lv 25.39ss; Ez 46.17). Tudo isso é
uma ilustração do tempo messiânico de salvação anunciado pelos profetas e que
começou com a vinda de Cristo. Nesse tempo, a vida escravizada e quebrantada
seria redimida e libertada porque - e esta é a ideia básica —a culpa que causou a
iniqüidade é perdoada por Deus (cf. Is 40.2).
Repetidas vezes, encontramos a remissão de pecados mencionada no evan­
gelho como o propósito próprio e central da vinda de Jesus. Assim, por exemplo,
quando Jesus diz ao paralítico que foi até ele para ser curado: “estão perdoados os
teus pecados” (em Lucas: “Homem, estão perdoados os teus pecados”), ele torna
claro, com essas palavras, a todo o povo presente, bem como ao paralítico, que o
problema real e mais profundo do homem não é a situação particular nesta vida
que porventura lhe suceda, mas o fato de que ele é um pecador e que Jesus foi
autorizado por Deus a livrar as pessoas de seus pecados (na terra)7 nesse exato
momento. A declaração de Jesus, nesse caso, não deve ser explicada meramente
como o resultado de uma atitude excepcionalmente penitente que o paralítico
supostamente assumiu. Também não se deve supor que a sua doença havia sido
ocasionada por determinados pecados pelo quais ele estava sendo punido. Pelo
contrário, é a proclamação messiânica, o anúncio da vinda do reino, a inauguração
do tempo grandioso da salvação, cujo cerne, em resumo, é a remissão de pecados.
Essa é, portanto, a maior de todas as bênçãos que confronta aqueles que têm fé
(cf. M c 2.5), ou seja, aqueles que compreenderam alguma coisa da autoridade
divina de Jesus: a remissão de seus pecados está aqui!
O significado dessa remissão de pecados é, acima de tudo, a libertação da
culpa do pecado. Nesse sentido, o propósito e o sentido do evangelho são claros.
Repetidamente, o evangelho representa a relação do homem para com Deus como
a de um devedor para com o seu credor. Assim, por exemplo, na oração do pai-
nosso (M t 6.12, cf. também Lc 11.4b), “e perdoa-nos as nossas dívidas”. A ideia
do pecado como dívida e da libertação como remissão também domina a parábola
de Mateus 18.22-35 (sobre o dever de perdoar o próximo). O pecado coloca o
homem na posição de alguém que deve pagar, dar uma satisfação (apodounai). No
banquete na casa de Simão, o fariseu, Jesus fala de maneira semelhante de certo
credor que tinha dois devedores, nenhum dos quais podia pagar a sua dívida (Lc
7.41-42). Assim, Jesus indica o relacionamento de Deus para com ambos, para
com o “justo” bem como para com os “pecadores”. Pertencentes à mesma esfera
de pensamento estão, também, as parábolas nas quais encontramos a figura do
mordomo (ou administrador), especialmente a do administrador infiel de Lucas
16.1ss. Na sua aplicação, essa parábola mostra que Jesus vê o homem como alguém
164 A v in d a d o R e in o

que, na hora do ajuste de contas divino, não será capaz de responder pelo que fez
com os bens do seu mestre, de quem era mordomo, e, assim, terá que permanecer
como devedor de Deus (Lc 16.9ss). Além disso, a passagem sobre o arrependi­
mento, em Lucas 13, fala, de maneira geral, de pessoas culpadas que perecerão
caso não se arrependam (Lc 13.4).
E, finalmente, a remissão de pecados é indicada de uma maneira ainda mais
jurídica na parábola do fariseu e do publicano. O publicano, conforme está dito,
desceu “justificado” (dedikaioomenos) para a sua casa. Essa é a única passagem nos
sinóticos em que a remissão de pecados é representada como uma justificação
forense: uma justificação judicial efetuada por Deus.8 Sem dúvida, esse uso da
palavra é codeterminado pelo contraste entre o publicano e o fariseu, pois o úl­
timo representa aqueles que tentam se justificar diante de Deus de acordo com
a doutrina do mérito (cf. Lc 16.15). Em oposição a isso, Jesus deixa claro que
Deus aceita o pecador por causa da sua graça soberana. Entretanto, ele mantém
a ideia da justificação, de confrontação com o julgamento divino. E esse é um
dos pensamentos básicos do evangelho.
Essa concepção fundamental da redenção como remissão de pecados não
somente distingue o evangelho de todas as religiões não cristãs, como também
de todas as interpretações humanistas e moderno-dualistas do evangelho. Esta
última sustenta que o ponto de partida da pregação de Jesus se encontra no valor
infinito da alma humana ou na antítese entre natureza e espírito. Com muita
frequência, recorre-se a Marcos 8.36ss: “Que aproveita o homem ganhar o mundo
inteiro e perder a sua alma?”. Essa perspectiva, entretanto, que foi defendida pela
teologia de Ritschl e recebeu sua expressão clássica na obra de Harnack, Das
Wesen des Christentums [A natureza do Cristianismo], contradiz o evangelho na
sua própria essência.9 O ponto de partida do evangelho não é o valor, mas a culpa
do homem; e a redenção não é a preservação da alma como a parte imperecível e
mais importante do homem, mas sim a salvação da totalidade da existência hu­
mana no julgamento final. Nenhum desses dois conceitos é diferente do que está
indicado nas palavras “perder a sua alma”. A palavra “alma” significa a totalidade
da vida humana e não meramente a parte interior, a espiritualidade do homem.
Lembramos ao leitor a declaração paralela de Jesus: “Não temais os que matam
o corpo e não podem matar a alma; temei, antes, aquele que pode fazer perecer
no inferno tanto a alma como o corpo” (M t 10.28, cf. Lc 12.4-5). Aqui não en­
contramos um contraste entre a alma e o corpo, o espírito e a carne, e Jesus não
quer destacar a superioridade do primeiro sobre o último, mas somos advertidos
contra o julgamento divino, no qual cada pessoa que rejeitou a vontade de Deus
com respeito a essa vida perecerá com corpo e alma.10 Portanto, não é o valor
espiritual do homem, mas o seu problema moral, que provoca a advertência de
Jesus e que é o fundamento da sua pregação sobre a remissão de pecados.11
O EVANGELHO DO REINO - SALVAÇÃO 165

Isso tudo é muito importante para uma compreensão da salvação proclamada


por Jesus. M as não pode haver dúvida de que a ideia do pecado como culpa e
da redenção como a remissão de pecados não são, em si mesmas, a característica
nova e específica da pregação de Jesus. Jesus não falou usando conceitos que eram
estranhos aos seus contemporâneos; pelo contrário, ele falou usando conceitos com
os quais eles estavam familiarizados.12 Além disso, repetidas vezes, ele declarou
que a remissão de pecados que ele proclamava e oferecia nada mais era do que
o cumprimento da salvação futura prometida pelos profetas. Já o Antigo Testa­
mento procurava a essência da redenção na graça do Senhor, o qual, como um
pai, mostrava sua misericórdia para com o seu povo, perdoando os seus pecados
(SI 103.8-10). E a salvação do futuro era buscada no fato de que Deus redimiria
Israel de todas as suas iniquidades (SI 130.8).13 A moderna afirmação freqüente
de que, em comparação com o Antigo Testamento, Jesus veio com uma nova
ideia a respeito de Deus, especialmente na proclamação que ele fez da remissão
de pecados, é, portanto, totalmente contrária ao próprio evangelho.14 De acordo
com o pronunciamento enfático do próprio Jesus, o evangelho dos pobres, a
profecia do ano aceitável do Senhor, a nova aliança do Senhor com o seu povo,
tudo isso se cumpre e se concretiza na remissão de pecados proclamada por ele
(Lc 4.16ss; M t 26.28; Lc 22.20).15
Este acordo fundamental com a revelação histórica de Deus no Antigo Tes­
tamento é a grande pressuposição da proclamação de Jesus acerca da remissão de
pecados. Para termos uma perspectiva correta quanto ao propósito da pregação de
Jesus a respeito da salvação, devemos, em primeiro lugar, estabelecer que a nova
e surpreendente característica da sua pregação não se encontra numa perspectiva
qualitativa do pecado e do perdão. Ela se encontra no grande momento do cum­
primento, isto é, no fato de que, na vinda de Jesus e em sua atividade messiânica,
a bênção da remissão misericordiosa da culpa, prometida desde a antiguidade,
passou do estágio de promessa para o estágio de realização verdadeira. Ou, para
descrevê-la nas palavras da missão que os apóstolos posteriormente receberam, a
nova característica é que, dali em diante, esse evangelho deveria ser pregado “em seu
nome” para arrependimento e remissão de pecados (Lc 24.47, cf. Jo 20.23).16
M as isso não é tudo. Além do grande motif histórico-redentor de
cumprimento do evangelho do reino, até mesmo um exame superficial do mesmo
mostrará que a pregação de Jesus também é determinada por um motifantitético
dirigido contra o ensinamento dos escribas. Pode-se até dizer que esse último
motifse apresenta fortemente depois da primeira proclamação do cumprimento.
Ele domina a totalidade da pregação de Jesus e é considerado como o traço es­
pecífico da sua proclamação da remissão de pecados (muitas vezes enquanto se
ignora o grande momento do cumprimento!). Essa antítese não apenas se refere
à pretensão messiânica de Jesus de perdoar pecados sobre a terra, mas também
166 A v in d a d o R e in o

ao conteúdo e à possibilidade da remissão de pecados, especialmente em vista


do aspecto da graça absoluta na pregação de Jesus.
Vemos essa antítese em ação da parte dos líderes judeus quando Jesus come
e bebe “com publicanos e pecadores” (Mc 2.16 e passagens relacionadas); quan­
do, no banquete do fariseu, Jesus estava tratando com pecadores arrependidos
(Lc 7.36-50); na história da mulher adúltera (Jo 8.1-11); quando Jesus entra na
casa de Zaqueu (Lc 19.1-10). Ao mesmo tempo, é Jesus quem se opõe à atitu­
de adotada pelos escribas e fariseus em sua pregação da remissão de pecados.
Assim, na parábola do filho pródigo, quando ele descreve a figura do filho mais
velho que desaprova as atitudes do pai (Lc 15.25-32, cf. vs.l e 2); e na parábola
do fariseu e do publicano, na qual Jesus nos dá a ilustração mais impressionante
dessa antítese (Lc 18.9-14).
Nesse caso, ambas as dominantes da pregação de Jesus sobre o perdão, o tema
de cumprimento e o tema antitético, em momento algum podem ser separados.
Também veremos mais de perto que o caráter compassivo absoluto da pregação de
Jesus (que despertava nos judeus uma oposição tão ferrenha) encontra sua origem
e explicação mais profunda no chamado messiânico de Jesus para, como o Servo
do Senhor, carregar sobre si o pecado do seu povo. Mesmo assim, a ligação entre
esses dois temas nem sempre aparece de modo explícito e, antes de entrarmos em
mais detalhes, devemos pesquisar mais detidamente o objetivo da acima citada
antítese entre Jesus e os escribas em relação ao perdão de pecados.
Para uma perspectiva real na natureza dessa antítese entre Jesus e os escribas,
é muito esclarecedor examinar o que os escritos rabínicos e pseudepígrafos nos
ensinam acerca do esquemajudaico de redenção, que formava o escopo da soterio-
logia judaica na época em que Jesus estava na terra.
O seu motifbk sico é a ideia da recompensa - e, correlata com ela - a ideia do
mérito no cumprimento da lei. E verdade que a Torá, como meio de libertação,
foi dada por Deus como um favor especial a Israel. M as Israel assumiu que o
propósito desse dom era que os judeus obtivessem uma recompensa de Deus pelo
cumprimento dessa Torá. Por isso, assumiu-se que o homem tinha, em si mesmo,
a força moral necessária para cumprir a Torá, pois o homem havia recebido uma
alma pura e santa das mãos de seu Criador e quaisquer instintos malignos que
ele viesse a encontrar em si mesmo por causa dos sentidos relacionados ao corpo,
ele não somente tinha o poder moral para suprimi-los, mas, acima de tudo, tinha
a Torá como um meio pelo qual poderia dominá-los. Esse esquema de redenção
parte de uma ideia perfeccionista do homem. Com relação ao pecado, o mesmo
não era negado, obviamente, mas concebido de um modo quantitativo. A coisa
importante no cumprimento da lei era que o número de infrações da lei deveria
ser inferior ao número de cumprimentos da lei. Em outras palavras, os créditos
na conta do homem para com Deus deveriam ser em maior número que seus
O EVANGELHO DO REINO - SALVAÇÃO 167

débitos. Esse entendimento também determina o conceito de “justo” e “pecador”.


Não há, portanto, qualquer certeza de salvação para o justo. Esse é o motivo pelo
qual eles são sempre advertidos a viverem de tal maneira que a balança sempre
esteja equilibrada, como se a salvação deles, a qualquer momento, dependesse
de um novo ato de cumprimento da lei. Esse cumprimento é sempre possível,
pois consiste na conformação ao texto literal dos mandamentos. A soteriologia
judaica, portanto, tinha um significado quantitativo e legalista. Era uma religião
de autorredenção, que partia de uma visão superficial da natureza do pecado e
de uma concepção perfeccionista do homem.17
Ao lado dessa doutrina de mérito consistente havia, entre os judeus, sem
dúvida, a continuação do pensamento do Antigo Testamento acerca da bondade
e da intenção de Deus de perdoar os pecados daqueles que se voltassem para
ele arrependidos. Esse pensamento não pode ser incluído na teologia judaica da
recompensa sem mais nem menos. Nesse caso, essa teoria falha, pois a recompensa
só é possível por causa da misericórdia de Deus.18 E dito frequentemente que a
remissão de pecados na doutrina judaica se baseia na meritoriedade do arrepen­
dimento, e, desse modo, o esquema da recompensa é preservado intacto. M as essa
visão não faz justiça à teoria judaica da redenção.19 Por outro lado, a remissão de
pecados e a misericórdia de Deus estão ligadas de todas as maneiras possíveis
com a importantíssima doutrina da recompensa. O objetivo do arrependimento
e da remissão é restaurar o pecador a um relacionamento com Deus no qual já se
encontram os piedosos por causa de seus méritos, e no qual, portanto, pecadores
restaurados, também, podem, outra vez, trabalhar para seu futuro eterno.20 A
ideia da recompensa é e permanece o grande elemento dominante da doutrina
judaica da redenção.’
E contra esse pano de fundo que a antítese entre Jesus e os doutores da lei,
que aparece repetidamente nos Evangelhos, adquire contornos muito definidos.
A pregação de Jesus sobre a remissão de pecados não é nada menos do que um
rompimento fundamental com a totalidade do esquema judaico de redenção. Isso
é visível, em primeiro lugar, nos pronunciamentos de Jesus acerca da universalidade
do pecado e da necessidade de arrependimento, que estão na base da sua pregação.
A pregação de Jesus, de modo radicalmente contrário à doutrina judaica da
redenção, é dominada pelo conceito da necessidade universal de arrependimento.
Esse arrependimento não significa somente remorso ou penitência por causa de
certas infrações dos mandamentos de Deus, mas está ligado com o relacionamento
geral no qual o homem empírico se encontra diante de Deus e significa uma
mudança de direção.21 O homem se desviou de Deus. Ele está no caminho que
o afasta de Deus. É por isso que a noção de “conversão” é um conceito totalitário,
tanto no sentido positivo quanto no negativo. Ela não indica um ato incidental
de penitência, mas uma postura que envolve a vida como um todo. Ela consiste
168 A v in d a d o R e in o

em voltar-se do pecado e em fazer as obras de justiça que produzem fruto digno


de arrependimento ou de conversão (Mt 3.8).
Isso também é verdadeiro quanto à pregação de João Batista. Mesmo antes
do seu nascimento, ele foi anunciado como aquele que converteria muitos dos
filhos de Israel ao Senhor seu Deus, para preparar um povo para o Senhor (Lc
1.15ss). A nação inteira tinha de ser chamada ao arrependimento e não somente
uns poucos indivíduos. Sua pregação a todos correspondia a isso, sem distinção.
Encontramos a mesma coisa em Jesus. Sua atividade em Israel também começa
com a pregação “Arrependei-vos, porque está próximo o reino dos céus”. A ne­
cessidade de conversão é a pressuposição que está na base de toda proclamação
do evangelho. Ela é dirigida a todos e a cada um individualmente. A exigência
de arrependimento é dirigida aos discípulos bem como às cidades da Galileia
(cf. M t 18.3,22 11.20ss); aos principais sacerdotes e aos fariseus, bem como aos
publicanos e pecadores (M t21.31ss; Lc 15.lss). Transparece desses poucos (em­
bora muito gerais) pronunciamentos de Jesus que sua pregação sobre a salvação,
especialmente sobre a remissão de pecados, parte da pecaminosidade universal
do homem, do fato de ele estar afastado de Deus.
E verdade que alguns escritores têm tentado negar esse fato com base em
diversos argumentos. Em primeiro lugar, eles apontam para aquelas passagens
nas quais o próprio Jesus faz a distinção entre os “justos” e os “pecadores” e que
dizem que ele veio chamar não os primeiros, mas os últimos, ao arrependimento
(Mc 2.17; Lc 5.32). Do mesmo modo, Jesus fala, em outros lugares, do pecador
que se arrepende e sobre o qual há mais júbilo no céu do que sobre 99 justos que
não precisam de arrependimento (Lc 15.7). Com base em passagens como essas,
é alegado que a existência de “pessoas justas” deveria ser admitida, porque não
seria possível comparar uma classe de pessoas não existente com outro grupo.
De acordo com Jesus, existem pessoas boas e más (M t 7.17-18; 12.33; Lc 6.43),
do mesmo modo que existem árvores boas e ruins (cf. M t 5.45: “maus e bons”,
“justos e injustos”).23
Entretanto, a declaração de que Jesus não veio chamar justos, mas pecadores
ao arrependimento, não deve ser interpretada simplesmente como uma declaração
irônica,24 mas como uma distinção existente feita pelos judeus e então adotada por
Jesus25 que, sem dúvida, reconhecia o seu valor relativo. Por outro lado, não se deve
supor que, com a expressão “os justos”, Jesus quis se referir àqueles que devem ser
reconhecidos como tais em princípio e diante de Deus e nem que Jesus honrou a
justiça deles ao chamar ao arrependimento apenas aqueles que haviam caído e não
as pessoas justas.26 Pois nesse caso e em Lucas 15.7 (cf. v. 2), Jesus obviamente se
refere à justiça imputada pelos escribas e pelos fariseus a si mesmos (cf. Lc 18.11,
14). E, dentro do escopo da totalidade do evangelho, é indisputável que Jesus
não reconhecia essa justiça como suficiente, mas a considerava um tipo estranho
0 EVANGELHO DO REINO - SALVAÇÃO 169

de justiça baseada no autoengano e, portanto, “hipócrita” (cf. M t 5.20ss; ó.lss;


Lc 18.14). Ele rejeita essa justiça por ser uma ilusão perigosa, como transparece
de Lucas 14.8ss. Sentado à mesa com os fariseus, Jesus aparenta apresentar uma
mera norma de polidez e boas maneiras a respeito do comportamento correto de
um convidado num banquete. M as ele faz isso contando uma parábola, e, assim,
na realidade, adverte os convidados a não se iludirem quanto ao banquete no
reino de Deus e quanto ao julgamento que Deus fará da excelência deles.27 Essa
é a razão pela qual a declaração de Marcos 2.17 deve ser entendida como uma
indicação de que, na vinda de Jesus como o médico de Deus, a graça que perdoa
pecados vai somente para homens caídos. M as essa graça se estende apenas aos
que já se conscientizaram da sua necessidade. Entendido nesse sentido, esse
pronunciamento é um chamado indireto aos que se julgavam justos. O objetivo é
que examinem seu coração para verificar se tinham razões confiáveis para pensar
que esse tipo de justiça era suficiente.28 Nesse mesmo sentido devemos interpre­
tar a frase “noventa e nove justos que não necessitam de arrependimento”. Jesus
não estava querendo dizer aqui que a relação entre justos e pecadores é de um
para cem. O pronunciamento, ao contrário, significa que (já que a parábola tem
o caráter típico de um enigma) o arrependimento de um pecador é considerado
mais importante nos céus, isto é, diante de Deus, do que a “justiça” dos noventa e
nove. A frase “que não necessitam de arrependimento” é somente uma expressão
do julgamento humano.29 Com essas palavras, Jesus quer induzir aqueles que são
justos aos seus próprios olhos (v. 2) a verem o erro de seus caminhos.30
Quanto às passagens nas quais Jesus fala de “maus e bons”, “justos e injustos,”
a discussão acima é suficiente para mostrar que Jesus de modo algum quer negar
a necessidade de arrependimento para algumas pessoas. Ao contrário, ele fala
de uma distinção relativa entre as pessoas e que é reconhecida como tal por ele
(cf. Rm 5.7; 13.3). No escopo do evangelho, é totalmente equivocado supor que,
nesse caso, Jesus queria pronunciar ou vindicar uma justiça “natural” de certas
pessoas diante de Deus.31 Isso é perceptível não somente naquelas passagens nas
quais Jesus se opõe à ilusão farisaica de justiça, mas também naquelas nas quais
ele diz aos seus discípulos — aparentemente como alguma coisa sobre a qual
não havia dúvida da parte dele e dos discípulos — “se vós, que sois maus, sabeis
dar boas dádivas aos vossos filhos, quanto mais...” (M t 7.11; Lc 11.13).32 Em
outro lugar, Jesus fala do “coração humano” como a sede dos maus pensamentos
e de toda sorte de crimes.33 Ele ensina os seus discípulos a orarem pelo perdão
de suas dívidas bem como pelo seu pão diário (M t 6.12). N a parábola do credor
incompassivo, ele dá como motivo para o dever de perdoar repetidamente as
transgressões de um irmão a dívida infinita que o Pai celestial tem de perdoar
aos seus filhos (M t 18.23-35). E, para mencionar apenas mais um exemplo,34 ele
diz ao jovem rico, com seu otimismo moral e autocomplacência: “Bom só existe
170 A v in d a d o R e in o

um” (M t 19.17); “Ninguém é bom, senão um, que é Deus” (Mc 10.18; Lc 18.20).
Todos esses pronunciamentos mostram, de modo inequívoco, que a pregação de
Jesus se baseia numa perspectiva que nega ao homem principalmente o atributo
de “bom” e que o caracteriza, em vez disso, como “mau”, como pecador, como
devedor diante de Deus.35
Essas declarações relativamente incidentais a respeito da universalidade do
pecado e da necessidade conseqüente de arrependimento não são um fenômeno
isolado, pois o evangelho também mostra claramente a causa dessa perspectiva
e a explica. Essa explicação se encontra no julgamento que Jesus f a z da extensão
da profundidade e da seriedade da natureza do pecado. Esse julgamento é expresso
de maneira significativa e representado de forma antitética, na tripla declaração
de Mateus 5.21-22: “Ouvistes que foi dito aos antigos:36 não matarás; e: quem
matar estará sujeito ao julgamento. Eu, porém, vos digo que todo aquele que [sem
motivo] se irar contra seu irmão estará sujeito a julgamento; e quem proferir um
insulto ao seu irmão estará sujeito a julgamento do tribunal; e quem lhe chamar:
Tolo, estará sujeito ao inferno de fogo”.
Nesse caso, Jesus aponta para o sentido do mandamento “não matarás”
(não somente assassinato, mas também ira e palavras grosseiras são infrações do
mandamento) e também a medida da punição para a menor ofensa da escala:
só pode ser punida com o inferno de fogo. Essa perspectiva, a princípio, anula
qualquer entendimento quantitativo do pecado e o substitui por uma concepção
qualitativa: qualquer pecado, mesmo o “menor”, torna impossível uma relação
contratual com Deus. Ela conclama o homem a depender inteiramente da graciosa
remissão da culpa oferecida por Deus.
E essa não é uma passagem isolada. Ela caracteriza todo o Sermão do Monte,
especialmente na versão de Mateus, a qual é uma longa denúncia judicial contra
a concepção farisaica de justiça. Ela a contrasta com a obediência mais radical,
“perfeita”, como o significado e o cumprimento da lei. Rejeitamos o entendimento
de que o Sermão do Monte tem como objetivo mostrar exclusivamente a grande
miséria moral do homem empírico.37 M as não escapará ao leitor atento o fato de
que, se os mandamentos de Jesus foram dados para mostrar ao homem o caminho
da redenção por meio dos seus próprios méritos, eles terminarão por destituir
o homem de qualquer esperança. De fato, esse tipo de reação foi registrado na
resposta dos discípulos ao pronunciamento de Jesus com respeito à entrada de
um rico no reino: “Sendo assim, quem pode ser salvo?” (M t 19.25). Os discípu­
los entenderam que a maneira como Jesus fala do rico, na verdade, bloqueia o
caminho do reino a qualquer ser humano. Eles estão assustados pela exigência
radical de Jesus. Por esse motivo, Jesus responde dizendo: “Isto é impossível aos
homens, mas para Deus, tudo é possível”. Essa é a chave para se compreender
a totalidade de sua pregação e todos os seus mandamentos.38 A salvação é uma
O EVANGELHO DO REINO - SALVAÇÃO 171

total impossibilidade enquanto o homem for obrigado a obtê-la ou merecê-la


por si mesmo; com Deus, entretanto, existem possibilidades ilimitadas, também
com respeito à salvação do homem.
A parábola do credor incompassivo se baseia na mesma pressuposição (Mt
18.23-35). A dívida do homem para com Deus é tão infinitamente grande (dez
mil talentos) que ele só pode pagá-la ao ser entregue ao horror do inferno, a m
nos que Deus o isente, pela remissão dos seus pecados (18.34). Jesus está longe
de substituir o esquema judaico de mérito por uma concepção mais profunda de
pecado e de justiça.39 Muito pelo contrário, é exatamente essa nova proclamação
da exigência de Deus e a necessidade de levar perfeitamente a sério a sua justiça
punitiva que reduz a soteriologia dos judeus ad absurdum e coloca a redenção do
homem numa base inteiramente nova.
À luz do que foi dito acima, podemos compreender a profundidade da antítese
entre Jesus e o sistema judaico com relação à remissão depecados. E perfeitamente
verdadeiro que, em si mesma, a ideia da remissão de pecados não era novidade
para os judeus. M as qualquer pessoa que recorrer a esse fato como prova de que,
em princípio, a doutrina da redenção de Jesus era uma “religião Leistungs” (ou
seja, uma religião baseada no mérito), e não uma “religião de pecadores”,40 inter­
preta de modo incorreto a diferença fundamental na concepção de pecado e na
concepção de remissão. É verdade que no judaísmo, por vezes, aparecia uma voz
mais audível com respeito ao cumprimento das exigências de Deus, como se vê no
evangelho (cf. M c 12.32-34) e em outras fontes.41 Mas permanece essa diferença
fundamental, ou seja, que a exigência de Deus pregada por Jesus e a insuficiência
da justiça humana tornam totalmente impossível qualquer relacionamento entre
Deus e o homem que seja baseado na realização moral do homem. Por esse motivo,
a pregação de Jesus sobre a remissão de pecados não é meramente um corretivo
incidental da imperfeição da justiça humana. Pelo contrário, trata-se da condição
necessária e básica do homem para que viva diante de Deus e da condição para
que se crie um espaço para a ideia de “justiça”. Em outras palavras, na pregação
de Jesus, o conceito de “remissão de pecados” se encontra num nível muito mais
profundo do que no judaísmo. Ele não aparece somente no momento do “ajuste
de contas” e nem reside na esfera moral; ele forma o critério real e mais profundo
da relação entre o homem e Deus. Em nenhum outro lugar esse fato é visto de
maneira tão clara como no pronunciamento (que sempre é citado para provar a
perspectiva contrária) de Lucas 15.7: “Digo-vos que, assim, haverá maior júbilo
no céu por um pecador que se arrepende do que por noventa e nove justos que não
necessitam de arrependimento”. Aqui, o arrependimento de um pecador é mais
valorizado do que toda a justiça dos “justos”. Encontramos o mesmo na parábola
do fariseu e do publicano. Apesar de o primeiro poder enumerar atos de “justiça”
pelos quais agradecia a Deus, Jesus nos aponta o publicano penitente, que podia
172 A v in d a d o R e in o

somente dizer: “Õ, Deus, sê propício a mim, pecador”. É esse que Jesus declara que
desceu justificado para sua casa, e não o outro (Lc 18.10-14).42 Esse pensamento
é incompreensível dentro do escopo da soteriologia judaica. Não estou dizendo
que, na visão judaica, Deus não tinha misericórdia do pecador penitente, mas que,
nessa visão, o pecador penitente era colocado numa posição de desvantagem em
relação ao homem justo. O motivo era a inferência feita repetidamente de que o
amor de Deus pelo justo era muito maior do que o seu amor pelo pecador. E um
fato estabelecido que todas as opiniões rabínicas a respeito da bondade de Deus
são seguidas por essa conclusão: “Se seu [de Deus] amor pelos pecadores é tão
grande, muito maior é seu amor pelo justo”.43 E nisso que reside a grande impor­
tância da inversão desse relacionamento na declaração de que “este [o publicano]
desceu justificado para a sua casa, e não aquele [o fariseu]”. A declaração de que
existe maior alegria no céu por um pecador arrependido do que por noventa e
nove justos que não necessitam de arrependimento representa uma ruptura funda­
mental com a soteriologia judaica, pois elimina o seu fundamento. Esse é o ponto
do ensino de Jesus que os líderes judeus não toleravam e ao qual apresentaram
a mais fundamental resistência. Pois Jesus prega a remissão de pecados como a
única maneira de escapar da ira de Deus e baseia a libertação do julgamento divino
exclusivamente na graça de Deus, e não no mérito humano.
Ê verdade que, no evangelho, Jesus fala frequentemente sem restrição acerca
do galardão que deve ser esperado por todos que vivem de acordo com a vontade
de Deus,44 e isso não num sentido negativo ou hipotético. Com frequência ele diz
aos seus discípulos que podem aguardar essa recompensa como certa. Assim, por
exemplo, ele diz que os perseguidos por sua causa são bem-aventurados porque
“é grande o vosso galardão nos céus” (M t 5.11-12). Ele fala do galardão que
será dado pelo Pai celestial aos que não realizam seus atos de justiça (esmolas,
orações e jejuns) com o fim de serem vistos pelos homens (M t 6.4,6,15). Aos que
fazem o bem sem esperar galardão ou recompensa, ele diz: “será grande o vosso
galardão” (Lc 6.35). Quem receber um profeta como profeta, e um justo como
justo, ou quem der de beber um copo d’água a um “desses pequeninos”, porque
é um discípulo, não perderá de maneira alguma o seu galardão (M t 10.40-42).
Tais passagens podem ser multiplicadas. Elas falam explicitamente de galardão
e recompensa. Além disso, transparece de maneira especial, nas descrições do
julgamento divino, que existe uma correlação inquebrantável entre o que o homem
fez e o que ele, um dia, receberá, apesar de a palavra “galardão” não ser mencionada
(cf., p. ex., M t 24.45ss; 25.14-30; 25.31-46; 12.36-37). Consequentemente, o
ser humano deveria estar consciente das conseqüências eternas de suas palavras
e ações a cada momento (M t 7.13-27).45
Essa ideia de recompensa é muito importante no evangelho e seria muito
destrutivo para a totalidade da pregação de Jesus se viermos a pensar que ela é
O EVANGELHO DO REINO - SALVAÇÃO 173

incompatível com a remissão de pecados ou se a esvaziarmos de seu poder por


causa dessa mesma remissão.46Todavia, por outro lado, é perfeitamente claro que,
na pregação de Jesus, a salvação não se baseia no mérito e no direito humano,
mas na remissão divina de pecados e na graça. Isso é perceptível não somente
na maneira como Jesus julga o pecado, como também do conceito de galardão
expresso no próprio evangelho.
Quanto a isso, há duas parábolas que têm um significado particularmente
relevante, que são a de Lucas 17.7-10 (a recompensa de um servo) e a de Mateus
20.1-16 (os trabalhadores da vinha). A primeira nega qualquer reivindicação a
uma recompensa, mesmo da parte dos que fizeram tudo o que estavam obrigados
a fazer diante de Deus. Até mesmo eles são douloi achreioi, isto é, servos inúteis e
miseráveis.47 Eles não são chamados de inúteis no sentido geral, mas, como servos
do seu senhor, nunca poderiam ter reivindicado gratidão ou recompensa. Ê esse
o sentido da ideia, colocando da maneira mais crassa possível de que Deus não
tem qualquer obrigação para com o homem, o qual é sua criatura. Tudo o que é
dado por Deus ao homem é evidência da sua bondade e é recebido de maneira
não merecida pelo homem.
Não menos ilustrativa é a parábola dos trabalhadores na vinha. Seu propósito
é revelar a soberania de Deus em conceder uma recompensa. Ela não tem nada a
ver com o direito daqueles que trabalharam o dia inteiro, mas, ao contrário, rejeita
a ilusão de que o homem teria direito a um reconhecimento particular da parte de
Deus se cumprisse tudo o que lhe foi exigido. Aqueles que pensam na relação com
Deus em termos de um contrato de trabalho e que, com base nisso, fazem objeções
à graça não merecida de Deus, são, aqui, advertidos de que “os últimos serão pri­
meiros, e os primeiros serão últimos” (Mt 20.16, cf. 19.30). A parábola nos lembra
vividamente do retrato do filho mais velho na parábola de Lucas 15.25ss.48
Em contraste com isso, a amorosa bondade de Deus (“são maus os teus
olhos porque eu sou bom?” - v. 15) é colocada à luz mais clara. No grande dia do
ajuste de contas, Deus estará disposto a conceder a sua salvação também àqueles
que não a reivindicam de acordo com o padrão de mérito. O fato de que, apesar
disso, eles recebem uma recompensa, prova que a noção judaica de recompensa
foi esfacelada e que a recompensa, nesse caso, só pode ser concedida com base no
amor perdoador de Deus.
A ideia de uma recompensa como tal não é eliminada com isso. Menos
ainda fica cancelada ou relativizada a ameaça de castigo divino. A recompensa,
entretanto, só é vista depois que houver a remissão de pecados. A participação na
salvação do reino (à qual se referem todas as reivindicações a uma recompensa)
é inteiramente uma questão da ação graciosa de Deus e não de reivindicações
humanas. Assim, no que diz respeito à ideia de uma recompensa, o evangelho do
reino significa uma ruptura total com o esquema judaico de redenção.
174 A v in d a d o R e in o

Em resumo, pode ser dito que a pregação da graciosa remissão da culpa por
parte de Deus é o centro e a base do evangelho do reino, especialmente pelo fato de
que Jesus constantemente a contrasta com a soteriologia judaica. As parábolas e as
histórias nas quais esse evangelho do perdão encontra a sua mais sublime expressão
têm sido corretamente consideradas como o ponto culminante de todo o evange­
lho. Essas parábolas e histórias são, por exemplo, a do filho pródigo (Lc 15.11-32),
a do fariseu e o publicano (Lc 18.9-14), a história do pecador arrependido (Lc
7.36-50), a mulher adúltera (Jo 8.1-11) e Zaqueu (Lc 19.1-10).
Em nenhum lugar os conceitos de pecado, arrependimento e graça divina
foram descritos de maneira mais vivida e impressionante do que na parábola do
filho pródigo. Pecado: deixar a comunhão do pai, viver distante do pai, dissipar
os bens do pai. Arrependimento: descoberta da sua própria angústia, sua cons­
ciência de haver pecado contra o pai e de haver perdido os seus direitos como
filho, seu retorno ao pai. Graça: a espera do pai pelo filho, sua compaixão por
ele e a recepção alegre do filho perdido na casa do pai. No pano de fundo está o
filho mais velho, que é tão alienado da comunhão do Pai quanto o filho pródigo,
por causa da sua própria autocomplacência e hipocrisia. Ele não havia entendido
absolutamente nada sobre arrependimento, misericórdia e remissão de pecados.
De maneira incomparável, essa parábola retrata o que, mais tarde, Paulo chamaria
de “o espírito de escravidão”, que gera temor e medo, e “o espírito de adoção,
baseados no qual clamamos: Aba, Pai” (Rm 8.15).
Também, em consonância com Paulo, não se deveria jamais perder de vista
que essa impressionante pregação da remissão de pecados e da graça divina não
contém verdades eternas à parte de qualquer situação. M as, em concordância com
a natureza das parábolas de Jesus 49 e da totalidade do kerygma sinótico, ela exibe
o caráter da pregação do reino dos céus. Em outras palavras, o motif antitético em
todas essas parábolas e histórias se apresenta claramente e não deveria jamais ser
separado do mo/jfpredominante do cumprimento, já mencionado anteriormente.
O fato decisivo que se encontra no fundamento da proclamação de Jesus da sal­
vação é o significado cristológico e integral desse cumprimento, isto é, ele está
fundamentado na pessoa de Jesus e na sua obra como o Cristo de Deus.
Por isso, não há uma concepção mais equivocada da pregação de Jesus do
que aquela que separa a sua parte central, a saber, a remissão de pecados, do motif
evangélico do cumprimento. E isso que constitui o abismo intransponível entre
o kerygma sinótico e a interpretação liberal do evangelho e outras interpretações
modernas. Elas reconhecem em Jesus o proclamador da remissão de pecados e
da paternidade de Deus. No entanto, não consideram a pessoa e a obra de Cristo
como a base dessa comunicação da salvação. Essa perspectiva pode ser expressa
de diversas maneiras. Harnack sustenta que o Pai, e não o Filho, pertence ao
conteúdo do evangelho.50 K. Holl (apesar de fazer mais justiça ao caráter redentor
O EVANGELHO DO REINO - SALVAÇÃO 175

do evangelho do que a antiga teologia liberal) é da opinião de que a parábola


do filho pródigo mostra que Jesus considerava que a vontade de perdoar estava
fundamentada no ser de Deus como tal, algo inteiramente independente de
“qualquer situação temporal”.51 E, finalmente, há aqueles que concordam com a
fórmula bem conhecida de que Jesus pregou a remissão de pecados exclusivamente
com base no arrependimento.52 Todos os pronunciamentos acima concebem a
remissão de pecados como uma realidade atemporal, não ligada com a vinda do
reino de Deus e nem com a pessoa de Cristo.
E verdade que, dentro dessa perspectiva, há o reconhecimento de “outra”
soteriologia ocorrendo no evangelho, ou seja, uma soteriologia que liga a remissão
de pecados com a morte de Jesus. M as, se observarmos bem, há somente duas
passagens que sugerem isso (a saber, uma sobre o resgate, M c 10.45, e uma sobre
a Ceia do Senhor, M c 14.22-25). Segundo alguns, elas provam a existência de
mais de um tipo de soteriologia no evangelho.53 É claro, entretanto, que essa
opinião descarta inteiramente não somente a unidade, mas também o evangelho
como a pregação da vinda do reino messiânico de Deus. Nesse caso, o que está em
discussão não é apenas o significado da morte expiatória de Jesus, mas o caráter
cristológico do cumprimento do evangelho no reino dos céus como um todo. Se,
entretanto, esse mo/z/"fosse a base dominante do evangelho, seria melhor retirar
a parábola do filho pródigo ou a quinta petição do pai-nosso como um corpus
alienum do que considerar o caráter cristológico da remissão de pecados como
secundário e estranho à essência do evangelho original.
Em nossa opinião, ambas as perspectivas estão baseadas numa compreensão
fundamentalmente errada do evangelho da remissão de pecados. Como a proclama­
ção da salvação do reino, igualmente, essa remissão eo ipso traz o caráter cristológico
do cumprimento. Isso é muito óbvio na primeira pregação de Jesus na sinagoga de
Cafarnaum e na história da cura do homem da mão ressequida. Em outro lugar,
Jesus mantém de maneira especial a remissão de pecados como um ato da divina
graça, sem mencionar explicitamente a situação soteriológica que depende da sua
própria pessoa. Todavia, seria uma conclusão muito arbitrária inferir, desse fato,
que nesse caso nos encontramos face a face com um evangelho sem Cristo.
Em vez disso, devemos dar um passo adiante. Por causa do motifantitético
na pregação de Jesus sobre a remissão de pecados, ele se opõe à doutrina de mérito
defendida pelos escribas e fariseus e ensina que a redenção flui exclusivamente da
graça divina. Esse motifnão deveria ser isolado do motifdo cumprimento, o qual
é a sua mais profunda explanação. E verdade que essa pregação da remissão de
pecados não é, em si mesma, algo novo, mas a continuação do que está revelado
a respeito de remissão e da satisfação no Antigo Testamento. Todavia, existe
algo, na pregação e na ação de Jesus com respeito ao pecado e sua remissão, que
é muito mais avançado do que a proclamação veterotestamentária da salvação.
176 A v in d a d o R e in o

A graça e a segurança da salvação são pregadas de maneira inigualável. Isso se


aplica, mais uma vez, à parábola do filho pródigo, em particular, e à do fariseu
e do publicano. Ela também se aplica à ênfase com que as bem-aventuranças
proclamam a salvação e também ao que foi dito a Zaqueu: “hoje veio salvação
a esta casa”. Nenhuma dessas passagens é (o que é chamado) “explicitamente
cristológica”. Ainda assim, a exuberância da primeira vez que Jesus proclamou a
salvação e a descrição incomparável do caráter absolutamente gratuito da remissão
de pecados são conseqüências diretas da irrupção da era do novo mundo, o qual já
começou. Em outras palavras, Jesus é capaz de proclamar a remissão de pecados
dessa maneira incomparável porque ele é não somente o profeta, mas, também,
o rei do reino. Ele não apenas proclama a salvação, mas é o seu portador, aquele
que a adquiriu e que a compartilha com os seus seguidores.
E por esse motivo que há uma conexão intrínseca entre a pregação de Jesus
a respeito da remissão de pecados como um ato da pura graça divina e tudo o que
Jesus diz, em sua autorrevelação, sobre sua autoridade e missão messiânicas. O
que Jesus prega sobre a remissão de pecados e a redenção, ele o faz por virtude
da sua missão divina como Filho do Homem, a quem todo poder e autoridade
foram dados. Ao mesmo tempo, ele o faz como aquele que “tem” de levar avante
tudo que lhe foi comissionado e o que “foi escrito” a seu respeito como o Servo
do Senhor. A salvação, incluindo a remissão de pecados, está investida em sua
pessoa, no cumprimento da sua missão, em sua obediência à vontade divina.
Esse é o motivo pelo qual os dois pronunciamentos, de acordo com os quais
redenção e remissão de pecados dependem do resgate que Cristo tem de pagar
e do derramamento do seu sangue, não representam uma soteriologia diferente
e posterior. M as, de um modo orgânico, ligam o significado da morte de Cristo
com o significado da sua vida e revelam o mais profundo mistério da certeza de
salvação e da remissão de pecados como a única base possível de redenção. Tudo
isso é encontrado no sacrifício que Cristo oferece por aqueles que são seus, na
sua obediência substitutiva como o resgate por muitos, no derramamento do seu
sangue como a condição e a base da nova aliança.
A autenticidade do kerygma cristão depende dessa unidade na proclama­
ção do evangelho conforme encontrada nos Evangelhos sinóticos. A parábola
do filho pródigo, a petição por perdão de pecados no pai-nosso, a pregação
da salvação no Sermão do Monte e tudo o que possa ser equiparado a isso,
não podem ser destituídos do seu sentido, sentido esse que é a proclamação
do reino e do caráter cristológico que lhe é concomitante. Pois então, a raiz
do kerygma cristão seria arrancada e o evangelho seria isolado da história da
salvação, ficando suspenso no ar e assumindo um conteúdo idealístico. Porém,
no kerygma sinótico, tudo está apoiado na certeza do cumprimento, no caráter
messiânico da pregação de Jesus e em seu poder miraculoso e na sua vida e
O EVANGELHO DO REINO - SALVAÇÃO 177

morte. Remissão de pecados é remissão em Cristo. Esse é o cerne do evangelho


original não adulterado.

28. A paternidade de Deus

A ideia da paternidade de Deus está diretamente ligada com o conceito da


remissão de pecados. Os dois estão ligados de tal maneira que não se pode realmente
discutir um sem o outro. A parábola do filho pródigo com seus dois “pontos focais”,
a remissão de pecados e a paternidade (divina), prova isso. Além disso, em outras
partes do evangelho, esses dois se complementam (Mt 6.14-15). Pode ser dito que
a remissão de pecados é a pressuposição54 do relacionamento Pai-filho na pregação
de Jesus acerca do relacionamento de Deus com seu povo. Ao mesmo tempo, a
paternidade de Deus e a filiação (huiothesia) dos fiéis são a concretização daquela
comunhão na qual a remissão de pecados acontece. Encontramos, especialmente
em Mateus, uma longa série de pronunciamentos de Jesus na qual ele fala aos dis­
cípulos acerca de Deus como “vosso Pai”, “vosso Pai celestial”, “vosso Pai que está
nos céus” (cf. 5.16,45,48; 6.1ss; 6.9; 6.14-15; 6.26,32; 7.11; 10.20; 10.29; 13.43;
18.14; 23.9). A palavra “vosso” indica, geralmente, o plural, mas, algumas vezes
também o singular (Mt 6.4,6,18). Em Lucas, o acréscimo “celestial” ou “nos céus”
está faltando (cf. 6.36; 11.2; 12.30,32, exceto 11.13).55 N a oração do pai-nosso em
Lucas, Jesus se dirige simplesmente ao “Pai”. Em Marcos, encontramos “vosso Pai
celestial” como o nome de Deus somente em 11.25 (26).
De acordo com isso, mas muito menos frequentemente, temos também o
termo “filhos” (paidia e huioi) de Deus, que indica tanto o futuro estado de bênção
(Mt 5.9; Lc 20.36) quanto um relacionamento presente (Mt 5.45; Lc 6.35). A isso
pode-se acrescentar o que algumas parábolas dizem acerca do pai e seus filhos, com
referência a Deus e aos que são seus (Mt 7.9; Lc 11.11; 15.11ss). Portanto, o número
de passagens nos sinóticos que falam dos filhos de Deus é muito pequeno.
Como no caso da proclamação da remissão de pecados, devemos distinguir
de modo exato o que é novo nessa referência a Deus como “vosso Pai” (que está
nos céus), ou, em outras palavras, o que do evangelho do reino se encontra nela.
Em si mesma, a ideia da paternidade de Deus não é encontrada pela primeira
vez na pregação de Jesus. Silenciaremos quanto ao que pode ser citado de reli­
giões não cristãs. Pois nesse caso, também,56 com respeito à filiação do homem
em relação a Deus, a ideia central nas religiões não cristãs é sempre, no fundo, a
divinização do homem e a liberação do que é divino em seu ser essencial dessa
sua vida material e temporal.57
Entretanto, no Antigo Testamento e no judaísmo posterior, as coisas são
totalmente diferentes. No Antigo Testamento, a nação de Israel é repetidamente
178 A v in d a d o R e in o

chamada de “filha de Deus” e os israelitas, consequentemente, de “filhos de Deus”


(cf., p. ex., Êx 4.22; D t 14.1; 32.6,18; Is 1.2; 63.8ss; Jr 3.19,31; 9.20; 31.20; Os
11.3ss; M l 2.10, etc.). Em geral, isso indica a relação teocrática da aliança na
qual Israel se relaciona com Yahweh como um povo. Em nenhum lugar no Antigo
Testamento encontramos um exemplo no qual o crente individual se aproxima
de Deus como seu Pai. Mas, em passagens como o Salmo 73.15, e especialmente
no Salmo 103.13, encontramos a inferência de que o privilégio peculiar de Israel
como nação era também concebido num sentido mais pessoal.
Na literatura judaica posterior, essa individualização da filiação a Deus se
torna muito clara. A expressão não é mais usada em relação ao povo ou ao rei, mas
aos piedosos, como indivíduos. O mesmo ocorre nos pseudepígrafos e apócrifos,
embora, neles, esse uso seja comparativamente raro. Na literatura rabínica, o nome
“pai” para Deus é usado com frequência, especialmente a partir do final do século
I o., e, na maioria das vezes, com o acréscimo “que está nos céus”. A referência
a Deus como “nosso Pai” e também “meu Pai” pode ser encontrada nas orações
judaicas antigas.58 Isso não ameniza o fato de que o espírito que permeia todos
esses escritos não é de certeza da salvação e de confiança religiosa; pelo contrário,
é um espírito de timidez e incerteza (cf. Rm 8.15). Quanto à manifestação da
paternidade divina, aguarda-se com expectativa o grandioso futuro.
Uma comparação do uso do termo na literatura judaica e nos Evangelhos
sinóticos mostra que, nestes, o nome do Pai tem um significado muito mais
central e íntimo,59 significado que é inteiramente dominado pela certeza da
salvação, algo alheio ao judaísmo (cf. Lc 12.32, etc.). Ainda assim, seria um erro
considerar a paternidade de Deus na pregação de Jesus como nada mais que
um aprofundamento da ideia judaica posterior. O que confere um significado
exclusivo à relação Pai-filho na pregação de Jesus é a dimensão do cumprimento,
que está totalmente ausente no judaísmo.
Não há dúvida de que a origem do uso do nome Pai, também nos Evan­
gelhos, encontra-se na relação pactuai especial entre o Senhor e seu povo de
Israel.60 Na parábola dos dois filhos (Mt 21.28ss), não só o jovem obediente,
mas também o pródigo, são filhos do Pai. E, na parábola de Lucas 15, a questão
é claramente a antítese entre os “pecadores”, “aqueles que estavam perdidos”,
e os “justos” dentro de Israel. Em ambos os casos, tanto no do filho “pródigo”
voltando ao Pai quanto no do filho mais velho vivendo sem comunhão com o
Pai, permanece válida a relação Pai-filho. Isso demonstra, portanto,61 que, com
relação ao Israel hostil e apóstata, Jesus inicia a pregação da salvação a partir da
relação teocrática da aliança e extrai dela um de seus argumentos mais poderosos
para que Israel se arrependa.
Ainda assim, esse emprego do termo não é regra geral. Ele é aplicado
raramente e, mesmo assim, sob a forma de uma parábola. Todas as vezes em
O EVANGELHO DO REINO - SALVAÇÃO 179

que Jesus fala de “vosso Pai que está nos céus” e do “Pai celestial” ou dos “filhos
de vosso Pai celestial”, ele tem em mente a relação exclusiva do Senhor com os
que compartilharão da bênção do reino dos céus e que já participam dela no
presente. Aqui, também, parece que a nova aliança começou juntamente com o
reino de Deus e que aqueles a quem a salvação é prometida constituem o novo
povo de Deus.
A ênfase, no entanto, deve ser colocada na ideia de comunidade. A salvação
proclamada por Jesus é a salvação do povo do Senhor, como já discutimos mais
detalhadamente no capítulo anterior. E isso também se aplica à paternidade de
Deus. O evangelho como um todo mostra que essa relação não deve ser concebida
num sentido individualista, isto é, como primariamente uma relação entre Deus e
seres humanos individuais, mas entre Deus e seu povo. Esse fato não é de maneira
alguma afetado pela circunstância de que a membresia com o povo de Deus na
plenitude dos tempos não é resultado de uma descendência natural de Israel, mas
sim de conversão pessoal e fé em Jesus como o Cristo. Ser filho de Deus deve
ser entendido num sentido histórico-redentor. E a concretização da promessa da
nova aliança, a continuação e cumprimento do elo entre o Senhor e Israel.
Essa é a razão pela qual Jesus quase sempre emprega o plural “vosso (prono­
me genitivo plural) Pai que está nos céus”. Essa frase não exclui - na verdade, ela
inclui - a relação pessoal entre o Pai e seus filhos. Isso aparece naquelas passagens
nas quais Jesus se refere especialmente à piedade pessoal dos discípulos (M t
6.4,6,18). Ainda assim, essa forma singular de referência ocorre apenas espora­
dicamente. Quase sempre a filiação a Deus é indicada como o relacionamento
entre o povo do Senhor como um todo e seu Deus.
A ocorrência mais característica se encontra na oração do pai-nosso, que
começa com “Pai nosso”. Isso não quer dizer que seja proibido a cada crente in­
vocar a Deus como seu Pai ao dirigir-se a ele depois de “fechada a porta” de seu
quarto (M t 6.6). Apesar disso, a oração que Jesus ensina a seus discípulos sugere,
em seu tom, uma pluralidade e é determinada pela maneira como é dirigida a
Deus, “Pai nosso”. Isso está em total harmonia com o fato de que Jesus, como o
Cristo, capacita seus discípulos a orarem dessa maneira. Eles são restaurados à
comunhão com Deus como a nova igreja, o povo redimido do Messias.62 O próprio
Jesus indica a natureza dessa comunhão chamando aqueles que fazem a vontade
le Deus de seu irmão, irmã e mãe (Mc 3.35). A natureza dessa comunhão é
também indicada de maneira especial quando Jesus, enfaticamente, responsabiliza
;eus discípulos pela comunhão dos filhos de Deus (Mt 18.10-14),63 com base
r.a ideia da paternidade de Deus.
A característica específica e nova dessa relação Pai-filho pregada por Jesus não
;:eve ser procurada, portanto, na sua indicação formal ou em sua individualização
e apenas parcialmente no aprofundamento dessa relação. Ela deve ser buscada,
180 A v in d a d o R e in o

acima de tudo, na situação redentora-histórica na qual Jesus a proclama como


uma realidade presente. No Antigo Testamento, essa relação tinha apenas um
significado provisório (cf. Os 1.10; 2Co 6.18). Com a vinda do reino, ela foi con­
cretizada.64 Isso é explicitamente proclamado nas bem-aventuranças, nas quais
o conteúdo da salvação do reino é descrito nas palavras acerca dos pacificadores,
que “serão chamados filhos de Deus”. Nesse contexto, ser filho de Deus tem um
sentido puramente escatológico. “Ser chamado” não é a mesma coisa que “ser”. A
expressão mdicípiiblicidade, reconhecimento por parte de todos (cf. Rm 8.23). O
mesmo ocorre em Lucas 20.36, que diz, acerca dos bem-aventurados, que “eles
são filhos de Deus, sendo filhos da ressurreição”. E verdade que a expressão “filhos
de Deus” tem um sentido absoluto (“são”, não “são chamados”), mas ela, aqui, é
cheia de significado. A glória plena dos filhos de Deus (cf. M t 13.43) está em vista
aqui, como se vê pela cláusula causativa, “sendo filhos da ressurreição”, isto é, na
totalidade de sua existência, uma existência determinada pela ressurreição.65
Quanto ao restante, é claro que o privilégio de ser filho de Deus não é
meramente uma questão futura.66Já agora Jesus chama aqueles que aceitam suas
palavras de filhos do Pai celeste (M t 5.45) e repetidamente chama Deus de Pai
deles (M t 5.16, 45, 48, etc.). A salvação presente e a salvação futura são apenas
uma quanto à filiação a Deus, diferindo somente quanto ao modo.
A explicação verdadeira e mais profunda desse relacionamento entre Deus
e aqueles a quem o reino dos céus é prometido encontra-se na pessoa do próprio
Jesus, ou, colocando de maneira mais exata, na relação do próprio Jesus com o Pai.
Esses dois tipos de relacionamentos, isto é, o relacionamento de Jesus e o
relacionamento dos crentes com Deus, não devem ser confundidos. O primeiro
não é uma absolutização do último, como a teologia liberal tentou manter por
muito tempo.67 Isso não precisa ser demonstrado, já que uma perspectiva melhor
quanto ao caráter sobrenatural do kerygma cristológico dos sinóticos tem recebido
cada vez mais aceitação.68Jesus nunca fala de “nosso Pai” a ponto de se identificar
com os seus discípulos, mas distingue entre “meu Pai” e “vosso Pai”. A primeira
expressão transmite o caráter exclusivo de sua filiação a Deus, a qual foi procla­
mada pelo Pai quando ele assumiu suas responsabilidades (M t 3.17 e passagens
paral.), mais tarde confirmada (M t 17.5), podendo ser conhecida apenas mediante
um caminho sobrenatural (M t 16.17) e, portanto, sempre mantida por ele como
um privilégio especial (cf., p. ex., M t 17.24-27; o pagamento das didracmas).
Por outro lado, Jesus é o Mediador com respeito à filiação dos crentes (Mt
11.27), “ninguém conhece o Filho, senão o Pai; e ninguém conhece o Pai, a não
ser o Filho, e aquele a quem o Filho o quiser revelar” . O conhecimento do Pai,
portanto, depende do Filho. Segue-se, em harmonia com o caráter do evangelho,
que esse conhecimento não é meramente intelectual, mas cria um relacionamento
pessoal69 (cf. M t 7.23). Essa revelação do Pai pelo Filho é, portanto, baseada na
O EVANGELHO DO REINO - SALVAÇÃO 181

obra de Jesus. Ela está indissoluvelmente ligada com tudo o que ele realiza pela
remissão de pecados de todos os que são seus.70
Isso mostra claramente que a salvação do reino e também a filiação a
Deus só podem ser uma realidade se Jesus for o Filho de Deus, aquele a quem
foi dada autoridade e que é o Servo do Senhor. Tudo isso é determinado pelo
caráter cristológico do evangelho como cumprimento. Assim, a filiação é uma
total impossibilidade sem a fé em Jesus como o Cristo enviado por Deus. De
acordo com a interpretação moderna do evangelho, Jesus entendia a paternidade
de Deus como um relacionamento natural,71 havendo apenas a necessidade de
que o homem se conscientizasse desse relacionamento pela “reflexão” sobre ele.
Porém, essa perspectiva é uma distorção radical do sentido do evangelho.
A exposição acima deixa claro qu zpaternidade e realeza na pregação de Jesus
não são dois aspectos distintos. Fica claro, também, que não se pode considerar o
conceito de Deus como Rei e Juiz como algo menos importante do que o conceito
de Deus como Pai. É certamente impróprio assinalar uma posição inferior para
essa primeira perspectiva.72 Para que esse ponto seja visto com clareza, bastaria
que nos lembrássemos do que Jesus proclamou em todos os tipos de pronuncia­
mentos e parábolas acerca de Deus como Rei e Senhor. E a ele que todos nós
somos responsáveis, de quem todos somos servos (escravos), cuja “casa” deve ser
“guardada”, etc.73 Pois essa própria paternidade, do modo como Jesus fala dela
no evangelho, é controlada também pela ideia da realeza de Deus (e vice-versa).
Com respeito ao cuidado paternal de Deus pela vida temporal de seus filhos,
trataremos do assunto numa seção em separado.74Aqui queremos apenas indicar
o relacionamento básico geral entre esses dois conceitos.
O fato de que, desde o início, a paternidade de Deus indica uma relação que
se mistura com a relação teocrática da aliança mostra a estreita conexão entre as
duas ideias. A paternidade de Deus sobre Israel consiste no fato de que ele era
o Rei de Israel. Essa conexão é encontrada repetidamente na pregação de Jesus.
Jesus ensina seus discípulos a orarem ao Pai para que seu nome seja santificado
e para que seu reino venha. A salvação do povo de Deus reside no fato de que
ele se revelaria plenamente e se santificaria como Rei. O bom prazer do Pai em
relação aos seus filhos está no fato de que ele lhes dá o seu reino (Lc 12.32) e,
no reino do seu Pai, os justos brilharão como o sol (M t 13.43). E essa a relação
entre os aspectos teocêntrico e soteriológico da pregação de Jesus sobre o reino.
Em vez de depreciar a realeza de Deus como algo menos essencial ou menos
“evangélico” do que a sua paternidade, devemos dizer que sua paternidade foi
totalmente incluída na dinâmica da primeira, tanto para o presente quanto para
o futuro. A paternidade de Deus não é um pensamento geral e imóvel, uma
ideia atemporal, mas é a paternidade daquele que se manifesta como o Rei que
se levantou para governar como Rei. A ideia da paternidade é cercada em todo
182 A v in d a d o R e in o

lugar pelas forças procedentes da consumação de todas as coisas. Ela não está
em repouso, mas cheia de movimento escatológico. Está envolvida nas tensões
que governam o mundo e a História e origina-se da ação realizadora divina. Em
resumo, é a paternidade proclamada ao povo do Senhor como aquela bênção
longamente esperada, a libertação do reino. Isso dá às palavras “que está nos céus”
um tom especial e um significado rico no evangelho, apesar de elas, em si mesmas,
não serem novidade. Essas palavras indicam, como, também, por exemplo, em
algumas orações judaicas, a sublimidade e a transcendência da paternidade de
Deus excluem qualquer pensamento de familiaridade e qualquer pensamento
terreno de sua majestade celeste. A luz da vinda do reino, toda ênfase é colocada
no céu como morada da qual o Pai vem e opera e de onde também Jesus Cristo
foi “enviado” e “veio”. Ali, a vontade de Deus está sendo feita, já agora, como será
um dia também feita na terra (Mt 6.10). Ali, a salvação é guardada e mantida
como uma “recompensa” e “tesouro” (M t 6.1,20) e os nomes dos filhos de Deus
foram “registrados” (Lc 10.20). Por causa da vinda do reino, o céu não é somente
o lugar da transcendência e inacessibilidade divinas, mas também o centro da
obra divina da salvação efetuada pelo Pai, que foi colocada em movimento e que
está sendo continuamente dirigida para a consumação de todas as coisas. Isso
mostra que a paternidade de Deus, por assim dizer, está totalmente carregada com
o poder da sua realeza. Essas duas coisas não representam ideias atemporais (a
primeira, a ideia de proximidade, e a segunda, a ideia de transcendência). A sua
unidade indissolúvel significa que a paternidade de Deus deriva o seu significado
especial dos acontecimentos grandiosos de cumprimento da salvação, os quais
foram identificados na pregação de Jesus como a vinda do reino.
Por outro lado, a realeza de Deus é determinada pela sua paternidade. Esse
fato, também, lança uma luz mais clara sobre o propósito do evangelho. Quanto ao
futuro, em meio a todos os acontecimentos apocalípticos e a todos os fenômenos
que se apresentam no horizonte do reino vindouro, Deus verá seu povo como
seusfilhos. Ele haverá de confortá-los, de revelar sua face a eles e ter misericórdia
deles (M t 5.4, 7-9). Quanto ao presente, também, a mesma paternidade confere
ao evangelho do reino um tom terno, confiável e vitorioso, pois a paternidade
de Deus é representada pela paternidade humana e é descrita repetidamente por
Jesus por meio da ilustração de um pai terreno (M t 7.9-11; Lc 11.11-13; 15.11ss).
Isso é feito de uma maneira que expressa a comunhão e o cuidado amoroso de
Deus por seus filhos. Deus desce até seus filhos e fala com eles de maneira íntima.
Quem se aproxima de Deus não precisa fazê-lo aos gritos e nem com o temor
servil dos pagãos quando clamam aos seus deuses, pois, o Pai “sabe” todas as
coisas antes que lhe peçamos (M t 6.7-8). Ele “conhece” as necessidades da vida
terrena simples dos seus filhos (M t 6.32), pois ele também cuida dos pássaros e
das flores. Ele não haverá de desapontá-los no que lhes concede na mesa da vida,
O EVANGELHO DO REINO - SALVAÇÃO 183

do mesmo modo que um pai terreno não dá ao seu filho uma pedra em lugar de
pão, nem uma serpente em lugar de peixe (M t 7.9ss; Lc l l .l l s s ) . E ele, à parte de
cuja vontade nem mesmo um passarinho cai no chão (M t 10.29) e quem, como
um verdadeiro Pai, se preocupa de maneira especial com os “pequeninos” (Mt
18.14). Em tudo isso, a pregação do reino, que abrange o mundo e a História,
assume uma forma que não a separa das coisas mais triviais e comuns da vida,
mas que se revela como a pregação da misericórdia paternal de Deus, capaz de
perscrutar as angústias mais ocultas de cada ser humano.
Essa unidade entre a paternidade e a realeza de Deus na pregação de Jesus
se constitui na riqueza inexaurível do evangelho. Discutiremos suas diferentes
facetas no que se segue.

29. O cumprimento da vontade do Pai

A proclamação da salvação do reino dos céus, a remissão de pecados e a pa­


ternidade de Deus estão indissoluvelmente ligadas com a obrigação de se fazer a
vontade do Pai. O Sermão do Monte é o maior exemplo disso. As bem-aventuranças
são seguidas de mandamentos. O Sermão do Monte também mostra a importância
dos mandamentos na pregação de Jesus. A começar em Mateus 5.13, o Sermão do
Monte é uma única exortação impressionante a que se façam “boas obras” (Mt 5.16),
para se fazer “justiça” (5.20; 6.1; 6.33), para se cumprir “a Lei e os Profetas” (5.17-
48; 7.12), a entrar “pela porta estreita” e andar pelo “caminho apertado” (7.13-14),
a “dar fruto” (7.16-20), a se fazer “a vontade do Pai” (7.21), a “ouvir” e a “praticar”
as palavras de Jesus (7.24-27, cf. também Lc 6.27-49). Somos confrontados, aqui,
com o aspecto positivo do arrependimento, o qual foi também pregado por João
Batista quando falou sobre “produzir... frutos dignos de arrependimento” (M t 3.8
e passagens paral.). O mesmo arrependimento é requerido e indicado de várias
maneiras na pregação de Jesus e repetidamente sintetizado nos mandamentos do
amor radical e do autossacrifício (Mt 10.37-39; Lc 14.26-27), de tomarmos sobre
nós o “jugo” (M t 11.29), de negarmos a nós mesmos (Mt 16.24ss e passagens paral.;
18.1-5 e paral.), de cumprirmos o grande mandamento (M t 22.34-40 e paral.) e
de amarmos ao próximo como a nós mesmos (Lc 10.29-37, etc.).
Este ainda não é o lugar para entrarmos no conteúdo dos mandamentos
de Jesus de modo detalhado. Nosso objetivo neste momento é determinar a po­
sição deles dentro do escopo da pregação de Jesus e determinar em que relação
a proclamação das exigências de Deus se encontram com respeito à remissão de
pecados e à paternidade de Deus. Em outras palavras, nosso presente assunto é
determinar a relação entre os indicativos que falam da obra da salvação efetuada
por Deus e os imperativos que exigem uma reação da parte do homem.75
184 A v in d a d o R e in o

Ao avaliarmos esse assunto extremamente importante, somos confrontados


com diferentes concepções: a) De acordo com alguns, a pregação de Jesus sobre
o reino é essencialmente ética e a salvação que ele prega é uma recompensa ética.
Os indicativos de salvação são idênticos aos imperativos. A nova justiça é o centro
da pregação de Jesus. Essa perspectiva, defendida especialmente pela teologia
de Ritschl, encontra a sua expressão mais frutífera a respeito da “teologia” do
Novo Testamento na declaração de Harnack: “o evangelho pode ser representado
como uma mensagem ética sem que seja destituído do seu valor”.76 b) De acordo
com outros, as promessas de salvação feitas por Jesus deveriam ser distinguidas
claramente dos seus mandamentos. O imperativo vem primeiro. O cumprimento
dos mandamentos de Jesus é a condição para entrar no reino. E, no escopo da sua
pregação, não desempenha qualquer outra função. De acordo com esses autores,
a pregação de Jesus opera dentro do esquema judaico de redenção, com o seu
“faze isso e viverás”. Essa perspectiva é encontrada especialmente naqueles que
concebem a basileia (isto é, o reino) exclusivamente num sentido futuro-escato-
lógico, como, por exemplo, J. Weiss, Albert Schweitzer, K. F. Proost, E. Peterson,
H. Windisch, e outros.77 Há, ainda, outros que partem de uma soteriologia
totalmente diferente do evangelho, mas que também negam a presença do reino
na conduta ética do homem. Eles consideram a obediência requerida por Jesus
exclusivamente como uma preparação para a entrada no reino.78
Uma concepção formalmente relacionada com essa, mas que tem um pro­
pósito radicalmente diferente, é aquela de autores que também dão prioridade
ao imperativo dos mandamentos de Jesus, mas negam que o mesmo tenha qual­
quer outro objetivo além de convencer o homem da sua impotência moral e de
ensiná-lo a procurar outro tipo de justiça além da sua. Esses escritores assumem
que Jesus, especialmente no Sermão do Monte, quer convencer seus leitores da
impossibilidade de se cumprir a vontade de Deus. Eles se referem particularmente
a Mateus 5.20: “Porque vos digo que, se a vossa justiça não exceder em muito
a dos escribas e fariseus, jamais entrareis no reino dos céus”, e a Mateus 5.48:
“Portanto, sede vós perfeitos como perfeito é o vosso Pai celeste.” Essas passagens
são, supostamente, uma evidência particularmente clara da impossibilidade de se
cumprir as exigências de Jesus. Essa perspectiva tem sido defendida especialmente
por teólogos luteranos.79 d) A concepção de Bultmann merece uma menção em
separado. Ele também chama o cumprimento da vontade de Deus de condição
de participação na salvação do reino. Entretanto, ele quer demonstrar a unidade
da pregação ética e escatológica. O reino dos céus é uma realidade presente na
medida em que conclama o homem ao arrependimento e o confronta com a
grande decisão {Entscheidung). Os mandamentos não servem a nenhum outro
propósito. No fundo, eles são supraéticos. Como a pregação do reino, os man­
damentos mostram ao homem a sua “presente” realidade como a hora de decisão
O EVANGELHO DO REINO - SALVAÇÃO 185

diante de Deus. Assim, num sentido exatamente oposto ao do item (a) acima, os
imperativos se misturam com os indicativos.80
Não se pode negar que aqueles que qualificam os mandamentos de Jesus
como a proclamação das condições para se entrar no reino futuro podem, inde­
pendentemente de quaisquer pressuposições que assumam, recorrer ao material
importante e numeroso no evangelho. Isso é claramente perceptível, especial­
mente no Sermão do Monte. Esse é o motivo pelo qual Windisch caracteriza
o Sermão do Monte como as “condições de admissão” (Einlassbedingungen), ou
como uma analogia, o que era necessário fazer para ser admitido ao santuário
(,thoroth-d’entrée).81 A chamada ao arrependimento feita por Jesus, que aparece
em sua pregação desde o início, na verdade, traz o caráter óbvio de uma exortação
para que as pessoas estejampreparadas para o que está vindo. E, embora o Sermão
do Monte possa, num sentido primário, ter sido destinado aos que já haviam
se arrependido,82 com o objetivo de expandir de modo positivo a exigência de
arrependimento, é também verdade que, nesse mesmo sermão, o conceito de
condicionalidade também ocupa um lugar muito importante, como em Mateus
5.20: “Porque vos digo que, se a vossa justiça não exceder em muito a-dos es-
cribas e fariseus, jamais entrareis no reino dos céus”. É claro que a obediência
aos mandamentos não pode ser identificada com a vinda do reino. O mesmo
é encontrado em todas as passagens que nos exortam à obediência em vista do
julgamento vindouro (5.22, 25, 29) ou naquelas nas quais há uma referência à
recompensa dada pelo Pai (6.4ss). Especialmente no epílogo do Sermão do Monte,
o acesso ao reino é repetidamente algo que depende de praticar as palavras de
Jesus (7.13,14,19,21,24-27).
Esse conceito de condicionalidade não é uma característica exclusiva do
Sermão do Monte. Repetidamente deparamos com ele nos ensinamentos de Jesus.
H á pronunciamentos separados, como em Mateus 18.3: “Em verdade vos digo
que, se não vos converterdes e não vos tornardes como crianças, de modo algum
entrareis no reino dos céus” (cf. 19.14). Além do mais, isso é visto na história do
jovem rico (M t 19.16-26 e paral.), na qual Jesus toma a entrada na vida eterna
dependente da guarda dos mandamentos (v. 17), aponta para o tesouro no céu
que será recebido pelo jovem caso ele venda suas propriedades terrenas (v. 21) e
fala, ao final, da dificuldade para um rico entrar no céu (vs. 23 e 24). Todos esses
pronunciamentos estão claramente preocupados com o cumprimento de certas
condições essenciais. Igualmente impressionante, na parábola do administrador
infiel, são a ênfase ao significado das boas obras para se entrar no reino (Lc 16.1-9)
e as palavras acrescentadas a esse significado quanto à gestão de bens terrenos.
Por um lado, elas contêm a advertência de que, no grande ajuste a ocorrer no
dia do julgamento, “os livros não vão conferir”, como também era o caso com o
administrador infiel. Então, os amigos que foram feitos com a ajuda das “riquezas
186 A v in d a d o R e in o

de origem iníqua” antes do tempo desse ajuste de contas se tornarão muito im­
portantes (Lc 16.9). E esse o significado da maneira de agir “atiladamente” que
Jesus louva83 na conduta do administrador infiel e recomenda a seus discípulos
(v. 8). Os “amigos” feitos dessa maneira são aqueles que fizemos ao praticar o
bem para com eles usando nossas posses terrenas. Isso será muito importante no
julgamento final, como está na continuação da passagem, “para que... esses amigos
vos recebam nos tabernáculos eternos”. Os “amigos” mencionados aqui podem
ser aqueles que foram feitos dessa maneira, que já haviam morrido e estavam de
posse dos “tabernáculos eternos”, onde dão as boas-vindas a seus benfeitores.84
Ou a palavra grega para “receber”, dexoontai, pode ser entendida como “aquele que
receberá vocês”, uma referência ao próprio Deus.85 Em ambos os casos, o ponto
essencial é a importância decisiva de nossa conduta moral aqui na terra para a
entrada no reino. O mesmo pensamento se encontra no mashal (dito enigmático)
que é acrescentado à parábola (16.10-12): “Quem é fiel no pouco também é fiel
no muito; e quem é injusto no pouco também é injusto no muito. Se, pois, não
vos tornastes fiéis na aplicação das riquezas de origem injusta, quem vos confiará
a verdadeira riqueza? Se não vos tornastes fiéis na aplicação do alheio, quem vos
dará o que é vosso?” Com as palavras “no pouco” e “alheio”, bem como “riquezas
de origem injusta”, Jesus se refere ao que, temporariamente, está à disposição do
homem na terra, o que, por sua vez, é contrastado com “o muito”, “verdadeira
riqueza” e “o que é vosso”, uma indicação do que esperamos receber de Deus
para toda a eternidade. Mais uma vez encontramos a ideia de que dádivas futuras
dependem do modo como usamos nossos bens terrenos.
O condicionamento da entrada no reino ao cumprimento de certas condições
é declarado da maneira mais impressionante na descrição do julgamento das nações,
a se realizar na vinda do Filho do Homem em sua glória (M t 25.31-46). A base da
separação entre ovelhas e bodes é a identificação do “Rei” com os seus “pequeninos
irmãos” e seu julgamento se baseia na simpatia mostrada a ele nesse respeito. A
repetição quase literal de forma negativa das palavras “tive fome, e me destes de
comer”, etc., tem o objetivo de gravar nas mentes aquilo que será essencial no dia
do julgamento: não é dizer “Senhor, Senhor”, ou ter agido em nome de Jesus e
realizado muitas obras maravilhosas pelo seu poder (M t 7.22; Lc 13.26), mas é
ter obedecido aos seus mandamentos. Repetidamente Jesus mostra que a sentença
pronunciada no juízo final será diferente do que se poderia esperar com base nos
relacionamentos e privilégios humanos (cf. Lc 13.30; 14.11; 16.15, etc.).
Portanto, não pode haver dúvida de que Jesus considerava o cumprimento
da vontade de Deus como a condição preparatória para o acesso ao reino dos
céus. Porém, em que sentido isso deve ser entendido? Não pode haver qualquer
possibilidade, nesse caso, da meritoriedade judaica, conforme já vimos anterior­
mente acerca da posição da remissão de pecados na proclamação de Jesus acerca
O EVANGELHO DO REINO - SALVAÇÃO 187

da salvação. É necessário que tratemos agora da opinião mencionada acima,


na letra (c), ou seja, que Jesus não pretendeu que esses mandamentos fossem
entendidos de maneira positiva, mas no sentido hipotético. Ele queria levar
indiretamente seus discípulos a reconhecerem que jamais entrariam no reino
pelo caminho do cumprimento da lei, e, assim, abrir os olhos deles para um tipo
“melhor” de justiça.
Essa concepção está muito mais próxima do evangelho do que a concepção
de Windisch e de outros, pois leva muito mais a sério a percepção profunda que
Jesus tinha a respeito do pecado. Ela está longe de basear as exigências morais de
Jesus numa visão perfeccionista do homem e coloca grande ênfase na remissão
de pecados como o elemento mais central e indispensável de sua pregação.
Ao mesmo tempo, expõe o pensamento evangélico (cf. M t 19.25-26) de
que qualquer pessoa que levar suficientemente a sério os mandamentos de Jesus
chegará à conclusão de que ninguém sobre a terra jamais foi capaz de cumpri-los
ou tem capacidade para isso. M as a questão não é se os mandamentos de Jesus
induzem ou não o homem a se arrepender humildemente e a sentir sua culpa real.
A questão real é se a exigência de Jesus para que cumpramos a vontade de Deus
tem também um significado positivo e se essa exigência é ou não uma condição
para entrada no reino dos céus.
Em nossa opinião, essa pergunta só pode ser respondida de maneira afir­
mativa, pois, à parte de outras considerações que tornam inaceitável entender de
modo exclusivamente negativo os mandamentos de Jesus,86 a consideração mais
decisiva contra essa perspectiva é o fato de que Jesus não somente coloca o fazer
a vontade de Deus como uma condição e preparação para acesso ao reino, mas a
prega como uma dádiva pertinente à salvação do reino por ele proclamado. Além
disso, ele fala dessa dádiva de uma maneira bem positiva, e não hipoteticamente
ou como algo irracional.
O fato que a obediência aos mandamentos de Deus é um dom pertinente à
salvação do reino está claramente implícito nas trêsprimeiraspetições dopai-nosso. A
última delas menciona explicitamente o fazer a vontade de Deus (M t 6.10) como
um dom a ser pedido a Deus. Essa petição não expressa somente concordância
com o decreto de Deus ou resignação à sua vontade. Ela expressa, pelo contrário,
o anseio de que o que Deus requer do homem seja feito na terra como é feito
no céu. No presente, a vontade de Deus expressa nos seus mandamentos ainda
não está sendo feita por causa de tudo o que se opõe a Deus aqui nesta terra. A
redenção e a ética estão incluídas nessa “vontade de Deus” ( thelemá)FO mesmo
é encontrado nas duas primeiras petições com respeito à santificação do nome de
Deus e à vinda do seu reino. Toda a ênfase recai no que Deus está fazendo. Que
ele se santifique, isto é, que ele prove diante do mundo e a seu povo que é Deus
(cf. Lv 10.3; D t 20.13). O conteúdo dessa petição nada mais é que a vinda do
188 A v in d a d o R e in o

reino de Deus. Isso não diminui do fato de que essa declaração abrangente tem
também um sentido ético, pois Deus também se santifica na vida de seu povo.
Esse é o motivo pelo qual essas petições estão ligadas de modo tão direto com
os mandamentos de Jesus. Elas foram concebidas com o propósito de concreti­
zar a santificação de Deus e a vinda do seu reino na obediência de seus filhos.88
Essa obediência é, ao mesmo tempo, qualificada como algo que deve ser dado
por Deus e algo pelo que devemos orar. Fazer a vontade de Deus é também um
dos elementos permanentes da profecia do Antigo Testamento sobre a salvação
(cf. E z 36.23,27; Jr 24.7; 31.33; 32.39) e, naturalmente, pertence à perfeição
do reino de Deus. E a salvação pelo Senhor do seu povo que os torna diferentes de
todos os demais seres humanos sobre a face dtríerra. Ele escreve seus mandamentos no
coração de cada um deles e, em virtude disso, a obediência à vontade de Deus pode ser
eficazmente requerida.
Esse ponto de vista é tão central no Sermão do Monte quanto o motif das
condições mencionado acima. E o ponto de partida de todos os mandamentos
em Mateus 5.13-16. Pois, estreitamente ligado com as bem-aventuranças, en­
contramos aqui o indicativo ético da salvação-. “Vós sois o sal da terra... Vós sois a
luz do mundo”. A razão é clara, pois eles pertencem ao reino dos céus. E essa a
vantagem deles sobre os demais “homens” (v. 16), e, nisso, eles são a preservação
(sal) e a redenção (luz) da humanidade e do mundo. A vantagem deles não é um
dom de natureza exclusivamente objetiva que consiste na promessa, mas é uma
nova situação na vida para a qual eles foram transpostos e na qual se tornaram
seres humanos diferentes, pois o coração deles, o seu próprio ser, foi mudado.
Esse é o motivo pelo qual são capazes de realizar boas obras, por causa do dom
que lhes foi conferido. Esses indicativos estão ligados aos imperativos que se
seguem: aqueles que são o sal e a luz do mundo devem fazer a obra do sal e da
luz por meio de suas “boas obras”, isto é, no cumprimento ético da vontade de
Deus. E por isso que a caracterização dos mandamentos do Sermão do Monte
como “condições de entrada” (Einlaszbedinungen) ou “thorot-d’entrée” (Windisch)
é parcial, para dizer o mínimo. Por causa da posição dominante de Mateus 5.13-16
no Sermão do Monte,89 as boas obras que Jesus exige de seus discípulos devem ser
vistas, em primeiro lugar, como o resultado e a manifestação da salvação do reino
no qual eles participam em Cristo. Assim, também, a concepção de Bultmann
dos mandamentos como a própria pregação da salvação, a qual não tem outro
objetivo senão colocar o homem na posição de decisão (Eintscheidung) se torna
insuficiente.90 Os mandamentos de Jesus não apenas colocam o homem na crise,
mas além dela. O Sermão do Monte menciona, de modo especial, não somente
um momento decisivo e repetido de conversão, como também, e até mais, uma
vida contínua e perseverante que procede de tal decisão. Essa vida é uma vida
de “fazer a luz brilhar”, de “fazer as obras de Deus”, a “prática da justiça”, o “ser
O EVANGELHO DO REINO - SALVAÇÃO 189

perfeito”, a “demonstração de que é filho de Deus” e o fazer “a vontade de Deus”.


O novo homem do Sermão do Monte não é somente um sonho maravilhoso
nem meramente uma promessa divina... o novo homem do Sermão do Monte...
é uma realidade presente.91
Em perfeita concordância com isso, o fazer a vontade de Deus é repetida­
mente descrito como a contraparte da salvação do reino. A estrutura do Sermão do
Monte já prova isso: primeiro, as bem-aventuranças; em seguida, os mandamentos.
O mesmo pode ser percebido com respeito às bênçãos distintas do reino. O pri­
meiro exemplo é a remissão depecados. Com base na bênção concedida na remissão
de pecados, Deus requer do homem que foi assim abençoado com sua graça que
esteja disposto a perdoar os outros. Além disso, essa própria disposição também é
representada como o fruto da graça de Deus que lhe foi dada. O caso mais claro é
a história da mulher pecadora e a parábola dos dois devedores, contada por Jesus
em conexão com essa história (Lc 7.36-50). O ensino de ambas é que somente
aquelas pessoas que conhecem verdadeiramente a bênção do perdão é que têm
verdadeiro amor. “Jesus traz a remissão de pecados, e, da pessoa que experimentou
essa remissão, fluirá uma abundância inteiramente nova de amor.”92 É por isso
que Jesus declarou a respeito da mulher pecadora (v. 47) que “perdoados lhe são
os seus muitos pecados, porque ela muito amou”. “Porque ela muito amou” não
indica a base da remissão de pecados,93 mas aprova, como também transparece da
parábola dos dois devedores e do que se segue: “A quem pouco se perdoa, pouco
ama”.94 O uso absoluto do verbo “amar”, que não ocorre em mais nenhum outro
lugar nos Evangelhos sinóticos, enfatiza o caráter desse amor de maneira muito
forte: é o amor que procede do perdão e é dominado por ele.
Em outras passagens, também, Jesus mostra essa conexão muito claramente,
como na parábola do credor incompassivo (M t 18), na declaração acerca do per­
dão (M t 6.14-15) e na quinta petição do pai-nosso. Essas passagens enfatizam
especialmente a indispensabilidade da disposição humana de perdoar para que
haja uma participação no perdão divino. Aqui encontramos mais uma vez uma
ocorrência da ideia da condição. Todavia, isso não significa que a ação humana
precede a obra de salvação efetuada por Deus. A parábola de Mateus 18 deriva
a primeira da última. Do mesmo modo, as palavras da quinta petição, “como nós
temos perdoado aos nossos devedores”, não apontam para o perdão humano como
a base, mas como o acompanhamento necessário do perdão divino.
Assim, a remissão de pecados como um ato divino de salvação na vinda
do reino é de importância primária e a prontidão humana para perdoar nossos
devedores é o seu resultado. A explicação da quinta petição encontrada no Ca­
tecismo de Heidelberg expressa esse ponto corretamente: “Que, ao sentirmos essa
evidência de tua graça em nós, seja nossa firme resolução, de coração, perdoar
nosso próximo”.95
190 A v in d a d o R e in o

A natureza da relação entre a salvação do reino dos céus proclamada por


Cristo e fazer a vontade de Deus é mais claramente revelada com respeito àfiliação a
Deus. De maneira muito enfática, as boas obras são referidas como a demonstração
de que os crentesforam adotados por Deus comofilhos. Isso é feito especialmente em
Mateus 5.45,48 (cf. Lc 6.35-36). Nesse caso, os discípulos são exortados a amarem
os seus inimigos. A motivação que lhes é dada é “para que vos torneis filhos do
vosso Pai celeste”. E evidente, especialmente nos versículos que se seguem, nos
quais os discípulos são exortados a serem como o seu Pai é (ser perfeito96 como
ele é perfeito), que a filiação não deve ser considerada aqui como um objetivo
futuro,97 mas como um estado presente. Assim, amar o inimigo é evidência da
comunhão que os discípulos têm com o seu Pai celeste. Ser adotado por Deus
como filho (um dom do reino) tem, portanto, um significado moral. Desse lado,
também “a prioridade da obra divina”98 é expressa na obediência dos discípulos
à vontade de Deus. Ser adotado como filho por Deus é o dom do cumprimento
realizado em Cristo e não somente uma relaçãí que foi redimida outra vez. É
também “uma comunhão da vontade” com Deus.99
Do que foi dito acima, podemos inferir que o grande imperativo do evan­
gelho e o que lhe é pertinente, bem como o indicativo que proclama a salvação
do reino, é concedido como um dom de Deus e repetidamente atribuído à ação
redentora de Deus. Até mesmo a mensagem ética ocorre no evangelho sob a forma
de proclamação da salvação (Mt 5.13). Este é e permanece o grande elemento de
verdade na concepção de Harnack mencionada acima no item (a). Assim, agora
se torna claro para nós de que maneira devemos considerar o relacionamento
entre os dois pontos dominantes da pregação ética de Jesus, ou seja, por um lado,
a condição e, por outro, o dom, exatamente porque a salvação do Senhor inclui
não somente a ação divina como também a ação humana. Por esse motivo, o
aspecto humano pode ser incluído em todas as categorias da salvação (isto é,
o cumprimento, a remissão de pecados, o fato de ser adotado por Deus como
filho). Ao mesmo tempo, a salvação divina pode ser incluída em todas as cate­
gorias éticas (como uma recompensa, como algo dependente de condições éticas,
como o destino do “caminho apertado” etc.). Esses dois pontos são inseparáveis,
um sempre se encaixa no outro e forma a sua contraparte. Eles não se anulam;
entretanto, o caráter de um também não é sacrificado pelo caráter do outro. O
fato de que ninguém entrará no reino dos céus sem que faça a vontade do Pai
não significa que o dom do reino não seja algo que flui exclusivamente da ação
graciosa de Deus. Do mesmo modo, o dom da graça de Deus não torna em algo
fictício a responsabilidade humana de fazer a vontade de Deus e nem destitui
o mandamento de seu caráter condicional. Aqui, somos confrontados com um
relacionamento que não é compreensível à mente humana, a saber, o relaciona­
mento entre a obra divina abrangente da salvação (que abrange inclusive a ação
O EVANGELHO DO REINO - SALVAÇÃO 191

humana) e a responsabilidade humana com respeito à salvação. A pregação de


Jesus deixa os dois aspectos desse relacionamento intactos e não tenta formular
uma observação reflexiva sobre eles. Ainda assim, é evidente que, aqui, não há
dúvida da existência de uma correlação, de duas entidades equivalentes que se
correspondem, nem daquilo que pode ser chamado de uma “síntese dialética
paradoxal” de duas teses antinomias: o homem deve fazer alguma coisa apesar de
que Deus já fez tudo.100 Semelhante àpregação do reino e àproclamação da vontade
do Pai, todos os imperativos do evangelho sempre sefundamentam no grande indicativo
de que o tempo se cumpriu e a salvação chegou.
Nos mandamentos de Jesus, também, é o próprio Deus quem santifica o seu
nome e salva o seu povo. Boas obras procedem do seu paternal decreto soberano
e da comunhão paterna eficazmente poderosa. A exigência radical, a colocação
de condições e a promessa de uma recompensa procedem da vontade do Pai de
salvar e são geradas por ela. Percebe-se, pela maneira por meio da qual essas coisas
são incluídas no evangelho, que elas pertencem à nova aliança que se iniciou com
a vinda de Cristo, a saber, o dom da filiação no reino dos céus (cf. Jr 31.33).
Apesar disso, o imperativo tem uma função extremamente crítica no evan­
gelho, uma função que não era rara também para os discípulos, pois é sempre
acompanhada pelas ameaças do julgamento e da reprovação e, assim, aparentam
lançar uma dúvida na certeza do indicativo da salvação. Assim, por exemplo, na
parábola de Mateus 18.23ss (sobre a remissão de pecados), que termina na ira
do senhor para com o servo, que é entregue aos atormentadores até que pague
tudo o que lhe devia. Jesus tira a seguinte conclusão dessa parábola: “Assim
também meu Pai celeste vos fará, se do íntimo não perdoardes cada um a seu
irmão” (M t 18.34-35).
Muitos outros pronunciamentos poderiam ser acrescentados (cf. M t 5.13ss;
7.22; 24.42).101 Ainda assim, esse motif não pode diminuir em nada o caráter
soteriológico da pregação de Jesus e da realização da vontade de Deus como um
dom do reino. Na verdade, é uma exortação impressionante de amor, que não deve
ser confundida e que tem como objetivo testar a filiação das pessoas por meio da
obediência à vontade de Deus. O último é o critério do primeiro. Nesse sentido
se aplicam as seguintes palavras: “porque, pelas tuas palavras, serás justificado e,
pelas tuas palavras, serás condenado” (M t 12.37).
Essas palavras e outras indicam, sem dúvida, o cumprimento da vontade
de Deus como a norma e o padrão para ser adotado por Deus como filho e a
entrada no reino vindouro. Mas, para que cumpra a vontade divina, o homem é
remetido pelos imperativos de Jesus, não a si mesmo, mas à graça de Deus. Essa é
a diferença entre Jesus e os fariseus, entre o evangelho e “o espírito de escravidão”
(Rm 8.15; G1 4.24). Esse é também o novo elemento, ou seja, o da satisfação
em fazer a vontade de Deus. Não é a vontade de Deus que é nova (apesar de ter
192 A v in d a d o R e in o

recebido o seu sentido mais radical nos mandamentos de Jesus);102 nem é a lei
que é nova, como a ordem da graça e como o dom de Deus a seu povo. O que é
novo é a inauguração divina da nova aliança, o fato de que Deus escreve a sua lei
no coração do seu povo. O próprio Deus assume a responsabilidade de cumprir
as condições da aliança (Jr 31.33).103 Esse é o motivo pelo qual o arrependimento
e a prática da justiça, bem como a resistência à tentação de Satanás (Lc 22.32),
são atos de f é (M t 21.32; M c 11.31, cf. M c 1.15). Pois, de fato, a parte principal
da lei consiste na justiça, na misericórdia e na fé104 (M t 23.23), isto é, na certeza
da ajuda e da salvação de Deus.
Também aqui tudo se concentra em nosso relacionamento com Cristo, em
quem Deus perdoa nossos pecados e em quem ele é um Pai para seu povo. Isso
procede do fato de que o cumprimento da lei é o fruto desses dons da graça. Em
mais de uma passagem, esse pensamento é expresso de maneira direta. O primeiro
exemplo disso é encontrado na palavra de julgamento de Cristo (M t 7.23): “Então
lhes direi... nunca vos conheci; apartai-vos de mim, o que praticais a iniqüidade”.
Essa frase, “nunca vos conheci”, é da mais alta importância.105 Não significa um
tipo intelectual de conhecimento, mas “reconhecimento”, “aceitação como se fossem
do seu próprio povo”, “eleição”.106 A explicação e o critério para se fazer justiça
não se encontra no apelo que alguém porventura faça a Jesus com base na própria
autoridade dele (“Senhor, Senhor”), mas em Cristo recebê-lo em sua comunhão.
Fora dessa comunhão não existe obediência, por mais forte que seja a reivindicação
de uma recompensa feita com base em obras realizadas supostamente “em teu
nome”. Somente aqueles que são conhecidos por ele por meio dessa comunhão
receberão a graça de obedecer à vontade do Pai (cf. M t 13.50).
Não há uma passagem na qual essa verdade seja revelada de uma maneira
mais central e gloriosa do que nas bem conhecidas palavras do Salvador em
Mateus 11.28-30: “Vinde a mim, todos os que estais cansados e sobrecarregados,
e eu vos aliviarei. Tomai sobre vós o meu jugo e aprendei de mim, porque sou
manso e humilde de coração; e achareis descanso para a vossa alma. Porque o
meu jugo é suave, e o meu fardo é leve”.
Os “cansados” e os “sobrecarregados” não são aqueles encurvados pelo peso
da vida ou pelo fardo de seus pecados. Mas, como transparece das palavras “meu
jugo” e “meu fardo”, são aqueles oprimidos pelas pesadas exigências da concepção
farisaica da lei (cf. M t 23.4).107 Eles desconhecem qualquer descanso ou alívio,
isto é, eles são assombrados pela incerteza e pelo medo, pois não podem suportar
esse jugo, esse fardo (At 15.10), e, portanto, não têm paz (Jr 6.16). Em contraste
com esse estado de coisas, Jesus menciona seu “jugo” e seu “fardo”. Essas palavras
designam o que a pessoa d evefazer, isto é, os mandamentos de Jesus. O seu jugo
é suave e o seu fardo é leve não porque esses mandamentos não representem
exigências pesadas ao amor-próprio e à afirmação de si mesmo (cf. M t 7.13ss),
O EVANGELHO DO REINO - SALVAÇÃO 193

mas porque é Jesus quem os ensina. Pois, ele é “manso e humilde de coração”.
Ele mesmo é um daqueles “pobres de espírito”, “os mansos”, a quem ele prega o
evangelho. Ele é o Legislador, mas também é totalmente dependente de Deus,
rejeitado pelos homens, em seu caminho para a cruz.108 Aqueles que aprendem
a vontade de Deus com ele e a aceitam se tornam, consequentemente, não
somente dependentes de sua palavra como um mandamento, mas são também
chamados à comunhão com sua pessoa. E ele quem dá àqueles que vivem em
sua comunhão o descanso, a certeza da salvação, pois ele os ensina a carregar esse
fardo em sua nova relação com Deus como filhos de seu Pai celestial e porque
ele mesmo carrega esse fardo, como aquele que foi enviado pelo Pai. Portanto,
todos os mandamentos, bem como as advertências e as ameaças do julgamento
final, no fundo, somente apontam para o próprio Jesus. Na comunhão com ele,
a salvação do reino é recebida e o “jugo do reino”109 se torna leve, pois, por meio
da sua humildade e mansidão, ele lançou a base da nova aliança na qual Deus
escreve a sua lei no coração do seu próprio povo.110
O que é verdadeiro com respeito à remissão de pecados e ao fato de tor-
nar-se filho de Deus também o é no que se refere ao cumprimento da vontade
do Pai. Esse novo elemento de satisfação não deve ser procurado na coisa em
si, mas na comunhão da pessoa daquele que a requer. Juntos, o indicativo e o
imperativo indicam a salvação que começou com a vinda de Cristo e sua obra
em favor de seu povo.
Finalmente, apresenta-se a questão sobre se o evangelho do reino contém
ou não mais detalhes acerca do subjetivo, ou, caso se prefira, as pressuposições
antropológicas do cumprimento da vontade de Deus. Essa questão não é fácil de
responder. Não se pode negar que existem tais pressuposições. Repetidas vezes,
Jesus ensina aos seus discípulos e à multidão que fazer a vontade de Deus não é
somente um ato presente ou uma decisão, mas algo fundamentado no ser huma­
no, em seu estado, como, por exemplo, nas menções freqüentes à árvore e seus
frutos (M t 7.16-20; Lc 6.43-45; M t 12.33-35; cf. também M t 21.43): “Assim,
toda árvore boa produz bons frutos, porém a árvore má produz frutos maus. Não
pode a árvore boa produzir frutos maus, nem a árvore má produzir frutos bons”
(M t 7.17-18). “O homem bom do bom tesouro do coração tira o bem, e o mau do
mau tesouro tira o mal; porque a boca fala do que está cheio o coração” (Lc 6.45).
“Raça de víboras, como podeis falar coisas boas, sendo maus? Porque a boca fala
do que está cheio o coração. O homem bom tira do tesouro bom coisas boas; mas
o homem mau do mau tesouro tira coisas más” (Mt 12.34-35).
Em outros lugares, esses frutos são chamados de evidência de conversão
(M t 3.8 e paral.). No que foi dito acima, esses frutos são considerados como uma
característica do estado interior do homem111 e são chamados de seus produtos
necessários (“não pode ser diferente”). Jesus também fala do “homem bom” e do
194 A v in d a d o R e in o

“bom coração” como a explicação da maneira de viver das pessoas. Repetidamente


encontramos o coração (kardia) mencionado, como, por exemplo, em acréscimo
às citações acima, em Lucas 1.17 (a conversão do coração); 8.12 (o coração como
o local onde a palavra de Deus deve enraizar-se); Mateus 15.18-19 (o coração
como o lugar de onde procedem as impurezas); Mateus 13.15; 15.8; Marcos
3.5; 6.52 (a dureza de coração), etc. Em todos esses lugares, o coração significa a
existência interior do homem, a qual determina o seu comportamento exterior e é
o centro do seu ser, que deve ser convertido, ao qual a palavra de Deus é dirigida
e que determina se uma pessoa é boa ou má.
Aqui somos confrontados com uma visão abrangente do homem, uma crítica
de suas ações a partir de um único ponto de vista central. O mesmo pensamento
está em vista quando o evangelho fala de um homem “morto” e “vivo”. Todavia,
esse conceito é encontrado apenas de modo esporádico, como, por exemplo, na
resposta de Jesus a um dos discípulos que pediu a ele permissão para ir e sepul­
tar seu pai: “Segue-me, e deixa aos mortos o sepultar os seus próprios mortos”
(M t 8.22; Lc 9.60). E, mais adiante, nas bem conhecidas palavras do pai do
filho pródigo: “pois esse teu irmão estava morto, e reviveu, tinha-se perdido e
foi achado”.
Os “mortos”, em Mateus 8.22 e Lucas 9.60, só podem ser aqueles que estão
espiritualmente mortos.112 E Lucas 15.24,32 terá de ser entendido do mesmo
modo, e não meramente como “perdido em relação ao pai”113 ou “supostamente
morto fisicamente”,114 pois a expressão não somente sugere o que o filho era
para o seu pai numa terra longínqua, mas também o que ele era em si mesmo.
É por isso que as palavras “e reviveu” devem também ser compreendidas como
indicativas de uma mudança interior no filho pródigo.
Temos que lidar, nessa indicação do homem não convertido como “um
homem morto” e da conversão como “reviver”, com uma concepção do estado
espiritual e moral do homem como uma unidade do ser. É nesse ser que a mudança
radical e totalitária deve acontecer para que ele se torne capaz de fazer a vontade
de Deus. E claro que esse pensamento se aproxima do da regeneração (Jo 3.5),
e da “nova criatura” (2Co 5.17; G1 6.15). Aliás, o conceito de ser adotado por
Deus como filho está relacionado com o conceito de regeneração (ou o conceito
de “nascer de novo” - Jo 3.3).113
Aqueles a quem a salvação do reino é prometida (ou seja, a remissão de
pecados, tornar-se filho de Deus) são também capacitados a executar a vontade de
Deus. Todavia, é impossível negar que, na pregação de Jesus, conforme registrada
nos Evangelhos sinóticos, não há qualquer indicação explícita ou explicação quan­
to à maneira pela qual essas pessoas são colocadas nessa posição. O fato, todavia,
está acima de qualquer dúvida possível. Os que recebem a salvação não somente
têm tesouros no céu, mas falam e agem a partir do “bom tesouro do coração” (cf.
O EVANGELHO DO REINO - SALVAÇÃO 195

também 2Co 4.7), exatamente como “o [homem] mau do mau tesouro tira o
mal”. O dom do reino não consiste necessariamente do que é objetivo, mas do
que um homem recebe e possui como uma bênção interior. Ainda assim, não
há, aqui, nada que possa ser designado como um conceito fixo. Os pensamen­
tos mais profundos sobem à superfície em flashes de imagens apenas de modo
incidental e momentâneo. Além disso, devemos sempre ter em mente que esse
kerygma é historicamente determinado, isto é, não é a teologia da igreja depois da
ressurreição de Cristo e depois da descida do Espírito Santo, mas é a proclamação
que Jesus fez do evangelho antes desses acontecimentos. Isso explica as menções
pouco freqüentes ao Espírito Santo, cuja obra é a explanação verdadeira e mais
profunda da renovação do “coração”, da “vivificação”, da evidência da filiação e
do cumprimento da vontade de Deus.
E verdade que João Batista menciona que Cristo “batizaria com o Espírito
Santo”. Com isso, ele expressa tanto o que os profetas haviam prometido com
respeito ao tempo messiânico grandioso da salvação quanto as expectativas que
sobreviviam no povo judaico. Foi dito acerca do próprio João que ele seria cheio
do Espírito Santo e que converteria muitos dos filhos de Israel ao Senhor seu
Deus (Lc 1.15ss).Não há duvida de que essa promessa do Espírito Santo se refere
a uma grande mudança espiritual que aconteceria na vinda do Messias. M as o
“batismo do Espírito Santo”, na pregação de João, não se refere à conversão e ao
cumprimento da vontade de Deus exigidos pelo evangelho. Como se pode ver
em Atos 1.5, refere-se aos dons especiais que seriam dados aos discípulos (os
apóstolos) no Pentecostes, depois da ressurreição e ascensão de Jesus, e que os
capacitaria a executar sua importante missão (cf. também M t 10.20, etc.).
Finalmente, parece-nos que o pronunciamento no evangelho sobre o dom
do Espírito Santo em Lucas 11.13 tem um significado mais geral. Nesse caso, o
Espírito Santo é chamado de um dom que Deus concede a seus filhos em resposta
à suas orações (a passagem paral. de Mateus traz somente “boas coisas” - M t 7.11).
O contexto prova que o dom do Espírito Santo tem um sentido mais geral do que,
por exemplo, em Mateus 10.20 e passagens paralelas. Ele ocorre aqui em resposta ao
pedir, buscar e bater dos filhos de Deus. Eles podem contar com o Espírito Santo
de Deus tanto quanto podem esperar o alimento necessário de seu pai terreno
(vs. 9-12). Isso prova que a vida dos filhos de Deus se baseia no dom do Espírito
Santo, o qual é não somente o segredo da sua força moral, mas da totalidade de sua
existência espiritual, de sua busca pelo reino dos céus, de sua confiança no amor do
Pai, de seu discernimento da vontade dele e de sua expectativa da salvação vindoura.
Em resumo, de tudo de que precisam para viver como filhos do Pai.
Deve ser observado que o Espírito Santo é chamado de o mais importante
dos dons que Deus concede aos seus filhos em resposta à suas orações.116 Ele
é eminentemente o melhor dom. Essa promessa está diretamente ligada com a
196 A v in d a d o R e in o

oração do pai-nosso,117 em Lucas 11. Não precisamos presumir que, no segundo


versículo da corrente versão, a expressão “venha o teu reino” deveria ser substituído
pelo versículo citado por Gregório de Nissa: “que teu Santo Espírito venha a nós
e nos purifique”, como está na versão mais original.118 De qualquer modo, o dom
do Espírito Santo é a somatória de tudo o que Jesus ensina seus discípulos a pe­
direm no pai-nosso. O Espírito Santo é o autor da obra renovadora e recriadora
de Deus, a qual se manifestará com a vinda do reino. Mas, independentemente
desse fato, na dispensação do cumprimento que começou com a vinda de Jesus, o
Espírito distribui os dons da salvação entre os filhos de Deus. Ele cria e mantém
a comunhão entre o Pai e seus filhos {nosso Pai). Ele, também, é o agente da san­
tificação do nome de Deus e da execução da vontade de Deus sobre a terra. Ele
alivia os crentes das ansiedades a respeito do pão diário, concede-lhes a certeza da
remissão de seus pecados e os protege do poder do Maligno. Embora essas coisas
não sejam mencionadas literal e explicitamente no evangelho, não há dúvida de
que esse pensamento é a base do pronunciamento em Lucas 11.13.
O dom prometido do Espírito Santo é o resultado da vinda do reino dos céus
e pertence à salvação proclamada por Jesus. O seu fundamento mais .profundo e a
sua melhor explicação residem no fato de que o próprio Jesus é o M essias119 que
foi equipado por Deus com o Espírito Santo. Apesar de os Evangelhos sinóticos
conterem somente umas poucas passagens explícitas sobre o dom do Espírito
Santo como o tesouro da salvação dos crentes, contudo não se pode negar que a
coincidência do reino de Deus com o Espírito Santo é um dos grandes pressu­
postos de todo o evangelho.

30. A paternidade de Deus e a vida temporal

Entre as palavras de Jesus acerca da paternidade de Deus existem declara­


ções que ocupam um lugar especial. Elas relacionam essa paternidade ao cuidado
paternal de Deus pela vida temporal e natural de seus filhos. Devemos fazer uma
menção especial da passagem bem conhecida acerca de “andar ansioso”, isto é,
preocupar-se, em Mateus 6.25-34 (Lc 12.22-31); Mateus 10.29-31 (Lc 12.6-7):
“Não se vendem dois pardais por um asse? E nenhum deles cairá em terra sem
o consentimento de vosso Pai. E, quanto a vós outros, até os cabelos todos da
cabeça estão contados. Não temais, pois! Bem mais vaieis vós do que muitos
pardais.” Mencionamos, aqui, também, nesse contexto, as palavras do pai-nosso
sobre “o pão nosso de cada dia”.120
A questão é em que sentido essas palavras estão relacionadas com a pregação
do reino, ou, colocando de maneira mais precisa, qual o lugar do conceito de Jesus
acerca da providência, conceito esse expresso com tanta ênfase nessas passagens,
O EVANGELHO DO REINO - SALVAÇÃO 197

em sua pregação cristológica sobre o cumprimento? Pois essa pregação sobre o


cumprimento é o tema central verdadeiro da pregação de Jesus.
Esse tipo de relacionamento foi negado mais de uma vez. Windisch, por
exemplo, acha que o parágrafo sobre não andar “ansiosos” (ou seja, não se preocu­
par) se baseia numa visão da vida e do mundo inteiramente oposta à escatologia
'à exceção do dito escatológico em M t 6.33, “buscai, pois, em primeiro lugar,
o seu [de Deus] reino e a sua justiça”, etc.). Ele supõe que esse parágrafo seja
resultado de reflexão sobre a sabedoria religiosa. Aqui, o mundo é considerado
como o cosmos no qual cada ser humano tem seu lugar divinamente determinado
e onde recebe de Deus os cuidados diários de maneira generosa. Já que a ordem
do universo é concebida de modo harmonioso e lógico, ela pode ser apreendida
de maneira lógica. “E uma visão de mundo” - ele escreve - “permeada pelo
otimismo e pelo calor do racionalismo piedoso, uma piedade semelhante à do
Iluminismo, mas uma piedade genuína e rigorosa, que condena a dúvida como
algo pagão. E independente, de modo que os argumentos contra a loucura da
ansiedade que são inferidos dela são realmente suficientes. Por conseguinte, o
último ‘argumento’, de natureza escatológica (6.33), quase parece um elemento
estranho (corpus alienum). De qualquer modo, é um salto para outra esfera da fé
religiosa.”121
Bultmann também discutiu esse assunto em detalhes em Jesus, sua obra
bem conhecida.122 Ele também fala da fé infantil na providência e no otimismo
ingênuo contidos nessas palavras. Ele é da opinião de que, em si mesmos, eles
não contêm coisa alguma que seja característica da pregação de Jesus. Por outro
lado, ele rejeita a ideia de que eles expressam uma visão tão racional da natureza,
como, por exemplo, a dos estoicos e da filosofia do Iluminismo. A fé na provi­
dência expressa nessas palavras de Jesus tem um caráter diferente porque não se
origina numa teologia de fé panteísta na natureza, mas na obra pessoal e soberana
de Deus. E verdade que essa fé em Deus é extraordinariamente otimista nesse
caso e não leva em consideração o problema do sofrimento e da teodiceia.* Por
outro lado, a pregação escatológica de Jesus contém palavras nas quais a situação
humana é descrita com uma seriedade diferente. M as isso não é razão para se
considerar a ausência do problema do sofrimento e a ausência da teodiceia como
uma espécie de otimismo imaturo e infantil. Muito pelo contrário, essa ausên­
cia terá de ser considerada dentro do escopo da pregação de Jesus como uma
negativa fundamental dos supostos direitos humanos ou da sua possibilidade de
submeter seus questionamentos a Deus. D e acordo com a pregação escatológica
de Jesus, cada situação humana é de “decisão” (.Entscheidung), inclusive a situação
de sofrimento. A perspectiva da “sabedoria” expressa nas palavras “andar ansioso”
é, supostamente, de importância secundária ( nebensàchlich) e somente ocasional
(gelegentlich).123
198 A v in d a d o R e in o

Nem a visão de Windisch sobre o dualismo existente na expressão “não


andeis ansiosos” entre escatologia e fé otimista na providência e nem a visão de
Bultmann, de que “andar ansioso” é somente algo incidental e não essencial dentro
do escopo da pregação de Jesus, conseguem fazer justiça à relação entre o reino
dos céus e a providência no evangelho. Em nossa opinião, isso se deve ao fato de
que a base usada por Jesus para admoestar os discípulos a “não andeis ansiosos”
não é suficientemente identificada nessas opiniões. Essa base não é uma espécie
de fé geral na providência. Ela se encontra no evangelho do reino dos céus. Um
estudo mais aprofundado na passagem de Mateus 6.19-34 mostrará isso.
Não há dúvida de que, na pregação de Jesus, existem também pronuncia­
mentos que testificam de uma bondade divina universal que não faz qualquer
distinção especial entre seres humanos.124 No Sermão do Monte, Jesus diz que
Deus “faz nascer o seu sol sobre maus e bons e vir chuvas sobre justos e injustos”.
E evidente que, nesse caso, Jesus se refere à disposição misericordiosa e graciosa
de Deus para com todos os homens, pois esse pronunciamento ocorre no contexto
que fala de amor pelos inimigos e em que a conduta de Deus é colocada como
exemplo para todos os seus filhos. Ao final, é repetido que (ao fazer isso) eles se
tornam perfeitos, consistentes, não mornos (no amor), “como perfeito é o vosso
Pai celeste”. A exatidão dessa exegese procede também claramente da versão de
Lucas, em que, no mesmo contexto em que o amor é promovido para com os
inimigos, é dito: “Sede misericordiosos, como também é misericordioso vosso
Pai” (isto é, misericordioso - oiktirmoon —no mesmo sentido de incluir tanto
o mau quanto o bom, Lc 6.36). Além disso, os versículos precedentes falam da
misericórdia de Deus ( chrestos) sobre maus e bons. Ê verdade que a passagem
não fala de um amor paterno universal (cf. a repetição das palavras “ vosso Pai”
nesse contexto), mas não se pode negar que Jesus coloca a disposição universal,
misericordiosa e bondosa de Deus como um exemplo para seus discípulos.125
Não há dúvida de que esse é apenas um dos aspectos dessa questão. De
igual modo, Jesus revela, nos fenômenos naturais, a ameaça de Deus contra os
que não se arrependem. Portanto, não está correta a afirmação de Bultmann
de que, de qualquer modo, faltam, nos pronunciamentos de Jesus, palavras que
mostrem preocupação com o problema do sofrimento e que Jesus desconhecia
os problemas levantados pela teodiceia.126 Em Lucas 13.1-5, o relacionamento
entre a culpa e o destino humano e o sentido do sofrimento são explicitamente
discutidos por Jesus (esses assuntos foram implicitamente levados a ele pelos que
lhe anunciaram o massacre feito por Pilatos). E , então, Jesus estende o problema
do secundário para o primário, isto é, a causa divina, quando não se restringe
ao ultraje de Pilatos, mas também inclui a discussão sobre o “acidente” com a
torre de Siloé. Em todos esses desastres que sobrevêm ao homem, Jesus vê uma
manifestação do julgamento divino, como transparece claramente da repetição
O EVANGELHO DO REINO - SALVAÇÃO 199

ia expressão, “se não vos arrependerdes, todos igualmente perecereis” (isto é, no


uízo final).127
Pode parecer claro que não deveríamos nos apressar a falar de uma fé otimista
; ingênua na providência nas passagens em que Jesus descobre a generosa mão
ie Deus nos fenômenos naturais. Todavia, não há como negar que ele encontra,
::a ordem natural, a evidência do cuidado universal de Deus pelos homens e da
fua misericórdia para com eles.
Do mesmo modo, nos casos em que Jesus fala do cuidado paternal de Deus
r>or seusfilhos, ele toma seus argumentos da natureza. As flores do campo e os
nássaros dos céus deveriam manter os discípulos distantes de preocupações
ociosas. Isso é verdade, de fato, não somente com respeito aos ditos acerca de
"não andeis ansiosos”. Todas as parábolas de Jesus têm a tendência de ilustrar
i verdade acerca do reino por meio da observação acerca de relações humanas
universais. Isso não prova que Jesus considerava a natureza como uma fonte
independente de revelação, mas ele claramente começa da natureza e do que se
manifesta nela para todos e, a partir daí, ascende a Deus, à medida que aponta
para o homem a obra de Deus e sua direção na natureza.128 Isso não representa
um tipo de piedade independente, no estilo do Iluminismo, a qual encontra sua
base na confiança religiosa e na fé em Deus Pai, de que ele controla a ordem e o
curso da vida natural. Bultmann está perfeitamente correto quando ressalta de
modo enfático a diferença entre a sabedoria não cristã que repousa no homem e
na natureza, e a sabedoria do Antigo Testamento, da qual Jesus falou e à qual se
apegou. E por isso que Windisch interpreta essa passagem de modo equivocado ao
dizer que a paternidade ensinada por Jesus aos discípulos nessas passagens sobre
"não andar ansiosos” é a “sabedoria” inferida da natureza das coisas. A paterni­
dade de Deus e seu cuidado paternal pelos seus filhos não são baseados, aqui, na
contemplação da natureza ou na beleza das flores do campo e na vida aventureira
dos pássaros. Ela tem origem num mundo de pensamento totalmente diferente,
a saber, da revelação histórica de Deus. O que se encontra na sua base não é o
“livro da criação”, mas o livro da Lei e dos Profetas. Portanto, nessa passagem, os
pagãos não podem ser tomados como uma advertência exemplar. Eles também
conhecem os pássaros dos céus e as flores do campo, mas não conhecem a Deus
como aquele que se revelou em sua misericórdia. Ê por esse motivo que, em sua
incessante inquietação, eles estão sempre à procura destas “coisas” (v. 31). Eles
não podem aprender, pela natureza, a viver sem preocupações. Somente onde o
Deus da revelação e da salvação é conhecido é que os “argumentos” derivados
da natureza serão decisivos.
Porém, isso não é tudo, pois essa passagem representa não apenas - embora
somente isso tenha valor em si mesmo —a fé na providência que já é exigida pela
revelação do Antigo Testamento em geral e pela “sabedoria religiosa” contida
200 A v in d a d o R e in o

nela, em particular. Seu significado não é secundário nem incidental no escopo


da pregação de Jesus acerca do reino, mas adere a ela no próprio cerne dela. No
fiando, o que está em jogo aqui é a relação entre “escatologia” e “providência”, entre
a pregação do reino e vida natural. Essa relação não é estabelecida meramente de
modo externo e secundário pelo dito “escatológico” de Mateus 6.33 (“buscai... em
primeiro lugar, o seu [de Deus] reino”), o qual, segundo Windisch, deve ser visto
nesse contexto como um salto para outra esfera, como um elemento estranho
(.Fremdkõrper; corpus alienum). Essa relação está implícita na estrutura interna e
externa dessa passagem como um todo.
Esse fato já pode ser inferido da maneira em que a exortação contra “ficar
ansioso” é introduzida por Mateus e Lucas. Em Mateus 6.19-24, os ditos acerca
do “andar ansioso” são precedidos pelos ditos sobre entesourar, o “olho bom” e o
serviço a dois senhores. Todos esses ditos são colocados honestamente sob o peso
pleno da dispensação da salvação, que começou com a vinda de Jesus. A presente
questão, portanto, são os “tesouros no céu”, a salvação do reino. E isso que deve
ser buscado com toda a energia e com um coração não dividido. De maneira
estreitamente relacionada com tudo isso, Jesus acrescenta: “Por isso, vos digo (dia
toutó): não andeis ansiosos pela vossa vida”. Não se trata, aqui, da pregação de
alguma sabedoria religiosa de caráter geral, nem de uma palavra de consolação e
encorajamento aos discípulos que estão oprimidos por cuidados terrenos. Muito
pelo contrário, esse é um protesto contra qualquer tipo de preocupações terrenas
(a preocupação com riquezas bem como a ansiedade quanto à pobreza) a qual
tem seu ponto de origem na “posição escatológica”, isto é, na vinda do reino e
no tempo do cumprimento. O “Por isso” de Jesus deriva seu poder da escolha que
deve ser feita em vista do reino de Deus, do tesouro celestial, e do Senhor dos
Céus. O mesmo “Por isso” (dia touto) é encontrado em Lucas 12.22. E verdade
que nesse caso há um pano de fiando diferente, o da parábola do rico louco (vs.
12-21), mas o ponto, nesse caso, são as verdadeiras riquezas (“entesourar” e ser
“rico para com Deus”, v. 21) e o oposto disso, a perda de tudo no julgamento
de Deus.
Em ambos os casos, a fórmula introdutória nos confronta com a grande
questão sobre se a salvação e a paz devem ser buscadas. Qual deveria ser a nossa
maior preocupação? O que é que pertence somente a este mundo, ou quais são
as riquezas em relação a Deus, o tesouro dos céus incluído no reino dos céus e
que nos é dado com ele?
Apenas desse ponto de vista é que se pode entender a estrutura interna
de Mateus 6.25-34. O tema, aqui, é como se deve procurar e salvaguardar sua
segurança existencial. Isso é transparente, sobretudo, no início e no final dessa
passagem, pois ela não diz que não precisamos e não devemos nos preocupar com
nossa “vida” e com nosso “corpo”, como isso fosse desnecessário. A declaração é
O EVANGELHO DO REINO - SALVAÇÃO 201

muito mais direta e especial. Seu sentido pode ser traduzido (parafraseado) da
seguinte maneira: “Não andeis ansiosos com referência aos meios de sua subsistência
e nem quanto ã questão da comida, nem com referência ao seu corpo,129 quanto à
questão de como vestir-se”. Isso não quer dizer que não devamos nos preocupar
com respeito ao nosso corpo e à nossa vida como tais, mas que deveríamos estar
livres de cuidado com respeito ao sustento deles por meio de alimento e roupas. Isso
fica mais do que claro pela motivação que se segue (M t 6.25; Lc 12.23): “Não
é a vida mais do que o alimento, e o corpo mais do que as vestes?” Em outras
palavras, o mandamento “não andeis ansiosos” não é motivado pelo dizer que
a vida e o corpo não requerem qualquer cuidado (ou não tanto cuidado assim),
mas pela consideração de que a existência deles não égarantida pelo alimento epelas
roupas, os quais, em si mesmos, não são garantia da preservação da vida.
O que preserva a vida e o corpo não é especificado na passagem, mas não
temos como deixar de entendê-lo, pois o pensamento expresso nas palavras (“não
é a vida mais do que o alimento, e o corpo mais do que as vestes?”) é muito geral e
encontra a sua formulação mais incisiva no pronunciamento bem conhecido, “que
aproveitará o homem se ganhar o mundo inteiro e perder a sua alma?” ou, “O que
dará o homem em troca de sua alma?”130 (M t 16.26; M c 8.36). Lucas 9.25 traz:
“se vier a perder-se ou a causar dano a si mesmo?”.131 O que está em discussão
é a salvação da vida. O conceito de psuche não somente indica a vida interior do
homem em contraste com o seu exterior (Lutero), mas sim toda a existência do
homem, como transparece da passagem paralela em Lucas, “causar dano a sua
psuche”. Essa frase se refere à perda a ser suportada na vida eterna: perder-se e
ser destruído no inferno. E por isso que Mateus e Marcos continuam dizendo:
“O que dará o homem em troca (antallagma) de sua alma?” A preocupação aqui
não é meramente com a vida interior, mas com a salvação da existência humana
como um todo no julgamento de Deus.
Tudo isso prova que o que é chamado de vida (psuche) por Jesus tem um
significado eterno que sobrepuja tudo o mais. O mesmo se verifica com relação
ao corpo. Esse é o motivo pelo qual é tolice pensar que a morte (temporal) do
corpo é a pior coisa que pode acontecer. Devemos, antes, temer aquele que pode
destruir no inferno tanto a psuche quanto o corpo (M t 10.28). O significado do
corpo se estende tanto quanto aquele da alma.
O destino eterno da vida e do corpo é, portanto, a razão pela qual a vida
é “mais” que o alimento, e o corpo é “mais” do que as roupas. Comida e roupas
não podem garantir a sua salvação (cf. Lc 12.15). A salvação exige mais, a saber,
a salvação da alma e do corpo no reino de Deus. Esse reino deveria ser a primeira
preocupação do homem. Devemos começar do início.
Tomada nesse sentido, a “fé na providência” expressa de maneira tão
especial na passagem acerca do “não andeis ansioso” não fica de fora da “esfera
202 A v in d a d o R e in o

escatológica” e não é um salto para uma realidade diferente de pensamento (Mt


6.33; Lc 12.31, “buscai, pois, em primeiro lugar o seu [de Deus] o reino”). Toda
a passagem só pode ser entendida à luz da perspectiva escatológica. Somente
por causa das certezas implicadas no reino para os discípulos de Cristo é que
eles podem viver sem cuidados e ser otimistas com respeito aos meios de sua
existência terrena, bem como ser capazes também de entender a “linguagem” das
flores e dos pássaros, pois a obra de Deus na natureza não é a base da liberdade
que experimentam quanto aos cuidados dessa vida, mas é a prova de que tudo
está à disposição de Deus, o qual providencia de maneira generosa tudo o que é
necessário para as suas criaturas, enquanto lhe aprouver mantê-las vivas. Tudo
isso, entretanto, como um motivo para viver livre de cuidados, só se aplica aos
filhos de Deus, do ponto de vista do reino de Deus. Os pagãos não compreen­
derão essa motivação. E por isso que é adicionado “todas estas coisas vos serão
acrescentadas” à promessa do suprimento dos meios necessários de subsistência.
“Acrescentadas” (pros-tethesetai) significa que o dom original consiste em outra
coisa, a saber, a bênção eterna que Deus dá a seus filhos no reino, a qual inclui
a totalidade da sua existência humana, com os meios necessários para essa vida
em segundo plano e subordinados ao dom eterno. M as as duas coisas são inse­
paráveis. O Deus que cumpre é também o Deus que preserva, e, pela certeza da
consumação (o reino, o cumprimento em Cristo, acima de tudo na cruz), o livro
da criação se torna legível, ou seja, como a revelação confortadora da onipotência
de Deus e de sua riqueza. Isso não é um dualismo nem um espiritualismo, mas,
pelo contrário, é a descrição de graus distintos de segurança existencial (“em
primeiro lugar, o reino”). Então, o que é menor se segue do que é “maior”, pois a
paternidade de Deus abrange o presente e o futuro e, ao pé da cruz, aprendemos
também a confessar a providência de Deus para a vida terrena de seus filhos.
Aqui, as palavras de Paulo em Romanos 8.32 vão direto ao ponto: “Aquele que
não poupou o seu próprio Filho, antes, por todos nós o entregou, porventura, não
nos dará graciosamente com ele todas as coisas?” Entretanto, a vida temporal é
preliminar e subordinada ao que é eterno. Ela não tem um objetivo e destinação
próprios, mas os deriva do que é eterno.
A relação entre o reino de Deus e sua providência também encontra expres­
são no fato de que Jesus ensina seus discípulos a orarem pela preservação e pelas
necessidades de sua existência terrena. A quarta petição da oração do pai-nosso é
o exemplo mais claro: “o pão nosso de cada dia dá-nos hoje” (M t 6.11; Lc 11.3).
Essa petição está incluída na expectativa de fé com respeito ao reino dos céus. Nas
três primeiras petições, a estrutura do pai-nosso aponta, acima de tudo, para o
grande futuro. As três últimas petições são determinadas pela natureza provisória
da situação presente. Entretanto, tanto a petição pela remissão de pecados quanto
a petição pelo livramento do mal são concebidas do ponto de vista da salvação do
O EVANGELHO DO REINO - SALVAÇÃO 203

reino. Isso também se aplica ao pedido pelo pão diário, que é feito como um apelo
à paternidade de Deus. Apesar de, em si mesma, essa petição poder se encaixar
muito bem num diferente mundo conceituai, ela pode, num contexto diferente,
ser claramente compreendida somente a partir da nova relação para com Deus
dada com a vinda de Cristo. Do mesmo modo que a exortação “não andeis an­
siosos”, esse pedido é cristologicamente determinado, assim como a petição pela
remissão de pecados. Em ambos os casos, a base da petição e da sua resposta se
encontra na paternidade de Deus concretizada na vinda de Cristo.
O mesmo se aplica a todas as “boas dádivas” pelas quais os discípulos oram
a Deus. A sua vida de oração deve ser governada pela sua fé na paternidade de
Deus (M t 7.7-12; Lc 11.9-13). Além disso, em todos esses ditos que apresentam
a paternidade humana como um exemplo, não há a menor dúvida acerca de um
conhecimento natural de Deus como Pai, o qual é inferido desse relacionamento
terreno. Nem somos, aqui, confrontados com um otimismo ingênuo de fé que
ainda não discerniu o problema da história e o enigma do sofrimento, mas tudo
se torna inteligível somente à luz da paternidade de Deus em Cristo.
Esse é o motivo pelo qual “pedir”, “buscar” e “bater” não se restringem so­
mente aos desejos de suprimentos para as necessidades terrenas. Nem às “coisas
boas” que, de acordo com a promessa de Jesus, o Pai celestial dará àqueles que
pedem. A oração a Deus é totalmente abrangente, ela pode começar com todas
as promessas do reino, estender-se tanto ao que é temporal como o que é eterno.
Mas, sempre, mesmo com respeito às necessidades da vida temporal, é dominada
e apoiada pelo evangelho do reino. A providência e o reino de Deus não são
dois aspectos separados ou duas esferas distintas da vida. Uma não se origina na
criação nem o outro “na consumação do século”. Portanto, a providência de Deus,
que abrange a totalidade de seu poder criador e preservador e sua sabedoria, é
invocada pelos filhos de Deus, pois eles foram adotados por Deus como seus
filhos no reino, em Cristo. E , vice-versa, o reino é a garantia de que eles não serão
desapontados por Deus quando orarem dessa maneira.

31. A paternidade de Deus e a vida eterna

As seções anteriores provaram que a salvação do reino dos céus tem sido
sempre proclamada como uma realidade presente. No que se refere ao seu
aperfeiçoamento e consumação, todavia, sempre é pregada como algo do futuro.
Nossa discussão sobre a salvação do reino enfocará agora, portanto, o conteúdo
e a natureza desse dom futuro.
Num sentido, pode-se dizer que essa salvação futura do reino já está presente,
ou seja, no céu. M ais de uma vez Jesus fala de “tesouros” ou de um “tesouro” no
204 A v in d a d o R e in o

céu, o qual já pode ser acumulado ali, como na passagem antitética bem conhecida
de Mateus 6.19-20: “Não acumuleis para vós outros tesouros sobre a terra, onde
a traça e a ferrugem corroem e onde ladrões escavam e roubam; mas ajuntai para
vós outros tesouros no céu, onde traça nem ferrugem corrói, e onde ladrões não
escavam, nem roubam”. O mesmo pensamento é encontrado, embora em outras
palavras, em Lucas 12.33: “Vendei os vossos bens e dai esmola; fazei para vós
outros bolsas que não desgastem, tesouro inextinguível nos céus, onde não chega
o ladrão, nem a traça consome”.
Ao jovem rico, em Mateus 19.21ss: “Se queres ser perfeito, vai, vende os teus
bens, dá aos pobres e terás um tesouro no céu...” (M t 19.21ss). Nesse caso, Jesus se
acomoda à maneira de falar e às ideias que eram correntes no judaísmo.132 Esse
“tesouro” é uma espécie de capital celeste que será pago no grande dia do ajuste
de contas na época do julgamento a ser feito por Deus. Embora na pregação de
Jesus qualquer noção de mérito esteja totalmente ausente, ele usa essa ideia do
tesouro celestial para motivar seus discípulos a fazerem o máximo possível com
respeito à sua futura salvação, pois esse tesouro é a revelação futura da salvação
do reino. Esse fato não pode ser negado dentro do escopo da pregação de Jesus.
Portanto, tanto a parábola do tesouro no campo como a da pérola de grande valor
são dominadas pelo mesmo pensamento, apesar de ambas incluírem a salvação
presente.133
Ao falar do tesouro celestial\ Jesus indica o lugar onde a futura salvação do
reino está sendo guardada (cf. lPe 1.4-5) e também a natureza supraterrena e
eterna desse tesouro que está sendo guardado para os seus discípulos. Tem sido
corretamente observado134 que a proclamação da salvação parece ser diferente
da proclamada no Antigo Testamento. No Antigo Testamento, a promessa do
futuro tem, em sua essência, aspectos terrenos. Ainda assim, não se pode dizer
que a natureza celestial da prospectiva da salvação ensinada por Jesus se constitui
no aspecto novo e espetacular de sua pregação. E a diferença entre a proclamação
da salvação no Antigo Testamento e no Novo não pode ser caracterizada pelas
palavras “terrena” versus “celestial”, pois, em primeiro lugar, o Antigo Testamento
também mostra características que não encontram uma explicação satisfatória
dentro dos limites da dispensação terrena.135 Em segundo lugar, a representação
transcendente da salvação futura domina de maneira especial alguns escritos
apocalípticos dentro do judaísmo contemporâneo.136 E, em terceiro lugar, Jesus
também visualiza a última revelação do reino na terra (cf. M t 5.5).
Nada disso, entretanto, diminui o sentido das palavras de Jesus sobre te­
souros celestiais, pois esse sentido não somente indica que a salvação do reino
é uma dádiva que provém de Deus - isso se aplica também à remissão de pe­
cados, tornar-se filho de Deus, etc. - como também que seu conteúdo não é
plenamente consumado dentro do plano desta dispensação terrena. A revelação
O EVANGELHO DO REINO - SALVAÇÃO 205

dessa felicidade celestial não é menor do que a revolução cósmica que é indi­
cada no evangelho de maneiras diferentes. Em Mateus 13.39, é chamada de “a
consumação do século” (.sunteleia aioonios, cf. vs. 49; 24.3; 28.20 ).Aioon significa
alguma coisa como “tempo do mundo”, o que sugere que a salvação futura só
pode se manifestar depois que chegar ao fim o tempo que Deus designou para
este mundo.137 Num sentido positivo, a revolução cósmica em conjunção com a
consumação do tempo do mundo é indicada como a regeneração (palingenesia^
M t 19.28). Na passagem paralela de Lucas, encontramos a simples expressão “no
meu reino” (Lc 22.30). Em outro lugar, a dispensação que se iniciará à época é
chamada de “mundo por vir”, no qual os seguidores de Jesus receberão “a vida
eterna” (Mc 10.30; Lc 18.30).
Essa salvação que será revelada como o dom do reino à época do fim do
mundo, na regeneração (de todas as coisas), no aioon vindouro, e que é sintetizada
nos termos “vida” ou “vida eterna”, é indicada de várias maneiras. Ela começa
com a “ressurreição dos mortos”. A menção mais elaborada dela está registrada
na disputa entre os saduceus e Jesus (M t 22.23-33 e paral.). Em Lucas 14.14,
encontramos a expressão “a ressurreição dos justos”, em cuja época toda caridade
que foi feita a quem não podia pagar de volta será recompensada. Aqui, a palavra
“ressurreição”, aparentemente, não significa o ato de se levantar de entre os mortos,
mas o estado de bem-aventurança que tem início com isso.
Os saduceus negavam a ressurreição dos mortos. Essa negativa era contrária
à opinião geral do judaísmo na época de Jesus, pelo menos a partir do que pode
ser inferido da literatura apocalíptica, pseudepígrafa e rabínica.138 A resposta de
Jesus à pergunta capciosa dos saduceus implica duas coisas. Primeira, sua rejeição
da pressuposição de que as funções e os relacionamentos presentes da vida terrena
serão restaurados na ressurreição. Naquela época não se casarão nem se darão em
casamento, mas as pessoas serão “como os anjos”. Em Lucas 20.36, essa igualdade
com os anjos não é mencionada somente em relação ao casamento, mas Jesus
também explicitamente declara que os justos “não podem mais morrer”. Disso
não se segue que aqueles que ressuscitarão dos mortos serão iguais aos anjos em
todas as coisas. Nem ainda que Jesus está dizendo que os anjos no céu têm uma
espécie de corpo celestial.139 Essa passaagem trata apenas da comparação de um
ponto concreto, a saber, o casamento. Quanto ao mais, Jesus contradiz a expec­
tativa corrente dos judeus que esperavam que as relações terrenas e os órgãos
físicos do homem fossem restaurados na grande ressurreição.140 Em contraste com
isso, ele coloca plena ênfase na comunhão com Deus como sendo o grandioso
propósito e o centro da vida ressurreta: Eles “são filhos de Deus, sendo filhos da
ressurreição” (Lc 20.36).
Além de manter o caráter dessa vida da ressurreição, Jesus também, em
segundo lugar, mantém ofato da ressurreição. Ele faz isso recorrendo às Escrituras
206 A v in d a d o R e in o

e para o “poder de Deus”. A citação que ele faz da Escritura fala da ressurreição
somente de maneira indireta: “Eu sou o Deus... de Abraão, o Deus de Isaque
e o Deus de Jacó” (Êx 3.6). Jesus liga essa passagem com seu pronunciamento,
“ele não é Deus de mortos, e sim de vivos”. Aqui, a fé na ressurreição se baseia
na fé em Deus. Por isso o apelo ao “poder de Deus”, que é concebido não como
uma qualidade estática e atemporal, mas como um poder a serviço do reino,
operando em favor da consumação de todas as coisas (cf. M t 6.13b). Jesus, aqui,
fala do Deus que tem se revelado na história da salvação (Abraão, Isaque e Jacó).
Esse Deus é o Criador do mundo que se santifica no seu povo e que se mantém
como Deus dos céus e da terra. Isso, naturalmente, implica a ressurreição dos
mortos, a qual não é inferida nesse caso a partir de uma passagem definida,
nem “demonstrada” de maneira sutil, de acordo com o estilo dos rabinos, mas, é
indicada como um postulado da obra salvadora de Deus, a qual, desde a origem
da existência de Israel, foi dirigida para a consumação do reino dos céus. Ela se
baseia na totalidade da revelação da criação e da redenção.
Finalmente, do fato de que Deus não é Deus de mortos, e sim de vivos,
segue-se que haverá ressurreição de mortos (isto é, a restauração do corpo). Essa é
uma conclusão irrefutável que não necessita de demonstrações adicionais, já que
está totalmente implícita na perspectiva neotestamentária do homem, de acordo
com a qual o corpo, juntamente com a alma, pertence à essência da existência
humana e não é o invólucro temporário e inferior da alma.141
Quando tentamos descobrir em que consiste a bem-aventurança da vida
da ressurreição de acordo com o ensino de Jesus, percebemos que não há uma
“descrição” elaborada ou explícita da mesma. M as, como é o caso com a procla­
mação da salvação, encontramos apenas a promessa afirmativa em todos os tipos
de pronunciamentos espalhados por toda parte. O evangelho não traz revelações
apocalípticas acerca dos grandes acontecimentos do futuro. Repetidamente, a
salvação é apresentada como o mandamento gracioso de Deus para com seu povo,
como a libertação das angústias desta vida, como o cumprimento da promessa,
como uma compensação pela opressão temporária. Vemos que as bem-aventuran-
ças mencionam que a vida da ressurreição trará consigo “consolação”, “satisfação”
com a justiça, “misericórdia”, “revelação dos filhos de Deus”, “ver a Deus”. Em
outros lugares, encontramos frases como sentar-se “à mesa com Abraão, Isaque
e Jacó” (M t 8.11 e paral.); ser “salvo” (M t 10.22, etc.); “os justos resplandecerão
como o sol” (M t 13.43); achar “a sua vida” (M t 16.25, etc.); assentar-se “em doze
tronos” (dito com relação aos discípulos, M t 19.28); ser convidado para a “festa de
casamento” (M t 22.1-14); entrar “no gozo do teu senhor” (M t 25.14-30); entrar
“na posse do reino” (M t 25.34); “beber o vinho novo” (M t 26.29 e paral., etc).
H á um significado especial no fato de que, em Mateus 5.5, Jesus também indica
a terra como o local onde o reino revelará a sua glória. O “herdarão a terra” (cf.
O EVANGELHO DO REINO - SALVAÇÃO 207

SI 37.11; Is 60.21) não se refere à conquista gradual do mundo pelo evangelho,142


mas a viver na nova terra,143 à qual o reino dos céus um dia descerá, no fim do
mundo.144 “A obra de Deus feita sobre a terra não consiste apenas na purificação
da igreja de toda violência e impiedade, mas em dar a posse da terra àqueles aos
quais Jesus faz essa promessa”.145 Nesse sentido, também, o evangelho é livre de
qualquer dualismo. A terra não é a “natureza”, no sentido filosófico de natureza,
mas “criatura”, no sentido de ter sido criada. Ela deve sua origem à vontade
criadora e à palavra do Deus Todo-Poderoso.146 Essa é a razão pela qual Jesus
repetidamente expressa o direito divino em relação à terra e ao poder divino sobre
ela, quando, por exemplo, se dirige a Deus como o “Senhor do céu e da terra” (M t
11.25; Lc 10.21). Ele chama a terra de “estrado de seus pés” (Mt 5.35). Assim, a
libertação do reino consiste na sujeição da terra ao governo perfeito de Deus. O
início disso já pode ser percebido no fato de que Jesus perdoa pecados “sobre a
terra” (M t 9.6 e paral.). Após a sua ressurreição, toda a autoridade lhe “foi dada
no céu e na terra” (M t 28.18). Manifesta-se também na reivindicação de Jesus
sobre “os reinos do mundo e a glória deles” (M t 4.8 e paral.) e na oração para que
a vontade de Deus seja feita “assim na terra como no céu” (M t 6.10). A revelação
futura do reino será, também, o início da bem-aventurança perfeita da terra, de
acordo com as profecias que falam da renovação do cosmos (Is 65.17; 66.22), bem
como das capacidades ilimitadas do Filho do Homem (Dn 7.14). A terra está
envolvida na libertação divina. Assim, pode-se compreender o motivo pelo qual
a bem-aventurança futura é repetidamente descrita não somente como um gozo
ou enlevo espiritual, mas como um tipo de alegria que envolve a vida humana
como um todo. A liberação da vida como um todo, inclusive de seus aspectos
corpóreos e materiais, está totalmente de acordo com a ideia bíblica da criação
e pertence ao conteúdo da pregação do evangelho,147 embora seja claro que essa
libertação deva, primeiro, passar por uma catástrofe, o “fim” deste mundo, para
que, desse modo, ele possa trazer o caráter de uma renovação, uma recriação no
sentido pleno do termo.
Essa felicidade futura está totalmente sintetizada na palavra “vida” (M t 7.14;
18.8ss; M c 9.43,45), ou, algumas vezes, “vida eterna” (M t 19.16,29; M c 10.17),
que pode ser “herdada” (M t 19.29; M c 10.17; Lc 10.25), “recebida” (Mc 10.30;
Lc 18.30), na qual podemos “entrar” (M t 18.8; 19.17; M c 9.43). Com o termo
“vida” Jesus se refere à vida autêntica e imperecível. Não se trata de certo traço
de “imortalidade” carregado pelo próprio homem. Isso fica claro nos exemplos
acima, pelo uso que Jesus faz da linguagem. Essa imortalidade, pelo contrário, é
a dádiva de Deus aos eleitos na ressurreição dos mortos, enquanto a destruição
“eterna” é preparada para os ímpios (M t 10.28, etc.).
Entrementes, é claro que a recepção na vida eterna está ligada de modo
estreito com a vida terrena, isto é, com a maneira pela qual o homem age em
208 A v in d a d o R e in o

reação à vontade de Deus. Esse é o motivo pelo qual o cumprimento dos man­
damentos pode ser chamado de “caminho que conduz para a vida” (M t 7.14).
Como uma dádiva do reino de Deus, essa “vida” já está preparada e se inicia
com a filiação realizada pelo Espírito de Deus e pelo cuidado paternal de Deus
por seus filhos (M t 19.29, etc.). Mesmo agora, uma distinção é feita entre os
“vivos” e os “mortos” entre os seres humanos que vivem no presente. Apesar de
os Evangelhos sinóticos sempre falarem da “vida” como uma dádiva da salvação
concedida por Deus num sentido futuro-escatológico, é inconfundível que há
uma relação inquebrantável e uma unidade entre essa dádiva futura e a salvação
que é concedida agora, isto é, a remissão de pecados, o fato de ser adotado por
Deus como filho e o dom do Espírito Santo. Ambos são dons do mesmo reino
e, por esse motivo, se fundamentam no ato salvador grandioso da revelação de
Jesus Cristo.148 Na pregação do reino registrada nos três primeiros Evangelhos, a
proclamação da ressurreição e da vida tem apenas uma característica cristológica
implícita, pois essa pregação ainda não pode olhar retroativamente para a morte e
a ressurreição de Cristo como “acontecimentos determinantes do presente” (“die
Gegenwart bestimmende Ereignisse”). M as isso não diminui o fato de que essas
dádivas futuras da salvação, como a salvação do reino, eo ipso, encontram sua base
e cumprimento em Cristo. Isso é expresso de todas as maneiras na continuação
da proclamação neotestamentária da salvação. Nos Evangelhos sinóticos, entre­
tanto, são somente os “milagres” de ressurreições de mortos realizados por Jesus
(M t 9.18ss; 11.5; Lc 7.11-17, cf. também M t 27.52-53) que proclamam a vida
eterna como um dom de Cristo. M as, presentemente, a vida eterna como fruto e
resultado da ressurreição deJesus de entre os mortos será proclamada como o coração
e o cerne do kerygma cristão.149
Finalmente, deve-se fazer uma menção especial às palavras que Jesus
pronunciou ao ladrão na cruz, em resposta ao seu pedido, “lembra-te de mim
quando vieres no teu reino”. Jesus replicou: “Em verdade te digo que hoje estarás
comigo no paraíso” (Lc 23.42-43). A importância especial dessas palavras no
atual contexto reside na resposta de Jesus à menção do ladrão ao reino como o
grandioso futuro messiânico em que Jesus “viria em seu reino”. A resposta de Jesus
é a promessa da bem-aventurança do paraíso já para o “presente” (semeron).™
Isso só pode significar que já, antes da ressurreição dos mortos e da vinda do
reino em conjunção com ela, existe um estado intermediário de bem-aventurança
para aqueles que foram julgados dignos.131 Essa concepção ocorre também no
mundo judaico dos dias de Jesus152 e se encontra na base da parábola do rico e
Lázaro (Lc 16.19-31, onde esse estado de felicidade é descrito como “estar no
seio de Abraão”).
O que chama a atenção no pronunciamento de Jesus é, em primeiro lugar,
o poder e a autoridade absolutos com que ele concede a participação na glória
O EVANGELHO DO REINO - SALVAÇÃO 209

celestial. Em segundo lugar, a palavra “comigo”. É a comunhão com Jesus, a


quem o ladrão confessa abertamente como o Cristo, que garante a ele a salvação
imediatamente após a sua morte. Apesar de a concepção de felicidade provisória
antes da ressurreição não ocorrer em nenhum outro lugar dos Evangelhos sinó-
ticos, o propósito dessa palavra aqui, todavia, é claro o suficiente. Em Cristo, o
Rei do reino, reside a perfeita felicidade. Ele é a salvação de seus discípulos já
quando eles têm de deixar esta vida, apesar de o amanhecer grandioso de sua vinda
ainda não ter chegado. Nada, nem mesmo a morte, pode separá-los de seu amor
(Rm 8.38-39, cf. também Fp 1.23; 2Co 5.1-8).
VII
O EVANGELH O D O R EIN O

3. OS M A N D A M E N T O S

32. "Reino de Deus" e "justiça"

Vimos o lugar importante que a exigência para se fazer a vontade do Pai


ocupa na pregação de Jesus. Fomos capazes de formar uma ideia do sentido
geral dessa exigência moral dentro do escopo do evangelho do reino proclamado
por Jesus.1Agora, somos confrontados com a tarefa de penetrar, de modo mais
detalhado, no conteúdo e no propósito dos mandamentos de Jesus.2
A primeira questão, então, é em que sentido os mandamentos de Jesus são
determinados pela ideia do reino dos céus, ou, em outras palavras, o que constitui
o sentido específico desses mandamentos.
Mesmo uma revisão superficial revela certa unidade, um caráter específico,
tanto na forma quanto na natureza. E desejável, entretanto, defini-los mais
precisamente. O que Jesus requer nesses mandamentos também é resumido por
ele em qualificações gerais. A mais importante dessas qualificações - que ocorre
especialmente no Sermão do Monte conforme registrado por Mateus - é “justiça”
{dikaiousune). A passagem sobre a antítese em Mateus 5.21-48 nada mais é que
a descrição da “justiça” de que os discípulos precisam para entrarem no reino dos
céus (5.20). Em 6.1, o ponto de partida é, novamente, a ideia de “justiça” e 6.33
resume o que é necessário acima de tudo nas palavras “buscai, pois, em primeiro
lugar, o seu reino e a sua [isto é, de Deus] justiça”.
Em outro lugar (Mt 5.10), a justiça é chamada de causa da perseguição e,
aí, o reino dos céus é prometido aos que sofrem tal perseguição. Em todos esses
lugares,3justiça significa a soma total da exigência que Deus faz a todos os que
desejam entrar no reino.
O EVANGELHO DO REINO - O s MANDAMENTOS 211

Essas declarações também mostram a estreita relação entre os conceitos


de “reino de Deus” e “justiça”. Em Mateus 6.33, o reino de Deus e a justiça são
referidos na forma de uma hendíade' e a expressão “por causa da justiça”, em 5.10,
é trocada, em outros locais, pela expressão “por causa do reino” (Lc 18.29), ou
por “por amor de mim e por amor do evangelho” (Mc 10.29), ou, ainda por “por
causa do meu nome” (M t 19.29). Pode ser corretamente dito, portanto, que, na
pregação de Jesus, reino e justiça são conceitos sinônimos.4 Um é inconcebível
sem o outro.
Isso reforça a questão acerca do propósito geral dos mandamentos de Jesus.
Se a justiça exigida por Jesus é “a justiça do reino”, então qual é o seu caráter
geral? Ou, em outras palavras, de que maneira o conceito de justiça é determinado
pelo conceito de reino de Deus? Aqui, somos confrontados com a questão a
respeito do que é chamado, de modo geral, de relação entre “escatologia e ética”
no evangelho.
Qualquer interpretação dos mandamentos de Jesus que tiver como ponto de
partida uma concepção idealista do reino de Deus, seja num sentido individual (o
reino tem a ver com o valor infinito da alma humana; portanto, os mandamentos
de Jesus são regulados por um ideal de personalidade), seja num sentido de to­
talidade (o reino é a nova forma ideal de sociedade humana e os mandamentos
de Jesus têm como objetivo concretizá-la), deve ser rejeitada de imediato. Essas
interpretações não apenas estão em conflito com o que o evangelho nos ensina
acerca do reino de Deus, mas também nos dão uma ideia totalmente distorcida
da essência dos mandamentos de Jesus. Para dar uns poucos exemplos,5 devemos
apontar para o fato de que a perspectiva profunda de Jesus sobre o assassinato
e o adultério não pode ser explicada a partir do seu respeito pela personalidade
humana e pelo valor que ele atribui à mulher. Essa explicação realmente não
toca no cerne da questão. Se for permitido tirar conclusões quanto ao motivo a
partir dos resultados, pode-se citar um número suficiente de mandamentos que
levarão à conclusão contrária com relação à apreciação de Jesus pela personali­
dade humana, pois ele não somente proíbe a ira, o abuso e o repúdio da esposa
com uma carta de divórcio - ele também nos ordena suportar quando somos
agredidos e roubados (M t 5.39ss). Ele fala de situações em que se deve deixar
a mulher e filhos entregues a si mesmos (M t 19.29ss). Ele fala de pessoas às
quais não se deveria dar o que é santo, pois são “cães”. E foi ele também quem
disse: “... nem lanceis ante os porcos as vossas pérolas” (M t 7.6). Em todos esses
mandamentos, o que está em jogo é precisamente isso, que todos os tipos de
“valores”, inclusive a personalidade de uma pessoa, seu cônjuge, seu casamento,
etc., devem ser sacrificados, se necessário, por amor ao reino de Deus. Não são
esses valores que determinam o conteúdo dos mandamentos de Jesus; muito pelo
contrário, repetidas vezes, é representado como o bem supremo, que domina e
212 A v in d a d o R e in o

ofusca todos os valores, interesses e ideais humanos. A “justiça” que Jesus exigiu
de seus discípulos não é a “justiça do reino” simplesmente porque confirma esses
“valores”, mas porque requer sacrifício absoluto de todas essas coisas por amor
ao reino. O que determina o conteúdo dos mandamentos de Jesus é o caráter
absolutamente teocêntrico do reino. Eles têm como objetivo, especialmente quanto
ao seu caráter radical, governar a totalidade da vida a partir do seu referencial
teocêntrico, e pesar todas as coisas à luz desse objetivo.
O mesmo se aplica ao ideal coletivo do reino de Deus, que, supostamente,
é refletido nos mandamentos de Jesus. Quando, para dar um exemplo, e sempre
de maneira incidental, Jesus manda seus discípulos abrirem mão de seus direitos,
de suas propriedades, de seu casamento (M t 5.38ss; Lc 12.33ss; M t 19.12), esses
mandamentos não têm como objetivo, então, servir de base para uma nova ordem
social. Pelo contrário, Jesus se baseia na fundação de uma sociedade na qual essas
instituições (direito, retribuição, propriedade, casamento, etc.) são operativas.
Agora, entretanto, ao comando de Deus, e por amor ao reino, Jesus quer que seus
discípulos renunciem aos seus direitos, interesses, benefícios e meios de proteção.
Ele não troca uma ordem social pela outra, mas sujeita ao grandioso pré-requisito
do reino de Deus tudo o que a pessoa possui por virtude de suas capacidades,
ambiente, ordem social, etc., ou tudo o que alguém reivindica. Ele contrasta
direito com autonegação, posse de propriedade com prontidão para sacrificá-la,
casamento com continência. Isso não significa dizer que o reino de Deus consiste
em não ter propriedades, na ausência de direitos e no celibato, mas sim que o reino
de Deus representa algo superior à hierarquia de valores e interesses humanos e
que a “justiça do reino” nos ensina a sujeitar todas as coisas a ele.
Deve-se rejeitar, de imediato, interpretações como as acima, da relação
entre o reino pregado por Jesus e o conteúdo de seus mandamentos que sejam
baseadas, na maior parte, em pressuposições humanísticas. Não menos censurá­
vel é a concepção dos mandamentos de Jesus esposada pela linha da escatologia
consistente. Ela também estabelece uma relação próxima entre “reino de Deus” e
“justiça”, mas de tal modo que o reino de Deus significa ofim de todas as coisas,
isto é, a desvalorização absoluta de todos os direitos, interesses e prazeres terrenos.
Essa interpretação confere, em muitos aspectos, um sentido negativo à justiça
que se orienta para o reino de Deus. E nesse sentido que querem explicar tanto a
exigência de Jesus de autonegação por amor ao reino quanto o conteúdo geral de
seus mandamentos radicais. Johannes Weiss, o pai dessa perspectiva escatológica,
falou, quanto a isso, de uma “legislação de exceção” e comparou a um estado de
guerra a situação na qual Jesus imaginava que se encontrava. Em época de guerra,
o curso da vida normal é suspenso - ainda que provisoriamente. O que é anormal
se torna “normal” e tudo o que, em tempos de paz, é importante e desejável se
torna sujeito a um único e grande interesse, que é ganhar a guerra.6 Schweitzer
O EVANGELHO DO R e INO - O s MANDAMENTOS 213

formulou esse conceito dizendo que os mandamentos de Jesus representam uma


“ética interina”, isto é, eles são válidos apenas para aquele intervalo curto que ele
achava que ocorreria antes do fim de todas as coisas.7
Não há nada que tenha se provado mais questionável na interpretação do
evangelho por parte da escatologia consistente do que essa interpretação que
ela faz dos mandamentos de Jesus, pois em lugar nenhum o conteúdo desses
mandamentos é motivado por um apelo baseado no fim próximo deste mundo.8
Isso se aplica especialmente àqueles mandamentos considerados como os “mais
radicais” e como os exemplos mais característicos da “ética escatológica”, isto
é, os mandamentos de amar os seus inimigos e não resistir ao mal (M t 5.43ss).
Nesse caso, o motif da crise está totalmente ausente. Jesus exige que se ame o
inimigo com base no fato de que, ao agir dessa maneira, seus discípulos manifes­
tarão que são filhos do Pai celestial, “porque ele faz nascer o seu sol sobre maus
e bons e vir chuvas sobre justos e injustos” (M t 5.45). Não é a chegada próxima
do fim do mundo que vai “libertar” os discípulos da vingança e do amor próprio,
mas a ação do seu Pai celestial com relação aos pecadores. Essa motivação não
é derivada da situação escatológica, mas existe desde a época em que o mundo
caiu em pecado.
O mesmo se aplica ao grandioso resumo da vontade de Deus que Jesus fez
em mais de uma passagem, ou seja, o mandamento do amor (M t 7.12; 22.34-40;
M c 12.28-31; cf. Lc 10.27-28; M c 12.32-34). Esse mandamento do amor, obvia­
mente, não pode ser explicado a partir de uma atitude mental fundamentalmente
escatológica, mas é indicado por Jesus como a essência e o conteúdo da vontade
de Deus, a qual é válida não apenas numa situação escatológica, mas para todos os
tempos,9 como o grande mandamento para a vida humana. Porém, desse modo, o
entendimento dos mandamentos de Jesus, como sendo caracteristicamente uma
ética interina ou uma legislação de exceção, é comprovadamente insustentável no
ponto mais essencial. E compreensível que aqueles que consideram a expectativa
do advento iminente do reino como a origem da pregação de Jesus, rejeitem, cada
vez mais, a ligação estabelecida desse modo entre “escatologia” e “ética”.10
Sem dúvida, podemos dizer que, mais de uma vez, Jesus motiva as suas
exigências rigorosas com um apelo à relatividade das coisas temporais e terrenas
quando comparadas com os tesouros celestiais ou com as angústias do inferno (cf.,
p. ex., M t 5.29-30; 5.25-26; 19.12,21). Além disso, é inegável que a expectativa
do reino vindouro é um estímulo poderoso para se obedecer aos mandamentos
de Jesus e para se abster da entrega total aos tesouros da vida terrena. Mesmo
assim, seria uma concepção totalmente errada da profundidade dos mandamentos
de Jesus se tentássemos explicá-los recorrendo simplesmente ao valor relativo da
vida temporal e terrena. Uma passagem como Mateus 5.13-14, “Vós sois o sal
da terra... Vós sois a luz do mundo”, mostra que não somente a relatividade da
214 A v in d a d o R e in o

vida terrena, como também a sua preservação e expansão, são colocadas diante
dos discípulos como motivos. E, por fim - e este é realmente o ponto principal
- essa “concepção escatológica” ignora o que estabelecemos de várias maneiras
até agora, ou seja, que as boas obras requeridas por Jesus são não apenas uma
preparação para o reino de Deus esperado, mas em si mesmas já demonstram a
sua presença.
É a “vontade de Deus” que está sendo feita nessas “boas obras” e nessa “jus­
tiça”. Nessa “santificação do nome de Deus”, a vinda de seu reino é manifesta.11
As normas da justiça exigida por Jesus não se fundamentam num ideal terreno
do reino de Deus e nem mesmo no caráter transcendente e futuro desse reino.
A vontade de Deus expressa nos mandamentos de Jesus não está subordinada a
certos valores pertinentes à criatura, não deriva deles e nem consiste na negação
dos mesmos. Ela repousa unicamente na comunicação do próprio Deus. A “ética”
de Jesus não consiste numa doutrina sobre “bens” e nem no ascetismo. É a “ética”
da obediência no sentido pleno da palavra. O que é “justiça” e que pode ser ensinado
como tal sempre tem sua origem nas próprias palavras de Deus.
Essa noção fundamental é a grande pressuposição do fato notável de que,
repetidas vezes, Jesus fala da “vontade de Deus” sem maiores explicações (M t
7.21; 12.50; 18.14; 21.31; Lc 12.47-48). Ele também se refere ao “mandamento”
ou aos “mandamentos de Deus” (Mt 15.3; M c 7.8-9; M t 19.17; M c 10.19; Lc
18.20), à “palavra de Deus” (M t 15.6; Lc 11.28), como aquilo que o homem tem
de “cumprir”, “fazer”, “guardar”, e que, como tal, é conhecido ou pode ser conhe­
cido. Se, portanto, alguém perguntar, “O que é que regula os mandamentos de
Jesus?”, a resposta definitiva é apenas esta: a vontade de Deus conforme revelada em
sua lei. E esse o significado do programa grandioso do Sermão do Monte, “não
penseis que vim revogar a Lei ou os Profetas; não vim para revogar, vim para
cumprir” (M t 5.17). Teremos que investigar, num capítulo posterior, o que está
implícito nesse “cumprimento” da lei. M as devemos declarar, de maneira enfática,
já de início, que a pregação ética de Jesus não tem uma base mais profunda do
que a lei como revelação da vontade de Deus para Israel, o povo da aliança. Isso
transparece não somente de Mateus 5.17, mas, como veremos mais adiante, da
totalidade da pregação de Jesus que nos chegou de forma escrita. Repetidamente
é a lei, e somente a lei, cujo significado e propósito é também o significado e o
propósito dos mandamentos de Jesus.
Esse é o motivo pelo qual a ligação entre o “reino de Deus” e a “justiça” não
significa que o reino de Deus representa uma nova norma ética expressa na justiça
pregada por Jesus. Porém, essa ligação deve ser encontrada na pregação do reino
como a vinda de Deus em Jesus Cristo, e ela leva a sério a revelação da vontade de
Deus como o grande critério para a vinda do reino. Essa revelação é repetidamente
referida por Jesus como estando registrada na lei e nos profetas. Portanto, pode-se
O EVANGELHO DO REINO - O s MANDAMENTOS 215

falar não somente do caráter teocêntrico dos mandamentos de Jesus (em contraste
com todos os ideais humanísticos do reino de Deus), mas também da teonomia
da justiça pregada por ele. A vontade de Deus encontra expressão na revelação
da lei. E por esse motivo que a pregação do reino é, também, a pregação da lei.
Portanto, não deveríamos ficar surpresos com o fato de que Jesus, como o Cristo,
não apenas proclama a vinda do reino como o cumprimento do tempo grandioso
da salvação, mas também como o cumprimento da Escritura (Mc 1.15; Lc 4.21) e
que ele também coloca ênfase suprema no cumprimento da lei como o propósito
da sua vinda messiânica e como o contexto do evangelho do reino.

33. O cumprimento da lei

Para que obtenhamos uma perspectiva correta do sentido da justiça exigida


por Jesus a fim de determinarmos mais exatamente o caráter de seus mandamentos
como o cumprimento da lei, é necessário, antes de tudo, tratar das passagens nas
quais a relação de Jesus com a lei exarada no Antigo Testamento é explicitamente
mencionada. Já citamos Mateus 5.17ss, um pronunciamento que pode ser consi­
derado de importância preeminente nesse contexto. Todavia, esse pronunciamento
não é isolado ou independente.
Para começar, devemos indicar toda uma série de referências como suporte
para as palavras programáticas de Mateus 5.17.12 A própria vida de Jesus foi
sujeita à lei desde a infância. O sentido do material que encontramos no Evan­
gelho de Lucas que afirma esse ponto é inegável (Lc 2.22ss). Além disso, Jesus
se comporta de acordo com os preceitos da lei quando vai ao Templo, celebra as
festas religiosas, guarda o sábado, paga o imposto do Templo (M t 17.24ss), usa
as roupas prescritas pela lei (M t 9.20; 14.36), envia ao sacerdote os leprosos que
havia curado (M t 8.4) e defende o caráter sagrado do Templo contra aqueles que
usavam suas instalações para ganho pessoal (M t21.12ss;13M c 11.16). Em relação
a isso, podemos também nos referir às palavras bem conhecidas ditas a João em
seu batismo, “assim, nos convém cumprir toda a justiça” (M t 3.15). E verdade
que nesse caso a lei não é mencionada expressis verbi, mas a frase “cumprir toda a
justiça” certamente sugere a exigência divina revelada na lei e nos profetas antes
que Jesus (e João) iniciasse a sua carreira pública. Portanto, essa frase também
traz uma indicação muito importante de que a obra messiânica e substitutiva
de Jesus, incluindo seu sofrimento e sua morte, deve ser considerada como o
cumprimento da lei de Deus. Esse sentido, todavia, é mais do que simplesmente
indicado dentro do escopo do kerygma sinótico.14
Igualmente claras são as numerosas informações nas quais o ensino de Jesus
também obriga outros à vontade revelada de Deus. Além de Mateus 7.12, em
216 A v in d a d o R e in o

que Jesus nos fornece um resumo da lei e dos profetas como o conteúdo de seus
mandamentos, o seu diálogo com o jovem rico tem uma importância especial. A
pergunta do jovem, “Mestre, que farei eu de bom para alcançar a vida eterna?”,
Jesus responde: “guarda os mandamentos” (M t 19.17); “Sabes os mandamentos”
(Mc 10.19; Lc 18.20). E, então, ele repete vários dos Dez Mandamentos sepa­
radamente, junto com a ordem para amar o próximo (Lv 19.18). Assim, nessas
passagens, nos é dito o que é necessário para entrar no reino dos céus, a saber,
cumprir a lei. Mesmo quando, na conversa subsequente, Jesus diz ao moço rico
que venda tudo o que tem e dê aos pobres, essa exigência não excede a que nos
é requerida pela lei,15 pois é sua aplicação prática. Aqui, também, a questão
envolvida é a da “perfeição”, ou seja, fazer o bem de maneira consistente.16Jesus
não requer nada mais do que a guarda da lei, a qual é necessária para a entrada
no reino dos céus (cf. M t 19.24).17
Além do mais, o mandamento para amar a Deus e ao próximo, que é repe­
tidamente dado por Jesus como o resumo de todos os mandamentos, nada mais
é senão o sumário da própria lei (M t 7.12; 22.40; cf. também M c 12.34; M t
24.12). Assim, os mandamentos mais radicais de Jesus, os quais são sempre uma
particularização de seu amor (cf., p. ex., M t 5.38ss, 43ss), não representam um
tipo novo de justiça (p. ex., o amor em contraste com o que é certo), mas somente
dão expressão ao que Jesus proclama como a exigência da lei e dos profetas. A
obediência a esses mandamentos é o cumprimento da lei.
E à luz disso, consequentemente, que devemos ver a crítica extremamente
severa que Jesus faz à doutrina e à prática da lei dos escribas e fariseus, pois é
claro que a pregação de Jesus, com respeito ao cumprimento da lei, é controlada
também por um tema antitético, do mesmo modo que sua pregação sobre a
remissão de pecados.18
A pergunta que surge agora é esta: qual é o significado desse apelo cons­
tante à lei e qual é o sentido do pronunciamento enfático de Jesus na introdução
daquela grandiosa passagem antitética no Sermão do Monte, quando ele diz que
veio cumprir a Lei e os Profetas (pleroosai, M t 5.17)?
Essa pergunta só pode ser plenamente respondida (se tal resposta for pos­
sível) depois de uma pesquisa acerca da totalidade da pregação ética de Jesus.
Entretanto, as palavras citadas de Mateus 5.17-19 são de grande importância
porque essa declaração geral não é obscura em si mesma, nem incompatível
com o restante do contexto, pelo que rejeitamos como um julgamento arbitrário
qualquer veredito de que se trata de uma passagem espúria.19
A primeira coisa a ser observada acerca do “cumprimento” (pleroosai), em
Mateus 5.17, é que, aí, é plenamente mantida a categoria lei no sentido de auto­
ridade externa, a qual é uma conseqüência lógica, especialmente do versículo 18
(cf. Lc 16.17). Portanto, não se trata, nesse caso, de substituir a lei como fonte do
O EVANGELHO DO REINO - O s MANDAMENTOS 217

nosso conhecimento da vontade de Deus pela “nova dispensação”, “consciência”,


etc. Além disso, qualquer exegese que explique a passagem como se a mesma
significasse um suplemento quantitativo da lei não faz justiça ao significado das
palavras. E nesse sentido que Jeremias quer entender Mateus 5.17. Ele pensa que
Jesus, como portador da “vontade complementar e final de Deus”, é contrastado,
aqui, com Moisés, o “portador da vontade divina provisória”.20
Todavia, “cumprimento” não significa “complementação da lei como a fonte
de nosso conhecimento da vontade divina”, mas a afirmação efetiva das exigências
da lei. A palavra sugere a ideia de um vaso que está sendo cheio. O “vaso” da lei
está recebendo sua medida legítima. Foi para esse propósito que Jesus veio. E essa
medida, naturalmente, consiste nas exigências da lei sendo cumpridas.
Quanto a isso, algumas perguntas importantes se levantam. A primeira per­
gunta é se “a Lei e os Profetas” significa somente a exigência da lei ou também a
promessa, especialmente aquela acerca do Messias em toda a sua extensão multi-
forme, a qual então Jesus afirmaria cumprir. As palavras “a Lei e os Profetas”, em
si mesmas, não decidem esse ponto, apesar de indicarem a promessa (M t 11.13;
Lc 24.44), bem como a fonte única do conhecimento da vontade divina (Mt
7.12). Em nossa opinião, o contexto claramente mostra que tanto “a Lei” quanto
“os Profetas” se referem à exigência divina. O versículo 17 explica o 16, que trata
das “boas obras”. E todo o parágrafo de Mateus 5.21-48, do qual 5.17-20 é a
introdução, trata da exigência divina. Pensamos, portanto, que devemos conceber
“a Lei e os Profetas” do mesmo modo que o restante do Sermão do Monte (7.12
e também M t 22.40 - “Destes dois mandamentos dependem toda a Lei e os
Profetas”). Essa conclusão transparece igualmente da menção isolada da lei nos
versículos 18 e 19.
Uma segunda pergunta é se Jesus queria se referir (ou não), com a expressão
“cumprimento” da lei, ainda que primariamente, ao cumprimento messiânico da
lei realizado por ele mesmo, e, portanto, à sua própria obediência à lei, ou se ele
queria se referir somente à sua doutrina concernente ao verdadeiro conteúdo e
propósito da lei.
Essa pergunta tem sido formulada e respondida de várias maneiras. Calvino
faz a distinção entre a “doutrina” de Jesus e sua “vida” e escreve que, apesar de
Cristo, por causa da perfeição da sua vida, poder dizer que tinha vindo cumprir
a lei, ele fala, aqui, da sua doutrina, não de sua vida.21 Klostermann fala de um
cumprimento prático e de um teórico e pensa que a primeira interpretação se
encaixa melhor com referência ao versículo 19 (contrastando o “fazer e ensinar”
com “violar e ensinar”), mas que, na seqüência (vs. 21-48), há somente um cum­
primento teórico da lei.22 Van Ruler observa que, de acordo com Mateus 5.17, o
cumprimento da lei é uma ação “que ocorre não somente no mundo do signifi­
cado, mas também no mundo do fato”.23 Um pouco mais adiante, ele acrescenta
218 A v in d a d o R e in o

(aparentemente outra vez com base em M t 5.17 em particular) que o significado


real da palavra “cumprimento” não pode ser encontrado na “esfera ideológica,
mas na esfera da história escatológica”. A referência não é primariamente ao seu
“conteúdo noético e racional”, mas a algo que “ocorre”. Cumprimento é uma
“categoria messiânica” e o cumprimento da lei foi realizado na vinda de Jesus e
em sua obra, “para falar dogmaticamente: em sua obediência passiva e ativa, na
obra da expiação e santificação”.24
Em nossa opinião, é melhor observar a sobriedade de Calvino. Nessa parte
do Sermão do Monte, Jesus fala especificamente com a autoridade do Messias
que anuncia a vontade de Deus (cf. 7.28-29). Isso fica claro em todo o Sermão,
mas especialmente na parte antitética, na qual ele combate o que os antigos
rabinos haviam ensinado. Esse é o motivo pelo qual essa passagem tem a ver,
primariamente, com a sua “doutrina” e não com sua “vida”. Ainda assim, isso
não significa que há um contraste ou que se deva pensar exclusivamente numa
“teoria do cumprimento”. Do mesmo modo que Jesus se opõe, nos versículos 19
e 20 (cf. 23.3), não apenas ao ensino da lei pelos rabinos judeus, mas também
ao modo de vida deles, assim também sua própria doutrina e maneira de viver
formam uma unidade. Assim, sua vida, como cumprimento da lei, é, ao mesmo
tempo, a doutrina para seus discípulos (cf. M t 11.29). O elemento substitutivo,
entretanto (obediência “passiva” e “ativa”), está ausente de Mateus 5.17. Porém, em
segundo lugar, deve-se ter em mente que o cumprimento da lei por Jesus, também
em relação à vida de seus discípulos (que é o tema da discussão aqui), nunca é
meramente “palavra”, “prescrição”, mas também ação, dádiva. Sua pregação do
evangelho (e também seu cumprimento da lei) é uma palavra eficaz. Leva seus
discípulos para a comunhão com o Pai. Cria a relação Pai-filho e os capacita a
viver como filhos do Pai celestial.25 Portanto, está totalmente de acordo com a
totalidade da pregação de Jesus quando essa palavra acerca do cumprimento da
lei e dos profetas é tomada como uma referência à promessa da nova aliança,26
de acordo com a qual Deus escreverá a sua lei no coração do povo e assim ele
mesmo responderá pelo cumprimento dela (Jr 31.31ss).
Nada disso, entretanto, minimiza o fato de que, na exegese de Mateus 5.17,
nossa maior preocupação deve ser a interpretação profético-messiânica da lei e,
em consonância com isso, aquilo pelo que os discípulos são responsabilizados.
Devemos concentrar toda a nossa atenção, de maneira particular, no que isso
significa.27
Todavia, tem sido afirmado comumente que, ao final, a exegese que Jesus
faz da lei e sua crítica correspondente aos escribas judeus contém em si mesma
uma crítica àprópria lei. Essa crítica, quando não é literal, é, no mínimo, implí­
cita. Esse seria o motivo pelo qual os pronunciamentos positivos de Jesus com
respeito à lei, segundo alguns, dificilmente se compatibilizam com o conteúdo
O EVANGELHO DO REINO - O s MANDAMENTOS 219

de seus próprios mandamentos. Essa perspectiva é especificamente baseada no


que tem sido chamado de incompatibilidade de Mateus 5.17-20 (a manutenção
explícita da lei)28 com a antítese que a segue, Mateus 5.21-48. Para refutar esse
argumento, vamos nos ater somente ao seguinte.29
Primeiramente, essas antíteses são formalmente dirigidas contra a doutrina
da lei dos escribas, não contra a lei em si. Além disso, temos a questão da tradução
de tois archaios (vs. 21ss). Em nossa opinião, é quase impossível questionar que a
tradução correta dessa expressão é “pelos antigos”, e não “aos antigos”. Os “antigos”
são, então, aqueles que haviam explicado a lei na chamada halacha. Nos dias de
Jesus, o ensinamento dos escribas era baseado nessa explicação.
Os seguintes argumentos podem ser apresentados em favor dessa opinião:

1) Jesus não cita o que estava escrito, mas o que havia sido dito (errethe, não
gegraptaí), enquanto, no versículo 18, ele fala da lei como o que foi expresso
em letras (i e til). Quando ele se refere ao que foi dito, tem em mente o
que os escribas ensinavam ao povo oralmente como a tradição do ensino
da lei pelos “antigos”.

2) O uso lingüístico seguido em hoi archaioi aponta distintamente para


os antigos rabinos ou transmissores da tradição, mas não para aqueles
que eram os antigos destinatários dessa tradição. E verdade que, noutro
contexto, archaioi pode designar, também, os antigos profetas quando
não existe relação quanto à lei (Lc 9.8,19). Mas, quando os “antigos” são
mencionados em conexão com a lei, refere-se aos escribas, pelo menos nos
escritos judaicos. Nos tratados doTalmude e do Midrash, existe menção
repetida às “palavras dos antigos”. Há uma advertência contra aqueles que
colocam essas palavras em oposição à Torá (p. ex., em Tanchuma 202a:
“Ninguém deveria dizer: “Não guardarei os mandamentos dos antigos
porque não pertencem àTorá”.). As palavras deles e as palavras dos profetas
são colocadas lado a lado.30 Com base nisso tudo, não devemos supor que,
por “antigos” Jesus se referisse a “nossos ancestrais”31 que receberam a lei.
Ele está, obviamente, fazendo objeção contra os rabinos eruditos.

3) Isso é confirmado por Mateus 15.2, em que Jesus menciona explicitamente


“a tradição dos anciãos” e a contrasta com o mandamento de Deus (v. 3). E
verdade que a passagem, nesse caso, não menciona archaioi, maspresbyteroi;
todavia, não há diferença técnica entre as duas palavras. Em ambos os
casos, não há dúvida de que a referência é aos zekenim judaicos.32

4) Outro argumento - que, em nossa opinião, é conclusivo - é que o que Jesus


cita como “foi dito” não se encontra no Antigo Testamento exatamente
220 A v in d a d o R e in o

do mesmo modo; o que Jesus menciona contém vários acréscimos e, pelo


menos num caso, está em conflito óbvio com o Antigo Testamento (cf.
5.43). Essas citações de Jesus são claramente instruções na lei, interpreta­
ções, halacha, não citações da lei propriamente ditas.33

5) Em contraste ao que foi dito (“pelos antigos”), Jesus afirma enfaticamente:


“Eu, porém, vos digo”. A antítese não é apenas entre o conteúdo do que
foi dito nos tempos antigos e o que está sendo dito nesse momento, mas
também entre as pessoas responsáveis por esses “ditos”, isto é, entre Jesus
e os “antigos”.

Jesus não está combatendo a lei, mas a concepção superficial, a desvalorização


da exigência da lei.34 Isso transparece não somente da forma em que a antítese
é colocada, mas também do conteúdo antitético dos mandamentos em si. Esse
ponto é óbvio quanto aos mandamentos dados em Mateus 5.22-26,27-30,43-48.
Com respeito à carta de divórcio, aos juramentos e à vingança (M t 5.32, 34-37,
39-42), só há conflito entre Jesus e Moisés se os mandamentos de Jesus forem
julgados de um ponto de vista puramente formalista, pois, no caso da proibição
do divórcio, Jesus pode recorrer a Moisés (Cf. M t 19.8). Além disso, a instituição
da carta de divórcio não sancionou esse pecado, mas apenas fez provisão para
ele na lei civil, dentro de certos limites. Jesus não ataca essa ordem civil que se
tornou necessária por causa do pecado (M t 19.8), mas deixa claro que essa lei
civil não cumpria o mandamento de Deus. O mesmo se aplica ao ius talionis.
A autoridade civil foi encarregada de manter a justiça, até mesmo pela coerção,
se necessário. M as isso não anula a exigência do amor, nem o ofendido tem o
direito de apelar para a retribuição divina em vez de obedecer a essa exigência.
E, quanto à proibição de jurar, certamente não se deve pensar que ela significa
que Jesus discorda de todos os juramentos previstos no Antigo Testamento junto
com qualquer menção explícita à onisciência de Deus. M as, em oposição a uma
prática corrompida de se fazer juramentos, Jesus enfatiza fortemente a necessidade
de simplesmente se falar a verdade, necessidade que está de acordo com a lei e
os profetas. Apesar de, na parte antitética do Sermão do Monte, o cumprimento
da lei ser certamente algo diferente do que uma mera repetição, não pode haver,
contudo, dúvida alguma de que, nesses mandamentos, Jesus só queria fazer jus­
tiça à lei como a instância normativa. Portanto, nesse caso, ele não corrige nem
completa a lei de Deus, mas é seu defensor e guardião.
H á mais algumas passagens sobre a mesma questão. Já mencionamos Mateus
15.2,6; M c 7.5ss, nas quais Jesus enfaticamente coloca a tradição dos “antigos”
em oposição à lei de Deus. Ele expõe a hipocrisia da restrição judaica ao dever
de se prover financeiramente para pais indigentes (o caso do “Corbã”, M c 7.11;
O EVANGELHO DO R e INO - O s MANDAMENTOS 221

M t 15.5). Ele também discute a censura que os fariseus e os escribas fizeram


aos seus discípulos por não observarem os rituais de purificação dos “anciãos”. A
resposta de Jesus a essa censura aparentemente anula não somente as provisões
elaboradas dos escribas como também toda a noção ritualística sobre o puro e o
impuro em geral. Isso se aplica especialmente ao pronunciamento “não é o que
entra pela boca o que contamina o homem, mas o que sai da boca, isto, sim,
contamina o homem” e às aplicações adicionais dessas palavras que Jesus fornece
(Mt 15.10-20; M c 7.14-23).
Todo o contexto, entretanto, mostra claramente que Jesus não está abolindo
os rituais da lei de purificação de um modo tão casual.35 Se suas palavras sobre
puro e impuro forem entendidas como um ataque a tudo o que pertence à pureza
ritual, temos que incluir aqui não apenas as leis sobre alimento de Levítico 11,
como também todas as leis sobre a pureza dos sacerdotes. Em oposição a isso,
entretanto, Jesus, em lugar nenhum, aparenta rejeitar os serviços do templo e suas
prescrições sobre a pureza ritual. Ao contrário, ele se sujeitou a elas e também
exigiu que outros as observassem (cf. M t 8.4; 23.23; Lc 2.22). O conflito, portanto,
é quanto à interpretação dos escribas e fariseus sobre as regras dos antigos. Os
discípulos de Jesus não observavam essas regras e, nisso, Jesus os defende. Por
outro lado, o pronunciamento de Jesus acerca das coisas que contaminam e das
que não contaminam é formulado de um modo genérico, de modo que, apesar de
Jesus observar as prescrições legais de purificação encontradas na lei de Moisés, as
conseqüências de seu pronunciamento parecem envolver as próprias prescrições
e sua elaboração pelos anciãos.36 Essa aparente contradição entre as palavras de
Jesus e suas ações é eliminada tão logo se entenda o sentido correto das mesmas.
Obviamente, ele não quer abolir as leis mosaicas sobre purificação e sobre ali­
mentos, nem declará-las sem sentido. O que ele pretende é dar um fim à ilusão
de que o homem pecador pode conseguir a verdadeira pureza diante de Deus
dessa maneira. Jesus mostra que o que está em jogo nesse caso é o coração (mas
não como se a vida interior fosse a única coisa que realmente importasse) como
o que determina toda ação e inação do homem. Pois “alimento” e “coração” não
têm “nada a ver um com o outro”. Não se nega que a purificação dos alimentos e
do corpo ocupa um lugar na lei de Deus, mas falta a essa lei o poder de purificar
uma pessoa diante de Deus. A crítica de Jesus está de acordo com a evidente
crítica negativa dos profetas com respeito ao culto público de Israel (cf. Is 1.1 lss;
58.5ss; Jr 6.20; 14.12; Am 5.22; M q 6.7; SI 50.8ss). A crítica dos profetas, com
certeza não tinha a intenção de abolir o culto público, mas mostrar sua inutili­
dade diante de Deus enquanto fosse prestado por corações não regenerados e
vidas não convertidas. E o mesmo que encontramos no Sermão do Monte (Mt
5.23-24: “vai primeiro reconciliar-te com teu irmão; e, então, voltando, faze a
tua oferta”). Esse é, também, o sentido das palavras de Jesus sobre a pureza. Em
222 A v in d a d o R e in o

nossa opinião, há, sem dúvida, motivos para se distinguir entre a pureza ritual e
a pureza ética, mesmo que Jesus não empregue tais termos abstratos. Apesar de
essa distinção não ser designada como um contraste (a pureza ética não torna
supérflua a pureza ritual), ela certamente sugere uma diferença de classificação,
pois a pureza ritual não pode ser separada de seu fundamento eticorreligioso.
Outro conflito entre Jesus e os fariseus confirma nossa opinião de que a
solução do problema deve ser procurada na direção já indicada acima. O conflito
surgiu pelo fato de que Jesus comia com ospublicanos (M t 9.9-13). Nesse caso, mais
uma vez, o ponto de discussão era a validade das regras judaicas.37Jesus lembra aos
seus ouvintes as palavras do profeta: “Misericórdia quero e não holocaustos” (M t
9.13; cf. Os 6.6). Essa citação é muito importante nesse ponto, pois leva o conflito
entre Jesus e os fariseus para um nível genérico. A s palavras ocorrem também
em Mateus 12.7, no debate concernente ao sábado. Elas também explicam as
palavras de Jesus sobre pureza. Pode-se dizer que nem a questão de comer com
“publicanos e pecadores” nem o conflito sobre o sábado está relacionado com a
questão dos “holocaustos”, isto é, o serviço do templo. M as Jesus considera, à luz
da profecia de Oseias, a falta de escrúpulos e a veemência dos fariseus quanto a
essas questões. Ele expõe uma atitude geral (não somente uma falsa compreensão
dentro do escopo do casuísmo). Portanto, ele culpa seus adversários em termos
de um motif'pToíético geral (como fez em M c 7.6-7). Nesse caso, ele claramente
faz um contraste entre holocausto (o que pode ser levado ao templo por mãos
humanas) e misericórdia, bondade e amor, nos quais o coração está envolvido.
Isso, também, não significa uma depreciação ou rejeição do serviço sacrificial
como se fosse algo meramente externo, mas a condenação de uma religião da
qual somente o fenômeno externo, os cultos e o ritual haviam sido mantidos e
da qual o coração estava ausente. A antítese foi formulada em termos absolutos
(“misericórdia quero e não holocaustos”), mas tem um sentido relativo. Essa é
uma forma de estilo que ocorre com frequência (cf.Jl 2.13; Jo 6.27). Significa que
o segundo termo da antítese não pode existir sem o primeiro e que só tem valor
por meio dele. No entanto, “holocaustos” e “misericórdia” não estão relacionados
um ao outro como ação e disposição, como ocorre, por exemplo, com assassinato
e ódio. Aqui temos, de fato, duas esferas distintas, a ética e a ritual. A crítica de
Jesus não tem como objetivo separar as duas coisas, mas, ao contrário, revelar
a unidade da lei, de modo que a esfera ética é mostrada como o fundamento
indispensável para a esfera ritual.
Em nenhum outro lugar essa relação é indicada de maneira mais clara do
que na palavra de Jesus contra os fariseus, em Mateus 23 (cf. Lc 11.39ss).Todo o
sermão é importante para a nossa compreensão da postura de Jesus com referência
aos escribas e a observação deles da lei. O sermão inicia com um pronunciamento
positivo de Jesus, no qual ele reconhece a autoridade que eles tinham, visto que
O EVANGELHO DO REINO - O s MANDAMENTOS 223

se assentavam “na cadeira de M oisés”, e o direito que eles tinham de exercer essa
autoridade.38 Nesse caso, também, em primeiro lugar, devemos repudiar qualquer
falsa interpretação que sugira que Jesus está se opondo à lei de Moisés. Todavia,
estamos interessados, de maneira especial, na passagem que começa no versículo
23. A questão, mais uma vez, é o significado do que pertence ao culto em seu
sentido mais amplo, pois “dais o dízimo da hortelã, do endro e do cominho”.
Jesus não se opõe nem mesmo a essa interpretação tão estreita de Deuteronômio
14.22ss. Ao contrário, ele aponta para “os preceitos mais importantes da Lei:
“a justiça, a misericórdia e a fé”. A expressão “os preceitos mais importantes”
{ta barutera) não quer dizer que esses mandamentos são mais difíceis de serem
cumpridos e que, portanto, requerem um esforço maior, mas sim que eles repre­
sentam a parte mais importante e decisiva da lei.39 Nem tudo na lei tem o mesmo
peso. O cumprimento da lei significa, também, que conhecemos e praticamos a
distinção espiritual ensinada na própria revelação de Deus (cf. v. 23 com M q 6.8;
Zc 7.9). Isso não quer dizer que a ação, o desempenho externo, a parte ritual, não
tenham valor. Jesus continua, dizendo: “devíeis, porém, fazer estas coisas, sem
omitir aquelas”. M as a coisa mais importante é a que deveria estar na base do
que é externo e ritual, a disposição correta do coração. Fica evidente, repetidas
vezes, que Jesus não coloca o ético em antítese ao ritual, mas que ele considera
o primeiro como indispensável para o segundo, e, nesse sentido, a parte mais
importante da lei.
Finalmente, devemos discutir as passagens que tratam da guarda do sábado
e do jejum. Já mencionamos um tema importante encontrado em Oseias 6.6.
Contudo, esse não é o único. Em outro lugar, por ocasião da cura do homem com
a mão ressequida, Jesus pergunta aos que aguardavam para apanhá-lo quebrando
a lei do sábado: “E lícito nos sábados fazer o bem ou fazer o mal? Salvar a vida
ou tirá-la?” (Mc 3.4; Lc 6.9). Em Lucas 13.15ss, ele aponta aos acusadores os
cuidados que eles mesmos tinham com seu rebanho e pergunta se uma filha de
Abraão não deveria ser libertada do cativeiro (de Satanás!) num dia de sábado.
Uma resposta semelhante é dada aos escribas e fariseus, em Lucas 14.1-6, por
ocasião da cura do homem hidrópico num sábado. Nessas passagens, a argumen­
tação começa com a natureza e o caráter do dia de descanso dado por Deus. Esse
dia não foi dado para oprimir e destruir a vida, mas para salvá-la (cf. também
M c 2.27). Além disso, não se trata, nesse caso, de qualquer quebra da lei mosaica
concernente ao sábado. Trata-se, todavia, de um desvio da visão judaica posterior,
a qual, apesar de todos os seus escrúpulos com relação à letra, não cumpria a lei
de Deus, mas a destruía (cf. também Jo 7.22-24).
Os relatos do conflito com respeito ao sábado, conforme os três Evangelhos,
quando os discípulos estavam colhendo espigas no sábado (M t 12.1-8 e paral.),
mostram poucas diferenças entre si. Nesse caso, também, a questão é da infração
224 A v in d a d o R e in o

de uma interpretação típica da lei do sábado, não do próprio preceito mosaico.40


No entanto, Jesus responde à crítica dirigida a seus discípulos mediante um con­
texto abrangente. Ele faz um apelo explícito ao que está escrito (“Não lestes?”,
M t 12.3 e paral.; veja, ainda, v. 5), ou seja, o fato de que Davi violou a proibição
de se comer o pão da proposição. Já aqui temos uma alusão clara ao motivo
messiânico, pois Davi, também, havia feito isso como o ungido do Senhor, pois
o modo como tomou o pão era um modo santo (ISm 21.5).41 D o mesmo modo,
Jesus recorre aos sacerdotes, que violavam a letra do mandamento do sábado e,
ainda assim, eram considerados inculpáveis. E, então, acrescenta: “aqui está quem
é maior que o templo” (M t 12.6). Esse é um apelo claro à sua própria grandeza
e à missão que lhe foi confiada por Deus. Isso o isentava de guardar preceitos
cerimoniais formais quando os mesmos conflitavam com seus propósitos, que
haviam sido divinamente prescritos. Encontramos algo semelhante em Mateus
17.24-27, passagem em que Jesus defende sua isenção de pagar impostos para a
casa de seu Pai por ser Filho de Deus. Com respeito ao sábado, isso é resumido
no parágrafo mencionado acima da seguinte maneira: “Porque o Filho do Homem
é Senhor (“também”, em Marcos) do sábado”. Portanto, quando Jesus, como o
Filho do Homem, isto é, por causa da autoridade que lhe foi dada por Deus,
intitula-se Senhor do sábado e age de acordo com isso, ele o faz consciente de
que não está frustrando a vontade de seu Pai, mas cumprindo-a de acordo com
as próprias Escrituras.
Esse tema messiânico de cumprimento da lei, finalmente, é encontrado
num sentido ainda mais abrangente nas palavras de Jesus sobre o jejum: “Po­
dem, acaso, estar tristes os convidados para o casamento, enquanto o noivo está
com eles?” (M t 9.15ss). Essas palavras são seguidas por um pronunciamento
sobre colocar um remendo novo em roupa velha e vinho novo em odres velhos.
Devemos ter em mente que o jejum prescrito pelos fariseus não era baseado na
lei de Moisés. Assim mesmo, Jesus não rejeita a crítica dos fariseus nesse ponto.
Em outros lugares, transparece que Jesus não rejeitou o jejum, em todas as suas
formas, seja para sua época (M t 6.16-18), seja para o futuro (M t 9.15b). A im­
portância de suas palavras sobre o jejum reside no seu desejo de que o serviço
formal prestado a Deus e a maneira do culto a Deus, em geral,fossem vistos à luz
da situação histórica da salvação e também no fato de que ele faz com que esse
culto dependa dessa situação. O momento atual é de cumprimento, da presença
do noivo, da passagem do velho (palaion) e da chegada do novo ( neon; kainon)42
que deve dominar todas as coisas, inclusive o modo de culto. Esse é o motivo pelo
qual manter o que é velho (jejum como expressão de tristeza e arrependimento
diante do julgamento iminente, que era o tema da pregação de João Batista) é
um equívoco, é ignorar que o tempo da salvação já começou e que a pregação da
salvação já está sendo cumprida. Quanto a isso, também, Jesus não está se opondo
O EVANGELHO DO REINO - O s MANDAMENTOS 225

à lei nem à observância de certas formas religiosas pertinentes; ao contrário, ele


se opõe à manutenção mecânica, basicamente incrédula, do que é velho sem que
se reconheça o novo.
Embora esses pronunciamentos se refiram primariamente ao jejum e ca­
racterizem o tempo inaugurado pela vinda de Jesus como o tempo (provisório)
da alegria messiânica, não se pode negar, todavia, que o último dito, em especial,
aquele acerca do vinho novo em odres velhos, tem um significado muito geral.
E nesse caso, mais que em qualquer outro, que um critério muito importante e abran­
gente nos é dado não somentepara entendermos o sentido dojejum, como também para
entendermos a totalidade da existência e do valor da maneira de adorar do Antigo
Testamento. Essa declaração, portanto, deve ser entendida como o complemento
da declaração de Mateus 5.18: “até que o céu e a terra passem, nem um i ou um
til jamais passará da Lei, até que tudo se cumpra”. É exatamente em referência
a esse “até que tudo se cumpra” que o ponto de vista messiânico se mostra tão
importante. Não somente as profecias, mas também a lei se cumpre na vinda de
Jesus e deve ser entendida à luz desse cumprimento. A declaração de Mateus 5.18,
portanto, ocupa um lugar extraordinário em Lucas. Ele vem em seguida ao dito
de Lucas 16.16-17: “A Lei e os Profetas vigoraram até João; desde esse tempo,
vem sendo anunciado o evangelho do reino de Deus...”. Aqui, também, por um
lado, a validade duradoura da lei é destacada (mesmo após o cumprimento da
salvação ter começado); por outro, todavia, o cumprimento da lei é colocado à
luz do fato de que o “novo” chegou e está ligado a isso. Nem aqui, nem em M a­
teus 9.14ss e nem em qualquer outro lugar do evangelho se fala expressis verbis
da importância transitória dos mais variados preceitos do Antigo Testamento,
especialmente daqueles relacionados ao serviço divino (cf., todavia, M t 27.54;
24.2; e paral.). M as o motivo messiânico do cumprimento, conforme expressado
em Mateus 9.16ss, teria conseqüências de longo alcance para o futuro.43 Nesse
caso, também, “cumprimento” e “temporário” andam de mãos dadas.44 Esse cum­
primento temporário ainda não está completo. Jesus ainda deve sofrer, morrer e
ressuscitar de entre os mortos. Tudo isso é codeterminante do sentido e da forma
do culto divino, o qual, mesmo em sua forma veterotestamentária, não foi abolido
por Jesus e, sim, levado ao pleno cumprimento.
Contudo, agora transparece claramente que o “cumprimento da lei” está sujeito
à norma tanto do registro literal da lei no Antigo Testamento quanto do significado
da salvação manifesta em Cristo. Esse é o tema importante que pode ser extraí­
do, com clareza inegável, dos pronunciamentos de Jesus relativos à maneira do
culto divino.
Se quisermos tentar resumir tudo o que encontramos até aqui a respeito da
postura de Jesus com relação à lei e sobre o significado factual do cumprimento
dessa mesma lei proclamado por ele, devemos destacar o que se segue.
226 A v in d a d o R e in o

Em primeiro lugar, devemos rejeitar qualquer antítese entre “a ética da lei


e a ética da disposição” como o esquema básico do ensino moral de Jesus.45 E
verdade que Jesus repetidamente enfatiza fortemente a necessidade de uma
disposição do coração para agradar a Deus em contraste com uma perspectiva
externa da lei. Ele torna a possibilidade de uma boa obra dependente de uma
boa disposição do coração, especialmente nos ditos acerca da árvore e seus
frutos (M t 7.17ss; 12.33ss). Porém, nada disso anula a lei de Deus como uma
autoridade externa e como fonte de conhecimento e nem a substitui pelas boas
disposições do coração do homem. Quando Jesus repreende os fariseus porque
ensinavam ao povo somente a letra da lei referente a ações externas (assassinato,
adultério, etc.) e porque não indicavam a disposição do coração como a origem
real do pecado, ele não vai ao que está por trás da lei, mas mantém a lei em seu
sentido e propósito mais profundos. A disposição do coração (indicada de di­
versas maneiras) não é um atributo que transcende a lei, mas está sujeita à lei e
é exigida por ela. Esse ponto aparece claramente no resumo da obediência que
Jesus requer, a saber, no mandamento do amor. Como sabemos, esse mandamento
é repetidamente indicado como o resumo da lei e dos profetas. De igual modo,
“de todo teu coração, de toda tua alma e de todas as tuas forças” foi tomado da
lei (Dt 6.5). Todos os problemas levantados nos tempos modernos, de acordo
com os quais a disposição do coração, amor, etc., “não pode ser ordenada” e que
reduzem os mandamentos de Jesus a um esquema de autonomia-heteronomia,
autoridade externa e interna, etc., são estranhos ao evangelho. A disposição do
coração é uma condição indispensável para que uma obra seja boa, pois isso está
incluído no preceito da lei e é requerido por Deus na revelação da sua vontade.
A teonomia do evangelho é sujeição à lei e qualquer tentativa de eliminar a ca­
tegoria da lei do evangelho é frustrada pela manutenção contínua e inegável da
lei pelo evangelho e no evangelho.
Consequentemente, como nosso segundoponto, pode ser dito que erraremos
se procurarmos o cumprimento da lei na substituição do culto pela ética. E verdade
que, em mais de uma passagem, Jesus mostra a absoluta insuficiência do culto
sem ética, e, além disso, claramente dá prioridade à ética sobre atividades cúlticas
formais. M as, em tudo isso, Jesus está consciente de que está em harmonia com
a lei de Deus, a qual contém tanto o culto quanto a ética e, em nenhum lugar, se
opõe ao culto como tal. Ele mantém o sentido da observância de certas formas
religiosas em oposição a todos os tipos de exageros legalistas e mecânicos (p. ex.,
da lei do sábado). Ainda assim, nesse caso, também, ele recorre ao sentido claro
da lei que prescreve tais formas religiosas. Particularmente importante é o tema
messiânico discernível nas palavras a respeito do noivo. Nesse caso, certa prática
religiosa (o jejum) é considerada ultrapassada, embora temporariamente, por
causa do cumprimento efetuado pela vinda de Jesus. Portanto, o cumprimento
O EVANGELHO DO REINO - O s MANDAMENTOS 227

da lei assume o significado de “tornar supérfluo”. Esse tema só ocorre uma vez
nas palavras de Jesus (cf., entretanto, M t 27.51!) e é o efeito não de um princípio
ético, mas de um princípio histórico-redentor. Ética e culto são colocados em
seus devidos lugares de acordo com sua própria natureza, conforme a revelação
da vontade divina. E, de acordo com o todo da revelação divina, são colocados à
luz da vinda da salvação e do cumprimento do tempo que começou com a vinda
de Cristo.
Em terceiro lugar, devemos rejeitar a tese de que Jesus colocou o manda­
mento do amor radical contra a esfera jurídica da legislação civil de Israel. Esse
entendimento, também, se baseia num esquema que não se aplica à pregação
ética de Jesus. Pode ser verdade que Jesus não ressalta as exigências de Deus por
meio de mandamentos civis, políticos e sociais e que ele mostra que aqueles que
determinam sua atitude ética pelo que é possível e permissível pela legislação
civil (lei de Talião, divórcio) se esquivam da exigência radical de Deus para sua
vida. M as isso não significa, de maneira alguma, que Jesus toma partido contra
essa ordem civil jurídica como tal nem que a razão central de sua pregação ética
deve ser encontrada no contraste entre o mandamento (do amor) e as ordenanças
(resultantes da criação e necessárias por causa do pecado).46 É verdade que, ao
se referir à vontade original de Deus (“não foi assim desde o princípio”), Jesus
restaurou a ordem da criação, a qual não pressupõe o pecado.47 Porém, não é
verdade que Jesus “revogou” a lei, enquanto a mesma pressupõe o pecado do ho­
mem.48Jesus não rejeita essas ordenanças como tais, pois elas foram dadas para
restringir o pecado e não para permiti-lo (Umes non fomes peccati, Agostinho),
mas ele rejeita essa aplicação e apela àqueles que tentam escapar da exigência
divina real e original.
Todas essas perspectivas consideram o cumprimento da lei por Jesus como
a anulação da mesma ou de parte do seu conteúdo à custa de outra parte da lei.
Em oposição a eles, não se pode declarar que a atitude de Jesus para com a lei é
invariavelmente e exclusivamente positiva. O sentido disso é visto claramente na
antítese do Sermão do Monte.
Nesse caso, Jesus explica o significado da lei por meio de vários exemplos de
sua aplicação. Esses exemplos não devem ser vistos como uma série de “novos”
mandamentos independentes nem devem ser divorciados da lei que já foi dada,
mas devem ser considerados dentro do escopo da lei como um todo. Jesus não
dá uma nova descrição ou um novo sumário das coisas éticas, mas sim um en­
tendimento da profundidade da divina lei revelada. Esse é o motivo pelo qual
a validade de todos esses mandamentos em separado não é exclusiva. Eles não
representam a totalidade da vontade de Deus nem abrangem a complexidade da
lei e da vida. Não seria difícil contrastar certos pronunciamentos de Jesus (nos
quais ele cumpre a lei) com outras palavras ou ações nas quais ele faz a mesma
228 A v in d a d o R e in o

coisa qualitativamente, isto é, cumprindo a lei, mas agindo e falando de maneira


diferente. Jesus proíbe juramentos porque eles procedem do mal, mas ele mesmo
faz um juramento (M t 26.64). Ele diz que aquele que chamar seu irmão de “tolo”
corre o risco do fogo do inferno, mas ele mesmo não somente chama os fariseus
e escribas de tolos (e cegos), mas, ao repreendê-los por sua hipocrisia, vai ainda
mais além em suas descrições (Mt 23.19 tpassim). Do mesmo modo, Jesus ordena
aos seus discípulos que deem a outra face a “qualquer que te ferir na face direita”,
mas ele mesmo protesta (de acordo com Jo 18.23) quando alguém o esbofeteia
durante o julgamento diante de Caifás.Tudo isso reflete claramente o caráter de
seus mandamentos como aplicações concretas da lei que devem ser compreendidas
em conexão com a lei revelada de Deus e interpretadas à sua luz.
Esse é o motivo pelo qual é incorreto dizer que, apesar de sua apreciação
da lei e do seu cumprimento dela, Jesus adotou uma postura crítica em relação
à lei que lembrava o criticismo dos profetas do Antigo Testamento. Essa crítica
pertencia à revelação como tal49 porque era o resultado de uma nova entrada do
Deus vivo na realidade da existência. Com o propósito de dar lugar às exigências
reais divinas, recorre-se às passagens nas quais Jesus supostamente revogou o
dever de obedecer a certos mandamentos. Porém, isso não é uma crítica à lei e
sim à aplicação dela. Jesus exigiu misericórdia e não sacrifício. Ele contrasta a
necessidade de se praticar a justiça, a misericórdia e a fé com a observância es­
crupulosa e exagerada dos deveres da lei, tais como o pagamento de dízimos, etc.
Nada disso tem o objetivo de ser uma crítica à lei nem de colocar de lado certos
mandamentos, nem mesmo de abrir espaço para uma nova fala de Deus. Jesus
simplesmente introduz essa exigência explicitamente como “os preceitos mais
importantes” da lei (M t 23.23). Além disso, no Sermão do Monte, ele resume
todos os mandamentos num único, “Tudo quanto, pois, quereis que os homens
vos façam, assim fazei-o vós também a eles” (M t 7.12). Com isso, ele embasa
o que havia dito anteriormente, por exemplo, sobre abandonar a lei de Talião
(regulada pela lei!). Porém, nesse caso, também, ele não se ergue acima da lei,
nem anula a lei de Talião como princípio de jurisdição. Ele quer apenas cumprir
a lei, “porque esta é a Lei e os Profetas”. Não há, aqui, qualquer crítica à lei nem
qualquer negação da mesma, nem mesmo quando Jesus rejeita um apelo à letra
da lei, pois essa rejeição é repetidamente compensada com um apelo renovado à
lei da parte de Jesus. Somente num único ponto - apesar de ser um ponto muito
importante - a lei é suspensa, a saber, quando o seu conteúdo não é mais com­
patível com o significado da administração da salvação inaugurada pela vinda
de Jesus. Isso não se deve à “mobilidade” da revelação, mas ao seu progresso na
história da salvação, na qual a validade da lei do Antigo Testamento é colocada
na condição de seu cumprimento.50 No entanto, isso tudo não tem relação alguma
com a atualidade da revelação ou de certo grau de variação, que seria característico
O EVANGELHO DO REINO - O s MANDAMENTOS 229

do falar do Deus vivo, mas sobre a explicação da lei em conformidade com o


progresso da obra salvífica de Deus. Nesse caso, a expressão “crítica da lei” não
vai direto ao ponto. Entre Jesus e os fariseus, há somente a diferença quanto ao
sentido verificável da lei dada. Portanto, a pregação ética de Jesus é específica
somente com respeito à sua interpretação específica da lei.51
Isso eqüivale a dizer que a pregação ética de Jesus não pode ser caracterizada
como um deuteronomium, uma repetição da lei. Nos mandamentos de Jesus há
uma concretização da exigência da lei que não tem paralelo no Antigo Testa­
mento, especialmente nas partes em que Jesus rejeita a interpretação inadequada
dos fariseus e dos escribas e dá o verdadeiro sentido por meio de todos os tipos
de exemplos. Moisés fala de assassinato, Jesus fala de insultos; Moisés fala de
adultério, Jesus fala de desejos impuros; Moisés fala do amor ao próximo, Jesus
fala do amor ao inimigo; etc. Se o propósito das aplicações da lei feitas por Jesus
for examinado mais detalhadamente, ficará claro que é extremamente difícil
expressar, numa única fórmula, uma explicação adicional desse cumprimento
da lei. Num caso, ele se opõe à interpretação da lei que se preocupa exclusiva­
mente com atos pecaminosos visíveis, referindo-se à disposição do coração que
também deve estar sujeito à lei (M t 5.27-28). Em outra ocasião, Jesus mostra
que o pecado mencionado num mandamento específico da lei não somente
deve ser evitado, como também somos responsáveis pela “parte positiva” dessa
lei, isto é, por fazer o que é justo (M t 5.23-26). Mais de uma vez Jesus recorre
a uma norma de lei diferente daquela que “os antigos” e os escribas ensinaram
ao povo. Em oposição à aplicação da lei de Talião, provida pela lei e confiada
às autoridades, Jesus enfatiza as conseqüências do mandamento do amor, que
também é ensinado pela lei (M t 5.38ss). Igualmente, ele combate o casuísmo com
base numa palavra particular das Escrituras com respeito a jurar, insistindo na
necessidade de sempre se falar a verdade, o que torna o juramento desnecessário
(M t 5.33ss). As provisões feitas para o divórcio na lei mosaica são confrontadas
com a exigência de fidelidade conjugal absoluta (M t 5.31ss; 19.3ss). A exigência
para não negligenciar os “preceitos mais importantes” da lei é colocada contra
a observância escrupulosa de preceitos ritualistas e cúlticos (M t 23.23 ,passini).
Algumas vezes, o cumprimento da lei formulado por Jesus em seus mandamen­
tos consiste num aprofundamento, um refinamento, uma redução qualitativa
de um pecado em particular à sua raiz e origem. Outras vezes, essa formulação
contém a rejeição de uma concepção atomística do pecado e da justiça e coloca o
requerimento de Deus à luz do sentido original e da totalidade dos mandamentos
divinos. Jesus sempre afirma manter e cumprir a lei. E, a cada vez, transparece
que a interpretação da lei, isto é, o conhecimento da vontade divina a partir da lei,
deve satisfazer requerimentos mais elevados do que aqueles estabelecidos pela
interpretação corrente da lei pelos mestres judeus. A questão não é a lei em si, mas
230 A v in d a d o R e in o

a sua interpretação. E a única questão que resta é em que consiste a interpretação


requerida e praticada por Jesus.
Van Ruler, aqui, usa a fórmula notável de que o caráter especial da inter­
pretação que Jesus faz da lei é o fato de que o homem, por essa interpretação, é
colocado na “realidade exposta”. Com isso, ele quer dizer que Cristo não apenas
nos liga ao nosso próximo, um ponto que falta em cada sistema ético, mesmo que
tenha sido construído a partir da lei, mas, acima de tudo, que o homem, sempre e
em qualquer lugar, se encontra diante de Deus. Não se pode expressar em palavras o
que isso implica e o que requer do homem em especial. Isso não pode nem mesmo
ser expresso pela lei. Deus não pode ser “compreendido”. Ainda, segundo ele, o
encontro com Deus e com sua exigência não acontece na lei, mas na penetração
de Deus na existência humana,52 apesar de a forma da lei ser indispensável como
uma modalidade particular da vinda de Deus para a existência humana.
Essa concepção contém uma importante verdade, a de que a vontade divina
não foi colocada em palavras para cada situação particular e concreta e que Deus
considera o homem responsável por suas decisões não somente com respeito afazer,
mas também com respeito a conhecer a sua vontade. A lei divina não é um livro
didático com seções concernentes a cada situação da vida, nem uma doutrina de
casos que precisa somente ser consultada para que se conheça a vontade de Deus.
Ao contrário, a lei requer discernimento espiritual do homem com respeito ao co­
nhecimento da vontade de Deus e quer guiá-lo nesse conhecimento. Isso não significa
que não exista a questão da lei como uma instância permanente e universalmente
válida ou somente como mandamentos divinos de caráter concreto. A lei divina
não apenas nos dá umas poucas aplicações da vontade de Deus, uns poucos exem­
plos ou demonstrações reais, mas também, sem dúvida, linhas básicas de conduta,
sumários, princípios gerais. Nesse sentido, por exemplo, os Dez Mandamentos
têm um caráter diferente dos mandamentos do Sermão do Monte, os quais, pelo
menos em parte, têm esse caráter de aplicação prática (cf. acima). Isso não deprecia
o fato de que, com respeito à lei do Antigo Testamento, também, o conhecimento
da vontade divina é uma questão de julgamento espiritual e que, na antítese entre
Jesus e os fariseus, esse julgamento, repetidas vezes, é a verdadeira questão.
Embora, de modo consistente, Jesus rejeite o apelo a pronunciamentos
particulares da lei, se considerarmos que essa rejeição se refere ao fato de que a
divina revelação da lei foi “dada” e é “estável”, estaremos criando problemas que
são estranhos ao evangelho, pois Jesus não critica o farisaísmo porque o mesmo
pensava poder “entender” Deus e a sua vontade revelada na lei e nem porque
inferia conseqüências a partir de princípios particulares ou de preceitos gerais da
lei. Jesus o condena porque fez essas coisas de tal maneira que o sentido verda­
deiro e profundo da lei foi esvaziado de sua força. Não se pode indicar uma única
passagem no evangelho na qual Jesus condene a concentração do judaísmo na
O EVANGELHO DO REINO - O s MANDAMENTOS 231

lei como um fechamento não admissível da “realidade exposta” de Deus. Muito


pelo contrário, o ensino de Jesus é dominado pelo conceito da realidade viva da
vontade de Deus revelada em sua lei. Jesus não apela a partir da lei para a “rea­
lidade exposta” de Deus, mas ressalta essa realidade na lei. A crítica recorrente
que ele faz não se dirige ao compromisso com a lei, mas à recusa dos fariseus a
realmente se comprometerem com a lei (M t 15.6; 9.13 passini). Sem dúvida, a
causa mais básica da rejeição do judaísmo por parte de Jesus era o fato de que o
judaísmo havia separado a lei do Deus vivo e a tinha transformado meramente
numa questão de erudição formal. Em contraste com isso, Jesus leva seus dis­
cípulos de volta ao próprio Deus para o conhecimento da vontade divina. Eles
devem mostrar que são filhos do Pai celestial. Mas esse encontro acontece na lei,
concebida, entretanto, como a tradução e a expressão da vontade de Deus, como
a mensagem pessoal do Deus vivo e santo. A característica específica do cum­
primento da lei por parte de Jesus não é que ele permitia que o homem olhasse
para além dos limites dessa lei, mas que, dentro desses limites, ele considerava o
homem responsável por conhecer a vontade de Deus.
Caso se pergunte o que é característico e especial no cumprimento da lei por
Jesus, a resposta certamente não será a importância limitada da lei como fonte
de conhecimento a respeito da vontade de Deus. Ao contrário, será a vindicação
que Jesus faz da natureza abrangente e totalitária das exigências da lei. Isso, e
nada mais, é o significado da radicalização das exigências da lei nas aplicações
feitas por Jesus em seus mandamentos. Esse é, também, o ponto de partida da
antítese, “se a vossa justiça não exceder em muito a dos escribas e fariseus”. Esse
“exceder” requerido por Jesus não tem um sentido quantitativo (a realidade da
vida nos confronta com mais situações do que aquelas que recebem provisão da
lei), mas sim qualitativo (a exigência da lei é mais profunda e tem um alcance
maior do que sugere a interpretação elaborada da lei feita pelos escribas). Esse
cumprimento se move na dimensão da profundidade, não da largura.
Essa indicação do caráter totalitarista da lei de Deus, portanto, é a tendência
comum de todos os exemplos da interpretação da lei feita por Jesus. Esse exemplo é
sempre como uma seção vertical da lei, revelando sua exigência abrangente. Por
isso, Jesus traça a origem do assassinato ao ódio e às brigas e traça a origem do
adultério aos desejos impuros; por isso, sua formulação radical do mandamento
do amor, tanto intensamente quanto extensamente; por isso, a exigência imposta
por ele ao jovem rico (colocada de modo geral em Lc 12.33) de vender tudo o
que tinha e de dar aos pobres (Mt 19.21). Essa é a “perfeição” requerida por Jesus,
ou seja, não reter coisa alguma, a rendição incondicional à vontade de Deus com
tudo que a pessoa é e com tudo o que ela tem.
Esse, e nada mais, é o significado da redução do conteúdo da lei ao dever de
amar a Deus acima de todas as coisas e aopróximo como a si mesmo. Gutbrod observa
232 A v in d a d o R e in o

corretamente que esse resumo não deve ser explicado a partir da intenção de Jesus
de obter clareza sistemática quanto aos muitos tipos de mandamentos da lei e
nem que esse resumo se origina de “tendências construtivas divertidas”. Além
do mais, esse resumo não tende a “enfraquecer a lei divina e torná-la inofensiva”,
pois, muito pelo contrário, ele serve para fazer com que a lei seja radical.53 E esse
o significado do conceito de “amar” e “amor” no evangelho e das palavras “de
todo o teu coração, de toda a tua alma, de todo o teu entendimento”, incluindo,
também, “o teu próximo como a ti mesmo”.
Quanto ao primeiro conceito, o do amor, nenhuma passagem traz seu signi­
ficado tão claramente como o dito de Mateus 6.24 (cf. Lc 16.13): “Ninguém pode
servir a dois senhores; porque ou há de aborrecer-se de um e amar ao outro, ou
se devotará a um e desprezará ao outro. Não podeis servir a Deus e às riquezas”.
E também a passagem de Mateus 10.37 (cf. Lc 14.26): “Quem ama seu pai ou
sua mãe mais do que a mim não é digno de mim; quem ama seu filho ou sua
filha mais do que a mim não é digno de mim”.
Desses pronunciamentos de Jesus, transparece que o “amor” que ele requer
no evangelho é baseado numa escolha radical. Propriamente dito, é outra palavra
para “conversão”. Consiste na total rendição da vontade, em estar à disposição do
Senhor como um escravo. Essa é a razão pela qual a batalha à qual esse amor é
convocado é uma luta contra a “competição”, contra o abrir mão dos princípios,
contra o que é um “obstáculo” ao serviço que o amor presta, contra tudo o mais
que impede o amor de realizar seu serviço absoluto. Esse é o sentido da parábola
sobre a luz e as trevas, que, em Mateus 6, precede o pronunciamento sobre o amor:
“São os olhos a lâmpada do corpo. Se os teus olhos forem bons, todo o teu corpo
será luminoso; se, porém, os teus olhos forem maus, todo o teu corpo estará em
trevas. Portanto, caso a luz que em ti há sejam trevas, que grandes trevas serão!”
(Mt 6.22-23; cf. Lc 11.34-36).
Essa passagem trata do contraste entre “bom” e “mau” ihaplous-poneros), que,
nesse contexto, significa “funcionar plenamente ou não funcionar”. Do mesmo
modo que o olho não pode servir ao homem (como um órgão iluminador que
aponta o caminho) se o órgão da visão não puder funcionar livremente, assim
também é um homem que está dividido em sua mente, cujo coração busca duas
coisas incompatíveis (v. 21). No serviço a Deus, tudo depende de integridade,
perfeição e prontidão para servir sem qualquer reserva. É esse o amor que Jesus
requer, o amor que é, também, o conteúdo e resumo da lei. Daí o acréscimo “de
todo o teu coração, etc.”, que expressa, de maneira positiva, o que foi dito anti-
teticamente nos pronunciamentos mencionados acima.
Com respeito ao mandamento de amar ao próximo, as coisas não são di­
ferentes. Como transparece de várias maneiras, ele consiste numa entrega total
à vontade de Deus. E algo diferente de simpatia, a qual é um efeito produzido
O EVANGELHO DO R e INO - O s MANDAMENTOS 233

pela qualidade de seu objeto, pois o amor que Jesus requer é amor ao próximo,
ou seja, não é um tipo de amor genérico pela humanidade, mas um amor que
não escolhe a quem vai amar, que está comprometido principalmente e sem
reservas com vontade de Deus e ã direção dele quanto ao seu objeto, pois o pró­
ximo é qualquer pessoa que Deus coloca em nosso caminho, como está descrito
de uma maneira tão bela e sem paralelo na parábola do bom samaritano (Lc
10.29-37). Essa concepção culmina no mandamento de Jesus para amarmos
nossos inimigos, orarmos pelos que nos perseguem, fazermos o bem aos que
nos odeiam e abençoarmos os que nos amaldiçoam (M t 5.43-48; Lc 6.27-28,
32-36). Esse mandamento tem a ver com pessoas em cujas atitudes não há nada
que seja atraente, que suprimem qualquer simpatia que alguém pudesse ter para
com elas. M as é dessa maneira que se torna claro que tipo de amor, de acordo
com as palavras de Jesus, é requerido pela lei divina. Esse amor só é possível se
o coração tiver sido convertido a Deus. E a obediência que fará qualquer coisa
que Deus exigir de seus filhos e que pressupõe a entrega total e desimpedida
do coração e da vontade. E, finalmente, o mesmo é indicado pelas palavras, "...
como a ti mesmo”. “Amar a si mesmo”, também, não é uma motivação (como se
fosse possível amar ao próximo a partir do “dever” de amar a si mesmo) e nem
uma restrição (amar ao próximo dentro dos limites do que se deve a si mesmo),
mas indica que, num certo sentido, o amor requerido é ilimitado. Significa que
devem ser levados em consideração os interesses do próximo com a mesma es­
pontaneidade impensada com a qual se busca a própria felicidade e se defende
os próprios interesses. Ou, como está na regra áurea de Mateus 7.12ss (cf. Lc
6.31): “Tudo quanto, pois, quereis que os homens vos façam, assim fazei-o vós
também a eles”.
Não há outra maneira mais forte do que essa para expressar que o amor ao
próximo deve proceder de um coração “desimpedido” e indiviso e que esse amor
se origina e se torna possível apenas a partir de uma prontidão de coração para
servir e de nossa sujeição a Deus.
Esse amor a Deus e ao nosso próximo é o conteúdo grandioso da lei. Por
esse motivo, os mandamentos de Jesus, que expressam a vontade divina, são de
uma natureza tão radical. Para resumir numa frase, podemos, portanto, dizer que
o cumprimento da lei por Jesus consiste no fato de que ele mostrou, de uma maneira
incomparável, o caráter do amor e da obediência exigidos pela lei. Nessa declaração,
o amor é concebido como uma sujeição absoluta e inclusiva.
D o que foi dito acima, segue-se que o propósito dos mandamentos de Jesus,
bem como o “cumprimento da lei” demonstrado por ele, claramente se referem
ao que estí por trás do aspecto ético específico e, realmente, se concentram na raiz
religiosa da obediência à vontade divina. Esse é o importante elemento de verdade
na concepção (sustentada por Bultmann e outros) de que a verdadeira questão
234 A v in d a d o R e in o

nos mandamentos, bem como em outras partes da pregação de Jesus, é sempre


a questão da decisão (Entscheidung). Não há dúvida de que os mandamentos de
Jesus são mais do que exortações para que as pessoas tomem uma decisão. São
mandamentos genuínos que exigem obediência e também incluem a vida além da
decisão, mas eles também deixam claro que, sem essa decisão, não há possibilidade
de obediência e de cumprimento da lei. Esse é o sentido do seu radicalismo.
Esse é o motivo pelo qual a grande antítese entre Jesus e os fariseus a respeito
do cumprimento da lei não pode ser expressa num esquema ético particular, pois
esse cumprimento reside na grande decisão pré-ética, na maneira pela qual um
homem se encontra diante de Deus.
Esse é, também, o significado da repetida qualificação que Jesus faz do
judaísmo oficial como “hipócrita” (M t 6.2,15-16, etc.). Esse termo lança luz no
que estamos discutindo aqui. Não devemos pensar que se trata de uma atitude
vulgar, conscientemente hipócrita, na qual falte qualquer sinceridade subjetiva,
apesar de uma atitude como essa estar implícita na qualificação usada tão fre­
quentemente por Jesus. A discordância indicada por essa palavra está num nível
mais profundo. E a discordância entre o que um homem parece ser na opinião
de outros homens e o que ele é diante de Deus.54 Por um lado, ele observa, es­
crupulosamente, todos os tipos de prescrições e mandamentos, mas, por outro,
não se entrega a Deus. A questão real é de natureza religiosa, a qual é descrita no
evangelho das mais diferentes maneiras, como, por exemplo, em Mateus 15.8-9:
“Este povo honra-me com os lábios, mas o seu coração está longe de mim. E em
vão me adoram, ensinando doutrinas que são preceitos de homens”.
Portanto, também desse ponto de vista, transparece que o cumprimento da
lei é uma questão do coração. Isso não significa que nosso coração seja elevado à
condição de fonte de nosso conhecimento da vontade divina, mas implica que a
única possibilidade de cumprirmos a lei depende de nossa conversão a Deus e que
todo zelo pela lei sem tal conversão (i.e., enquanto mantivermos nosso coração
distante de Deus) é hipocrisia. Em outro lugar, Jesus fala do “fermento dos fariseus
e dos escribas”, ou seja, do princípio da “doutrina” deles que permeava todas as
coisas (M t 16.6,12). Apesar de os fariseus serem os defensores da lei de Moisés
e devessem ser reconhecidos como tais, o espírito que governava o ensino deles
era pernicioso, pois era o espírito de hipocrisia no sentido mencionado acima. Foi
essa grande antítese religiosa com relação ao cumprimento da lei que dominou a
relação entre Jesus e os escribas.
E, finalmente, esse amor não é somente a raiz e o pré-requisito parafazermos
a vontade do Pai, mas também do verdadeiro conhecimento espiritual da vontade
de Deus. Sem essa grande pressuposição do amor, a vontade divina permanece
como um livro fechado, apesar de toda a erudição aplicada em sua compreensão.
Em vista desse fato, Jesus diz, em Lucas 11.52, que os intérpretes da lei tomaram “a
O EVANGELHO DO R e INO - O s MANDAMENTOS 235

chave da ciência”, isto é, o pré-requisito para o correto entendimento da vontade


de Deus.55 No uso lingüístico judaico56, a palavra “ciência” (da ai), sem dúvida,
refere-se ao conhecimento da vontade de Deus. Os intérpretes da lei levaram
embora a chave, ou seja, eles a ocultaram. No contexto, essa chave dificilmente
significa outra coisa que não a disposição correta do coração, sujeição, amor. Se
esse amor estiver ausente e não for mais ensinado ao povo como a coisa principal
no cumprimento da lei, o conhecimento será obscurecido, também, e a entrada
no reino dos céus nesse ponto será completamente barrada.
Depois de discutir o cumprimento da lei designado por Jesus como parte do
propósito da sua vinda, e, portanto, de sua missão messiânica, somos confrontados
com a questão do que constituía o caráter novo e especificamente messiânico de tal
cumprimento da lei.
Um judeu observou que, apesar de a doutrina de Jesus ser fundamental­
mente derivada do judaísmo e poder ser caracterizada como ética judaica, ela
havia sido levada a uma consistência tão extrema que não era mais judaica,
mas Unjudentum (i.e., não judaica). Esse era o motivo pelo qual os judeus não
podiam aceitar esse judaísmo espiritual, que havia se tornado no seu próprio
oposto. Assim, somos confrontados, nesse caso, com o fenômeno notável de que
o judaísmo deu à luz o cristianismo em sua forma original (como a doutrina é
pregada por Jesus), mas renegou sua própria filha quando esta tentou sufocar
sua mãe num abraço mortal.57
A parte do problema histórico da rejeição de Jesus pelos judeus, esse julga­
mento contém a verdade de que os mandamentos de Jesus não têm qualquer outro
objetivo que não seja o cumprimento da lei revelada por Deus a Israel. Por outro
lado, esses mandamentos dão uma forma concreta a essas exigências que serão
procuradas em vão no Antigo Testamento e na expressão e interpretação judaicas da
lei do Senhor. Dizer que Jesus transcende o Antigo Testamento seria dar uma falsa
expressão a essa verdade. Quando, em Deuteronômio 6.5, é dito que Israel deveria
“amar o Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma e de toda a tua
força” e, em Levítico 19.18, “Não te vingarás, nem guardarás ira contra os filhos
do teu povo; mas amarás o teu próximo como a ti mesmo. Eu sou o Senhor”, não
se pode dizer que Jesus, praticamente, deixa o Antigo Testamento para trás, pois
é desses pronunciamentos gerais que ele tira aplicações concretas e práticas para a
vida. Tudo o que pode ser dito é o fato de que ele faz isso e o faz de uma maneira
tão centrale contínua que seus mandamentos são caracterizados por essa ação, cuja
formulação, entretanto, não tem qualquer paralelo no Antigo Testamento.
Isso implica mais em instrução do que em elucidação. Aqui, devemos nos
lembrar do fato de que a salvação do reino inclui a renovação do coração e o
cumprimento da nova aliança, na qual Deus escreverá nos corações de seu povo
tudo o que ele proclamou como a sua lei.
236 A v in d a d o R e in o

É à essa luz, portanto, que devemos ver a diferença entre o Antigo Testa­
mento e a pregação de Jesus com respeito ao lugar e à formulação do mandamento
do amor. A graça de Deus revelada em Cristo também traz em si a exigência do
amor à sua mais elevada conseqüência. Os mandamentos de Jesus são a contra-
parte da salvação pregada pelo evangelho. Isso somente prova que essa redenção
não substituirá a lei, mas traz a lei revelada exatamente ao seu lugar apropriado,
a saber, ao coração daqueles que aceitaram Jesus (ver Jr 31.33).
Aqui aparece o pleno sentido messiânico do amor requerido por Jesus, bem
como de todos os seus mandamentos. Ele reside tanto na esfera noética quanto
na existencial; revela não só a lei, mas também o coração. Ele se refere tanto à
letra quanto ao Espírito e é, ao mesmo tempo, um requerimento e um dom. Eles
se determinam mutuamente. No cumprimento da lei como uma interpretação,
o coração é revelado como o lugar de onde procedem as fontes da vida, como o
centro no qual as exigências da lei se concentram. De maneira recíproca, a profun­
didade da lei é revelada apenas onde os corações dos filhos de Deus foram abertos
pela graça de Cristo, pois somente o dom do amor concede o conhecimento da
lei. Assim, o cumprimento da lei é tanto palavra quanto ação. Isso é verdadeiro
também quanto ao todo da pregação de Jesus. Em sua boca está o sentido mais
elevado e mais profundo da pregação do evangelho do reino.

34. A aplicação da exigência do amor

No parágrafo anterior, procuramos entender o objetivo geral dos man­


damentos de Jesus como cumprimento da lei. Com isso tratamos os pontos
principais, mas ainda não finalizamos o debate a respeito dos mandamentos de
Jesus. Vimos que o ensino de Jesus da lei não é uma exposição teórica geral; esse
ensino consiste em aplicações incidentais muito concretas da lei, o que significa
dizer indicações do caminho pelo qual podemos considerar a natureza e o escopo
de sua validade à luz do evangelho.
Esse ponto é muito importante porque esses mandamentos revelam o caráter
radical da exigência do amor de maneira incomparável e aqui surge o problema
quanto à maneira pela qual ele pode ser praticado na sociedade humana. E essa
pergunta que sempre tem evocado e mantido viva a discussão a respeito dos
mandamentos de Jesus, em geral, e acerca do Sermão do Monte, em particular,
e que tem repetidamente sido indicada como oproblema da exequibilidade desses
mandamentos. E verdade, que em nossa exposição, essa categoria (a da exequibili­
dade) é de pouco valor. Não estamos preocupados, aqui, com a questão subjetiva
da possibilidade, mas com a necessidade da execução dos mandamentos de Jesus
postulada no evangelho. Entretanto, qualquer pessoa que quiser obedecer a essa
O EVANGELHO DO REINO - O s MANDAMENTOS 237

exigência em fé será induzida a tentar formar uma ideia tão exata quanto possível
io significado concreto desses mandamentos. Isso tem a ver, especialmente,
com os mandamentos radicais do Sermão do Monte, tais como a exigência por
clemência para com o adversário (M t 5.25ss; cf. Lc 12.57-59), a proibição de se
fazer juramentos (vs. 33-37), a retribuição e a exigência concomitante da cha­
mada “postura não defensiva”, de emprestar sem pedir de volta (vs. 38-42, cf. Lc
6.29-30) e de amar o nosso inimigo (M t 5.43ss, cf. Lc 6.27ss).
As mesmas questões ocorrem novamente no caso da exigência que Jesus fez
ao jovem rico de que ele vendesse tudo o que possuía e desse aos pobres (M t 19,
etc.), uma exigência apresentada de modo genérico em Lucas 12.33: “Vendei o
que tendes e dai esmolas”. Esses últimos mandamentos se referem especialmente
às propriedades e estão ligados com outros pronunciamentos de Jesus a respeito
das riquezas e dos ricos, tais como o dito “é mais fácil passar um camelo pelo
fundo de uma agulha do que entrar um rico no reino de Deus” (M t 19.24ss), a
advertência contra acumular tesouros na terra (Mt 6.19ss), a parábola do rico
louco (Lc 12.16-21), as palavras sobre servir a Deus e às riquezas (M t 6.24, cf. Lc
16.13) e a parábola do homem rico e Lázaro (Lc 16.19-31,passini). O Evangelho
de Lucas, em especial, está cheio de pronunciamentos que, aparentemente, são
contra as riquezas e propriedades. Geralmente se recorre, em defesa dessa inter­
pretação, à formulação das bem-aventuranças em Lucas e a fórmula recorrente
“ai de vós...”, por exemplo, “ai de vós, ricos!”, “ai de vós que estais fartos!”, etc. Em
conexão com isso, surge a questão sobre se Jesus havia proibido seus discípulos
de terem posses ou se, pelo menos, insistiu que cada um deles tivesse a mesma
quantidade de posses.
Não podemos discutir todas as questões que podem ser levantadas sobre esse
assunto aqui. Também não podemos entrar em detalhes de todas as passagens
citadas, mas gostaríamos de destacar os seguintes fatos.
1. Em nossa opinião, a ideia de que os mandamentos de Jesus, em geral, têm
uma esfera limitada de validade deve ser rejeitada. De acordo com esse conceito,
esses mandamentos, supostamente, aplicavam-se somente à vida dos discípulos de
Jesus, os quais haviam sido escolhidos por ele para pregar o evangelho, ou à vida
daqueles que desejavam entrar no reino dos céus por um caminho mais seguro
e mais perfeito (os mandamentos de Jesus, nesse caso, devem ser concebidos
somente como “conselho evangélico”). Outros procuram a esfera da validade dos
mandamentos de Jesus num setor particular da vida humana (o setor “pessoal”,
em oposição à esfera de um “ofício”) ou nas relações mútuas entre os fiéis na
comunhão.
Em nossa opinião, essa restrição da esfera de validade desses mandamentos
não tem qualquer apoio no evangelho, o qual, consistentemente, elimina todas
as limitações da “esfera” de validade da lei de Deus. O evangelho, enfaticamente,
238 A v in d a d o R e in o

nos adverte contra qualquer fuga “geográfica” da exigência da lei divina, tanto
quanto nos adverte contra a hipocrisia do “fermento dos fariseus”, pois não apenas
poucos, mas todos os homens devem passar pelo caminho apertado e através da
porta estreita. Na justiça do reino dos céus se inclui não só a responsabilidade
pessoal, como também a responsabilidade de um ofício (cf. Lc 3.10-14; 19.8).
A exigência do amor consistente (“perfeito”) dos mandamentos de Jesus (Mt
5.43-48) inclui não somente as relações dentro da igreja e entre as pessoas da
mesma mentalidade, mas vai muito além, incluindo até mesmo sofrer, por amor,
nas mãos dos inimigos, perseguidores, etc.
2. Por outro lado, é claro que interpretar as aplicações concretas da lei di­
vina feitas por Jesus como uma “nova” lei é criar uma impressão incorreta. Essas
aplicações não são regras gerais a serem seguidas por todos em todas as circuns­
tâncias. Tal concepção estaria em conflito aberto com o quadro geral da vida de
Jesus e de seus discípulos fornecido pelo evangelho58 e se constituiria, igualmente,
numa apresentação imprópria do caráter desses mandamentos. Muitos deles (e
precisamente aqueles que sempre levantam a questão de sua “exequibilidade”) são
exemplos nos quais princípios específicos da lei devem ser aplicados se essa lei for
levada realmente a sério. Isso se aplica especialmente àqueles mandamentos tão
debatidos de Mateus 5.21-48. Eles têm um valor ilustrativo. A validade deles,
obviamente, é a mesma da lei ou do princípio da lei do qual são a aplicação. O
mandamento do amor, ilustrado, por exemplo, pelo mandamento da “ação não
defensiva” do amor pelos inimigos, etc., em si mesmo não significa que sempre
devemos ceder a pressões e exigências. Mas há outros mandamentos e princípios
que foram incorporados à lei divina. Ao lado da proibição de matar está a exigência
feita às autoridades para que garantam a justiça, se necessário, pela espada. E, ao
lado da exigência pela verdade, a qual torna supérflua qualquer declaração feita
sob juramento de que a pessoa está realmente querendo dizer o que está dizendo
e que fará o que está prometendo, está o juramento sagrado originado não na
falta de fé na sociedade, mas na confissão por parte do que jura de que ele vive
na presença de Deus. Essa é a complexidade da lei de Deus revelada, a qual leva
em conta a complexidade da vida humana e o poder do pecado. A ideia de que,
em sua aplicação da lei, Jesus negou ou aniquilou essa complexidade multiforme
e reduziu a justiça, como um todo, a umas poucas regras radicais de vida, está,
obviamente, em conflito com o caráter explícito desses mandamentos. A adver­
tência de Jesus não é dirigida contra essa complexidade e o conteúdo complicado
da vontade divina revelada, mas a qualquer apelo “hipócrita” a eles.
3. Em tudo isso, deve-se levar em conta a forma peculiar dos ditos de Jesus,
algo que faz uma exigência especial em nossa exegese. Suas palavras se carac­
terizam por certa dose de paradoxia e partidarismo que lançam uma forte luz
em determinados aspectos da verdade sem mostrar possíveis exceções à regra ou
O EVANGELHO DO REINO - O s MANDAMENTOS 239

outros aspectos dessa mesma verdade. Esse fato pode ser claramente demonstrado
dentro do escopo dos mandamentos de Jesus. Em Mateus 5.16, ele exige que
nossas boas obras sejam “vistas” pelos homens. Em Mateus 6.1, ele adverte seus
discípulos contra exercer a sua justiça “diante dos homens, com o fim de serdes
vistos por eles”. Em Mateus 7.1, Jesus diz: “Não julgueis, para que não sejais
julgados”. Em Mateus 7.6, ele proíbe seus discípulos de darem “aos cães o que é
santo” e de lançarem “ante os porcos as suas pérolas”. Essa proibição requer uma
distinção e um julgamento muito aguçado da parte dos discípulos com relação aos
demais homens. E óbvio que não se trata, aqui, de um problema de antinomia,
mas de diferentes aspectos da verdade e do que Deus exige. Entretanto, essas
coisas todas não são mencionadas num único dito ou num único contexto. Aqui,
também, vale a regra: “quem tem ouvidos para ouvir, ouça”.
Pode ser, talvez, que essas considerações acabem servindo ao propósito de
uma exegese “hipócrita” dos mandamentos de Jesus. Todavia, sem elas e sem a
consciência do caráter peculiar da sua forma doutrinária, chegaremos apenas a
interpretações absurdas e unilaterais desses mandamentos. Nos mandamentos
radicais, tudo se concentra sempre em uma coisa, o caráter do amor (no sentido
explicado acima) expresso pela justiça requerida pela lei divina. Os obstáculos
arbitrários levantados com a intenção de restringir a profundidade e a extensão
da vontade divina são atingidos com fortes golpes. A palavra de Jesus é como
uma chama de fogo. Seu ensino da lei de Deus é inigualável. Não se pode fazer
qualquer objeção ou declaração de exceção. O que está sendo cumprido é a lei, a
revelação da vontade de Deus. Isso determina a forma fundamental da justiça. E à
essa luz devemos julgar e compreender a validade de qualquer aplicação da lei.
4. Esse ponto acima é, também, a base para uma correta compreensão dos
pronunciamentos de Jesus acerca da posse de propriedades, a renúncia aos direitos,
a ausência de preceitos positivos quanto à organização da vida social e política.
E também a base para a compreensão do que, em geral, é chamado de tendên­
cia revolucionária de Jesus, ou mesmo do caráter “não cultural” da sua “ética”.
Nada disso, também, pode ser separado do Antigo Testamento, da lei divina,
aos quais Jesus recorre repetidas vezes. E, nisso, encontramos uma apreciação
muito positiva da justiça, das ordenanças que existem desde o início ou que foram
instituídas por causa do pecado. Jesus não anula e nem desvaloriza todas essas
coisas. Isso transparece também dos pronunciamentos incidentais no evangelho,
nos quais, por exemplo, Jesus fala do casamento como tendo sido instituído por
Deus, “desde o princípio”, como uma união indissolúvel (M t 19.6-9) ou quan­
do ele nos ordena a dar “a César o que é de César” (M t 22.21). Portanto, cada
concepção legalista radical dos mandamentos do Sermão do Monte, tais quais
as dos menonitas, de várias seitas, de Tolstoi e de outros, que têm a tendência
fundamental de desvalorizar essas ordenanças ou a tendência para o ascetismo,
240 A VINDA DO REINO

está em conflito com a base da doutrina de Jesus, por mais que esse radicalismo
seja apresentado como sendo cristianismo “evangélico” ou como “o cristianismo
ensinado no Sermão do Monte”.
Portanto, a postura de Jesus em relação à vida natural é, fundamentalmente,
positiva, embasada na crença na criação e manutenção do mundo pelo mesmo
Deus que também é o Pai de todos os que entram no reino dos céus. Esse é o
motivo pelo qual lhes é não somente permitido, como também determinado,
que tomem parte na promoção e construção da vida natural enquanto durar a
atual dispensação. Eles devem aceitar os dons da vida natural das mãos de Deus
e o conceito de “bênção” é tão válido no Novo Testamento como era no Antigo.
Numa palavra, viver de acordo com essas “ordenanças”, à luz da vontade revelada
de Deus, pertence tanto à “justiça” como o que é feito fora da vida natural (na
igreja, na vida particular, etc.) Qualquer sacrifício feito por amor em benefício
dessa sociedade natural em obediência à vontade de Deus não pode ser menor
que o sacrifício do que é garantido nessa sociedade com respeito à propriedade,
aos direitos, aos benefícios, etc. Aqui, também, é válida a regra de que o amor,
isto é, a perfeita prontidão para servir, é o cumprimento da lei.
5. No entanto, continua sendo verdadeiro que os mandamentos de Jesus,
mais que os mandamentos do Antigo Testamento, enfatizam a natureza relativa
da vida terrena com todos os seus bens e o perigo de se colocar o coração neles.
Por outro lado, isso se deve ao motivo escatológico do reino. O prospecto
do tesouro nos céus obscurece o glamour da vida na terra. O Novo Testamento
proclama, de modo muito mais claro e enfático do que o Antigo Testamento,
a realidade do reino como a chegada iminente do fim de todas as coisas e liga
a aceitação da vida terrena e temporal a condições muito mais fortes. Não há
qualquer dualismo nisso, como se a expectativa da consumação destituísse, de
sua força e valor, a fé na criação e a tarefa a ser realizada pelos fiéis. M as isso
traz à luz a condição defeituosa da vida terrena, que só pode ser salva pela ação
renovadora de Deus. Só podemos encontrar a vida ao perdê-la para Deus e só
podemos mantê-la se a abandonarmos nesse sentido. A importante realidade do
reino vindouro e o abandono prévio da forma presente das coisas no mundo é
um dos fundamentos da apreciação de Jesus pela vida temporal. Apesar de to­
das as avaliações positivas da atual dispensação, a advertência contra entesourar
aqui neste mundo e recusar-se a ser rico para com Deus está sempre presente
(Lc 12.21).
6 . Todavia, esse não é o ponto de vista predominante. Este último - mesmo
com respeito aos bens terrenos - não será encontrado na escatologia, mas no
motifreligioso, isto é, não na convicção de que haverá um fim para todas as rei­
vindicações que se possa fazer sobre a terra, fim este que está próximo - mas na
crença de que Deus é Senhor da vida e que, portanto, uma vida que não procede
O EVANGELHO DO REINO - O s MANDAMENLOS 241

da sua graça e que não consiste em rendição a ele é uma vida perdida. Esse ponto
é estabelecido de maneira muito clara na parábola do homem rico e de Lázaro
(Lc 16.19-31). Não há menção nela de quaisquer pecados especiais ou impor­
tantes do homem rico. Ainda assim, no inferno, ele levanta os olhos, estando em
tormento. Essa declaração é feita sem qualquer explicação complementar, como
algo inevitável e, por assim dizer, natural. Não se deveu à sua riqueza como tal,
mas ao fato de que toda a sua vida poderia ser descrita com essas palavras: “Havia
certo homem rico que se vestia de púrpura e de linho finíssimo e que, todos os
dias, se regalava esplendidamente”. Em contraste, o pobre não somente é descrito
em sua pobreza, mas também recebe o nome de Lázaro, isto é, “Ajuda de Deus”
ou “Dependente da graça de Deus” ou, ainda, “Aquele que não tem outro refu­
gio senão Deus”. E nessa antítese integralmente religiosa que reside a diferença
entre o rico e Lázaro. A perdição do rico (cuja vida tinha sido buscada em seus
tesouros terrenos) e a salvação de Lázaro (cuja vida tinha como base a ajuda de
Deus) são reveladas à luz das relações além da tumba, onde semelhança e reali­
dade são separadas para sempre. M as quando, em seu tormento, o rico protesta
contra o decreto de Deus (no pedido aparentemente humilde de que seus cinco
irmãos sejam avisados por Lázaro, que, para isso, deveria ser enviado de volta
de entre os mortos), Moisés e osprofetas lhe são citados como a autoridade única
e insuperável que pode levar uma pessoa à conversão. Isso significa que o que
determina o relacionamento correto com Deus e que se constitui no segredo de
uma vida de acordo com os mandamentos não ésomente e inicialmente a perspec­
tiva da chegada iminente do fim de todas as coisas. M as o que determina essas
coisas é a fé em tudo o que Deus revelou e determinou desde o início. Apenas
a preocupação em amar a Deus e ao próximo, requerida pela lei, é que está na
base de todos os pronunciamentos aparentemente negativos de Jesus quanto à
riqueza, às propriedades, à reivindicação dos direitos pessoais, etc., apesar de isso
também mostrar que são exatamente essas riquezas que Jesus considera como
uma ameaça permanente a esse amor.
7. Finalmente, ao inquirir sobre o significado e a validade dessas aplica­
ções concretas da lei, expressas por Jesus de várias maneiras em sua pregação,
descobriremos que o radicalismo de todos esses mandamentos nada mais é que
o radicalismo religioso do amor como sujeição e perfeita disposição para servir.
Portanto, qualquer interpretação dualista deve ser rejeitada e, ao mesmo tempo,
deve ser reconhecido que esse radicalismo não pode, de maneira alguma, ser
mitigado sem que se afete o grande motifteocêntrico da totalidade da pregação a
respeito do reino dos céus. Os mandamentos deJesus indicam o único nível no qual a
lei revelada de Deus, com suas exigências concretas, pode ser entendida e cumprida. Que
esse nível seja tão alto deve-se ao fato de que foi o nível da graça e da redenção
do reino dos céus que se revelou em Cristo.
242 A v in d a d o R e in o

Nesse nível, os mandamentos de Jesus são cheios de significado e obrigató­


rios como aplicações concretas do grande princípio único do amor. Isso significa
também que o amor não é uma lei em si mesmo. O amor é o pré-requisito e a raiz
do cumprimento da lei, mas é dirigido e guiado pela lei divina como expressão
da vontade de Deus e é guiado, também, pelos mandamentos de Jesus como
aplicação dessa lei divina revelada.
Os mandamentos de Jesus, portanto, certamente contêm indicações de como
os filhos do reino devem agir em certas situações concretas. Por mais paradoxal
que sua forma às vezes seja, e por mais indispensável que a luz da lei, como um
todo, seja, para a interpretação dos mesmos, eles, entretanto, nos dão a regra,
não a exceção! Na realidade, eles exigem de nós uma postura prática na qual nos
permitimos ser esbofeteados, emprestamos sem pedir de volta, amamos nossos
inimigos e, até mesmo, sacrificamos tudo o que nos impede de seguir a Jesus. O
fato de que esses mandamentos não são exaustivos e não têm a intenção de levar
a sociedade à desordem não lhes diminui a força e a seriedade. E claro, também,
que mesmo sem ter amor, podemos “distribuir nossos bens entre os pobres” e “en­
tregar nosso próprio corpo para ser queimado” (IC o 13.3). Entretanto, não é a
legalidade fanática que determina o valor do “retorno” de nossos atos, de acordo
com as palavras de Jesus, mas o amor. Ainda assim, o fato de que Jesus colocou
de maneira concreta a expressão do amor não quer dizer que ele esteja brincando
com paradoxos. Trata-se do cumprimento da lei de acordo com sua natureza ver­
dadeira. Aqui, nem todas as questões são resolvidas e nem toda decisão ética é
tornada supérflua. M as, aqui, uma raiz é exposta e são apontados frutos “dignos
de arrependimento”, como a exigência e a graça, como a graça e a exigência do
reino dos céus. E, finalmente, dentro do escopo da lei, ouvimos o chamado, “quem
tem ouvidos para ouvir, ouça”, bem como a declaração: “Isto é impossível aos
homens, mas para Deus tudo é possível” (cf. M t 19.26).
VIII
A vinda do reino
e a igreja

35. Pontos de vista gerais

Como vimos nos capítulos III e IV, uma das formas mais importantes nas
quais o reino aparece neste mundo é a pregação do evangelho. Seu conteúdo foi
discutido nos Capítulos V a VII. Agora somos confrontados com a questão sobre
se há algumas declarações feitas por Jesus que lançam mais luz nos resultados dessa
pregação e, consequentemente, na entrada no reino dos céus neste mundo.
Num sentido geral, este assunto já foi tratado (Capítulo V) com as parábolas
do semeador, do joio, da rede, da semente, do grão de mostarda e do fermento. Elas
tratam, de modo mais ou menos explícito, das ações e dos frutos da palavra e da
força vivificadora da pregação do evangelho. Apesar de conterem indicações muito
importantes concernentes à vinda do reino e à natureza de sua presença, ao padrão
que revela o progresso e aos efeitos dessa pregação, ele é esboçado nas parábolas
somente em termos gerais. A partir desse ponto, portanto, devemos continuar a
nossa investigação, a qual havia sido interrompida após o Capítulo IV.
Aqui somos confrontados com a questão do lugar da igreja na pregação de
Jesus, ou, para colocar de modo mais exato, com o sentido da declaração bem
conhecida de Jesus sobre a ekklesia, em Mateus 16.18ss e Mateus 18.15ss dentro
do escopo de sua pregação acerca do reino dos céus.
Durante muito tempo,1 por causa de uma interpretação particular da pre­
gação de Jesus acerca do reino dos céus, muitos autores foram sumariamente
induzidos a negar a autenticidade desses pronunciamentos. Supunha-se que o
caráter geral do reino dos céus era incompatível com a ideia de ekklesia.
Assim, por exemplo, a teologia liberal afirmou que, como uma reunião visível
de crentes com certo nível de organização, a igreja estava totalmente fora do campo
de visão de Jesus. Supostamente, Jesus foi apenas o profeta da religião “interior”
244 A v in d a d o R e in o

dirigida a cada individuo em separado e que teve o seu início com ele próprio.
Somente depois de um processo de desenvolvimento histórico (após a morte de
Jesus) é que essa religião assumiu seu sentido sociológico, o qual se revelou nas
comunidades e organizações visíveis. E verdade que a pregação de Jesus, desde
o início, foi dirigida à comunidade, mas uma comunidade idealizada e invisível,
mxvíjenseits-Kirche (uma igreja na vida do além), como um objetivo final.2A igreja
como uma unidade visível e organizada era supostamente totalmente estranha ao
mundo do pensamento de Jesus e da sua pregação. Foi considerada como tendo
um caráter absolutamente secundário, um fenômeno humano-sociológico. A sua
origem deveria ser procurada nas igrejas locais ( ekklesiai) das primeiras décadas
após a morte de Jesus, que, mais tarde, se uniram. Esse processo de unificação
alcançou seu estágio final no século 3o d.C. Do mesmo modo, a liderança da
igreja supostamente surgiu não da autoridade ordenada por Cristo, mas, em parte,
dos dons carismáticos e, em parte, da transferência democrática de autoridade a
alguns membros individuais. Apenas mais tarde essa liderança carismática cedeu
espaço à ideia jurídica de um ofício.
Essas ideias foram combatidas até mesmo por críticos liberais dos Evange­
lhos. Assim, por exemplo, a escola deTübingen (sob a liderança de F. C. Baur)
assumiu que havia uma antítese entre a igreja de Jerusalém e aquelas fundadas
por Paulo em países pagãos. A primeira era supostamente mais jurídica e au-
toritativa em sua organização por causa da presença dos apóstolos, enquanto as
últimas tinham uma base inteiramente carismática.3 Alinhada com essa antítese
está o pensamento de que, em Jerusalém, a igreja foi considerada como a conti­
nuação de Israel, o Israel de direito, enquanto, na visão de Paulo, a ideia de um
“corpo espiritual de Cristo” (sooma tou Christou) era considerada o fundamento
da igreja. Associada a essa concepção sobre a igreja de Jerusalém, portanto,
deu-se importância outra vez ao número doze (os doze discípulos de Jesus) com
relação à fundação da igreja. M as nada disso diminui o fato de que os eruditos
mais importantes, no geral, concordaram que Jesus não tinha nada a ver com a
igreja e que não poderia haver dúvida de que o pronunciamento sobre a ekklesia
em Mateus 16.17-19 era inautêntico.
A interpretação escatológica do evangelho tem contribuído ainda mais
para a visão liberal-espiritualista do reino dos céus na tentativa de desacreditar
a autenticidade da declaração de Jesus a respeito da igreja. De acordo com essa
interpretação, está totalmente fora de questão que Jesus havia levado em consi­
deração um desenvolvimento terreno no qual haveria espaço para a vida de uma
igreja e para sua organização.
E verdade que o pai da interpretação escatológica consistente, Alberto
Schweitzer, defendeu a autenticidade da declaração de Jesus em Mateus 16.18
e 19, mas, em sua opinião, ela nada tem a ver com a igreja empírica. A igreja
A VINDA DO REINO E A IGREJA 245

aqui mencionada é a igreja preexistente que será revelada no fim dos tempos
e que irá se fundir com o reino de Deus.4 Aqueles, entretanto, que pensam
que a referência em Mateus 16 é, sem dúvida, à igreja “empírica” e que, apesar
disso, aceitam a interpretação escatológica do reino, terão de combater a au­
tenticidade de Mateus 16.18-19. Assim, Bultmann escreve: “Não pode haver
dúvida de que Jesus proclamou a chegada iminente do governo de Deus... sua
proclamação era uma pregação escatológica, sua própria aparência e atividade
eram um fenômeno escatológico”. E ele continua: Como poderia ele [Jesus]
ter em mente o futuro surgimento de uma comunidade organizada de adeptos
e, assim, ter instituído Pedro como o portador do ofício doutrinai e disciplinar!
... Ora, a vinda do governo de Deus se anuncia mediante forças que já estavam
anteriormente atuando. E agora haverá primeiramente um período em que
“ligar” e “desligar” é uma medida necessária para a manutenção da igreja?...
M as basta de perguntas como essa, que, na verdade, nem precisam ser feitas
desde a época de J. Weiss!5
Em vez de se designar um espaço para a igreja na pregação de Jesus a
respeito do reino de Deus, como encontramos em Mateus 16.17-19, pensa-se,
ao contrário, que a igreja é a conseqüência do não cumprimento d a parousia do
Filho do Homem anunciada por Jesus. Supõe-se, então, que a igreja deve sua
origem ao fato de que aqueles que estavam esperando pela vinda do reino em
vão não tiveram outra alternativa na continuação da História a não ser, como
discípulos de Jesus, formar uma organização. Essa é a grande discrepância entre
a pregação de Jesus e a realidade da História, ou seja, que Jesus pregou o reino,
mas o que veio foi... a igreja.6
De acordo com os críticos, esse argumento escatológico contra a autenticidade
de Mateus 16.17-19 é confirmado pelo fato de que, em nenhum outro lugar na
pregação de Jesus, à exceção de Mateus 16 e 18, há uma declaração sobre a “igreja”
ou sobre a “igreja dele”. E isso não é apenas um fato estatístico - supõe-se que
a entidade indicada por essa palavra, em resumo, toda a ideia de uma ekklesia,
é algo inteiramente estranho à tradição sinótica. “Numa palavra, a linguagem
e a concepção eclesiástica são estranhas às palavras originais do Senhor.”7 Esse
argumento não é defendido somente pela perspectiva exclusivamente escatológica.
Pois até mesmo Kümmel, por exemplo - que reconhece que Jesus viu em sua
própria pessoa e nas suas próprias palavras a presença do reino - é da opinião
que as fontes não fornecem base suficiente para a ideia de que Jesus havia pen­
sando num círculo fechado de discípulos. Essas fontes também não sancionam o
pensamento de que Jesus teria querido formar uma igreja comunitária no tempo
entre sua morte e sua parousia. Supõe-se que, no evangelho, Jesus falou não de
uma nova igreja, mas somente de uma comunidade de homens que se reuniam
em torno dele como o Messias que haveria de vir.8
246 A v in d a d o R e in o

Além desses dois principais argumentos mencionados acima, outros dois


algumas vezes são propostos. O primeiro deles é de natureza psicológica. Não
se supõe que o significado associado ao nome “Pedro”, nesse contexto, esteja de
acordo com seu caráter instável. O segundo argumento é que, no cristianismo
mais antigo, Pedro não ocupou uma posição de autoridade, o que certamente
teria sido o caso se realmente Jesus lhe tivesse conferido tal distinção.9
Esses últimos argumentos têm pouco peso. Pois Pedro não recebeu seu
nome de honra com base em seu caráter, mas com base em sua confissão.10 E
quanto ao pensamento de que a autoridade a ele atribuída nesse contexto está
em conflito com a posição que, mais tarde, ocupou na igreja cristã, essa objeção
se baseia numa exegese de Mateus 16 que, por um lado, assegura a Pedro uma
posição mais exclusiva entre os discípulos do que seria aceitável com base na
própria passagem11 e que,^>or outro lado, se baseia numa visão da posição de Pedro
na história subsequente que deixa de fazer justiça à sua grande importância. Além
disso, se a autoridade atribuída a Pedro nessa passagem de Mateus não está de
acordo com a realidade do cristianismo mais antigo, seria impossível entender
como uma declaração dessas surgiu, pois se ela for inautêntica, deve ter sido um
produto da mesma comunidade na qual Pedro teria ocupado uma posição bem
diferente daquela que a própria comunidade lhe atribuiu ao criar essa declara­
ção. Não se pode falar nesse caso de um vaticinium ex eventu [profecia após os
acontecimentos], pois faltam os acontecimentos!
E, por último, deveríamos mencionar o fato de que a autenticidade da pas­
sagem sobre a ekklesia em Mateus 16.18 tem sido combatida já por um tempo
considerável em termos da crítica textual e literária. Supõe-se que as palavras
sobre Pedro e a igreja não ocorreram no texto original de Mateus e que foram
inseridas ali não antes da segunda metade do século 2o (e, portanto, são enten­
didas como uma interpolação).12 Porém, essa perspectiva tem sido gradualmente
abandonada. O fato de as palavras disputadas de Mateus 16.17-18 (ou mesmo
somente as de M t 16.18) ocorrerem em todos os manuscritos e em todas as
antigas traduções, bem como o forte tom semítico que esse parágrafo empresta
ao evangelho, tudo isso torna impossível concluir de modo fundamentado que
essas palavras não pertenciam à tradição original de M ateus.13 Portanto, pode-
se dizer que a teoria da interpolação defendida com base na crítica textual foi
desacreditada.14
Do mesmo modo, é impossível tomar como prova de que essas palavras não
se originaram com Jesus - e que foram incorporadas na antiga tradição palestínica
de outra maneira - o fato de que elas ocorrem somente em Mateus e não em
Marcos e Lucas. Pois, em outros casos, os críticos não consideram uma tradição
como sendo não original simplesmente porque ela ocorre exclusivamente num
dos três sinóticos.15
A VINDA DO REINO E A IGREJA 247

Assim, podemos concluir que, recentemente, o veredito de não originalidade


dos pronunciamentos sobre a ekklesia repousam somente sobre considerações de­
rivadas do próprio conteúdo desses pronunciamentos, e que podem ser reduzidos
a dois argumentos principais:

a) A ideia de uma ekklesia é estranha ao todo dos outros conteúdos da pre­


gação de Jesus;
b) A ideia está em conflito com o caráter escatológico do evangelho.

Enquanto isso, essa minimização da ideia de uma ekklesia no ensino de Jesus


provocou durante algum tempo no passado uma reação aguda, levando a um novo
“consenso”, dessa vez de natureza positiva. Esse consenso não se restringe a uma
defesa da autenticidade de Mateus 16.18, mas tem a ver com a demonstração de
que a ideia geral que está na base dessa passagem forma uma parte integrante da
pregação de Jesus acerca do reino dos céus. Isso está intimamente ligado com o
reconhecimento por parte da maioria, em contraste com a concepção exclusiva­
mente escatológica, de que Jesus viu em sua própria missão e atividade a presença
do reino. Em si mesmo, esse reconhecimento deu uma fundamentação mais clara
à ideia da igreja como o povo do Messias já se manifestando no presente.
As exposições de Kattenbusch, em particular, têm tido uma grande
influência.16
Kattenbusch defendeu veementemente a autenticidade dos pronuncia­
mentos sobre a ekklesia em Mateus 16 e procurou a origem da ideia da igreja
nos ensinamentos de Jesus, baseado em sua autoconsciência de ser o Filho do
Homem referido em Daniel 7. De acordo com Kattenbusch, essa figura, na
autorrevelação de Jesus, tem não somente o sentido de uma pessoa individual
com a qual Jesus se identificou, mas representa também “o povo dos santos do
Altíssimo” mencionado no mesmo capítulo de Daniel.
Esse é o motivo pelo qual Jesus não somente vivia nessa consciência, como
também tentava implantar na prática essa ideia do povo entre os discípulos.17
E essa é a origem da nação de igreja (Quellort der Kirchenidee). A concepção de
Kattenbusch sobre a relação entre a basileia [o reino] e o povo de Deus é que a
basileia é dada ao povo de Deus (exatamente como, em D n 7, o domínio é dado
ao Filho do Homem). A basileia consiste, acima de tudo, em amor, isto é, serviço,
autossacrifício, exatamente como o Filho do Homem veio ao mundo primaria­
mente para servir.18 Além do mais, segundo Kattenbusch, não deveríamos parar
na ideia do “povo de Deus”, mas ir mais além e assumir, com base em Mateus
16.18ss, que Jesus realmente estabeleceu uma ekklesia. Ele entende o termo ekklesia
como uma assembleia cúltica e religiosa chamada kenischta em aramaico. Jesus
queria organizar seus discípulos em torno de Pedro, numa “sinagoga especial”
248 A v in d a d o R e in o

dentro do judaísmo.19 Em Mateus 16, isso ainda é visto como futuro {oikodomeso).
Por ocasião da última ceia, essa ekklesia foi realmente fundada.20 Quanto à questão
sobre se Jesus contemplava um futuro no qual haveria espaço para uma igreja
organizada, Kattenbusch é da opinião de que as coisas que sabemos acerca das
expectativas de Jesus quanto ao futuro não fornecem base alguma para respon­
dermos negativamente a essa pergunta.21
A s ideias de Kattenbusch encontraram adeptos num amplo círculo de
estudiosos e têm sido elaboradas e suplementadas de muitas maneiras ainda por
outros estudiosos.22 Em tudo isso, o tema cristológico retorna repetidamente à
superfície. Ao Messias pertence um povo. A igreja não é puramente um fenômeno
sociológico originado na vontade do homem, mas a revelação necessária do povo
messiânico. Muitos autores seguem as pegadas de Kattenbusch, que pensava que
podia derivar essa ideia sobre o povo do Messias especialmente de Daniel 7. Mas,
ao lado disso, busca-se um fundamento mais amplo para a concepção do povo
de Deus. De acordo com Gloege, o conceito de ekklesia nos Evangelhos deve
ser considerado como a continuação do conceito do Antigo Testamento de uma
igreja “remanescente” do futuro.23 Ele discute de maneira elaborada o conceito
veterotestamentário de um remanescente (shar e shêrith, cf. Is 10.22; 14.22, etc.).
Ele é seguido por outros estudiosos na identificação que fez desse “remanescente”
de Israel com a “igreja” do Novo Testamento.24 Outros, como Oepke, rejeitam
a noção de que Jesus formou seu conceito de ekklesia especialmente a partir da
ideia de um “remanescente” ou de Daniel 7. A ideia de um povo de Deus é uma
noção geral e central no Antigo Testamento. Essa ideia central do povo de Deus
é o fundamento para a ekklesia do Novo Testamento, conforme Oepke procura
demonstrar em sua pesquisa nos Evangelhos.25
Ao lado dessas bases cristológicas e histórico-redentoras para a noção
de uma ekklesia na pregação de Jesus, todos os tipos de argumentos têm sido
apresentados a partir dos Evangelhos para provar que o conceito da ekklesia em
Mateus 16 certamente não é um conceito isolado. O argumento conhecido como
estatístico,26 por exemplo, é apoiado pela referência à ilustração de um rebanho
que é usada repetidas vezes por Jesus (M t 26.31; Jo 10.16; cf. IC o 9.7). Jesus
chama seus discípulos de seu “pequenino rebanho” (Lc 12.32), ou, no Evangelho
de João, suas ovelhas e seus cordeiros (Jo 21.15-16), exatamente como os chama
de minha igreja.27 Uma menção especial é sempre feita à formação do grupo
dos doze discípulos, os representantes do verdadeiro Israel, o núcleo ou embrião
da ekklesia.28 E, finalmente, com referência a Mateus 16.18, as palavras de K.
L. Schmídt em particular merecem ser mencionadas. Ele segue Kattenbusch e
reuniu material lexicográfico detalhado e amplo em apoio à sua concepção. De
acordo com Schmidt, Jesus usou a palavra aramaica kenischta e não kahalou tehala.
Estes últimos termos são usados no Antigo Testamento para se referir ao povo
A VINDA DO REINO E A IGREIA 249

de Deus como um todo. Kenischta também pode ser usado nesse sentido. Além
disso, no entanto, kenischta pode indicar a assembleia de uma sinagoga que foi
especificada de uma maneira ou de outra. E provável que Jesus quisesse especi­
ficar seus adeptos como uma assembleia-sinagoga especial dentro do judaísmo, a
qual, entretanto, vivia na certeza de que representava o povo verdadeiro de Deus
como tal.29 Em resumo, podemos concordar com o autor católico-romano Braun
(que segue Linton). Ele fala de um novo consenso entre os autores protestantes.
O reino não é somente futuro, mas presente no Messias. Portanto, a ekklesia
não é apenas uma realidade escatológica, mas também uma realidade empírica
dada em Cristo. Não é um fenômeno carismático. O início de sua organização
se encontra na vocação dos discípulos feita por Cristo. A fundação da igreja por
Cristo, mencionada em Mateus 16, deve ser reconhecida como genuína no pleno
sentido da palavra, em oposição à antiga concepção liberal e as mais recentes
concepções escatológicas.30

36. Basiléia e ekklesia

Em nossa opinião, um dos resultados mais importantes das recentes pes­


quisas sobre o evangelho é o fato de que a ideia orgânica de ekklesia na pregação
de Jesus sobre o reino de Deus tem sido repetidamente reconhecida, de modo
que as duas passagens que contêm a palavra ekklesia têm sido libertadas de seu
isolamento anterior. Num sentido, isso se deve ao retorno a uma compreensão
mais correta do conceito de basileia. Enquanto se concebia esse conceito apenas
num sentido espiritual, segundo o entendimento da teologia liberal, e enquanto
permaneceu destituída do seu caráter messiânico-escatológico, a ideia de ekklesia
foi privada de qualquer fundamento ideal no evangelho. E, enquanto a basileia
foi vista como algo exclusivamente futuro, de acordo com a escatologia radical,
não havia lugar para a ekklesia como uma instituição temporal messiânica. Ambos
os sentidos só puderam ser recuperados quando o significado messiânico e atual
de basileia foi outra vez recuperado. Sem dúvida, isso não é uma refutação total
do argumento “escatológico”, visto que não se trata de uma resposta à questão
da perspectiva futura na pregação de Jesus. O fato, todavia, de que seu cum­
primento começa com a vinda de Jesus, implica que existe, em princípio, lugar
(talvez pudéssemos dizer uma necessidade apriori) para a ekklesia como um fato
na História e não meramente no final dela. E isso é fundamental para o que nos
interessa aqui. A questão acerca do período de tempo coberto pela História a ser
esperada após o cumprimento é de importância secundária. Discutiremos isso
adiante. O reconhecimento, a princípio, da vinda de Jesus e de sua obra como
cumprimento, quanto a isso, tem trazido um ganho, a saber, que não é mais
250 A v in d a d o R e in o

possível negar apriori a autenticidade das palavras sobre a ekklesia em Mateus


16 com base nos seus pronunciamentos escatológicos. Isso significa que a mesa
foi virada. O apriori agora está ao lado do novo “consenso”.
Queremos definir corretamente a posição da ideia de ekklesia no escopo da
pregação de Jesus sobre o reino. Ekklesia é o nome daqueles que foram unidos
numa comunidade pela pregação do evangelho. Deveríamos ressaltar, em primeiro
lugar, o fato de que o conceito de basileia nunca ocorre no mesmo sentido de
ekklesia. Nem é usado no sentido de que o reino de Deus, em sua manifestação
provisória na terra, deveria ser incorporado na forma e na organização da igreja.31
E verdade que esses conceitos por vezes parecem ser quase paralelos e que seria
possível falar de “casos limítrofes”. Isso se deve, em primeiro lugar, ao uso lin­
güístico muito complicado do conceito de basileia nos Evangelhos.
Já observamos que, com a expressão “reino de Deus”, podemos indicar não
somente a ação realizadora de Deus relativa ao cosmos inteiro como também vá­
rias outras facetas desse processo todo-abrangente.32Assim, portanto, o território
onde essa ação divina ocorre e no qual as bênçãos do reino são desfrutadas é cha­
mado de basileia [reino] de Deus ou dos céus. Exemplos bem conhecidos disso
são os ditos acerca de entrar no reino dos céus, estar no reino,fechar o reino, etc.
(cf., p. ex., M t 5.20; 11.11; 23.13). Entre eles, há também passagens nas quais
podemos assumir, com grande medida de certeza, que Jesus fala da presença do
reino, como, por exemplo, Mateus 11.11; 18.3-4; Marcos 10.15. Nem sempre
é fácil verificar qual a noção que está ligada a esse uso. Ê bem claro que somos,
aqui, confrontados com certo sentido derivado do conceito de basileia. Talvez
possa ser dito que, por causa do significado universal e central desse conceito
nos Evangelhos sinóticos, apareceram conexões com a intenção de indicar uma
relação muito estreita com o grande e único acontecimento sem expressar, en­
tretanto, uma noção claramente delineada do mesmo. Quando se faz menção
de ser o maior ou o menor no reino e isso se refere a uma realidade presente ou
possivelmente presente - como em Mateus 11.11; 18.4; cf. também 5.19 - não
está claro se a referência é a uma noção espacial claramente delineada, como,
por exemplo, a esfera de poder e de salvação na qual alguém entrou e na qual é o
maior ou o menor, ou se a referência é a uma comunidade particular de pessoas.
Em nossa opinião, deveríamos considerar seriamente a possibilidade de que a
palavra “basileia”, nesse caso, tenha um sentido meio estereotipado ou indistinto
e que “estar no reino” significa a participação no cumprimento da salvação que
começou com a vinda de Cristo. Portanto, não se deveria considerar impossível,
com base nos fatos, que esse uso derivativo dessa palavra possa, às vezes, se referir
à igreja (i.e., como a esfera ou comunidade dentro da qual a salvação do reino foi
recebida e a justiça do reino alcançou validade). Todavia, esse entendimento teria
dado ao conceito de basileia um sentido tão fértil e concreto que não poderia
A VINDA DO REINO E A IGREJA 251

passar despercebido e cedo teria levado a um novo tipo de emprego lingüístico.


E esse não é o caso. Além disso, fora dos Evangelhos sinóticos, a igreja nunca é
chamada de basileia.
Embora se possa mencionar algumas passagens nas quais o uso lingüístico
não é muito claro, as mesmas certamente não podem ser aduzidas como prova
da transição de um conceito para o outro, pois, quando se menciona estar no
reino ou entrar no reino e essas expressões têm que ser interpretadas no sentido
de uma realidade que se cumpriu, elas certamente não foram usadas no sentido
de uma participação ou admissão a uma comunidade particular de pessoas. O
mesmo é verdade quanto à frase “ser o maior ou menor no reino”. Se ela sugere,
de algum modo, uma realidade presente, não pode ser entendida no sentido de
uma assembleia mais ou menos organizada de fiéis. Mas, sem dúvida, teremos de
pensar nas várias formas nas quais os fiéis são objeto ou órgãos da ação salvadora
de Deus no mundo. Num sentido prático, a ideia da totalidade e da comunidade
de pessoas que têm uma participação nela não está tão longe, mas, com base
nessas declarações e noutras semelhantes, é impossível chegar a uma ideia clara
ou a um conceito fixo de tal comunidade.
Uma segunda série de passagens a ser mencionada aqui é composta das pa­
rábolas mencionadas acima que tratam da ação da Palavra e que, assim, sugerem
fortemente a ideia de uma igreja vindoura. Calvino, por exemplo, tentou aplicar
algumas delas à igreja, como a do joio33 e também a da rede.34Alguns intérpretes
protestantes de hoje também identificam a basileia na atual dispensação com a
noção de ekklesia?5 Por outro lado, até mesmo exegetas católicos-romanos se
opõem a essa interpretação de basileia no ensino de Jesus.36
Quando estávamos discutindo essas parábolas num contexto anterior, já
cruzamos com a noção de que, na parábola do joio, bem como na da rede, o ponto
principal é a mistura dos ímpios e dos justos na igreja?1 Com base na explicação
que demos ali sobre essa parte do ensinamento de Jesus, devemos rejeitar essa
aplicação sem qualquer hesitação. Essa rejeição é ainda mais clara a partir dos
pronunciamentos explícitos de que o campo no qual os ímpios e os justos estão
crescendo juntos éo mundo (e, portanto, não a igreja; M t 13.38).38Aqui devemos
também mencionar a parábola do grão de mostarda. Lagrange faz uma declara­
ção generalizada sobre Marcos 4 de que, aqui, o assunto não é “annonce claire de
L ’Eglise” (uma referência clara à igreja), já que a mesma não é indicada por qualquer
de suas características específicas.Todavia, ele escreve que somos necessariamente
levados a reconhecer a igreja no grão de mostarda, pois essa semente que é tão
pequena a princípio se desenvolve finalmente em algo muito grande.39
As opiniões sobre essa parábola são muito divididas, como observamos
anteriormente em outro contexto.40 Concordamos com aqueles que encontram
o tertium comparationis (ponto de comparação) não somente na diferença entre
252 A v in d a d o R e in o

o começo insignificante e o cumprimento (escatológico), mas também no cres­


cimento, no desenvolvimento de pequeno para grande. A questão agora, entre­
tanto, é como devemos entender esse desenvolvimento e o que é exatamente que
cresce, sendo tão pequeno, e se transforma em algo tão grande. A ideia de que
somos naturalmente induzidos a pensar em algum tipo de “instituição” - e que,
por motivos históricos, essa instituição só pode ser uma instituição eclesiástica
- aparenta ter sido inspirada pela visão católico-romana de igreja. Devemos menos
ainda imaginar o desenvolvimento de uma unidade externa aqui nessa parábola
do que no caso da parábola do fermento. E verdade que, na parábola do grão de
mostarda, a noção quantitativa se destaca. Isso dá origem à pergunta sobre se a
referência é ao número de pessoas que participam da salvação do reino. Em sua
elaborada discussão acerca da parábola, Newton Flew adota a opinião de que,
nesse caso, temos de pensar primariamente na totalidade da ação divina na vida
de Jesus.41 O grão de mostarda não se refere às poucas pessoas que participam, de
início, na salvação do reino, mas ao caráter humilde da ação e da obra de Jesus,
sua palavra e sua aparência. No entanto, ele também aponta para o detalhe na
ilustração dos pássaros que constroem seus ninhos nos galhos da árvore. Essa
particularidade é associada a Daniel 4.12 e Ezequiel 31.3,6 (cf. v. 12), como se
sabe bem. Ali, os pássaros representam as nações. Devemos interpretar esse de­
talhe da parábola do mesmo modo? Newton Flew pensa que isso é provável. Se a
pregação da palavra fosse seguida de resultados grandiosos, que outros resultados
seriam senão a adição de homens e mulheres ao grupo dos discípulos de Jesus?
Assim, a conclusão é que, nessa parábola, Jesus tinha em mente a formação de
uma comunidade.42
Não há dúvida de que essa parábola trata da importância contínua e mun­
dial daquilo que começou como algo aparentemente insignificante na vinda de
Cristo. O progresso da obra divina de cumprimento já pode ser observado nessa
administração e será visto em seu significado público na consumação de todas
as coisas. E óbvio que esse progresso inclui a salvação de todos os que herdarão
o reino. Em nossa opinião, é difícil decidir se essa implicação pode ser derivada
da menção às “aves dos céus” feita na parábola. De qualquer modo, consideramos
um pouco exagerado derivar desse aspecto particular a ideia da nova comunidade
de homens que Jesus haveria de fundar. Além disso, a glória do reino vindouro
consiste não somente na grande multidão de seres humanos, mas na obra universal
da salvação divina. Assim, o pensamento dominante dessa parábola é muito geral
para que possa ser afunilado na ideia da comunidade da ekklesia, pois, para essa
noção, a pregação de Jesus contém pontos de vista mais importantes.
Apesar de o evangelho não conter qualquer passagem na qual a palavra basi-
leia é empregada no sentido de “igreja”,43 a ideia de ekklesia é um elemento essencial
no escopo da pregação e autorrevelação de Jesus. Esse fato tem, recentemente,
A VINDA DO REINO E A IGREJA 253

sido corretamente enfatizado. Sua elaboração, todavia, nem sempre - ou, pelo
menos, não imediatamente - toca as notas corretas e, em nossa opinião, a cla­
reza requerida para a origem da ideia da ekklesia nos Evangelhos ainda não foi
alcançada em toda a extensão.
Isso se aplica especialmente à perspectiva de Kattenbusch, que coloca tanto
a ideia quanto a origem da ekklesia e do Filho do Homem em Daniel 7. Apesar
de, desse modo, a ekklesia ser reconhecida outra vez como parte integrante da
autorrevelação messiânica de Jesus e, portanto, da sua pregação acerca do reino,
em nossa opinião a ligação procurada nesse caso é muito incerta e muito forçada
para explicar de maneira convincente a ideia de ekklesia no evangelho. Já dentro
do escopo de Daniel 7, pode-se questionar seriamente se o Filho do Homem é
uma representação simbólica dos “santos do Altíssimo”.44 E ainda mais decisivo
para nós é o fato de que, em nenhum lugar no evangelho, Jesus aparenta cogitar esse
entendimento coletivo a respeito do Filho do Homem. Ele aplica esse título exclusiva­
mente a si mesmo, isto é, à sua própria pessoa individual.45 Apesar de poder haver
uma estreita ligação entre o Filho do Homem e “o povo dos santos do Altíssimo”,
de acordo com Daniel 7,46 e de esse capítulo poder conter o conceito do povo
do Messias, não é possível de modo algum identificar ambas as coisas, seja num
sentido absoluto ou parcial. E como esse povo dos “santos do Altíssimo” nunca é
mencionado como tal no evangelho, entendemos que não estamos autorizados a
procurar especialmente em Daniel 747 o ponto de partida para a ideia da ekklesia
na pregação de Jesus acerca do reino.
O mesmo se aplica à perspectiva que Gloege e outros têm defendido, a saber,
que Jesus encontrou a base para sua ideia de ekklesia especificamente na profecia
do “remanescente” do povo de Israel (os quais, de acordo com Is 10.22ss., seriam
os únicos a se salvarem), pois, apesar de sua exatidão factual, essa interpretação
especial não tem fundamento no evangelho.48 Exatamente porque se concentra
nesse “remanescente” que nunca é mencionado no evangelho, essa concepção não
convence aqueles que são da opinião que não há, na pregação de Jesus, qualquer
espaço para a ideia de uma ekklesia.49
Concordamos com Oepke de que essas explicações especiais sobre a origem
da noção da ekklesia são realmente supérfluas por não estarem suficientemente
fundamentadas no evangelho. Isso porque a noção de povo de Deus tem uma
base muito mais geral na pregação messiânica de Jesus sobre a basileia do que
naquelas poucas passagens do Antigo Testamento e ocupa um lugar muito mais
central nela do que seria plausível obter mediante tais conexões especiais.
Em primeiro lugar, há o ponto de vista messiânico apriori. O conceito de
um Messias sem um povo é impensável. Isso é admitido por todos, inclusive
pela escola escatológica radical.50 O mesmo se aplica ao fato de que aqueles que
pertencem ao reino de Deus formam uma comunidade, uma comunidade do
254 A VINDA DO REINO

reino de Deus.51 Isso não é somente uma pressuposição, como o fundamento


da pregação da basileia messiânica; ela pode ser inferida do próprio evangelho.
Além do mais, no pronunciamento da ekklesia, em Mateus 16, o pronome “mi­
nha” (igreja) tem esse significado. Não se trata de um “minha” ou “meu” proferido
por um mestre ou profeta que arregimentou em torno de si certo número de
pupilos ou adeptos ou de um fundador de uma nova religião que organiza seus
seguidores. E o “minha” do Messias falando ao povo ao qual ele concedeu sua
graça e sobre o qual ele governa. O uso desse termo pode ser raro nos Evange­
lhos sinóticos (veja, todavia, M t 1.21, “seu” povo; 13.41, “seu” reino; em ambos
os casos o pronome possessivo é usado duas vezes com referência ao Messias),
mas a noção de que o Messias não pode ficar sem seu povo pelo qual ele age e
pelo qual é responsável e com o qual está unido em toda parte no background.
É esse povo que o Messias diz que “confessarei diante de meu Pai, que está nos
céus” (M t 10.32-33). Ele o chama de seus “irmãos” (M t 12.50; 25.40); eles são
os “filhos” do noivo (messiânico) (M t 9.15).
D a parte da escola escatológica, é feita a tentativa de sustentar que esse “povo
messiânico” é uma entidade puramente escatológica que não poderia aparecer até
a parousia do Filho do Homem, aguardada por Jesus. Portanto, nem o próprio
Jesus e nem seus discípulos em sua associação com ele foram encarregados da
tarefa de reunir, já agora, neste mundo, tal povo messiânico. Eles tinham apenas
que pregar a vinda do reino como uma grandiosa decisão que se aproximava.52
Essa teoria, já que aplica o princípio escatológico do evangelho como um
todo, é incompatível com o caráter da vinda de Jesus como cumprimento. Além
disso, não faz a menor justiça à linguagem clara do evangelho com respeito à
obra messiânica de Jesus de reunir seu povo. Se aceitarmos que ele agiu e falou
não meramente como o “Messias designado”, mas como o Filho do Homem
que havia vindo, é óbvio que ele tinha esse ajuntamento em mente,53 pois, no
evangelho, Jesus fala do peneirar e do ajuntar da sua tarefa messiânica não apenas
num sentido exclusivamente futuro e escatológico. Ele também, com certeza,
tinha em mente o efeito de suas ações neste mundo, como, por exemplo, ele
diz que veio trazer dissensão entre as pessoas, mesmo entre aquelas que estão
estreitamente relacionadas entre si (M t 10.34-36, cf. Lc 12.51-53); do mesmo
modo, quando diz, pensando na escolha inevitável, “quem não é por mim é contra
mim; e quem comigo não ajunta espalha” (M t 12.30; Lc 11.23); e quando, em
oposição ao zelo excessivo daqueles que proibiam até mesmo a menção do nome
de Jesus por todos que não o seguissem na companhia de seus discípulos, ele diz,
“pois quem não é contra nós é por nós” (Mc 9.40; Lc 9.50). Em ambos os casos
(isto é, peneirar e ajuntar), o ponto é o efeito da ação messiânica de Jesus em
trazer pessoas para si mesmo, ponto esse que está explícito na palavra “ajuntar” e
também na expressão “comigo”, embora menos enfaticamente (observe a forma
A VINDA DO REINO E A IGREJA 255

plural, pois Jesus e seus discípulos representam uma causa comunal no mundo).
Nesse caso, deve-se fazer referência às palavras de Jesus “vem após mim” (Mt
10.38; Lc 14.27 passim ), as quais se aplicam não apenas ao pequeno círculo de
discípulos que viviam com Jesus, mas também, num sentido metafórico, a todos
os que ouvem a palavra.54
E o que se aplica à própria atividade de Jesus como Messias, isto é, que ele
procura fruto e ajunta pessoas, aplica-se também, parcialmente, à obra dos discí­
pulos.53Já vimos56 que o dito acerca dos trabalhadores enviados ao seu campo (Mt
9.37-38) não se refere ao futuro ajuntamento escatológico daqueles que creem
nas palavras de Jesus, mas ao presente. Esses trabalhadores, portanto, são os que
colaboram com Jesus em sua obra e dão continuidade à mesma. Alguns escritores
consideram absurdo que, dentro da visão do reino vindouro, Pedro teria recebido a
missão de organizar uma igreja e exercer o poder doutrinai e disciplinar. Mas não
deve ser esquecido - independentemente da questão secundária da organização
- que, desde o início, Jesus havia prometido dar a seus discípulos alguns poderes
especiais com respeito ganhar e ajuntar homens para ele (algo que compreende
muito mais do que simplesmente anunciar o reino). Assim, por exemplo, por
ocasião da vocação dos discípulos, ele diz, “eu vos farei pescadores de homens”
(Mc 1.17; M t 4.19; cf. Lc 5.10). Do mesmo modo, por exemplo, a alimentação
miraculosa da multidão (Mc 6.36-45) e a ordem de Jesus aos discípulos, “dai-
lhes vós mesmos de comer” (Mc 6.36ss; 8.1-10) têm claramente um sentido
simbólico referente à atividade futura dos discípulos.57 No futuro, os discípulos
disporão dos dons messiânicos de Jesus e os distribuirão em favor dele. Além
disso, os ditos que mencionam os futuros sofrimentos dos discípulos (M t 10.16;
17-25; Lc 12.1 lss; M c 13.9-13ss) e apontam para o futuro abismo entre eles e
o judaísmo oficial podem mostrar a qualquer pessoa que não queira explicá-los
simplesmente como vaticinia ex eventu que Jesus continua a sua obra messiânica
em e por meio de seus discípulos e é nesse sentido que ele está lançando a semente
e se preparando para a sua colheita (M t 13; M c Apassim), isto é, ele não apenas
anuncia o reino, mas já está ajuntando na terra sua igreja messiânica escatoló­
gica de maneira antecipada. Diante do quadro completo das atividades de Jesus
descritas nos Evangelhos, é impossível entender como poderíamos admitir que
Jesus fundasse uma comunidade de discípulos a quem prometeu uma participação
na herança do reino sem considerar isso como o início da formação da igreja.38
Sem dúvida, a revelação dessa comunidade durante o tempo da vida terrena de
Cristo estava em harmonia com sua autorrevelação; assim, não teve o caráter
explícito de uma igreja messiânica organizada. M as aqueles que aceitam as suas
palavras formam essencialmente nada mais do que seu povo, o povo do Messias.
E é totalmente em harmonia com esse pensamento fundamental que Jesus, com
base na confissão pública dele como o Messias por seus discípulos e o anúncio
256 A v in d a d o R e in o

da sua própria morte e ressurreição, fala logo em seguida, num sentido formal,
da sua ekklesia. Quando, no presente, Jesus é proclamado como o Messias pelos
discípulos, sua igreja também se manifestará como tal. Uma está estreitamente
ligada com o outro e procede naturalmente dele.
Além dessa perspectiva messiânica e do que já se torna visível com a vinda
de Jesus, ou seja, o ajuntamento da igreja messiânica, é necessário apontar, em
segundo lugar, para a rejeição do Israel incrédulo como o povo da aliança e a
concomitantç.formação do novo povo de Deus.
Já observamos que a relação especial entre Deus e Israel como seu povo é
um dos fundamentos do evangelho. Por esse motivo, Jesus dirige suas bem-aven-
turanças aos pobres, pois eles representam o verdadeiro povo de Deus, e também
por esse motivo sua misericórdia messiânica se estende às ovelhas perdidas da
casa de Israel. Ao mesmo tempo, observamos uma transição nessa ideia básica,
no sentido de que, ao lado de Israel e em seu lugar, aqueles que acreditam no
evangelho são considerados como o rebanho do Senhor, a semente de Abraão e
os filhos do reino.59
Esse resultado é da maior importância para a questão que está sendo discu­
tida, pois essa rejeição de Israel e essa nova formação do povo de Deus não são
simplesmente alguma coisa do futuro escatológico, mas algo que já se iniciou
com a vinda de Jesus.
Com relação ao primeiro ponto - a rejeição de Israel - mencionamos
especialmente a parábola dos lavradores ímpios (M t 21.43-46). O começo da
parábola corre em paralelo próximo a Isaías 5.2 e, em seguida, se centraliza no
pensamento de que Israel é a vinha especial do Senhor. A elaboração desse tema
revela o julgamento no qual Israel incorreu por ter rejeitado o Cristo (o “filho”
do proprietário da vinha). É digno de nota que todos os três evangelistas citam,
nesse contexto, o Salmo 118, “a pedra que os construtores rejeitaram, essa veio a
ser a principal pedra, angular; isto procede do Senhor”. A menção feita à “cons­
trução” significa o cuidado especial para com Israel como o povo do Senhor.60
Esse trabalho de construção é feito pelos líderes de Israel (os “construtores”) sob
o comando e supervisão de Deus. Os construtores, todavia, rejeitam a pedra que
havia sido destinada por Deus como a coroa da obra.61 Outra vez, isso significa
a rejeição de Jesus como o Messias. Deus, no entanto, o elevara acima de tudo
e de todos. Na edificação de Israel como seu povo, sua obra maravilhosa será
cumprida no Messias. M as isso não poderá ocorrer sem que o Israel incrédulo
e seus líderes sejam rejeitados como o povo de Deus. Em Mateus, a citação do
Salmo 118 é seguida pelas palavras “Portanto, vos digo que o reino de Deus vos
será tirado e será entregue a um povo que lhe produza os respectivos frutos” (v.
43). Esse “povo” não significa uma “nação” em particular, mas o novo povo de
Deus a quem, ao preterir o antigo Israel, Deus dará a salvação do reino.62 Nesse
A VINDA DO REINO E A IGREIA 257

caso encontramos, no mesmo contexto, os conceitos de reino de Deus e povo


de Deus como o novo povo de Deus a ser reunido pelo Messias. E evidente que
a revelação do reino é dirigida à formação de um povo que substituirá Israel na
história da salvação. Ao mesmo tempo, é evidente que esse outro povo, o novo
povo de Deus, é mencionado não apenas em termos futuros e escatológicos, mas
também no sentido futuro histórico. Trata-se de um povo que produz o fruto (do
reino), isto é, que é convertido pela pregação (do reino) e, assim, revela-se, já no
presente, como o novo povo de Deus.
É à luz disso que as passagens nas quais Jesus se refere a seus discípulos
como um rebanho ou como ovelhas (Lc 12.32; M c 14.27) devem ser com­
preendidas. A coisa importante nisso não é tanto o ponto de vista sociológico
(Jesus ajunta seus seguidores numa comunidade) quanto o ponto de vista da
história da salvação (o rebanho representa o povo de Deus que agora é reunido
por Jesus e que, um dia, como as doze tribos de Israel, será governado pelos
doze apóstolos).63 Doze, como o número dos discípulos, também tem um sen­
tido representativo já para o presente, não somente no fato de que eles são os
pregadores da salvação ao povo empírico de Israel,64 e nem no fato que eles são
uma antecipação do povo escatológico de Deus,65 mas no sentido de que são
aqueles em que se agrega, desde o início, a igreja que foi reunida pela palavra
de Jesus. Eles podem, portanto, ser considerados, em muitos aspectos, como o
fundamento dessa nova igreja. Tudo isso prova claramente que, desde o princí­
pio, a ideia da formação do novo povo de Deus também dirigiu e determinou
a atividade messiânica de Jesus.
Não há dúvida de que isso ainda não justifica totalmente a ideia de ekklesia
como uma comunidade organizada e fechada operando em público. M as o ca­
minho para ela tem sido pavimentado de todas as maneiras, pois é no conceito
de ekklesia que, a partir dos tempos antigos, o relacionamento pactuai organizado
entre Deus e Israel encontra expressão, pois não importa qual palavra hebraica
ou aramaica seja a base da palavra grega ekklesia usada em Mateus 16 - quer seja
kahal ou kehala, como a maioria dos autores entende, ou ainda kenischta, como
Kattensbusch, Schmidt e outros entendem - em ambos os casos66 a ideia básica
é o ajuntamento do povo da aliança divina. Assim, quando Jesus fala da ekklesia,
ele permanece totalmente dentro da esfera pela qual também é determinada sua
pregação do evangelho ao povo eleito por Deus para ser seu povo especial. Do
mesmo modo, como a ideia do povo messiânico resulta, de maneira natural, do
surgimento e atividade messiânicos de Jesus, o tema básico não menos essencial
da aliança e do povo de Deus leva de modo natural ao surgimento da ekklesia. A
ligação entre o aspecto messiânico e a aliança é expressa pelas palavras “minha
ekklesia . O povo de Deus é o povo do Messias. E, respectivamente, aqueles
que confessam Jesus como o Messias são o novo Israel. Assim, a ekklesia é a
258 A v in d a d o R e in o

comunidade daqueles que, como o verdadeiro povo de Deus, recebem o dom


do reino dos céus de modo provisório já agora, visto que o Messias chegou, e
receberá plenamente um dia, no estado de perfeição, por ocasião da parousia do
Filho do Homem. Em nossa opinião, esse é o resultado de uma reflexão mais
profunda sobre o método geral da pregação de Jesus sobre o reino.
Com base no que foi dito acima, é possível, em nossa opinião, resumir
nossa perspectiva da relação entre a basileia e a ekklesia. Não pode haver dúvida
quanto à ligação dos dois temas e nem também quanto à diferença entre essas
duas noções fundamentais: a basileia é a obra divina grandiosa de salvação que tem
seu cumprimento e consumação em Cristo; a ekklesia é o povo eleito e chamado por
Deus que compartilha da bênção da basileia. Logicamente, quanto à posição, é a
basileia que vem primeiro, não a ekklesia. A basileia, isto é, o reino, portanto, tem
um conteúdo muito mais abrangente. Ela representa a perspectiva amplamente
inclusiva, indica a consumação da História como um todo, traz tanto a graça
quanto o julgamento, tem dimensões cósmicas, enche o tempo e a eternidade. Em
tudo isso, a ekklesia é o povo que, nesse drama grandioso, tem sido colocado ao
lado de Deus em Cristo por virtude da eleição divina e da aliança. Eles receberam
a promessa divina, foram trazidos à manifestação pública e ajuntados pela pre­
gação do evangelho e herdarão a redenção do reino agora e no futuro grandioso.
Sem dúvida, esse é o motivo pelo qual o reino é revelado na ekklesia, isto é, em
seu significado redentor e salvador, em todos os dons e tesouros prometidos e
concedidos já agora em Cristo e por meio dele. Portanto, não se pode equiparar
a basileia à ekklesia como se fossem idênticas. A primeira dirige nossa atenção
para Deus, para sua vontade consumadora, para o poder com o qual ele realiza
essa vontade, para suas virtudes no sentido mais amplo da palavra. Já a segunda
é, numa certa medida, no que concerne à humanidade, o alvo soteriológico da
primeira. Dizer que a ekklesia substituiu gradualmente a basileia, que Cristo
veio inaugurar um reino, mas o que apareceu, em vez disso, foi a igreja, é uma
concepção absolutamente incorreta da perspectiva escatológica permanente que
engloba a igreja de todos os lados em sua expectativa e serviço, uma concepção
equivocada, também, da universalidade da redenção divina e do julgamento no
qual a própria igreja se inclui. Não há qualquer base para a declaração de que a
ideia da basileia, conforme anunciada por Cristo, é incompatível com a ideia da
ekklesia, pois a basileia só pode ser presente e espiritual, ou futura e escatológica,
pois a salvação tem um caráter tanto messiânico quanto histórico. Como é mes­
siânica, é inconcebível sem um povo (o novo Israel, o povo da aliança); e como
já está sendo realizada na História, a ekklesia não tem somente uma natureza
escatológica, mas também histórica. A ekklesia é fruto da revelação da basileia e,
respectivamente, a basileia é inconcebível sem a ekklesia. Uma é inseparável da
outra sem que, entretanto, haja uma fusão entre elas.
A VINDA DO REINO E A IGREJA 259

Foram feitas tentativas de se formular a relação entre a ekklesia e a basileia,67


mas a possibilidade desse procedimento ainda é duvidosa, pois a ekklesia pode
ser vista de muitas maneiras diferentes do ponto de vista da basileia. E uma
comunidade daqueles que aguardam a salvação da basileia. Na medida em que
a basileia já é uma realidade presente, a ekklesia é também o lugar onde os dons
e poderes da basileia são concedidos e recebidos. É , além disso, a reunião daqueles
que, como instrumentos da basileia, são chamados a fazer a confissão de Jesus
como o Cristo, a obedecer aos seus mandamentos, a realizar a tarefa missionária
da pregação do evangelho pelo mundo. Em todos os aspectos, a igreja é cercada
e impelida pela revelação, o progresso, o futuro do reino de Deus, sem, contudo,
ser ela mesma a basileia, e sem jamais ser identificada com ela.

37. Fundamento e autoridade

Uma vez que ficou claro que a ideia geral representada pelo conceito de
ekklesia ocupa uma posição orgânica e integrante na estrutura da pregação
de Jesus acerca do reino dos céus, é possível, agora, discutir o conteúdo dos
pronunciamentos específicos sobre a ekklesia (em M t 16 e 18). A passagem
de Mateus 16.17-19 é a mais específica. Portanto, vamos tomá-la como nosso
ponto de partida.
A primeira questão é o que Jesus quer dizer com “tu és Pedro, e sobre essa
pedra edificarei a minha igreja {ekklesia)”. Essa declaração sugere que se trata do
povo de Deus (i.e., o povo do Messias) no sentido geral da palavra ou devemos
pensar numa forma especial desse povo, como supõem, por exemplo, Kattenbusch,
Schmidt, e outros que falam de uma “sinagoga-Messias-Jesus”?68 Com essa
expressão, eles querem dizer uma organização separada dos seguidores de Jesus
dentro da totalidade da comunidade judaica.
Se colocado desse modo, nossa escolha não é difícil - pelo menos no que diz
respeito a Mateus 16.18. Pois, em primeiro lugar, é questionável se tais “sinagogas
separadas” (isto é, distintas daquelas oficiais) existiram de fato, de maneira que o
uso lingüístico, ao qual Schmidt recorre, certamente ainda não foi estabelecido.69
E, além disso, a base factual para essa especialização70 da palavra ekklesia = kenischta
= “Sondersynagoge” (sinagoga especial) não foi ainda descoberta.
E verdade que tem sido apresentado o argumento de que a “edificação” da
igreja não é uma metáfora óbvia a não ser que ekklesia seja entendida como “povo
de Deus” e que essa objeção seria eliminada se concebêssemos a ekklesia como
kenischta, já que esta última palavra também pode indicar o edifício que abriga a
sinagoga.71 M as as seguintes objeções devem ser feitas a essa ideia:
260 A v in d a d o R e in o

a) A metáfora “edificação” da igreja não se baseia numa associação com o


edifício da sinagoga, mas é uma metáfora corrente já no Antigo Testamento,
quando se refere à relação especial de Deus para com Israel como seu
povo (cf., p. ex., Jr 12.16; 18.9; 24.6; 31.4; 42.10; Am 9.11; E f 2.20; Jd
20). Essa metáfora de Israel como “edificação”, bem como de “plantação”,
“lavoura de Deus”,72 é muito freqüente (cf., também, IC o 3.9). O uso
da noção de “edificação” não nos impele a compreender o termo ekklesia
em Mateus 16 num sentido especial; ao contrário, é exatamente essa
combinação de “edificação” com ekklesia que dá à última o sentido geral
do ajuntamento daqueles que foram unidos por Deus ou pelo Messias
como “seu povo”.73

b) Todo o contexto de Mateus 16, contrastando ekklesia com as portas do


“Hades”, aponta para uma perspectiva muito mais ampla do que a da
comunidade de uma sinagoga. Nesse caso, no sentido mais abrangente
e ideal da palavra, a passagem fala da ameaça à ekklesia pelos poderes da
perdição que a cercam. Qualquer que seja o pensamento da metáfora
da ekklesia como edificada sobre a pedra,74 a ideia de edificação de uma
sinagoga, em nossa opinião, está muito abaixo do nível no qual, nesse
caso, a imaginação opera.

c) E, finalmente, a objeção a essa interpretação de uma “sinagoga separada”


é que não somente nessa metáfora, mas na totalidade do mundo do
pensamento de Jesus e da igreja posterior, o povo messiânico (ou o novo
Israel) não desempenha o papel de uma comunidade sinagogal que se
estabelece dentro do judaísmo, mas é visto como o novo povo de Deus
que deve substituir o velho e, de fato, o substitui.75

Não há duvida de que temos que interpretar ekklesia, em Mateus 16.18,


no sentido geral da palavra, de acordo com a analogia do kahal do Antigo
Testamento, o qual a Septuaginta quase sempre traduz como ekklesia. Quando
usado num sentido religioso ( o kfhalYahwetí), tem o significado do povo em sua
unidade e coletividade, eleito por Deus, e separado de outras nações76. Como tal,
seu equivalente é o grego laos, povo de Deus, povo da aliança. Nesse caso, Jesus
fala de sua igreja, seu povo, sem se referir a uma organização particular ou geral.
Essa passagem trata da ekklesia no sentido ideal da palavra.
Devemos observar que, nesse caso, Jesus fala da edificação dessa ekklesia
no tempo futuro. Isso não significa que os primeiros inícios dessa igreja sejam
somente futuros. Devíamos ter em mente que Jesus menciona a edificação de
sua igreja sobre esta pedra. Nesse sentido, a edificação era somente futura. Aqui
também devemos rejeitar a opinião de que Jesus se refere à instituição da Ceia do
A VINDA DO REINO E A IGREJA 261

Senhor como o começo da fundação da igreja,77 ou à sua morte e ressurreição,78


pois então não ficaria claro qual o sentido da expressão “sobre esta pedra”. Não
há dúvida de que o objeto é a edificação da igreja cristã sobre (a obra de) Pedro,
a qual deveria começar depois da ressurreição de Jesus.79
Como é bem sabido, muitos exegetas protestantes têm considerado que as
palavras “esta pedra” não se referem à pessoa de Pedro mas à sua fé,80 à confissão
ou ao ofício de Pedro. Essa interpretação foi, provavelmente, uma reação ao ensino
do catolicismo romano sobre a igreja. Outros expositores foram tão longe a ponto
de entender que “esta pedra” se referia ao próprio Cristo81 ou à sua messianidade
e sua existência como o Filho de Deus.82 A mudança de Petros para petra tem
sido empregada como um argumento em favor desse entendimento. O segundo
termo, “petra”, (e não “petros”, ou simplesmente o pronome “você”) é explicado
de tal modo que a confissão de Pedro é colocada à frente e sua pessoa é relegada
a um plano secundário.83
Em nossa opinião, essas explicações estão longe de serem convincentes. O
uso da palavra “petra” é mais bem explicado quando se consulta seu sentido ori­
ginal. Petra significa rocha, enquanto petros tem o sentido mais geral de pedra.u
A terminação feminina à t petra, todavia, não era apropriada para um nome como
Simão, de modo que ele foi chamado, invés disso, Petros. M as, quando o nome
próprio é usado como substantivo, como aqui, petros deve ser substituído por
petra?5 O entendimento mais natural é que petra é simplesmente a repetição de
petros. Aqui, Cristo, certamente, tinha em mente o próprio Pedro.
A questão do sentido em que Pedro pode ser a pedra sobre a qual Cristo
edifica a sua própria igreja não é difícil de responder. Ele é a pedra na sua condição
de apóstolo, isto é, como testemunha do que viu e ouviu e como o confessante
da glória de Cristo86 e não somente porque ele seria a primeira pedra do novo
edifício ao qual, mais tarde, outros crentes seriam acrescentados.87 A edificação
da igreja sobre Pedro dificilmente pode significar outra coisa que não a sua fu­
tura atividade apostólica. O fato de que ele, e não outro discípulo, é mencionado
aqui se explica, por um lado, pela circunstância de que foi ele, e não os outros,
quem professou a Cristo em resposta à pergunta de Jesus. Por outro lado, isso
está de acordo com o lugar proeminente que Pedro aparenta ter ocupado entre
os discípulos nos primórdios da igreja cristã (cf. M t 10.2; 17.1; 17.24; 18.21; At
1.15; 2.14; G 1 1.18; 2.7-9).
Nesse contexto, Cristo diz que não só edificará sua igreja sobre Pedro como
também circunscreve a autoridade de Pedro de um modo particular nas palavras
bem conhecidas acerca das “chaves do reino dos céus” e sobre o “ligar” e “desligar”
na terra e no céu.
O dom das chaves indica um poder em particular, que, nesse caso, está
ligado com o reino dos céus, ou seja, o poder de abri-lo e de fechá-lo (cf., p. ex.,
262 A v in d a d o R e in o

M t 7.23; 23.13; 25.21ss; 25.34). Não há aqui qualquer sugestão da figura de um


porteiro.88 Ao contrário, é a figura de um zelador que obtém as chaves de seu
patrão (cf. Is 22.22; Ap 3.7) e que, agora, é responsável pelo que é feito dentro
da casa, bem como pela entrada de pessoas nela.89 O principal, entretanto, é que
foi dada autoridade a Pedro com respeito ao reino dos céus. E essa concessão não
pode ser entendida como outra coisa que não a admissão ao reino e entrada nele
(cf. M t 23.23; Ap 3.7; 1.8). Isso certamente não significa a igreja, nem é preten­
dido, nesse caso, certa identificação da igreja com o reino.90 Eles são claramente
diferenciados nesses pronunciamentos. Esse é o motivo pelo qual o poder das
chaves não pode significar meramente que a Pedro foi confiada a explicação das
Escrituras,91 nem mesmo que “como o primeiro teólogo da igreja cristã”, ele se
destacaria no debate com os escribas judeus depois da morte de Jesus.92 Nem
significa, ainda, que ele receberia a competência de distribuir os dons espirituais
de Cristo à sua igreja93 ou que ele foi simplesmente comissionado com a tarefa
de proclamar o evangelho.94 Todas essas descrições podem conter certos pré-
requisitos indispensáveis ao exercício do poder das chaves, mas não expressam
o caráter específico da autoridade de Pedro. Pedro é autorizado por Cristo para
abrir e fechar o reino dos céus. Isso não significa que ele vai substituir Cristo no
dia do julgamento (M t 7.23; 25.34), mas que agora, na terra, ele está destinado a
pronunciar o julgamento sobre aqueles que entrarão no reino e sobre os que não
entrarão.95 O significado, portanto, da sua autoridade, nesse caso, é judicial.
Isso é explicado ao final do versículo 19 com essas palavras: “O que ligares na
terra terá sido ligado nos céus; e o que desligares na terra terá sido desligado nos
céus”. As palavras “ligar” e “desligar” são termini technici rabínicos para “decidir
com autoridade”. Elas eram usadas para se referir à autoridade doutrinai dos
rabinos. “Ligar”, portanto, significava algo como declarar alguma coisa ilegal e
“desligar” significava declarar que alguma coisa era legal.96 Esse é o sentido mais
usual dos termos. Ao lado desse sentido, encontra-se outro, a saber, colocar sob
proibição (“ligar”) ou liberar da proibição (“desligar”), com respeito a expulsar ou
receber alguém numa sinagoga. Esse último sentido, todavia, é raro na literatura
rabínica. Finalmente, “ligar e desligar” pode também ter o sentido mais geral de
“consignação ao julgamento divino” e “absolvição” dele.97
No caso de Mateus 16.19, o método mais seguro será interpretar essas
palavras numa estreita conexão com o que foi dito acima, ou seja, fazer pronun­
ciamentos de condenação e absolvição com respeito à entrada no reino dos céus.
E uma realidade celestial corresponderá a isso, ou seja, aqueles a quem Pedro
prometer entrada no céu entrarão ao final; e aqueles a quem Pedro diz que o reino
está fechado vão encontrá-lo, de fato, fechado. Assim, o foco geral da questão,
nesse caso, é o poder judicial que foi dado a Pedro com referência à admissão ou
exclusão no reino dos céus.
A VINDA DO REINO E A IGREJA 263

Contudo, essa conclusão não exaure o significado das palavras se também


incluirmos em nossa discussão o pronunciamento feito em Mateus 18.18. Como
é bem sabido, há, ali, uma repetição quase literal da instrução para ligar e desligar,
só que, dessa feita, no plural (“vos”). Além disso, a instrução, nesse caso, ocorre
num contexto mais específico. As palavras aparecem ao final da ordem que deve
ser cumprida com respeito ao irmão que pecou. No caso em que uma admoesta-
ção em particular e uma admoestação com a ajuda de outros resulta em nada, a
regra é “dize-o à igreja”. E claro que a palavra “igreja”, aqui, tem um sentido mais
específico do que em Mateus 16.18. Ali, a igreja foi mencionada no sentido ideal
e geral, mas, aqui, temos uma igreja com um “endereço” definido, isto é, a igreja
formada num lugar em particular que pode se expressar e ser representada (“se
recusar também ouvir a igreja”). Qualquer indivíduo que também desobedecer
a essa igreja deve ser considerado “como gentio e publicano”. E, então, segue-se
a repetição do dito acerca de “ligar” e “desligar”.
Nesse contexto, essas palavras aparentemente têm um significado mais
específico do que em Mateus 16.19 porque estão mais estreitamente ligadas às
atividades da igreja local. Assim, “ligar” e “desligar” também certamente se referem
à autoridade executiva disciplinar quanto à membresia da igreja. Em conexão com
18.17, essas palavras devem indicar também expulsão da igreja e a readmissão
nela. Esse ponto de vista particular deve ser acoplado ao ponto de vista geral de
16.18. Eles não são pontos de vista contraditórios, mas complementares, pois a
ekklesia é a comunidade daqueles a quem foi dada a promessa de entrar no reino. A
expulsão do reino, portanto, também implica expulsão da igreja e vice-versa. Em
ambos os casos, o que está em jogo é a autoridade disciplinar, judicial, exercida na
terra e confirmada nos céus. Essa autoridade certamente não pode ser separada
da autoridade doutrinai, pois, num certo sentido, depende dela. Entretanto, por
causa do uso original dos termos “ligar” e “desligar”, somos da opinião de que
esses pronunciamentos também estão relacionados com a autoridade disciplinar,
judicial e que qualquer tentativa particular de eliminar esse sentido judicial na
explanação dessas passagens98 destrói o propósito essencial dos pronunciamentos
de Jesus.
E agora somos confrontados com a questão por demais debatida da apli­
cabilidade da autoridade de Pedro aos que viessem depois dele, em geral à igreja
que seria fundada graças aos seus esforços.
E bem conhecido o fato de que a teologia católico-romana se considera
autorizada a falar da “primazia papal baseada nas Escrituras” especialmente a
partir dessa passagem.99 Essa reivindicação repousa na ideia da sucessão apostólica
resultante de Pedro e seus poderes, bem como na ideia da sua posição hierárquica
em relação aos demais apóstolos e à igreja como um todo. Em oposição a isso,
exegetas protestantes têm argumentado que o sentido de Mateus 16.18 se aplica
264 A v in d a d o R e in o

somente a Pedro e não a seus sucessores.100 Outros estendem esses poderes dados
a Pedro também aos demais apóstolos, mas enfatizam seu caráter absolutamente
peculiar e einmalige (único).101
Em nossa discussão acima, apontamos para o lugar proeminente que Pedro
ocupou entre os discípulos (e, mais tarde, entre os apóstolos), de modo que po­
demos falar dele como primus interpares (o primeiro entre iguais) (cf. M t 10.2).
Ainda assim, se o pronunciamento de Mateus 16.18 não for isolado delibera­
damente, é impossível manter, mesmo por um momento, que ele unicamente ou
preeminentemente pode ser chamado de a pedra ou do fundamento da igreja; nem
é possível se provar que os poderes das chaves do reino dos céus foram atribuídos
exclusivamente a Pedro. Nesse caso, uma ideia dupla está em jogo, ou seja, a do
fundamento e a da autoridade.
Em ambos os casos, Pedro terá de ser encarado como o representante dos
outros discípulos. Com respeito à questão do fundamento da pedra, é suficiente
mencionarmos passagens como Efésios 2.20 e Apocalipse 21.14, nas quais os
apóstolos, juntos, são chamados de fundamento da igreja. Embora essas passagens
não sejam uma exegese direta de Mateus 16.18, elas mostram que, no que diz
respeito a esse assunto, não havia qualquer dúvida na pregação apostólica. Os
demais apóstolos compartilharam sua importância como fundamento da igreja
(cf. também G1 2.9). A esse respeito, é dificilmente possível falar de primado.
De fato, é claro que Pedro e outros apóstolos receberam uma posição única e não
transmissível com respeito à sua importância como fundamento. Isso, natural­
mente, implica a caracterização da pedra (fundação). Esse é o motivo pelo qual a
questão da successio apostolica pode ser descartada. A posição de um fundamento
é, pela natureza do caso, intransmissível.
As coisas são diferentes, no entanto, quando se trata da autoridade. Aqui,
também, aplica-se a declaração de que todos os apóstolos participavam dela
do mesmo modo que Pedro, pois, independentemente do fato de que essa au­
toridade é realmente aplicada à pregação apostólica como um todo (cf., p. ex.,
G 1 1.8-9; IC o 16.22), tanto João 20.21-23 quanto Mateus 18.18 sugerem que
essa autoridade não era pretendida apenas para Pedro. Mateus 18.18, em es­
pecial, é importante, pois repete no plural praticamente as mesmas palavras de
autoridade dadas a Pedro.102
M as devemos ir um passo além. Em contraposição ao que tem sido dito
sobre a “pedra”, os poderes são concedidos não somente aos apóstolos, mas a
toda a igreja. O ofício dos doze apóstolos chamados por Jesus pode ter tido uma
natureza peculiar e “única”, mas, com base em Mateus 18.18, será difícil manter
que o poder de ligar e desligar era exclusivamente deles.103 Essa declaração per­
manece verdadeira mesmo que todo o evangelho mostre que eles aceitaram sua
missão como apóstolos não apenas em virtude de algum dom carismático, mas
A VINDA DO REINO E A IGREJA 265

primariamente em decorrência do mandato que lhes foi dado por Cristo. Por­
tanto, para refutar104 a sucessão apostólica ensinada pela Igreja Católica Romana,
torna-se necessário, em especial, enfatizar os aspectos positivos da autoridade
mencionados em Mateus 16.18-19. Isso significa dizer que não se pode falar
de uma hierarquia nesse caso, pois a tarefa de ligar e desligar foi, desde o início,
confiada à igreja e não a Pedro ou a outro apóstolo qualquer.
Para estabelecer essa declaração será necessário estudar Mateus 18 um pouco
mais detidamente. Esse é um dos grandes “sermões” ligados do Evangelho de
Mateus. O tema específico de Mateus 18 é a relação mútua entre os discípulos,
mas, vez após outra, transparece que a fala não se dirige somente aos doze discí­
pulos (apesar de a anotação histórica no v. 1 “naquela hora, aproximaram-se de
Jesus os discípulos...”, possa sugerir isso à primeira vista).105 Esse capítulo tem a
ver com o que, no versículo 17, é chamado de “a igreja”. Não é injusto, portanto,
que o que se segue tenha sido chamado de norma para “a igreja”.106
Essa é uma implicação já do versículo 6, em que Jesus fala de “... um destes
pequeninos que creem em mim”. Esses pequeninos não são mais as criancinhas
mencionadas no versículo 5, mas os crentes simples, que, em sua atitude espiritual,
assemelham-se a essas crianças. O mesmo se aplica à declaração “não desprezeis
a qualquer destes pequeninos”, no versículo 10, e a “procurar a que se extraviou”,
nos versículos 12-14. Como transparece do versículo 14 (“assim, pois, não é da
vontade de vosso Pai celeste que pereça um só destes pequeninos”), a parábola
do pastor e seu rebanho, aqui, não é primariamente aplicável àquelas ovelhas
perdidas de entre os israelitas, que correm o risco de se perder, como, de fato,
ocorre em Lucas 15. A referência é ao cuidado pastoral que os discípulos terão
que dedicar aos “pequeninos” de entre os crentes. É verdade que alguns autores
pensam especialmente nos doze como pastores do rebanho,107 mas, diante do que
se segue - as instruções a serem seguidas no caso de um irmão que pecar - parece
ser necessário aplicar essa série inteira de ditos aos crentes em geral, isto é, à
igreja, pois o conteúdo do versículo 15 e seguintes trata de uma maneira muito
geral das relações mútuas entre os crentes, como fica evidente pela expressão “teu
irmão”.108 Portanto, no versículo 17, a igreja é mencionada como a entidade que
deve intervir se a admoestação pessoal e particular não surtir efeito. Disso tudo
fica claro que Mateus 18, repetidas vezes, trata da vida da igreja.
E por isso que, em nossa opinião, não pode haver qualquer dúvida de que opro­
nunciamento sobre a autoridade, no versiculo 19, deve ser entendido como uma referência
ao que a igreja recebeu, como tal, de Cristo e como o que é devido à igreja como tal.
De fato, a transição dos doze mencionados no versículo 1, para os crentes,
e, finalmente, para a igreja, é bem fluente. Isso seria inconcebível se a autoridade
de Mateus 16.18 tivesse um caráter exclusivo, quer exclusivamente de Pedro,
ou também dos outros apóstolos, não importa quão únicos e não irrepetíveis
266 A v in d a d o R e in o

tenham sido o significado e a importância deles como o fundamento e fundado­


res da igreja.109Tudo isso é confirmado pelas palavras notáveis que se seguem ao
pronunciamento de Mateus 18.18 sobre autoridade: “Em verdade também vos
digo que, se dois dentre vós, sobre a terra, concordarem a respeito de qualquer
coisa que, porventura, pedirem, ser-lhes-á concedida por meu Pai, que está nos
céus. Porque, onde estiverem dois ou três reunidos em meu nome, ali estou no
meio deles” (M t 18.19-20).Temos que entender essas palavras em conexão com
o pronunciamento precedente (cf. a expressão “na terra”, no v.18, que é repetida
no v.19: “sobre a terra”). Elas devem ser aplicadas não apenas à reunião dos doze
ou de alguns deles, mas à igreja que se reúne para agir, julgar ou orar por um
propósito tal como o mencionado no versículo anterior. Isso também é sugerido
pela frase “reunidos em meu nome”,110 no versículo 20. O poder das chaves não é
dado somente aos apóstolos, mas, num sentido mais amplo, à igreja e seus órgãos,
como transparece de modo muito claro de passagens como ICoríntios 5.2-5.111
Além do mais, a menção de “dois ou três” não deve ser entendida num
sentido individualista, como se qualquer grupo pequeno arbitrário de homens
fosse receber plena autorização, mesmo que outros sejam de opinião contrária,
pois, desse modo, essa declaração anularia a si mesma. O sentido da declaração
é que, quando não houver, em determinado lugar e ocasião, outros crentes para
concordarem com eles, esses dois ou três, como igreja de Cristo, podem estar
certos da ajuda especial de Deus.112
Por último, tudo isso também implica uma indicação da maneira em que a
natureza desses poderes deve ser entendida, ou melhor, a maneira de seu funcio­
namento. Esse último aspecto não é automático e incondicional. Os poderes de
Jesus não são promessas de infalibilidade: eles garantem a validade do julgamento
dos apóstolos e da igreja quando ambos agem em seu nome, estando em acordo
entre si e em comunhão com Cristo. “Ali estou no meio deles” (M t 18.20). Aqui
reside o mistério da concordância entre o que acontece na terra e o que acontece
no céu. O próprio Cristo exaltado opera juntamente com eles, guia-os à oração
unânime e, desse modo, assegura-os de sua aprovação divina. Aqueles que se
reúnem e que agem em nome de Cristo têm uma responsabilidade muito grande
com respeito à Palavra que Cristo lhes revelou. A sanção divina ao julgamento
que eles exercem depende de o mesmo estar de acordo com sua vontade revelada.
Esta permanece como a grande pressuposição que se fundamenta no caráter da
salvação prometida por Jesus. Nem tudo o que é feito no nome de Jesus é aceito
e sancionado por ele. Ao lado da promessa de Mateus 18.20, encontramos a
advertência de Mateus 7.22, na qual é feita menção daqueles que profetizaram
“na terra” em nome de Cristo, expeliram demônios em nome de Cristo, fizeram
muitas obras miraculosas (outra vez!) em seu nome e que apelam para todas essas
coisas no julgamento final. M as, “no céu”, lhes é dito que “nunca vos conheci”.
A VINDA DO REINO E A IGREJA 267

Com isso, o ponto de gravidade não é mudado do Espírito para a letra e da au­
toridade divina para a responsabilidade humana. Cristo edificará sua igreja. Essa
é a promessa incondicional. M as ele fará isso por meio daqueles que ele conhece
como “seus” (M t 7.23) em sua disposição para ouvir sua Palavra, realizar a sua
vontade e edificar sobre o fundamento lançado pelos apóstolos.
Finalmente, podemos perguntar: Até que ponto a organização da igreja se
torna visível no evangelho? Em resposta, devemos observar que uma organiza­
ção como tal, no sentido mais específico da palavra, dificilmente se percebe (se
estivermos considerando a igreja equipada com seus ofícios e funções). Em nossa
mente, Mateus 16 se refere à igreja como ekklesia no sentido geral e ideal da
palavra. Essa passagem é a carta de direitos da igreja, não seu plano elaborado.
Isso não altera o fato de que o conceito geral de ekklesia implica a noção
de unidade que se manifesta externamente. A ekklesia não é meramente uma
entidade ideal e invisível, mas também algo que se manifesta concreta e visivel­
mente. Isso é evidente pelo fato de que os apóstolos não são somente ordenados
a pregar o evangelho - eles também recebem o poder das chaves. Isso lhes dá
autoridade para traçar a linha de demarcação, já aqui na terra, entre aqueles que
entrarão no reino e os que não entrarão. Essa autoridade implica a visibilidade
da igreja.
Em Mateus 18, tudo isso é ainda mais claro, porque, aí, é mencionada a
igreja local, à qual se pode recorrer e a qual, num determinado caso, pode se ex­
pressar. De acordo com Klostermann, que segue as pisadas de Wellhausen, essa
passagem se refere à igreja de Jerusalém.113 Essa declaração, portanto, suposta­
mente se originou na igreja de Jerusalém posterior. M as é difícil perceber como
essa opinião pode ser provada. A palavra “igreja” ocorre, aqui, sem qualquer outra
indicação, apesar de pressupor, aparentemente, um ambiente judaico (“gentio e
publicano”). M as tal ambiente é o pressuposto da pregação de Jesus como um
todo, mesmo quando ele fala do futuro.114 Além disso, a menção dos “dois ou
três”, com certeza, não pode se referir primariamente à igreja de Jerusalém. Temos
que entender aqui a igreja como ela haveria de formar-se após a morte de Jesus,
onde quer que o evangelho fosse pregado.
Apesar de, aqui, nessa passagem, também não existir qualquer menção
de uma organização posterior da igreja, é claro que, em Mateus 18, a igreja é
mencionada de um modo mais definido do que em Mateus 16. Essa é a razão
pela qual vários exegetas que estão preparados para aceitar a autenticidade dos
pronunciamentos sobre a ekklesia, em Mateus 16, acham que devem considerar
essa passagem de Mateus 18 como um acréscimo posterior (como, p. ex., Kat­
tenbusch). Bem, é fato que, em Mateus 18, Jesus, aqui e acolá, fala de si mesmo
de uma maneira que não ocorre em nenhum outro lugar. Por exemplo, a frase
“aqueles que creem em mim” não ocorre em qualquer outro lugar nos sinóticos a
268 A v in d a d o R e in o

não ser aqui e na passagem paralela de Marcos 9.42. A frase “ali estou no meio
deles” (M t 18.20) é também muito fora do comum. Nesse caso, Jesus fala como
o Senhor exaltado. Essas palavras nos lembram o sermão de despedida de Jesus
no Evangelho de João. Além disso, o versículo 18, sem qualquer introdução, fala
da vida da igreja local.
Na minha opinião, deve-se considerar a possibilidade de que, numa certa
medida, nesse caso, bem como em outros, o evangelista influenciou a formulação
de diversas palavras de Jesus. Já que ele falou para a igreja e a partir dela, suas
palavras sobre “a” igreja, em Mateus 18, não precisam de explicações adicionais.
Além disso, as palavras “ali estou no meio deles” não parecem predizer a exaltação
de Jesus, mas sim pressupô-la. Tal pressuposição também pode ter sido formulada
pelo ponto de vista da igreja posterior.*
Por outro lado, é possível, em primeiro lugar, que Jesus tenha dito muito
mais acerca da formação da igreja do que o que nos chegou registrado nos
Evangelhos, pois é desnecessário dizer que, no Evangelho de Mateus, também,
a tradição das palavras de Jesus é preservada apenas em parte. E, em segundo
lugar, é claro que Mateus 18.19-20 fala somente dos inícios da formação da
igreja. A frase “dois ou três reunidos em meu nome” aponta para uma situação
em que a igreja ainda não havia recebido uma organização permanente e nem um
“endereço”, mas em que se manifestava somente na fé e no ajuntamento de uns
poucos indivíduos pessoalmente. Tudo isso é aplicável tanto ao tempo em que a
igreja ainda estava para ser formada quanto ao tempo em que a sua organização
havia alcançado um estágio de estabelecimento provisório (o tempo em que o
evangelista escreveu).
M as a coisa mais importante não é a forma em que essas palavras nos che­
garam, é se Jesus, de fato, falou acerca da igreja e de sua formação a acontecer
no tempo após a sua morte. E, acerca disso, não pode haver qualquer dúvida.
A ideia de ekklesia ocupa um lugar orgânico em suas palavras e está longe de
ser um corpus alienum no evangelho do reino dos céus. E isso não só porque se
trata de algo que pertence ao futuro escatológico, mas porque também é uma
realidade histórica. Essa realidade foi dada, a princípio, na vinda de Jesus e na sua
autorrevelação como o Messias. E quanto à perspectiva referente ao tempo após
o sofrimento e a morte de Jesus, já vimos que o significado redentor da morte
e da ressurreição de Jesus não traz o fim, mas, ao contrário, a continuidade do
futuro terreno. O ajuntamento da igreja não terminou com a morte de Jesus - de
muitas maneiras, foi sua morte que realmente o tornou possível, em primeiro
lugar. Veremos a confirmação de tudo isso em nosso último capítulo, que trata
das questões relacionadas com as declarações de Jesus quanto ao futuro.
A VINDA DO REINO E A IGREJA 269

38. Apostolado e batismo

O que foi dito antes prepara o caminho para uma perspectiva resumida da­
queles pronunciamentos encontrados no evangelho pelos quais Jesus encarregou
seus discípulos da pregação do evangelho do reino. E óbvio que esse encargo estava
estreitamente ligado com a ideia da ekklesia. A edificação da igreja, mencionada
em Mateus 16, vai de mãos dadas com a pregação do evangelho e seus frutos. Já
foi demonstrado que Jesus tinha em mente, especialmente, as atividades futuras
de seus discípulos quando discutiu o significado e os poderes conferidos a Pedro.
Aqui, nossa atenção se volta para aquelas passagens que mencionam claramente
a comissão que Jesus deu aos discípulos e a tarefa deles de pregar o evangelho.
A primeira passagem nesse contexto é a que trata de um incidente durante
a estada de Jesus na Galileia. E o envio dos discípulos mencionado em Mateus
10, Marcos 6 e Lucas 9, juntamente com o envio dos setenta (e dois),115 men­
cionado em Lucas 10.
O que primeiro nos chama a atenção é a noção de “enviar” (apostellein) (M t
10.5; M c 6.7; cf. M c 3.14; Lc 9.2; 10.1) e “apóstolo” (apostolos) (M t 10.2; Mc
6.30; Lc 6.13; 9.10; cf. também M t 10.16; Lc 10.3). Pesquisas recentes baseadas
especialmente no conhecimento que temos do judaísmo posterior elucidaram em
todos os sentidos esse terminus technicus. A palavra (especialmente o substantivo
apostolos) deve ser abordada primeiramente a partir da esfera jurídica. Ela indica
um embaixador com uma missão especial e que age em nome de uma pessoa,
representando-a, e que recebeu plena autoridade e poderes para esse propósi­
to.116 Consequentemente, lemos que, durante o seu ministério na Galileia, Jesus
deu autoridade ( exousia, M t 10.1; Lc 9.1) a seus doze discípulos (e mais tarde
aos setenta [e dois]) para expelir demônios, curar doenças e proclamar que o
reino dos céus estava próximo (M t 10.2,7,8 e paral.). Em plena harmonia com
o caráter de sua missão, eles relatam a Jesus o que haviam feito ao retornar (Mc
6.30, apaggello, cf. Lc 9.10). A essa altura ainda não havia a noção de um ofício
permanente. O apostolado deles - bem como o apostolado dos setenta (e dois)
em Lucas 10 - ainda tem uma natureza temporária. Disso se conclui que as ins­
truções dadas por Jesus (bem como as que mais tarde foram dadas aos setenta [e
dois]) referem-se a esse encargo em particular e não precisam necessariamente
ter uma validade permanente e universal. Isso vale para o início da jornada de­
les, em que não deveriam levar dinheiro nem comida (como fica claro de uma
comparação com Lc 22.35ss). Também não é permissível fazer aplicações com
respeito à pregação do evangelho a ser realizada mais tarde a partir da proibição
feita para que eles não fossem pelo caminho dos gentios e nem entrassem em
cidade de samaritanos (M t 10.5).Tratava-se de uma autorização particular dentro
de limites temporários e locais.117
270 A v in d a d o R e in o

Isso não diminui o fato de que, já nessa primeira missão, torna-se visível a
principal característica do que Jesus, mais tarde, confiará a seus discípulos como
um encargo permanente e contínuo, a saber, a pregação do evangelho em palavras
e obras. E verdade que não há qualquer menção explícita do estágio inicial da
formação de uma igreja. M as Jesus, de fato, diz aos discípulos que eles devem ir às
ovelhas perdidas da casa de Israel (M t 10.6). Desde o início, portanto, o propósito
da atividade deles em nome de Jesus é ajuntar o povo de Deus. Essa obra também
aparenta um caráter seletivo. Ao entrar nas cidades, eles devem procurar aqueles
que são “dignos”. Eles devem permanecer na casa destes, sem ficar se hospedando
de casa em casa (Lc 10.7). Além disso, eles devem dizer: “Paz seja nesta casa”.
Se a casa for digna dessa paz (M t 10.11), se houver nela um “filho da paz” (Lc
10.6), a paz deles repousará sobre ela, o que será comprovado pelo fato de que
os moradores os receberão e crerão em suas palavras (M t 10.14). Caso isso não
aconteça, a paz voltará para eles novamente, não terá qualquer efeito soteriológico.
Então, eles devem sacudir o próprio pó da cidade de suas sandálias, interromper
a comunicação com seus habitantes e, apesar de tudo, dizer-lhes: “Sabei que
está próximo o reino de Deus” (Lc 10.11). No dia do julgamento, haverá maior
tolerância para Sodoma e Gomorra do que para aquela cidade, mesmo que seus
habitantes pertençam a Israel (M t 10.15; Lc 10.12).
Tudo isso revela o caráter da primeira missão dos discípulos, que era peneirar
e ajuntar o verdadeiro povo de Deus. A chegada deles traz paz (eirene), isto é,
salvação no sentido mais abrangente da palavra. O que sela a bênção (shaloni) deles
é o fato de que foram “enviados” por Jesus. A bênção deles não é simplesmente
um desejo, mas se caracteriza como um dom que é aceito ou rejeitado. A missão
deles torna manifestos os que serão absolvidos no dia do julgamento, ela reúne
as verdadeiras ovelhas da casa de Israel.
De um ponto de vista objetivo, não é estranho que Mateus acrescente a essa
primeira missão dos discípulos toda uma série de pronunciamentos feitos por
Jesus que se referem à missão futura dos apóstolos depois da sua ressurreição (cf.
v. 17ss), pois, mesmo sem a grande comissão, registrada em Mateus 28, o evange­
lho repetidamente mostra que essa tarefa missionária os aguarda no futuro, sem
que sejam mencionadas, no entanto, as palavras “enviados” ou “apóstolos”. Isso
ocorre particularmente nas parábolas acerca da administração e do cuidado dos
bens confiados por um senhor a seu servo por ocasião de sua ausência motivada
por uma viagem ao exterior (M t 25.14ss; Lc 19.12ss). Fica claro que, nesse caso,
Jesus refere-se a si mesmo e aos seus discípulos e que a administração e cuidado
de seus bens, dos quais seus servos haverão de prestar contas, é uma referência
ao chamado de seus discípulos no serviço do evangelho.118 Do mesmo modo, o
pensamento central dos sermãos de despedida encontrados nos sinóticos - os
quais pretendemos discutir adiante com mais detalhes - é que os discípulos,
A VINDA DO REINO E A IGREJA 271

especialmente por pertencerem a Jesus e por professarem fé nele como Cristo,


serão submetidos a todo tipo de aflições e perseguições (tanto em M t 10.17-25
como em M c 13.9-13; Lc 21.12-17; cf. Lc 12.11-12). Com isso em vista, eles
são exortados por Jesus a professarem seu nome sem medo (M t 10.26-33; Lc
12.2-9; cf. M c 8.38; Lc 9.26) e ele também assegura aqueles que “receberão” seus
discípulos (como pessoas que foram enviadas por ele) que estarão recebendo a
ele próprio. Todo aquele que recebe um profeta porque é um profeta receberá
o galardão de um profeta (M t 10.40-41; cf. também M c 9.41). Jesus conta
seus discípulos entre os profetas e os justos. Desse modo, ele deixa claro que o
apostolado significa a continuidade de sua missão no mundo.119 Essas palavras
provam que um apostolado contínuo e permanente é uma pressuposição do seu
ensino, especialmente no que se refere ao tempo após sua partida deste mundo.
Do mesmo modo, Jesus adverte contra os falsos profetas que virão operando
“em teu nome”, para os quais ele dirá “nunca vos conheci”, isto é, que nunca os
reconheceu ou os enviou como seus apóstolos autorizados (M t 7.21-23).
Isso não altera o fato de que essa tarefa permanente dos discípulos, de agir
como apóstolos e substitutos de Cristo, é dada a eles somente depois da ressur­
reição. Não lemos nada acerca dessa comissão formal antes desse período. Isso é
perceptível também pelo fato de que os apóstolos, nesse sentido posterior e per­
manente da palavra, são repetidamente chamados de testemunhas da ressurreição
de Jesus (cf. Lc 24.48; At 1.22; etc.). Somente então a proclamação deles assume
um caráter pleno de pregação do cumprimento de acordo com as Escrituras e o
caráter universal de sua missão recebe a devida proeminência - outra prova de
que o cumprimento havia chegado.
Essa nova e permanente autorização dada aos discípulos pelo seu Senhor
ressurreto é encontrada no locus classicus do mandamento missionário, Mateus
28.16-20, bem como na conclusão (provavelmente secundária) de Marcos 16
(i.e., nos vs. 15 e 16) e em Lucas 24.46-49. E verdade que a palavra apóstolos não
é usada nesses relatos, mas não pode haver dúvida de que a obrigação colocada
sobre os ombros dos discípulos aqui os torna apóstolos permanentes. Em todos
os três relatos há menção da pregação da Palavra: Marcos se refere a ela como
“pregação do evangelho”; Lucas, como “ser testemunhas dessas coisas”; Mateus,
como “fazer discípulos”. Em adição, Marcos menciona o poder para a realização
de milagres, falar em línguas estrangeiras e enfrentar perigos. Lucas condiciona
a aceitação dessa tarefa ao dom do Espírito Santo. A diferença de terminologia
e nos elementos dos três relatos não pode ser usada para se falar em contradição
mútua ou em diferença de clima espiritual.120 Pelo contrário, pode-se dizer que os
três evangelistas estão em plena harmonia, pois tudo o que encontramos em seus
relatos está de acordo com a totalidade do evangelho que os precede, o evangelho
do reino dos céus, constituindo-se na sua conclusão natural.
272 A v in d a d o R e in o

Quanto a essa comissão, gostaríamos de destacar os seguintes pontos:

Em primeiro lugar, em todos os três relatos são os onze discípulos que


recebem essa missão em primeira instância (cf. M t 28.16; M c 16.14; Lc 24.33;
cf. At 1.13). Com base nessa autorização dada pelo seu Senhor ressurreto, são
eles aqueles que, num sentido especial, se tornam os portadores do apostolado,
apesar de isso não significar que a tarefa que lhes foi dada deveria ficar restrita
somente a eles. Indubitavelmente, o nome de apóstolo foi usado somente num
sentido restrito pela igreja primitiva, pois os apóstolos originais receberam essa
missão como o fundamento da igreja, o seu número de doze indicando que eles
deveriam ser os representantes do novo Israel.121 Nesse sentido, não pode haver
dúvida de que a tarefa que lhes foi imposta por Cristo, a qual os marcou como
apóstolos, é a tarefa permanente da igreja, apesar de essa tarefa permanecer
dependente dos apóstolos quanto ao conteúdo da sua pregação. O significado de
ekklesia, portanto, não é exaurido pela igreja nesta dispensação pelo simples ouvir
e praticar a Palavra divina. O serviço dela é também prestado ao mundo. Numa
medida considerável, esse serviço determina a importância histórico-redentora
da igreja no tempo entre a ressurreição de Cristo e sua parousia}11
Em segundo lugar, o propósito desse dever imposto por Cristo é perfeitamente
transparente dentro do contexto da totalidade da pregação do reino dos céus: é o
ajuntamento do povo messiânico, o qual, como povo de Deus, desde a antiguidade
recebeu a promessa do futuro grandioso. E isso também significa123 o estabeleci­
mento e a edificação da igreja. O instrumento grandioso para isso é a pregação do
evangelho, a qual, entretanto, é mais do que a mera proclamação da salvação e do
julgamento, pois ela tem um sentido de continuidade, isto é, de fazer discípulos
( matheteuein, M t 28.19) e ensinar (didaskein, v. 20) a guardar (terein) tudo o que
Cristo ordenou (entellomai) a seus discípulos} 1AEste último elemento se refere à
vida da ekklesia ao mundo. Ela tem que guardar, manter todas as ordens de Jesus,
o que se relaciona especialmente com a observância de seus mandamentos (entole).
O propósito da pregação missionária não é somente salvação do julgamento (Mc
16.16), mas - algo que é óbvio, apesar de ser com frequência negligenciado na
prática - a conversão como uma reforma positiva e abrangente da vida (M t 5.13ss).
O fato de que isso é mencionado em separado em Mateus 28.20 aponta para o
fruto permanente e contínuo da pregação do evangelho na vida da ekklesia e na
vida das nações nas quais a igreja é estabelecida (o que transparece do conceito
terein, implicando num período maior de tempo). Aqui somos lembrados do que
foi dito num capítulo anterior (em conexão com a parábola do fermento) acerca
da operação da Palavra, e de uma passagem como Mateus 5.13-14, que fala da
obediência aos mandamentos de Jesus - um dom do reino - como um princípio
permanente, positivo e crucial para a vida do mundo.125
A VINDA DO REINO E A IGREJA 273

Em terceiro lugar, podemos apontar para o caráter universal da tarefa que


o Cristo ressurreto impôs a seus apóstolos. Essa característica é enfatizada em
todos os três relatos da ressurreição. Mateus e Lucas falam de “todas as nações”
(panta ta ethne), e Marcos, de “todo o mundo” (pasa he ktisis).126 De modo algum
a passagem implica mudança ou conversão de uma nação inteira ao cristianismo,
nem significa que “igreja” e “povo” podem ser identificados mutuamente numa
certa medida, como algumas vezes é afirmado por algumas teorias missionárias.127
Isso estaria em conflito com o caráter do povo neotestamentário de Deus, pois
ele é constituído como tal por meio da fé em Cristo e não na nação ou nos laços
nacionais.128 O fato de que a passagem fala de pessoas de todas as nações não
exclui o fato de que, “ao se tornarem discípulos, essas pessoas se tornam impor­
tantes para a existência das nações às quais pertencem, de modo que estas, como
tais, caem dentro da esfera do apostolado e de sua mensagem e passam a ter seu
centro oculto na igreja que existe entre elas”.129
Aqui, todavia, outra questão se levanta, a qual exige uma resposta muito
mais detalhada, pois há muitos autores que negam que o próprio Jesus tenha
encarregado os discípulos dessa missão entre as nações.
Com respeito a isso, muitos têm escrito frequentemente a partir dos con­
ceitos contraditórios do particularismo-universalismo. Assim, Harnack, por
exemplo, tentou mostrar que o próprio Jesus nunca deu qualquer orientação
definida a seus discípulos quanto ao trabalho missionário entre os pagãos, apesar
de sua doutrina ter um caráter intensamente universalista, já que ele liberou a
religião internamente de seu solo nacionalista e fez do homem, e não dos ju ­
deus, seus portadores. Ainda assim, ele queria limitar-se aos judeus apenas e,
nesse aspecto, não rompeu com o esquema particularista.130 Outros, com base
na interpretação escatológica, têm sustentado que uma missão entre os pagãos
seria algo inconcebível na mente de Jesus, como, por exemplo, A. Schweitzer,
recorrendo a Mateus 10.5-6.131 Conceitos semelhantes são defendidos por autores
que consideram que, na expectativa de Jesus, os acontecimentos escatológicos
(inclusive aqueles pertinentes à salvação) deveriam se espalhar de Israel, como
o centro, para todas as nações do mundo; porém, não se falava sobre uma missão
aos povos gentios132
O resultado de tudo isso é que o grande mandamento missionário do Se­
nhor ressurreto, em Mateus e Lucas, é considerado como não histórico e todas as
palavras que Jesus falou, já antes de sua morte, com respeito ao mundo gentílico,
são consideradas como uma composição posterior. Isso se aplica, em particular,
às palavras que nos chegaram registradas na história da unção em Betânia: “Em
verdade vos digo: Onde for pregado em todo o mundo este evangelho, será tam­
bém contado o que ela fez, para memória sua” (M t 26.13; M c 14.9), bem como
ao pronunciamento que ocorre no chamado apocalipse sinótico: “E será pregado
274 A v in d a d o R e in o

este evangelho do reino por todo o mundo, para testemunho a todas as nações.
Então, virá o fim” (M t 24.14; cf. M c 13.10, “M as é necessário” - necessidade
histórico-redentora! - “que primeiro o evangelho seja pregado a todas as nações”).
Com respeito a isso, as seguintes observações devem ser feitas:

a) Sundkler, por exemplo, corretamente enfatizou o fato de que a alternativa


entre particularismo e universalismo não pode se aplicar ao evangelho.133 A ideia
central do reino dos céus tem um significado essencialmente universal, apesar de,
no início, ter sido revelada a Israel e em relação a Israel. Isso é verdadeiro não
apenas num sentido cósmico, mas também num sentido étnico, pois significa
que o domínio de Deus sobre tudo o que foi criado haverá de brilhar outra vez
em glória inquebrantável. É assim que Billerbeck escreve também que a ideia
da basileia como um conceito escatológico naturalmente implica a obtenção do
propósito de sua vinda, isto é, sua manifestação em glória, e, por essa razão, a
ideia do reino trazido e pregado por Jesus, bem como a ideia da “missão a todo
o mundo”, estão indissoluvelmente ligadas.134
Mesmo sem a ideia de uma missão mundial, o caráter universal da salvação
vindoura permanece como um dos conceitos essenciais da basileia. Tudo isso
está baseado na “escatologia” veterotestamentária. Ao longo de todo o Antigo
Testamento, encontramos essa tendência de que o mundo inteiro e suas nações
estão incluídos na salvação prometida a Israel.135 Isso se aplica, em particular,
àquelas profecias que servem de ponto de partida para Jesus, especialmente Isaías
40-66. Aqui encontramos a origem da figura do arauto da salvação e do conceito
do evangelho como kerygma. E é exatamente nessas profecias que o caráter da
salvação do Senhor se revela claramente como alcançando todas as nações. Nas
profecias sobre o Servo do Senhor, tudo isso recebe um valor especial. Por um
lado, encontramos o pensamento de que o Servo foi eleito por Deus para que
Israel e todas as demais nações compartilhem da salvação do Senhor (cf. Is 43.1ss:
essa profecia foi aplicada à obra de Cristo pelo Evangelho de Mateus, cf. 12.18ss;
Is 49.1). E, por outro, os sofrimentos e a morte do Servo são aqui representados
como uma tarefa indispensável e substitutiva que ele deve realizar com o objetivo
de efetivar a salvação de “muitos” (aqui o contexto dessas profecias nos impede de
entender esses “muitos” como um número indefinido apenas dentro de Israel). “Em
parte alguma do Antigo Testamento encontramos essa visão mundial expressa
com maior clareza, em nenhum lugar encontramos um chamado tão claro para
o esforço missionário ativo e em nenhum outro lugar encontramos a base dessa
atividade na passividade, num sofrimento que, por seu espírito, se torna a força
mais potente e ativa de todas”.136
b) Essa tendência universal, portanto, é observável no evangelho desde seu
início e de maneira gradualmente crescente.137 Já é significativo o fato de que
A VINDA DO REINO E A IGREJA 275

Jesus traçou a genealogia de Jesus até Adão (Lc 3.38) e que, em sua genealogia,
Mateus de modo proposital menciona as ancestrais gentias de Jesus pelo nome
(Tamar, Raabe, Rute; cf. M t 1.3,5). Imediatamente depois do nascimento de Je ­
sus, os sábios das terras dos gentios aparecem em Jerusalém (M t 2.1ss) e Simeão
publicamente testifica no templo que, nesse momento, Deus havia preparado a
salvação revelada a ele “diante de todos os povos”, uma “luz para revelação aos
gentios” (Lc 2.31-32). E, além disso, Mateus, mais de uma vez, ressalta o fato
de que o surgimento e as ações de Jesus são o cumprimento da profecia que, na
salvação prometida a Israel, incluía também os gentios (como já ocorre em M t
4.15, mas especialmente em 12.18-21). Quanto à própria pregação de Jesus,
devemos destacar o propósito claramente universalista de sua predição (por
ocasião da manifestação de fé do centurião romano, um gentio) de que muitos
virão do Oriente e do Ocidente e se sentarão à mesa com Abraão, Isaque e Jacó
no reino dos céus (M t 8.11; Lc 13.28), como também a descrição do julgamento
das nações (em M t 25.32 e outros lugares), no qual as ovelhas serão separadas
dos bodes. Além disso, a proclamação inicial de Jesus na sinagoga de Nazaré
contém, ao mesmo tempo, uma advertência implícita, ou seja, que, à semelhança
dos dias de Elias e Eliseu, a salvação pode ignorar Israel e passar a pertencer
aos gentios (Lc 4.25-27). As curas de pessoas gentílicas apontam para a mesma
direção, ainda que realizadas dentro das fronteiras do território dos Herodes,
isto é, na região dos gadarenos (M t 8.28-34ss), em Betsaida e Decápolis (Mc
7.31ss; 8.22). Nesse sentido, a cura dos dez leprosos se reveste de um significado
especial. Deles, somente um samaritano voltou, o que ocasionou as palavras de
Jesus: “Não houve, porventura, quem voltasse para dar glória a Deus, senão este
estrangeiro (allogenes)?” (Lc 17.11-19).
Essas palavras, à luz das quais outros ditos de Jesus também assumem um
propósito universalista (p. ex., M t 5.13-14, nos quais os discípulos são chamados
de luz do mundo e sal da terra; M t 13.38, onde o mundo é designado como o
campo da boa semente), são confirmadas de maneira enfática na parábola das
bodas, em Mateus 22.1-14, e na parábola do banquete, em Lucas 14.15-24. Não
podemos simplesmente equiparar essas duas parábolas;138 no entanto, elas têm,
em muitos aspectos, o mesmo objetivo. Apesar de os convidados para a salvação
terem apresentado toda sorte de desculpas, maltratado e matado os enviados do
Rei (de acordo com Lucas, depois que os pobres, aleijados, paralíticos e cegos
foram chamados), outras pessoas, as quais foram encontradas nas estradas e nas
ruas da cidade, foram compelidas a entrar. Esse último grupo certamente repre­
senta os gentios.139 Sem dúvida, isso só aconteceu depois que o chamamento da
nação israelita fracassou. A mudança para os gentios, mesmo não mencionada
como tal, é inegável.140 O mesmo se aplica à parábola dos lavradores maus, a
qual já foi discutida anteriormente. Aqui se pronuncia o julgamento: o reino de
276 A v in d a d o R e in o

Deus será tirado “de vocês” (da nação de Israel, representada pelos lavradores) e
entregue a outro povo (ethne), que produzirá os frutos. O contexto deixa claro o
sentido: uma nova comunidade haverá de substituir o povo judeu. Aqui, também,
é intencionada a transferência da salvação para os gentios.
Sem dúvida, não há, ainda, qualquer menção explícita a uma missão entre os
gentios nas passagens mencionadas acima. Ainda assim, as duas últimas parábolas
apontam nessa direção de maneira natural, pois, na parábola do banquete (da
festa de casamento), o ponto principal é o chamado feito pelos mensageiros do
senhor (o rei) e a parábola dos lavradores maus fala de um povo que haverá de
produzir os frutos do reino de Deus. Esses frutos, indubitavelmente, são a fé e a
conversão, os quais pressupõem a pregação e a proclamação da salvação.
c) Esta última declaração pode ser deduzida de mais do que apenas de al­
gumas passagens isoladas, por mais importantes que elas sejam, pois, apesar de a
universalidade da salvação já ter sido revelada no Antigo Testamento e confirmada
nos Evangelhos sinóticos de diversas maneiras e de essa salvação, desde então,
consistir basicamente na pregação do evangelho, essefato está inseparavelmente
unido ao cumprimento inaugurado pela vinda de Jesus. Pois, como já vimos ante­
riormente, a maneira desse cumprimento é provisional, interina, e consiste mais
exatamente na pregação do evangelho, o qual tem seu fundamento e seu conteúdo
no sofrimento e morte de Jesus. Esse é o motivo pelo qual a pregação do evangelho
aos gentios é a conseqüência natural desse cumprimento, pois a universalidade da
salvação se concretiza no cumprimento e somente assim ela pode ser realizada
em conseqüência do caráter provisório do cumprimento. Essa modalidade espe­
cífica do cumprimento é apresentada de maneira deturpada por autores tais como
Sundkler, Dahl, Kümmel, etc. Esse é o motivo pelo qual eles deixam de perceber
a ligação necessária entre a universalidade da salvação e a pregação.
Diante desses fatos, as antigas objeções141 feitas a partir de Mateus 10.5
(“Não tomeis rumo aos gentios, nem entreis em cidade de samaritanos”, etc.) e
de Mateus 15.24 (“Não fui enviado senão às ovelhas perdidas da casa de Israel”)
perdem sua força. Já falamos sobre o caráter provisional, local e temporário do
“tomeis rumo”, em Mateus 10.5. E o mesmo se aplica a Mateus 15.24. O fato
de que Jesus não considerava como tarefa sua ir aos gentios em nada prejudica
a tarefa futura dos discípulos. Já em Isaías 53, transparece que somente o so­
frimento e a morte do Servo do Senhor abrem a salvação para os “muitos”. Ê
justamente isso que é confirmado na autorrevelação messiânica de Jesus. E essa
é a razão pela qual a pregação de Jesus até à sua morte se restringe a Israel; não
deve ser procurada na ideia centrípeta de que Jerusalém ou o Templo são o
centro do mundo.142 Somente depois da morte e da ressurreição de Jesus é que
o evangelho poderia ser anunciado aos gentios. Tudo isso se encontra tanto nas
profecias quanto na autorrevelação de Jesus. Não é o resultado inesperado de
A VINDA DO REINO E A IGREJA 277

uma “situação não escatológica” que se formou depois da morte de Jesus. Nesse
complexo de fatores, a rejeição do evangelho por parte de Israel desempenha
importante papel.143 E como se fosse a condição negativa para a pregação aos
gentios e para o conteúdo universal que agora se comunica ao conceito “povo
de Deus”. O ponto principal, entretanto, é que, na administração iniciada com
a vinda de Jesus, todos esses fatores juntos impelem com urgência a salvação a
romper as barreiras que, até então, a continham. Esse rompimento tornou-se
definitivo depois da morte de Cristo.
d) Com base no que foi dito acima, não pode haver dúvida quanto aos
pronunciamentos dos Evangelhos que anunciam a proclamação universal da
salvação no período posterior à morte de Cristo (Mt 26.13; M c 13.10)144ou sobre
aqueles pronunciamentos que explicitamente ordenam essa proclamação (Mt
28.16-20; Lc 24.46ss; M c 16.15ss). E verdade, no entanto, que outros autores
têm procurado negar a autenticidade de Mateus 28.16ss com base em outros
argumentos,145 especialmente porque defendem que a “fórmula trinitariana” seria
“prematura” aqui e também porque o conflito a respeito da missão aos gentios
descrito em Atos 15, por exemplo, seria ininteligível à época. Quanto ao primeiro
argumento, as palavras “em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo” não
devem ser concebidas como uma “fórmula” batismal. Muito pelo contrário, são
uma indicação do significado do batismo. Como tal, ninguém terá bases corretas
para argumentar que essas palavras “estão fora do escopo da pregação de Jesus”
e são, em conseqüência, secundárias.146 Quanto ao segundo argumento, deve-se
fazer uma distinção aguda entre a missão aos gentios e a maneira pela qual eles
seriam admitidos na igreja cristã. A missão, em si, nunca foi questionada. E
Mateus 28.16-20 não fala sobre o modo da admissão dos gentios.
Todavia, não importa de que maneira a última pergunta seja respondida em
detalhes - o mandamento para que o evangelho seja pregado a todas as nações
é, em todos os sentidos, a conclusão orgânica e natural da pregação do reino dos
céus. Em si, não é uma coisa estranha que os apóstolos não tenham entendido
imediatamente como cumprir a missão de pregar o evangelho a toda criatura,
seguindo a seqüência que lhes foi dada: Jerusalém, Judeia, Samaria e “confins da
terra” (cf. Lc 24.47; A t 1.8). M as isso em nada altera o fato de que esse manda­
mento, em si, flui muito naturalmente da pregação de Jesus como um todo. E
uma necessidade histórico-redentora não somente em si mesma, mas também
vista dentro do escopo de toda a administração do cumprimento que começou
com a vinda e obra de Jesus (cf. dei, “é necessário”, M c 13.10). Ela dá significado
e propósito ao período subsequente do mundo: é uma das tarefas mais essenciais
que a igreja deve cumprir no mundo nesse período.
Finalmente, nesse contexto, devemos chamar a atenção para a ordem de
batizar. Tanto em Mateus 28 quanto no final de Marcos, essa ordem está ligada
278 A v in d a d o R e in o

ao chamado missionário dos discípulos. Essas são as primeiras e únicas passagens


no evangelho do reino que mencionam o batismo como uma ordem de Cristo.
N a primeira parte de nossa investigação, mencionamos o batismo de João, o
qual os Evangelhos chamam de “batismo de arrependimento para remissão de
pecados” (Mc 1.4; Lc 3.3; cf. M t 3.6). Esse batismo, como a pregação de João,
tinha um caráter claramente escatológico. Ele servia para assegurar a todos que
fossem batizados que obteriam o perdão de pecados na conversão, diante da “ira
vindoura” (M t 3.7; Lc 3.7). Pesquisas recentes têm estabelecido claramente147
que esse batismo, como uma cerimônia, era uma continuação do batismo dos
chamados prosélitos. João, todavia, administrou esse batismo dentro do círculo da
nação judaica, de maneira que sua conexão com o batismo de prosélitos adquiriu
um sentido muito fértil. Assim, o batismo fez uma separação de entre os filhos de
Abraão como tais (cf. M t 3.9; Lc 3.8), com a ideia de um novo e genuíno povo
de Deus por esse motivo aparecendo em primeiro plano.
Ao mesmo tempo, João fez um contraste entre o batismo que ele fazia com
o do Messias por vir. Seu batismo era com água, ou seja, João só podia lavar
pecados metaforicamente. Ele não tinha à sua disposição o que ele representava
numa imagem e podia apenas prometê-lo em nome de Deus (cf. M t 21.25 e
paral., e ainda v. 32). O Messias por vir haveria de batizar com o Espírito Santo
e com fogo, que indicam tanto o dom quanto o julgamento no tempo vindouro
da salvação. Sem dúvida, essas palavras da pregação de João têm um significado
simbólico, isto é, elas não se referem ao batismo cristão (com água!), mas à se­
paração escatológica a ser produzida pelo Messias na manifestação da sua glória.
Não se pode considerar, portanto, que o batismo ordenado por Cristo tenha sido
predito por João, embora o cumprimento da profecia de João a respeito do ba­
tismo do Espírito Santo haveria de acontecer no Pentecostes, isto é, na era atual
(At 1.5). O significado do batismo cristão, desse modo, não pode ser derivado
dessa palavra de João.
Mais recentemente, Cullmann fez uma associação estreita entre o batismo
cristão e o batismo de Jesus. Ele - corretamente - percebe, na voz que procede
do céu por ocasião do batismo de Jesus, uma alusão a Isaías 42.1 e infere, disso,
que o batismo de Jesus apontava para a sua morte, pois, de acordo com a profecia
que começa com Isaías 42.1 sobre o Servo do Senhor, ele tinha que se entregar
a essa morte. As palavras de Jesus a João, “assim, nos convém cumprir toda a
justiça” (M t 3.15), são interpretadas por Cullmann como uma referência ao fato
de que Jesus foi batizado por todos os homens, no que sua morte por todos eles
é simbolizada antecipadamente. Cullmann fala de um Generaltaufe (um batismo
universal), o qual se concretiza, primeiro, no batismo de Cristo e então em sua
morte. Portanto, todos os homens, estejam conscientes desse fato ou não, foram
batizados na morte de Cristo. A administração do batismo cristão não é nada
A VINDA DO REINO E A IGREJA 279

mais que uma inclusão passiva e causativa no corpo de Cristo. A fé, por conse­
qüência, não é uma condição, mas o efeito e resultado do batismo.148 Devemos
também mencionar a opinião de Cullmann de que o significado do batismo de
Cristo como aceitação do sofrimento e da morte se percebe também em dois
pronunciamentos nos quais Jesus fala do batismo antes de sua morte, a saber,
Marcos 10.38, “Podeis vós beber o cálice que eu bebo ou receber o batismo com
que eu sou batizado?”, e Lucas 12.50, “Tenho, porém, um batismo com o qual hei
de ser batizado; e quanto me angustio até que o mesmo se realize!” Em ambos
os casos, a expressão “ser batizado”, como uma indicação do sofrimento que se
aproxima, deve ser entendida em seu sentido próprio. O sofrimento e a morte
de Jesus em seu batismo já haviam sido simbolizados no batismo do Jordão, o
batismo “universal” que ele experimentou por todas as pessoas. Essa também seria
a explicação, segundo Cullmann, do fato de que o próprio Jesus não batizava. Ele
foi batizado somente em seu sofrimento e em sua morte.149
Em nossa opinião, a opinião de Cullmann é parcialmente uma construção,
mas também está, parcialmente, em conflito aberto com o Novo Testamento. Sem
dúvida, o batismo de Jesus indica também a sua humilhação. Isso está expresso em
Mateus 3.14-15 e pode ser, talvez, inferido de uma alusão a Isaías 42.1, embora
essa passagem não se refira exclusivamente à sua humilhação. Todavia, nada disso
pode provar que o batismo de Jesus é um símbolo de sua entrega voluntária ao
sofrimento e à morte, pois, em nossa opinião, não existe qualquer base no relato
do batismo de Jesus para que se possa estabelecer esse tipo de ligação direta.
O apelo a Marcos 10.38 e Lucas 12.50 fornece, em nossa opinião, apenas uma
semelhança de apoio a essa ideia. O uso de baptizein (batizar) é realmente im­
pressionante. M as a inferência de que Jesus chama seu sofrimento e sua morte
de “batismo” porque seu batismo por João já representava isso para ele não nos
parece suficientemente justificada. O termo “batizar”, nessas duas passagens,
é usado no sentido metafórico geral de afundar, mergulhar,150 visto que não é
somente o sofrimento de Jesus que é referido como um “batismo”, mas também
o sofrimento de Tiago e João (Mc 10.39).
Sempre será difícil aferir com exatidão até que ponto esse uso incomum
de “batizar” em Marcos 10.38 e Lucas 12.50 tenha sido determinado, de algum
modo, pelo batismo de Jesus por João. Contudo, certamente não se pode aceitar
a maneira como Cullmann usa esse material para chegar à sua concepção de
que o sofrimento e a morte de Jesus representam um batismo “universal”. Aqui,
Cullmann se reporta a Mateus 3.15, mas o “cumprir toda a justiça” não pode ser
entendido como um ato universal que ocorre em favor de toda a humanidade,
em favor de cada um. Isso estenderia o batismo de Jesus quantitativamente. Mas
a palavra “toda”, na passagem, tem um sentido qualitativo, ou seja, Jesus e João
deveriam fazer tudo o que o Pai requeria deles (“nos”).
280 A v in d a d o R e in o

A caracterização do batismo de Jesus (e de sua morte) como um “batismo


universal” é apenas uma mera construção superficial. De acordo com essa ideia,
todas as pessoas, independentemente de seu consentimento, fé e entendimento,
são batizadas de uma vez por todas e o seu batismo, mais tarde, é apenas uma
aplicação e individualização desse fato. Com isso não podemos concordar. O
batismo de Jesus no Jordão é certamente um ato messiânico pelo qual ele se une
a pecadores e, portanto, há, de fato, algo de “universal” nisso (ou seja, um ato
da parte do Messias em favor do seu povo). Porém, não há qualquer base sólida
nessa passagem que nos permita dizer que o batismo e a morte de Jesus (morte
essa já indicada por esse batismo) seja o meio pelo qual todas as pessoas já foram
batizadas no Jordão e no Calvário. Esse ponto de vista toma o que mais tarde
é dito por Paulo acerca do batismo da igreja cristã (i.e., que é um batismo na
morte de Cristo, Rm 6.3) como extensivo a todos os homens e, então, é projetado
retroativamente e tomado explícito por causa do batismo de Jesus. Todavia, nem
essa extensão a todos os homens nem essa interpretação de Mateus 3 com a
ajuda de Romanos 6 são possíveis sem que haja uma violação, uma distensão da
passagem de Mateus 3 e paralelas. A interpretação paulina do batismo cristão da
igreja tem uma conexão legítima com a morte de Cristo (cf. abaixo). Baseia-se
no sentido total do evangelho. M as de nada adiantará trocar o que vem primeiro
na história da revelação pelo que vem depois. Devemos nos precaver contra essa
teologização da História. O batismo de Jesus ocorre nos Evangelhos como seu
ato messiânico de salvação, como o que ele realiza pelos que são seus, não como
o batismo deles. A objeção contra essa expansão a priori do que o evangelho diz
sobre o batismo de Jesus se torna ainda maior quando Cullmann começa a falar
de um Generaltaufe (batismo universal) como se alie Welt (todo o mundo) tivesse
sido batizado no batismo de Jesus. Essa concepção não somente aplica a satisfação
obtida por Cristo na cruz a cada pessoa do mundo, de um modo universal, mas
também a cada um separadamente. Tal concepção deve ser considerada como
contrária ao propósito do evangelho como um todo, o qual limita a salvação à
igreja do Messias, ao povo da nova aliança. Ela também esvazia o batismo de seu
significado específico. O batismo é a incorporação ao novo povo de Deus, o qual
pressupõe fé. Não se trata de um chamado que gera fé posteriormente. Já com
João Batista, o batismo era baseado na fé (M t 3.7 e paral.). Em nossa opinião,
esse também é o sentido do batismo para Paulo (embora, no atual contexto, essa
declaração não possa ser demonstrada mais a fundo). E esse também é o sentido
da ordem para batizar dada pelo Cristo ressurreto a seus discípulos.
A ordem de Jesus a seus discípulos é, afinal das contas, suficientemente clara.
Seu sentido é perfeitamente visível se visto à luz da época para a qual esse batismo
se destinava, isto é, o período entre a ressurreição de Jesus e a parousia. Por um
lado, há uma ligação inegável entre o batismo de João e o dos prosélitos, no pano
A VINDA DO REINO E A IGREJA 281

de fundo destes. O batismo permanece como um símbolo da purificação e, por­


tanto, constitui-se numa separação entre pessoas. Ele incorpora aqueles que são
batizados numa nova comunidade, que é a igreja, o povo do Messias, o novo Israel.
Esse é o motivo pelo qual essa ordem de batizar, sem dúvida alguma, pressupõe a
fé. Tanto em Mateus 28 quanto em Marcos 16, a pregação do evangelho precede
o batismo. Em Marcos 16.16, a fé é explicitamente mencionada como algo que,
obviamente, antecede o batismo. A ideia do novo povo de Deus indica que fé e
conversão são requeridas para a incorporação de pessoas nesse novo Israel. Nesse
sentido, certamente não há qualquer contradição entre Jesus e João Batista, pois
foi este último que colocou essa ênfase na fé como pré-requisito.
Por outro lado, o batismo dado por Jesus aos seus discípulos não é uma
continuação do batismo de João, como se não tivesse ocorrido qualquer mudança
a não ser o prolongamento do tempo que antecede “a ira vindoura” anunciado por
João. Aqui, também, vale a mesma diferença que foi mencionada no Capítulo
II com respeito à administração da salvação entre o aparecimento de João e de
Jesus, diferença essa que pode ser indicada como a categoria do cumprimento.
A remissão de pecados representada pela lavagem e purificação do batismo é
fundamentada na obra terminada de Cristo, especialmente seu sofrimento e sua
morte. E por isso que Paulo pôde dizer, mais tarde, que “todos nós que fomos
batizados em Cristo fomos batizados na sua morte” (Rm 6.3). Isso não significa
que a morte de Cristo seja um Generaltaufe (um batismo universal) por todos os
homens, ou mesmo por todo o seu povo. A morte de Cristo é a pressuposição e
o fundamento do batismo cristão, mas não é, em si mesma, o batismo. O mesmo
se aplica à Ceia do Senhor, como veremos mais adiante.
D e igual modo, o batismo cristão repousa na autoentrega de Cristo à morte.
Essa é também a explicação para o fato de que o próprio Jesus não batizava,
tendo ordenado a seus discípulos que o fizessem depois da sua morte. Oepke
corretamente afirma que essa atitude está de acordo com o caráter de Jesus, o
qual se dirigiu à sua morte, morte essa messiânica e expiatória.151 Nesse sentido,
pode-se também dizer que o ajuntamento da igreja só poderia ter início de fato
depois da ressurreição de Cristo.
Consequentemente, o batismo cristão não é só um ato relacionado com a
consumação do reino de Deus, como era o batismo de João. Muito pelo contrário,
ele representa o começo do cumprimento. Naquilo em que esse cumprimento
implica no dom escatológico do Espírito Santo anunciado por João, ele aparenta
estar estreitamente relacionado com o batismo ordenado por Cristo. Isso não
significa que o batismo torna esse dom possível, mas o contrário, pois o batismo
cristão é a manifestação visível e a sanção dos dons espirituais de administração
do cumprimento, o qual teve início com a vinda de Cristo e foi confirmado por
sua morte. Esse é o motivo pelo qual vemos, no decorrer da História, que o dom
282 A v in d a d o R e in o

do Espírito Santo precede e se segue ao batismo (cf. A t 8.16ss; 10.44,47ss).


Desse fato se conclui que o batismo não tem um sentido causativo, mas um
significado representativo, isto é, com respeito à salvação ocasionada pela morte
e pela ressurreição de Cristo.
E, por último, esse caráter de cumprimento do batismo ordenado por Cristo
aos seus discípulos é também claramente perceptível das palavras “em nome (eis to
onomá) do Pai, do Filho e do Espírito Santo”. As palavras “em nome de” trazem
alguma dificuldade. Elas não têm nada a ver com a nossa expressão “em nome
de” quando a mesma é usada no sentido de “pelo comando e pela autoridade de”
alguém. Alguns autores relacionam essas palavras com o uso lingüístico do sistema
bancário helênico, no qual “em nome de” significava alguma coisa como “na conta
de”, “para crédito de” alguém.132 Batizar “em nome de”, nesse caso, significaria que
a pessoa batizada ficava à disposição, “na conta”, do Pai, do Filho e do Espírito
Santo, selada como propriedade de Deus. Por outro lado, o teólogo Jeremias é
da opinião de que essas palavras são a tradução do aramaico hebraico leshem ou
leshum, que, na literatura rabínica, indica a intenção de tais atividades cúlticas
como sacrifício, lavagem batismal, etc. Ele, portanto, simplesmente traduz a ex­
pressão como “por” ou “com respeito a” (mit Rücksicht auf) ,153 Por mais plausível
que isso seja, é claro, qualquer que seja a natureza do caso, que batizar em nome
do Pai, do Filho e do Espírito Santo determina o caráter do batismo cristão. Por
um lado, a pessoa batizada é assim dedicada a Deus e entregue a seus cuidados;
por outro, esse nome tríplice também inclui toda a salvação que foi cumprida
pela vinda de Cristo e por sua obra de redenção; adoção como um filho do Pai
na comunhão do Filho154 e também o dom do Espírito Santo como aquele dom
do povo messiânico de Deus, o qual se tornou dele pela morte e ressurreição
de Cristo. Tudo isso se torna aplicável à pessoa batizada nesse nome tríplice de
Deus, o qual não precisa ser caracterizado como uma fórmula dogmática, mas
como algo que qualifica a administração da salvação que começou com Cristo. E,
assim, o batismo cristão é indicado em seu pleno significado histórico-redentor,
em contraste com o batismo de João, durante o período entre a morte de Jesus
e sua parousia.
IX
A V IN D A DO REIN O
e a c e ia d o Senh o r

39. O tema duplo da Ceia do Senhor

No capítulo anterior, fomos confrontados mais de uma vez com as declarações


na pregação de Jesus que tratam do significado da vinda do reino para o período após
sua morte e ressurreição. Terminaremos nossa investigação apresentando uma visão
resumida dos prospectos fornecidos pelo evangelho com respeito ao período da
história da salvação que se iniciou com a morte de Cristo e que será finalizada pela
sua parousia. Porém, primeiro, devemos considerar algo que ocorre no evangelho
e que está intimamente associado ao que o precede. Seu sentido especial requer
um tratamento em separado. Refiro-me à instituição da Ceia do Senhor, que nos
chegou nos três Evangelhos (M t 26.26-29; M c 14.22-25; Lc 22.15-20).
Os teólogos dogmáticos, também, discutem a Ceia do Senhor em conexão
direta com a igreja. E isso é algo óbvio. Desde o início, fica comprovado que a
Ceia do Senhor foi uma das mais importantes instituições na igreja cristã. Os
evangelistas, também, sem dúvida, queriam indicar a base e o ponto de partida
da celebração posterior da Ceia do Senhor pela igreja cristã com o relato que
fizeram da última ceia de Jesus com seus discípulos, apesar de Mateus e Marcos
não mencionarem qualquer instituição formal da mesma. Isso transparece clara­
mente na ordenança que é conhecida como “a ordenança para recordação”—“fazei
isto em memória de mim” - em Lucas (e também em Paulo, IC o 11.25). Não
somente do ponto de vista histórico dos acontecimentos, mas também de um
ponto de vista factual, este é o ponto mais apropriado para se tratar dessa tão
importante parte da tradição sinótica.
No entanto, temos que seguir um método diferente daquele usado pela
dogmática quando discute a Ceia do Senhor. Estamos interessados, em particular,
no significado dessa instituição feita por Cristo dentro do escopo de sua pregação
284 A v in d a d o R e in o

acerca do reino dos céus. Temos que prestar atenção especial à importância his-
tórico-redentora da Ceia do Senhor, isto é, a relação entre a Ceia do Senhor e
tudo o mais que chegou à nossa atenção nos capítulos anteriores com respeito
ao reino, tanto seu cumprimento como seu caráter provisório.
Desse ponto de vista, há um grande número de obras que têm, nas últimas
décadas, tratado da Ceia do Senhor. Nelas, a questão do importante conflito
confessional desde os dias da Reforma tem novamente se sobressaído, a saber, o
sentido das palavras literais da instituição na medida em que estão ligadas com
o pão e o vinho entregues por Jesus aos discípulos em relação ao seu corpo e seu
sangue. Especialmente na teologia sacramental recente, essa relação continua a
desempenhar um papel importante. Ainda assim, os limites dentro dos quais o
atual conflito está prosseguindo são muito mais amplos do que costumavam ser.
Eles são agora determinados pela visão geral da vinda de Jesus e de sua obra, espe­
cialmente o reino dos céus proclamado por ele. Não deveríamos nos surpreender,
portanto, com o fato de que, no tratamento das palavras institucionais da Ceia do
Senhor, encontramos mais uma vez os mesmos problemas, embora num sentido
modificado, que chamaram a nossa atenção nos capítulos anteriores.
Isso se tornará mais claro para nós quando examinarmos as palavras ins­
titucionais mais detidamente. Dois temas se sobressaem nelas. O primeiro é a
morte expiatória de Jesus, a qual já encontramos em outro contexto. Jesus, aqui,
aponta para sua morte próxima como um sacrifício substitutivo para remissão
de pecados. O segundo tema é o escatológico, expresso por todos os evangelistas
sinóticos, mas especialmente por Lucas. Esse tema aparece nas palavras de Jesus
em estreita ligação com a Ceia do Senhor, sobre o “vinho novo” que ele beberá
(com seus discípulos) no reino de Deus (M t 26.29; M c 14.25; cf. Lc 22.18) e
também nas palavras sobre o “cumprimento” da Páscoa no reino de Deus (Lc
22.16). Nos capítulos anteriores deste livro, foi visto que são exatamente esses
dois temas da pregação de Jesus que ocupam o centro de uma polêmica inces­
sante. E, portanto, compreensível que essa polêmica se concentre no sentido da
Ceia do Senhor.
As principais questões que estão em jogo são: emprimeiro lugar, se a morte
expiatória determinou, desde o início, o caráter da Ceia do Senhor, e, em segun­
do lugar, qual é a função da Ceia do Senhor na vinda do reino anunciado por
Jesus.
Ninguém deve se admirar de que aqueles que ainda compartilham a visão
liberal de que o evangelho original desconhece completamente o poder expiatório
do sofrimento e da morte de Jesus não podem confiar nas palavras institucionais
dos sinóticos para estabelecer o sentido original da Ceia do Senhor, pois essas
palavras mencionam o sangue da aliança, a ideia de sacrifício, etc. Com muita
frequência, essas palavras têm sido declaradas como não autênticas.
A VINDA DO REINO E A CEIA DO SENHOR 285

A teologia liberal, desse modo, eliminou os temas que considera ser obje-
táveis nas palavras da instituição da Ceia do Senhor e reteve pouco mais do que
a ideia de que ela era “uma refeição comemorativa, como uma recordação de um
momento inesquecível na história da Paixão”,1 ordenada por Jesus quando ele
viu que sua hora se aproximava. Muitos autores recentes, todavia, que também
rejeitam o tema da morte expiatória de Cristo, começaram a enfatizar o tema
escatológico que aparece nos três relatos da instituição da Ceia do Senhor e
derivam o seu sentido original desse tema.
A concepção de Lietzmann, em especial, tem sido um fator importante
nesse desenvolvimento.2 Esse autor faz a distinção entre dois tipos de eucaristia
nas antigas liturgias da Ceia do Senhor e supõe que elas podem ser percebidas
também no Novo Testamento, a saber, um tipo “Jerusalém” e outro “paulino”.
O primeiro tipo é, então, a continuação das refeições que eram frequentemente
compartilhadas pelos discípulos com Jesus antes de sua morte (as chamadas
chaburas com as quais os judeus estavam familiarizados). Elas foram continuadas
após a Páscoa na certeza prazerosa da presença de Cristo e não incluíam o
uso de vinho (aquilo que, no livro de Atos, se chama de “partir o pão”). Esse
exercício de comunhão à mesa era especialmente dirigido para a parousia do
Senhor, que se aproximava rapidamente, e até mesmo a antecipava. Esse é o
tipo Jerusalém, que, ao mesmo tempo, era também escatológico. Presume-se
que sua forma seja discernível na história de Lucas, de acordo com a redação
encontrada no códice D (nos quais os vs. 19b e 20 estão faltando). Esse tipo
de refeição deveria ser totalmente separado da celebração da Páscoa e de sua
ideia de sacrifício.
Supõe-se que outro tipo de celebração tenha surgido ao lado desse, o “pau­
lino”, determinado pela ideia de sacrifício, a comemoração e a Vergegenwãrtigung
(representação) da morte de Jesus pelo pão e pelo vinho. Toda a ênfase recai
sobre os “elementos”. Eles se tornam o veículo do Espírito Santo, que efetua a
remissão de pecados e dá vida eterna aos participantes. Encontramos esse tipo
paulino nos registros de Mateus e Marcos. A ligação dele com a morte expia­
tória de Jesus é o elemento essencial. Esse tipo logo sobrepujou o tipo original,
escatológico.3
Com base em considerações semelhantes, é feita a tentativa de reconstruir as
verdadeiras palavras de Jesus proferidas na Ceia do Senhor. Assim, Klostermann,
por exemplo, escreve que o relato da Eucaristia que nos chegou (em Marcos), se
tomado fora de seu contexto, demonstra ser uma história cúltica. Essa história
foi criada como uma etiologia para justificar a celebração da Ceia do Senhor em
círculos helênicos (isto é, seu objetivo era representar a eucaristia como um costu­
me originado no próprio Jesus). Klostermann contrasta com isso a possibilidade
de que somente Marcos 14.25 (que fala do “vinho novo” no reino de Deus) seja
286 A v in d a d o R e in o

uma reminiscência de uma tradição mais antiga que deveria ser suplementada
com Lucas 22.14-18. De acordo com essa tradição extremamente truncada, Jesus
supostamente deu esperanças a seus discípulos de reunirem-se com eles em breve
na refeição messiânica no reino de Deus, pois vivia na certeza da iminente catástrofe
e do início do governo de Deus. M as ele não teve qualquer intenção de instituir
uma cerimônia comemorativa e não fez qualquer paralelo direto entre pão e vinho
e seu corpo e sangue. Klostermann procura fundamentar sua opinião recorrendo
à declaração de que, na eucaristia celebrada nas antigas igrejas da Palestina, o que
predominava era um tom alegre de esperança e não a comemoração da morte
de Jesus (At 2.46, onde ocorre a palavra aggaliasis, a qual é também usada para
expressar a alegria pela vinda do reino de Deus). Ele também acrescenta como
argumento o fato de que, nessa forma antiga de celebração, só era feita menção
do “partir o pão” e que não há nada acerca do vinho, o qual está tão diretamente
associado com o sangue de Jesus.4
Todavia, Plooy (concordando com Lohmeyer) corretamente ressaltou que o
motivo básico dessa argumentação se move num círculo vicioso. Primeiro, é feito
um tipo de suposição acerca do que, segundo os chamados “dados históricos”,
Jesus teria ou não teria pensado e dito na Ceia do Senhor; então, se os dados estão
comprovadamente contra essa suposição, o elemento perturbador é eliminado
como se fosse a “teologia da igreja”.5 ..
Na literatura mais recente, todavia, muitos autores abandonaram esse
preconceito com respeito ao tema da morte expiatória. H á um reconhecimento
crescente do fato de que, de acordo com a profecia de Isaías 53, o sofrimento e a
morte substitutiva ocupam um lugar integrante no evangelho e que é impossível
eliminar esse tema da morte expiatória da tradição concernente à instituição da
Eucaristia. Ao mesmo tempo, entretanto, uma ênfase crescente tem sido dada ao
caráter escatológico da Ceia do Senhor e, mais uma vez, a discussão se revolve
em torno da relação entre esses dois temas e em que sentido essa instituição de
Cristo deve ser entendida.6
As exposições de Albert Schweitzer sobre esse tema são características da
interpretação escatológica da Ceia do Senhor e muito influentes. Elas estão in­
corporadas nas obras mais antigas dele, bem como em seu trabalho mais recente,
Die Mystik des Aposteis Paulus [O misticismo do apóstolo Paulo]. A perspectiva
de Schweitzer diverge da de outros autores, como Lietzmann, Klostermann, etc.
(cf. acima) porque ele também leva em consideração o tema da morte expiatória
ao determinar o caráter da Ceia do Senhor. Isso, todavia, não minimiza o fato de
que ele subordina totalmente esse elemento ao que considera a coisa principal,
ou seja, o significado escatológico da Ceia do Senhor.
O tema da morte expiatória se sobressai de modo ainda mais enfático nas
exposições de Rudolf Otto sobre a Ceia do Senhor.7 E verdade que esse autor,
A VINDA DO REINO E A CEIA DO SENHOR 287

também, explica a última ceia de que Jesus participou com seus discípulos como
uma instituição escatológica que não deve ser ligada com a refeição da Páscoa.
Como conseqüência da ênfase especial que ele dá ao sentido de Isaías 53 para
a autoconsciência messiânica de Jesus, Otto, todavia, se aproxima bastante da
antiga concepção de acordo com a qual o iminente sofrimento de Cristo, sua
morte e o poder expiatório deles foram decisivos para as palavras e atitudes de
Jesus durante a Eucaristia.
Schweitzer pretende definir o caráter real da Ceia do Senhor em conexão
direta com outras refeições que Jesus compartilhou com seus discípulos. Ele en­
contra o exemplo mais glorioso disso na história da alimentação miraculosa das
multidões no lago de Genesaré (Mc 6.32ss). Uma tradição posterior erroneamente
buscou o caráter especial dessa refeição na satisfação miraculosa do apetite de
tantas pessoas com a ajuda de uma pequena quantidade de pão. Porém, de acor­
do com Schweitzer, o ponto importante nessa refeição é o fato de que, para um
grande círculo de pessoas, Jesus, como Messias designatus, oferece uma celebração
preliminar do festival messiânico escatológico no reino de Deus, o qual estava
para chegar em breve. Desse modo, os participantes dessa refeição foram iniciados
de maneira cúltica como participantes do reino. Tudo isso ainda estava oculto
para eles. Eles ainda não conheciam Jesus como o Messias, mas o que era um
segredo nas primeiras refeições foi abertamente declarado por Jesus na última
ceia, em Jerusalém. Pois então o segredo messiânico foi divulgado e o círculo de
discípulos foi explicitamente chamado de a representação da nova comunidade
do reino de Deus. E, ao mesmo tempo, o tema do sofrimento aparece em cena,
o que é também algo especial. Somente mediante o sofrimento e a morte de
Jesus é que o reino se manifestaria. A essência da Ceia do Senhor, entretanto, era
independente da sua referência ao próprio corpo e sangue, apesar de consistir na
“festa cúltica preliminar da ceia messiânica no círculo de participantes que acre­
ditavam no reino”.8 De acordo com isso, depois da morte de Jesus, os apóstolos
e os fiéis passaram a esperar a sua vinda e a ceia messiânica no mesmo aposento
onde Jesus havia celebrado a última ceia com eles. Ali, também, eles repetiram
essa refeição, em conjunto, como uma ceia de gratidão com vistas ao reino vin­
douro e a parousia de Cristo. Apenas mais tarde, quando a fé da igreja perdeu
seu caráter escatológico, foi que o sentido original de “partir o pão” desapareceu.
A ênfase, então, mudou para o pão e o vinho como meio de comunhão com o
corpo e o sangue de Cristo. Em vez da concepção escatológica, o significado
grego-sacramental se sobressaiu.9
Assim, Schweitzer liga o tema do sofrimento na Ceia do Senhor com o
ponto de vista escatológico. Esse ponto de vista é acolhido na visão de Schweitzer
porque a ideia do sofrimento e da morte se constitui parte integrante da sua
escatologia.10 Esse é o motivo pelo qual Schweitzer não faz qualquer objeção a
288 A v in d a d o R e in o

considerar a última ceia como uma refeição pascal e rejeita como desnecessária
a distinção “artificial” feita por Lietzmann e outros entre dois tipos diferentes
de Eucaristia cristã.11Todavia, o caráter escatológico da Ceia permanece predo­
minante. A Ceia do Senhor recebe seu significado apropriado da convicção de
Jesus de que, com sua morte, o reino começaria. E o prelúdio a comer e beber
no reino de Deus.
A discussão elaborada de Rudolf Otto a respeito da Ceia do Senhor começa
com uma reconstrução radical da história de Lucas sobre a última ceia.12 Ele
concorda também com Lietzmann quanto a não explicar a última ceia de Jesus
e seus discípulos do ponto de vista de uma refeição pascal, mas a partir de um
tipo mais geral de comunhão religiosa à mesa,13 as chamadas chabu ou chabura,
também mencionadas por Lietzmann. Nesse caso não havia necessidade de
vinho. A consagração religiosa consistia unicamente em abençoar o alimento (a
chamada eucaristia).
Na Ceia do Senhor, entretanto, Jesus passou entre eles uma taça de vinho.
E a taça no início da refeição, mencionada em Lucas 22.17. Nesse momento,
ele pronunciou as palavras escatológicas, referindo-se a beber o vinho novo no
reino de Deus. A taça, na última ceia, não tem qualquer relação com o sangue
ou com a instituição da aliança. E a taça da despedida e da reunião no reino
vindouro.14
Além disso, entretanto, Jesus distribuiu entre eles o pão, que representava de
acordo com R. Otto, seu corpo partido na morte. As palavras que acompanharam
o pão, “isto é o meu corpo”, deveriam ser ligadas a Lucas 22.29, onde, em virtude
da promessa da aliança, Jesus dá a seus discípulos uma participação no reino de
Deus.15 Por sua morte, “representada eficazmente”16 pelo pão partido, Jesus lega
o reino aos seus discípulos. Pois Otto acredita que pode apelar para a profecia
de Isaías 53 e 54 para essa ideia de delegar o reino com base no sofrimento e na
morte de Cristo.17
Até aqui, temos dado atenção aos representantes da ala mais radical na
literatura sobre a Ceia do Senhor. M as existe também uma longa lista de autores
que acreditam que essa interferência ousada, e frequentemente arbitrária, no
texto e o sentido dos Evangelhos é injustificada. E notável que a perspectiva de
que a passagem mais longa de Lucas é, de fato, a forma original esteja ganhando
cada vez mais aceitação por um número crescente de autores, apesar de, por um
longo tempo, essa perspectiva ter sido de modo geral rejeitada.18 Porém, mesmo
nos casos em que essa perspectiva não é defendida, a situação histórica na qual
os Evangelhos colocam a Ceia do Senhor tem sido esclarecida com base em
investigações cuidadosas e, desse modo, a confiabilidade da tradição sinótica
a respeito da última ceia tem sido mantida. Isso se aplica especialmente ao
reconhecimento de que o significado da Ceia do Senhor deve ser entendido
A VINDA DO REINO E A CEIA DO SENHOR 289

dentro do contexto da ceia pascal, conforme o registro dos evangelhos.19 Os


estudiosos fazem um uso agradecido de toda a informação disponível sobre os
ritos pascais judaicos nos escritos rabínicos. A partir daí, todo tipo de detalhes
contidos na tradição sinótica sobre a última ceia de Jesus têm sido examinados
e explicados novamente.20
A característica mais importante, todavia, é sempre a maneira pela qual, por
um lado, a ideia escatológica, e por outro, o significado da morte de Jesus, são
combinadas com o propósito de se compreender a última ceia pascal de Jesus e
seus discípulos em relação à eucaristia na igreja cristã, a qual é a sua continua­
ção. A maioria dos autores recentes reconhece que o tema da morte expiatória
pertence ao núcleo do evangelho e querem fazer total justiça à presença desse
tema nas palavras de instituição da Ceia do Senhor. M as não se pode negar
que muitos buscam a característica específica dessa ceia na esfera escatológica.
E notável que, muitas vezes, tenta-se reter o pensamento de Schweitzer sobre
Jesus na última ceia, de que ele esperava a chegada do reino no futuro imediato.
Assim, por exemplo, Markus Barth, no seu estudo sobre a Ceia do Senhor, fala
de brennendste Naherwartung (a expectativa mais apaixonada da iminência do
reino) que ocupava totalmente a mente de Jesus durante a última ceia. É verdade
que, ao contrário de Schweitzer, ele não considera que essa expectativa era uma
ilusão de Jesus, mas é da opinião de que a chegada do reino mencionado por
Jesus tornou-se possível pela sua morte e foi concretizada na sua ressurreição.
Devemos considerar a Ceia do Senhor na igreja cristã do ponto de vista dessa
escatologia realizada. No presente, após a morte de Jesus, o reino chegou, bebeu-
se o “vinho novo” do qual Jesus falou e a “páscoa” foi “cumprida”.21 Agora Jesus
está assentado à mesa com seus discípulos na nova comunidade do reino. Chegou
até mesmo aquele tempo em que os discípulos de Jesus estão sentados em doze
tronos para julgar as tribos de Israel (como uma indicação da autoridade de reis
que eles possuem).22
Estreitamente ligado a isso está o fato de que uma celebração da Ceia do
Senhor que tivesse que se concentrar na cruz e na morte de Jesus seria totalmente
errada. N a Ceia do Senhor, como a ceia escatológica realizada, alegria e júbilo
deveriam predominar e deveríamos evitar “sentimentos da Sexta-feira da Paixão,
confissão de pecados, absolvição dos mesmos, enfim, aquele clima de funeral”.
Essas coisas negariam o caráter da Eucaristia como celebração da ressurreição e
manifestação da chegada do reino.23Aqueles que concordam com essa perspectiva
são, portanto, da opinião de que deveríamos nos esforçar por obter uma nova
compreensão da Ceia do Senhor (e, ao mesmo tempo, por um retorno à ideia
cristã original). Eles afirmam que estamos no limiar de um novo período, no qual
a concepção profética da Eucaristia, que foi a da Reforma, deve ser substituída
pela perspectiva da realeza.24 Até mesmo um autor como Cullmann aponta nessa
290 A v in d a d o R e in o

direção, apesar de se expressar de maneira mais reservada. Ele pensa, todavia,


que a ceia messiânica prometida por Jesus durante a última ceia foi cumprida
parcialmente nas ceias que Jesus celebrou com seus discípulos depois de sua
ressurreição e antes de sua ascensão e que a Eucaristia, na igreja cristã original,
era celebrada especialmente à luz da ressurreição.25
Em todas essas concepções mais conservadoras, a interpretação escatológica
como escatologia “realizada” desempenha uma parte importante e o conceito da
morte expiatória na celebração da Ceia do Senhor é deixado para trás. Outros
tentam fazer uma síntese e dar mais ênfase à conexão entre o pão e o vinho, com
o corpo e o sangue de Jesus entregues à morte.26 Num contexto posterior, daremos
mais atenção aos detalhes dessa perspectiva.

40. O significado histórico-redentor da Ceia do Senhor

Nosso objetivo é obter uma percepção mais exata quanto ao sentido geral
da Ceia do Senhor dentro do escopo da administração da salvação inaugurada
pela vinda e obra de Jesus. Faremos isso concentrando-nos na tradição sinótica
referente à instituição da própria Ceia do Senhor. Ao fazer isso, somos confron­
tados imediatamente com a diversidade encontrada nessa tradição. E impossível
evitar a discussão sobre essa diversidade, pois ela, aparentemente, desempenha
um importante papel com respeito à caracterização geral da ceia do Senhor.
Isso não se aplica às diferenças nas passagens sobre a eucaristia em Marcos e
Mateus. Na realidade, independentemente da questão com a qual estamos lidando
aqui, essas diferenças são, de maneira geral, muito leves e sem significado real.
A mais importante diferença entre esses relatos são as palavras da instituição do
cálice, “Isto é o meu sangue, sangue da [nova] aliança, o qual é derramado por
muitos”, às quais Mateus acrescenta: “'para a remissão depecados”. Desse modo, ele,
mais claramente do que Marcos, refere-se à profecia a respeito da nova aliança
de Jeremias 31.31ss.
As coisas ficam diferentes, todavia, quando incluímos Lucas na comparação.
Em primeiro lugar, há, então, aquela importante pergunta acerca da passagem
original, pois, em alguns manuscritos e em algumas versões antigas, os versículos
19b e 20 estão faltando. A passagem termina abruptamente com “Isto é o meu
corpo”. Estão faltando as palavras “oferecido por vós; fazei isso em memória
de mim”. Do mesmo modo, as palavras introdutórias do cálice estão faltando
no versículo 20. Essas palavras que faltam são exatamente aquelas que fazem a
conexão entre a última ceia e o sofrimento e morte de Jesus. O resultado é que
aqueles que consideram como secundário o tema da morte expiatória nas palavras
da Ceia do Senhor geralmente valem-se da passagem mais curta de Lucas. No
A VINDA DO REINO E A CEIA DO SENHOR 291

momento, mencionaremos apenas que, segundo nos parece, os argumentos em


favor da autenticidade das palavras faltantes são conclusivos.
Em primeiro lugar, a maioria quase absoluta dos manuscritos mais antigos
e mais importantes contém a passagem mais longa. A mais curta é encontrada
apenas numa ramificação daquela tradição conhecida como o texto ocidental.27
Em si mesmo, esse já é um argumento muito forte em favor da autenticidade da
passagem mais longa. Jeremias, corretamente, escreve que “se a passagem mais
curta for considerada original, isso significaria, do ponto de vista da tradição, que
foi feito um apelo à maior de todas as improbabilidades, pois, então, estaria-se
assumindo que um acréscimo ao texto de Lucas teria penetrado em todos os ma­
nuscritos, exceto D, e algumas traduções antigas para o latim e para o siríaco”.28
Além disso, nos manuscritos com a passagem mais curta, há divergências em
comum (alguns manuscritos trazem o v. 17 e o 18 após o v. 19a), o que pode ser
um indício de que havia uma consciência do fato de que o registro do manuscrito
D poderia não representar o original.
Apesar disso, há muitos estudiosos que consideram a passagem curta como
sendo a original. A razão é que essa passagem, ao quebrar-se abruptamente no
versículo 19a, torna-se muito mais difícil do que a versão mais longa, a qual
registra a instituição da Ceia do Senhor em perfeita harmonia com lCoríntios
11.24-25, podendo, assim, ter sido derivada dessa passagem. A versão mais
longa, portanto, é frequentemente considerada como uma compilação de Paulo
(e Marcos). Por outro lado, a originalidade da passagem curta é também difícil
de explicar e a concordância entre Lucas e Paulo não precisa ser explicada em
termos da dependência do primeiro em relação ao segundo. Pode ser também
explicada a partir da tradição oral (cúltica?) estereotipada de que ambos haviam
recebido e reproduzido quase que do mesmo modo, embora independentemente
um do outro. Qualquer que seja a maneira em que isso tenha ocorrido, é um
fato que o valor da evidência textual é muito forte em favor da versão mais longa
e que a mesma vem sendo aceita por um número crescente de autores como a
passagem original.29
A vista de tudo o que foi discutido acima, ficaremos com a passagem longa,
o que significa, em nossa opinião, que o tema da expiação como codeterminante
da Ceia do Senhor é tão claro em Lucas quanto em Mateus e Marcos. E faze­
mos isso ainda mais sinceramente porque, de acordo com lCoríntios 11.24-25,
o conteúdo desses versículos pertence à tradição mais antiga da Ceia do Senhor
que nos chegou.
Quando comparamos o relato da Ceia do Senhor em Lucas com o de Mateus
e Marcos, encontramos uma diferença considerável na estrutura, mesmo quando
mantemos a passagem mais longa. Essa diferença se mostra importante para a
determinação do caráter geral da Eucaristia. Percebemos melhor essa diferença
292 A v in d a d o R e in o

quando colocamos as três tradições lado a lado de um modo mais ou menos


esquemático, como este:

Mateus 26.26-29 Marcos 14.22-25 Lucas 22.15-20


15 E disse-lhes: Tenho
desejado ansiosamente
comer convosco esta
Páscoa, antes do meu
sofrimento.
16 Pois vos digo que
nunca mais a comerei,
até que ela se cumpra
no reino de Deus.
17 E, tomando um
cálice, havendo dado
graças, disse: Recebei e
reparti entre vós;

18 pois vos digo que,


de agora em diante, não
cf. v. 29 cf. v. 25 mais beberei do fruto da
videira, até que venha o
reino de Deus.

26 26 Enquanto co­
miam, tomou Jesus um 19a E, tomando um
pão, e, abençoando-o, cf. v. 22 pão, tendo dado graças,
o partiu, e o deu aos o partiu e lhes deu,
discípulos, dizendo: dizendo: Isto é o meu
Tomai, comei; isto é o corpo
meu corpo.
19b oferecido por vós;
fazei isto em memória
de mim.
27 27 A seguir, tomou
um cálice e, tendo dado 20 Semelhantemente,
graças, o deu aos discí­ cf. v. 23 depois de cear, tomou o
pulos, dizendo: Bebei cálice, dizendo:
dele todos;
A VINDA DO REINO E A CEIA DO SENHOR 293

28 28 porque isto é
o meu sangue, o san­ Este é o cálice da nova
gue da [nova] aliança, aliança no meu sangue
cf. v. 24
derramado em favor de derramado em favor de
muitos, para remissão vós.
de pecados.
29 E digo-vos que, des­
ta hora em diante, não
beberei deste fruto da
videira, até aquele dia cf. v. 25 cf. v.18
em que o hei de beber,
novo, convosco no reino
de meu Pai.

Independentemente de algumas diferenças menores (dignas de atenção)


entre as partes paralelas da tradição em Lucas (vs. 19 e 20), em Mateus (vs. 26-29)
e em Marcos (vs. 22-25), Lucas tem uma introdução que estáfaltando em Mateus e
Marcos (vs. 15-18) e que é notávelpor diversas razões. Em primeiro lugar, porque,
nela, o 11motif escatológico” se apresenta duas vezes e já do início, enquanto M a­
teus e Marcos lhe dão expressão somente ao final da passagem sobre a Ceia do
Senhor e, mesmo assim, somente uma vez. Compare com as palavras em itálico
em Lucas 22.14-18:

“Chegada a hora, pôs-se Jesus à mesa, e com ele os apóstolos. E disse-


lhes: tenho desejado ansiosamente comer convosco esta Páscoa, antes
do meu sofrimento. Pois vos digo que nunca mais a comerei, até que ela
se cumpra no reino de Deus.
E, tomando um cálice, havendo dado graças, disse: Recebei e reparti
entre vós; pois vos digo que, de agora em diante, não mais beberei dofruto
da videira, até que venha o reino de Deus”.

Como dissemos, essa introdução está faltando nos outros dois sinóticos e,
consequentemente, também a ênfase na perspectiva escatológica. Por esse motivo,
especialmente, uma distinção entre dois tipos de Eucaristia é defendida por
aqueles que consideram o tipo escatológico mais antigo e veem esses versículos
iniciais de Lucas como a parte mais original da tradição, colocando somente o
versículo final de Mateus e Marcos no mesmo nível.
Apesar dessa separação do motif escatológico do da morte expiatória ser,
em nossa opinião, totalmente arbitrária, teremos que fazer plena justiça à ênfase
dada à perspectiva escatológica em Lucas, ainda mais diante do fato de que há
294 A v in d a d o R e in o

indicações de que a tradição de Lucas é uma descrição mais exata e mais detalhada
do curso histórico dos acontecimentos do que a dos demais evangelistas.* Isso
está relacionado com uma segunda diferença que ocorre entre Lucas e Mateus
(e Marcos). Lucas relata que Jesus passou a taça duas vezes. A primeira vez é
mencionada imediatamente no início (v. 17) e não está relacionada com o sangue
de Jesus, mas com o beber do vinho no reino de Deus (v. 18). Mais adiante,
Lucas menciona novamente uma taça (v. 20), a qual, dessa vez, ele relaciona às
palavras de Jesus a respeito do sangue da nova aliança, como os demais sinóticos
o fazem também. Em Mateus e Marcos, por outro lado, somente na conclusão
da narrativa é que é feita menção de que Jesus passou a taça para os discípulos
e ambos ligam esse fato com “isto é o meu sangue, sangue da [nova] aliança” e
com a esperança escatológica (beber o “vinha novo”).
A base para nossa suposição de que Lucas fornece um relato mais exato dos
acontecimentos do que Mateus e Marcos é o fato de que ele menciona dois cálices,
o que é uma descrição mais elaborada. E também porque, já no início, em conexão
com o primeiro cálice, ele fala do “fruto da videira”. Essa era uma expressão fixa
nos ritos pascais judaicos. Ela era usada pelo pai de família ao dar graças pelo
primeiro cálice que era passado para todos, e não na ação de graças, no cálice
após a ceia30 (onde Mateus e Marcos a mencionam). Se pudermos corretamente
assumir que a menção de mais de um cálice em Lucas não se baseia em algum
tipo de confusão causada pela extensão da passagem, mas numa descrição mais
exata dos acontecimentos, e se, em antecipação aos resultados da nossa inves­
tigação mais adiante pudermos tomar a expressão “fruto da videira” como uma
alusão aos ritos pascais, torna-se óbvio supor que a referência ao beber o vinho
no reino de Deus (a perspectiva escatológica) foi feita imediatamente no início
da ceia, exatamente como o outro dito acerca da ceia realizada no reino de Deus.
Assim, podemos concluir queJesus começou sua última ceia com seus discípulosfazendo
essa dupla referência ao reino de Deus.
E, assim, evidente que devemos considerar as palavras eucarísticas de Jesus e,
portanto, a instituição da Ceia do Senhor para a igreja cristã, dentro da estrutura
geral da pregação dele. E também claro que o ponto de vista escatológico é muito
importante para a determinação do caráter da Ceia do Senhor. Na realidade, isso
não transparece somente em Lucas, pois Mateus e Marcos também trazem as
palavras “Em verdade vos digo que jamais beberei do fruto da videira, até àquele
dia em que o hei de beber, novo, no reino de Deus” (Mc 14.25). Mateus acrescenta
“convosco” (M t 26.29). Isso, sem dúvida, salienta mais claramente o significado de
Marcos, de que Jesus não apenas se refere à sua própria exaltação e glorificação,
mas também à sua reunião com seus discípulos na manifestação vindoura do
reino de Deus. Nesse reino, o que agora é provisório e incompleto será novo
(uma palavra usada repetidamente com referência ao estado de cumprimento e
A VINDA DO REINO E A CEIA DO SENHOR 295

consumação) ou, como Lucas diz em referência ao cumprimento da páscoa, “até


que ela se cumpra no reino de Deus”.
A grande importância desse ponto de vista é óbvia. Indubitavelmente, em
primeiro lugar, com respeito ao próprio Jesus. Em nenhum outro lugar trans­
parece de maneira tão impressionante o fato de que Jesus enfrentava a morte na
certeza de sua futura exaltação. Em sua despedida e morte, ele triunfantemente
aguarda o tempo messiânico.31 M as, ao mesmo tempo - e isso é significativo
para a caracterização da Ceia do Senhor - a refeição que Jesus compartilha com
seus discípulos assume um caráter prefigurativo. O que acontece nessa refeição
será realizado no reino de Deus. M as, reciprocamente, o que será a plenitude
da alegria no reino de Deus tem seu começo e antegozo nessa ceia. A relação
entre a Eucaristia e comer e beber no reino vindouro de Deus não é apenas entre
símbolo e realidade, mas entre inauguração e cumprimento. Outra característica
significativa é o fato de que Jesus, ao se despedir de seus discípulos, ordena o
que, no futuro, também tomará a forma de uma ceia, isto é, comer e beber, pois,
de acordo com as concepções do Antigo Testamento (e as do judaísmo poste­
rior), a alegria e a bênção do reino de Deus são representadas pelo assentar-se e
desfrutar de uma refeição (Mt 8.11; 22.1ss; 25.1ss; Lc 13.28; 22.30; e outros).
Esse também é o motivo pelo qual a prática de os discípulos se reunirem durante
uma refeição a partir daí não pode ser considerado um modo acidental de união
que os incluía a todos e que era baseada na fé comum em Cristo, Antes, essa
concepção expressa a participação comum na alegria do reino vindouro de Deus,
cujo evangelho havia sido pregado a eles por Cristo.
Isso tudo recebe uma base especial nas palavras com que Jesus lhes deter­
minou essa comunhão permanente à mesa, pois qualquer que seja a explicação
dada a essas palavras, o tom geral delas é claro. Jesus relaciona essa refeição ao
seu sofrimento e morte e esse é o sentido em que o significado soteriológico de
sua morte é o ponto de partida e o conteúdo do comer e beber dos discípulos,
bem como da comunhão permanente à mesa da ekklesia futura, pois, na morte
de Cristo - como foi demonstrado em muitos detalhes em nossa exposição
- repousa a base e o segredo do que Jesus proclamou como a administração
do cumprimento e como a vinda do reino. Esse é o motivo pelo qual a ceia,
fundamentada no significado da morte de Cristo, é, na verdade, uma ceia de
cumprimento, de participação na salvação do reino, do recebimento da pérola
de grande valor, a inauguração da redenção na vida da igreja e na história do
mundo.32 Em resumo, é a ceia na qual “os poderes do mundo vindouro” foram
liberados na vinda de Cristo e na qual o “dom celestial” e o Espírito Santo foram
concedidos e “experimentados”.33
Portanto, pouca dúvida pode haver de que a “perspectiva escatológica” revela­
da por Jesus repetidamente na última ceia seja um dos elementos codeterminantes
296 A v in d a d o R e in o

do caráter e do conteúdo dessa dádiva aos seus discípulos, e da comunhão à mesa


ordenada por ele para a igreja.
Contudo, esse é somente um dos aspectos da questão que foi trazida à luz,
pois, apesar de aceitarmos plenamente as conseqüências da relação estabelecida
por Jesus entre a Eucaristia e comer e beber no reino de Deus, reconhecemos que
Jesus, repetidamente, menciona a vinda desse reino durante a Ceia, não somente
e nem mesmo primariamente para ressaltar o caráter prefigurativo da Ceia do
Senhor, mas, ao contrário, para deixar claro o significado provisório e temporário
dela. Esse é o motivo pelo qual estamos convencidos de que a tendência, na lite­
ratura atual, de deixar o “ motifescatológico” prevalecer sobre o chamado motifda
morte expiatória é uma concepção incorreta do verdadeiro sentido da perspectiva
escatológica exposta por Jesus na Ceia do Senhor. M ais uma vez, esse é um dos
efeitos adversos da interpretação escatológica unilateral do evangelho.
Se essa referência da Ceia do Senhor ao reino vindouro de Deus (encontrada
especialmente em Lucas) for concebida como uma evidência da mais apaixonada
expectativa da iminência desse reino (Naherwartung), isso é uma total deturpação
do sentido das palavras de Jesus. Do mesmo modo, se ela for entendida no sen­
tido de que a vinda do reino era esperada durante o tempo em que uma pessoa
suporta viver sem comida (como sustenta Markus Barth, seguindo nos passos de
Schweitzer), pois Jesus não diz, nesse caso, que não se comerá mais a páscoa e
nem que não se beberá mais do vinho até que o reino venha - ele apenas declara
que ele mesmo não participará mais dessas coisas aqui na terra. O sentido é que
essas coisas vão continuar acontecendo mesmo sem ele34 e que Jesus e seus dis­
cípulos retomarão a celebração conjunta da páscoa, junto com o beber do vinho,
no reino de Deus. Sua referência à vinda do reino, nesse contexto, portanto, é
predominantemente negativa. Jesus não celebrará a festa com seus discípulos até
que o reino de Deus venha. Isso também implica que ele e seus discípulos não
mais farão isso por enquanto. Por causa da proximidade de sua morte, não é mais
apropriado que ele beba vinho.35 Do mesmo modo, deve-se assumir que o próprio
Jesus não comeu do pão que distribuiu entre seus discípulos. A sua exortação
aos discípulos para que comessem e bebessem (M t 26.26; M c 14.23) já aponta
nessa direção. Isso era algo incomum. A explicação é que o próprio Jesus não
comeu do pão e, portanto, tinha que convidar seus discípulos a comer, já que ele
não podia, com seu próprio exemplo, dar o sinal de que era hora de comer - o
que era costumeiro o pai de família fazer.36 Outro argumento se encontra nas
palavras “isto é o meu corpo”. É difícil imaginar Jesus comendo simbolicamente
seu próprio corpo.37
Não importa o que se pense acerca desse último argumento - é inegável que
as palavras que expressam essa “perspectiva escatológica” devem ser entendidas
como palavras de despedida. Isso pode ser visto também na repetição das palavras
A VINDA DO REINO E A CEIA DO SENHOR 297

“não mais” e é particularmente evidente nas palavras iniciais do relato que Lucas faz
da última ceia. Aí Jesus diz que havia desejado ansiosamente comer aquela páscoa
com seus discípulos antes de seu sofrimento,pois (“pois vos digo”) não mais comeria
dela até que ela se cumprisse no reino de Deus (Lc 22.16). A causa desse desejo
intenso está na separação vindoura. Em nossa compreensão, isso inegavelmente
indica que essa páscoa e as palavras de Jesus trazem um tom de despedida que
aponta para o futuro. Essa é a razão pela qual o caráter geral da Ceia do Senhor
não pode ser visto como uma antecipação da iminência do reino de Deus, seja no
sentido de Schweitzer, que chamou essa antecipação de “a grande ilusão de Jesus”,
seja no sentido daqueles que a veem como cumprida na ressurreição de Cristo e
na celebração da Eucaristia pela igreja cristã. O próprio Jesus não quis dizer isso
com as palavras que proferiu na Ceia. Quando fala do “cumprimento da páscoa”
e do “vinho novo” no reino de Deus, ele tem em vista o futuro grandioso a ser
inaugurado pelaparousia do Filho do Homem. Aqui não se pode invocar como
auxílio a distinção entre o reino messiânico e o reino eterno de Deus, como se
as palavras de Jesus se referissem ao primeiro e não ao segundo,38 pois, indepen­
dentemente do caráter duvidoso dessa distinção,39 Jesus, em Mateus e Marcos,
bem como em Lucas, especificamente fala de comer e beber no reino de seu Pai,
e portanto, no reino eterno. Além disso, em nossa opinião, não adianta recorrer
às chamadas “refeições pascais” ( Oestermahlzeiten), ou seja, as refeições feitas por
Jesus e seus discípulos depois da ressurreição, das quais Lucas e João falam e que
são mencionadas por Pedro em Atos 10.41. Essas refeições não tinham o caráter
de refeições festivas messiânicas, mas de confirmação da realidade da ressurreição
(corpórea) de Cristo (cf. Lc 24.41-43) e são mencionadas como tais por Pedro em
Atos 10.41. Também é praticamente impossível ver o alimento que era comido
nessa ceia, a saber, pão e peixe, como a “páscoa realizada” ou como o “vinho novo”
no reino do Pai. Não há duvida de que essas refeições depois da Páscoa são também
evidência de que a comunhão entre Jesus e seus discípulos havia sido novamente
restaurada, mas o que é dito nos ditos escatológicas da Eucaristia refere-se a algo
mais do que a essas refeições temporárias incidentais.
O mesmo se aplica à celebração da Ceia do Senhor na igreja cristã. Se essa
Ceia for considerada como uma continuação direta da última Ceia celebrada por
Jesus com seus discípulos,40 ela não pode ser concebida como o cumprimento
do que Jesus prometeu nessa Ceia com referência a beber do vinho novo, etc. A
Ceia do Senhor celebrada na igreja cristã depois da morte de Jesus, em comunhão
espiritual com o Senhor ressurreto (cf.M t 18.20), é somente a prefiguração deste
“comer e beber no reino de Deus”. Isso significa dizer que é a continuação e a
celebração da administração da salvação dirigida ao futuro,41 a qual foi inaugurada
pela vinda de Cristo. Nesse sentido, ela não transcende, de maneira factual, o que
Jesus já deu a seus discípulos para comer e beber na última Ceia.
298 A v in d a d o R e in o

Ê verdade que, com a vinda de Jesus, o cumprimento da salvação começou


em princípio e pode ser celebrado como tal na Ceia do Senhor, mas o significado
histórico-redentor específico dessa Ceia não deve ser procurado primariamente
na perspectiva escatológica revelada por Jesus; pelo contrário, deve ser procurado
em conexão com a morte expiatória de Jesus, ou, em outras palavras, no significado
queJesus atribui ao pão e ao vinho que dá aos seus discípulos. A perspectiva esca­
tológica confere o caráter de uma despedida à última refeição que Jesus fez com
seus discípulos. Esse fato deveria nos levar a compreender o sentido permanente
da Eucaristia, pois o que não é mais válido para Jesus na terra (comer pão e beber
vinho) é permitido aos seus discípulos e até mesmo é obrigatório, que eles o façam
daí em diante. O que é válido para ele ainda não se aplica a eles.42 Certamente
essa regra tem seus limites, já que, para eles, também, haverá um “cumprimento da
Páscoa” e o beber “vinho novo” no reino de Deus. Entretanto, eles devem comer
o alimento e tomar o cálice dos quais Jesus, nesse momento, não participa. No
entanto, devem fazê-lo conscientes de que, a partir desse momento, o que eles
comem e bebem é o corpo e o sangue do Senhor.
Essa é a grande “revelação” que Jesus faz. Essa é a parte espetacular de suas
palavras. Não é o comer e o beber que são novos, nem a referência à Ceia mes­
siânica vindoura, nem mesmo a instituição de uma refeição comunitária como
tal. Tudo isso foi pressuposto e já foi expresso de todas as maneiras possíveis no
evangelho. A nova característica é que, dali em diante, o corpo deJesus será a comida,
e seu sangue a bebida de seus discípulos.
Assim, por um lado, há o elemento de cumprimento e, por outro, o que é
provisório. O elemento de cumprimento, para toda a salvação e redenção trazida
por Cristo para seus discípulos é fundamentado no corpo e no sangue que ele lhes
dá a comer e beber na Eucaristia. O caráter provisório, para o que ele assim lhes
concede, entretanto, ocorre somente como uma antecipação da reunião futura
em que ele e seus discípulos comerão e beberão no reino de Deus. A Ceia do
Senhor, portanto, é a refeição da redenção, o cálice da salvação, o pão da igreja,
porque se fundamenta na morte de Cristo. M as é assim apenas durante o tempo
interino entre o cumprimento que já começou e a consumação que se espera. Jesus
dá aos seus discípulos seu corpo e seu sangue como alimento para o caminho
que ainda está à frente. Com isso, ele os envia no caminho da História com pão
suficiente para que possam viver, mas todo esse comer e beber é feito somente em
antecipação da nova terra e do novo vinho, isto é, da plenitude de alegria. A Ceia
do Senhor, portanto, permanece como o que Paulo disse, o anúncio da “morte
do Senhor até que ele venha” (IC o 11.26).43
Em contraste com aqueles que querem que o motif escatológico prevaleça
sobre o motif da morte expiatória, somos de opinião de que o último confere
à Ceia do Senhor seu significado específico. Isso em nada diminui o perfectum
A VINDA DO REINO E A CEIA DO SENHOR 299

do cumprimento. Pelo contrário, a inteireza dessa completude está implícita


na morte expiatória de Jesus, mas isso caracteriza a Eucaristia como a refeição
comunitária determinada por Jesus aos seus discípulos e para a igreja vindoura
durante o período que se seguiria à sua partida. Para esse período, a Ceia do Se­
nhor é a refeição na qual Cristo indica, como a comida e bebida permanente da
igreja, seu corpo e seu sangue entregues à morte em favor dos seus. Ao receber
essa nutrição de sua mão pela fé, eles devem comer e beber até que ele volte para
beber o vinho novo no reino de seu Pai, com todos os que são seus.
Em seguida, teremos que refletir sobre a maneira pela qual “o motifàz morte
expiatória”, que, assim, recebeu uma posição central dada por Jesus, funciona na
Eucaristia à luz da tradição.

41. O caráter da ação de Jesus na última ceia

A primeira e mais importante questão que nos confronta é a maneira pela


qual Jesus dá aos seus discípulos, e, neles, também à sua igreja, seu corpo e seu
sangue como a comida e a bebida deles durante o tempo anterior à comunhão
consumada no reino de Deus. Isso nos leva a mais uma determinação do caráter
dos atos de Jesus na última ceia, ao partir o pão e servir o vinho e entregá-los aos
seus discípulos dizendo as conhecidas palavras “isto é o meu corpo”, etc.
Neste ponto, a primeira pergunta que surge é como devemos julgar o rela­
cionamento entre a última ceia e as ações relacionadas com ela em conexão com
a refeição pascal judaica.
Como já foi dito,44 a historicidade dessa relação é negada por muitos. Para
eles, o que os Evangelhos sinóticos nos dizem sobre a última ceia de Jesus não
ocorreu durante a celebração da refeição da Páscoa. Não se pode negar, a bem
da verdade, que os evangelistas Mateus, Marcos e Lucas concebem a última
refeição de Jesus como uma refeição pascal. Em Lucas, Jesus fala explicitamente
sobre “esta Páscoa” (22.15) e também em Mateus 26.17ss e Marcos 14.21ss os
preparativos para a Páscoa estão implícitos nas palavras “Onde queres que te
façamos os preparativos para comeres a Páscoa?” A veracidade dessa descrição é
disputada com base em dois pontos.
Em primeiro lugar, os que questionam a passagem recorrem a João 18.28;
19.14, onde parece que a refeição pascal ocorreu no dia da morte de Jesus (por­
tanto, no dia seguinte ao dia da última ceia). O dia 15 de Nisã, o dia da Páscoa,
portanto, não teria começado na tarde da quinta-feira, quando Jesus e seus
discípulos se reuniram no cenáculo, mas na tarde da sexta-feira, após a morte de
Jesus. E, em segundo lugar, acreditam que um estudo mais cuidadoso do relato da
última ceia nos sinóticos levará inevitavelmente à mesma conclusão, ou seja, não
300 A v in d a d o R e in o

há, nesses relatos, qualquer referência a um cordeiro ou à leitura da história do


êxodo, o que era costumeiro na refeição da Páscoa. Além do mais, há a menção
simples ao “pão” e não aos “pães ázimos” que eram comidos nessa refeição. Ainda,
em Mateus, de qualquer modo, apenas um cálice é passado entre eles, enquanto na
refeição pascal pelo menos quatro cálices eram colocados sobre a mesa. Finalmente,
objeta-se, ainda, que os acontecimentos descritos aqui nos Evangelhos sinóticos
como tendo acontecido na quinta-feira à tarde e na sexta-feira dificilmente
podem ser compatibilizados com o mandamento de descansar no dia 15 de Nisã
(é feita uma referência à ação de uma força armada, à sessão da corte judicial do
Sinédrio para a condenação de Jesus na noite da festa, à sua crucificação no dia
da festa, à compra de especiarias, ao enterro de Jesus, etc.).45
Embora não possamos entrar em detalhes com respeito a essa questão
histórica, deve-se estabelecer que essas objeções derivadas da descrição sinótica
da refeição em si têm pouco valor.
Em primeiro lugar, deve ser observado que a intenção da história sinótica
não é, certamente, nos dar um relato exato acerca da refeição pascal, mas nos
relatar as palavras e ações especiais de Jesus durante a mesma. Mais exatamente,
o conhecimento do que se passou durante a refeição é pressuposto no relato ou é,
até mesmo, considerado supérfluo. Verdade é que, após um exame mais cuidadoso,
percebe-se que vários traços individuais da história se referem de maneira muito
clara à refeição realizada durante a Páscoa.
Jeremias ressaltou isso com detalhes.46 Outros o seguiram nisso e mesmo
acrescentaram apoio complementar com novos argumentos.47Os seguintes pontos
podem ser assinalados. A ceia ocorreu em Jerusalém, também de acordo com
João, enquanto, em outras ocasiões, Jesus deixava a cidade quando a noite caía.
O quadro de uma cidade superlotada só pode ser explicado a partir da celebração
da Páscoa, conforme era ordenado. Essa celebração ocorreu numa hora muito
incomum e foi noite adentro, de acordo com os costumes da Páscoa. Teve um
caráter especial e festivo: os participantes se recostaram à mesa e beberam vinho.
Essa não era uma prática diária, mas pertencia aos ritos pascoais. Tudo isso pode
ser inferido tanto dos sinóticos quanto de João. A isso devemos acrescentar que,
a partir do relato dos sinóticos, a maneira pela qual Jesus caracteriza o pão e o
vinho nos lembra a explicação dada pelo pai à sua família, na Páscoa, quanto
ao significado dos diferentes elementos; que a perspectiva escatológica revelada
por Jesus está de acordo com o desejo expresso na refeição da Páscoa pela futura
libertação de Israel; que, de acordo com Lucas, um cálice foi passado para todos
pelo menos duas vezes durante a ceia; que Jesus passou o cálice após a ceia {meta
to deipnesai), Lucas 22.20, em plena conformidade com os ritos pascais; que as
palavras “fruto da videira” também ocorrem na literatura rabínica; que, na mesma
literatura, “pão” é também usado para “pão ázimo”; que as palavras “fazei isto em
A VINDA DO REINO E A CEIA DO SENHOR 301

memória de mim”, bem como o cantar o hino (hallet) ao final, estão em perfeito
acordo com a ceia da Páscoa.
Não pode haver dúvida nos sinóticos de que a última refeição de Jesus por
eles referida se tratava da celebração da Páscoa. E verdade que alguns autores têm
sugerido que essa refeição era uma preparação solene antes da Páscoa, a chamada
chabura. Porém, independentemente da questão sobre se tais refeições eram
costumeiras logo antes da refeição da Páscoa,48 os detalhes que já mencionamos
acima apontam claramente que se tratava da própria ceia da Páscoa.
Já por essa razão, não nos parece possível disputar a historicidade do relato
sinótico argumentando que, de acordo com as ordenanças judaicas, não era
possível realizar trabalho algum no dia 15 de Nisã. Se esse fosse o caso, então
carregar armas, a sessão do Sinédrio, a participação do povo nas atividades judiciais
romanas, a compra de uma mortalha para Jesus, etc. - tudo isso mencionado nos
sinóticos - seria incompatível com as leis, pois, em primeiro lugar, é inconcebível
que a tradição evangélica tenha se desviado tanto a ponto de fornecer um relato
que (apesar de ser verificável por qualquer judeu cristão nesse ponto, isto é, o
descanso no dia 15 de Nisã) estaria em conflito com os conceitos mais simples do
ritual festivo dos judeus. Além dessa objeção séria, há estudiosos, como Dalman49
e Billerbeck,50 que têm demonstrado, com base nos próprios escritos rabínicos,
que as ordenanças rabínicas referentes às ações narradas pelos sinóticos como
ocorridas no dia 15 de Nisã não são obstáculos intransponíveis.
A objeção histórica, portanto, deve reduzir-se apenas à descrição que João
aparentemente nos dá em 19.14 e em 18.28, de que, no dia da morte de Jesus, a
refeição pascal ainda tinha que ser feita. Como é bem conhecido de todos, somos
confrontados aqui com uma das questões mais difíceis sobre a relação entre os
sinóticos e João. A tentativa feita, no curso de nossa investigação, de estabelecer
algum tipo de acordo entre João e os sinóticos nesse ponto em particular não
deve ser considerada como meramente um exemplo da política de harmonizá-los
mesmo que não haja em João qualquer apoio para isso. Já observamos o argu­
mento de Jeremias de que a refeição mencionada em João 13.1 tem claramente
o caráter de uma reunião festiva especial. Mas, em nossa opinião, os próprios
versículos 13.1 e 2 fornecem fortes argumentos em favor do ponto de vista de que
aqui se trata da ceia da Páscoa. João 13.1 começa com as palavras: “Ora, antes da
Festa da Páscoa ’ (pro de tes heortes tou pascha). No versículo 2, lemos “Durante a
ceia...” (kaideipnouginomenou). A combinação dessas duas informações se torna
bastante natural quando se entende a ceia mencionada no versículo 2 como a
refeição pascal. É verdade que o versículo 1 d iz 11antes da Festa da Páscoa”, mas
esse advérbio temporal não deve ser ligado com egapesen (tendo amado), que
é o verbo principal, e nem com o que se segue no versículo 2, mas com eidoos
(“sabendo”, 13.1). O significado, portanto, é que, já antes da Páscoa, Jesus sabia
302 A VINDA DO REINO

que seu fim estava próximo e, assim, agiu de acordo com isso durante a ceia
pascal. Em nossa opinião, esse advérbio de tempo (“antes”) só faz sentido se o
que é relatado no versículo 2 e seguintes aconteceu durante a própria festa da
Páscoa e se, portanto, deipnon indica a própria ceia pascal. Sem dúvida, a festa da
Páscoa não é explicitamente mencionada durante essa refeição, mas o argumento
do silêncio não se sustenta aqui, pois a instituição da Ceia do Senhor também
não é mencionada. Ainda assim, não é razoável assumir que o evangelista queria
combater essa instituição ou ignorá-la, ou que ele nada soubesse sobre ela. Não há
dúvida de que a Ceia do Senhor era celebrada ao tempo em que esse Evangelho
foi escrito e que sua origem era a última ceia de Jesus. Aqui somos confrontados
com o caráter peculiar do quarto Evangelho, que foi escrito para aqueles que já
conheciam o evangelho de Jesus Cristo (também historicamente).
Assim, alguns estudiosos tentam eliminar a aparente contradição entre João
e os sinóticos nesse ponto explicando as duas passagens “difíceis” em João (18.28
e 19.14) de modo a reconhecer que a morte de Jesus ocorreu no dia 15 de Nisã e
que a ceia pascal foi feita no dia anterior. Eles apoiam essa opinião naquilo que
o próprio quarto Evangelho sugere em 13.1 e seguintes quanto a essa refeição.
Consequentemente, fica difícil entender 19.14 e 18.28 como uma referência
à refeição costumeira da Páscoa. João 19.14 não oferece dificuldades maiores,
pois a palavra paraskeue pode ser concebida como um terminus technicus para
“sexta-feira”, do mesmo modo que, no versículo 31 (cf. v. AH),paraskeue significa
provavelmente o dia anterior ao sábado. O genitivo toupascha, então, significa
meramente (o dia anterior ao sábado) durante a festa da Páscoa.
O ponto interpretativo crucial realmente está no versículo 18.28. H á dife­
rentes perspectivas possíveis aqui. A pluralidade delas mostra, por um lado, que o
assunto não é simples, mas, por outro, que não deveríamos falar de uma contra­
dição cronológica evidente e insolúvel entre João 18.28 e os sinóticos. A maneira
mais simples é entenderpascha, em João 18.28, de um modo mais amplo do que
uma referência exclusiva à ceia em que o cordeiro pascal era comido. Zahn, por
exemplo, vê isso como uma indicação do mazzot pascal.51 Outros especialistas
em judaísmo, como Lightfoot e Schoettgen, recorrem ao Talmude para explicar
que a palavra significa “comer o sacrifício festivo” e, nisso, encontraram muitos
seguidores recentemente. Em nossa opinião, essa perspectiva tem muita coisa
em seu favor. Outros especialistas no Talmude, como D. Chwolson, J. Klausner
e Strack-Billerbeck, dizem que tanto João quanto os sinóticos nos dão um relato
exato dos fatos quando fixam a celebração da Páscoa num dia diferente. E alega­
do que há uma diferença de opinião entre os próprios judeus quanto ao dia em
que a Páscoa deve ser comida. Presume-se que Jesus e seus discípulos seguiram
a perspectiva dos fariseus e celebraram a ceia um dia antes da celebração dos
saduceus, à qual João supostamente se refere em 18.28.32 Se essa perspectiva está
A VINDA DO REINO E A CEIA DO SENHOR 303

correta, lança-se uma luz diferente nas objeções baseadas nas diversas atividades
que supostamente aconteceram no dia 15 de Nisã (cf. acima). Apesar de não
haver uma solução que seja consenso entre todos quanto a essa dificuldade, a
mesma tem que ser reduzida à sua proporção correta, levando-se em conta que:
a) o relato dos sinóticos inegavelmente se refere à última ceia como a refeição
pascal; b) considerada em si mesma, a passagem de João 13.le seguintes pode
também ser entendida como uma descrição da Páscoa; c) que João 18.28 não
representa uma contradição evidente dessa perspectiva geral. Na discussão do
relato sinótico, em nossa opinião, não há, de um ponto de vista histórico, outra
maneira a não ser partir da pressuposição que a instituição da Ceia do Senhor
ocorreu durante a refeição da Páscoa.
Pergunta-se, agora, até que ponto esse fato lança luz quanto ao sentido dessas
palavras e ações. Não precisamos entrar em detalhes acerca da Páscoa judaica
para podermos compará-la com atos distintos ocorridos durante a última ceia.
Obviamente, nosso assunto agora é somente a posição e o sentido do pão e do
vinho da ceia pascal com os quais Jesus ligou as suas palavras bem conhecidas
acerca de seu corpo e de seu sangue.
O pão é mencionado com as palavras complementares “enquanto comiam”
(esthiontoon autoon, M c 14.22; M t 26.26). Essa é, possivelmente, a refeição pro­
priamente dita que era comida após os primeiros pratos (que consistiam de ervas
amargas, ervas verdes e uma espécie de molho) e a liturgia pascal (na qual o pai
dava explicações à sua família sobre o significado da festa da Páscoa em resposta
a uma pergunta dos filhos sobre isso, após a primeira parte do hallel [salmo]
pascal ter sido cantada). Essa refeição consistia do cordeiro pascal assado, que
ficava sobre a mesa, pão sem fermento, ervas amargas, um tipo de fruta cozida e
vinho. O pão, do qual Jesus disse “isto é o meu corpo”, deve ter sido o pão ázimo
que era comido com o cordeiro pascal. A “bênção” mencionada aqui ( eulogesas,
M t 26.26; M c 14.22; eucharistesas, Lc 22.19) era a oração de gratidão feita antes
da refeição propriamente dita.
Com relação ao vinho, ficamos com a impressão, lendo Mateus e Marcos, que
se trata do vinho que era passado entre todos durante o prato principal, o chamado
“segundo cálice”. Conclui-se, de Lucas 22.20 (cf. IC o 11.25), que esse cálice era
bebido após a refeição ( meta to deipnesai). Era o terceiro cálice, durante o qual se
dava graças depois de terminada a refeição e que, portanto, era conhecido como
o “cálice da bênção”, o “cálice da gratidão” (potesion tes eulogia - IC o 10.16).53
Quando Jesus confere ao pão e ao vinho o significado de seu corpo e de
seu sangue, ele certamente faz isso numa analogia ao que o pai da família fazia
durante a celebração da Páscoa, ou seja, relacionar os elementos da ceia ao êxodo
do Egito. A questão, todavia, é o que Jesus quer dizer com essas palavras aqui,
“isto é o meu corpo”. De acordo com Dalman, Jesus teria dito, ao partir o pão,
304 A v in d a d o R e in o

den huguphi, cuja última palavra pode significar (isto é) “meu corpo” ou (isto é)
“eu mesmo”. Alguns estudiosos preferem este último sentido e sustentam que
Jesus não falou especificamente de seu corpo, mas de sua pessoa, querendo, desse
modo, garantir a seus discípulos a sua presença pessoal durante as futuras cele­
brações comunais da Ceia do Senhor.54 Em nossa opinião, essa concepção está
errada. Mesmo se tomarmos a tradução do aramaico sugerida por Dalman como
ponto de partida,55 não é necessário traduzir “isto sou eu mesmo” em vez de “isto
é o meu corpo”. O texto grego, que é o que realmente importa, fala claramente
de sooma, “corpo”, e, portanto, representa outra concepção. Além do mais, o que
é dito acerca do sangue em seguida faz com que seja necessário traduzir “isto é
o meu corpo”.56 Corpo e sangue indubitavelmente ocorrem aqui como os dois
elementos que constituem o ser humano e que são separados na morte. E é da
morte de que se fala nessa passagem, pois o corpo de Jesus é mencionado como
o que é “oferecido por vós” (Lucas) e seu sangue como o que é “derramado em
favor de muitos, para remissão de pecados” (Mateus e Marcos). Tanto o “dar”
quanto o “derramar” se referem à morte iminente de Jesus.57
Esse é o motivo pelo qual Jeremias está perfeitamente correto em ligar as
palavras da última ceia com a terminologia dos sacrifícios.58 Na linguagem do
culto, a carne e o sangue do animal do sacrifício são repetidamente mencionados
e a expressão “derramar sangue” é também frequentemente usada. Além disso, de
acordo com Mateus e Marcos, Jesus se refere ao seu sangue como “meu sangue,
o sangue da aliança”, que é uma alusão óbvia a Êxodo 24.8, onde “o sangue da
aliança” também indica o sangue do sacrifício que era aspergido sobre o povo.
E nesse ponto, surge a questão sobre se Jesus, ao falar de seu corpo e de seu
sangue dessa maneira, indicava a si mesmo como o verdadeiro cordeiro pascal.
Essa opinião é defendida por muitos estudiosos.59 Entretanto, deve ser observado
que uma ligação direta como essa, entre a morte de Jesus e o sacrifício do cordeiro
pascal, não é explicitada. Em primeiro lugar, devemos manter em mente que Jesus
fala do “seu corpo” ao distribuir o pão e não ao servir a carne do cordeiro pascal.
A explicação de Dalman é que não havia um ritual para a distribuição e o comer
o cordeiro da Páscoa, de modo que Jesus não poderia tomar isso como ponto de
partida. Daí, portanto, já por esse motivo, Jesus tinha uma oportunidade melhor
durante o repartir do pão, que era partido e distribuído de maneira solene. Além
disso, o que estava pronto sobre a mesa já não servia como uma representação
adequada do “cordeiro levado ao sacrifício”, ao qual Jesus poderia se comparar,
pois já estava reduzido a um assado saboroso dividido em pedaços, servindo de
repasto festivo e, portanto, algo com o que Jesus dificilmente poderia associar
com seu próprio corpo.60
Não há dúvida de que é possível concluir que a carne do cordeiro posta
sobre a mesa dessa maneira não era apropriada para uma associação com o corpo
A VINDA DO REINO E A CEIA DO SENHOR 305

de Jesus, tanto quanto o pão que era repartido. Ainda assim, é inegável que, na
referência de Jesus ao seu próprio corpo usando o pão, e não a carne, não há uma
relação direta entre sua morte e a morte do cordeiro pascal. Isso é ainda mais claro
quando ele distribui o vinho. Nesse caso, Jesus fala de seu sangue e não faz refe­
rência ao sangue do cordeiro pascal e sim ao sangue aspergido no estabelecimento
da aliança. E verdade que foram citados por alguns autores pronunciamentos da
literatura judaica que se referem ao sangue da Páscoa como o sangue da aliança,61
mas tais pronunciamentos são excepcionais e encontrados apenas na exegese dos
escribas.62 Conclusivo é o fato de que, por essas palavras, “isto é o meu sangue, o
sangue da [nova] aliança”, Jesus claramente cita as palavras do estabelecimento
da aliança no Monte Sinai (cf. também Hb 9.20)63 e não há qualquer alusão ao
sangue do cordeiro pascal sacrificado.
De tudo isso transparece que as palavras institucionais da ceia são inde­
vidamente esticadas ao serem interpretadas assim: “Jesus diz ‘meu sangue é a
verdadeira carne pascal, meu sangue é o verdadeiro sangue pascal, eu sou o
verdadeiro cordeiro pascal’”.64
Em outras partes do Novo Testamento, Jesus é claramente indicado e ex­
plicitamente referido como o verdadeiro cordeiro pascal (lC o 5.7; Jo 19.36; cf.
também Jo 1.29,36; lPe 1.19; Ap 5.6; 12.11) e suas palavras na refeição pascal
certamente justificam essa designação. Porém, apesar de todas essas considerações,
deve ser afirmado que, em especial, as palavras “isto é o meu sangue, o sangue
da [nova] aliança” colocam a morte de Jesus numa perspectiva mais ampla do
que meramente aquela da oferta pascal. Por esse motivo, a morte de Jesus deve
ser vista não apenas como o cumprimento da morte do cordeiro pascal, mas, de
modo mais geral, como o cumprimento de todo o culto sacrificial do Antigo
Testamento, o qual tornava possível a remissão de pecados do povo e a vida com
Deus na aliança. Esse caráter geral da morte expiatória de Jesus também trans­
parece da alusão que ele faz a Isaías 53, ao dizer que esse sangue é “derramado
em favor de muitos”, e, dessa maneira, abrindo o caminho para a “nova aliança”
anunciada por Jeremias e Ezequiel. O pensamento grandioso e central é que a
morte de Jesus é o sacrifício eminentemente expiatório, o cumprimento de tudo
o que havia sido simbolizado como tal debaixo da antiga aliança. E o fruto desse
sacrifício expiatório abrangente e que cumpre todas as coisas que ele dá a comer
e a beber a seus discípulos como seu corpo e seu sangue.
Tudo nesse contexto depende de uma perspectiva correta da associação
entre o sacrifício e o que se come e bebe na mesa da comunhão. Nesse sentido, o
significado da Ceia do Senhor é inteiramente determinado pelo caráter da refei­
ção pascal. O que era verdadeiro quanto à Páscoa, agora se aplica ao significado
“realizado” da Ceia do Senhor: é um repasto sacrificial, o repasto sacrificial num
sentido preeminente, isto é, aquele da nova aliança. Isso quer dizer que o comer
306 A v in d a d o R e in o

e o beber, a comida e a bebida que são dados, se baseiam no sacrifício realizado


e são seu fruto e resultado. E dada a Israel liberdade para comer e beber como o
povo redimido de Deus, pois o sacrifício foi feito. Exatamente o mesmo ocorre
na Ceia do Senhor, à exceção do fato de que a sua primeira celebração anteci­
pou o sacrifício que haveria de se seguir. O corpo ainda não havia sido “dado” e
nem o sangue “derramado”. Jesus estava, por assim dizer, no processo de levar o
sacrifício. Apesar disso, o que Jesus chama de pão e vinho dos discípulos, a vida
deles, a força deles e a alegria deles, é o fruto do sacrifício que ele estava prestes
a fazer por eles. Nesse sentido, o pão é seu corpo e o cálice contém seu sangue,
ou seja, aquilo que se recebe no pão e no cálice é a comida e a bebida sacrificial da nova
aliança, osfrutos do sangue sacrificial do Novo Testamento.
Portanto, pouca dúvida pode haver acerca do sentido geral da ação realizada
na Ceia do Senhor à luz tanto da celebração da Páscoa quanto à referência a
Êxodo 24.8, pois Jesus se refere à sua morte sacrificial como a fonte e a causa da
salvação de seus seguidores, o ato de fundação da nova aliança. E, ao repartir o
pão e o vinho representando seu corpo e seu sangue, ele assegura a seus discípulos
a participação deles na salvação realizada por meio de sua morte. Aqui, a salvação
do reino dos céus proclamada na pregação de Jesus é mais uma vez revelada em
sua fundação messiânica e tornada visível e tangível aos seus discípulos, ao mesmo
tempo em que é concedida a eles. Numa concentração suprema, por assim dizer,
a Ceia do Senhor enfoca a totalidade da pregação do evangelho a respeito do
sacrifício de Cristo e põe a mesa com ele. Os discípulos recebem a permissão de
participar do pão e do vinho dessa oferta sacrificial e derivam dela vida e alegria
como os frutos permanentes da era porvir.
Disso segue-se que não há qualquer base para a ideia de que, na Ceia do
Senhor, o ato sacrificial em si acontece e que a Ceia do Senhor e esse sacrifício
são uma e a mesma coisa. Essa Ceia não é o sacrifício em si, mas sua aplicação,
sua celebração. M as basta um pequeno deslize no pensamento para que alguém
se desvie e enverede por trilhas diferentes (e não bíblicas). Em nossa opinião, é
isso que acontece com Van der Leeuw, o qual, com base nas passagens sobre a
última ceia, chega à conclusão de que “ele partiu o pão como seu corpo, derramou
o vinho como o sangue de sua nova aliança... ele substitui o sangue sacrificial da
antiga aliança pelo seu próprio sangue. Essencialmente, ele sacrificou-se na sua
última ceia; o Gólgota é somente a complementação do que acontece aqui”.65 E
mais, “Jesus se sacrifica na ceia sob a forma de uma alegoria profética; ainda assim,
num sentido essencialmente concreto; isto é o meu corpo, isto é, isto sou eu”.66
Aqui somos confrontados com uma concepção muito fundamental do evan­
gelho da última ceia, que forma a base de uma teologia completa sacramental, a
qual, todavia, em nosso parecer, desvia o leito do rio de maneira clara e notável,
já a partir da fonte de onde ele nasce. A Ceia do Senhor não é um sacrifício, do
A VINDA DO REINO E A CEIA DO SENHOR 307

mesmo modo que a ceia pascal também não é. Entretanto, é uma ceia sacrifi-
cial. O sacrifício é o pressuposto e não o conteúdo da ceia. No repasto pascal,
o cordeiro não era morto outra vez (mas comido), da mesma maneira que Jesus
não se ofereceu num sentido parabólico na última ceia. Ele somente assegura
a seus discípulos, da maneira mais vivida, quanto ao fruto do sacrifício de sua
vida. Enquanto a última ceiafor vista na perspectiva da ceia pascal, não pode haver
dúvida acerca do significado das ações deJesus quanto ao pão e o vinho. E verdade que
Van der Leeuw não admite que a última ceia de Jesus tenha sido uma refeição
pascal,67 apesar das inegáveis declarações do evangelho. Porém, mesmo sem essa
estrutura (a qual, entretanto, longe de ser um mero palco, é, pelas evidências, o
próprio fundamento do relato da Ceia do Senhor), uma exegese cuidadosa das
palavras de Jesus jamais poderia inferir delas que, durante a Ceia, Jesus estava se
sacrificando “sob a forma de uma alegoria profética”.
Quando Jesus diz “isto é o meu corpo”, este touto não está de maneira alguma
se referindo ao que está partindo, mas ao que está distribuindo. A referência não
é ao ato de partir, mas ao alimento recebido das mãos de Jesus, “sob a forma de
uma alegoria profética”. Isso tem um significado fundamental para a compre­
ensão da atitude de Jesus em relação ao pão. E verdade que, mais tarde, o partir
do pão foi também incorporado ao simbolismo, significando “o partir do corpo
de Cristo”.68 M as é muito duvidoso que essa extensão do simbolismo seja eficaz
e significativa. De nada adianta recorrer ao relato de ICoríntios 11.24, “que é
partido por vós” [assim na versão rev. e corrig.],pois essa não é uma interpretação
autêntica, pois é óbvio que a palavra “partido” não é original.69Além disso, o partir
do pão não sugere de modo algum o rasgar violento de um corpo humano. Era,
ao contrário, a ação costumeira de um pai de família a cada refeição. O pão não
era servido em fatias, era partido em pedaços. E mais, a ideia de “partir” a carne
ou o corpo era totalmente estranha à terminologia sacrificial. A ação sacrificial
consistia no derramar do sangue, não em rasgar a carne sacrificial. E, finalmente,
em outro lugar do evangelho é declarado de maneira enfática que, na morte de
Jesus —exatamente como na morte do cordeiro pascal - “Nenhum de seus ossos
será quebrado” (Jo 19.36). Porém, mesmo que alguém fosse sustentar que esse
“quebrar” pode se aplicar de maneira significativa ao que ocorreu com o corpo de
Jesus, é inegável que, na última ceia, esse simbolismo não foi expresso nas palavras
a respeito do pão. Portanto, está fora de questão falar de um ritual sacrificial.
Essa declaração se aplica ainda mais claramente ao vinho do que ao pão.
Quando Jesus diz “isto é meu sangue, o sangue da [nova] aliança, que é derramado
em favor de muitos”, essa declaração não pode ser uma referência ao colocar o
vinho na taça, mas somente à distribuição do vinho como o sangue de Cristo. E
isso pela simples razão de que colocar vinho numa taça não pode ser denominado,
linguisticamente, como um “derramar” ( ekkein).70 Quando Van der Leeuw
308 A v in d a d o R e in o

escreve que Jesus “derramou” o vinho como o sangue da nova aliança e infere
disso que, em essência, ele estava se sacrificando na ceia, ele está simplesmente
transferindo as suas próprias ideias para o texto original, e isso de modo radical.
Não há a menor sugestão na passagem de um “derramar” simbólico do vinho na
taça. O paralelismo entre colocar vinho numa taça e derramamento de sangue é
totalmente estranho ao texto e ao uso lingüístico normal. Além disso, é possível
inferir-se do ritual pascal que o vinho j á havia sido colocado na taça quando Jesus
aplicou a figura do seu sangue a ele.71 O que é simbolizado, portanto, não é a
autoentrega de Cristo, mas seus frutos para a vida de seus seguidores.72 Não é o
altar, mas é a mesa que caracteriza o que ocorre na Ceia do Senhor. O sacrifício
pressupõe o comer e o beber, mas ele próprio não pertence a essa “alegoria”.
Questionar isso não pode ser justificado nem por um momento, nem com base
na ceia pascal e muito menos com base numa exegese cuidadosa das palavras
ligadas com o pão e o vinho.
Esse é também o motivo pelo qual a tentativa repetida de se estabelecer uma
ligação entre a Ceia do Senhor e a encarnação é totalmente estranha ao mundo
de pensamento dos relatos sinóticos,73 pois “corpo” e “sangue” não representam,
aqui, em nenhum sentido, a carne como modo de existência do Verbo divino,
de modo que os que participam de seu corpo e sangue participam igualmente
de sua existência divino-humana. O que é transmitido aos discípulos de Cristo
nesse caso, em seu corpo e sangue, é a autoentrega dele à morte, nada mais. Esse
é o motivo pelo qual consideramos um equívoco supor que há alguma coisa a
mais no corpo e no sangue da Ceia do Senhor do que “os frutos da crucificação,
propiciação e remissão de pecados”. Alguns supõem que a realidade escatológico-
pneumática é também referida aqui, consistindo “na carne e no sangue do próprio
Cristo”, e não simplesmente “no seu fruto”,74 pois outra vez o corpo e o sangue
de Cristo ocorrem aqui como tais, não na sua condição terreno-temporal, nem
em seu estado glorificado, de tal modo que, após a ascensão de Cristo ao céu, o
comer e o beber de sua carne e seu sangue não podem ser considerados como o
recebimento de seus seguidores ou a entrada deles na realidade escatológica da
glorificação de Cristo. O ponto de vista a partir do qual o corpo e o sangue do
Senhor são considerados, quanto a isso, é o que ocorre em sua morte. Tudo o
que vai além disso, tudo o que supostamente indica o corpo e sangue de Cristo
como seu modo terreno ou celestial de existência, é uma metabasis eis alio genos,
uma representação equivocada da situação da Ceia do Senhor como uma refeição
sacrificial, bem como uma representação incorreta tanto da conexão entre essa
ceia e a Páscoa quanto da conexão entre a ceia e a refeição da aliança. A exegese
das palavras institucionais tem que ser determinada por essas ligações.75
O propósito que Jesus queria alcançar pode ser também inferido desse caráter
indisputável e claro de sua atitude em relação à última ceia. Ele ressaltou para seus
A VINDA DO REINO E A CEIA DO SENHOR 309

discípulos a causa e o fundamento da salvação, que foi sua morte propiciatória,


a qual ele havia proclamado a eles como o evangelho do reino, que consistia na
realização da nova aliança prometida pelos profetas. Ao mesmo tempo, essa
referência era uma confirmação e um selo, pois ele deu-lhes pão e vinho como
seu corpo e sangue, para que comessem e bebessem. E tudo isso eles teriam
que guardar e observar como uma ordenança. A ordenança para lembrar, “fazei
isto em memória de mim” (Lc 22.19), é inegável. Isso torna a Ceia do Senhor
a refeição da aliança do novo povo de Deus, da nova igreja que Cristo reune
para si mesmo. Isso também é expresso pelas palavras “por muitos”, cujo sentido
já tentamos definir: são aqueles que, em seu ajuntamento total ( Gesammtheit),
são beneficiados pela sua morte propiciatória. Eles são o novo povo de Deus, a
comunidade messiânica em sua generalidade, pela qual Jesus morre e pela qual
ele ordena a Ceia em memória dele.
Portanto, a Ceia do Senhor tem o caráter de uma refeição redentora, uma
refeição de regozijo por causa da morte expiatória do Senhor. Sem dúvida alguma
isso só é possível porque Cristo retornou dessa morte, porque ele não somente
é o Crucificado, mas também o Senhor Ressurreto, e porque ele é e permanece
sendo o anfitrião dessa refeição. Ainda assim, a Ceia do Senhor não é uma ceia
de ressurreição, mas uma ceia de sacrifício expiatório por causa da cruz. A “Sexta-
feira da Paixão” é, certamente, o ponto focal da nossa recordação de Cristo, como
o dia em que nossa salvação foi realizada. E o dia em que a morte de Cristo se
tornou a vida de seu povo, a angústia dele se tornou a libertação deles, seu medo,
a alegria deles, seu corpo e seu sangue, rendidos à morte, tornaram-se o pão e o
vinho deles; ele, o Crucificado, até mesmo tornou-se “a comida e a bebida da vida
eterna para suas almas famintas e sedentas”. Esse é o motivo pelo qual o pão é
o pão da salvação, o pão da vida; e o cálice, o “o cálice da redenção” e “a taça da
salvação”. E tudo isso no sentido de que há, nele, não só o que é simbolizado e
oferecido, mas o que é realizado e confirmado. O corpo e o sangue de Cristo são
comidos e bebidos na mesa da comunhão, a cruz se torna uma realidade viva no
meio da congregação. E essa combinação de sinal e selo, de símbolo e realidade,
que teremos de examinar em seguida à luz do evangelho.

42. Símbolo e realidade

Chegamos, agora, à questão da relação que Jesus estabeleceu, nas palavras


da instituição da Ceia, entre o pão da Ceia do Senhor e seu corpo e entre o cálice
(de vinho) e seu sangue: “Isto é o meu corpo” e “isto é o meu sangue, o sangue da
[nova] aliança” (“Este é o cálice da nova aliança no meu sangue”). Essa questão
tem sido objeto de disputas acaloradas desde tempos antigos.
310 A v in d a d o R e in o

Obviamente, é impossível para nós discutir todas as possibilidades exegéticas


adotadas nesse grande debate confessional acerca do sentido das palavras profe­
ridas na Ceia do Senhor. Quanto à base exegética, não é mais necessário refutar a
tese de que as palavras “isto é o meu corpo” se referem a uma relação de identidade
entre a substância material de seu corpo e o pão da Eucaristia, envolvendo uma
mudança essencial no pão e no vinho.76 A literatura dogmática com respeito à
exegese da palavra touto (“isto”) mostra a violência à qual os exegetas são com­
pelidos a recorrer para demonstrar a chamada “evidência” dessa concepção.
Esta palavra, touto, afinal de contas, só pode significar “este pão”. Após Jesus
ter pronunciado as palavras “(é) o meu corpo”, o verbo “é” teria mudado de signifi­
cado. E os discípulos teriam pensado no pão somente até ouvirem a palavra “touto .
Mas, após Jesus ter designado “meu corpo”, eles não mais conseguiram pensar no
pão.77Dificilmente se pode negar que, de um ponto de vista exegético, essa posição
não tem qualquer evidência e é um caso de artificialidade insuportável.
O mesmo se aplica, mutatis mutandis, à antiga concepção luterana que se
baseava numa exegese literal, isolada e limitada das meras palavras da instituição
da Ceia do Senhor.78 E verdade que a transformação do pão no corpo de Jesus, etc.,
foi rejeitada aqui, mas manteve-se que no pão e no vinho, com o pão e o vinho e
sob o pão e o vinho, o corpo e o sangue de Cristo estavam presentes no sentido
concreto da palavra, concebidos como uma união ( unio) das duas substâncias,
do pão e do corpo ou, como Lutero entendia, aplicando a figura de sinédoque
a touto. Portanto, nessa concepção, a palavra touto (hoc) de fato se refere ao pão,
mas não apenas a ele, e sim a tudo que Jesus aqui distribui. O que é distribuído,
como o predicado diz, não é meramente pão, mas, especificamente, pão e corpo.
O predicado (corpo) destaca a parte invisível e valiosa da totalidade, enquanto
o sujeito primeiro indica o portador visível e menos valioso desse bem invisível.
Desse modo, enquanto touto se relaciona tanto com as partes visíveis e invisíveis,
o predicado indica somente o corpo (sinédoque).'9
Atualmente, exegetas luteranos, bem como muitos dogmáticos, admitem
que essa exegese isolada e “literal” das palavras da Eucaristia é insustentável.
Gollwitzer, por exemplo, argumenta corretamente que, dentro do escopo da úl­
tima ceia, não havia possibilidade de surgir entre os discípulos qualquer questão
quanto ao significado que Jesus lhes deu, pois a ideia de que ele estava se referindo
a algo diferente do pão que estava repartindo não poderia ter ocorrido a eles.
Se as palavras de Jesus fossem uma indicação do “conteúdo” do pão, isso, então,
deveria ter sido claramente expresso, pois, dentro do escopo dessa refeição, esse
conceito não era imediatamente evidente nas próprias palavras. O fato de Jesus
ter dito essas palavras sem qualquer comentário adicional não requer, como Lutero
pensava, uma concepção literal do predicado “corpo” como uma indicação de seu
conteúdo (Inhaltsangabe) - ao contrário, impede essa concepção.80
A VINDA DO REINO E A CEIA DO SENHOR 311

Por outro lado, nenhuma objeção real pode ser levantada contra a concepção
simbólica81 das palavras institucionais. Essa concepção não somente é óbvia na
situação em que essas palavras foram proferidas e na qual os discípulos seriam
incapazes de anexar-lhes qualquer outro sentido na presença corpórea de Jesus
- ela também está totalmente de acordo com a maneira gráfica, imaginativa e
simbólica de Jesus falar, a ponto de se ter mencionado corretamente, aqui, nesse
contexto, as suas parábolas.82 Além disso, o fato de que o texto grego tem estin
(“é”) não altera nada aqui. O verbo grego estin, de fato, pode expressar a identi­
dade do sujeito e do atributo,83 mas isso não diminui o fato igualmente inegável
que estin, do mesmo modo, tem um significado comparativo ou simbólico (Mt
13.38-39 tpassim). Não existe a menor necessidade de que esse pronunciamento
seja precedido por uma comparação84 (cf. M t 5.13). E quanto ao argumento de
que pão e vinho não podem ter um sentido simbólico nesse caso, mas somente
um significado “realístico”, visto que não são símbolos naturais para a carne e
o sangue de uma pessoa,85 pode-se somente inferir dessa última circunstância
que devemos considerar primariamente o ponto de comparação. Quanto à “sua
natureza”, o sal não é um símbolo para o homem, mas, considerando um ponto
especial de similaridade entre ambos, Jesus disse ao povo, “Vós sois o sal da terra”
(M t 5.13).
Todavia, toda a narrativa da instituição da Ceia do Senhor mostra que Jesus
não estava simplesmente fazendo uma comparação entre o pão e seu corpo e entre
o vinho e seu sangue. Essas palavras foram acompanhadas de gestos significativos
(p. ex., a distribuição), os quais devem também ser incorporados no simbolismo,
bem como a exortação para que tomassem e comessem e bebessem. Pão e vinho
não são o corpo e o sangue de Jesus pelo simples motivo de que, objetivamente
e à parte desse gesto, eles têm alguma semelhança com seu corpo e seu sangue
dentro do escopo dessa ceia - mas por causa de seu uso ordenado por Jesus e
seguido pelos discípulos. Isso significa que eles são o que são porque Jesus dis­
tribui esse alimento aos discípulos nessa situação e nesse sentido específico. E
essa é a razão pela qual os discípulos recebem seu corpo e seu sangue de maneira
simbólica no pão e no vinho. Assim, pão e vinho não somente descrevem o corpo e
o sangue de Jesus; eles tambémfuncionam de outra maneira, isto é, representando-os.
Portanto, quem recebe um recebe também o outro. Sem dúvida, isso só ocorre
da única maneira pela qual seu corpo e seu sangue podem ser recebidos, isto
é, de acordo com sua natureza, pois o corpo e o sangue de Jesus não são, obvia­
mente, comida e bebida que podem ser tomadas com nossa boca física. Tudo
permanece simbólico, mas de uma maneira que esse gesto simbólico está ligado
com a realidade em virtude da ação realizada com pão e vinho como símbolos
do corpo e do sangue de Cristo. A exegese católico-romana e a antiga exegese
luterana erram não por causa da relação muito próxima que estabelecem entre
312 A v in d a d o R e in o

pão e corpo, vinho e sangue, mas porque transformaram o símbolo em realidade,


quando deveriam ter-se conscientizado de que a associação entre o símbolo e a
sua realidade pretendida deve ser encontrada no ato de distribuir, por um lado,
e no comer e beber, por outro.
Para compreender a ligação entre pão e corpo, é construtivo ler o que R.
Otto escreve sobre o que ele chama de “tipo especial de atitude de Cristo com o
pão”. Essa atitude se encaixa no tipo geral de parábola. O mestre de parábolas em
palavras aqui age de maneira parabólica. Essa ação antecipa o futuro, isto é, a morte
de nosso Senhor,86 mas, ao mesmo tempo, é um Anteilgabe na dem Anticipierten
(dar uma parte do que está sendo antecipado), mediante o que Otto chama de
representação eficaz. Isso está de acordo com outra concepção que encontrou
aceitação numa área vasta e que ainda é encontrada atualmente. E a perspectiva
- que nunca foi definida de maneira estrita e, portanto, por esse mesmo motivo,
está bem viva —que a essência, a virtude, a maldição ou a bênção inerente em
algum objeto ou acontecimento (X), pode ser transmitida ou apropriada usando-se
uma representação de X. Essa representação se torna eficaz por meio da vontade
daquele que tem X à sua disposição.
São sempre objetos e acontecimentos que, em si mesmos, mostram algu­
ma analogia, alguma similaridade, com respeito aos objetos ou acontecimentos
a serem representados, que são especificamente ajustados para representação
eficaz. Com frequência, por causa dessa analogia, tais coisas ou acontecimentos
espontaneamente atraem a ideia de uma representação eficaz. O caso presente
é um exemplo desses. Comer, beber e a força derivada disso implicam uma
analogia com a apropriação da virtude ou a ação do que ela representa, ou seja,
seu corpo e seu sangue. Assim, Paulo diz que aqueles que comem dos sacrifícios
participam do altar, pois o sacrifício representa o altar. E aquele que participa
do altar é também um participante do poder santificador do altar.87 Em outro
lugar, Paulo fala da comunhão entre aqueles que comem de um determinado ali­
mento e dos poderes que são consumidos nesse alimento (cf. IC o 10.20-21). Ser
participantes da mesa do Senhor, referido por Paulo nesse contexto, bem como
participar da mesa dos demônios, estabelece uma comunhão, dá acesso a uma
realidade representada pelo pão, pelo vinho, por uma mesa, um alimento. Não
há qualquer questão ou pensamento da transição de uma “substância” para outra,
mas a relação assim criada não é somente uma relação noética, mas, também, algo
presente e real. E entrar em contato vivo com a realidade do que é representado
pelos sinais externos.
O termo “representação”, indicando a ligação efetiva e real entre símbolo e
realidade na Ceia do Senhor, é encontrado não somente nas exposições de Otto,
mas é usado por um vasto círculo de autores.88 E, portanto, da maior importân­
cia que nos conscientizemos de que esse termo expressa somente a natureza da
A ViNDA DO REINO E A CEIA DO SENHOR 313

relação entre o signo e o que é significado e que, para o uso correto desse termo,
é da maior importância conhecermos o conteúdo, o res, do que é representado.
Aqui devemos reverter ao que foi dito na seção anterior a respeito do corpo e do
sangue de Jesus. Pois é considerado que, na Ceia do Senhor, Jesus sacrificou a
si mesmo de um modo prefigurativo e antecipatório. E compreensível que, na
repetição do gesto com pão e vinho, o sacrifício de Cristo como uma ação seja
considerado a cada vez como sendo uma representação real e presente. Essa é,
portanto, a opinião de muitos autores recentes, que começaram com a ideia da
Ceia do Senhor como um sacrifício, como é feito especialmente pela maioria de
teólogos romanistas e romanizadores mais recentes.
Em oposição a isso, devemos manter que, dentro do escopo dos relatos da
instituição da Ceia do Senhor, o conceito “representação” não pode se referir a
qualquer ação sacrificial pela qual Cristo sacrificou-se a si mesmo. Só pode ser
aplicado ao que é distribuído aos crentes, isto é, ao fruto, à propiciação, à remis­
são de pecados efetuada pelo sacrifício de Cristo. Esse é o significado inegável e
central das palavras “meu corpo” e “meu sangue”. E o que pode ser compartilhado
num repasto sacrificial, como o alimento da redenção, como a taça da salvação.
Além disso, essa é a razão pela qual qualquer concepção dessa representação
como sendo baseada num novo ato divino de criação que tem sua forma básica
na encarnação do Logos e que transforma os elementos do pão e do vinho da
Eucaristia como sendo portadores da presença real da obra de salvação de Cristo,89
seria uma intrusão no evangelho de pensamentos de outro mundo. A Ceia do
Senhor se preocupa apenas com uma segurança real de salvação, não com uma
concepção presente ou atualização (para evitar o termo “repetição”) do fato único
da salvação. Não éa aquisição, mas a aplicação da salvação que é representada. Corpo
e sangue - e não devemos ir mais além - somente ocorrem na Ceia do Senhor
como o que pode ser compartilhado pelos fiéis. Essa é a única coisa na Ceia do
Senhor capaz de prolongação. A Ceia do Senhor representa salvação e a distribui
em virtude da palavra autoritativa e messiânica de Jesus e não porque, de um
jeito ou de outro, significa uma extensão in mysterio da encarnação do Logos
pelo poder de um ato divino de criação. Portanto, pertence ao milagre da obra
de Cristo, não ao milagre da sua pessoa.
Finalmente, isso também indica o fundamento da realidade do corpo e san­
gue de Cristo concebido no sentido acima e a garantia da relação entre símbolo e
realidade. A sua explicação não se encontra na qualidade dos elementos do pão e
do vinho, nem na transformação deles no corpo e no sangue, nem ainda na ligação
material entre eles. Também não é permissível pensar de maneira subjetiva que a
associação real entre o pão e o vinho e o autossacrifício de Cristo se baseiam na
fé daqueles que recebem o pão e o vinho. Os discípulos são exortados a “tomar”,
“comer”, e “beber” e apenas nesse “tomar” eles participam do corpo e do sangue
314 A v in d a d o R e in o

de Cristo na Ceia do Senhor. Eles são também exortados a continuar a fazê-lo


em memória de Cristo. Dessa maneira, eles devem perpetuar o comer e o beber
o corpo e o sangue de Cristo. E supõe-se que, nesse ato de fé e de memória,
eles continuarão, de fato, a receber o poder da sua morte expiatória, ou, em ou­
tras palavras, que, nesse ato memorial, a relação do pão com o corpo, do vinho
com o sangue, continuará a existir. M as isso não significa que a realidade dessa
ligação repouse na fé e que seja, portanto, totalmente subjetiva. As palavras da
instituição proferidas por Jesus não são “coma isto como se fosse o meu corpo”,
ou “considere isto como o meu corpo”, mas: “Este é o meu sangue” e: “esta é (a
[nova] aliança no meu sangue”. A associação entre opão e o corpo, o vinho e o sangue,
repousa nas palavras de Cristo, em seu comando, nofato de que ele é o despenseiro e o
anfitrião. Assim, tudo aqui depende da confiabilidade de sua promessa, na eficácia e
na autoridade de suas palavras. Jesus tem poder sobre seu “corpo” e “sangue”, isto
é, sobre os frutos do seu sacrifício expiatório. Por esse motivo, ele pode fazer com
que o pão e o vinho representem o seu corpo e o seu sangue. Assim, a realidade
desse processo “sacramental”, isto é, a relação entre símbolo e realidade, nunca
pode ser demasiadamente enfatizada, desde que esse realismo não seja mudado de
Cristo para os elementos, pois o pão e o vinho “são” o corpo e o sangue de Cristo,
por causa do fato e na medida em que eles são seus representantes em virtude
da promessa de Cristo. Por isso, a certeza de receber salvação não pertence ao
comer e beber como tais, nem mesmo à fé somente, mas em aceitar das mãos de
Cristo esses símbolos assim qualificados. A natureza dos elementos não precisa
nem mesmo ser mencionada - a maneira visível pela qual eles são os portadores
da salvação não repousa num nível diferente da maneira audível pela qual essa
salvação é comunicada pela Palavra divina - a coisa essencial e exclusiva é a
“natureza” da promessa de Cristo
Isso não é nada menos do que o que ele tornou conhecido aos seus discípulos
e que lhes comunicou na noite anterior à sua morte, com a mesma autoridade
com que pronunciou que os pobres de espírito são bem-aventurados. Com os
discípulos, ele também incluiu sua igreja como participante do poder expiatório
de sua morte. A maneira parabólica na qual isso é feito não é, como tal, uma de­
monstração mais eficaz do poder da redenção que inclui a totalidade da existência
humana do que a certeza de sua salvação pela pregação do evangelho. O principal
nesse caso, para eles, é aceitar essa salvação das mãos daquele que se sacrificou em
sua entrega à morte. A coisa essencial é a ligação entre o evangelho e sua morte
expiatória, o fundamento da totalidade da pregação do reino na morte de Cristo.
E nisso ele mesmo age como o despenseiro da salvação na última ceia e também
a cada vez que a igreja faz isso “em memória dele”, pois todas essas coisas foram
ditas com base da mesma certeza com que ele em outro lugar assegurou a seus
discípulos de sua permanente comunhão com eles (M t 18.20; 28.20). Agora,
A VINDA DO REINO E A CEIA DO SENHOR 315

também, a garantia da participação da igreja no poder expiatório da morte de


Cristo no pão e no vinho não significa que, neles, o mistério da presença de
Cristo seja transferido ao pão ou incorporado ao vinho. Significa apenas que
esse poder reside no fato de que o Cristo vivo ainda garante a sua palavra com
sua autoridade e que ele autoriza outros a falarem em seu nome.
E por isso que sua última palavra é “a palavra da igreja”. Dada no momento
de sua partida, essa palavra indica o modo de existência da igreja durante o período
anterior à segunda vinda do Filho do Homem em sua glória: é uma existência
enraizada na segurança eficaz de salvação dada por Cristo, é o receber de suas
mãos e comer e beber do fruto da sua cruz até que ele venha beber o vinho novo
com os seus seguidores no reino de seu Pai.
X
O FU TU RO DO R EIN O D O S C ÉU S

43. O problema da "Nah-erwartung"


(i.e., da iminência do reino)

Nosso último capítulo deve ser dedicado às declarações do evangelho con­


cernentes ao futuro do reino dos céus. Em contraste com a perspectiva defendida
por C. H. Dodd de que o reino é exclusivamente do presente, já estabelecemos
como um dos motifs básicos do evangelho que, falando de maneira geral, o reino
realmente também é futuro (cf. §7). Esta conclusão é o resumo de todas as in­
formações nos Evangelhos sinóticos relacionadas com o futuro do reino.
Esses problemas se constituem numa questão muito complicada e que, em
nossa opinião, é das mais difíceis de elucidar, requerendo, portanto, uma atitude
de modéstia. Isso aparecerá claramente quando tentarmos, agora, nos familia­
rizar, em primeiro lugar, com as principais interpretações dadas pela chamada
escatologia sinótica.
Obviamente, o que nos interessa aqui são o propósito e o escopo dos pro­
nunciamentos escatológicos na pregação de Jesus que nos foram dados. Ê aqui
que o “conflito sobre a escatologia” deve ser decidido.
A velha escola liberal procurou a essência do evangelho na perene pregação
do amor. Ela empurrou para trás, tanto quanto pôde, as declarações de Jesus
acerca do futuro grandioso e declarou que eles pertenciam ao contexto não es­
sencial e “contemporâneo” (zeitgeschichtliche) da pregação de Jesus.1Em oposição
a isso, a tendência escatológica tem tentado explicar a pregação de Jesus a partir
da realidade da Nah-erwartung, isto é, da expectativa, cuja origem é atribuída
a Jesus, da chegada rápida do futuro grandioso, no sentido da apocalíptica ju ­
daica. De acordo com essa posição, a pregação de Jesus é dominada pela ideia
do governo divino imediatamente iminente. Assim, está historicamente ligada
com a expectativa judaica do fim e do futuro e, obviamente, não é determinada
pelo quadro da esperança nacional. Jesus, muito pelo contrário, compartilha da
O FUTURO DO REINO DOS CÉUS 317

expectativa cosmológica da escatologia judaica? Não é exagero afirmar que, desde


Johannes Weiss, essa tese tem sido a principal questão no conflito acerca do
sentido do Novo Testamento, especialmente da escatologia sinótica.3 Pode-se,
inclusive, dizer que as questões relacionadas com esse Nah-erwartung ocupam
uma posição mais proeminente nas discussões exegéticas de hoje (especialmente
na Suíça) do que têm ocupado por um longo tempo.' Num capítulo anterior
vimos a tentativa que foi feita de se eliminar o problema da expectativa do reino
como estando às portas mediante a aplicação da interpretação conhecida como
übergeschichtliche (isto é, supra-histórica), uma interpretação que tentava explicar
a “proximidade” do reino num sentido transcendente, não temporal. M as tem
se tornado cada vez mais evidente que essa concepção da proximidade do reino
não está de acordo com o evangelho, pois este, indubitavelmente, fala do futuro
num sentido temporal (não apenas num sentido “espacial”) e essa ideia linear
de tempo não pode ser eliminada sem que se mude o significado do evangelho.
Porém, nesse caso, o problema da iminência do reino torna-se agudo novamente.
Se os pronunciamentos acerca de sua proximidade (e, entre eles, especialmente
os que aparentemente mencionam um limite para o fim que se aproxima, como
M t 10.23, M c 9.1 e paral.; M c 13:30 e paral.) realmente se referem à chegada
próxima e rápida do fim do mundo e parousia do Filho do Homem, como um
grande círculo de pessoas supõe,4 não se pode fugir da questão quanto ao motivo
pelo qual essas informações deveriam ou não ser consideradas como o ponto de
vista dominante da totalidade da pregação de Jesus.
Uma investigação mais cuidadosa do evangelho como um todo torna imedia­
tamente evidente que a questão da Nah-erwartung é colocada de maneira muito
simplista se considerarmos que ela está incorporada somente na explicação dos
pronunciamentos conhecidos como ditos da “proximidade”, pois essas palavras
são apenas uma fração de um material textual muito extenso e complicado. Em
primeiro lugar, podemos nos referir à conexão entre os pronunciamentos de Jesus
sobre o futuro grandioso e aqueles sobre sua Paixão e ressurreição iminentes. Se
as declarações de Jesus sobre a iminência revelam que ele esperava a chegada do
reino escatológico de Deus no futuro imediato, não se pode evitar a questão da
função que sua morte e sua ressurreição ocupavam nesse grande acontecimento,
isto é, qual é a relação mútua entre essa série de acontecimentos aguardados por
Jesus dentro de um período de tempo tão curto.
Em segundo lugar, o quadro do futuro escatológico (encontrado no apoca­
lipse sinótico, em M c 13, M t 24 e Lc 21) dificulta a resposta quanto ao tempo
que Jesus esperava que transcorresse antes da chegada do reino, pois seus sermões
escatológicos colocam o fim de todas as coisas dentro da estrutura de uma longa
série de acontecimentos e sinais que requerem, aparentemente, um longo tempo.
Ao lado de palavras como as de Marcos 13.30, existem outras, como “a respeito
318 A v in d a d o R e in o

daquele dia ou da hora ninguém sabe; nem os anjos no céu, nem o Filho, senão o
Pai” (v. 32 e paral.) e, em outro contexto, “é necessário que primeiro o evangelho
seja pregado a todas as nações” (Mc 13.10 e paral.).
Isso mostra que o “material” escatológico que nos é dado nos Evangelhos
sinóticos (mesmo à parte do que foi dito em capítulos anteriores sobre a presença
do reino dos céus) tem muitos aspectos. Portanto, não é de admirar que a discussão
sobre tudo o que se relaciona com esse material escatológico dos Evangelhos,
em geral, e a conhecida Nah-erwartung, em particular, forme um complexo
intricadamente entretecido. Tentaremos apontar alguns dos esboços principais
dentro dos quais este debate sobre a escatologia está sendo conduzido, em vez de
fornecer um levantamento detalhado dos mais diversos pontos de vista.
1. A posição mais radical quanto à pregação escatológica de Jesus é a de­
fendida pelos que pensam que os Evangelhos, como estão, não nos fornecem
um relato confiável nem da vida e nem da pregação de Jesus. A complexidade do
material escatológico deveria, portanto, ser considerada como fruto da ação da
igreja posterior. Apenas alguns dos pronunciamentos de Jesus é que podem ser
considerados como históricos, ou seja, aqueles que tratam da chegada do reino
num curto período de tempo (os ditos específicos sobre o reino como estando
às portas, próximo). D e acordo com essa posição, as predições sinóticas sobre a
morte e a ressurreição de Jesus são de natureza secundária, isto é, foram produzidas
pela igreja, a qual retroinjetou nas palavras de Jesus o curso não escatológico da
História. Devido a isso, a tradição evangélica herdou um caráter internamente
contraditório. Esse ponto de vista, defendido especialmente na obra de Wrede,
Das Messiasgeheimnis in den Evangelien,5 é também defendido, embora de maneira
ligeiramente modificada, por autores como Klostermann6 e Bultmann. Nessa
concepção, o problema da correlação entre o Nah-erwartung e os pronunciamentos
sobre a aproximação da morte e da ressurreição de Jesus é eliminado simples­
mente porque esses autores consideram estes últimos pronunciamentos como a
“teologia da igreja”. O mesmo pode ser dito, mutatis mutandis, com respeito ao
apocalipse sinótico, como é conhecido (Mc 13). A posição de Bultmann é que,
nesse caso, o que temos é um apocalipse judaico que foi adaptado de maneira
cristã e atribuído a Jesus.7 Ele se vale de uma hipótese formulada no século 19
(por Colani) que tem encontrado, desde então, muitos adeptos.8 De acordo com
essa hipótese, o Jesus histórico teria se abstido de qualquer indicação de sinais
prognósticos na natureza ou no mundo das nações (como descrito em M c 13),
bem como de uma descrição do último julgamento, da ressurreição e da glória
vindoura. Tudo se funde no pensamento único de que Deus, então, reinará, e que
essa realidade está próxima, às portas.9
2. Uma segunda posição tenta estabelecer uma relação estreita entre a
expectativa de um fim rápido e as profecias de Jesus a respeito de sua morte e
O FUTURO DO REINO DOS CÉUS 319

ressurreição. De acordo com ela, a pregação de Jesus que nos foi transmitida nos
Evangelhos tem mais valor histórico do que a interpretação mencionada acima,
no item 1. Encontramos a forma mais importante dessa opção na perspectiva do
pai do movimento da escatologia consistente, Albert Schweitzer. De acordo com
esse autor, é possível observar que há um desenvolvimento, na expectativa de Jesus,
na proximidade da chegada do reino de Deus. Em primeiro lugar, supõe-se que
Jesus já esperava a chegada do reino escatológico de Deus durante o tempo de
sua própria vida, isto é, durante o período em que ele enviou seus discípulos pela
primeira vez. Schweitzer baseia essa opinião em Mateus 10.23, que ele interpreta
como um anúncio de que o reino teria início durante a missão dos discípulos.
Porém, essa expectativa de Jesus não se concretizou - o primeiro adiamento. A
partir desse momento, Jesus retirou-se e passou a inclinar-se gradualmente para
a expectativa de que o reino viria somente se fosse forçado a isso, por sua própria
paixão e morte (o grande Drangsal, isto é, angústia ou sofrimento messiânico).
Assim, de modo surpreendente, Schweitzer faz a associação entre as declarações
de Jesus acerca da vinda do reino e aqueles acerca de sua morte próxima. Esse é
o motivo pelo qual, de acordo com Schweitzer, a perspectiva de Jesus quanto ao
futuro é restrita à sua paixão que se aproximava e à sua conseqüente morte. Essa
morte seria simultânea com a parousia do Filho do Homem. Assim, Jesus assumiu
a grande tarefa de sua paixão e morte para obter sua dignidade messiânica. E
nesse sentido que deveriam ser entendidos os pronunciamentos nos quais um
período antes do fim parece ser claramente indicado (Mc 9.1; 13.30; M t 23.39;
26.64). Partindo dessa Nah-erwartung, na qual, na mente de Jesus, a vinda do
reino coincidiria com sua morte e glorificação, Schweitzer dá a sua bem conhecida
interpretação da vida de Jesus como um todo e de todas as diferentes facetas de
sua pregação, como já explicamos em capítulos anteriores em diversas ocasiões.
M as seu ponto de partida é a expectativa da chegada iminente do reino no sentido
da apocalíptica judaica posterior. Isso se aplica à escatologia consistente como
um todo, bem como à explicação do desenvolvimento do cristianismo primitivo
e à história do dogma baseada nessa explicação, conforme descrito na grande
obra de Martin Werner.
Fica claro que, nessa interpretação, não resta mais espaço para aqueles
pronunciamentos dos Evangelhos que falam claramente de um tempo depois da
morte de Jesus. Isso se aplica especialmente ao assim chamado apocalipse sinótico,
na medida em que o mesmo pressupõe um interregno entre a morte de Jesus
e a parousia do Filho do Homem e, também, obviamente, às palavras de Jesus
sobre a ressurreição. A Nah-erwartung fica restrita à morte de Jesus. É aqui que
Schweitzer procura o critério para a autenticidade da tradição sinótica.10
Apesar de esse impressionante “experimento” exegético consistentemente
escatológico (como o próprio Schweitzer o chamava) ter tido, no geral, poucos
320 A v in d a d o R e in o

adeptos, ele ainda continua a exercer influência em detalhes de muitos tipos.11


Isso também se aplica a essa ideia de que, na mente de Jesus, sua morte e a vinda
do Filho do Homem eram acontecimentos simultâneos.12
E impressionante que, nesse sentido, as exposições de Dodd, que já men­
cionamos anteriormente, se constituem numa abordagem muito próxima da
de Schweitzer. Apesar de Dodd rejeitar a ideia de que, na pregação de Jesus,
há a expectativa da manifestação do reino (de modo a se constituir no próprio
oposto de Schweitzer nesse aspecto), ele é obrigado a admitir que Jesus fez
alguns pronunciamentos acerca de seu próprio futuro. De acordo com Dodd,
Jesus, às vezes, chama a si mesmo de o Filho do Homem apocalíptico que ha­
verá de julgar o mundo e, outras vezes, afirma que haverá de ressurgir dentre
os mortos. D odd acha que é provável que Jesus não visse qualquer intervalo
de tempo entre esses dois acontecimentos aguardados por ele no futuro,13 pois
em nenhum dos pronunciamentos deJesus sobre si mesmo encontramos uma distinção
temporalfeita por ele entre seu retorno nas nuvens e a sua ressurreição. Esse é o
motivo pelo qual D odd está mais inclinado a pensar que, ao falar do “terceiro
dia” (o da sua ressurreição), Jesus quisesse dizer “o dia do Filho do Homem”,
e que, posteriormente, em conformidade com sua própria experiência, a igreja
fez uma distinção14 temporal entre os dois acontecimentos, os quais, na reali­
dade, estavam num único nível na consciência de Jesus. Desse modo, supõe-se
que Jesus aguardava esse grandioso acontecimento único no futuro imediato,
do mesmo modo que aguardava os desastres que atingiram Jerusalém e Judeia
antes daquela data. Assim, Dodd, aqui, se aproxima bastante da reconstrução
de Schweitzer quanto ao sentido original do evangelho.15 Porém, D odd é da
opinião de que, nesse aspecto, somos confrontados com um traço particular
nos pronunciamentos do evangelho. O ensino de Jesus encontrado em outras
passagens, em especial seus mandamentos, supostamente dão evidência de
uma tendência totalmente diferente e não escatológica e não pode, de acordo
com Dodd, ser conciliado com esses ditos escatológicos. Ele próprio recorreu
a uma interpretação simbólica das declarações apocalípticas de Jesus sobre si
mesmo.16 De acordo com Dodd, de qualquer maneira, é evidente que elas não
se realizaram.
Jeremias aprovou em grande parte as ideias de Dodd acerca da Nah-erwar-
tung do evangelho, apesar de ele mesmo discordar de Dodd quanto à distinção que
ele faz entre as declarações de Jesus sobre o reino como uma realidade puramente
presente e a sua expectativa quanto ao seu próprio futuro. Porém, o próprio Je ­
remias pensa que, nas declarações sobre o futuro, existe um paralelismo notável
(um Nebeneinander) entre aquelas que representam o fim das coisas como algo
que está muito próximo e aquelas que remetem o fim para um futuro longínquo.
Todavia, é impossível - como acha o próprio Jeremias - dizer que uma dessas
O FUTURO DO REINO DOS CÉUS 321

duas séries de pronunciamentos é autêntica e a outra não. Exatamente como


Dodd, Jeremias aponta primeiramente para o fato de que não nos chegou ne­
nhum dos pronunciamentos de Jesus nos quais sua ressurreição e sua parousia são
mencionadas lado a lado e como dois acontecimentos temporalmente distintos
entre si. Jesus sempre fala ou de um ou do outro. E, em segundo lugar, tanto a
ressurreição de Jesus quanto a restauração do Templo (Mc 14.58; M t 26.61; Mc
15.29; M t 27.40; Jo 2.19) eram esperadas por ele depois ou durante o período de
três dias, isto é, durante aquele curto período de tempo determinado por Deus.
Já que a restauração do Templo é um acontecimento apocalíptico que coincide
com o dia do Filho do Homem, a inferência óbvia é, de acordo com Jeremias,
que, originalmente, o terceiro dia era o dia do Filho do Homem. Somente mais
tarde a igreja teria supostamente feito a distinção temporal nesse grandioso
acontecimento único aguardado por Jesus. Do que foi dito acima, entretanto,
pode-se concluir que Jesus considerava o dia do Filho do Homem e, portanto,
o novo éon da graça divina, como estando muito próximo.17
Alguns exegetas sugerem uma variação dessa posição com referência a
Marcos 14.28 (cf. 16.7). Nesse caso, imediatamente depois de ser preso, Jesus
diz: “depois da minha ressurreição, irei adiante de vós para a Galileia”; e o anjo,
no túmulo aberto, refere-se a essas palavras, dizendo: “Ele vai adiante de vós
para a Galileia; lá o vereis, como ele vos disse” (Mc 16.7). Supõe-se que esse “a
Galileia; lá vereis” tenha como propósito indicar a parousia. O fato de que isso
não aconteceu testifica da antiguidade da declaração e de sua originalidade.18
Lohmeyer, também, é da mesma opinião e considera essa declaração como
evidência de um tipo galileano de cristianismo, o qual, em distinção ao tipo de
Jerusalém, tinha uma forte expectativa escatológica do futuro e da vinda imediata
do Filho do Homem.19
3. Em contraste com essa variedade radical da Nah-erwartung atribuída
a Jesus, há muitas exegetas, na literatura mais recente, também, que partem de
uma interpretação inteiramente diferente do reino dos céus pregado por Jesus,
e que abordam suas declarações escatológicas de acordo com ela. Isso se apli­
ca, em particular, aos que, em distinção à perspectiva escatológica “ortodoxa”,
consideram que o reino dos céus se fez presente com a vinda e a obra de Jesus.
Essa presença, então, é manifesta em seus milagres e em sua pregação, ou, como
Michaelis assume, em sua ressurreição de entre os mortos e a subsequente con­
cessão do Espírito Santo.20 E evidente que essa perspectiva geral do propósito do
evangelho, enraizada numa concepção fundamentalmente diferente da pessoa do
próprio Jesus, acarreta uma perspectiva diferente quanto ao período que antecede
•àparousia do Filho do Homem e a vinda do reino em glória, pois, nesse caso, o
grandioso momento decisivo j á chegou e, consequentemente, o ponto de vista a
partir do qual consideraremos esse ínterim não será primariamente o futuro do
322 A v in d a d o R e in o

reino, mas o fato de que ele já veio. Esse wzo/z/básico foi elaborado especialmente
nos escritos de Cullmann, Kümmel, Schniewind, Michaelis, entre outros.
E óbvio também que, nessa perspectiva, a morte e a ressurreição de Jesus
não precisam mais ser simplesmente analisadas em sua relação com a parousia e o
futuro do reino. Muito pelo contrário, a morte e a ressurreição de Jesus formam a
conclusão (provisória) e a base do cumprimento que começou com sua vinda. Do
mesmo modo, o período entre a morte de Cristo e a parousia deixa de ser uma
“complicação” da Nah-erwartung das mais difíceis de explicar. Esse ínterim, ao
contrário, deve ser avaliado como o espaço mais indispensável para a realização e
a continuação do cumprimento já inaugurado. Podemos até mesmo dar um passo
adiante nessa posição totalmente diferente e dizer que os problemas relacionados
com a expectativa do futuro mudaram totalmente, pois, agora, o que escandaliza
ou levanta suspeita de ser “inautêntico” ou “a teologia da igreja”, etc., não é que
essa expectativa do futuro causa tensão com a Nah-erwartung ou que está em
conflito com ela. E muito mais o cumprimento já iniciado pela vinda de Jesus que
domina e, portanto, as passagens que parecem falar do fim de todas as coisas num
futuro próximo são a causa da dificuldade de uma perspectiva abrangente dos
pronunciamentos acerca do futuro. O problema, agora, é delimitar o tempo do
mundo dentro “desta geração” (Mc 13.30), e não da igreja, nem do apostolado,
nem do batismo, e nem da Ceia do Senhor.
Há, basicamente, duas soluções para esse problema.

a) a primeira delas não nega que, depois de um exame detalhado do evan­


gelho, encontraremos um pequeno número de passagens que terão de ser
explicadas no sentido à&Nah-erwartung. Mas essas passagens não devem
ser consideradas essenciais para uma avaliação correta do propósito do
evangelho como um todo.
b) De acordo com a segunda solução, Jesus não falou realmente da vinda
definitiva do reino ou da parousia do Filho do Homem nas passagens às
quais geralmente se recorre para essa Nah-erwartung escatológica. Mas
ele fala do tempo da salvação inaugurado pela sua ressurreição. O que é
chamado de Nah-erwartung pela interpretação escatológica era, portanto,
fundamentado não num engano ou num erro.Tratava-se apenas do anún­
cio do que aconteceria imediatamente depois da morte de Jesus.

Gostaríamos de apresentar uma elucidação adicional a respeito dessas duas


concepções.

a. As exposições de Cullmann são bem características das opiniões recentes.


Em oposição à interpretação escatológica defendida por Werner, ele mantém que,
de acordo com os pronunciamentos claros do evangelho, o reino de Cristo j á veio.
O FUTURO DO REINO DOS CÉUS 323

A importância teológica da pregação acerca da proximidade da basileia é que, desde


a vinda de Cristo, já estamos numa nova “época” e que, consequentemente, o fim
está próximo, às portas. Não há qualquer dúvida de que, no Novo Testamento, a
proximidade do fim é limitada a uma geração. M as esse erro de perspectiva ( “Pers-
pektivenirrtum”), que é corrigido apenas num lugar no Novo Testamento (2Pe 3.8),
não representa o conteúdo teológico da declaração “o reino está próximo”, pois
esse conteúdo encontra-se no fato de que, com Cristo, o cumprimento chegou. O
erro deve ser explicado psicologicamente, do mesmo modo que as datações pre­
maturas do fim de uma guerra depois que ficou confirmado que a batalha decisiva
foi vencida. Além disso, as três passagens sinóticas que são um tanto ambíguas
(Mc 9.1; M t 10.23; M c 13.30), acerca das quais existe muita controvérsia, não
são, portanto, tão importantes como se pensa algumas vezes. A interpretação dos
evangelistas, que, em cada caso (“j a wohlaufjeden F a li), relacionam essas palavras
à morte de Jesus, está correta no melhor sentido da palavra.21
Kümmel pensa de maneira semelhante. De acordo com ele, Jesus esperava
que o fim chegasse logo depois da sua morte. Kümmel se refere a Marcos 9.1,22
Mateus 10.23,23 Marcos 13.30,24 às declarações acerca da “proximidade do
fim”25 e às assim chamadas “palavras do cálice” (Mc 14.25), que provariam que
Jesus não localizava “aquele dia” num futuro muito distante;26 e, ainda, a Mateus
12.41, que fala da ressurreição “desta geração”, mais uma vez confirmando o
fato, é verdade, de que Jesus esperava o começo do eschaton para breve, embora
não tão breve assim.27 Mais adiante, Kümmel se refere especialmente à “urgente
iminência do fim”, encontrada mais de uma vez nos ensinamentos de Jesus, bem
como nas exortações que ele faz para que seus discípulos sejam vigilantes (Mc
13.34-36; Lc 12.36-38; M t 24.42; 45-51; Lc 18.8: “Digo-vos que, depressa, lhes
fará justiça”, en tachei).28
Segundo Kümmel, deve-se admitir que Jesus se enganou nos pronunciamen­
tos em que ligava a vinda do reino a uma data definida (existem três passagens
dessas no total, a saber, M t 10.23, M c 9.1 e 13.30). Porém, esse fato não tem
qualquer importância especial na pregação de Jesus, de acordo com ele. Pois ao
lado dessas passagens há outras que consideram como urgente o tempo do fim,
mas que não especificam uma data ou dizem especificamente que essa data tem
que permanecer desconhecida (Mc 13.32). Essa é uma discrepância que não pode
ser resolvida e é não importante porque a questão sobre o tempo do fim não era,
em nenhum sentido, importante para Jesus.29 Ainda de acordo com essa opinião,
devemos separar a Nah-erwartung, como uma concepção contemporânea, da
pregação de Jesus; a expectativa ào futuro, no entanto, é essencial, pois somente
nela pode-se manter o caráter histórico da obra divina de realização, pois não é
a Nah-erwartung, mas a presença do cumprimento em Cristo que é a garantia
de que a grande consumação haverá de vir.30
324 A v in d a d o R e in o

Uma concepção levemente diferente pode ser encontrada nos comentários


de Schniewind. Ele, também, parte da presença principal do reino dos céus
proclamada por Jesus. Não se pode negar, diz Schniewind, que, de acordo com a
expectativa de Jesus, a primeira geração de discípulos viveria para ver o último dia.
Schniewind duvida que isso possa ser chamado de uma “ilusão” da parte de Jesus.
Quando Jesus fala dessa maneira, ele o faz na certeza absoluta do novo mundo.
Nós falamos da eternidade na linguagem da nossa maneira filosófico-mística de
pensar. Jesus e os primeiros cristãos falavam do “éon vindouro”.31 Aqui parece
que Schniewind se aproxima da interpretação “supertemporal” (überzeitliche).
Em outro lugar (M t 10.23), ele fala de maneira semelhante de uma “percepção
alterada do tempo”, a partir da certeza de que, com as palavras e obras de Jesus, o
reino vindouro já começou. Se isso deve ser interpretado como um caso de pura
autoilusão, dependerá da maneira como se considera a eternidade.32
Uma solução notável é fornecida por Michaelis. De acordo com ele, Jesus
nunca se cansou de enfatizar a proximidade do último dia, especialmente nas
parábolas sobre a vigilância.33 Em outras passagens, especialmente no apocalipse
sinótico, as declarações a respeito dos sinais, da destruição de Jerusalém, etc.,
mostram que o último dia ainda está a uma distância relativamente grande; porém,
não é encontrada em lugar algum uma resposta para a pergunta sobre quando
isso acontecerá.34 De acordo com Michaelis, o mesmo também se aplica a M ar­
cos 13.30, pois não há qualquer certeza quanto ao significado das palavras “esta
geração” e nem da expressão “todas estas coisas”.35 Além do mais, com respeito
a Marcos 9.1, é possível se fazer muitas perguntas quanto ao seu significado. E,
ainda assim, é a única passagem que nos possibilita inferir uma data compara­
tivamente exata para o último dia.36 Porém, o problema nesse caso é que essa
declaração não se cumpriu. O que se pode dizer quanto a isso? Michaelis se refere
a Marcos 13.32, “M as a respeito daquele dia ou da hora ninguém sabe; nem os
anjos no céu, nem o Filho, senão o Pai”. Essa é a restrição a ser observada por nós
ao lermos Marcos 13.30 e 9.1. No tempo anterior à ressurreição, Jesus só podia
falar do termo da sua segunda vinda com base em seu “conhecimento provisório”.
E isso que está indicado em Marcos 13.32. Pode-se perguntar por que Jesus não
se absteve totalmente de fazer pronunciamentos como o de Marcos 9.1, mas não
sabemos a ocasião e nem os motivos que o levaram a fazer essa.37
Apesar de reduzidas, parcialmente, a uma comparação mínima, todas essas
concepções se baseiam na suposição de que, pelo menos em alguns dos pronuncia­
mentos de Jesus, há certo tempo determinado para a parousia do Filho do Homem
e para a vinda do reino. No sentido temporal, já foi provado que a especificação
desse tempo foi um fracasso e, nesse ponto, de qualquer modo, confirma-se a tese
básica de Schweitzer. Eles sustentam, além do mais, entretanto, que nem essa
especificação do termo do futuro grandioso nem a expectativa do fim próximo das
O FUTURO DO REINO DOS CÉUS 325

coisas formam a verdade básica do evangelho, mas que essa verdade está muito
mais revestida no fato de que na pessoa de Jesus, o Cristo, o cumprimento já teve
início e a consumação do reino dos céus já começou.
b. As concepções mencionadas acima, na seção b, serão discutidas em mais
detalhes quando tratarmos dos assim chamados pronunciamentos sobre o terminus
temporal (cf. § 48 abaixo). No contexto presente, tomaremos como suficiente a
citação de Karl Barth, que, comentando o aparecimento de Jesus a seus discí­
pulos depois da sua ressurreição e as palavras que ele disse naquela ocasião (Mt
28.16-20), escreveu o seguinte: “Tornou-se evidente que a petição Venha o teu
reino’, na oração do pai-nosso, não foi em vão; que esta geração’, isto é, a geração
de então, viva, certamente não passaria ‘sem que tudo isto aconteça’, como Jesus
disse em Marcos 10.30. Tornou-se claro que era verdade que alguns daqueles
que estavam ao redor de Jesus não passariam ‘pela morte até que vejam o ter
chegado com poder o reino de Deus’ (Mc 9.1). Ficou evidente que os discípulos
não terminariam de passar por todas as cidades de Israel antes de verem o Filho
do Homem voltar (M t 10.23). Agora, o Filho do Homem tinha chegado, agora
‘tudo’ tinha acontecido”.38Aqui, o problema da Nah-erwartung foi totalmente
eliminado. O que Jesus pregou como estando próximo, às portas, cumpriu-se de
fato, por meio da sua ressurreição e depois dela.
Contra o pano de fundo dessa polêmica a respeito da escatologia da qual
conseguimos apenas mencionar alguns dos principais elementos, tentaremos agora
discutir os complicados materiais sob alguns pontos de vista resumidos.

44. Ressurreição e parousia

Com base em tudo o que foi estabelecido nos capítulos anteriores deste livro
a respeito do significado geral da pregação de Jesus acerca do reino dos céus, não
podemos senão rejeitar, como uma falsa representação do evangelho, as opiniões
radicais que consideram como originais, bem como a visão do próprio Jesus apenas
as passagens nos Evangelhos sinóticos que estão de acordo com uma expectativa
da chegada iminente do fim do mundo. Os representantes desses pontos de vista
sujeitam o evangelho ao conhecido método da crítica da forma, a qual se tornou
influente mediante a obra importante de Bultmann.39 Esse método requer que
se estabeleça, em primeiro lugar, a autenticidade de cada dito, parábola, etc., que
serão utilizados, antes que se possa expressar uma opinião quanto ao propósito da
pregação de Jesus. Em nossa opinião, não há a menor dúvida de que essa crítica
aplicada ao evangelho cria, erroneamente, a impressão de que ela opera com um
critério que deriva exclusivamente daforma do material da tradição, pois a decisão
quanto ao que deve ser considerado como original ou como uma forma secundária
326 A v in d a d o R e in o

da tradição é feita principalmente com base no conteúdo desse material. Esse é o


motivo pelo qual o ponto que está realmente em jogo não é o debate acerca da
originalidade da forma de muitas partes da tradição que nos chegaram, mas se
o conteúdo delas pode ser considerado como indigno de crédito com base em
argumentos factuais sólidos.
E, partindo desse ponto de vista, deve ser considerado um preconceito abso­
lutamente arbitrário se, de um modo apriori, negar-se a Jesus a autoria daquelas
partes do evangelho que não estiverem de acordo com a expectativa da fiituridade
exclusiva e da iminência do reino de Deus, pois tudo o que temos nos Evangelhos
acerca da pregação de Jesus - e não possuímos quaisquer outros critérios de sua
“autenticidade”! - se baseia na certeza do cumprimento inaugurado por Jesus tanto
quanto no futuro reino de Deus. Nesse caso, a faca do “critério da crítica da forma”
só pode operar com base em presunções subjetivas e, em nossa opinião, só pode ser
destrutiva, pois o motifdo cumprimento não está presente apenas em umas poucas
declarações espalhadas pelos Evangelhos, que poderiam ser retiradas do “corpo”
do evangelho sem que este sofra qualquer prejuízo. Pelo contrário, esse motifestá
firmemente enraizado naquilo que é o centro e o núcleo do evangelho como um
todo, a saber, que Jesus é o Cristo e que ele, como tal, foi enviado ao mundo pelo
Pai como aquele que deveria cumprir o tempo, as Escrituras e a Lei.
Esse é o motivo pelo qual é impossível eliminar do evangelho do reino, como
se fossem vaticinia ex eventu, as predições de Jesus acerca de sua paixão e de sua
morte que, aparentemente, não se coadunam com a Nah-erwartung, pois essas
profecias representam mais do que simplesmente certa área periférica, distante
do cerne da pregação de Jesus. Pelo contrário, elas estão indissoluvelmente ligadas
a esse núcleo central. A totalidade da autorrevelação de Jesus é dominada pela
grande missão, o “mandato” divino que ele tem de cumprir. E o conteúdo dessa
autorrevelação é determinado desde o início pelo motif da expiação e do sofri­
mento, bem como o da autoridade do Filho do Homem mencionada em Daniel
7. Esse é o motivo pelo qual o que Jesus prega acerca do futuro do reino deve
também ser visto em conexão com as profecias concernentes à sua paixão, morte
e ressurreição. E a concepção da Nah-erwartung como um todo deve também
ser confrontada com esses pronunciamentos.
Isso naturalmente nos leva àquelas opiniões que —em contraste com a crítica
radicalmente cética da tradição - tentam entender os pronunciamentos de Jesus
acerca de seus sofrimentos e morte iminentes como uma parte integral de sua
Nah-erwartung. O representante mais característico dessa posição, sem dúvida, é
Schweitzer. Essa tentativa, entretanto, produziu uma interpretação tão fantástica
do evangelho e ocasionou uma reconstrução tal da “vida de Jesus” que, a despeito
de suas próprias intenções, tem intensificado e não diminuído o ceticismo dos
que defendem a Nah-erwartung com respeito à confiabilidade da tradição.
O FUTURO DO REINO DOS CÉUS 327

Esse julgamento se aplica ao fundamento da experiência escatológica con­


sistente de Schweitzer, ou seja, seu apelo a Mateus 10.23: “Quando, porém, vos
perseguirem numa cidade, fugi para outra; porque em verdade vos digo que não
acabareis de percorrer as cidades de Israel, até que venha o Filho do Homem”.
Não há dúvida de que a exegese dessa passagem não é simples, mas, qualquer
que seja o seu significado, ela não pode ser, de modo algum, o fundamento da
Nah-erwartung no sentido da escatologia consistente, pois está além de qualquer
dúvida possível que essa declaração não se refere ao tempo do envio dos discípulos
durante a vida de Jesus, mas a um futuro muito mais distante.
N a verdade, isso também se aplica a todo o contexto dessa passagem (Mt
10) e não meramente ao versículo 23. Para começar com o versículo 16, temos
ali acontecimentos mencionados no sermão de Jesus em Mateus 10, os quais, já
por causa de considerações locais históricas, não poderiam ter ocorrido no tempo
do envio dos discípulos: o fato de que eles seriam levados diante de reis e gover­
nadores, etc.40 Além disso, se Jesus esperava realmente que esses contratempos,
como preditos no versículo 16 e seguintes, acontecessem naquela época, não se
pode compreender por que nem os discípulos, ao retornarem, e nem o próprio
Jesus, fizeram qualquer alusão a essa parousia “não cumprida”. Essa concepção
de que Jesus já aguardava a vinda do Filho do Homem antes de sua morte é tão
fantasiosa que é simplesmente surpreendente encontrar quem ainda a mantenha,
como, por exemplo, Werner.41
Em nossa opinião, as coisas não são melhores com respeito à segunda tese
básica de Schweitzer. Segundo ele, quando a vinda do reino não aconteceu durante
a missão dos discípulos, Jesus quis “forçar” essa vinda mediante o seu sofrimento
e sua morte voluntária e substitutiva. Todavia, independentemente do fato de
que não existe qualquer base sólida no evangelho para essa atitude de Jesus,42
não pode haver qualquer dúvida de que Jesus falou explicitamente do tempo
depois de sua morte em seus pronunciamentos de todos os tipos, não somente
no chamado “apocalipse sinótico”, como também em outros lugares, tais como
suas profecias acerca da destruição de Jerusalém e da desolação do templo (M t
23.38 e paral.; Lc 23.28ss); e também — para mencionar apenas um caso a mais
— no dito bem conhecido acerca dos amigos do noivo (os discípulos) que um
dia haveriam de jejuar quando o noivo (o próprio Jesus) fosse tomado deles (Mc
2.18ss e paral.). Para que possa encontrar um lugar em sua interpretação escato­
lógica consistente para os pronunciamentos acerca da paixão e morte iminentes
de Jesus, Schweitzer é obrigado a declarar como secundárias todas as palavras
que se referem ao tempo depois da paixão e morte de Jesus. Isso também deixa
claro o quanto o seu grande experimento escatológico realmente é insatisfatório.
Num ponto muito importante e decisivo, ele tem que cortar o nó górdio que
havia prometido desatar.
328 A v in d a do R e in o

Isso não anula o fato de que a hipótese de Schweitzer, em vários aspectos,


teve uma influência inspiradora e que ele ressaltou alguns pontos particulares na
tradição que muitas vezes têm permanecido despercebidos. Isso se aplica espe­
cialmente a pontos aos quais Dodd e Jeremias recorrem, sem dúvida influenciados
pelo próprio Schweitzer. E um fato que, nas palavras de Jesus sobre o futuro,
quase não há qualquer distinção temporal entre a sua morte (e ressurreição) e sua
parousia como o Filho do Homem.
Não há dúvida de que devemos rejeitar a inferência que eles fazem desse
fato, ou seja, que, de acordo com uma tendência particular na tradição, a res­
surreição no “terceiro” dia é identificada com a parousia e supostamente corre
“paralela” com outra tendência, de acordo com a qual &parousia viria num futuro
muito mais distante, pois se, para o momento, nós nos restringirmos aos pontos
ressaltados por Dodd e Jeremias, é impossível inferir deles que, de acordo com
uma tendência particular na tradição, a ressurreição e a parousia fundem-se. Em
si mesmo, esse argumento pode ser igualmente usado para provar a tese oposta,
pois se as predições que Jesus fez de sua ressurreição “no terceiro dia” são so­
mente outro nome para a sua. parousia, é surpreendente que essa parousia nunca é
mencionada em conexão com a morte de Jesus, mas somente com a ressurreição,
e, da mesma maneira, que, nos pronunciamentos acerca dos acontecimentos do
grande período final, os mesmos são sempre descritos como a parousia do Filho
do Homem e nunca como a ressurreição no terceiro dia.43
Se a conclusão a que chegaram Dodd e Jeremias não pode ser aceita, os fe­
nômenos que eles destacaram, por outro lado, não podem ser desprezados por nós
quando dermos uma olhada geral na expectativa de Jesus quanto ao futuro. Eles
observaram que Jesus falou repetidamente da sua morte e ressurreição próximas
e, por outro lado, da sua parousia, mas que, nas suas profecias, sua ressurreição e
sua parousia nunca se encontram unidas no mesmo contexto. Como resultado,
especialmente nos seus sermãos escatológicos, o novo período interino inaugurado
pela sua ressurreição não parece ser considerado como tal. Por outro lado, nas
profecias acerca da morte e da ressurreição de Jesus, a perspectiva sobre o futuro
que se segue está, em muitos casos, ausente. É possível, portanto, dizer que, nas
profecias de Jesus acerca do futuro, não temos uma descrição em perspectiva clara
que começa com a ressurreição e que termina com a parousia.
Esse fato foi também notado por Bultmann, que considera os anúncios de
Jesus a respeito de si próprio como o Filho do Homem e as profecias acerca de sua
morte e ressurreição como produtos posteriores da igreja. A sua explicação é que
uma das séries de profecias (isto é, aquelas acerca da paixão, morte e ressurreição
de Jesus) representa o gênero de teologia helenística posterior da igreja, enquanto
a série de profecias acerca da parousia representa o gênero palestino mais antigo
e a combinação de ambas nos evangelhos foi feita numa data posterior.44 Essa
O FUTURO DO REINO DOS CÉUS 329

hipótese é inaceitável para nós, visto que as profecias de Jesus quanto à sua pai­
xão e morte estão longe de representar um gênero helenístico de teologia, já que
são totalmente orientadas para o Antigo Testamento (a profecia do Servo do
Senhor), como já estabelecemos detalhadamente acima.45 De acordo com nossa
convicção, a característica típica da autorrevelação de Jesus foi o próprio fato de
que ele identificou-se como o Filho do Homem de Daniel 7 e com o Servo do
Senhor de Isaías.
Não se pode negar a ocorrência de duas figuras diferentes nem o fato de que
as profecias que Jesus aplicou a si mesmo, desde o início, mostram duas espécies
distintas de figuras. Nas profecias escatológicas sobre o Filho do Homem, o
tema da paixão, morte e ressurreição está ausente. E, respectivamente, o que é
dito sobre a paixão, morte e exaltação do Servo do Senhor em Isaías 53 é de uma
natureza diferente da transferência divina de poder para o Filho do Homem em
Daniel 7. Jesus jungiu essas duas figuras nessas palavras paradoxais e misteriosas,
que o Filho do Homem (Dn 7) deve “ser rejeitado”, “sofrer muito”, “ser morto”
(Is 53) e ressuscitar dos mortos depois de três dias. Esse era o elemento novo e
“revolucionário” em sua autorrevelação messiânica. Ele transcendeu em muito
o ideal messiânico nacional (M t 22.41-46)46 e, por outro lado, deixou claro que
o caminho do Messias passava pelo sofrimento e pela morte, pois, o Filho do
Homem “não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate
por muitos” (M t 20.28).
Isso não significa, entretanto, que a combinação dessas duas figuras na autor­
revelação de Jesus como o Filho do Homem e o Servo do Senhor é transparente
à primeira vista e que essas conexões factuais e temporais podem ser descobertas
de modo exato. Muito pelo contrário, há um véu cobrindo o anúncio messiânico
de Jesus feito por ele mesmo não somente para os olhos dos “de fora”, aos quais
não foi “dado conhecer os mistérios do reino de Deus” (Mc 4.11), mas também
aos olhos dos discípulos. Essa última declaração se aplica especialmente ao que
podemos chamar de uma combinação de Daniel 7 e Isaías 53. Quando os dis­
cípulos professaram a glória messiânica de Jesus pela boca de Pedro, o anúncio
de sua paixão foi ininteligível para eles (M t 16.21ss; 17.23; M c 9.32; Lc 9.45;
Lc 18.34). Essa falta de discernimento da parte dos discípulos (Lc 24.25) es­
tava relacionada não somente com a paixão e a morte iminentes de Jesus, mas
também com a sua ressurreição. Em Marcos 9.10-11, lemos que, quando Jesus
anunciou a sua ressurreição, os discípulos ficaram “perguntando uns aos outros
que seria o ressuscitar dentre os mortos”. Isso não pode significar que eles nunca
tinham ouvido falar da ressurreição geral dos mortos (cf. M c 12.18-27), mas
simplesmente que eles não compreenderam o que significava “que o Filho do
Homem se levantaria de entre os mortos”.47 E então eles perguntaram a Jesus se
Elias não deveria vir “primeiro” (isto é, antes de sua ressurreição). Aparentemente,
330 A v in d a d o R e in o

eles começaram com a ideia de que essa “ressurreição” dificilmente poderia sig­
nificar outra coisa senão o que haveria de acontecer na consumação de todas as
coisas, isto é, a última e grande ressurreição. E isso porque, na expectativa judaica
do futuro, Elias estava ligado à vinda do Messias. Consequentemente, eles não
tinham qualquer noção da relação entre a ressurreição de Cristo e a parousia. E
isso aparece não somente em Marcos 9.9-10 e Mateus 17.9-10, mas fica evidente
também pela surpresa deles diante do fato da ressurreição de Jesus de entre os
mortos, como lemos nos Evangelhos. Tudo isso prova que a combinação da morte
e da ressurreição do Servo do Senhor com a parousia do Filho do Homem não
havia sido feita nas profecias e, portanto, nunca foi incorporada na expectativa
judaica do futuro e nem os próprios discípulos de Jesus a compreenderam e a
aceitaram até que ele ressuscitou de entre os mortos. No evangelho, essa falta de
compreensão é atribuída não apenas à indisposição dos discípulos, que fez deles
“néscios e tardos de coração para crer tudo o que os profetas disseram” (Lc 24.25),
mas também se deve, aparentemente, ao caráter da autorrevelação de Jesus antes
de sua exaltação.48 Quando Jesus familiariza seus discípulos com a sua paixão,
morte e ressurreição iminentes, é evidente que eles não só não compreenderam
o seu significado, mas que também estavam temerosos de perguntar-lhe sobre isso
(Mc 9.32). O véu permanece sobre a sua morte e esse véu aparentemente deve
ser mantido ali.49 Veja também Lucas 9.45: “Eles, porém, não entendiam isto,
e foi-lhes encoberto para que o não compreendessem;50 e temiam interrogá-lo
a esse respeito”51 (cf. Lc 18.34). Todas essas coisas são uma indicação de que o
pleno conhecimento do futuro lhes estava sendo negado, inclusive da parte de
Jesus (cf. Jo 16.12). Somente depois da ressurreição é que Jesus “lhes abriu o
entendimento” (Lc 24.45).52
Essas coisas contêm indicações importantes do que estamos discutindo aqui.
Para começar, há, de fato, a questão acerca de duas “linhas de pensamento” nas
profecias de Jesus acerca de seu próprio futuro. Uma delas termina na sua morte
e ressurreição, e a outra, em sua parousia. Essas duas linhas de pensamento têm,
cada uma, origem própria e permanecem paralelas em muitos casos. M as não
devemos, aqui, tratá-las como um antinômio, nem devemos pensar que ressur­
reição e parousia são duas palavras para a mesma coisa. Muito pelo contrário,
a combinação da glória de Cristo como Filho do Homem com sua paixão e
morte permanece oculta enquanto ele não sai da sepultura. E os discípulos, de
qualquer modo, não compreendiam como uma dessas linhas de pensamento (a
da autorrevelação de Jesus de acordo com Is 53) e a outra (a de Dn 7) se com­
binavam entre si. O intermezzo inesperado e incompreensível entre o presente e
o futuro grandioso era o grande drama da sua paixão e morte, juntamente com
sua ressurreição. E verdade que todas as declarações de Jesus sobre sua paixão e
morte são acompanhadas de declarações sobre sua ressurreição ao terceiro dia.
O FUTURO DO REINO DOS CÉUS 331

M as o sentido destas últimas declarações permanecia oculto dos discípulos, sem


resolver nem revelar o mistério para eles. E verdade que também temos aquele
dito no qual Jesus se compara com Jonas. Do mesmo modo que Jonas permane­
ceu três dias e três noites no ventre do peixe, assim o Filho do Homem ficaria
no coração da terra por três dias e três noites (M t 12.40, cf. 16.4; Lc 11.9). M as
essas palavras têm o caráter de um enigma e não podiam explicar aos discípulos
o que realmente aconteceria. Finalmente, devemos nos referir às palavras que
Jesus disse a caminho do Getsêmani e que foram citadas mais tarde pelo anjo
no túmulo vazio: “Mas, depois da minha ressurreição, irei adiante de vós para
a Galileia” (Mt 26.32 e paral.; cf. M t 28.7 e paral.). Todavia, essas palavras - as
únicas que apontam para a ressurreição como o ponto de partida para a história
subsequente - foram ditas pouco antes de sua morte. Em resumo, deve ser re­
conhecido, na medida em que o relato do evangelho nos permite julgar, que, de
muitas maneiras, não era claro na mente dos discípulos o lugar que a ressurreição
ocuparia na época anterior à parousia e que Jesus, além disso, não lhes deu uma
perspectiva clara sobre esse ponto ou não podia fazê-lo. As trevas na mente deles
causadas por sua morte iminente privou-os da luz do futuro, a qual se seguiria
a essa morte. Esse fato não pode ser atribuído somente à falta de discernimento
deles. A morte de Jesus, que o levou ao horror do abandono absoluto (M t 26.37ss
e paral.; 27.46), foi um peneirar satânico dos discípulos (Lc 22.31), enquanto
ainda estava adiante deles e como eles finalmente o experimentaram. Foi uma
experiência que preencheu completamente o horizonte deles, que os espalhou
como ovelhas que perderam o pastor (M t 26.31), o seqüestro do noivo (M t 9.15),
e, portanto, um skandalon, um tropeço para a fé e a esperança que eles tinham,
o qual nenhum deles foi capaz de superar (Mt 26.31) e do qual só se livrariam
depois da ressurreição.
Consequentemente, eles ficaram por um tempo quase ou totalmente sem
um novo ponto de orientação. Esse ponto lhes seria dado no tempo vindouro,
na ressurreição de Cristo.
Agora, entretanto, duas coisas são claras (e é da mais alta importância para
uma compreensão da estrutura da autorrevelação de Jesus e de sua pregação que
foquemos nossa atenção nesses pontos): em primeiro lugar, a morte e a ressur­
reição de Jesus e sua autorrevelação subsequente aos discípulos não representam
uma mudança radical quanto à sua pregação anterior. Esses acontecimentos
não apenas estão de acordo com algumas predições isoladas e ininteligíveis de
sua ressurreição, como também formam a conclusão orgânica do tema grandioso
do caráter preliminar do cumprimento inaugurado pela vinda de Cristo. Esse é o
clímax da “linha” que João Batista não pôde distinguir e que corre através de
Mateus 13; 16.18; 20.18; 26.28 - para mencionar somente aqueles “demarca-
dores” mais evidentes — (o reino viria como uma semente, o Filho do Homem
332 A v in d a d o R e in o

é como um semeador, a pregação ainda está em busca de seus efeitos intensos


e extensos, o povo de Deus ainda deve ser reunido, o resgate pago, o sangue da
aliança derramado para a salvação de “muitos”). O cumprimento inaugurado
com a vinda de Jesus, o qual não representa ainda a consumação de todas as
coisas e que é um cumprimento messiânico provisório, misterioso embora divino,
dinâmico, leva à cruz e à ressurreição. Neles, o mistério do evangelho é velado
da maneira mais impenetrável, bem como revelado da maneira mais gloriosa.
Agora, finalmente, o que havia sido sussurrado aos ouvidos pode ser proclamado
dos eirados das casas.
Por conseguinte, a perspectiva que nos é dada em Mateus 28.16-20 fornece
um novo ponto de orientação na medida em que levanta o véu caído sobre o
futuro pela morte de Jesus. M as essa nova perspectiva não deve ser considerada
como uma “teologia da ressurreição” que surgiu fora dos limites da pregação
de Jesus. Tudo o que a ressurreição de Cristo traz à luz é baseado nas novas
pressuposições, nas quais se inicia a sua pregação sobre o reino, em oposição à
expectativa de seus contemporâneos. São essas pressuposições que devem ser
levadas em conta quando discutirmos a questão da perspectiva terrena do futuro
na pregação de Jesus. E verdade que esse fato não é mencionado explicitamente
antes da ressurreição. Todavia, ele está implícito em tudo o que dissemos nas
páginas anteriores a respeito do caráter provisório do que veio em Cristo, o que,
por essa razão, torna necessária a continuação do tempo para o mundo. Esse tema
básico dominante do evangelho (pois está baseado na messianidade verdadeira
e presente de Jesus) indica que o momento decisivo da História jaz na vinda e,
especialmente, na morte e na ressurreição de Cristo. Esse momento decisivo
não está tão distante quanto a parousia do Filho do Homem e nem se identifica
somente com ela. Esse é o motivo pelo qual o período interino, que se estende
da ressurreição até a parousia, não somente se orienta para o futuro, mas também
para o que já aconteceu. Ê o presente consumado do cumprimento provisório,
ou seja, não é apenas o tempo de espera, o tempo não cumprido, mas também o
tempo do cumprimento, o tempo da graça para a reunião da igreja à medida que
o evangelho do cumprimento é anunciado e que “muitos” participam do fruto
da paixão e da morte de Cristo. Ê verdade que não nos foi dada uma indicação
clara da “duração” desse tempo de cumprimento, mas na importância central do
sofrimento e da morte de Cristo para a proclamação do evangelho e no ajun­
tamento da igreja do Novo Testamento está claramente implícita no fato que
o tempo do cumprimento não terminou com a morte de Cristo, mas tem o seu
ponto de partida e o seu pressuposto nesse acontecimento. Cullmann argumenta
corretamente, portanto, que, nos Evangelhos sinóticos, o centro do tempo não
está mais no futuro (isto é, na parousia como a inauguração da nova era), como
ocorre no judaísmo, mas no passado, na vinda de Cristo e em seu ministério.53
O FUTURO DO REINO DOS CÉUS 333

Esse é o motivo pelo qual a questão acerca da parousia não é mais a única e pelo
qual a pregação do evangelho do reino não é mais primariamente orientada para o
futuro, mas para o que já aconteceu em Jesus Cristo, especialmente em sua morte
e ressurreição como o cumprimento do tempo, da lei e das profecias.
Isso tudo é a primeira grande revelação trazida pela ressurreição referente
à manifestação do mistério na pregação prévia de Jesus.
Entretanto, a segunda revelação, que pode ser considerada como “igual à
primeira”, é que, na morte e na ressurreição de Jesus, a “segunda linha” que encon­
tramos em suas profecias acerca do futuro (referentes à sua parousia) cruza com a
primeira (que parece ser restrita apenas à ressurreição). A ressurreição manifesta o
que estava oculto no tempo anterior a ela, a saber, que existe uma coerência estreita
e indissolúvel entre a exaltação de Jesus como o Servo sofredor do Senhor e sua glória
como o Filho do Homem investido de toda a autoridade no céu e na terra.
Essa coerência é encontrada em passagens como Atos 2.36, a qual é citada
frequentemente por declarar explicitamente que Deus exaltou Jesus à sua mão
direita como resultado da ressurreição e que o tornou Senhor e Cristo. O que é
dito aqui, isto é, que a ressurreição significou a investidura de Cristo de poder de
acordo com Daniel 7, é ainda mais claramente expresso na declaração de Jesus
depois da sua ressurreição: “Toda a autoridade me foi dada no céu e na terra”
(M t 28.18). Essa é uma referência clara à profecia de Daniel 7.14, não apenas
com relação ao fato, mas pela semelhança das próprias palavras. A ressurreição
não é somente a exaltação do Servo do Senhor, que teve que sofrer muito e ser
rejeitado, mas ela também revela que opoder do Filho do Homem se baseia totalmente
na entrega voluntária do Servo do Senhor. Isso já prefigura o futuro grandioso, a
“vinda nas nuvens”, pois, nas palavras de Jesus na ressurreição, já há um eco da
harmonia entre “céu e terra” pela qual ele ensinou seus discípulos a orar (M t
6.10). E verdade que, já durante sua vida terrena, o poder do Filho do Homem
foi colocado à disposição de Jesus (M t 9.6, etc.), mas as palavras “me foi dada”
(aoristo: edotheí) indicam a mudança que aconteceu no seu modo terreno de
existência como o Messias. O seu status e glória estão, agora, de acordo com o
que foi dito em Daniel 7 acerca do Filho do Homem, ao qual, também, “foi-
lhe dado domínio, e glória, e o reino”, quando ele foi ao Ancião de Dias com as
nuvens do céu.54
Além disso, em sua morte e depois da sua ressurreição de entre os mortos,
vieram os sinais da catástrofe do mundo e da palingênese (regeneração) que
ocorreriam na parousia do Filho do Homem. O Templo é julgado (“o véu do
santuário se rasgou”), o movimento escatológico do mundo é manifesto (“tremeu
a terra, fenderam-se as rochas”) e o ressurgir dos mortos é visto (“muitos corpos
de santos, que dormiam, ressuscitaram”, M t 27.51-53, cf. também v. 45: “houve
trevas sobre toda a terra”).55 Todos esses acontecimentos apontam claramente
334 A v in d a d o R e in o

para a ligação entre a ressurreição e a parousia do Filho do Homem. Aqui, tam­


bém, fica clara a ligação entre as diferentes “linhas” na autorrevelação de Jesus e
sua profecia do futuro. Nas profecias anteriores à morte de Jesus, sua parousia é
diferenciada da ressurreição do Servo do Senhor sofredor e agonizante, mas agora,
depois da Páscoa, essa parousia é vista como inseparável da sua ressurreição, na
qual já é realizada, ainda que provisoriamente.

45. O futuro grandioso como ponto de orientação

Tornou-se evidente agora que, basicamente, as profecias de Jesus acerca de


sua ressurreição e parousia formam uma unidade. O anúncio que ele fez da parousia
do Filho do Homem se cumpre, ainda que provisoriamente, na sua ressurreição.
M as isso não deveria diminuir o fato de que o foco dos sermões escatológicos de
Jesus é dirigido para a vinda final e definitiva do reino dos céus. Apesar de, no
início de sua pregação, a ênfase recair toda na presença do cumprimento (como se
vê pela ligação entre essas declarações e os milagres que ele realizou), ao final do
kerygma sinótico tudo se foca outra vez no futuro. A partir daí, a vinda do reino
é referida num sentido absolutamente futuro, de tal modo a dar a impressão de
que ele ainda não tinha chegado, e a parousia do Filho do Homem - e a palavra
parousia significa chegada e não segunda vinda! - é mencionada como se ele fosse
apenas uma pessoa do futuro. Essa “linha” alcança o seu clímax nos grandiosos
sermões escatológicos ao final do evangelho, no chamado “apocalipse sinótico”
e nas parábolas correspondentes sobre o futuro. Seremos injustos para com a
unidade do evangelho que chegou até nós se, em nossa discussão dessas decla­
rações escatológicas e apocalípticas, perdermos de vista o importante tema do
cumprimento, o qual ocupa uma posição tão dominante na pregação de Jesus.
Para mantermos uma coerência inquebrantável com essa linha de pensamento,
teremos também que ver o tempo deste mundo, que transcorre antes da parousia,
à luz da ressurreição, e, como conseqüência, como o tempo novo do mundo, isto
é, o tempo do cumprimento. Isso em nada diminui a verdade de que o ponto
de orientação crucial que nos foi dado por Jesus em seus sermões acerca da era
vindoura se encontra, antes de mais nada, na parousia ainda não realizada do
Filho do Homem.
No grande contexto do futuro do reino anunciado por Jesus, isso não é de
admirar. A principal pressuposição da pregação inicial de Jesus a respeito da
vinda do reino foi que seu cumprimento tinha apenas começado e, portanto,
tinha um caráter provisório. O mesmo se aplica à nova era que se iniciou com a
ressurreição de Jesus. Ainda é o “tempo anterior”: os demônios serão lançados no
abismo. Existem, para serem vistos, apenas sinais e promessas da grande palingênese
O FUTURO DO REINO DOS CÉUS 335

(regeneração), na qual os mortos sairão de suas sepulturas e o mundo será reno­


vado. Há, todavia, um progresso perceptível aqui, pois depois da ressurreição dos
mortos, o evangelho dissipa o véu e a reserva com os quais era pregado antes, de
modo que, agora, ele se apresenta claramente como o evangelho do cumprimento
fundamentado no sacrifício de Jesus na cruz (cf. M t 17.9) e é anunciado não
apenas a Israel, mas ao mundo todo. Além do mais, a profecia de João Batista
acerca daquele que haveria de vir batizando com o Espírito Santo e não somente
com água agora se cumpre, ainda que de maneira temporária (At 1.5). Entretanto,
o reino, mesmo agora, ainda vem da mesma maneira que o evangelho, que só
pode ser aceito pela fé (Mc 16.16). E a consumação a ser trazida pelo reino não
tem o caráter de um desenvolvimento histórico de um estágio inferior para um
superior, do menor para o maior, mas, somente aquele caráter da ação poderosa
ainda aguardada do Filho do Homem em seu poder.
O fato de que essa ação poderosa do Filho do Homem ainda é aguardada
também não a coloca em conflito com o tema grandioso do cumprimento. Nesse
tema, Jesus repetidamente coloca a vida e a obra de seus discípulos (e, neles, a de
sua igreja) à luz da antítese que ainda permanece no mundo, a despeito da vinda
do reino. Essa antítese é ainda mais intensificada por essa vinda. Essa posição e
essa tarefa são descritas como perigosas e sob ameaça especialmente na segunda
parte do sermão de Jesus, quando enviou seus discípulos, em Mateus 10 e em
seus sermões sobre o futuro (M t 24.9,13; M c 13.9-13; Lc 12.11-12; 14.26;
21.12-17,19). Porém, além disso, toda vez que ele fala da posição deles como seus
discípulos, descreve essa posição e a tarefa deles como perigosa e sob ameaça. Já
nas bem-aventuranças do Sermão do Monte, ele diz que eles serão denegridos e
perseguidos como os profetas antes deles (M t 5.11-12). E essa profecia é encon­
trada ao longo de todo o evangelho. Falsos profetas em pele de ovelha, mas que,
interiormente, são lobos devoradores, irão até eles (M t 7.11ss). Eles são enviados
como ovelhas para o meio de lobos; devem precaver-se dos homens, pois eles os
entregarão aos tribunais; serão odiados por todos os homens por amor a Jesus.
Acontecerá com eles o mesmo que aconteceu com seu mestre, pois o discípulo não
está acima de seu mestre e nem o servo acima de seu senhor (M t 10.16-25). Esse
é o motivo pelo qual eles devem estar preparados para sacrificar todas as coisas,
mesmo os seus relacionamentos mais caros, para poderem levar sua cruz (M t
10.37ss; 16.24ss; 19.29ss). Eles seriam entregues e afligidos (M t 24.9), surrados
em tribunais e sinagogas e levados diante de governadores e reis (Mc 13.9ss) e
até mortos por causa do nome de Jesus Cristo (M t 24.9). Em nenhum momento
o papel de conquistadores do mundo é dado aos discípulos ou à igreja vindoura.
E verdade que são prometidas recompensas temporais para o autossacrifício
que fazem e os sofrimentos que suportam, como o amor e a simpatia dos que
estão unidos a eles, mas também isso é algo que acompanha as suas perseguições
336 A v in d a d o R e in o

(Mc 10.29-30). É evidente, também, que haverá um poder benéfico para protegê-
los nesta vida temporal enquanto eles obedecerem aos mandamentos de Jesus e
os anunciarem (M t 5.13; Lc 14.34-35; M c 9.50); e, com essa perspectiva, eles
devem pregar o evangelho a todas as nações (M t 28.28). Todavia, não há qualquer
promessa de que eles conseguirão cristianizar o mundo inteiro nem quaisquer
perspectivas de um reino teocrático. Ao contrário, a ênfase recai na necessidade
de perseverar em meio às aflições (Mt 10.22; 24.13; M c 13.13; Lc 21.19), na
perseverança na oração apesar da falta aparente de justiça (Lc 18.1-8), na vigilância
(M t 24.44; 25.13) e na fidelidade e sobriedade (Lc 21.34ss.).
Estreitamente ligados a isso, a vida e o destino dos discípulos e da igreja
são repetidamente colocados à luz escatológica. A vinda do Filho do Homem
é o pano de fundo que controla a totalidade da luta e das dificuldades deles. E
o seu consolo em épocas de perseguição (M t 10.23), o segredo de suas orações
constantes (Lc 18.1,8), o motivo de sua perseverança (M t 10.22) e o incentivo
à fidelidade e vigilância (Lc 21.36).
Não há dúvida de que nada disso anula a tarefa dos discípulos descrita tão
claramente em outros lugares. Além do mais, a norma de acordo com a qual eles
devem viver permanece a mesma. Nenhuma “ética do ínterim” ou “legislações
excepcionais” os proíbe de serem fiéis à vida, à terra e à cultura. Permanecem
como guia, de maneira inalterada, “a Lei e os Profetas” que Jesus sempre defendeu,
isto é, a lei de Deus, o Criador e Preservador do mundo, a qual foi dada para a
manutenção e o desenvolvimento da vida. Em tudo isso, o evangelho não só é
livre da tendência de depreciar a vida, como a escatologia consistente supunha,
mas, pelo contrário, ele aceita a vida durante o tempo que Deus nos deu para
desfrutá-la. De igual modo, ele indica a terra como o território da futura revela­
ção de Deus. Entretanto, tudo aqui está sujeito à grandiosa condição do caráter
temporário e passageiro deste mundo e os discípulos aprendem que a vinda do
Filho do Homem é o acontecimento futuro real para o qual devem dirigir seus
passos e sobre o qual devem construir sua esperança e seus desejos.
E impressionante que essa referência repetida à vinda do Filho do Homem,
especialmente nos últimos sermões, como também antes deles, é apresentada
repetidas vezes como algo positivo, imediato e de real importância. Não há, em
lugar algum, qualquer indicação de que essa perspectiva futura vá demorar vários
séculos. Pelo contrário, aqueles que ouvem as palavras de Jesus são confortados
com a segurança de que Deus está “apressando-se” a fazer-lhes justiça (ver Lc
18.7) e eles são advertidos a não relaxarem sua vigilância (M t 25.1ss). Essa co­
nexão imediata do futuro grandioso com o presente é o verdadeiro problema da
escatologia sinótica, especialmente se quisermos preservar a unidade do evangelho
e ser totalmente justos para com o tema do cumprimento desenvolvido nos capí­
tulos anteriores deste estudo. E verdade que Cullmann, Kümmel, Liechtenham e
0 FUTURO DO REINO DOS CÉUS 337

outros56já expressaram a opinião de que essa falta de “espaço” na perspectiva esca­


tológica futura não deve ser considerada importante diante dos pronunciamentos
claros no evangelho acerca do cumprimento. Todavia, somos confrontados com
o fato de que essa ligação temporal entre o “presente” do evangelho e a parousia
do Filho do Homem não ocorre somente em alguns pronunciamentos isolados,
mas aparenta ser a pressuposição constante de todas as palavras de Jesus quanto
ao futuro. Esse é um fato que, em nossa opinião, os autores mencionados acima
não levaram suficientemente em consideração.
Para que possamos compreender corretamente os problemas que se levan­
tam aqui, será necessário examinar mais de perto não apenas uns poucos ditos
destacados, mas o quadro inteiro que Jesus nos dá em sua descrição explícita e
detalhada do futuro, da parousia do Filho do Homem e dos sinais e fenômenos
apocalípticos que a precedem.

46. O "discernimento dos tempos"

A questão da unidade e da coerência dos pronunciamentos escatológicos


de Jesus dá origem a todo tipo de indagações. Alguns exegetas são da opinião
de que há claramente uma discrepância a ser descoberta no evangelho, especial­
mente quanto aos sinais a serem esperados antes da vinda do reino e da parousia
do Filho do Homem. Alegam que, em algumas partes do evangelho, a ideia de
sinais dos quais se pode inferir a chegada do fim é totalmente rejeitada e que a
parousia é descrita como um acontecimento totalmente inesperado, que tomará
a humanidade de surpresa. Para apoiar essa opinião, esses autores se valem da
descrição que Jesus faz do dia do Filho do Homem e para as advertências que
ele faz contra os falsos alarmes, “Ei-lo aqui!” ou “Lá está” (Lc 17.21-23). Jesus,
supostamente, enfatiza o caráter repentino da parousia, em oposição a essa “es­
catologia” de sinais, caráter esse semelhante à chegada do Dilúvio e à devastação
de Sodoma, quando as pessoas comiam e bebiam, etc., sem se conscientizarem
da catástrofe iminente. Nessa descrição da parousia, dizem eles, não há espaço
para “sinais” detalhados ou acontecimentos que avisem antecipadamente o que
vai acontecer. Essa descrição está totalmente em conflito com toda sorte de
convulsões apocalípticas (como aquelas mencionadas, p. ex., em M c 13)57 e que
inauguram o fim, das quais se pode dizer, com segurança - como fazem alguns
exegetas58 - que elas não deixam mais qualquer oportunidade para as pessoas
comerem e beberem. Com base nisso, muitos escritores são inclinados a negar
que esse “apocalipse sinótico”, encontrado especialmente em Marcos 13 (Mt
24; Lc 21), deve sua existência a Jesus. Eles se restringem àquelas passagens que
falam do fim sem nenhum contexto apocalíptico.
338 A v in d a d o R e in o

Ainda teremos que lidar com as objeções feitas à “autenticidade” de Marcos


13. Porém, nesse contexto, vamos apenas ressaltar que os pronunciamentos de
Lucas 17.22ss (sobre aparousia chegando como um relâmpago e o povo totalmente
despreocupado antes dela) também ocorrem em Mateus 24.26-28,37-41. Portan­
to, eles não foram considerados pelo evangelista como estando em conflito com a
ocorrência de sinais e dos acontecimentos que antecedem a parousia mencionados
no mesmo capítulo. No entanto, é importante examinar mais detidamente a re­
jeição de Jesus quanto a “Ei-lo aqui” ou “Lá está”, bem como a comparação que
ele faz entre a chegada da parousia e a do relâmpago. O que está em discussão é
especialmente a declaração de Lucas 17.20-21, onde, respondendo a uma pergunta
feita pelos fariseus acerca de quando o reino de Deus viria, Jesus disse: “Não vem o
reino de Deus com visível aparência. Nem dirão: Ei-lo aqui! Ou: Lá está! Porque
o reino de Deus está dentro de vós”. E então, segue-se a descrição da vinda do dia
do Filho do Homem à semelhança de um relâmpago (vs. 22-37).
Nesse caso tudo depende do sentido de “não vem com visível aparência”,
que preferimos traduzir como “não virá acompanhado por observações”.59Alguns
autores acham que, nesse caso, Jesus está falando de maneira geral da invisibi­
lidade e da imperceptibilidade do reino,60 o qual já teria vindo no início, com
o surgimento de Jesus, de suas palavras e obras. A objeção contra essa posição,
em primeiro lugar, é que, no que diz respeito ao presente, ela não está de acordo
com a pregação usual de Jesus, se negar ao reino qualquer “visibilidade” (cf. M t
12.28ss). E o que é mais - e também da maior importância - a “aparência” aqui
mencionada não quer dizer perceptibilidade ou visibilidade obtida pelos sentidos;
trata-se de uma “aparência” muito específica. A palavra usada aqui por Jesus é
usada em outros lugares para se referir à observação das estrelas. Aqui, ela indica
a observação e a procura ansiosa de cada fenômeno que possa ser uma indicação
da vinda do reino. Em nossa opinião, as palavras “não vem com visível aparência”
devem ser entendidas no sentido de que tal aparência não é necessária para que
se perceba a chegada do reino.61 Essa exegese está totalmente de acordo com
as palavras seguintes, “nem dirão: Ei-lo aqui! Ou: Lá está!” Essas palavras são
repetidas na seqüência (v. 23) e ali, bem como em outros locais (Mc 13.21; M t
24.23), elas se referem a alarmes falsos e prematuros de que o dia do Filho do
Homem havia chegado. Jesus aqui se refere aos movimentos e rumores messi­
ânicos que surgiam repetidamente entre o povo judeu. Eles tinham origem no
ideal nacional do Messias e com frequência tornavam difícil para seus adeptos
saber o que pensar com respeito a esse ideal. Isso explica a pergunta dos fariseus
acerca do tempo, “quando”. Quando Jesus lhes responde dizendo que a vinda do
reino e do Messias “não será acompanhada por observação”, ele não quis dizer
que não deveríamos ficar “atentos” aos sinais dos tempos. O que ele faz é rejeitar
a ideia - que era defendida pelos adeptos da expectativa nacionalista do Messias
O FUTURO DO REINO DOS CÉUS 339

- de que a vinda do reino em si era algo que poderia ser detectado somente pelo
olhar treinado dos “observadores”.62 Seu surgimento será de tal natureza (im­
pressionante) que ninguém precisará de qualquer indicação para saber que ele
chegou e nem terá qualquer dúvida.63
Estritamente falando, essa exegese depende da maneira como as seguintes
palavras, altamente controvertidas,64 são explicadas: “Porque o reino de Deus
está dentro de vós” ou “entre vós” (entos humoon). Isoladas, essas palavras podem
muito bem ser entendidas como uma referência à autoconsciência de Jesus e ser
interpretadas dessa maneira: “O reino de Deus já está presente entre vocês. Quem
tiver olhos para ver não precisa mais ficar em dúvida”. Apesar de essa interpretação
ser bastante plausível dentro do escopo da pregação de Jesus, há uma importante
objeção contra ela. O que segue imediatamente no contexto do evangelho tem a
ver com a situação escatológica, para a qual o evangelista aparentemente achou
seu ponto de contato nos versículos 20 e 21. O que torna esse argumento ainda
mais convincente é o fato de que, nos versículos seguintes, a vinda escatológica do
Filho do Homem é anunciada com a rejeição do mesmo erro (de “Ei-lo aqui” ou
“Lá está”). Nesse contexto, é improvável, como conseqüência, que, nos versículos
20 e 21, Jesus tenha desejado tirar o foco do futuro escatológico e dirigi-lo para o
presente já “cumprido”. Essa conclusão é fruto também do uso do tempo futuro
no versículo 21 (“nem dirão”, Lc 17.21). Esse é o motivo pelo qual, em nossa
opinião, as palavras “porque o reino de Deus está entre vós” certamente se referem
à vinda escatológica do reino, como se conclui do uso da palavra “porque”. Ela
introduz a explicação da razão pela qual eles não dirão “Ei-lo aqui” ou “Lá está!”,
ou seja, quando o reino vier, ele estará no vosso meio, isto é, ele não precisará de
qualquer indicação adicional, pois encherá plenamente o horizonte de vocês. Além
disso, o versículo 24 emprega a imagem de um relâmpago com respeito à vinda
do Filho do Homem. Com frequência, a palavra “repentinamente” é empregada
na exegese dessa passagem,65 mas ela não se encontra no texto e, se empregada,
muda o ponto desse pronunciamento para outra coisa, visto que o foco aqui não é
a maneira súbita da vinda do reino, mas seu caráter inconfundível e dominante.66
Assim, podemos parafrasear a passagem desta maneira: “O reino não virá de um
modo que somente os peritos poderão perceber; nem haverá necessidade de que
digam ‘Ei-lo aqui’ ou ‘Lá está’, pois eis que, quando ele aparecer, estará no meio
de vocês como uma obra grandiosa do poder de Deus!”67
Nessa interpretação de Lucas 17.20-21, fica claramente excluída a questão
da rejeição de “sinais” ou de qualquer proibição quanto a observá-los. Torna-se,
portanto, desnecessário apontar contradição no evangelho quando, em outras
passagens, Jesus fala claramente de “sinais dos tempos” e de acontecimentos indi­
cadores da chegada da parousia. Essa passagem em si também não está em conflito
com os ditos seguintes que falam da vinda da parousia de maneira semelhante
340 A v in d a d o R e in o

a um relâmpago, já que essa figura indica o caráter inconfundível e abrangente


da parousia e não o caráter repentino de sua vinda. O fato de que, naqueles dias,
haverá pessoas vivendo desapercebidas da catástrofe iminente, como nos dias de
Noé, não é prova, de acordo com essa linha de pensamento, de que não haverá
razão para desconforto. Pelo contrário, prova que tais pessoas não darão a menor
importância a qualquer advertência e que não terão qualquer sensibilidade para
com a gravidade da situação na qual se encontram.
Portanto, o que Jesus condena no povo e em seus líderes em termos inci­
sivos é a negligência deles em discernir os sinais dos tempos (Lc 12.49-56; M t
16.2-3).68 Eles são espertos o suficiente para tirar conclusões observando os
fenômenos naturais com respeito ao clima, mas não para discernir “essa época”
(ton kairon touton) e nem para “discernir” (dokimazein) “os sinais dos tempos” (ta
semeia toon kairoon). O caráter especial desse “tempo” ou desses “tempos” (kairos)
é o fato de que a salvação veio com Cristo e que, nele, se espera o julgamento
final.69 Portanto, deve-se dar atenção especial ao que está vindo e aos sinais dos
tempos. O que são esses sinais não é dito de maneira inequívoca. Aparentemente,
eles são tudo o que tem sido revelado nas ações de Jesus - e por meio delas - e
que se tornou manifesto como sinais do fim (veja também M t 12.38-42), pois
Jesus veio trazer fogo à terra (Lc 12.49ss); ele traz divisão, tensão, separação, até
mesmo entre aqueles do nosso relacionamento mais íntimo. E isso faz com que
esse tempo seja tempo de julgamento, de acordo com a profecia à qual Jesus se
refere aqui (M q 7.6), o anúncio da vinda de Deus.70
Isso não significa que, à maneira judaica, Jesus está dando indicações para
que se calcule a data desse futuro grandioso. Significa, todavia, que ele nos ordena
enfaticamente que aguardemos, vigilantes, a aproximação desse grande dia. E esse
é também o objetivo principal de seu sermão escatológico em Marcos 13.

47. O sermão escatológico de Marcos 13 e paralelos

a) A autenticidade de Marcos 13 (e de passagens paral.)


Os “sinais” que acompanham a vinda de Jesus e aqueles que ainda são espera­
dos sugerem que o tempo é de “crise”. H á uma descrição muito elaborada deles no
quadro apocalíptico do futuro encontrado no importante sermão de Marcos 13.
De acordo com o relato sinótico,71Jesus fez esse sermão na ocasião em que
os discípulos estavam admirando a beleza do Templo. Jesus replicou dizendo
que não ficaria ali pedra sobre pedra - todas seriam derribadas. M ais tarde,
assentados no Monte das Oliveiras, com vista para o Templo, seus discípulos (de
acordo com Marcos, alguns deles, em particular) lhe perguntaram quando seria
aquelas coisas e que sinal haveria quando todas elas estivessem para se cumprir.
O FUTURO DO REINO DOS CÉUS 341

H á algumas diferenças nos relatos dos Evangelhos. Marcos traz: “Dize-nos


quando sucederão estas coisas, e que sinal haverá quando todas elas estiverem
para cumprir-se” (13.4). Em Lucas 21.7, essa pergunta é feita quase que com as
mesmas palavras. M as Mateus traz: “Dize-nos quando sucederão estas coisas e
que sinal haverá da tua vinda e da consumação do século” (24.3). As versões de
Marcos e Lucas sugerem que os discípulos viam a destruição de Jerusalém e o
grandioso acontecimento escatológico da parousia como algo contemporâneo.72
Daí a pergunta deles sobre os “sinais” e a menção de “todas estas coisas” e “para
cumprir-se”.73 Mateus expressa isso de maneira explícita. A pergunta sobre “o
sinal” também sugere que, na opinião deles, a parousia messiânica e a inaugura­
ção do fim do mundo trazida por ela seria precedida de um período de grandes
desastres no qual o próprio Templo seria destruído.74
Jesus responde a essa pergunta com uma profecia elaborada acerca do futuro,
na qual ele descreve, primeiramente, as angústias que precederão a vinda do Filho
do Homem e, então, a parousia propriamente dita.
A maioria dos estudiosos críticos nega que esse sermão tenha sido, de fato,
feito por Jesus. De acordo com Ed. Meyer,75 esse sermão, em seu todo, nada tem
a ver com o Jesus histórico. Klostermann concorda com esse julgamento.76 O
sermão é considerado, em geral, como uma adaptação feita pela igreja de mate­
rial apocalíptico judaico.77 Os principais argumentos para se rejeitar a ideia de
que Jesus é o autor desse sermão no contexto descrito em Marcos 13.1-3 são os
seguintes. Primeiro, no versículo 14, as palavras são dirigidas aos leitores, o que
claramente aponta para o uso de uma fonte (apocalíptica) escrita. Segundo, o que
é desenvolvido no sermão não se harmoniza com a situação descrita nos versículos
1-3, que menciona a destruição do Templo. O sermão, todavia, menciona como
sinal do fim a dessacralização do Templo e não sua destruição. E, finalmente,
o sermão é considerado incoerente e internamente contraditório. Ele discute a
questão da época e dos sinais do fim de um modo conflituoso com o versículo 28,
onde é afirmado com muita força que a época do fim do mundo é desconhecida.
O sermão também mistura elementos judaicos e cristãos. A alternância entre a
segunda e a terceira pessoas é também considerada com >evidência de que foi
composto de material oriundo de diferentes fontes.78
Esses argumentos, todavia, são insustentáveis e não podem ser empregados
para negar que o conteúdo desse sermão pode ser atribuído an próprio Jesus.
Senão, vejamos.
Quanto ao argumento relacionado com o versículo 14 - que é empregado
repetidas vezes79 - não é obrigatório explicar a “leitura” mencionada aqui
{fio anagnoosko noeito) como uma observação feita pelo evangelista ou autor da
Vorlage (fonte) escrita usada nesse caso. Ela pode ser explicada, pelo contrário,
como uma observação feita pelo próprio Cristo para que se prestasse atenção à
342 A vtnda d o R e in o

profecia de Daniel citada na ocasião. É verdade que Daniel não é mencionado


explicitamente, mas não se pode negar, tendo exclusivamente em vista a profecia
de Daniel, que Jesus fosse capaz de falar da “abominável da desolação” sem maiores
explicações. Mateus cita Daniel pelo nome. Por esse motivo, apenas de modo
arbitrário é que se pode tomar a exortação para que se preste atenção ao que é lido
como se a referência fosse a qualquer outra coisa que não o livro de Daniel.80 E
dessa mesma maneira que devemos entender Marcos 13.14.81 E mesmo que essa
exortação seja do evangelista, como acreditam alguns autores, ainda assim essas
poucas palavras podem ser vistas como um sinal dele para que os leitores prestem
atenção a essas palavras de Jesus. Não é necessário inferir delas conclusões como
as mencionadas acima, negando que Jesus seja o autor delas.82
Quanto às discrepâncias que supostamente existem entre a introdução do
sermão e o sermão em si, já mostramos acima que a pergunta feita pelos discípulos
no versículo 3 não se refere apenas à devastação do Templo, mas também aos
acontecimentos escatológicos do fim. E, apesar de, no sermão propriamente dito, a
destruição do Tempo não ser mais mencionada, ela certamente está incluída, ainda
que implicitamente - especialmente depois de Marcos 13.14ss - nos tremendos
acontecimentos catastróficos do fim. Não há, portanto, qualquer motivo para se
afirmar que o sermão de Jesus não responde à pergunta dos discípulos.
As coisas não são diferentes, em nossa opinião, no que se refere às objeções
levantadas quanto ao conteúdo do sermão de Jesus. Apesar de termos que levar
em consideração a possibilidade de que o evangelista tenha influenciado a forma
na qual esse sermão nos chegou, não vemos como é possível negar que Jesus é o
seu autor com base em argumentos sólidos. Esse ponto é admitido parcialmente
por aqueles que têm reservas quanto às passagens apocalípticas no sentido mais
estrito da palavra, porque também ocorre nesse sermão uma variedade de coisas
que estão de acordo com o que Jesus diz em outros lugares no evangelho. Assim,
por exemplo, encontramos a advertência contra os falsos mestres (Mc 13.6 e
paral.), a profecia sobre o sofrimento e perseguições (13.9,11,13,21-23 e paral.)
e a vigilância que ele ordena à luz dessas coisas. Esses mesmos conceitos ocorrem
em outros ditos de Jesus, pelo menos no que respeita ao conteúdo deles, como,
por exemplo, Mateus 5.11; 10.28,38; M c 10.35ss; 8.34, passagens nas quais
Jesus também menciona o sofrimento futuro de seus discípulos; e ainda Mateus
7.15 e Lucas 17.23, em que ele adverte seus discípulos contra o perigo de serem
enganados. O mesmo se aplica à profecia da devastação do Templo. Já foi cor­
retamente observado, mais de uma vez, que isso não é um vaticinium ex eventu,
pois, nesse caso, teria sido normal mencionar a destruição pelo fogo, enquanto o
que temos é apenas uma menção ao fato que o Templo seria arrasado.83 Porém,
Jesus falou da destruição do templo também em outro contexto (M t 23.38; cf.
M c 14.57-58; Jo 2.19; M c 15.29). Até mesmo Ed. Meyer, que nega que Jesus
O FUTURO DO REINO DOS CÉUS 343

tenha feito esse sermão escatológico, admite que a profecia de Jesus de que não
ficaria ali pedra sobre pedra que não fosse derribada “não precisava de elaborações
complementares”. Ele se refere a Miqueias e Jeremias, que falaram da destruição
do Templo muito antes de ela acontecer.84
As verdadeiras objeções contra a autenticidade de Marcos 13 se concentram
nos pronunciamentos que descrevem o período final: Marcos 13.7-8 e paralelos
(a comoção entre as nações e os acontecimentos cósmicos); 13.12 e paralelos (a
inimizade entre as pessoas); 13.14-20 e paralelos (a grande tribulação); 13.24,27
e paralelos (a vinda do Filho do Homem). Essas declarações supostamente não
encontram paralelo nos demais relatos das palavras de Jesus. Além do mais,
é sustentado por alguns que eles estão em conflito total com aquelas palavras
de acordo com as quais não se pode saber o dia do Filho do Homem e que o
mesmo haverá de surpreender os que não vigiam e não são sóbrios, conforme é
expresso nas parábolas sobre vigilância que ocorrem no mesmo contexto. Esse
é o motivo pelo qual essas palavras são consideradas como material tradicional
judeu-cristão secundário.85
Em resposta a essa crítica, entretanto, deve-se manter, em primeiro lugar,
que, dentro do escopo de Marcos 13, não há contradição entre a “descrição
apocalíptica do fim” e o chamado à vigilância, pois ninguém sabe o dia e nem a
hora. O significado é simplesmente que, apesar de todos os sinais do fim que se
aproxima, as pessoas continuarão a viver com uma falsa paz na mente e relutantes
quanto a serem convertidas (cf. também Ap 9.20-21) e que se recusarão a levar em
consideração a vinda do Filho do Homem. Além do mais, o desconhecimento do
dia e da hora não é um argumento contra a autenticidade da descrição apocalíptica
dos sinais como tal, como veremos mais adiante,86 pois esse desconhecimento é
apenas com relação ao ponto exato no tempo em que a vinda ocorrerá. Quanto
a essa descrição apocalíptica como tal, não podemos considerá-la como um pro­
duto da expectativa judaica posterior a respeito do futuro. Muito pelo contrário,
devemos vê-la à luz da revelação veterotestamentária, com a qual a pregação de
Jesus estava constantemente em harmonia. E certo que não estamos negando
que a literatura apocalíptica judaica posterior contém pontos que podem ser ra­
zoavelmente relacionados com a expectativa que Jesus tinha do futuro. Há, nessa
literatura, todo tipo de informação, à qual Jesus poderia ter feito referência, na
medida em que essas informações estejam ligadas com o Antigo Testamento.87
M as é duvidoso que essa ligação possa ser feita em bases suficientes. Basta que se
familiarize com a natureza geral e a tendência desses escritos para que se descubra
a tremenda diferença entre a apocalíptica judaica e o sermão escatológico de
Jesus em Marcos 13 (e paral.). Os quadros bizarros e elaborados da apocalíptica
judaica, bem como as especulações complicadas com respeito à data do fim, eram
completamente estranhos à pregação de Jesus. Por outro lado, é difícil destacar um
344 A v in d a d o R e in o

único traço que ele tenha tomado emprestado da apocalíptica judaica posterior e
não do Antigo Testamento. As próprias partes cuja autoria de Jesus é negada por
constarem aparentemente na apocalíptica judaica estão repletas de alusões aos
profetas do Antigo Testamento e de citações deles. Que nação se levantaria contra
nação (Mc 13.8) é dito também em Isaías 19.2; fomes, catástrofes cósmicas no
fim dos tempos não são mencionadas somente nos livros de Enoque e 2 Esdras,
mas também em passagens como Isaías 8.21ss; 13.13; 24.17; Ezequiel 5.12ss;
Joel 2.30-31 e outros.88 Aparentemente, a expressão “princípio das dores” (arché
oodinoon - M c 13.8) é o terminus technicus dos rabinos, pelo menos no singular,
mas isso também está ligado com o uso do Antigo Testamento (cf. Is 26.17; 66.8;
Jr 22.23; etc.).89 De igual modo, o detalhe acerca da inimizade mútua entre as
pessoas que deveriam ser as mais próximas umas das outras (Mc 13.12 e paral.)
é expresso de maneira a remontar á profecia de Miqueias 7.6; e a expressão “o
abominável da desolação” (Mc 13.14 e paral.) é derivada de Daniel;90 a fuga dos
moradores da Judeia para as montanhas se encontra com mais certeza no Antigo
Testamento do que na literatura judaica.91
As palavras que descrevem a “grande tribulação” em Marcos 13.19 (e paral.),
por exemplo, “como nunca houve desde o princípio do mundo, que Deus criou,
até agora”, são encontradas não apenas no livro apócrifo A Ascensão de Moisés 8.1,
como também, de maneira levemente modificada, em Daniel 12.1 (na Septu-
aginta). Já a ideia do “abreviamento” dos dias daquela tribulação não encontra
um paralelo claro, seja no Antigo Testamento,92 seja na literatura judaica.93 E,
finalmente, a descrição da parousia propriamente dita, em Marcos 13.24-27 (e
paral.), é cheia de traços e expressões de caráter tradicional, mas é quase sempre
ao Antigo Testamento que sua origem pode ser traçada. É o caso com a profecia
de que o sol se escurecerá e que a lua não mais dará a sua luz, M c 13.24: M t
24.29; e que as estrelas do céu cairão do firmamento, M c 13.25; M t 24.25 (cf. Is
13.10; 24.23; E z 32.7; J1 2.10,31; 3.15). A perplexidade das nações, predita em
Lucas 21.25, “angústia entre as nações em perplexidade por causa do bramido do
mar e das ondas”, é, provavelmente, uma alusão ao Salmo 65.8. Além do mais,
a expressão “os poderes dos céus” (Mc 13.25 e paral.) é claramente emprestada
de Isaías 34.4. Finalmente, a vinda do Filho do Homem nas nuvens (Mc 13.26
e paral.) é com toda certeza um reflexo de Daniel 7.13-14.
Seria possível mencionar outros detalhes. M as, pelo que já foi mencionado,
é óbvio que, na sua pregação profético-escatológica, Jesus não recorreu à apo­
calíptica judaica posterior e sim aos profetas do Antigo Testamento.94 A luz
dessa constatação, não há qualquer base para a declaração de que existem aqui
“elementos totalmente isolados da tradição” que não podem pertencer à tradição
mais antiga a respeito de Jesus devido a “conclusões derivadas da história da
tradição bem como de considerações críticas objetivas” e que es^es elementos
O FUTURO DO REINO DOS CÉUS 345

representam uma tradição judeu-cristã que Marcos usou para a composição de


seu sermão, sem que essas passagens estivessem em acordo com todas as demais
tradições concernentes a Jesus.95 Pelo contrário, é preciso ser dito que essas
descrições do acontecimento do período do fim, que remontam, naturalmente,
ao Antigo Testamento, tiveram uma profunda influência no ensino de Jesus em
suas profecias apocalípticas. Além do mais, é impossível negar a imensa diferença
entre a apocalíptica judaica posterior e a profecia de Jesus quanto ao futuro. A
partir daí, torna-se evidente o quanto são frágeis os argumentos que negam a
autoria de Jesus dessas profecias e que procuram explicá-las como material da
tradição judeu-cristã.
E, por fim, examinemos o argumento de que essas descrições aparente­
mente estão faltando no restante do ensinamento de Jesus. Em primeiro lugar,
deve-se destacar que a prioridade de Jesus em seu ensino não era enfatizar para
os discípulos que o reino dos céus era algo do futuro, mas que o mesmo, pelo
contrário, era presente. Portanto, não é de admirar que a maneira desse futuro
não seja com frequência propositadamente discutida em separado. Apesar disso,
encontramos frequentemente pronunciamentos sobre o futuro. E podíamos nos
indagar: como Jesus teria concebido e ensinado esse futuro a não ser no sentido
(não de uma apocalíptica judaica degenerada, mas) das palavras proféticas do
Antigo Testamento, reconhecidas por ele na sua autoridade divina?
Porém, em segundo lugar, há uma reserva importante a ser feita com
respeito à declaração de que essas ideias apocalípticas não são encontradas em
nenhum outro lugar da pregação de Jesus. Muito pelo contrário, elas são o grande
pressuposto de tudo o que Jesus revela em sua pregação acerca do futuro. Pense
no espaço que é ocupado na pregação de Jesus a profecia de Daniel 7 sobre o
Filho do Homem. Com isso, Jesus coloca sua própria vinda à luz da expectativa
apocalíptica profética quanto ao futuro. Já com base nisso não há qualquer ra­
zão para se negar que ele é o autor de outros traços dessa expectativa, ainda que
secundários. Além disso, descobrimos que, fundamentalmente no mesmo nível
do que é dito no sermão de Marcos 13 sobre o futuro do reino e o que o precede,
estão as passagens sobre o julgamento final, a grande festa de casamento na era
vindoura, a rejeição dos ímpios, as trevas exteriores (Mt 7.21ss; 8.11ss; 11.20ss;
12.41ss), o envio dos anjos para a ceifa do mundo (13.41ss; 49ss), a vinda do Filho
do Homem em sua glória (Mt 16.27ss), a necessidade de aflições e tentações (M t
10.24ss; 16.24ss; 18.7), o julgamento das doze tribos de Israel pelos discípulos
na regeneração (M t 19.28; cf. 20.23), a ressurreição (M t 22.23-33), a queda de
Jerusalém (M t 23.37ss; cf. também Lc 13.1ss) e o anúncio dos “ais” às mulheres
de Jerusalém (Lc 23.29). Só há uma diferença, ou seja, o que é encontrado em
outros lugares em passagens isoladas, como se tivessem sido espalhados de ma­
neira incidental, ocorre aqui num único contexto, focado intencionalmente no
346 A v in d a d o R e in o

que precederá a vinda do reino. Esse é o motivo pelo qual a separação e a exclusão
desses pensamentos do ensino de Jesus é uma violação do caráter sobrenatural e
cósmico do futuro do reino dos céus, como anunciado por Jesus.
Nossa conclusão quanto ao sermão escatológico de Marcos 13.1-27, portan­
to, só pode ser que ele está organicamente ligado com tudo o que Jesus profetizou
em outras passagens acerca do futuro grandioso e que qualquer tentativa de negar
a Jesus o conteúdo factual desse sermão é sem fundamento e deve ser rejeitada,
pois o conhecimento do que Jesus profetizou acerca do futuro do reino dos céus
pode ser seguramente inferido não apenas de Marcos 13 (e paral.) como também
de tudo o que nos é dado no restante do ensino de Jesus.

b) O princípio das dores


Um estudo mais detalhado dos chamados Evangelhos sinóticos para se for­
mar um quadro mais claro do caráter e da duração do futuro previsto ali, revelará
três fases distintas. A primeira delas é o “princípio das dores”, a segunda é acerca
da grande tribulação e a terceira é a parousia do Filho do Homem.
A primeira fase está descrita em Marcos 13.5-8, Mateus 24.4-8 e Lucas
21.8-11. Em todos os três Evangelhos, ela é acompanhada de advertências acerca
do destino dos crentes naquele tempo e sobre a maneira como eles devem se
comportar nele (Mc 13.9-13; M t 24.9-14; Lc 21.12-19). Nessa primeira parte,
a ênfase principal é à advertência aos discípulos para não se deixarem enganar.
Eles não devem pensar cedo demais que o fim chegou, ou mesmo que sua chegada
é imediata (cf. Lc 21.9, “não vos assusteis; pois é necessário que primeiro aconte­
çam estas coisas, mas o fim não será logo”). É verdade que muitos proclamarão
ser o Cristo. Isso, sem dúvida, se refere à ação dos pretendentes à messianidade
na nação judaica. Josefo menciona uma série de messias que surgiram pouco
antes e depois de Jesus. E a revolta judaica de 70 d.C. parece ter sido fortemente
influenciada pela expectativa de que a parousia do Messias estava às portas. Na
revolta judaica de 132-135 d.C., Bar-Cochba afirmou ser o M essias.96 A mesma
advertência que encontramos de maneira alterada em Lucas 17.23 (cf. acima)
é, mais adiante, repetida no sermão (Mc 13.21-23; M t 24.23-26). Ela mostra
como essas falsas expectativas eram perigosas aos olhos de Jesus. Em seus dias, as
pessoas tinham a mente cheia dessas ideias. Ele neutraliza o poder dessa tentação
com a ordem por cautela. Quando ouvirem falar de guerras e rumores de guerra
e sobre o levantar de uma nação contra outra e também de (grandes) terremotos,
fomes e pestes em vários lugares nessa época, sinais aterradores e grandes sinais
dos céus (Lc 21.11), eles não devem ficar desconcertados, pois essas coisas97
“devem” acontecer, mas elas ainda não significam o fim, nem provam que o fim virá
num tempo breve (Lucas!). Elas são apenas o princípio das dores. E a isso Jesus
acrescenta sua profecia acerca da perseguição que os discípulos deverão suportar
O FUTURO DO REINO DOS CÉUS 347

nas mãos dos homens e da falta absoluta de amor que haverá até mesmo entre
os relacionamentos mais próximos: muitos que, a princípio, pareciam amigos e
crentes, se tornarão traidores e inimigos.
Nesse contexto Marcos fala da pregação do evangelho a todas as nações, o
que deve ocorrer “primeiro”. Alguns autores não admitem dúvida quanto ao fato
de que essas palavras não podem pertencer a uma tradição que tenha sua origem
no próprio Jesus. Essa opinião se baseia parcialmente na objeção factual de que
o próprio Jesus não pensou na pregação do evangelho aos gentios.98 A isso é
acrescentado o argumentoyõrma/que considera o dito de Marcos 13.10 como des­
locado do conteúdo propriamente dito, uma inserção, como algo colocado “entre
parênteses”.99Uma comparação entre os sinóticos revela que há, de fato, variações
consideráveis na composição desse sermão, o que não nos permite ignorar a in­
fluência dos evangelistas na estrutura do todo. Isso se aplica igualmente a Marcos
13.10, como aparece claramente do fato que o mesmo pronunciamento ocorre
em Mateus num contexto diferente. Assim mesmo, esse dito não é um corpus
alienum num complexo de pensamentos totalmente diferente. Pelo contrário, ele
está de acordo com a tendência geral desse complexo de pensamentos, pois Jesus
prediz a seus discípulos que eles vão sofrer aflições, serão entregues aos tribunais,
açoitados nas sinagogas, levados diante de governadores e reis. Ainda que se pen­
sasse que essas coisas ocorreriam apenas dentro da comunidade ou nação judaica,
apesar da menção aos “gentios” aos quais os discípulos deveriam ser testemunhas
de Cristo (M t 10.18), o grande pressuposto deve ser, então, de qualquer modo,
que eles deverão passar por tudo isso como ministros do evangelho. Em Mateus
24.9 é dito que eles serão odiados por “todas as nações” e tanto Mateus 24.31
quanto Marcos 13.27 dizem que os anjos “reunirão os seus escolhidos, dos quatro
ventos, de uma a outra extremidade dos céus”. Portanto, é inconseqüente manter
que em Mateus ou Marcos - em vista do significado de Marcos 13.27 e Mateus
24.31, que serão logo a seguir analisados em mais detalhes100 - a predição acerca
da missão entre os gentios seja um elemento estranho no contexto do apocalipse
sinótico. Não há, portanto, qualquer dificuldade em se aplicar a essa passagem
a conclusão do anúncio das dores, a saber, que os discípulos experimentarão a
ajuda de Deus (Lc 21.18) e que eles serão salvos se perseverarem e se suportarem
tudo o que eles têm de suportar por amor a Jesus.
Embora a ligação cronológica entre os acontecimentos (guerras, etc.)
mencionados em primeiro lugar e as vicissitudes dos discípulos não seja clara,
as duas séries de acontecimentos devem ser consideradas como se sobrepondo
parcialmente. Marcos as menciona, uma depois da outra, sem indicar o tempo.
Mateus tem a palavra “Então” (v. 9, tote), “naquela ocasião”. Lucas, entretanto,
diz que a perseguição ocorrerá antes de “todas estas coisas”, isto é, antes que uma
nação se levante contra outra, etc. Talvez possamos explicar essa última indicação
348 A v in d a d o R e in o

de maneira a sugerir que a perseguição dos crentes já terá começado antes que
os acontecimentos mencionados tenham atingido seu clímax na última grande
tribulação.101 De qualquer modo, as duas séries de acontecimentos representam
o período do “princípio das dores” que precede o drama final, o qual, segundo
Jesus diz (temporariamente), não é um fim em si mesmo. Portanto, isso é uma
indicação clara de que ninguém deveria se precipitar em tirar conclusões à parte
da menção da pregação do evangelho entre todas as nações.
Todavia, com base nessas passagens há pouco a ser dito acerca da duração
dessa perspectiva futura. Greijdanus observou que, na pessoa dos discípulos, Jesus
se dirige a todos os crentes no decorrer dos séculos, até o fim dos tempos, e que,
portanto, não há necessidade de procurarmos por falsos mestres antes de 70 d.C.
O mesmo se aplica, na opinião dele, aos fenômenos aterrorizantes mencionados
em Lucas 21.11. Ainda de acordo com Greijdanus, Jesus cobre todos os séculos
e aqui, também, inclui o que ocorrerá no fim do mundo.102
Em nossa opinião, as passagens mencionadas acima não garantem essa
ideia de que Jesus está revelando uma perspectiva futura que inclui os séculos
por vir. Essas passagens também não significam “o princípio das dores” revelado
repetidamente no decorrer de uma longa série de séculos através de impérios
sempre novos e poderosos, sinais e falsos cristos. Sem dúvida, os discípulos são
advertidos a não esperarem o fim imediatamente, pois ainda há muitos aconte­
cimentos que precisam primeiramente ter lugar. M as é impossível inferir deles,
mesmo de modo aproximado, a “extensão” da perspectiva, quer ela vá se estender
por “anos” ou por “séculos”. Isso também se aplica ao pronunciamento de Marcos
13.10 (a pregação do evangelho a todas as nações). Não há qualquer dúvida de
que esse pronunciamento tem como objetivo enfatizar para os discípulos o fato
de que o fim não pode vir antes que o evangelho seja pregado a todas as nações.
E de nada adiantará restringir o propósito dessas palavras de um modo tão geral
que elas signifiquem apenas os gentios como os destinatários do evangelho, de
maneira a eliminar a questão do tempo.103 Muito pelo contrário, a categoria de
tempo é propositadamente expressa pelas palavras “'primeiro ’ (Marcos) e “então
virá ofim (Mateus). Esse é o motivo pelo qual devemos rejeitar a sugestão de que
a palavra “primeiro” significa “em primeiro lugar”, “em particular”, significando,
nesse contexto, que os discípulos deveriam lembrar, acima de tudo o mais, que
eles deveriam primeiro pregar o evangelho aos gentios quando fossem julgados
nos tribunais.104 Essa exegese parece por demais inspirada no desejo de eliminar
a ideia de tempo claramente presente no contexto. Essas palavras se referem à
pregação do evangelho a todas as nações e são, portanto, totalmente consistentes
com Mateus 26.13 (e paral.), onde Jesus fala do “todo o mundo”, e com a grande
comissão de Mateus 28.18-20, que também fala de “todas as nações” (cf. também
Lc 24.47; M c 16.15,20).
O FUTURO DO REINO DOS CÉUS 349

Isso tudo não significa, todavia, que seja possível tirar quaisquer conclusões
dessa comissão dada aos discípulos quanto à duração do período que precede a.pa­
rousia do Filho do Homem. O que é certo é que esse cálculo envolve muitos anos.
Mas é muito duvidoso que possamos ir além disso e dizer que, aqui, abre-se aos
leitores uma perspectiva que se estende por séculos. Além do mais, as palavras “todo
o mundo” e “todas as nações” não possuem um significado geográfico e etnológico
extensivo. Elas são uma indicação intensiva e resumida, como, por exemplo, M a­
teus 24.9, que diz que os discípulos terão de suportar o ódio de “todas as nações”,
e, ainda, como Paulo escreveu aos colossenses, mais ou menos trinta anos depois
disso, que o evangelho “em todo o mundo, está produzindo fruto e crescendo” (Cl
1.6). Podemos afirmar, sem dúvida alguma, que, à luz do cumprimento, ficou com­
provado que as palavras de Jesus tinham significado muito extenso - inclusive num
sentido geográfico e temporal. M as isso é algo bem diferente da afirmativa de que
elas abririam uma perspectiva que incluísse muitos séculos. Ao contrário, devemos
dizer que o fato (da pregação do evangelho a todas as nações) é aqui declarado
com grande força, mas que não era possível calcular as suas implicações temporais,
mesmo de maneira aproximada ou apriori, pelos discípulos ou pela igreja posterior,
visto que tais implicações não foram reveladas por Jesus (cf. também At 1.6ss).

c) O “abominável da desolação" e a "grande tributação"


Nossa linha de raciocínio se torna ainda mais convincente quando levamos
em consideração a descrição do “abominável da desolação” e a grande tribulação,
mencionados no apocalipse sinótico. Obviamente, essa parte (Mc 13.14-20;
M t 24.15-22; cf. Lc 21.20-24) não é mais uma parte do “princípio das dores”.
Nesse caso, é muito importante que saibamos o significado desse “abominável
da desolação”.
Muitos exegetas são da opinião de que, aqui, como no caso da “fuga da
Judeia”, não devemos pensar na dessacralização e devastação do templo e na
fuga que se seguiu da igreja cristã em Jerusalém. Schniewind, por exemplo, diz
que essa interpretação não é compatível com a simultaneidade dessa fuga com
o fim do mundo mencionado nesse contexto. Ele sustenta que o “abominável
da desolação” significa o Anticristo, que a fuga é um tema permanente na ex­
pectativa das últimas coisas, e que não deveríamos ser levados a pensar que isso
tudo se refere a algum acontecimento histórico.105 Lohmeyer também é dessa
mesma opinião. Ele, também, se refere ao Anticristo ao analisar o “abominável
da desolação” e, daí, infere que é impossível encontrar um datum cronológico
nesse pronunciamento.106
Outros exegetas também tendem a separar o que é dito sobre o “abominável
da desolação” de qualquer acontecimento histórico identificável. Schlatter, por
exemplo, que pensa dessa maneira, diz que a predição de Jesus não representa
350 A v in d a d o R e in o

uma concepção de profecia de acordo com a qual participa da onisciência di­


vina. Portanto, é duvidoso que as palavras em Daniel tenham sugerido a Jesus
algo diferente que não a profanação do Templo, a qual causa a sua desolação.
O modo pelo qual isso haveria de acontecer não é indicado. Todavia, Mateus
24.16ss sugere que essa profanação seria acompanhada pelo julgamento dos ju ­
deus e pelo dever dos discípulos de fugirem e se desligarem do vínculo nacional.
E impossível, a partir dos acontecimentos, inferir uma data nessa concepção da
profecia, pois não há, na história das guerras judaicas, qualquer data conhecida
que corresponda ao momento descrito na passagem, quando os cristãos tiveram
de fugir. Além do mais, essa história não pode ser identificada com total certeza
na história da nação judaica.107
Zahn é até mais enfático. Ele escreve que, se os leitores dos Evangelhos
tivessem prestado atenção à advertência de Jesus, “quem lê entenda”, jamais con­
cluiriam que a citação de Daniel predizia a devastação de Jerusalém. A passagem
de Daniel nada tem a ver com a destruição de Jerusalém, de acordo com Zahn,
mas apenas com a cessação do culto no templo e a sua dessacralização por um
governante deste mundo, o qual é hostil a Deus (Dn 11.30-39). A cena se passa em
Jerusalém. Essa manifestação da iniqüidade e da impiedade, as quais desencadeiam
a última tribulação contra a igreja, começará no lugar santo e será acompanhada
do aparecimento de falsos messias. Quando o Filho do Homem vier, ele será ime­
diatamente visto em todos os lugares da terra, mas sua manifestação exigirá uma
localidade definitiva. E, apesar dessa localidade não ser geograficamente definida,
o julgamento final atingirá como um raio onde a hostilidade contra Deus e sua
igreja houver atingido o clímax mencionado em Mateus 24.15 e ali, também,
estará o Juiz.108 Ao que transparece das referências que faz a 2Tessalonicenses
2.8, Zahn, à semelhança de Schniewind e outros, vê ali o Anticristo, apesar de
não o encontrar explicitamente mencionado em Mateus.
De acordo com Zahn, a passagem correspondente no sermão sobre o futuro
encontrado em Lucas 21.20-24 deve ser interpretada de um modo inteiramente
diferente. Apesar de, em muitos aspectos, essa passagem usar palavras semelhantes
às de Mateus e Marcos na descrição da fuga dos que se encontram na Judeia,
seu conteúdo é tão diferente, como Zahn argumenta, que comparar os detalhes
só trará confusão, pois, em Mateus e Marcos, Jesus não fala da destruição de
Jerusalém, enquanto, em Lucas, ele o faz, pois Lucas 21.20 diz explicitamente:
“Quando, porém, virdes Jerusalém sitiada de exércitos, sabei que está próxima
a sua devastação”. A angústia mencionada em Lucas 21.23, portanto, tem a ver
somente com o que aconteceu na terra dos judeus (epitesges), durante a queda de
Jerusalém. O grandioso período final, do qual o versículo 25 enumera os sinais, é
separado da queda de Jerusalém pelos “tempos dos gentios” que devem primeiro
ser cumpridos (v. 24). A indicação “até que os tempos dos gentios se completem”
O FUTURO DO REINO DOS CÉUS 351

não é uma decoração acessória na margem da descrição do julgamento de Jeru­


salém, mas uma indicação clara do fim do curso da história deste mundo.109
Lagrange nos dá outra explicação. De acordo com ele, o “abominável da
desolação” também se aplica à queda de Jerusalém, mas ele não pensa que a
grande tribulação em Mateus e Marcos se refira aos acontecimentos durante a
devastação de Jerusalém e ao que a precede, e sim às grandes calamidades que
precedem a segunda vinda de Cristo, mencionadas em Marcos 13.24ss e Mateus
24.29ss.110 Entretanto, ele explica Lucas da mesma maneira que Zahn. Aqui, a
angústia e a aflição (anagke, 21.23) são entendidas como uma referência à queda
de Jerusalém. Os acontecimentos escatológicos começam somente depois dos
“tempos dos gentios” (v. 25).111
Em nossa opinião, não se pode negar que o “abominável da desolação”
mencionado em Marcos e Mateus não se refere explicitamente (como ocorre
em Lucas) à destruição de Jerusalém. Estritamente, Jesus fala aqui somente da
dessacralização do lugar santo (esse é também o sentido da expressão velada
em Marcos [situado] “onde não deve estar”, M c 13.14). Além do mais, o termo
“abominável” está totalmente dentro da esfera religiosa. No Antigo Testamento,
a palavra correspondente indica um ídolo, uma imagem ou objeto idolátrico (cf.
IRe 11.5,7; 2 Re 23.13,24; Is 66.3; e outros lugares). A qualificação “desoladora”
indica o efeito dessa abominação. Ela implica a profanação, a devastação do lugar
onde está situada. Isso não exige necessariamente que o significado seja uma
derribada violenta do Templo. O termo também pode ser entendido no sentido
moral ou religioso.
Por outro lado, a observação de Zahn, de que ninguém que realmente “presta
atenção” ao que lê na profecia de Daniel pensaria que a citação é uma referência
à destruição de Jerusalém, não tem nada a ver com o ponto aqui, em nossa opi­
nião. Pois, apesar de Daniel 11.31 (e 12.11) não falar especificamente da queda
de Jerusalém, ali, também, a ocorrência da terrível abominação é precedida pela
vinda de forças militares (dos gentios). A profanação espiritual é acompanhada
pela manifestação de poder militar.
Ao anúncio do abominável da desolação deve ser acrescentada a advertên­
cia de que aqueles que estiverem na Judeia devem fugir para os montes. Essa
indicação local e essa advertência para a fuga se encaixam melhor na explicação
de que, nesse caso, antes de tudo, está sendo apontado para uma inimizade da
qual se pode escapar fugindo, e que essa hostilidade em particular se manifes­
tará no centro da vida judaica enquanto Jerusalém estiver sitiada. Isso não pode
ser satisfatoriamente explicado por aqueles que pensam somente na vinda do
Anticristo e não num acontecimento histórico definido. Além disso, os detalhes
que são acrescentados à descrição a respeito das mulheres “que estiverem grávidas
e que amamentarem naqueles dias”, do dia de sábado e sobre o inverno, em nossa
352 A v in d a d o R e in o

opinião, referem-se primariamente a uma série de acontecimentos distintos da­


queles que são característicos do Anticristo.112 Em vez da expressão “abominável
da desolação”, Lucas traz uma descrição clara do cerco de Jerusalém por exércitos
hostis. Podemos admitir que Zahn está certo ao dizer que uma comparação dos
detalhes do quadro do futuro encontrados, por um lado, em Mateus e Marcos
e, por outro, em Lucas, pode ser confusa, já que Lucas exibe um certo nível de
independência.113 Mas, em nossa opinião, seria ir longe demais ignorar o fato
de que, aqui, a descrição que Lucas nos dá está estreitamente ligada com a de
Marcos e Mateus. Para comparar:

Mc 13.14ss (Mt 24.15ss.): “Quando, Lc 21.20ss: “Quando, porém, virdes Je­


pois, virdes o abominável da desolação rusalém sitiada de exércitos, sabei que
de que falou o profeta Daniel, no lugar está próxima a sua devastação.
santo (quem lê entenda), então, os que es­ Então, os que estiverem na Judeia, fujam
tiverem na Judeiafujam para os montes". para os montes”.

Em nossa opinião, a identificação literal da parte inicial dessas passagens,


“quando, pois/porém, virdes", e a concordância verbal entre elas na exortação para
que fujam e escapem da Judeia para os montes provam que Lucas não se refere
aqui a nenhum outro acontecimento que não aquele mencionado por Marcos e
Mateus, o que chamam de o “abominável da desolação”. Aparentemente, Lucas
quis interpretar Marcos e Mateus para seus leitores. Só poderemos separar a
versão de Lucas da de Mateus e Marcos se assumirmos uma divergência entre
os sinóticos com relação aos acontecimentos que tornam essa fuga necessária.
Porém, em nossa opinião, Lucas contém forte apoio para a concepção de que,
pelo menos em primeira instância, Marcos e Mateus também falam de uma
ameaça hostil à cidade e ao Templo e não simplesmente da ação do Anticristo.
Em nossa opinião, a exegese “histórica” do abominável da desolação não pode
ser eliminada nesse caso.
Além disso, a opinião de que, aqui, o que se tem em vista é somente a
atividade do Anticristo deve levar em conta objeções importantes. Falando de
maneira estrita, só poderíamos falar de uma referência ao Anticristo com base na
forma masculina do particípio situado (hestekota) em Marcos. Então, nesse caso,
já Mateus não teria entendido isso. Acrescente-se, ainda, que não há nada na
expressão “abominável da desolação” que sugira uma única pessoa proeminente.
Muito pelo contrário, o que se segue imediatamente após essa “tribulação” fala
de falsos cristos e falsos profetas (plural! - M c 13.22; M t 24.24). Isso exclui a
concepção de que a descrição em Marcos, como um todo, é determinada pela
pessoa do Anticristo. Ela não pode ser baseada na forma masculina do particípio
usada aqui, por mais impressionante que esse uso seja.
O FUTURO DO REINO DOS CÉUS 353

Isso não diminui o fato de que a maneira como Mateus e Marcos falam
da causa da tribulação vindoura é muito menos concreta e muito mais voltada
para a dessacralização do Santo dos Santos do que Lucas. Este, por sua vez, fala
do cerco de Jerusalém expressis verbis e exclusivamente. Não podemos, portanto,
nos satisfazer com a ideia de que a profecia de Marcos e Mateus sobre o “abo­
minável da desolação” se cumpriu somente na queda de Jerusalém. Ê verdade
que a cor local e histórica (Judeia, inverno, sábado, mulheres, etc.) no quadro
dos acontecimentos aterrorizantes da abominação vindoura sugere que uma
aflição catastrófica deve ser esperada na Judeia, uma aflição que será um grande
desastre para a nação judaica. Essa é a justificativa para a descrição que Lucas faz
do cerco de Jerusalém por tropas hostis. Ainda assim, devemos manter enfati­
camente que o que é dito em Marcos e Mateus sobre esses acontecimentos não
se cumpriu totalmente na queda de Jerusalém, pois é questionável se a descrição
do “abominável da desolação” pode ser considerada como tendo se cumprido
exaustivamente com a destruição do Templo em 70 d.C. A própria expressão, ao
contrário, sugere uma ação consciente e mais deliberadamente antirreligiosa, na
qual a inimizade ao Deus da revelação atinge o seu clímax e adquire sua forma
concreta. Como geralmente se admite, não foi encontrada um exemplo definido
de uma dessacralização do Santo dos Santos que seja tão blasfemo e idolátrico
nos acontecimentos em torno do ano 70 d.C. Essa é a razão pela qual a profecia
sobre o abominável da desolação às vezes tem sido aplicada à intenção de Calígula
de colocar uma estátua de si próprio noTemplo de Jerusalém, em 40 d.C .114M as
essa opinião deve ser totalmente rejeitada, pois transforma essa profecia num
incidente supostamente ocorrido no tempo após a morte de Jesus, que não teve
qualquer efeito sobre o Templo em si e que não tem qualquer apoio do contexto.
Isso não significa negar que os acontecimentos que tiveram lugar em torno do ano
70 d.C. são, de maneira geral, um cumprimento parcial da profecia, no que tange
à destruição do Templo, mas não nos parece que se aplica a alguma profanação
blasfema do Templo, pelo menos quanto ao que sabemos.
E ainda mais impressionante que, tanto em Marcos quanto em Mateus, a
tribulação com respeito a essa abominação é claramente ligada com os últimos
dias. E a tribulação que foi anunciada em Daniel 12.1ss, com praticamente as
mesmas palavras ( “angústia, qual nunca houve...”).Também a seguinte descrição
dos sinais no céu (cf. M t 24.29, “Logo em seguida à tribulação daqueles dias, o sol
escurecerá, a lua não dará a sua claridade, as estrelas cairão do firmamento, e os
poderes dos céus serão abalados”) tem claramente um caráter apocalíptico. Ê ver­
dade que Lagrange tem tentado separar a profecia do “abominável da desolação”
da profecia sobre a grande tribulação aplicando a primeira exclusivamente à queda
de Jerusalém e à última exclusivamente à vinda do Filho do Homem. M as esse
esforço deve ser considerado um fracasso, pois o anúncio da grande tribulação
354 A v in d a d o R e in o

está ligado, numa relação de causa e efeito, com o que os fugitivos da Judeia
terão que sofrer por causa dos acontecimentos associados com o “abominável da
desolação” (“porque aqueles dias serão de tamanha tribulação como nunca houve
desde o princípio do mundo”, M c 13.19, etc.). Em nossa opinião, é impossível
afirmar, sobre qualquer base real, que Mateus 24.21 e Marcos 13.19 são o início
de algo novo na passagem.115
Tudo isso torna impossível considerar a destruição da cidade e do Templo
no ano 70 d.C. como o cumprimento completo da profecia sobre o “abominá­
vel da desolação”. N a realidade, esse entendimento da profecia é apenas uma
conclusão exegética à luz do seu cumprimento. Ela tem pouco apoio da pas­
sagem em Mateus e Marcos (cf. acima). E, com relação a Lucas, ele fornece as
provas, é verdade, de que a profecia em Mateus e Marcos se refere ao cerco de
Jerusalém por exércitos hostis - o que, em nossa opinião, só pode se referir ao
cerco da cidade feito pelos exércitos romanos. M as isso não é tudo, pois Lucas
faz uma distinção no que em Mateus e Marcos é uma unidade. Primeiro, Lucas
não menciona o “abominável da desolação”, mas fala do cerco de Jerusalém.
Além disso, em Lucas, a tribulação não tem o tom escatológico de Mateus e
Marcos. Ele não fala da thlipsis (a palavra que ocorre em Dn 12), mas de anagke.
Lucas também não nos dá uma descrição dessa tribulação usando a linguagem
de Daniel. Ele claramente restringe essa aflição ao que ocorre durante o cerco
de Jerusalém e depois. “Porque haverá grande aflição na terra e ira contra este
povo. Cairão a fio de espada e serão levados cativos para todas as nações; e,
até que os tempos dos gentios se completem, Jerusalém será pisada por eles”
(Lc 21.23-24). Não há, aqui, qualquer menção do traço escatológico acerca da
“abreviação dos dias”, como ocorre em Mateus e Marcos. Lucas também não
faz a ligação temporal imediata entre a aflição e os sinais cósmico-escatológicos
nos céus. Entre eles está “os tempos dos gentios”, que, em Lucas, de qualquer
modo, nos impede de abarcar num relance a tribulação e a parousia do Filho do
Homem. Lucas, desse modo, limita a perspectiva à destruição de Jerusalém e
à vinda do Filho do Homem. Ele abre a perspectiva escatológica somente no
versículo 25 e, a partir daí, não fala mais da “terra” (v. 23), mas do “mundo” (v.
26). Em Mateus e Marcos, tudo isso é muito mais difuso. Eles não fazem um
anúncio distinto do cerco e da queda de Jerusalém e, sim, uma conexão mais
direta com os acontecimentos escatológicos do período final. Só há uma maneira
de explicarmos isso, que é a fusão de dois temas, em Mateus e Marcos, que são o tema
da destruição do Templo e a angústia nacional da naçãojudaica e o tema do ponto de
vista escatológico, que repetidamente transpira de todas as partes. Esses dois temas
só podem ser distinguidos entre si aposteriori, isto é, à luz de seu cumprimento.
Todavia, devemos deixar sem resposta a pergunta sobre se devemos explicar de
modo semelhante a diferenciação mais clara que Lucas faz desses dois temas
0 FUTURO DO REINO DOS CÉUS 355

(isto é, do ponto de vista do cumprimento). D e qualquer modo, ele contrai a


perspectiva por um lado e a expande por outro.
Aqui pode ser levantada a questão sobre se, em Mateus e Marcos, a pers­
pectiva total do futuro é restrita à terra dos judeus. Os elementos escatológicos e
particularistas (Templo, Judeia) estão, de fato, ligados de modo estreito e indis­
sociável, mas eles são também traços universalistas. Os sinais no céu não podem
continuar a ser considerados como algo exclusivamente dentro dos limites da
terra dos judeus. E quando o sinal do Filho do Homem for visto,116 “todos os
povos da terra se lamentarão” e “ele enviará os seus anjos, com grande clangor de
trombeta, os quais reunirão os seus escolhidos, dos quatro ventos, de uma a outra
extremidade dos céus” (M t 24.30-31). A escatologia, aqui, como tal, é universa-
lista; porém, em Mateus e Marcos, ela é descrita do ponto de vista particularista.
Somente na extremidade final o particular se funde com o universal.
Em nossa opinião, é essa fusão que se constitui no centro do problema do
apocalipse sinótico. O futuro grandioso é descrito do ponto de vista da Judeia
e de Jerusalém, pelo menos por Mateus e Marcos, mas essa descrição implica
uma dinâmica universal que não pode ser entendida dentro desses limites. Esse
é o motivo pelo qual de nada adiantará dizer que as profecias de Jesus têm uma
tendência fortemente particularista e são muito limitadas. Num certo sentido,
isso é inegavelmente verdadeiro, mas essas profecias estão relacionadas com uma
área espacial e temporal muito mais ampla do que a da sua aplicação primária,
algo que pode ser visto não apenas à luz de seu cumprimento como também em
decorrência de seu conteúdo intrínseco. Essa é a razão pela qual a abominação
da desolação não pode ser restrita apenas ao Templo. Ela tem um sentido muito
mais amplo, que se aplica à ação do Anticristo, embora este último não seja
mencionado. E por isso que a fuga da Judeia é, basicamente, uma tribulação es­
catológica que não tem a ver somente com os judeus, embora apenas eles sejam
mencionados.
Sem dúvida alguma, é possível dizer que as profecias de Jesus seguem cer­
tas categorias que acabam formando um obstáculo para que se tenha uma visão
distante e clara do futuro, mas deve-se acrescentar, logo em seguida, que esse
fenômeno está totalmente de acordo com a natureza da profecia, pois os profetas
não falam do ponto de vista da onisciência divina - nisso concordamos com
Schlatter - e não tinham todos os detalhes do futuro à sua disposição. Eles tes­
tificam da certeza da vinda de Deus, sem distinguir todas as fases dessa vinda.
Isso tem sido corretamente chamado do caráter abrangente da profecia. Esse
termo indica o fenômeno freqüente de que vários acontecimentos futuros (p. ex.,
a salvação messiânica ao final de uma crise ou tribulação nacional particular),
cujos cumprimentos estão separados por séculos, são colocados lado a lado, ou
imediatamente em seguida um ao outro, no quadro profético do futuro. Isso
356 A v in d a d o R e in o

mostra a limitação da profecia com respeito à visão do futuro. Com frequência,


não há uma perspectiva. M as, por outro lado, isso revela a coerência e a unidade
real das várias etapas da obra divina.117
Em nossa opinião, essa concepção é a abordagem mais próxima ao caráter do
apocalipse sinótico em Mateus e Marcos. De um lado, ela mostra o caráter vago e
limitado do futuro que é apresentado neles e, de outro, faz justiça ao sentido mais
amplo implícito (que talvez seja oculto ao escritor) na profecia, que transcende
o sentido literal das palavras. Em nosso resumo do caráter das profecias de Jesus
sobre o futuro, retornaremos a esse ponto (cf. §51).

48. Os pronunciamentos conhecidos como "limite de tempo''

Finalmente, torna-se necessário discutir em separado aqueles pronuncia­


mentos aos quais se recorre para justificar o conceito de que Jesus anunciou o
futuro grandioso como um acontecimento que seus discípulos e seus contem­
porâneos viveriam o suficiente para ver acontecer. Duas declarações desse tipo
ocorrem num contexto tipicamente escatológico, a saber, Marcos 13.30 (e paral.)
e Mateus 10.23, enquanto outra nos chegou em conexão com o primeiro anúncio
que Jesus fez de sua paixão, isto é, Marcos 9.1 (e paral.).
Começaremos com um relevante pronunciamento de Jesus no apocalipse
sinótico, Marcos 13.30 (M t 24.34; Lc 21.32). Em todos os três Evangelhos, essa
passagem é precedida pela “parábola da figueira”. Do mesmo modo que os discí­
pulos podiam perceber que o verão se aproximava quando os ramos da figueira se
renovavam e as folhas brotavam, também deveriam saber que a vinda de Cristo
“estava próxima, às portas” (Lucas traz “está próximo o reino de Deus”) quando
vissem “tudo isto” acontecer (como está em Marcos e Mateus; Lucas traz somente
“estas coisas”). E claro que a expressão “tudo isto” e “estas coisas” se referem aos
acontecimentos que precedem a parousia do Filho do Homem e a vinda do reino
em glória, conforme descrito pelos três evangelistas (cf. também Lc 21.28). Esses
acontecimentos, portanto, são, mais uma vez, claramente avaliados e indicados
como sinais que nos capacitam a reconhecer o fim.
Essas palavras, aparentemente, pressupõem, no mínimo, que o público a quem
Jesus se dirige viveria para ver a totalidade do complexo de acontecimentos anuncia­
dos por ele. Porém, não podemos ir além disso. A frase “quando virdes acontecerem
estas coisas” (hotan idete) não pode ser contada como evidência de que eles de fato
veriam essas coisas. Ela indica uma possibilidade, mas não uma realidade.
M as o que dizer do pronunciamento, em todos os três Evangelhos, que diz:
“Em verdade vos digo que não passará esta geração sem que tudo isto aconteça”
(Lucas diz somente “estas coisas”)?
O FUTURO DO REINO DOS CÉUS 357

Já mencionamos a opinião daqueles que explicam “geração” literalmente


como “geração” e “todas estas coisas” como os sinais e a vinda do Filho do H o ­
mem. Então, eles chegam à conclusão de que Jesus havia se enganado quanto à
perspectiva futura.118
No entanto, há outras interpretações que entendem “esta geração” como
algo diferente dos contemporâneos de Jesus ou restringem a expressão “todas
estas coisas” somente a uma parte dos acontecimentos preditos por Jesus (ou seja,
aquelas coisas que a geração daquela época de fato presenciou).
Essa primeira opinião já havia sido sustentada por Jerônimo, que interpretou
“esta geração” como a raça humana em geral ou os judeus em particular.119Alguns
pensam que a expressão se refere à geração de crentes.120 Entre exegetas mais
recentes, Schniewind, por exemplo, quer levar em conta a possibilidade de que
Jesus não quis se referir aos seus contemporâneos com a expressão “esta geração”,
mas ao povo de Israel. Jesus, supostamente, quis dizer que o julgamento não
aconteceria a Israel antes de acontecer às demais nações. Isso sugere que haverá
uma possibilidade de Israel se converter. Isso abriria uma expectativa que, mais
tarde, é desenvolvida por Paulo em Romanos l l . 121
A segunda opinião que mencionamos rejeita essa extensão do conceito
“esta geração”. Considera-se que ela inclui exclusivamente a geração que vivia
na época em que essas palavras foram proferidas.122 A expressão “todas (estas)
coisas”, entretanto, recebe uma interpretação limitadora. Nessa linha, Greijdanus,
por exemplo, escreve que esse “todas”, obviamente, não é ilimitado; não é tudo o
que deve acontecer ao mundo de acordo com o conselho divino, não é a totali­
dade da história do mundo, mas somente o que o Senhor anuncia com respeito
à geração que ele menciona aqui. “Todas”, portanto, refere-se somente às coisas
que têm a ver diretamente com essa geração, especialmente o que Jesus indicou
e predisse nos versículos 20-24, ou seja, toda a tribulação que deve sobrevir ao
povo judeu daquela época e que os destruiria e espalharia.123 À luz dessa opinião,
esse “obviamente” de Greijdanus aparentemente significa “pois de outra maneira
esse pronunciamento não poderia ter se cumprido”. Portanto, para ele, trata-se de
um explicatio ex eventu (explicação que é dada depois da acorrência do evento).
Em nossa opinião, esta última opinião, que também é defendida por estu­
diosos como Plummer, Zahn, Wohlenberg e Lagrange com algumas pequenas
variações, não faz plena justiça às palavras claras da passagem. Pode haver alguma
dúvida sobre se as palavras “todas [estas] coisas” indicam tanto o conjunto de
sinais como a parousia do Filho do Homem. A frase no versículo 33 de Mateus
24, “Assim também vós: quando virdes todas estas coisas, sabei que está próximo,
àsportas”, aparentemente favorece a interpretação de que “todas estas coisas” se
referem aos sinais. Por outro lado, o que vem a seguir, em Mateus 24.34, bem
como o que se segue na passagem paralela de Marcos 13.30, claramente se refere
358 A v in d a d o R e in o

também &parousia, “M as a respeito daquele dia e hora ninguém sabe, etc.”. Por­
tanto, em nossa opinião, restringir de modo rigoroso as palavras “todas [estas]
coisas” apenas aos sinais, com a exclusão da parousia propriamente dita, não se
justifica. Aqui, Jesus faz um resumo de todos os acontecimentos anunciados por
ele. M as, mesmo se “todas estas coisas” seja interpretado exclusivamente como
o que precede a vinda do Filho do Homem, não há qualquer razão na passagem
para se fazer uma restrição a mais nesses acontecimentos e fixar o limite para a
destruição de Jerusalém ou ao que se tornou manifesto nas perseguições e afli­
ções do século I o. Já vimos que, em Mateus e Marcos, a profanação do Templo
e a grande tribulação escatológica final não podem ser separadas uma da outra.
Seria, portanto, arbitrário voltar a Marcos 13.4 para encontrar a explicação de
Marcos 13.30, como é feito, por exemplo, por Lagrange e Wohlenberg, pois,
então, torna-se necessário separar aquilo que se funde na passagem. E, em Lucas,
as coisas não são diferentes de modo algum. Ele distingue mais claramente entre
a destruição de Jerusalém e os sinais escatológicos após “os tempos dos gentios”
(21.24). Porém, em nosso entendimento, é totalmente arbitrário se recusar a con­
siderar esses sinais nos versículos 31 e 32. A passagem diz explicitamente “estas
coisas” e “ tudo isto”, em ambos os casos se referindo claramente a tudo o que veio
antes. Consequentemente, quaisquer que sejam as dificuldades oferecidas por
essa passagem, não é permissível, segundo nosso entendimento, livrar-se delas
por meio de restrições arbitrárias ao sentido do texto.
A questão que permanece, entretanto, é quanto ao sentido de “esta geração”.
Que ela contém uma indicação da existência permanente do povo judeu - algo
que Schniewind considera plausível - até a segunda vinda de Jesus e que ela,
igualmente, traz implícita certa expectativa de salvação, parece-nos forçado. Não
vemos como enxergar esse sentido especial na passagem. De qualquer modo, se
for assim, foi expresso de maneira muito obscura e incidental. Em nossa opinião,
há apenas duas explicações possíveis. Primeira, que Jesus, aqui, fala de seus con­
temporâneos e, portanto, diz que aquela geração, a geração que estava viva nos
seus dias, testemunharia tudo o que ele havia predito quanto ao futuro.
De acordo com esse ponto de vista - considerado como inevitável pelos
exegetas que rejeitam totalmente a escatologia exclusiva124- há autores que falam
de uma Perspektivenirrtum (erro de perspectiva) que deve ser explicado psico­
logicamente. Num sentido mais profundo, não seria propriamente um erro se,
juntamente com os evangelistas, a declaração de Jesus fosse aplicada à sua morte
como o momento do cumprimento. Mas, em nossa opinião, essa explicação não
representa o sentido da passagem e nem o dos evangelistas. Outros falam de
um erro que, apesar de ser insignificante na pregação de Jesus, é difícil conciliar
plenamente com outras passagens que indicam que a data final para a parousia
é desconhecida.125
O FUTURO DO REINO DOS CÉUS 359

Em nossa opinião, se “esta geração” for considerada como significando uma


indicação temporal é necessário levar em consideração o caráter abrangente da
profecia. Então, as palavras “todas estas coisas” devem ser concebidas como a
unidade da obra divina no futuro, da qual o Espírito profético dá testemunho,
sem distinção de tempos diferentes, nos quais essa obra se cumprirá, tornando-se
clara à consciência profética subjetiva.326 Em nossa discussão de Mateus 10.23 e
Marcos 9.1 (e paral.), retornaremos a esse ponto.
Um estudo mais completo e um exame mais cuidadoso dessa passagem,
entretanto, favorecem um entendimento diferente. A questão importante é se
Jesus menciona uma data terminal definida ou se ele fala somente da certeza das
coisas que predisse. A suposição de que ele menciona aqui uma data definida para
o fim está, de maneira surpreendente, ligada com o fato de que logo em seguida
ele diz, “Mas a respeito daquele dia e hora ninguém sabe”. Não precisamos falar
aqui de uma discrepância (como Kümmel fala) porque podemos explicar a passa­
gem dizendo: “M as a respeito da data e do momento exato na História ninguém
sabe”. Todavia, a força dessa declaração ficaria extremamente enfraquecida se a
restringirmos a um cumprimento para a geração contemporânea de Jesus. Além
disso, o versículo intermediário, “Passará o céu e a terra, porém as minhas palavras
não passarão”, dificilmente se encaixaria entre esses dois versículos se os mesmos
estivessem falando do tempo do cumprimento. Esse é o motivo, em minha opinião,
pelo qual há muito a ser dito em favor do entendimento de que Marcos 13.30
(e paral.) é um pronunciamento sobre a certeza do cumprimento, sem qualquer
limitação adicional de tempo. Nesse caso, não devemos atribuir um sentido tem­
poral às palavras “esta geração”, mas concebê-las no sentido desfavorável que ela
tem em outras ocorrências, como por exemplo, quando se refere às pessoas que
tinham a mesma disposição mental hostil a Jesus e às suas palavras.127
Então, o sentido desse versículo é claro e o versículo seguinte, que fala do
passamento dos céus e da terra, encaixa-se de forma muito natural. Jesus testifica
que aqueles que agora se afastam dele em incredulidade e impiedade e que não
creem em suas palavras não escaparão aos julgamentos anunciados por ele, mas
irão conhecê-los por experiência própria. “Passar”, aqui, significa “tornar-se parte
do passado de modo que seu significado se foi e não é mais necessário levá-lo em
consideração”. Esse sentido é claramente percebido pelos versículos seguintes,
nos quais o termo é usado duas vezes. Portanto, nessa passagem, Jesus não fala
“desta geração” com o propósito de indicar o tempo dos acontecimentos esca-
tológicos futuros, mas com o objetivo de dar certeza absoluta de que todos que
agora rejeitam as suas palavras serão inevitavelmente envolvidos no cumprimento
delas. As palavras não têm como objetivo indicar uma geração ou uma época
definida, mas uma mentalidade objetável. Consequentemente, em nossa exegese,
esse versículo não dá qualquer apoio ou fornece qualquer ponto de partida para
360 A v in d a d o R e in o

a determinação de um limite de tempo. E, nessa interpretação, os versículos


seguintes se encaixam perfeitamente, “Passarão o céu e a terra, porém as minhas
palavras não passarão”.
Se alguém quiser um paralelo real para esta interpretação do pronunciamento
em Marcos 13.30, o mesmo pode ser encontrado na conclusão do lamento de
Jesus sobre Jerusalém: “Declaro-vos, pois, que, desde agora, já não me vereis, até
que venhais a dizer: Bendito o que vem em nome do Senhor!” (M t 23.39; cf. Lc
13.35). E também nas palavras de Jesus perante o Sinédrio, “entretanto, eu vos
declaro que, desde agora, vereis o Filho do Homem assentado à direita do Todo-
Poderoso e vindo sobre as nuvens do céu” (M t 26.64; M c 14.62; em Lucas, as
palavras “vereis” estão ausentes). Essas palavras também devem ser consideradas,
em nossa opinião, como o anúncio do julgamento contra o povo judeu e seus
líderes, sem inferir delas que os judeus testemunhariam aparousia do Filho do
Homem antes da morte deles.
Em segundo lugar, devemos discutir as palavras bem conhecidas de Jesus ao
final da sua declaração sobre a perseguição e o sofrimento de seus discípulos: “Em
verdade vos afirmo que, dos que aqui se encontram, alguns há que, de maneira
nenhuma, passarão pela morte até que vejam ter chegado com poder o reino
de Deus” (Mc 9.1). Mateus traz: “Até que vejam vir o Filho do Homem no seu
reino... (isto é, domínio real, en basileia autou, 16.28). Lucas diz simplesmente:
“até que vejam o reino de Deus” (9.27).
O sentido da primeira parte, ao contrário de Marcos 13.30 (e paral.), difi­
cilmente suscitaria o surgimento de opiniões contrárias sérias. A primeira parte
declara que um número restrito daqueles a quem Jesus se dirige não morreria
antes que as coisas mencionadas na segunda parte se cumprissem.
Poderíamos perguntar por que Jesus fala de “alguns” e não de “todos”. Isso
pode se dever ao fato de que as coisas anunciadas na segunda parte ocorreriam
somente depois que a maior parte deles tivesse morrido, ou ainda ao fato de que
seria permitido apenas a uns poucos daqueles que estavam vivos testemunhar
os acontecimentos. Assim, somos confrontados com a questão do sentido da
segunda parte. Nesse caso, também, existem intérpretes que querem restringir
o sentido da “vinda do reino de Deus com poder” ou do “Filho do Homem em
seu reino” (i.e., dignidade real) a um ou mais acontecimentos específicos os quais
os contemporâneos de Jesus ainda iriam testemunhar.
Assim, por exemplo, Plummer escreve que, da primeira parte de Lucas 9.27,
segue-se que a busca do reino significa um privilégio especial para algumas pessoas
em contraste com o que todos os membros do público iriam experimentar. Esse
é o motivo pelo qual, na sua opinião, devemos pensar, aqui, na transfiguração
no Monte, que foi testemunhada somente por uns poucos, ou na destruição de
Jerusalém, que seria presenciada somente por alguns presentes que viveriam tempo
O FUTURO DO REINO DOS CÉUS 361

suficiente para isso. De acordo com Plummer, uma referência direta à.parousia está
excluída nesse caso pelo fato de que nenhum dos presentes dentre o público de
Jesus viveria o suficiente para testemunhá-la.128 Também entre intérpretes mais
recentes há aqueles que não querem explicar a segunda parte como se referindo
ao advento final do reino. Consequentemente, eles divergem quanto ao sentido
exato da passagem. Greijdanus escreve que o acontecimento predito em Lucas
9.27 “haveria de se fazer manifesto dentro de poucas décadas”, como transparece
das palavras “alguns há dos que aqui se encontram que, de maneira nenhuma,
passarão pela morte até que vejam o reino de Deus”. “Então”, prossegue Greijda­
nus, “essa vinda do governo de Deus não pode se referir à ressurreição de nosso
Senhor, nem ao dom do Espírito Santo, que aconteceria naquele mesmo ano...
e nem pode se referir à vinda do nosso Senhor em julgamento, a qual está, até
agora, suspensa... e nem também pode significar a poderosa expansão do evan­
gelho, pois isso aconteceu em poucos anos, comparativamente falando... devemos
pensar aqui sobre a destruição de Jerusalém... nessa destruição, Deus revelou seu
domínio real em seu julgamento, um precursor do julgamento no último dia”.129
Outros consideram ainda a possibilidade de que Jesus quis dizer, com a vinda do
reino com poder (Mc 9.1), a pregação do evangelho com os sinais miraculosos
que acompanharam a fundação da igreja,130 frequentemente incluindo também
o dom do Espírito Santo131 ou a ressurreição.132 Há outros, ainda, que explicam a
vinda do Filho do Homem (en tei basileia autou), ou ver a basileia de Deus vindo
com poder como uma referência à vinda de Cristo em sua igreja.133 Outros, ainda,
combinam as diferentes concepções e interpretam Marcos 9.1 (e paral.) como
uma profecia sobre o Pentecostes, bem como sobre a destruição de Jerusalém, a
expansão do evangelho e a conversão dos gentios.134
Em nossa opinião, as explicações acima mencionadas mostram o quanto
devemos ser cuidadosos em nos guardar de interpretar o sentido de um evangelista
diferentemente do outro, bem como da dominação de nossa perspectiva pessoal
sobre partes do texto. De acordo com Lohmeyer, Lucas deve ser entendido num
sentido não escatológico, em oposição a Mateus e Marcos. De acordo com Zahn,-
é Marcos quem deve ser interpretado desse modo em oposição a Mateus e Lucas.
Lagrange diz que Mateus fala da igreja, algo que não pode ser dito de Marcos e
Lucas. De acordo com Grosheide, é precisamente em Marcos e Lucas que essa
interpretação é a mais óbvia, em oposição a Mateus.
Segundo nos parece, será impossível eliminar, sem arbitrariedade, a vinda
escatológica do reino e do Filho do Homem da explicação de qualquer das três
passagens paralelas. Consideramos a restrição que é feita aos pronunciamentos de
Jesus sobre a revelação do Filho do Homem e do reino como uma referência ao
período anterior \parousia como uma violação inaceitável ao sentido claramente
manifesto da passagem nesse contexto. Em todos os três Evangelhos, a descrição
362 A v in d a d o R e in o

da parousia precede imediatamente essa passagem. Esse é o motivo pelo qual esse
pronunciamento não pode ser separado da parousia. A indicação acerca dela está
claramente em primeiro plano. Além disso, o sentido das palavras como tal prova
isso, como entendemos, especialmente, em Mateus e Marcos. Mateus diz “até
que, vejam vir o Filho do Homem no seu reino”. Não há uma única passagem na
tradição sinótica em que essa frase signifique a exaltação do Filho do Homem
antes (à aparte) da parousia. Por esse motivo, a parousia não pode deixar de ser
considerada em Mateus 16.28. A sugestão de Lagrange de que en basileia autou
é uma indicação da igreja deve ser rejeitada, visto que “igreja” e “reino” não se
fundem em nenhum lugar nos Evangelhos sinóticos.135 E, então, en basileia autou
não pode ser interpretada, nesse caso, num sentido espacial. A expressão indica
a dignidade real do Filho do Homem, como todos os intérpretes não católicos
romanos admitem.
O mesmo vale para Marcos 9.1, no que se refere a esta questão. Em nossa
opinião, “ter chegado com poder o reino de Deus” se refere explicitamente à
manifestação da glória do reino da qual, outra vez, é impossível separar a vinda
final do reino. E a interpretação de que as palavras en dunamei indicam uma fase
particular do desenvolvimento da vinda do reino divino, como Zahn diz, não faz
o menor sentido para nós. Essa interpretação tornaria necessário que assumísse­
mos, contrariando o significado das atividades anteriores de Jesus na terra, que o
reino estaria para se manifestar em poder somente no período vindouro e antes
de sua última vinda. Essa posição contraria o testemunho das Escrituras como
um todo no que se refere à revelação do poder de Deus exatamente durante o
tempo da vida terrena de Jesus. Portanto, não podemos separar esse en dunamei
da manifestação do poder que será visto no final, especialmente na parousia do
Filho do Homem. E, no que concerne a Lucas, sua passagem simplesmente diz
“até que vejam o reino de Deus”. Se considerada em si mesma, essa declaração
pode se referir simplesmente à vinda do reino antes do fim, mas o contexto
implica claramente (cf. Lc 9.26) os acontecimentos escatológicos. Além disso, a
mera indicação do “reino de Deus” prova que algo mais está sendo referido aqui
do que apenas a revelação do reino antes da parousia, pois aqueles a quem Jesus
se dirige já tinham visto o reino na vinda e na obra de Jesus (cf., p. ex., Lc 8.10;
10.23-24). A promessa de que eles veriam o reino de Deus, portanto, não pode
ser isolada da sua revelação definitiva.
Em nosso entendimento, não há qualquer outra conclusão possível para to­
dos os três Evangelhos a não ser que Jesus fala do ponto de vista profético, isto é,
num sentido abrangente e indistinto.136 Se, na exegese da passagem, é impossível
eliminar a parousia, é igualmente insustentável dizer que a profecia de Jesus não
tinha qualquer outra perspectiva a não ser a da sua parousia. Entre o tempo da
sua fala e a parousia, há o grande fato da ressurreição, da qual ele falou expressis
O FUTURO DO RErNO DOS CÉUS 363

verbis no primeiro pronunciamento de sua paixão, do qual a declaração que está


sendo discutida é a conclusão. E verdade que, pelo menos na mente dos discípulos,
a relação entre a ressurreição e a parousia era obscura em muitos aspectos (veja
acima §44) e, na medida em que o significado da sua paixão, morte e ressurreição
permanecia oculto, eles não foram mais esclarecidos acerca de tudo isso. Porém,
por outro lado, é um fato estabelecido que Jesus fez uma distinção temporal e
factual entre sua ressurreição e sua parousia. Por isso, o anúncio geral feito por
Jesus sobre a futura glória (como mencionado por Mateus em particular), e no
anúncio correspondente e objetivamente idêntico da vinda do reino com poder
(Marcos e Lucas), não podemos eliminar sua ressurreição do mesmo modo que
não podemos eliminar sua parousia, pois, em sua ressurreição, também, o Filho
do Homem virá na sua dignidade de Rei (cf. M t 28.18). As palavras sobre a
ressurreição nos mostram que essa declaração não é uma declaração tímida,
pois ela se apoia no testemunho sinóptico. E é por isso que teremos também
de considerar o significado todo-abrangente da exaltação de Cristo em Mateus
16.28 (e paral.).137 Só pode ser dito que, em declarações como essa, tal perspec­
tiva está ausente e que não poderia ser compreendida, mesmo à luz clara do seu
cumprimento, por aqueles aos quais o sentido da paixão e morte de Jesus estava
oculto. M as isso está relacionado com o caráter da autorrevelação de Jesus antes
de sua ressurreição.138
Finalmente, resta ainda discutirmos Mateus 10.23. Já vimos a impossi­
bilidade de tomarmos essa passagem como a pedra angular da construção da
escatologia consistente no sentido pretendido por Schweitzer, Werner e Buri. A
questão que permanece é esta: como poderemos compreender essa declaração
misteriosa dentro do escopo total da profecia de Jesus quanto ao futuro?
Além das explanações mencionadas antes, que falam de um erro quanto à
perspectiva futura, há diferentes entendimentos das palavras “não acabareis de
percorrer as cidades de Israel” (ou me telesetè). Alguns autores acreditam que, aqui,
Jesus está se referindo ao término da tarefa missionária, já que essa declaração foi
feita no contexto do sermão de Jesus ao enviar os discípulos em missão (em M t 10).
Ao mesmo tempo, o propósito desse sermão não está restrito ao envio mencionado
em Mateus 10.1, mas é extensivo a um futuro muito mais longínquo. Portanto,
Grosheide, por exemplo, é de opinião de que as palavras “até que venha o Filho
do Homem” se referem à parousia. D e acordo com ele, entretanto, isso tem a ver
com o mandamento missionário permanente aos discípulos, como representantes
da igreja. Essa tarefa se estende até a segunda vinda de Cristo. Além do mais, a
expressão “cidades de Israel” deve ser “tomada num sentido mais amplo do que
seu sentido literal estrito e deve ser concebida como uma referência a todos os
lugares habitados pelo homem, que estão em contato com o cristianismo, mas
que são estranhos a Deus”.139 Essa é uma concepção figurativa ou simbólica das
364 A v in d a d o R e in o

“cidades de Israel”. Algo semelhante é encontrado em Lagrange, apesar de ele


preferir entender que a fuga dos discípulos não se dá durante a missão deles e
sim na grande tribulação e de interpretar a vinda do Filho do Homem no sentido
de uma grande catástrofe, tal como, por exemplo, a queda de Jerusalém. Ele não
rejeita totalmente a concepção de que essa passagem se refere %parousia. Se for
esse o caso, então a expressão “as cidades de Israel” provavelmente se refere aos
“judeus na diáspora”.140
Schniewind também entende Mateus 10.23 em termos da missão. O fato
de não terem “terminado de percorrer as cidades de Israel” é interpretado por ele
como se referindo à missão entre os judeus e ele explica o todo da declaração (em
harmonia com seu entendimento de M c 13.30 e paral.) de tal modo que, quando
o Filho do Homem aparecer em glória, a missão em Israel ainda não terá sido
completada. Apesar de eles terem rejeitado a salvação do Senhor, a Palavra de
Deus continuará a ser pregada a eles até o fim. Ele relaciona esse entendimento
com a expectativa que ele encontra em Romanos 11 e Mateus 23.39 de que Israel
haverá de, primeiro, reconhecer aquele a quem rejeitou na parousia e, então, se
voltará para Cristo.141
M as outros entendem que Mateus 10.23 não fornece uma perspectiva
escatológica tão ampla assim. Já mencionamos Lagrange, que interpreta as pa­
lavras acerca da “vinda do Filho do Homem” pensando no julgamento divino
manifestado na queda de Jerusalém. E, para mencionar outro exegeta, Stonehouse
diz que, se Mateus 10.23 for explicado em analogia com 16.28, então não é
necessário assumir que Jesus errou quanto à sua parousia, pois, na opinião dele,
devemos pensar na “atividade sobrenatural do Senhor ressurreto na fundação de
sua igreja” ao lermos acerca da “vinda do Filho do Homem”.142
Não pode haver dúvida de que as palavras “não acabareis de percorrer as
cidades de Israel” não se referem à missão, mas àfuga dos discípulos. Isso fica claro
logo no começo desse versículo: “Quando, porém, vos perseguirem numa cidade,
fugi para outra”. E verdade que o futuro dos discípulos é visto, aqui, à luz da
vocação apostólica deles, mas, no versículo 21 e seguintes, tudo é dominado pelo
quadro de perseguição e aflição. Em nossa opinião, portanto, não se trata, aqui,
de uma indicação oculta da salvação futura para os judeus e nem uma referência
ao campo missionário na Diáspora e em áreas não cristianizadas.
Quanto ao mais, concordamos com aqueles exegetas que compreendem a
“vinda do Filho do Homem” como uma referência à parousia. Já num contexto
anterior, tentamos mostrar que o sermão missionário em Mateus 10, pelo menos
do versículo 16 em diante, revela uma perspectiva muito mais ampla do que a
primeira jornada missionária dos discípulos feita durante a vida de Jesus aqui
na terra. Em Mateus 10, a descrição das experiências dos discípulos durante a
sua primeira jornada se transporta para a do seu futuro destino como apóstolos
O FLJTURO DO REINO DOS CÉUS 365

de Cristo, após ele ter deixado este mundo. Gradualmente, o sermão de Jesus
assume aquilo que o apocalipse sinótico diz acerca das vicissitudes dos discípulos
durante a tribulação vindoura predita por Jesus. Alguns dos pronunciamentos
de Jesus são até mesmo verbalmente idênticos e muitos outros são factualmente
idênticos aos de Marcos 13 e Lucas 21 (cf. M t 10.17-21 com M c 13.9-13 e
Lc 21.12-17). Até mesmo encontramos outra vez em Mateus 24 o que é dito
em Mateus 10 (cf. 10.17,22 com 24.9,13). Em conseqüência, parece-nos sem
fundamento pensar em qualquer outra coisa que não a parousia quando Mateus
10.23 fala da vinda do Filho do Homem, pois a ressurreição, aqui, não deve
mais ser vista como algo que se aproxima, mas como algo que ocorre antes da
tribulação anunciada aos discípulos. Pensar que aqui a referência é ao poder e
à ajuda sobrenaturais do Senhor exaltado é fornecer uma interpretação muito
incomum da expressão sinótica “a vinda do Filho do Homem”. Não é permissível,
nesse caso, argumentar a partir de uma concepção particular do que é “possível”
à luz da realização. Aqui, as palavras devem receber o seu sentido mais óbvio. E,
quando fazemos isso, não podemos perceber como a referência zparousia possa
ser eliminada.143
O que, então, devemos entender com essa expressão acerca da fuga pelas
cidades de Israel que os discípulos não seriam capazes de completar antes da vinda
do Filho do Homem? Em nossa opinião, essas palavras só podem ser explicadas
no sentido mencionado acima, no qual a convergência dos temas particularistas
e escatológicos em Marcos e Mateus foi trazida à luz. Semelhante à explicação
que foi dada ali sobre a fuga da Judeia para as montanhas como estando em
estreita conexão com a tribulação final, as catástrofes cósmicas e o fim de todas
as coisas, encontramos aqui um quadro da perseguição dos discípulos durante o
tempo anterior à parousia, descrita dentro dos limites do território judaico.

49. O significado das "parábolas da parousia"

Além do apocalipse sinótico, há partes relacionadas da pregação de Jesus


que têm implicação direta sobre a parousia do Filho do Homem e os acon­
tecimentos anteriores a ela. Há, nos evangelhos, em adição, certo número de
pronunciamentos, especialmente parábolas, nas quais Jesus aplica essa “esca­
tologia”, por assim dizer, à vida dos discípulos. Algumas dessas parábolas são
uma continuação do apocalipse (especialmente em Mateus) e são parcialmente
encontradas fora do referido apocalipse sinótico (especialmente em Lucas).
Para nosso tema, a importância delas não é menor do que os pronunciamentos
escatológicos diretos, pois elas contêm o reflexo prático da profecia de Jesus sobre
o futuro na vida de seus discípulos.
366 A v in d a d o R e in o

Como tal, mencionamos, por exemplo, a parábola do juiz iníquo, em Lucas


18.1-8, na qual Jesus ensina aos seus discípulos “o dever de orar sempre e nunca
esmorecer”. No contexto, nos é dito que Deus haverá de fazer justiça a seus
escolhidos depressa (en tachei). E claro que essas palavras se referem à vinda do
Filho do Homem mencionada no versículo 8 e à liberação última revelada ali.144
A questão é: o que Jesus quer dizer com o termo “depressa” (18.8)?
A parábola mostra, por um lado, que não podemos aplicar o critério de
nosso sentido humano subjetivo de tempo, pois o propósito da parábola como
um todo é enfatizar que “devemos orar sempre (pantote)”, continuamente, sem
nunca desanimar ou nos tornar negligentes ( eakakein). Essa exortação pressupõe
que as nossas orações pela vinda do reino não são respondidas imediatamente
e que a resposta demora por um tempo muito longo. E isso é confirmado pela
alegoria da viúva que tem que bater várias vezes à porta do juiz, visto que o juiz,
durante um tempo (epi chronon), não lhe fez justiça. A extensão desse tempo não
é mencionada aqui, mas parece ter sido grande (cf. também v. 4, “depois”, final­
mente).145 Apesar de essas palavras pertencerem ao quadro alegórico, o tertium
comparationis é claramente discernível na espera (cf. também as palavras “que a
ele clamam dia e noite”, v. 7; cf. Ap 6.9ss). Tudo isso deve ser levado em conta na
explicação da palavra “depressa”, no versículo 8. N a parábola e na sua aplicação,
duas coisas são contrastadas entre si: por um lado, a subjetividade daquele que
ora e que tem dificuldade em perseverar em suas orações por causa da demora
da resposta; por outro, o pronunciamento de Jesus, na forma de uma pergunta
retórica cuja resposta é “Deus fará justiça a seus escolhidos que clamam a ele dia
e noite”. A tensão entre esses dois pontos está implícita nas palavras “clamam
dia e noite” e “fará justiça depressa”, que ocorrem, inclusive, na mesma sentença.
Esse “depressa” (em tachei) é comparável às mesmas palavras em Apocalipse 1.1;
22.6. Ali, também, refere-se à rapidez da ação de Deus, apesar de ser muito claro
que muita coisa está comprimida na frase “as coisas que em breve devem aconte­
cer”. Lucas 18.8 deve ser explicado do mesmo modo. Ao fazer “justiça aos seus
escolhidos”, Deus age depressa; todavia, no que se refere à velocidade nas ações de
Deus, devemos sempre lembrar que essa velocidade está sujeita ao cumprimento
de Deus de seu próprio conselho.146 Aquele que ora é confortado com a ação
rápida de Deus - todavia, isso não significa que a redenção será efetuada num
curto espaço de tempo, medido pelo padrão humano subjetivo.147 Não encon­
tramos aqui essa ideia subjetiva humana de duração temporal.
H á ainda outras parábolas, relacionadas com essa, que nos exortam a ser
vigilantes e atentos às nossas responsabilidades diante da vinda do “Senhor” ou
do “noivo” e ainda outros ditos que têm o mesmo efeito, como Marcos 13.33-37
(o homem que viaja para um país distante), Mateus 24.42-51; cf. Lucas 12.35-46
(o servo vigilante e fiel), Mateus 25.1-13 (a parábola das dez virgens).
O FUTURO DO REINO DOS CÉUS 367

Todas essas parábolas se referem indubitavelmente à parousia do Filho do


Homem (cf. M t 24.42,44; Lc 12.40; M c 13.35; M t 25.1).148 Pode-se perguntar
se essas exortações aos discípulos para que sejam fiéis e vigilantes, bem como
para que sejam perseverantes em oração, sugerem que Jesus levou em conta o fato
de que o Filho do Homem poderia atrasar sua vinda por um período de tempo
muito grande. Nesse sentido, poderíamos explicar frase como a usada pelo servo
mau, “meu senhor demora-se” ( chronizei, M t 24.48; Lc 12.45), e a declaração na
parábola das dez virgens, “tardando o noivo” (chronizontos, M t 25.5). Com muita
frequência, é admitido que essas características e palavras são produto da igreja
posterior, expressando seu desconforto pela demora da parousia.U9 Essa interpre­
tação é muito arbitrária, visto que todos esses traços e palavras que sugerem uma
demora da parousia se encaixam muito naturalmente no conteúdo das parábolas.
Além disso, aqueles que, nas parábolas, argumentam dessa maneira dizendo,
“meu senhor demora-se”, podem estar perfeitamente enganados. Se esse detalhe
deve ser explicado alegoricamente, ainda assim isso não significa que Jesus estava
preparando o seu público para essa demora, mas simplesmente que ele rejeitava
qualquer ideia, pelo menos no presente, de que não havia qualquer necessidade de
levar em consideração o início do futuro grandioso. As coisas são bem diferentes
quando chegamos à parábola das dez virgens. Aqui, a demora da vinda do noivo
é uma parte integral da narrativa. Todavia, a sua implicação é também “Vigiai,
pois, porque não sabeis o dia nem a hora em que o Filho do homem há de vir (M t
25.13 [na versão Almeida rev. e corrig.]). Essa parábola como um todo parece
significar (apesar de ser difícil dizer quais detalhes do quadro devem ser consi­
derados relevantes para o seu sentido) que “embora o Filho do Homem possa
ainda adiar a sua vinda, nós devemos estar sempre vigilantes”. Talvez possamos
até mesmo ir um pouco além e dizer que, nesse caso, é ressaltado o perigo que
ameaça a igreja quando o Filho do Homem demora seu retorno mais do que se
esperava.150 E tudo isso está ligado com o desconhecimento da igreja quanto ao
momento desse retorno.
Este desconhecimento com respeito ao tempo é o ponto que constantemente
emerge nas exortações de Jesus aos discípulos para que sejam vigilantes. Ele é
muito bem elaborado, por exemplo, em Marcos 13.33-37 (a parábola do homem
que faz uma viagem para o exterior), no versículo 33, “Estai de sobreaviso, vigiai
[e orai]; porque não sabeis quando será o tempo”; ou ainda nos versículos 35-36,
“Vigiai, pois, porque não sabeis quando virá o dono da casa: se à tarde, se à meia-
noite, se ao cantar do galo, se pela manhã; para que, vindo ele inesperadamente,
não vos ache dormindo” (cf. Lc 12.38). Portanto, não podemos dizer que “nessas
parábolas, Jesus nunca se cansa de enfatizar a proximidade do último dia”151e nem
que aqui “a aproximação urgente do fim é ressaltada”.152 Na verdade, Jesus indica
a necessidade de vigilância constante e perseverança resoluta diante do fato de
368 A v in d a d o R e in o

que não podemos saber o momento de sua vinda, o que pode ocorrer mais cedo ou
mais tarde do que havíamos esperado, e até mesmo subitamente (exaiphes).
A mesma ideia é representada pela ilustração do “ladrão de noite” (M t 24.43;
Lc 12.39). Do mesmo modo, não podemos dizer que essa parábola tem como
objetivo nos forçar à vigilância “em vista da crise escatológica iminente que se
aproxima rapidamente”.153 Até mesmo esse elemento está faltando na parábola.
Se soubéssemos que um ladrão está vindo, não seria difícil frustrar seus planos.
Porém (como regra), geralmente desconhecemos tal fato. As chances de sucesso
do ladrão residem exatamente em nosso desconhecimento dos seus planos. Esse é
o motivo pelo qual sempre devemos estar alertas para sua possível vinda. O ponto
de comparação não é que o ladrão virá com certeza ou que ele virá em breve, e
sim que ninguém sabe se ele virá e, se vier, quando isso acontecerá.154
O pronunciamento mais forte com respeito ao nosso desconhecimento do
momento da vinda do Filho do Homem se encontra nas palavras de Mateus
e Marcos, “M as a respeito daquele dia e hora ninguém sabe, nem os anjos dos
céus, nem o Filho, senão o Pai” (Mt 24.36; M c 13.32). O próprio fato de que
o Filho está incluído entre aqueles que desconhecem quando ocorrerá o último
dia155 mostra quão secreta é a data de sua segunda vinda. Se a passagem dissesse
que “sobre aquele dia ninguém sabe”, poderia significar que, de maneira geral,
não há nada a ser dito sobre a parousia, pois a expressão “aquele dia” geralmente
se refere ao Dia do Senhor, o dia do julgamento (cf. M t 7.22). M as o que está
em jogo é o ponto exato no tempo daquele dia, como também transparece das
palavras “e hora”. Alguns autores fizeram a observação de que, estritamente
falando, essa característica básica torna todas as profecias escatológicas inúteis e
a consideram como estando em conflito com os “sinais”, etc., mencionados nas
passagens que antecedem a declaração, os quais nos permitem saber quando esses
acontecimentos grandiosos estarão próximos.156 No entanto, podemos dizer que
o pronunciamento em Marcos 13.32 e em Mateus 24.36 tem um caráter relativo
em vista do contexto em que ocorre. Dentro dos limites do que tem sido dito
sobre o futuro do Senhor, ninguém sabe coisa alguma sobre o momento no tempo
em que esse futuro terá início. Isso é totalmente desconhecido, é algo que “o Pai
reservou pela sua exclusiva autoridade” (At 1.7).
Até aqui, o resultado da nossa investigação mostrou que nenhuma conclusão
quanto a um limite de tempo pode ser inferida das passagens constantemente
mencionadas sobre a vinda imediata do dia do Senhor e a parousia do Filho do
Homem. O real propósito dessas passagens é compelir a necessidade de fidelidade
e vigilância. A ênfase recai sobre nosso próprio desconhecimento a respeito desse
acontecimento. Nós só deveríamos levar em conta a sua^afí/W proximidade (cf.
também M t 24.37ss). O fato de que as pessoas não se aperceberão da catástrofe
iminente, como nos dias de Noé {ouk egnoosan, “e não o perceberam”), prova a
O FUTURO DO REINO DOS CÉUS 369

insensatez delas. Todos deveriam estar cientes de que a parousia chegará de modo
inesperado.
M as isso não é tudo. Estritamente falando, essas declarações sobre vigilância
também significam que, a partir do momento em que foram feitas, o reino pode
vir a qualquer dia e, com ele, o julgamento final. Ainda assim, essa implicação
não estaria totalmente de acordo com a totalidade do ensino de Jesus. A julgar
por outras passagens, é evidente que Jesus não esperava que esse dia chegasse
num futuro próximo; portanto, o que ele diz sobre vigilância deve ser entendido
nesse contexto.
Assim, a parábola das dez minas em Lucas 19.11-27 tem certos detalhes
(como a partida do homem nobre e as ordens que deixou para os seus servos)
que estão estreitamente relacionados com Marcos 13.31ss (veja acima). Com
respeito ao tempo, todavia, a tendência é levemente diferente. Isso já é per­
ceptível na introdução, a qual diz que Jesus contou essa parábola “visto estar
perto de Jerusalém e lhes parecer que o reino de Deus havia de manifestar-se
imediatamente”.157 Em reação a isso, Jesus declara que “certo homem nobre
partiu para uma terra distante, com o fim de tomar posse de um reino e voltar”.
Aparentemente, o sentido da parábola é que aqueles que esperavam que o reino
aparecesse imediatamente não estavam levando em conta o período interino
que deveria ocorrer primeiro. Esse período intermediário é representado nesse
caso pela partida do nobre e pelas tarefas que deu a seus servos, pois os mesmos
deveriam administrar seus bens durante a sua ausência. E muito difícil explicar
tudo isso de qualquer outro modo a não ser que se trata de uma referência à
partida de Jesus da terra para o céu e à vocação dos discípulos aqui na terra. A
parábola pressupõe a continuidade do tempo deste mundo depois da partida de
Jesus, e coloca uma ênfase especial na vocação dos crentes durante este período
intermediário.
De igual modo, a parábola dos talentos fala de um homem “ausentando-se
do país” (M t 25.14-30). Aqui nos é dito que o “senhor daqueles servos” retornou
“depois de muito tempo” (meta polun chronon, M t 25.19). Ê difícil acreditar
que esse detalhe não tenha valor algum para o sentido da parábola, diante
da aplicação clara que é feita entre a partida do senhor para uma viagem e a
partida do próprio Jesus. Assim, aqui a vinda do Filho do Homem é colocada
num futuro mais longínquo do que muitas pessoas suporiam.158 M ais uma vez,
ênfase especial é colocada sobre a missão confiada aos discípulos. A expectativa
da vinda de nosso Senhor não acarreta qualquer estagnação ou passividade na
vida de um discípulo; ao contrário, produz uma atividade santificada no serviço
de D eus.159
370 A v in d a do R e in o

50. Cumprimento e consumação

Quando tentamos fazer um resumo final das informações que os Evangelhos


nos fornecem sobre a perspectiva futura no ensinamento de Jesus e as profecias
concernentes ao reino dos céus, ficamos atordoados pela variedade de temas, pelo
caráter fragmentário das indicações e pelas diferenças nos referenciais a partir dos
quais o futuro pode ser visto e, então, nos tornamos plenamente conscientes da
dificuldade de reunir todas essas informações num todo que faça sentido. Não há,
nos Evangelhos, uma escatologia no sentido de uma doutrina sistemática completa
das “últimas coisas”. Pelo contrário, o futuro é introduzido com o propósito de
advertir e confortar os crentes e também, certamente, para ensiná-los e instruí-los.
O público, entretanto, deveria estar sempre plenamente consciente de seu próprio
envolvimento no futuro e, no público, essa mensagem é também dirigida a todos
os futuros crentes (cf., p. ex., M c 13.37). Essa característica dos pronunciamentos
de Jesus sobre o futuro se destaca muito claramente quando fazemos um levan­
tamento no sumário a seguir de tudo o que encontramos até agora.

a) Sem permitir que sejam enganados pelos rumores das falsas reinvidicações
messiânicas, os discípulos deveriam prestar atenção aos sinais dos tempos,
que já se manifestaram na vinda do nosso Senhor e foram anunciados
por ele (“discernindo os tempos”, a lição da figueira, a advertência contra
o “Ei-lo aqui! Lá está!”).

b) Os sinais anunciados são, primeiro, “o principio das dores” e, então, virá


“o abominável da desolação”, acompanhado e seguido pela grande tribu-
lação e pelas catástrofes cósmicas que inauguram a parousia do Filho do
Homem (Mt 24; Mc 13).

c) Essa “abominação da desolação” é um julgamento sobre a nação judaica e


o Santo Lugar, e se manifesta pelo cerco de Jerusalém por exércitos hostis
(Lc 21). Ao mesmo tempo, ela representa, acima de tudo, a culminação do
princípio maligno do mundo que se levanta em inimizade contra o Deus
vivo e a violação do que é santo no sentido mais proposital e conseqüente.
Essa abominação é considerada a última revelação poderosa do princípio
iníquo do mundo que é inimigo de Deus, como também transparece da
tribulação que a acompanha e da angustia mundial que resulta dela.

d) Alguns daqueles que estavam escutando Jesus testemunhariam a mani­


festação vindoura do poder do Filho do Homem antes da morte deles
(Mc 9.1 e paral.) e tanto os seguidores de Jesus quanto os seus inimigos
experimentarão a verdade das palavras que ele lhes dirigiu (Mc 13.30 e
O FUTURO DO REINO DOS CÉUS 371

paral.; M t 10.23), para redenção, por um lado, ou para julgamento, por


outro.

e) Os discípulos de Jesus não devem desanimar em suas orações pela vinda


do reino, pois Deus rapidamente cumprirá a sua promessa (a parábola
do juiz injusto).

f) Os discípulos de Jesus devem ser vigilantes e nunca deveriam pensar que a


vinda do reino ainda está muito distante, porque ninguém sabe quando o
reino virá. O reino manifestará sua presença de modo inesperado e súbito
(as parábolas sobre a vigilância; o tema do “ladrão de noite”).

g) Os discípulos de Jesus não deveriam esquecer a grandiosa missão deles


por causa da expectativa do futuro. Essa tarefa deve ser realizada durante
o intervalo entre a partida de Jesus e a parousia do Filho do Homem.
Eles deveriam refletir sobre sua vocação à luz da salvação já revelada e
dada pela vinda de Jesus ao mundo (a parábola das minas; a parábola dos
talentos).

Portanto, não é difícil elaborar sobre esses temas de tal maneira que eles
se tornem mutuamente incompatíveis. Isso é ainda mais claro se compararmos
o item f acima com as letras a-c. A s advertências à vigilância (motivadas pelo
“porque não sabeis quando virá o dono da casa: se à tarde, se à meia-noite, se ao
cantar do galo, se pela manhã”) podem, em si mesmas, ser interpretadas de tal
maneira que seja possível, a qualquer momento, o Senhor retornar. Por outro
lado, transparece do apocalipse sinótico que acontecimentos muito grandiosos
e de grandes implicações devem acontecer antes daquele dia e que os discípulos
ainda têm uma grande missão a realizar com referência à ekklesia (a qual eles
representam) no mundo (cf. também letra g).
No entanto, não seria difícil interpretar cada um destes motifs, que, pela
tradição, nos foram entregues como uma unidade, ligados uns aos outros. Após
considerarmos todas as coisas, eles nada mais são que os eixos de um círculo
cujo centro é a certeza de que Deus está completando sua obra de consumação. Essa
verdade central nos compele a perseverar pacientemente e a permanecermos vigi­
lantes e fiéis. Ela exige que o crente observe os sinais dos tempos, pois Deus está
realizando a consumação de acordo com um plano predeterminado. Ele revelou
esse plano a seu povo. Por outro lado, ele exige a tarefa grandiosa que os cristãos
têm de realizar neste mundo. Todas essas facetas têm que ser consideradas em
conjunto. Todas elas, todavia, são determinadas pela certeza e pela proximidade
da vinda do Filho do Homem, e também servem para transpor a vida dos crentes
para a realidade do reino vindouro.
372 A v in d a d o R e in o

Finalmente, pode-se perguntar de que maneira essa perspectiva abrangente


da consumação deve ser combinada com o que já foi observado acerca da res­
surreição (§44) e a perspectiva do cumprimento que ela traz. Em nossa resposta,
indicamos o seguinte.
Primeiro, os evangelistas, os quais nos deram os sermões escatológicos de
Jesus como parte integrante do evangelho que ele pregou, escreveram do ponto
de vista da ressurreição. Eles queriam que as profecias de Jesus quanto ao futuro
fossem lidas exatamente a partir do ponto de vista da ressurreição e jamais de
modo independente dela. Tudo o que foi unido nesses sermões finais de despedida
de Jesus não é, portanto, uma falsa representação ou um desconhecimento dessa
nova perspectiva do futuro que foi revelada pela ressurreição de Jesus; pelo con­
trário, essas coisas têm um alcance maior, vão até as coisas finais e definitivas que
podem ser ditas a respeito da época vindoura. Devemos considerar plenamente
o fato de que as palavras de Jesus nos foram transmitidas num contexto especí­
fico, ou seja, o contexto dos evangelistas que as escreveram, os quais reuniram e
arranjaram essas palavras num todo literário.' Esse é o motivo pelo qual devemos
entender e julgar o sentido das palavras dessa tradição exclusivamente a partir do
entendimento de que os Evangelhos foram compostos desse modo.
Em segundo lugar, devemos fazer justiça à maneira contida e velada em que
Jesus se manifestou acerca de sua morte e ressurreição antes que acontecessem.
Devemos ter isso em mente quando formos explicar as profecias de Jesus sobre
a parousia , visto que por enquanto a nova perspectiva criada pela ressurreição
está ausente nelas.
Em terceiro lugar, segue-se que as declarações sobre a parousia só podem
ser adequadamente avaliadas a partir da realidade da ressurreição. Desse modo,
ficará evidente que o que foi dito antes da ressurreição de maneira abrangente e
resumida a respeito da revelação da glória futura do Filho do Homem se cumpriu
de maneira provisória na ressurreição e que o futuro, previamente apresentado
como uma unidade, agora deve ter seu cumprimento em mais de uma fase. Isso
quer dizer que devemos considerar o intervalo entre a ressurreição de Jesus e a
parousia tanto do ponto de vista do perfectum (o reino j á veio, juntamente com o
poder total concedido a Jesus nos céus e na terra) quanto do ponto de vista do
futurum (o esperado aparecimento do Filho do Homem).
Esta última perspectiva é preponderante nos sermões escatológicos e não deve
ser eliminada por causa da importância das palavras de Jesus sobre a ressurreição.
Em nossa opinião, o perigo é iminente quando explanamos os chamados pronun­
ciamentos sobre o tempo em relação exclusivamente com a ressurreição e ascensão
de Jesus ou quando os restringimos ao Pentecostes ou à destruição de Jerusalém. A
ressurreição não mudou a realidade da vinda do Filho do Homem do que deveria
“ocorrer em breve” para aquilo que já havia acontecido (Nah-erwartung, §43:3b),
O FUTURO DO REINO DOS CÉUS 373

pois as palavras de despedida de Jesus consideram, da perspectiva importante do


futuro, tudo o que aconteceu e que ainda está para acontecer. Isso também se aplica
à pregação permanente do evangelho e ao homem nobre que, ao partir para receber
um reino numa terra distante, instruiu seus servos a administrarem seus bens. Essas
coisas encontram expressão nos pronunciamentos sobre a iminência do tempo bem
como naqueles que indicam um prazo. A igreja é a igreja do futuro. O envio de
missionários a todas as nações é um estágio na obra divina da consumação. Todas
as dádivas e bens da vida terrena, tudo o que resulta nela do progresso da pregação
do evangelho (Mt 28.20), só pode ser aceito com vigilância e fidelidade de servos
que esperam a volta do seu Senhor.
M as tudo isso se baseia no fato que o cumprimento j á chegou e que, em
princípio, a profecia de Daniel 1 j á se cumpriu em Jesus Cristo. Em nossa opinião,
esta consideração não é menos essencial para a compreensão do evangelho do
que tudo o que foi dito acerca do período interino como o tempo de expectativa.
Ela está baseada no cumprimento que caracteriza a totalidade da vinda e obra de
Jesus. Ele não veio simplesmente proclamar o real sentido da sua parousia e dar
um sentido de prelúdio ao tempo restante deste mundo. Com muita frequência,
o caráter não escatológico dos mandamentos de Jesus tem sido ressaltado quando
se fala disso. M as esse não é o único argumento e nem o mais importante. Nem
precisamos simplesmente recorrer às palavras de Jesus sobre a ressurreição. O
principal argumento é o caráter cristológico do tempo da salvação inaugurado
pela vinda de Jesus. Assim, o período entre sua vinda ao mundo e sua parousia
é, principalmente, alguma coisa a mais e diferente, no sentido qualitativo, do
período de espera e aguardo do fim. Esse tempo é determinado e qualificado
para os-crentes pela realidade do cumprimento que culmina temporariamente
na ressurreição.
Teremos de fazer plena justiça a essa característica elíptica da pregação de
Jesus acerca do reino e da sua autorrevelação. Qualquer pessoa que pense que a
Nah-erwartung é a característica mais essencial do evangelho entrará em conflito
não apenas com passagens individuais, mas com a natureza básica da pregação
de Jesus, pois, nela, o elemento do cumprimento é tão impressionante e crucial
quanto o elemento da expectativa. Esse é o motivo pelo qual somos da opinião de
que a questão acerca da perspectiva futura na pregação de Jesus é uma questão de
gradação. Não se trata de uma questão em que a totalidade da pregação de Jesus
está em jogo. Essa pregação é determinada pelo caráter cristológico de todas as
obras e palavras de Jesus. Isso não significa que, se for necessário, podemos dis­
pensar o elemento escatológico ou sublimá-lo interpretando-o de modo idealista.
Um é o complemento necessário do outro. A profecia sobre o futuro só pode ser
corretamente compreendida a partir do ponto de vista do presente cristológico,
do mesmo modo que a natureza do tempo presente requer a necessidade e a
374 A v in d a d o R e in o

certeza do futuro. “A segunda vinda de Cristo é exigida por sua primeira vinda;
a primeira está implícita na segunda e se segue necessariamente a ela, levando-a
ao seu pleno efeito e à sua completude. Portanto, é, na profecia do Antigo Testa­
mento, comprimida num único quadro juntamente com a primeira vinda.”160Mas
não podemos dizer, à maneira da escatologia mais ou menos “consistente”, que
a proximidade d a parousia explica o presente cristológico e os pronunciamentos
a respeito do presente. Muito pelo contrário, o “irromper” da salvação, o caráter
de cumprimento do presente, desde o início inclui também o futuro como uma
realidade assegurada e garantida no presente. Assim, o caráter do presente como
cumprimento não deve ser abordado a partir da proximidade do futuro; antes, a
proximidade do reino vindouro deve ser abordada a partir da realidade do reino
presente. Essa é a verdade da declaração de que a proximidade da parousia é, num
certo sentido, somente outra expressão da sua absoluta certeza.
Esse é o motivo pelo qual não é tanto a proximidade quanto a certeza p a ­
rousia que domina os pronunciamentos escatológicos de Jesus. Esse, por exemplo,
é o propósito das parábolas sobre a vigilância. Devemos estar sempre preparados,
pois, apesar de o momento da vinda do Filho do Homem ser desconhecido e
incerto, o fato de que ele virá é certo. Essa certeza é a base da exortação aos dis­
cípulos para perseverarem na fé, pois “não fará Deus justiça aos seus escolhidos,
que a ele clamam dia e noite?” A promessa de que Deus depressa fará justiça
procede da certeza que ele ouve as orações deles.
O mesmo se aplica ao que foi dito acerca dos sinais dos tempos. Esses
sinais, também, não servem primariamente para revelar a proximidade do fim,
mas para revelar o fato indubitável de que Deus está operando. Nesse sentido,
os fariseus e escribas pediram ajesus um sinal do céu e, no mesmo sentido, Jesus
repreendeu as multidões por não compreenderem “esta época”. O grande erro
deles não foi que se recusaram a ouvir que o reino estava próximo, pois, quando
isso foi anunciado, eles se ajuntaram a João e ajesus em grande número. O que
lhes faltava era o discernimento para ver que os sinais do reino e mesmo o próprio
reino eram visíveis nas palavras e ações de Jesus.
Com respeito ao grandioso sermão escatológico em Marcos 13 (e paral.),
aqui também Jesus desperta seus discípulos para a necessidade urgente de sobrie­
dade e calma ao responder a pergunta acerca de “quando” essas coisas acontece­
riam. Os acontecimentos que haveriam de atemorizá-los - guerras, revoluções,
etc. - “devem acontecer. Eles fazem parte do conselho de Deus e provam que a
história deste mundo está no seu final, no seu estágio decisivo. M as eles ainda
não são o fim. Eles são apenas o princípio das dores.
O fim não estará próximo e “às portas” até que o princípio das dores e os
grandes sinais sejam vistos, os quais aparecerão com a “abominação da desolação”.
Então, o que foi dito acerca da figueira, quando os seus ramos branqueiam e as
O FUTURO DO REINO DOS CÉUS 375

folhas aparecem, será comprovado, a saber, que o verão está se aproximando.


A conclusão do sermão, portanto, não é que “o fim está próximo”, mas que o
fim certamente virá. Mesmo aqueles que agora estão cegos e surdos ao que está
acontecendo (“esta geração”) experimentarão o fim. Jesus disse: “Passará o céu e a
terra, mas as minhas palavras não passarão. M as a respeito daquele dia e daquela
hora, ninguém sabe...” a conclusão de Jesus é “já que vocês não sabem, vigiem!”
(Mc 13.28-37). Portanto, não é uma questão de calcular o tempo do fim; tam­
pouco a ideia da iminência do acontecimento deveria paralisar nossa atividade.
Nós deveríamos, simplesmente, viver na certeza da sua vinda.
Os pronunciamentos de Jesus sobre o presente e o futuro - esta é a nossa
conclusão - estão repletos de uma profunda seriedade e são carregados com
essa tensão porque todos eles estão fundamentados na certeza de que Deus está
agindo para cumprir a promessa e realizar a consumação. Todas essas coisas têm
o seu fundamento mais profundo na autoconsciência do Filho do Homem em
quem Deus traz a salvação e em cuja exaltação ele estabelecerá o seu reino com
poder.161

51. Profecia e História

Finalmente, tudo o que foi dito até aqui pode nos dar uma perspectiva clara
deste fenômeno, que é a combinação dos vários quadros da História num quadro
único. As coisas que aparentam estar separadas por séculos quanto ao seu cum­
primento, algumas vezes são abrangidas na profecia de Jesus no mesmo quadro
temporal e dentro do mesmo quadro local. Isso não significa que a expectativa que
Jesus tinha do futuro não tinha relação com o tempo e que lhe faltava qualquer
distinção temporal. A diferença entre o que vem primeiro e o que vem depois
nos é dada explicitamente (nos sinais, na precedência da pregação do evangelho,
etc.). Porém, não há qualquer perspectiva do tempo que inclua os séculos. A
grande tribulação do mundo, a última perseguição da igreja, a abominação da
desolação, as catástrofes cósmicas e, finalmente, a parousia do Filho do Homem
estão ligadas com o julgamento de Israel, os acontecimentos vindouros na Judeia
e a perseguição dos discípulos em território judaico. As expectativas escatológicas,
é verdade, não podem ser mantidas dentro da estrutura judaica particularista.
Com certeza, elas vão além disso. Os fins da terra, as nações do mundo e a terra
habitada (Lc 21.26) repetidamente são mencionados não apenas no anúncio do
juízo final, mas também no anúncio da profecia de salvação. Todos os povos da
terra terão, primeiro, que ouvir o evangelho; os eleitos serão reunidos dos quatro
cantos da terra, virão do Oriente e do Ocidente e se assentarão com Abraão,
Isaque e Jacó no reino dos céus. M as, ao mesmo tempo, as cidades de Israel, as
376 A v in d a d o R e in o

planícies e as montanhas da Judeia, formam o palco para as cenas escatológicas


propriamente ditas. Essa estrutura é tão entretecida que não pode ser desfeita,
seja ao modo da escola da crítica da forma, que esquarteja o quadro sinótico do
futuro numa pluralidade de pedaços eclesiásticos judaicos, judeu-cristãos (e talvez
também partes originais que nos chegaram do próprio Jesus?), seja argumentando
a partir do curso da História e dando aos pronunciamentos de todos os tipos uma
explicação especial que não é garantida pelo texto. Apesar de este último método
se basear em pressupostos que estão mais de acordo com o evangelho do que nos
pressupostos da crítica da forma, julgamos que ambos são arbitrários e que des­
consideram o caráter específico e a complicação peculiar do quadro escatológico
do futuro encontrado nos evangelhos sinóticos.
A única explicação que pode fazer justiça à profecia de Jesus é a que leva
plenamente em conta o seu caráter profético. A tentativa de interpretar a profecia
em harmonia com os padrões da historiografia está fadada a concluir não somente
que essa descrição é difusa e que lhe falta clareza como também a ligar aconte­
cimentos e lugares que não estão relacionados. A inferência inevitável é admitir
que estamos diante de um Perspektivenirrtum, isto é, um erro de perspectivas.
Ou, para evitar essa opinião, é necessário dar um determinado sentido a vários
pronunciamentos, sentido que eles não têm em si mesmos. Basicamente, somos,
então, compelidos a recorrer a expansões e restrições, isto é, a corrigir a História.
Em ambos os casos, não é o texto como tal, mas a exegese histórica tendensiosa
que nos obriga a somente aceitar o texto se fizermos essas correções.
Em vez de aplicar essa exegese que pretende corrigir a História, devemos
tentar obter um melhor entendimento quanto à maneira profética de se predizer
o futuro. Não deveríamos esquecer que isso é diferente de um diário de aconte­
cimentos futuros. As profecias não estão baseadas numa transferência parcial da
onipotência divina ao homem. Jesus declarou explicitamente que nem mesmo o
Filho compartilhava da onisciência divina com respeito ao tempo do fim. A função
da profecia, portanto, não é fornecer uma projeção detalhada do futuro, mas é a
insistência urgente da certeza das coisas que estão por vir. Isso explica por que, ao
final da visão, está faltando a perspectiva. O profeta vê todos os acontecimentos
que estão para chegar e vê, em todos eles, a vinda de Deus. M as ele não pode
determinar uma data para os acontecimentos, ele não pode distinguir todas as
fases da vinda de Deus. Para ele, é tudo uma única grande realidade.
Essa limitação da perspectiva com respeito ao tempo dos acontecimentos
está ligada com o fato de que o profeta pinta o futuro em cores e com as linhas
que ele toma emprestado do mundo que ele conhece, isto é, do seu próprio am­
biente. Também é verdade que as nações, o mundo habitado, etc. aparecem no
quadro escatológico. M as isso não implica que o profeta tenha sido equipado
com onisciência geográfica, que a sua visão inclui continentes em suas qualidades
O FUTURO DO REINO DOS CÉUS 377

e diferenciações e que ele, agora, é capaz de dar um quadro universal geográfico


do mundo. Do mesmo modo que o tempo do futuro está, em última análise, com­
pactado num único ponto, assim também o mundo-espaço é para o profeta uma
totalidade e não uma magnitude acuradamente diferenciada. Vemos os profetas
pintarem o futuro com a paleta da sua própria experiência e projetarem o quadro
dentro do seu próprio horizonte geográfico. Isso ocorre com os profetas do Antigo
Testamento de muitas maneiras diferentes. E, em nossa opinião, essa é, também,
a explanação da descrição que Jesus faz do futuro. Ele segue o Antigo Testamento
muito de perto e não é somente a perspectiva temporal que está faltando no fim,
mas também o horizonte geográfico dentro do qual os acontecimentos escato­
lógicos acontecem. Esse horizonte é também restrito a alguns lugares da região
da Judeia ou às cidades de Israel. Em nossa opinião, isso não deve ser explicado
alegoricamente (p. ex., Israel é o mundo descristianizado), nem deveríamos dizer
que se trata de erros. Aqui, somos confrontados com a peculiaridade da descri­
ção profética de futuros acontecimentos. E melhor falar, aqui, de representações
poéticas e figurativas do que de quadros alegóricos.162
Essa concepção da maneira profética de predizer o futuro não deveria ser
caracterizada como uma interpretação teológica que se baseia no curso da H is­
tória, mas ela repousa nos dados claros do próprio evangelho. M ais de uma vez
nos referimos às palavras de Jesus em sua ressurreição e aos sinais escatológicos
que ocorreram na sua morte. Eles claramente apontam para o cumprimento
provisório da parousia do Filho do Homem anunciado como uma unidade. M as
podemos nos referir a outra passagem central no evangelho, ou seja, a procla­
mação de Jesus no início do seu ministério, "está próximo o reino dos céus” (Mt
3.2). Quando os discípulos foram enviados às cidades de Israel (Mt 10.7; Lc
10.9), foi dito a eles para repetirem essa proclamação. E claro que não é per­
mitido aplicar a “proximidade do reino” mencionada aqui exclusivamente e sem
qualquer reserva à vinda última e definitiva do reino - como, por exemplo, na
parábola da figueira (M t 24.32-33; M c 13.28-29; Lc 21.29,31), pois, entre essa
proclamação inicial e o grande eschaton, está a realidade tremenda de que o reino
j á chegou. Ainda assim, não é possível dizer que a proclamação inicial de Jesus
sobre a proximidade do reino está exclusivamente relacionada com a vinda inicial
deste. Aqui, também, Jesus fala do reino como uma unidade e como indivisível.
O que veio nele é ofin al das coisas. Aqui já se revela a natureza dessa maneira
de falar abrangente acerca da proximidade do reino. O reino está próximo, mas
essa declaração não exclui a ideia de um cumprimento provisório. Não que tal
cumprimento assim destacado seja somente uma antecipação do reino de Deus
que ainda não foi realizado de fato. A totalidade da autorrevelação messiânica
de Jesus é uma garantia do cumprimento no sentido mais legítimo da palavra.
O pronunciamento sobre a proximidade do reino, no qual o caráter ‘definitivo” não é
378 A v in d a d o R e in o

mencionado e muito menos distinguido do caráter “provisório", é uma prova de que se


trata de uma indicação temporal, de uma realidade complicada que deve ser explicada
num sentido diferenciado à luz do cumprimento.
Esse sumário do futuro restrito a um único quadro que se localiza parcial­
mente dentro da estrutura local da terra dos judeus se tornará menos estranho
para nós quando fizermos justiça, numa certa medida, à descrição profética do
futuro. Não adianta fazer correções de todos os tipos ou formular uma espécie de
crítica histórica parcial preconceituosa. O que está em jogo é o reconhecimento
do caráter específico do método profético de predizer o futuro.
Em conclusão, é possível pensar que as expectativas subjetivas quanto ao
futuro de Jesus e seu público não consideravam uma demora prolongada para o
fim de todas as coisas. No que se refere ao próprio Jesus, será necessário levar em
consideração tudo o que foi dito acima acerca do cumprimento da promessa de
Deus em sua vida e obra. E, por fim, deveríamos estar cientes da autoconsciência
incompreensível de nosso Senhor, de que o drama da obra redentora de Deus
e o julgamento do mundo todo e de todo o tempo estava sendo realizado nele
como o Cristo e o Filho de Deus. Essa consciência o capacitava a falar acerca do
futuro com uma autoridade e uma certeza que lhe eram peculiares. M as, então,
a urgência indubitável e o caráter direto da profecia de Jesus acerca do futuro
não podem ser julgados de acordo com nossos padrões humanos subjetivos,
mas somente do ponto de vista de sua consciência messiânica de autoridade, a
qual deveria ser avaliada por nós apenas com reverência e temor. O problema
da proximidade do reino é basicamente uma questão de ordem e determinação
cristológicas, como todo o conteúdo do evangelho.
N otas

Introdução

1. K. L. Schmidt, “basileia” , in G. Kittel, Theologisches Wõrterbuch zum Nenen Testament (daqui


por diante referido como TW B), I, p. 584.
2. H. D. Wendland, Die Eschatologie des Reiches Gottes bei Jesus, 1931, págs. 15,19.
*. O original holandês foi publicado em 1950. Ridderbos refere-se, portanto, a toda a controvérsia
a respeito da natureza da mensagem do N ovo Testamento gerada no início do século passado. (N.
doT .)
3. Para o que se segue, compare com H. M. Matter, Nieuwere opvattingen omtrent het koningkrijk
Gods in Jezus ’prediking naar de synoptici, 1942.
4. Cf. também F. Holmstrõm, D as escathologische Denken deer Gegenwart, 1936, p.6ss..; E. Mas-
selink, Escathologische motieven in de nieinve theologie, 1946, p. 19ss.
5. Com pare com a obra de minha autoria, De strekking der bergrede naar Mattheiis, 1936, p.
76ss.
6. 1901, 2a impressão, 1929.
7. 1906.
8. 1913. Desde então não houve mudanças (1926,1933). [E ssa obra foi publicada em português com
o título A Busca do Jesus Histórico —De Reimarus a Wrede. São Paulo: Editora Novo Século,
2004. (N. do T.)].
9. Veja seu livro Gesch. D. L.-J.-F.4, 1933, p. 368ss.; veja também um resumo desse tema no livro
de minha autoria, Zelfopenbaring em Zelfi>erberging, 1946, p. 8ss.
10. Compare também com Holmstrõm, op. cit., p. 89ss
11. Der Ditalismus war die Hullefur den gewaltigen sittlichen Ernstund diereligios Tiefe des Evan-
geliums. Aber der Keim hat uberall die Hulle gesprengt. W. Bousset, Die jüdische Apokalyptik,
ihre religionsgeschichtliche Herkunft imd ihre Bedeutungfiir das N. T., 1903, p. 62. Veja, ainda,
sobre Bousset, Schweitzer, Gesch. D. L.-J.-R , p. 236ss.; Holmstrõm, op. cit., p.42
12. D as Wesen des Christentums, 1905, págs. 34-36.
13. São conhecidas, p. ex., as interpretações de E. von D ob Schütz, The Eschatology ofthe Gospels,
The Expositor, 1910, e, especialmente também as ideias de H. J. Holtzmann, em Lehrbuch der
neutestamentlichen Theologie I2, 1911 (publicado por A. Jülicher em W. Bauer), p. 248ss.
14. Compare essa visão de Weiss também com H. M. Matter, op. cit., p. 70.
15. Compare com De strekking der Bergrede, de minha autoria, p. 78.
16. H. Windisch, Der Sinn der Bergpredigt, 1929, p. 20.
17. Compare também com G. C. Berkouwer, Wereldoorlog em theologie, 1945, p. l l s s
18. Compare também, p. ex., com R Buri, Die Bedeutung der neutestamentlichen Eschatologie fiir
die neuere protestantische Theologie, 1954.
*. Ridderbos se refere aqui à neo-ortodoxia, também chamada de teologia da crise, que defendia uma
realidade supra-histórica para os acontecimentos do evangelho com o objetivo de salvá-los da crítica
380 A v in d a d o R e in o

destrutiva do liberalismo. Os principais nomes associados com o surgimento da teologia da crise ou


neo-ortodoxia são Karl Barth, Richard Niebhur e Paul Tillich, entre outros. (N. do T.)
19. 1929, 2a ed. da obra escrita em 1925: Geschichtliche undiibergeschichtliche Religion im Chris-
tentum; veja detalhadamente De strekking der bergrede, de minha autoria, p. 8 ls s e principalmente
N . B . Stonehouse, “Martin D ibelius and the relation o f history and faith” , em The Westminsier
Theological Journal, 1940, págs. 105-139.
20. Op. cit., p. 41.
21. Op. cit., p. 60.
22. R. Bultmann, Jesu s , 1929, p. 36.
23. Op. cit., p. 53.
24. Op. cit., p. 40.
25. Cf. Basileia, I, p. 573.
26. Op. cit., p. 588.
27. K. Barth, Der Rõmerbrief, 1926, p. 484.
28. Também Barth, cf. Kirchliche Dogmatik, II, I, págs. 715, 716.
29. Veja também Holmstrõm, op. cit., p. 21; F. Buri, D as Problem der ausgebliebenen Parusie, in:
Vox Theologica, abril de 1948, págs. 111-115; E. M asselink, op. cit., p. 105ss
30. Ph. Bachmann, por exemplo, chama a raiz comum das interpretações liberal e supra-histórica da
escatologia de “ das idealistische Auseinander von Zeit und Ewigkeit” [“ a separação idealística
entre tempo e eternidade” ], por Holmstrõm, op. cit., p. 373.
31. R. Winkler, Eschatologie und Mystik, Zeitschr. fiir Theol. UndKirche, 1931, págs. 147ss.
32. H. D. Wendland, Die Eschatologie des Reiches Gottes bei Jesus, 1931, p. 253.
33. Verheiszung undErfüllung, 1945, p. 88.
34. Christus und die Zeit, 1946, p. 25ss. Compare com Le retour du Christ2, 1945,págs. 14, 15
35. Veja seção 43 e a literatura ali recomendada.
36. Veja m ais adiante, seção 32.
37. Veja o conflito sobre cristologia na crítica evangélica moderna na obra de minha autoria Zelfo-
penbaring em Zelfverberging, págs. 5-20.
38. 1929.
39. 1931.
40. Op. cit., p. 110.
41. Op. cit., p. 112.
42. Op. cit., p. 29.
43. Op. cit., págs. 50-53.
44. Isso se aplica especialmente à opinião sobre a igreja, veja abaixo § 35ss.
45. Jesus, der Weltvollender em N.T., 1929.
46. Die Theologie des N.T., 1941 e anos seguintes.
47. Nieuwere opvattingen omtrent het koninkrijk Gods, 1942.
48. Christus und die Zeit, 1946, e outras publicações.
49. Verheiszung und Erfüllung, 1945.
50. Op. cit., p. 59.
51. Op. cit., págs. 103-106.
52. H. M. Matter, Nieuwere opvattingen omtrent het koninkrijk Gods, 1942, p. 180ss.
53. Christus und die Zeit, p. 127.
54. Op. cit. p. 62.
55. Compare também a obra de Kümmel, Die Eschatologie der Evangelien, Ihre Geschichte und
Ihr Sinn, 1936, págs. 2,17.
56. Op. cit., p. 50.
57. Cf., p. ex., A. T. Cadoux, The Theology o f Jesus, 1940; F. C. Grant, The Gospel o f the Kingdom,
1940, que, mesmo criticando Dodd (cf. págs. 145, 146), chega a conclusões parecidas (p. 146ss.)
e afirma que o escopo da pregação de Jesus para os nossos dias pode ser entendido somente no
N ota s 381

sentido do “ evangelho social” : “ em nossos dias... os princípios dos ensinamentos de Jesus só


podem ser aplicados nos termos do evangelho social” (p. 134).

Capítulo I

*. O autor se refere às obras consideradas apócrifas e pseudepígrafas, escritas em grego e pro­


duzidas no período intertestamentário e que nunca alcançaram status canônico. A pesar disso,
elas servem como m aterial para estudo e análise do desenvolvimento da teologia ju d aica nessa
época. (N. do T.)
1. A saber, SI 103.19; 145.11, 13; Dn 3.33; essas quatro passagens falam do malkuthh (reino) de
Yahweh ou do Altíssim o. No SI 22.29 e em Ob 21, o mesmo domínio é indicado como malku­
thh, enquanto, em lC r 29.11, o malkuthh de Yahweh é ainda comentado no sentido de poder e
dignidade real. Fora essas passagens, o Antigo Testamento não aplica o abstractum “ domínio
real” a Yahweh.
2. P. ex., SI 10.16; 24.7-10; 44.5; 47.3; Is 6.5; 33.22; 43.15; Jr 10.7.
3. P. ex., ISm 8.7; SI 93.1; 96.10; 97.1; Is 24.23.
4. P. ex., Ê x 15.18; Dt 33.5; Nm 23.21; lR s 22.19.
5. A ssim A. Freiherr von Gall, Basileia tou theou, 1926. De acordo com esse escritor, todo esse
pensamento deriva do parseeism o, de onde foi copiado pelo Deutero-Isaias. M as cf., por outro
lado, G. Gloege, Reich Gottes undKirche im N.T., 1929, p. 5ss..
6. Veja, p. ex., Êx 15.18; (cf. vs. 11, 14); lR s 22.19; Is 6.5 (cf. v. 3); SI 47.3; 103.19.
7. Veja, p. ex., Nm 23.21; Jz 8.23; ISm 8.7; 12.12; SI 48.2-3; Is 41.21; Jr 8.19; M q 2.13 e cf.
também Ê x 19.6.
8. TW B, I, p. 567, “basileus” ; cf., p. ex., SI 103.19; 145. ll-1 3 ss.
9. Cf., p. ex., J. Ridderbos: Het Godswoordderprofeten, 1 ,1930, p. 84; cf. Também págs. 76ss.; 252;
II, 1932, pág. 331ss.; 352; III, 1938, p. 41; IV, 1941, págs. 193, 293; e Th. C. Vriezen, Hoofdlijnen
van de Theologie van het Onde Testament, 1949, págs. 139, 143, 174, 176, 291ss.
10. Também R. Otto admite isso em Reich Gottes und Menschensohn, 1934, p. 28: “ A o descrever
o D ia do Senhor e o tempo de salvação e paz, os profetas de Israel já concebem isso como um
estado final definitivo e, ao mesmo tempo, relacionam a esse estado características paradisíacas
do m iraculoso” ; cf. ainda Vriezen, op. cit., p. 173.
11. J. Ridderbos, op. cit., III, p. 21. Cf. também A. H. Edelkoort, De Christus-verwachting in het
Oude Testament, 1941, p. 157; P. A. Verhoef, Die vraagstuk van die onvervulde voorsegginge in
verbandmet Je saja 1-39, 1950, p. 305.
12. Como afirma, p. ex., G, Ch. Aalders, Daniel (K.V.) 1928, p .18.
13. Também conforme Von Rad, op. cit., p. 567.
* . O autor se refere ao fato de que S. Mowinckel, um estudioso alem ão que seguia a crítica da
forma, defendia que os salm os de ascensão estão relacionados com as cerimônias anuais da
entronização do rei, realizadas em Israel no ano-novo, sim bolizando a entronização de Yahweh.
(N. do T.)
14. Por conseguinte, também o plural toon ouranoon.
15. Cf. G. Dalman, Die WorteJesu I2',1930, p ágs.75, 76.
16. Dalman, op. cit. p. 77; Strack-Billerbeck, Kommentar zum Neuen Testament aus Talmud und
Midrasch, I, 1922, p. 172; K . G. Kuhn, TWB, I, p. 570.
17. Strack-Billerbeck, op. cit., I, p. 183; Kuhn, op. cit., I, págs. 570/71.
18. Cf. também Mt. 11.30.
19. Gamliêl II (c. 110 A .D .) respondeu àqueles que lhe haviam dado, como noivo, perm issão para
omitir a leitura do Shema na noite de núpcias: “N ão lhes obedeço nisso; não tirarei meu Malkuthh
shamain, nem mesmo por uma hora” . Cf. Dalman, op. cit., p. 80.
20. Cf. Strack-Billerbeck, op. cit., I, p. 178.
382 A v in d a d o R e in o

*. O “ Qaddisch” é uma oração judaica recitada no ritual diário da sinagoga e pelos enlutados em
cultos públicos, após a morte de parentes próximos. (N. do T.)
21. Veja, sobre isso, p. ex., E. Schürer, Geschichte des jüdischen Volkes, II4, 1907, p. 579ss. R. H.
Charles, A Criticai History o f the Doctrine o f a Future Life in Israel, in Judaism, and in Christi-
anity2, 1913, p. 167ss.; Strack-Billerbeck, op. cit., IV, 2, 1928, p. 799ss.; W. O. E. Oesterley, The
Doctrine ofthe Last Things, Jewish and Christian, 1908, p. 65ss. Sobre os textos referidos, p. ex.,
E. Kautzsch, Die Apokryphen und Pseudepigraphen des Alten Testaments, 1921.
22. Op. cit., I, p. 573.
23. Cf. também, p. ex., Delling, TW B, III, p. 461, o artigo sobre “kairos” .
24. Veja também F. Busch, Zum Verstãndnis der synoptischen Eschatologie, 1938, págs. 29-37.

Capítulo II

1. Isso é ressaltado enfaticamente por R. Otto, Reich Gottes und Menschensohn, 1934, p. 34ss.
2. R Feine, Theologie des Neuen Testaments7,1936, p. 73.
3. Cf. também G. Dalman, Die Worte Jesu, I2, 1930, págs. 76, 77.
4. Cf. ainda G. Gloege, Reich Gottes undKirche im Neuen Testament, 1929, págs. 40, 50; e H. D.
Wendland, op. cit., p. 15. M as, em oposição a isso, veja T. Zahn, Grundriss der neutestamentlichen
Theologie, 1928, págs. 6, 7.
5. D as Wesen des Christentums, 1905, págs. 34-45.
6. Veja, p. ex., K. Holl, Urchristentum und Religionsgeschichte2, 1927, p. 19; veja também,
§ 27, abaixo.
7. Die Eschatologie des Reiches Gottes hei Jesus, 1931, p. 14.
8. Op. cit., p. 13.
9. Op. cit., I, págs. 180, 181.
10. Veja abaixo, Capitulo V.
11. Sobre o significado específico da noção de aliança, veja, p. ex., Het Dogma der Kerk, org. por
G. C. Berkouwer e G. Toomvliet, 1949, p. 292ss
12. Cf. também o artigo de minha autoria, “ Verbond en Koninkrijk Gods” , publicado no Gereformeerd
Theologisch Tijdschrift, 1943, p. 97ss.
13. Sobre essa passagem e sua tradução veja abaixo, p. 52ss.
14. Cf. Wendland, op. cit., p. 17.
15. N as pegadas de A. Schlatter, G. Gloege defendeu esse ponto de vista com muita ênfase e bastante
detalhadamente em seu livro Reich Gottes und Kirche im Neuen Testament, 1929.
16. Cf., p. ex., S. Greijdanus, Het heilig Evangelie naar de beschrijving van Lucas, I, 1940,
p. 168.
17. Ela será formada em conexão com as passagens do Antigo Testamento que falam da “vinda”
escatológica de Deus e do M essias. “A palavra erchomai pertence ao mundo do pensamento da
epifania divina, Schneider, TWB, II, p. 664; cf. também Kümmel, op. cit., p. 67; F. Hauck, D as
Evangelium des Lukas, 1934, págs. 97, 98.
18. Veja ainda abaixo, p. 56ss.
19. Cf. Strack-Billerbeck, op. cit. 1, p. 115, “A ira futura significa o julgam ento de Gehinnom” .
20. Pelo menos de acordo com a versão mais provável, M arcos diz somente: “ Ele vos batizará com
o Espírito Santo” .
21. Assim , p. ex., S. Greijdanus, op. cit. I, págs. 170, 171.
22. E ssa é a visão recomendada, pois, nesse caso, o tema não é o Espírito Santo, m as o m ais poderoso,
cuja atividade tem um caráter duplo: salvar e punir. Também a cláusula aqui conectada, a saber,
“A sua pá, ele a tem na m ão” , etc., soaria, no mínimo, bastante inesperada, não uma continuação,
m as um contraste de pensamentos.
23. Cf. também J. Ridderbos, Het Godswoordderprofeten, I, 1930, p. 93.
N o ta s 383

24. P. ex., em Os Testamentos dos 12 Patriarcas : “Naquele tempo... o M essias... aparecerá; sobre
ele se abrirão os céus para derramar a bênção do Espírito do Santo Pai, enquanto ele mesmo der­
rama o Espírito de graça sobre Israel para que todos se tomem filhos de Deus e andem nos seus
mandamentos. Os inimigos de Israel serão destruídos... o fim dos incrédulos é o fogo eterno...” .
Cf. Strack-Billerbeck, op. cit., IV, p. 803. E ssa ideia de que o significado dado por João subsista
especialmente nareintrodução do elemento do derramamento do Espírito Santo dentro da totalidade
da expectativa judaica futura salvando-o assim do esquecimento, como visto por W. Michaeli,
Tanfer, Jesus, Urgemeinde, 1928, p. 36, não nos transmite uma descrição confiável.
25. Isto é muito comumente aceito; veja, sobre a literatura posterior, p. ex., G. Sevenster, De
Christologíe van het Nieuwe Testament, 1946, p. 78ss.
26. A. Freiherr von Gall, Basileia tou theou, 1926, p. 430ss.
27. Cf. também, de minha autoria, Zelfopenbaring en Zelfverberging, 1946,p. 36ss.
28. Para a exegese dessa passagem , veja § 46.
29. Para m ais detalhes veja § 25.
30. Para a interpretação m essiânica de Dn 7.13 na antiga sinagoga, veja Strack-Billerbeck, op. cit.,
I, págs. 485, 957.
31. Cf., p. ex., Strack-Billerbeck, op. cit., I, p. 199.
32. Veja este ponto no § 24.
33. Para ser entendido como a visão escatológica de “ face a face” ,cf., p. ex., E. Klostermann, Das
Matthãusevangelium2, 1927, p. 37; Strack-Billerbeck, op. cit. I, p. 207.
34. Sobre essa passagem , veja a descrição detalhada no livro de minha autoria, De strekking der
bergrede naar Mattheiis, 1936, p. 88ss.
35. Cf. acima, seção 4.
36. Op. cit., págs. 56-80.
37. Op. cit., págs. 81-110.
38. Para um argumento m ais elaborado contra essa interpretação de Dodd, veja também W. G.
Kümmel, Verheiszung und Erfüllug, 1945, p. 19ss.
39. De olho no original aram aico pressuposto, precisam os traduzir am bos com o “ O reino de Deus
chegou” , The Parables o f the Kingdom6, p. 44; cf. também H. M. Matter, Nieuwere opvattingen
omtrent het Koninkrijk Gods in Jezus ’prediking naar de Synoptici, 1942, p. 30ss. Veja, ainda,
a opinião de R. H. Lightfoot, J. Leipoldt e A. T. Cadoux, em Küm m el, op. cit., p. 12.
40. Por isso, Dodd aceita que Mateus, aqui em 3.2, não soube discernir corretamente entre as palavras
de João e as de Jesus, o que mostra ser assim em outros lugares, op. cit., p. 48. E, no entanto, evi­
dente que, por esse motivo, essa suposição afeta grandemente a credibilidade da visão de Dodd.
41. Cf. também Kümmel, op. cit., p. 14.
42. Op. cit., págs. 55, 56.
43. Cf. p. 12ss.
44. Bultmann se dissocia explicitamente das tentativas feitas pelos liberais e pelos adeptos da teologia
das religiões comparadas para purificar o N ovo Testamento de qualquer conteúdo “m ístico” , cf.
sua obra Neues Testament und Mythologie, 1942.
45. Cf. acima, p. 14.
46. Isso também é reconhecido por G. Delling, D as Zeitverstãndnis des Neuen Testaments, 1940,
p. 99; cf., ainda, Grundmann, TW B II, p. 21ss, o artigo sobre “ dei” .
47. Cf., abaixo, § 49.
48. Veja, sobre isso, também Kümmel, Verheiszung und Erfüllung, p. 88.
49. Delling, D as Zeitverstãndnis des N.T., 1940, p. 118.
50. Op. cit., p. 106.
51. Op. cit., p. 119.
52. Christus und die Zeit, p. 80. Cf., ainda, as objeções feitas por Schniewind contra Bultmann, em
Kerugma und Mythos, editado por Hans Wemer Barstsch, 1948, págs. 114, 116ss., 122ss.
53. Veja, também, abaixo, § 47.
384 A v in d a d o R e in o

54. Veja abaixo, § 31.


55. Sobre esta ideia universal a respeito da vinda do reino, compare ainda com as exposições de
Wendland, op. cit., págs. 21-27.
56. Cf. G. Delling, TWB III, p. 461; E. Lohmeyer, D as Evangelium des Markus, 1937, p. 30; E.
Klostermann, D as Markusevangelium?, 1936, p. 12; O. Cullmann, Christus und die Zeit, 1946,
p. 35.
57. Veja, ainda, p. ex., Klostermann, D as Lukasevang.2, 1929, p. 63.
58. P. ex., também E. Klostermann, em M c 1.14: “ Comparado com a am eaça muito bem conhecida
de João, esse sumário dá ainda maior proeminência ao que é novo na pregação de Jesus, ou seja,
o cumprimento da prom essa” ; D as Markusevangelium3, 1936, p. 11; e F. Hauck, “Basicamente,
Jesus abre mão do método utilizado por João Batista e apresenta ao povo o anúncio aberto e
livre da mensagem da paz, dizendo ter agradado a D eus deixar que o tempo da salvação comece
imediatamente” ; D as Evangelium des Markus, 1931, p. 19.
59. Cf. também R. Otto, Reich Gottes und Menschensohn, 1934, págs. 58-63.
60. Lucas acrescenta aqui kai deeseispoiountai (“ e fazem orações”), o que, provavelmente, significa
guardar dias de oração e a prática de reuniões de oração, cf. também L c 11.1; cf. Hauck, op. cit.,
p. 76.
61. C f., ainda, Küm m el, op. cit., p. 43: “ Por um lado, e ssa palavra também faz claramente
referência ao tempo de cumprimento, tanto presente com o escatológico, caracterizado pela
presença do noivo, e, por outro lado, ela leva em consideração um tempo m aior ou menor de
separação de Je su s” .
62. É característico ser esse um dos casos bastante raros nos quais M ateus chama Jesus de “ o Cris­
to” (“ Quando ouviu... falar das obras de Cristo” ). Parece que o evangelista quer, primeiramente,
salvaguardar seus leitores contra a incerteza aparente na pergunta de João.
63. Cf. acima p. 35ss, ao mesmo tempo, essa indicação é uma forte evidência do fato de que a pergunta
de João era determinada historicamente; ou seja, ela não pode ser considerada como uma fórmula
“ cristã” posterior porque, na igreja, posteriormente, Cristo nunca foi referido dessa maneira, até
onde sabemos. Cf. também Kümmel, op. cit., p. 67; Hauck, op. cit., págs. 97, 98.
64. Em alguns manuscritos: “um profeta maior” .
65. N ão fazendo como Bultmann. Este afirma que as duas partes dessa passagem são o resultado
de duas tendências diferentes na tradição: uma representa João como “ o aliado da causa cristã” ,
a outra coloca em evidência a sua inferioridade em relação a Cristo, Die Geschichte der synop-
tischen Tradition2, 1931, p. 177.
66. Cf. Th. H. Robinson, The GospelofMatthew (em TheMoffattN.T. Comm.), 1945, p. 101: “João
era m ais que um profeta, não quanto à natureza ou inspiração, m as quanto à função” .
67. Cf., de minha autoria, De strekking der bergrede naar Mattheiis, 1936, p. 107ff; Het evangelie
naar Mattheiis, I, 1941, págs. 215, 216.
68. Cf. W. M anson, The Gospel ofLuke, (em The MoffatNew Testament Commentary), 1945, p. 81:
“ E ssa declaração que sugere que João ainda rejeita a revelação pregada por Jesu s concorda com
a situação revelada na pergunta de João B atista” ; veja também Greijdanus, Luke, I, p. 340.
69. Cf., p. ex., também N. B. Stonehouse, The Witness o f Matthew and Mark to Christ, 1944, págs.
133,245; C. H. Dodd, op. cit., p. 47; Th. Robinson, op. cit., págs. 101, 102; S. Greijdanus, op. cit.,
I, p. 340; F. W. Grosheide, Het heilig Evangelie volgens Mattheüs, 1922, p. 134 e outros. Outros
querem pensar na revelação futura do reino. Assim , p. ex., temos Crisóstomo e outros Pais da igreja
que ligaram com este a visão de que ho mikroteros é o próprio Jesus. N as pegadas de F. Dibelius
(.ZNTWXl, 190), esse ponto de vista é adotado também por F. Hauck, op. cit., págs. 99, 100: “ Em
sua relação com João Batista, Jesus ainda é o m ais novo dos dois e, aos olhos de muitos outros, ele
é, até mesmo, inferior. N a nova ordem das coisas, ele será o m aior” . E, no entanto, difícil entender
por que Jesus deveria ser menos estimado que João, cf. também J. Schniewind, D as Evangelium
nach Matthaus, 1937, p. 139, e Greijdanus, op. cit. Porém, independentemente da aplicação de
ho mikroteros a Jesus, há escritores que pensam, nesse caso, na revelação escatológica futura do
N o ta s 385

reino. M as, então, a passagem parece afirmar que João permanecerá fora do reino e essa é uma
concepção que, para mim, é inaceitável; cf. também Klostermann, op. cit., p. 98.
70. Para uma explicação dessa tradução, veja, de minha autoria, Het Evangelie naar Mattheüs, I,
1941, págs. 216, 217 (nota). Para ver o outro lado, veja G. Schrenk, em TWB, I, p. 608ff., artigo
sobre “biazom ai” , e Kümmel, op. cit., p. 71. D e acordo com esses escritores, a tradução deveria
ser: “ o reino está sofrendo violência e os violentos o estão saqueando” . Eles, então, o entendem in
malam partem. A última parte é interpretada como dizendo que hoi biastai (“os violentos”) tentam
roubar o reino do homem. Alguns comentaristas explicam “ os violentos” como sendo o mundo
dos espíritos maus (assim , p. ex., M. Dibelius, Die urchristliche Ueberlieferung von Johannes
dem Tãufer, 1911, p. 26ff, em Kümmel, p. 72); outros se referem aos opositores judeus (assim ,
p. ex., Schrenk, op. cit., Wendland, op. cit., p. 48); outros deixam essa questão em aberto (K üm ­
mel, p. ex., op. cit., p. 72). A s objeções contra esse ponto de vista são: (a) que não há nenhuma
menção de tal oposição violenta ao reino em todo o contexto. É por esse motivo que Kümmel,
bem como Schrenk, separa esse dito do seu contexto tanto em Mateus como em Lucas; (b) que a
versão de Lucas fala muito decididamente de uma vinda benéfica da basileia ( evanggelizetaí); (c)
que o roubar da basileia por terceiros é um pensamento praticamente inaceitável; G. Sevenster,
De Christologie van het N. T., 1946, cita essa passagem como prova da presença da basileia, sem
fazer uma escolha entre os dois conceitos, págs. 19, 20.
71. O ponto de vista de Albert Schweitzer, de que arpazousin significa, às vezes, “ forçar” , ou seja, trazer
a vinda do reino para m ais perto à força (por realizações morais especiais, Mt 5-7, pelos discípulos
tomando sobre eles as aflições messiânicas, Mt 10, pelo autossacrifício de Jesus, M t 20. 28) é muito
cômodo para a explicação escatológica consistente de Schweitzer da vida de Jesus, mas não encontra
apoio nem no uso lingüístico nem no contexto; cf. também Schniewind, Matthew, p. 140.
72. Hauck, op. cit., p. 207; veja, também, E. Klostermann, D as Lukasevangelium, 1929, p. 167;
Greijdanus, op. cit., II, p. 786.
73. Veja abaixo, § 17.

Capítulo III

1. Veja, p. ex., Kümmel, op.cit., p. 64. Ele mostra muito claramente que a palavra ephthasen, aqui
usada, não pode ter o significado de eggiken, como também eggiken, em Mt 3.2,17 não pode ter
o significado de ephthasen.
2. D e acordo com R. Otto, op.cit., p. 79, essa referência à presença da basileia é uma prova de que
o que havia sido colocado em dúvida há muito já havia sido ensinado por Jesus. A palavra ara
significaria algo como “ realmente” , “ deveras” e voltaria a focalizar as declarações anteriormente
feitas por Jesus de que o reino havia chegado. M as esse ponto de vista só pode ser considerado
como uma suposição.
3. E ssa é uma alusão a Is. 49.24ss: “ Tirar-se-ia a presa ao valente? A caso, os presos poderiam fugir
ao tirano? M as assim diz o Senhor: Por certo que os presos se tirarão ao valente, e a presa do
tirano fugirá, porque eu contenderei com os que contendem contigo e salvarei os teus filhos” . Cf.
também Bultmann, Geschichte2, p. 103; R. Otto, op.cit., p. 77.
4. Cf. E. Stauffer, Die Theologie des N.T., 1945, págs. 103-105.
5. Johannes Weiss, Die Predigt Jesu vom Reiche Gottes, 1892, p. 88ss; cf. também W. M ichaelis,
Tãufer, Jesus, Urgemeinde, 1928, p. 74; R. Bultmann fala do “ sentimento glorioso da atitude
escatológica” e do “ sentimento escatológico de poder” , Geschichte, págs. 110, 174.
6. Cf. H. D. Wendland, Die Eschatologie des Reiches Gottes bei Jesu s , 1931, p. 48; Cf. ainda
Kümmel, op. cit., p. 65.
7. Cf. Schniewind, op. cit., p. 30; E. Stauffer, op. cit., p. 104; veja, ainda, §22.
8. Cf. ainda, de minha autoria, Zelfopenbaring en Zelfverberging, 1946, págs. 51, 52; G. Sevenster,
De Christologie van het N.T., 1946, p. 108.
386 A v in d a d o R e in o

9. Cf., p. ex., Klostermann, D as Litkasevangelium2, 1929, p. 101.


10. Cf. Greijdanus, op. cit., I, p. 477; Klostermann, op. cit., p. 17; M anson, op. cit., p. 125; F. Hauck,
D as Evangelium des Lukas, 1934, p. 142.
11. D e acordo com alguns escritores, a frase ek toa ouranou indica o firmamento, onde Satanás ocupa
o seu lugar como o príncipe dos espíritos (E f 2.2; 6.12); assim , veja M anson, op. cit. D e acordo
com outros, essas palavras indicam, de modo simbólico, sua posição de poder, Greijdanus, op.
cit., I, p. 479. Ainda outros acreditam que elas se referem ao céu como o lugar onde D eus habita
e onde Satanás se coloca diante D eus (como acusador) (cf. A p 12.7-12), assim Hauck, op. cit:,
Sevenster, op. cit., p. 17.
12. D e acordo com Zahn, D as Evangelium des Lukas 3- 4, 1920, p. 420; Greijdanus, op. cit., I, p.
478, embora este último reconheça que, dessa maneira, o etheooroun imperfeito continua sem
explicações.
13. Geralmente é explicado como sendo uma visão. Bultmann, op. cit., p. 113; M anson, Hauck,
Klostermann, op. cit.', cf. também Kümmel, op. cit., págs. 69-70.
14. Também de acordo com Matter, op. cit., p. 36.
15. Cf., também, J. Ridderbos, Predikende het evangelie des koninki-ijks, 1911, p. 62.
16. Stauffer, op. cit., p. 105; cf. também Wendland, op. cit., p. 232.
17. Cf. W. Grandmann, TWB, II, 1935, p. 303, o artigo sobre “ dunamai, dunamis” : “ Os milagres de
Jesus fazem parte do domínio de Deus forçando seu caminho mundo adentro, trazido por Jesus em
pessoa, pregando e agindo; eles são o domínio divino que conquista e faz recuar o domínio satânico.
Os m ilagres de Jesus, bem como toda a sua história, são acontecimentos escatológicos” .
18. Cf., p. ex., Kümmel, op. cit., p. 66ss: “A ssim sendo, para ser considerada como prova do início
do domínio de Deus, a resposta de Jesus à pergunta de João Batista requer as ações de Jesus e
sua pregação” .
19. Para literatura, veja, p. ex., Grundmarm, op. cit., p. 302; G. Sevenster, op. cit., p. 31.
20. Op. cit., págs. 285-289.
21. Op. cit., p. 297.
22. Op. cit., p. 292.
23. Op. cit., p. 298ss, em que, p. ex., ele se refere a Fr. Fenner, Die Krankheit im N.T., 1930 (que
faz uma tentativa elaborada para explicar os m ilagres de Jesus à luz da psicopatologia moderna)
e especialmente aos relatos sobre Blumhardt.
24. Cf., p. ex., Gmndmann, op. cit., p. 303ss; Sevenster, op. cit., p. 32ss e Oepke, TWB, III, p. 213,
o artigo sobre “ iaom ai” .
25. Veja, p. ex., a pesquisa sobre os “ traços característicos” nas histórias dos milagres, em Bultmann,
Gesch. D. Syn. Trad.2, 1931, págs. 236, 237.
26. Cf. Klostemann, Markusevangelium, p. 73.
27. R. Otto não pode negar isso, m as (em total conflito com seu ataque justificado contra o tratamento
dado aos m ilagres de Jesus pela escola da crítica da forma, que os considera como lendas, págs.
289-292, 301) é da opinião de que essa caracterização dos m ilagres de Jesu s vem de um a tradição
posterior. De acordo com a intenção do próprio Cristo, seus milagres definitivamente não devem
ser considerados como uma “ epifania do M essias” . Independentemente do fato de que essa tese
não tem a mínima probabilidade de ser provada, deve estar claro a todos que a explicação natura-
lística do evangelho feita por Otto está inteiramente em conflito com o propósito da pregação de
Jesus. Além disso, é fenomenologicamente deficiente, pois alega paralelos histórico-redentores
somente para um número reduzido de m ilagres de Jesus (silenciando, p. ex., sobre os “ milagres da
natureza” e a ressurreição de mortos); e até m esmo esse pequeno número de m ilagres é entendido
por ele de modo muito arbitrário (p. ex., as “ curas” de doenças baseadas em doenças neurológicas,
com plexos físicos e semelhantes, cf. op. cit., p. 298).
28. Cf. H. D. Wendland, op. cit., págs. 224, 225, 230, 231. “ O reino de Deus tem três inimigos:
Satanás, o pecado e a doença. Pecado e doença são conseqüências do domínio de Satanás sobre
o homem. Jesus não reflete sobre a coerência m etafísica deles. Desde o começo, ele junta esses
N o ta s 387

três associados num único reino de demônios e pecado e os coloca em oposição ao domínio de
D eus e ao Espírito de D eus” .
29. Hen edesen ho satanas.
30. A. Plummer, A Criticai and Exegetical Commentary or the Gospel acc, to St. Luke,~ 1942, fala
de “um demônio” e se refere a L c 11.14; M c 9. 17, 25 e prefere entender isso como sendo uma
possessão demoníaca, págs. 341, 342; do mesmo modo, W. M anson, The Gospel ofLuke5, 1945,
p. 164, m as quanto a isso ele fala de um “traço secundário” , pois os sintomas comuns do estado
de estar possesso não estão presentes. Além disso, Jesus não trata esse caso como se estivesse
frente a um possesso. Greijdanus não vê esse como um caso de possessão, m as escreve: “ esse
era um sofrimento físico infligido pela atividade de Satanás” , op. cit., II, p. 652. E. Klostermann,
Markusevangelium, págs. 14, 15, escreve que, mesmo que, geralmente, a cura de enfermidades
e de possessão demoníaca seja distinta, também se torna manifesto, aqui e ali, um conceito m ais
primitivo, de acordo com o qual todas as enfermidades são causadas por demônios, e, como
evidência disso, ele cita também esse caso.
31. Epetimesen tooi puretooi.
32. Cf. Greijdanus, Luk. I, págs. 225, 226.
33. Greijdanus escreve: “ O Senhor trata a tempestade, as ondas, bem como a febre, como criaturas
racionais. Isso é m ais bem entendido no caso do poder dos demônios agindo na tempestade” ,
op. cit. I, p. 381.
34. Cf. Stauffer, Die Theologie des N.T., 1945, p. 104.
35. Stauffer em TWB o artigo sobre “epitiman” , II, p. 623.
36. Sevenster, op. cit., p. 32; cf. também Oepke, TW B II, p. 334, o artigo sobre “ egeiro” .
37. Cf. Wendland, op. cit., p. 238: “ Se Jesus se posiciona como o portador do poder vivo, purificador
e renovador de Deus, em contraste com o pecado, a enfermidade e os demônios, ele não pode ser
diferente em oposição à morte” .
38. Cf., p. ex., Klostermann, Markusev., págs. 116, 117.
39. Cf., de minha autoria, Mattheüs, II, 1946, p. 85.
40. K ai dunamis kuriou en to iasthai auton. D e acordo com alguns escritores, a palavra kuriou
significa o poder de D eus operando em Jesus e por meio dele; é, no entanto, m ais provável que
o nome kurios seja usado aqui para designar o próprio Jesus, do mesmo modo que em outros
lugares em Lucas.
41. Cf. Grundmann, op. cit., p. 308.
42. Cf., também, Sevenster, op. cit., p. 35ss; Matter, op. cit., p. 91.
43. Cf. H. W. Beyer, TWB, II, p. 601, o artigo sobre “ episkeptomaí” .
44. Cf., também, Kümmel, op. cit., p. 69.
45. É notável que o substantivo não é encontrado em Lucas, m as o verbo euaggelizesthai é usado
ainda com m ais frequência (p. ex., 4.18, 43; 8.1; 16.16; 20.1). Cf. J. Schniewind, Euangelion, I,
1927, p. 13.
46. Veja um ponto de vista diferente em J. de Zwaan, Inleiding tot het N.T., I, 1941, p. 21s.; cf.
também Schniewind, op. cit., p. 4.
47. Isso foi claramente estabelecido no livro de Schniewind com base em investigações anteriores
feitas por Johannes Muller, A. Schlatter (em Neutest. Theologie, I, 1909, de sua autoria) e M.
Burrows (“The Origin o f the Term ‘G ospel’” , em Journal ofBiblical Literature, 1925, págs. 21-33)
e em oposição ao ponto de vista de que a expressão euangelion (evangelho) tinha sido introduzida
posteriormente pela igreja, tendo se originado no helenismo (segundo Wellhausen, Einleitung in
die drei ersten Evangelien, 1905, p. 108ss.). Sobre a história dessa investigação, veja Schniewind,
Euangelion, 1927, págs. 5-18 e a literatura em WTB, II, p. 705.
48. Além de Is 52 e 61, a figura do mensageiro da paz que anuncia a intervenção salvadora de Yahweh
(como Rei) também é encontrada em Is 40.9; 41.27 (cf. ainda N a 2.1; SI 68.12). Veja a discussão
sobre essas passagens em Schniewind, op. cit., I, págs. 34-51; também J. Ridderbos, De profeet
Je saja IP, 1934, p. 126.
388 A v in d a d o R e in o

49. Cf., também Friedrich, WTB, II, págs. 712-714, o artigo sobre “ euaggelizom ai” e o material em
Strack-Billerbeck, III, 1926, págs. 4-11.
50. Veja ainda, de minha autoria, De strekking van de bergrede naar Mattheiis, 1936, p. 27.
51. Cf., também, Friedrich, TWB, II, p. 715, o artigo sobre “ euaggelizom ai” : “A mensagem cria uma
nova era e tom a o sinal do cumprimento m essiânico possível. A palavra trás para perto o domínio
de D eus” . A ssim também, em especial, Schniewind, Euangelion, I, p. ls s ., e pronunciamentos
feitos por outros autores (embora em sentidos bem diferentes) aqui mencionados.
52. Cf., p. ex., também W. Foerster, TWB, II, p. 566, o artigo sobre “ exousia” .
53. Conforme Kittel, TWB, IV, p. 106, o artigo sobre “ lego” .
54. Cf., também, Schniewind, D as Evangelium nach Markus5, 1949, p. 59ss.
55. phobeisthai, thambein, thaumazein, ekplettesthai, thorabeisthai, existasthai.
56. “Portanto, as expressões de medo e assombro servem para enfatizar o conteúdo revelacional e,
desse modo, o significado cristológico de inúmeras cenas sinópticas de Jesus.” G. Bertram. TWB,
III, p. 6, o artigo sobre “thambos” ; veja ainda p. 36ss, o artigo sobre “thauma” .
57. Didache kaine kat’exousian.
58. Cf., p. ex., Klostermann and Hauck sobre Mc 1.27; ainda G. Sevenster, op. cit., p. 41ss., e B er­
tram, op. cit., p.6.
59. Conforme Kittel, op. cit., p. 128. E ele acrescenta: “M as essa não é a ‘teologia da igreja’ , porém,
de acordo com os inúmeros testemunhos da tradição reunida, é o conhecimento de Jesus sobre sua
m issão” . Cf., também, Friedrich, TW B, II, p. 725, o artigo sobre “ euaggelion” : “ O que foi dado
com a sua pessoa constitui o conteúdo do evangelho. Jesus introduz a basileia; em sua Palavra,
o reino é realizado” , p. 726.
60. Cf., também, K. L. Schmidt, TW B, I, págs. 588, 589, o artigo sobre “basileia” .
61. Conforme, p. ex., H. D. Wendland, op. cit., p. 41, em concordância com Michaelis. Ele não acredita
que o tempo presente estin esteja em conflito com esse, pois, em aramaico - a língua falada por
Jesus - não há equivalente. Também Kümmel, op. cit., p. 26, cf. p. 74, considera o significado
das bem-aventuranças como sendo “ escatológico-futuro” , como Klostermann que se refere a Mt
5.4-9; M c 10.14, D as Matthãusevangelium, p. 35. Ele caracteriza a posse da salvação como uma
prom essa; Das Lukasevangelium, p. 79. Zahn chama estin de um presente eterno, que também
pode ser estai. Que estin deve ser visto como futuro está implícito na ligação entre os vs. 3a e 10a
com 3b e 10b; “ Os pobres e os perseguidos não podem estar simultaneamente nessa condição e
em posse da basileia” , D as Ev. D. Matth.1', 1922, págs. 194, 195; cf. ainda Schniewind, Mattk,
p. 39. M as A. Schlatter, Der Ev. Matthãus, 1933, p. 134 diz: “ Com esse estin o futuro adentra
o presente. A os pobres lhes é dito terem parte na obra real de D eus como possessão atual” ; cf.
também Grosheide, Matth., p. 46, e A. Plummer: “ ‘é...’ não ‘ será’ . N ão é um a prom essa, como
nas bem-aventuranças seguintes, mas a confirmação de um fato” . A Criticai andExegetical Com-
mentary on the Gospel according to St. Luke5, 1942, p. 180.
62. Por isso, também não é claro o motivo pelo qual o reino dos céus não pode ser proclamado
como “ a p osse” dos pobres de espírito, como é, p. ex., a opinião de H. D. Wendland op. cit.,
p. 41. O que importa é o que é entendido por esse conceito. A qualificação “posse” não pre­
cisa, necessariamente, indicar uma ideia imanente do reino destacado do caráter escatológico
e teocêntrico do reino. N ão é a ideia da imanência do reino como tal que é censurável, m as a
m aneira como tem sido com frequência definido; cf., também, M ichaelis, Es ging ein Sãmann
aus, 1938, págs. 113-116.
63. P. ex., J. Jerem ias, Die Gleichnisse Jesu, 1974, págs. 100, 101.
64. C. H. Dodd, The Parables o f the Kingdom6, 1943, págs. 112, 113.
65. E no mínimo duvidoso seguir em frente e considerar as circunstâncias encontradas na parábola
como parte integrante do simbolismo da parábola, ou seja, que o tesouro fora encontrado, da
primeira vez, acidentalmente e, da segunda vez, de uma maneira bastante diligente (cf. Matth.
I. p. 266).
66. Verheiszung imdErfiillung, 1946, p. 73, A. 193.
N o ta s 389

67. M ichaelis pergunta-se se o tesouro pode representar o próprio Jesus ou a palavra do reino (como
se o reino pudesse ser algo distinto de Jesu s e o evangelho por ele pregado; compare Mc 10.29
com L c 18.29!). M esm o que a parábola pareça apontar para algo presente, M ichaelis acredita que
é muito provável que, nesse caso, a referência seja ao próprio reino e, então, conclui que o tesouro
adquirido é “ ter parte no reino de D eus ou ser merecedor do reino” , op. cit., págs. 108-112. Há
outras opiniões sobre isto, como, p. ex., A. M. Brouwer, De Gelijkenissen, 1946, p. 152.
68. Dodd, com toda razão, op. cit., p. 113.
69. Veja o Capitulo VI.
70. Lehrbuch der Dogmen geschichte, I4, 1909, p. 81.
71. Jesus, 1929, p. 13; cf. também, de minha autoria, Zelfopenbaring, p. 15.
72. Neutest. Theol. I, págs. 308, 309.
73. Evangelium und Welt, 1929, p. 44; cf. também págs. 77, 78.
74. Cf. § 6.
75. Sobre o conceito da m essianidade de Jesu s formado por Schweitzer e seus partidários cf., de
minha autoria, Zelfopenbaring en Zelfverberging, págs. 8ss, 17ss.
76. E sse pensamento se encontra registrado em seu livro Tãufer, Jesus, Urgemeinde, 1928, como
também no livro menor: Reich Gottes und Geist Gottes nach dem N.T., 1931, p. 9.
77. G. Vos: The Self-Disclosure o f Jesus, 926, p. 83.
78. A. Schweitzer, D as Messianitãts undLeidensgeheimnis2 1929, p. 67.
79. Op. cit., págs. 68ss.; cf. também R. Otto, Reich Gottes und Menschemohn, 1934, p. 190ss.,
embora não aceite a m essianidade de Jesus como sendo puramente futura (entre outras, ele aplica
as declarações sobre a Paixão ao Filho do Homem ao presente, cf. p. 195).
80. N . B. Stonehouse, The Witness o f Matthew and M arkto Christ, 1944, p. 16ss.
81. G. Sevenster, op. cit., p. 101 ss.
82. Cf. também G. Vos, op. cit., p. 85: “ Está simplesmente fora de cogitação que Jesus tenha colocado
a indicação ao ofício propriamente dito como pertencente às coisas futuras” .
83. Cf., p. ex., H. J. Holzmann, D as messianische Bewusstsein Jesu, 1907, p. 45ss e a literatura
citada aí.
84. D os escritores m ais recentes, p. ex., Bultmann, Geschichte, p. 264 A.
85. Cf. p. ex., Hauck sobre M c 1.10, op. cit., p. 15: “ O enchimento do Espírito é o equipamento
para o oficio do M essias” .
86. A ssim W. M ichaelis, Reich Gottes und Geist Gottes nach dem N.T., p. 4. Veja, no entanto, J.
Ridderbos, De profeet Jesaja, II,2p. 205. Em outro lugar, em At 10.38, Jesus de Nazaré é referido,
explicitamente, como “ungido com o Espírito Santo e com poder” .
87. M ichaelis, op. cit., págs. 13, 17.
88. He toupneumatos blasphemia, M t 12.31; blasphemein eis topneuma to hagion, M c 3.29, cf.
L c 12.10
89. Eipein kata tou pneumatos tou hagiou.
90. Em oposição a M ichaelis, op. cit., p. 15.
91. Op. cit., p. 11.
92. Op. cit., p. 15.
93. Op. cit., p. 17.
94. Cf., também, Sevenster, op. cit., p. 101.
95. Segundo A. A. van Ruler, De Vervulling der wet, 1947, p. 83; cf. também R. Otto, op. cit., p.
13 ls s .; 167.
96. A. Hamack, “ Ich bin gekommen” , Zeitschr. F. Theol. Und Kirche 22, 1912, p. lss.
97. Op.cit., p. 105.
98. J. Schneider, TWB, II, p. 664, o artigo sobre “ erchomai” , cf. também Bultmann, Geschichte,
p. 168.
99. Segundo Bultmann, op. cit., págs. 163-174.
100. Cf. E. Stauffer, TWB, II, p. 345, o artigo sobre “ego” .
390 A v in d a d o R e in o

101. Cf. Greijdanus, op. cit., “ É verdade que o Senhor começou a acender este fogo com sua vinda
à terra; todavia, esse fogo foi totalmente aceso somente com o término de sua obra de redenção,
sua ressurreição, sua ascensão ao céu e com a descida do Espírito Santo” .
102. Cf., também, Manson, op. cit., p. 160; Klostermann, op. cit., p. 141.
103. Stauffer diz, acertadamente, sobre este assunto: “O que Jesus diz aqui não é uma nova percepção
de uma antiga verdade; o que ele exige não é meramente um novo avanço no caminho interminável
em direção ao ideal eternamente válido. A validade desse comando é inteiramente ligada à compe­
tência de sua pessoa e à legitimidade de sua missão. O M essias veio e, capacitado pela autoridade
de Deus, convoca o seu povo. A validade de suas palavras deriva somente do seu ego” .
104. K. L. Schmidt, TWB, I, págs. 590, 591, o artigo sobre “B asileia” .
105. Elaborado especialmente em seu trabalho Kõnigsherrschaft Christi und Kirche im Neuen
Testament2, 1946.
106. Op. cit., págs. 11-19.
107. Cullmann, op. cit., p. 19, n. 24; Schmidt, op. cit., p. 582.

Capítulo IV

1. Conforme Zahn, op. cit.


2. Schniewind, Matth., p. 85.
3. E. Klostermann, D as Matev., p. 59; também conforme M. Dibelius, Evangelium and Welt, 1929,
que quer interpretar “o m al” como “ o mundo mau” , p. 72.
4. Op. cit., p. 85: “E por esse motivo que as pessoas podem orar pedindo que D eus ponha um fim
às horas de dificuldades” .
5. Veja, p. ex., Dodd, op. cit., p. 166, que entende essas aflições como presentes, ou seja, como a
“hora da crise” do sofrimento e da morte de Jesus.
6. Veja § 47.
7. Também conforme Schniewind, op. cit., p. 85.
8. Cf., p. ex., Klostermann, D as Lukasevangelium2, 1929, p. 212; Greijdanus, op. cit. II, p. 1070.
9. Conforme Stáhlin, TWB, I, 1933, p. 194, o artigo sobre “ exaiteo” .
10. Aqui, Greijdanus pensa especialmente em Satanás tentando a Cristo por intermédio de seus
discípulos: “ Era algo entre Deus e Satanás. Poderia Satanás provocar a queda de nosso Senhor
Jesus, o qual D eus havia dado como M ediador e Redentor? Portanto, Satanás exigira de Deus
que pudesse usar de todos os m eios para esse propósito, incluindo atacar o Senhor por intermédio
de seus discípulos, de maneira amedrontadora... para combatê-lo e, se possível, conquistá-lo...”
No entanto, apesar de ser possível acreditar que esse pensamento também esteja implícito nesse
contexto, a questão tem a ver, primeiramente, com a tentação dos discípulos.
11. Cf. Stauffer, TWB, II, p. 346.
12. (Para Satanás) “ oportunidade” , “boa ocasião” ; assim , aparentemente, Greijdanus, op. cit., I, p.
203; também de acordo com Plummer, op. cit., p. 114, recorrendo a Jo 14.30; L c 22.53, etc. Outros
traduzem a palavra como: “ o tempo a ser designado por D eus” ; p. ex., Delling, TWB, III, p. 463,
o artigo sobre “kairos” , cf. também Klostermann, op. cit., p. 61.
13. Cf., p. ex., G. Dalman, Orte und Wege Jesu3, 1924, p. 201.
14. Cf., de minha autoria, Zelfopenbaring, etc., p. 51 ss.
15. A explicação de Schneider é inteiramente insuficiente, cf. TWB, I, p. 561, o artigo sobre “ basanos” :
“ O encontro de Jesus com os possessos por espíritos m alignos é percebido como uma experiência
bastante dolorosa para eles” . Em oposição a esse conceito, veja Klostermann, D as Matth. evang.,
p. 79, “tortura do inferno” (Hõllenqual).
16. Cf., também, Mc 1.24, em que apolesai é usado no mesmo sentido, “ lançar para dentro do lugar
de castigo eterno” , F. Hauck, Das Ev. d. Mark, 1931, p. 23.
17. Conforme Greijdanus, op. cit., I, p. 387.
N o ta s 391

18. Cf., também ,Plummer, op. cit., págs. 230, 231; Klostermann, op. cit., p. 101; “ Os demônios
estavam com medo de que fossem mandados por Jesus, nesse momento, ao lugar de punição” ;
Joachim Jerem ias, TWB, I, p. 9.
19. A frase em Mc 5.10 é m ais fraca: “N ão os mandassem para fora do país” , m as também aponta
para a perda da liberdade de movimento dos demônios.
20. Cf. Delling em TWB, III, p. 402, o artigo sobre “kairos” : “ O inicio do poder m essiânico sobre
os demônios” . Fora de cogitação está a explicação dada por Zahn, de que, com a expressão “ o
tempo” , os demônios queriam dizer o tempo em que Jesus também podia comandar num país
pagão, op. cit., p. 367. O contexto não dá m argem para essa interpretação.
21. Cf. acima, § 9.
22. Gesch. d. syn. Trad., p. 224.
23. D as Mrkev., p. 47.
24. D as Ev. d. Mark., págs. 96, 97.
25. D as Ev. d. Mark., págs. 153, 154.
26. Evangile selon S. Marc., 1947, págs. 129, 130.
27. O. Bauem feind, Die Worte der Dàmonischen im Mr., 1927, págs. 42-45.
28. Op. cit.
29. D as Ev. d. Lk, p. 355.
30. Der Ev. Matth., p. 294.
31. The Gospel ofLuke5 (em The MoffattN. T. Comm.), 1945, p. 96.
32. Op. cit., I, p. 388.
33. Cf., p. ex., Zahn, op. cit., p. 350; veja também The Westminster Elistorical Atlas o f the Bible,
1946, págs. 83, 84.
34. “A pesar de a razão para isso não nos ser conhecida com certeza, é apropriado para nós contem­
plarmos com reverência e adorarmos com devota humildade o julgam ento oculto de D eus” . Ioan.
Calv., In Harmonium etc. ed. Tholuck, 1833, p. 233.
35. Th. H. Robinson, The Gospel o f Matthew6 (em The Moffatt N. T.Comm.), 1945, p. 77.
36. The Mission and Message o f Jesus, 1946, p. 76.
37. Lembra-nos da explicação sobre os milagres dada pelo racionalista H. E. G. Paulus, 1828. Cf.
A. Schweitzer, Gesch. d. Leben Jesu Forschungf, 1933, p. 49ss.
38. E. P. Gould, A critic. andexeg. comm. on the Gospel acc. to St.Mark6,1921, p. 92.
39. Cf. § 10.
40. Cf., p. ex., também Schniewind, Matth., págs. 29, 30; M. Albertz., Die Botschaft das N. T., I,
1947, p, 13ss.
41. Veja, também, Klostermann sobre M c 1.38, op. cit., p. 19.
42. Cf. Schniewind, Markus, págs. 52, 53; Hauck, Markus, p. 28.
43. N o m esmo sentido, também, aparentemente, Klostermann, que nega que M arcos teria em mente
“uma im possibilidade m oral” , op. cit., p. 56.
44. Greijdanus quer explicar isso dizendo que os habitantes de Nazaré não levaram os seus enfermos,
“portanto ele não teve a oportunidade de curá-los” , Lukas, I, p. 215. M as isso não se encontra
escrito no texto e nem pode ser deduzido a partir da perspectiva de M c 6.2 e L c 4.23. Em Nazaré,
o povo realmente esperava e desejava ver milagres. Porém, precisamente, ao recusar-se a realizá-
los, Jesu s fez com que o propósito dos m ilagres sobressaísse ainda m ais claramente.
45. Cf. Hauck, op. cit., p. 98: “ei completa isso com ‘faça Deus isto e muito m ais a m im ’, uma
autoimprecação semítica que tem a intenção de ser um a afirmação bastante forte” . Schniewind
traduz: “ nunca m ais” , op. cit., p. 105.
46. Com respeito à expressão “três dias e três noites” , veja, de minha autoria, Mattheüs, I, págs. 244,
245; TWB, I, p. 148, sobre o artigo “haides” ; Schniewind, Matth., p. 157.
47. Mesmo que essa palavra não seja interpretada primariamente no sentido de tentação (diabólica), mas,
de preferência, no sentido neutro de “ colocar à prova” , seu significado factual é o de uma tentação no
sentido de Mt 4.8 (cf. também peirazein em Mt 4.1; M c 1.12; L c 4.2 e ho peirazoon em Mt 4.3).
392 A v in d a d o R e in o

48. Ad. Jülicher, Die Gleichnisreden Jesu,2 1 e II, 1910.


49. Cf., p. ex., Schweitzer, Gesch. d.Leb.- Jesu-Forsch., p. 402ss.
50. The Parables o f the Kingdom,6 1943.
51. J. Jerem ias, Die Gleichnisse Jesu, 1947, p. 13.
52. Cf. também, p. ex., M. Albertz: “ O objeto dominante da sabedoria (provérbios, parábolas, ale­
gorias) é o reino escatológico de Deus. E somente por se tratar do domínio real de Deus, o reino,
com respeito a este, foi eliminado da compreensão do homem.... E ssa sabedoria é, portanto, no
fundo, a revelação de um segredo, ou segredos, dos quais se origina toda a sabedoria” ; Botschaft,
I, I, p. 101; veja, ainda, págs. 82, 85, 94.
53. Veja, p. ex., R Fiebig, Die Gleichnisreden Jesu, 1912.
54. Cf., de minha autoria, Mattheiis, I, p. 253.
55. A ssim também Jeremias, op. cit., p. 8; veja, por outro lado, Albertz: “ A autenticidade dessa
palavra do Senhor precisará ser defendida em oposição a toda crítica liberal e racionalista” , op.
cit., p. 102.
56. A ssim também G. Bom kam m , TWB, IV, p. 824: o artigo sobre “musterion” : “ O mistério não pode
ser ligado a um conteúdo de significado geral da basileia, m as somente ao fato de seu começo” ; cf.
J. Schniewind, Markus, p. 72ss. e Matthãus, p. 162; também Jerem ias, op. cit., p. 8: “A expressão
‘o mistério do domínio real de D eus’ não im plica qualquer conhecimento de qualquer tipo sobre o
reino vindouro de Deus, m as somente o conhecimento acerca de seu início atual ” . Veja também,
de minha autoria, Zelfopenbaring em Zelfverberging, págs. 49, 50.
57. Veja acima, § 11.
58. Cf., também, de minha autoria, Mattheiis I, p. 262.
59. Também o termo forte ereuxomai, que traduzimos por “proferir” , é importante. Seu significado
adequado é “ derramar” e aponta para uma abundância de conteúdo, cf. também M. J. Lagrange:
“En mettant kekrummena après um verbe qui signifiait diretrès haut, Mat. a insistè sur le ca-
ractère révélateur des choses cachèes qu ’ avaient les paraboles pour qui les comprenait... Jésu
exposait les mystères du règne de Dieu, cachês ju sq u ’ àprésent, révélés aux seuls disciples...”
(“ Colocando o kekrummena depois de um verbo que significava ‘falar bem alto’, Mateus insistiu
no caráter revelacional das coisas escondidas nas parábolas para aqueles que as compreendiam...
Jesus revelou os mistérios do domínio de D eus que haviam sido, até então, escondidos e foram
revelados apenas aos discípulos...” ) Evangile selon S. Matthieus, 1941, p. 272.
60. A tradução é incerta; outra possível tradução é:“ que tem se tom ado um aluno para o reino do
céu” , isto é, “ que se deixou fazer discípulo por causa do reino” (para, portanto,servir) cf. Sch­
niewind, op. cit.
61. Lagrange, op. cit., págs. 282, 283.
62. Veja também, Schniewind, op. cit., p. 169.
63. Sobre o significado de novo-velho, veja também Behm, TWB, III, p. 451, o artigo sobre “ kai-
nos” .
64. Veja, sobre isso, § 23.
65. Cf., quanto a isso, p. ex., Dodd, op. cit., p. 23.
66. Veja, também, Albertz, op. cit., p. 101.
67. Bengel escreve em seu Gnomen: Parabola de semine prima ac fundamentalis (A parábola da
semente é primária e fundamental); cf., também, G. Wohlenberg, D as Ev. des Marcus3, 1930, p.
129.
68. Pasas tasparabolas: pas pode se aproximar do significado de: “ qualquer um, não importa qual; as­
sim M c 4.13” , Blass-Debrunner, Grammatik des neutestamentischen Griechisch7, 1943, p. 275.
69. A ssim , além de Schweitzer, também escritores como Dodd, Schniewind, Jerem ias e outros.
70. Bom kam m , TWB, IV, p. 825, o artigo sobre “musterion” .
71. Cf., também, R. Otto, Reich Gottes undMenschensohn, 1934, págs. 56, 57.
72. Cf. G. Kittel, TWB, IV, p. 127, o artigo sobre “ lego” : “ A explicação da parábola da semente (se
esta deveria ser traçada até Jesus ou não), deriva seu significado da convicção de que a ‘semente’
N o ta s 393

que é explicada como sendo a ‘palavra’ é o evento de Cristo ( ‘das Christus-Geschehen’) que
ocorre em Jesu s” . E, na p. 124, ele escreve: “O que a explicação da parábola da semente com sua
aplicação do termo ‘a palavra’ tenta afirmar sobre Jesus, nada m ais é do que aquilo que constitui
o pano de fundo último para toda a tradição sobre Jesus: como nestas palavras: ego de lego humin
(Mt 5 .22ss), no julgam ento das cidades (Mt 11,20ss), no poder da palavra e a ação com referência
ao homem paralítico (Mt 9.5ss.)” .
73. Cf., também, J. Ridderbos, Predikende het Evangelie des Koninkrijks, 1911, págs. 64-74.
74. Schniewind, Markus, p. 73.
75. Isso se tom a ainda m ais evidente se, juntamente com Jerem ias, pudermos supor que a parábola
está baseada no costume de sem ear a semente antes de arar a terra: “ A gora se tom a compreensível
por que ele sem eia no caminho: ele semeia propositalmente no caminho que os moradores da
aldeia faziam ao cruzar o campo de restolhos porque este será arado com o resto do terreno. Ele
semeia, propositalmente, entre os espinhos que estão secos na terra de pousio porque por estes
também passará o arado. E não precisaremos m ais nos admirar de ver grãos de milho caindo em
solo rochoso porque as pedras estão cobertas por uma fina cam ada de solo fértil e são praticamente
indistinguíveis do campo de restolhos até que o arado tope com estes com um rangido. Portanto,
o que parece ser inapropriado para um ocidental prova ser a regra nas condições na Palestina” ;
op. cit., p. 6. Cf., também, G. Dalman, Arbeit und Sitte in Palãstina, II, 1932, p. 194, que, no
entanto, não chega a um a decisão.
76. Schniewind, Markus, p. 71.
77. Tudo isso recebe uma “dimensão” m ais profunda com os anúncios posteriores dos sofrimentos
e morte de Jesus. Isso será visto mais adiante, § 23.
78. Dodd, op. cit., págs. 180-183.
79. W. M ichaelís, E s ging ein Samann aus, zu sãen, 1938, págs. 34-39. Compare, no entanto,
também com págs. 44-45, onde M ichaelis admite que essa tendência não aparece na explicação
da parábola dada por Jesus. M ichaelis sugere, também, que, nos sinóticos, temos somente um
fragmento da explicação de Jesus. Cf., também, J. Jerem ias, Die Gleichnisse Jesu, 1947, p. 112,
o qual reafirma a interpretação de M ichaelis da parábola assim : “Apesar de qualquer fracasso, o
domínio real de D eus será revelado” (“ Aliem M iszerfolg zum Trotz kommt die Offenbarung der
Kõnigsherrschaft Gottes” ).
80. É bastante notável que, nas exposições valiosas de Küm m el e também nas de H. D. Wendland,
não se encontra qualquer discussão exaustiva sobre a parábola do semeador. O resultado disso é
que, para a determinação da natureza e da presença da basileia, uma informação bastante funda­
mental seja ignorada, o que tem tido efeitos negativos sobre a interpretação das outras parábolas.
Aqui, também, a “ situação” que está na base da parábola e que a determina inteiramente parece
ser ignorada.
81. Cf., também ,Fr. Hauck, op. cit., p. 57, e A. Oepke em TWB sobre Mt. 10.26, o artigo sobre
“ kalupto” , III, 1938, p. 559 e o artigo sobre “krupto” , III, p. 974.
82. Nesse contexto, essa exegese parece ser m ais óbvia do que aquela em que o “ medir” não se refere
ao medir a si m esm o (isto é, a apropriação da salvação implícita na Palavra), m as ao medir aos
outros, ou seja, a m edida feita na pregação do evangelho (assim Hauck, op. cit., p. 57: “ Se eles,
ricamente, repartirem o evangelho ao povo à espera da mensagem da salvação, os discípulos
receberão uma rica recom pensa”). Porém, se fosse assim , deveríamos esperar que a frase com e­
çasse assim : “ Atentai para o modo como (ou o que) pregais” e não “Atentai no que ouvis” ! Cf.
também Schniewind, op. cit., p. 77.
83. Cf. também § 15.
84. Cf., p. ex., A. M. Brouwer, Degelijkenissen, 1946, p. 143, e Zahn, D. Ev. d. Matth.A, 1922, págs.
493, 494; A. Schlatter, Der Evangelist Mattháus2, 1933, p. 442.
85. Em primeiro lugar, essa concepção está em conflito com o v. 38, onde é dito, de maneira explicita,
que o campo, onde o trigo e o jo io crescem juntos (não é a igreja, m as) é o mundo (kosmos). Por­
tanto, a mistura do trigo e do jo io se refere ao intercurso de crentes e descrentes em todo o mundo,
394 A v in d a d o R e in o

em todos os tempos. Além disso, a visão acim a m encionada significaria a proibição da disciplina
eclesiástica tão enfaticamente ordenada por Jesus em outra parte. Zahn diz que esse não é o caso
aqui, m as deixa de comentar sobre o que fazer com o “ deixai-os crescer juntos” e o pensamento
da basileia na igreja visível e passagens como Mt 16.19; 18.15ss. À s vezes, tentam fundamentar
esse conceito no v. 41, em que é dito que os anjos de seu reino (ektes basileias) ajuntarão “ todos
os escândalos e os que praticam a iniqüidade” . Admitimos que, nesse caso, a palavra basileia não
é usada no sentido futuro-escatológico (como, p. ex., Bultmann: “ do reino que então aparece” , op.
cit., p. 203'), pois a erva daninha será removida da boa colheita que havia brotado; e também porque
foi usado o ek eletivo, e não o apo preventivo. N o entanto, a basileia não pode ser entendida como
uma “ comunidade visível” , “ a igreja” (assim Zahn, loc. cit.; c f também Klostermann, op. cit. p.
123). Aqui, basileia se refere, no sentido geral, àquilo que tem sido produzido pela boa semente
sem eada no mundo (cf. também Schlatter, op. cit., p. 455). Aqui, o foco não está na igreja como
comunidade santificada e separada de acordo com a lei de Cristo; cf. § 36.
86. A ssim , p.ex., já Jerônimo, veja Klostermann, op. cit., p. 121.
87. Cf. Dalman, Arbeit und Sitte, II, 1932, p. 325 e a literatura aí citada.
88. Portanto, a conclusão não é que “o julgam ento é adiado porque é preciso que os maus e os bons
se manifestem claramente” , pois, na parábola, o jo io ainda não é exterminado mesmo depois de
ser completamente manifesto. Também não é que “o total amadurecimento do m al e do bem
requer um adiamento do julgam ento” , pois o jo io não é poupado porque ainda precisa amadure­
cer, m as sim por ser muito arriscado arrancá-lo antes do trigo. Portanto, nada de alegorias! Isso
não significa que o adiamento do julgam ento não está revelado na pregação de Jesus. Sobre esse
fato, veja § 20, 21.
89. Cf. também M. J. Lagrange, Evangile selon Saint Matthieu5, 1941, p. 278. Schlatter, também,
op. cit., p. 448, dá esta explicação: “No ambiente em que Jesu s se encontrava, todos pensavam
imediatamente num ju iz quando o M essias era mencionado. Será que Jesus não renunciou ao seu
ofício messiânico por sua paciência bondosa e sua graça perdoadora? A sua resposta foi que na­
quele momento, o reino estava sendo proclamado sem restrições; perdão e chamado são oferecidos
a todos. Porém, isso não viola a ordem jurídica” . Schlatter acrescenta que a tarefa imposta aos
discípulos implica condições m istas na igreja e que essa parábola mostra (ainda m ais claramente
do que a parábola do jo io e do trigo) que a aplicação da ordem jurídica não é uma questão para os
discípulos. N o seu sentido absoluto (ou seja, de olho no julgam ento final), isso é correto, m as está
sujeito a ser mal entendido, pois, na igreja, há, certamente, uma ordem jurídica e a sua “ execução”
(pelo homem) é um mandamento. A s parábolas, aqui, não estão preocupadas com a igreja, mas
falam da m anifestação geral do reino no mundo. A purificação, n essa parábola, só pode estar se
referindo à purificação divina no juízo final. N essa parábola, há, ainda, menos advertência contra
qualquer ação prematura do que na parábola do jo io entre o trigo, “pois é totalmente impossível
pensar em retirar o peixe ruim da rede enquanto ainda se está pescando” , Lagrange, loc. cit. Os
problemas a respeito da igreja ficam fora da discussão. A inclusão da igreja nessa discussão apenas
confunde. E ssa observação também vale para a exegese de Zahn, op. cit., 501.
90. C. H. Dodd, op. cit., págs. 187-189. Ele escreve: “ O reino de Deus... é como o trabalho de pescar
usando uma rede de arrasto, pois o apelo é feito a todos indiscriminadamente; todavia, quanto à sua
natureza, é um trabalho seletivo; e, lembremo-nos, essa seleção é o julgamento divino, apesar de os
homens atraírem esse julgamento sobre si mesm os por causa de suas atitudes” ; p. 189.
91. Kümmel, op. cit., págs. 83, 84.
92. M ichaelis, op. cit., p. 122.
93. Schniewind, op. cit., p. 168; cf., também, Brouwer, op. cit., p. 155.
94. Cf., também, Michel TWB III, o artigo sobre “kokkos” , p. 811, para explicação deM t. 13.31-32
e passagens paral.: “ O homem que espalha a semente e o campo que a recebe são materiais cos­
tumeiros para parábolas; neles, estão escondidas as referências m isteriosas de Jesus a si mesmo
e à sua pregação no mundo” .
95. Veja também a exegese elaborada e cuidadosa feita por H. M. Matter, op. cit., págs. 51 -60.
N ota s 395

96. A ssim , p. ex., Kümmel, op. cit., p. 76.


97. Como, p. ex, Weiss, Schweitzer, D ibelius, Bultmann, Hauck, Gloege, Wendland, Kümmel, cf.
em Kümmel op. cit., p. 76.
98. Op. cit., págs. 190, 191. Além disso, Dodd quer eliminar a ideia da pequenez extrema do grão
de mostarda, op. cit.
99. N esse caso, também, Küm m el defende a visão anterior, podendo, para isso, recorrer a muitos
outros autores, op. cit., p. 78. Ele escreve que a ênfase é colocada apenas no contraste entre
o começo pequeno e o final grandioso. “ E por isso que essa parábola pode enfatizar somente
que o estágio final glorioso do domínio de D eus é perfeitamente garantido, independentemente
dos pequenos com eços. N ão há pensamento de evolução... de qualquer maneira, essa parábola
também não quer elucidar a ascendência do domínio divino, m as nos exortar a ter fé na chegada
certa do governo de D eu s.” Em oposição a essa interpretação está, p. ex., o conceito de E. K lo s­
termann, o qual entende que, na parábola, “a expansão m iraculosa da área aberta para a salvação
é visualizada” ; Markusev., p. 94.
100. Cf., também Michel, TWB III, p. 811, o artigo sobre “kokkos” : “ Com a semente da Palavra
de Deus, o domínio celestial foi dado, abarcando todas as nações e todas as gentes; a aparente
ocorrência insignificante da pregação de Jesus indica o mistério da inclusão de todos na ação
todo-abrangente de D eus” .
101. A ssim , p. ex., Schniewind, Markus, p. 78.
102. Veja, também, de minha autoria, Mattheiis I, págs. 260, 261.
103. Matter, op. cit., p. 64.
104. Cf. também Matter: “A grande tensão escatológica, a qual, m ais tarde, induz esses judeus natos
a inquirirem apaixonadamente sobre o ‘quando’ do reino, poderia facilmente reduzi-los a um
estado de im paciência e desânimo ao verem a grande distância entre o que a basileia um dia será
e o que já era nos atos de Je su s” , loc. cit.
105. Op. cit., p. 64.
106. Op. cit., págs. 61, 62.
107. N esse caso, também, a mulher não é tão p assiva como se pensa. E la não coloca, simplesmente,
o fermento na farinha, m as o mistura com a farinha até que esta fique totalmente levedada, embora
seja verdade que a m assa, assim preparada, ainda precise permanecer desse modo por bastante
tempo (pelo menos de acordo com as donas de casa atuais).
108. A ssim , novamente, Kümmel, op. cit., págs. 78,79, que recorre a muitos outros escritores re­
centes para apoio.
109. A ênfase colocada, também nesse caso, na pequenez do seu começo, parece vir da circunstância
do fermento que foi colocado em três medidas defarinha e da cláusula final: “ até que o todo estava
levedado” , cf. G1 5.9; cf. também Windisch TWB II, p. 907, o artigo sobre “ zune” .
110. Cf. também Windisch, op. cit., referindo-se a Mt 5.13.
111. A ssim Matter, recorrendo ao dicionário de Bauer que o traduz como hineintun, hineinmischen
(colocando dentro, misturando), mas acrescenta, ohne dieAbsicht, jedoch mit dem Ergebnis, dasz
man das Betreffende dem Anblick entzieht (sem o propósito, m as com o resultado do que está
escondido da visão), p. 718.
112. A ssim Oepke em TWB III, págs. 973, 974.
113. Op. cit., p. 186. Influenciado pela sua visão de que a chegada do reino ocorre com a ressurreição
de Cristo e depois desse acontecimento, ele (incorretamente) toma a expressão “ a vinda do Senhor” ,
v. 2, para se referir ao tempo depois da morte de Jesus, op. cit., p. 182.
114. Cf., também, K . H. Rengstorf, Das Evangelium nach Lukas, 937, p. 153.
115. A ssim , p. ex., Greijdanus, op. cit.,II, p. 651, cf. também Rengstorf, op. cit.,
116. Zahn, op. cit., p. 526ss.
117. Cf. Matt. Vol. II (K.V.), p. 44.
118. Cf. E. Schürer, Geschichte desjiidischen Volkes II4, 1907, págs. 465, 469.
119. Para m ais detalhes, cf. Rengstorf, TWB I, p. 331, o artigo sobre “hamartoolos” .
396 A v in d a d o R e in o

120. A ssim A. Harnack, D as Wesen des Christentums, 1905, p. 39.


121. A ssim , p. ex., Dodd, The Parables o f the Kingdom. Ele escreve: “D esse modo, Jesus ia às cidades
e vilarejos da Galileia, procurando os perdidos; e foi assim que o reino de Deus chegou” , (op. cit., p.
199). “M as o reino de Deus certamente vem com julgamento. Os líderes religiosos que censuravam
Jesus pelo seu trabalho e seu ensino estavam, naquele exato momento, pronunciando julgamento sobre
si m esm os” (p. 200). “Portanto, a vinda do reino de Deus mostra sua característica como julgamento,
isto é, como a prova e separação dos homens” (p. 201). “E trabalho da igreja, a quem foi confiado
o evangelho do reino de Deus, interpretar a crise à luz da crise suprema do passado” (p. 205). Cf.
também H. Windisch^Der Sinn der Bergpredigt, 1929, “ Somente transferimos a decisão do futuro
para dentro do nosso presente e consideramos que o sentido religioso da escatologia, que é assim
tomada presente, é o fato de que, nela, som os colocados diretamente diante de D eus” (p. 158).
122. Cf., também, A. Noordtzij, Deprofeet Ezechiel, 1932, p. 348; também Oepke, TWB I, p. 395,
o artigo sobre “ apollumi” .
123. Para m ais informações sobre isso veja § 25.
124. Acim a, § 13
125. Cf. Schniewind, D as Evangelium nach Matth., 1937, p. 122.
126. “ ...a figura da colheita se tom a possível porque, durante a pregação da Palavra, se concretizam
as decisões do dia do julgam ento. N a Palavra, o domínio real futuro de Deus j á está presente” ,
Schniewind, loc. cit.
127. Cf., de minha autoria, Matth I, p. 226.
128. Cf. § 27
129. Veja, além disso, § 27.
*. O autor não pretende dizer que Jesus era pecador e que precisava de salvação a ser obtida
por seus méritos, mas sim que, pela sua obediência e subm issão ao Pai, Jesus, como homem,
conquistou o direito de oferecer a salvação. Ou seja, ele obteve a salvação não para si mesmo,
mas para os outros. [N. do T.]
130. Cf. Grundmann: “A ssim , Cristo não é somente o proclamador da escatologia, m as sua história
é escatologia. E sse dei (“ é necessário”) pertencente ao sofrimento, à morte, à ressurreição e (em
Lucas) à ascenção, faz parte da m isteriosa ação judicial e salvadora de Deus no fim dos tem pos” .
TWB II, p. 24, o artigo sobre “ dei” .
131. E ssa palavra corresponde à resposta dada por Jesus a H erodes por intermédio dos fariseus, “ ...
expulso demônios e faço curas, hoje e amanhã, e ao terceiro dia serei aperfeiçoado” (teleioumai).
Também aqui Jesus expressa a certeza de sua morte, indicada como sendo seu aperfeiçoamento,
o caminho pelo qual ele será levado ao seu destino. O “hoje” e o “ amanhã” do v. 32 significam
a continuação de sua atividade salvadora por algum tempo, com a vinda do fim depois disto. O
v. 33 acrescenta que, para esse propósito, ele não pode permanecer onde está, m as precisa dar
início à jornada. Antes de chegar a Jerusalém para ser morto, ele precisa terminar o seu trabalho
de hoje e de amanhã.
132. Cf., p. ex., Heitmüller em R.G.G. III, 1912, p. 387, o artigo sobre “Jesus Christus” : “Ele via­
ja v a para Jerusalém através da Pereia, M c 10. Fom os deixados no escuro sobre o seu motivo.
Em todo caso, ele não fez isso para sofrer e morrer - as profecias a respeito do seu sofrimento,
como as temos hoje, nos Evangelhos, se originaram na igreja, que considerou o desenvolvimento
das coisas em retrospectiva” . Cf., também, Klostermann, Markusev., págs. 78, 79; Bultmann,
Geschichte, p. 163.
133. Cf., p. ex., H. J. Holtzmann, Lehrb. Der Neutest. Theologie I2, 1911, p. 353ss. e a literatura
m ais antiga nela citada.
134. Cf., também, Ed. Meyer, UrspnmgundAnfãngedes Christentums I, p. 117, “Ele podia suspeitar
e expressar em palavras que a m esm a sorte de tanto profetas lhe esperava, mas os detalhes do que
lhe haveria de acontecer não poderiam ser conhecidos de antemão por ninguém” .
135. Veja, p. ex., F. Büchsel, Die Hauptfragen der Synoptikerkritik, 1939; Vincent Taylor, Jesus and
his Sacrifice, 1948 ,passim.
N ota s 397

136. Cf. Hauck, Markus, p. 103: “Em contraste com uma m era comunicação velada, essa predição
e ensino eram desvelados e abertos” .
137. Cf. Jerem ias, TWB IV, p. 1096, o artigo sobre “numphe” , embora ele seja da opinião de que
esse sentido alegórico é, originalmente, estranho a esse dito proverbial (para nós, essa conclusão
de Jerem ias não tem base suficiente).
138. P. ex., Bultmann, op. cit., p. 17; Jeremias, loc. cit.
139. Para detalhes, cf., também, Schniewind, op. cit., p. 157.
140. Cf. Klostermann, Lukasev., p. 141, “ Gethsemanestimmung” (o “m odo” do Getsêmani).
141. Cf., p. ex., Sevenster, Christologie, págs. 109, 110; e especialmente a discussão elaborada
e valiosa de todos os pronunciamentos da Paixão por Vincent Taylor, Jesus and His Sacrifice,
1948, págs. 82-200.
142. Cf. acima, § 18.
143. Cf., para detalhes, de minha autoria, Zelfopenbaring em Zelfverberging , 1946 págs. 5-20.
144. Como Greijdanus quer manter enfaticamente, Bizondere Canoniek, 1947, págs. 226, 227
145. Embora a voz vinda do céu depois do batism o de Jesu s seja um reflexo claro de ls 42.1 (indi­
cando o Servo do Senhor).
146. Cf., de minha autoria, Matth. I, p. 60.
147. Veja também Sevenster, Christologie, p. 111.
148. A. Schlatter, Matth., p. 89. A perspectiva de Cullmann, Die Taufiehre des Neuen Testaments,
1948, p. 14, de que “ toda ju stiça” nesse caso significa algo como “ju stiça para todos” é, na minha
opinião, difícil de se manter.
149. Cf., p. ex.,G. Ch. Aalders em Christus de Heiland, 1948, p. 23ss.
150. Cf. R. Otto, Reich Gottes und Menschensohn, 1934, p. 209ss.; veja também, de minha autoria,
Matth. II, p. 17, nota.
151. Cf. G. Dalman, Jesus Jeschua, 1929, p. 110.
152. Em seu artigo muito valioso sobre “ lutron” , TWB IV, p. 341ss., Büchsel parece levar em pouca
conta esse fato ao dizer que as palavras sobre o resgate (M c 10.45) não se referem claramente a
Is 53, p. 344; cf. também os argumentos apresentados por Sevenster, Christologie, p. 112.
153. Cf., também, Beyer, TWB II, p. 85, o artigo sobre “diakoneo” .
154. Cf. Blasz-Debrunner, § 2 8 3 ,4 : “ o semítico circunscreve a relação reflexiva por meio de ‘n efas’
- alma; por conseguinte, na tradução do semítico, às vezes, encontramos ten psuchen autou” ; cf.
também Mt 20.28 (M c 10.45) com lT m 2.6.
155. Veja acima.
156. Em oposição à de Bultmann e Klostermann, que consideram essas palavras de natureza secundá­
ria, por presumirem que as m esm as devam ser entendidas no sentido da doutrina helenístico-cristã
da salvação. Porém, veja a discussão de Procksch acerca dos equivalentes no Antigo Testamento
da palavra lutron para a elucidação do sentido de M c 10.45, Mt 20.28, TWB TV, p. 330ss., o artigo
sobre “ lutron” ; e veja também Taylor, op. cit., p. lOOss.
157. Cf., também, Dalman, Jesus Jeschua, p. 110 e Procksch, op. cit.
158. Veja, p.ex., também Büchsel, op. cit., p. 344. Sevenster, op. cit., p. 115.
159. Como Sevenster pensa (erradamente, na minha opinião). E le nega que Deus, nesse caso, bem
como em outros, seja tanto o sujeito quanto o objeto da reconciliação.
160. C f , também, a explicação elaborada de Büchsel, op. cit., págs. 345-348.
161. A ligação com Is 53 foi demonstrada claramente por Sevenster.
162. Cf., também, de minha autoria, o artigo “D e Christologie van het N .T.” , Geref. Theol. Tijdschrift,
ano 47, 1947, p. 60.
163. Abaixo, Cap. IX.
164. Cf., também, Taylor, op. cit., págs. 258ss; 278ss.
165. Cf., p. ex., A. Schweitzer, Gesch. d. Leben Jesu Forschung3, 1933, p. 193ss.; um resumo em
seu livro Das Messianitãts- und Leidens-Geheimnis2, 1929, págs. 1-3.
166. D as Messianitãts- und Leidens-Geheimnis, p. 89.
398 A v in d a d o R e in o

167. Cf. R. Otto, Reich Gottes und Menschensohn.


168. Cf. acima, § 4.
169. “ Sua vida derramada seria o meio para uma renovada comunhão com D eus” , Vincent Taylor,
The Atonement in New Testament2, 1945, p. 14.
170. N ós som os da opinião de que polloi, aqui, não é um equivalente d epantes, veja abaixo, § 25;
cf., também, Büchsel, TWB IV, p. 344ss.
171. Veja, ainda, § 47.

Capítulo V

1. Cf. também § 12, sobre a posse da salvação.


2. Cf., também, de minha autoria, De strekking der bergrede naar Mattheiis, 1936, p. 27.
3. A. Hamack, D as Wesen des Christentums, págs. 45-47.
4. Jesus, p. 186.
5. Cf., p. ex., Wendland, op. cit., p. 58.
6. SI 5.2,12; 10.6ss; 15.2ss. Cf., também, R. Bultmann, Die Frage nachder Echtheit von Mt 16,
17-19, Theol. Blãtter, 1941, p. 269.
7. Veja De strekking der bergrede, p. 91. Veja, ainda, a literatura citada, p. ex., em Schrenk TWB
II, p. 200: “ die Rechtsbeschaffenheit vor Gott” , o artigo sobre “ dikaiosune” ; E. Stauffer, Theol
d. N.T., o qual explica a fome e sede mencionadas aqui como resultado de atender à Torá, p. 73;
cf., porém, também p. 205; H. M. Matter, op. cit., p. 80.
8. Cf. Stáhlin, TWB IV, p. 1109, o artigo sobre “nun” .
9. Veja, sobre isso, p. ex., também Th. C. Vriezen, Hoofdlijnen des Theologie van het Oude Testa­
ment, 1949, p. 109ss; e Schniewind sobre Mt. 5.6, op. cit., p. 43ss.
10. Cf. Vriezen, op. cit., p. 270.
11. N esse caso ekdikesis no sentido de “ indenização” .
12. Isso também é ressaltado por Rengstorf, op. cit., p. 23.
13. De acordo com Is 41.8-9 (LXX), cuja passagem também é inteiramente dominada pela ideia da
justiça salvadora de Deus em decorrência de sua aliança.
14. Bultmann mostra que eleos ocorre aqui no sentido original do Antigo Testamento da fidelidade
de Deus, TWB II, p. 480, o artigo sobre “ eleos” .
15. TWB II, p. 137, o artigo sobre “diatheke” . Cf., ainda, N. A. Dahl, D as Volk Gottes, 1941, p. 144ss.
16. Cf. Schlatter, Der Ev. Matth., p. 19: “ Que Israel é seu povo não precisaria ser mencionado em
primeiro lugar, pois o nome de Cristo não é sem conteúdo para M ateus. Como o segundo designa
ofício real a Jesus, Israel é, então, o ‘seu p ovo’ , independentemente do resultado de suas obras...
até mesmo antes do seu nascimento” .
17. Cf. Strathmann, TWB IV, 5 2 ", o artigo sobre “ laos” .
18. Cf. abaixo, § 26.
19. Greijdanus, Lukas I, p. 162: “ João não minimiza a importância de Abraão, nem o fato de ser filho
de Abraão, nem a prom essa de Deus feita a Abraão. Ele diz somente que a descendência na carne
não garante que alguém seja filho verdadeiro de Abraão no sentido pleno da palavra e que Deus
pode designar filhos a Abraão fora da descendência carnal” .
20. A ssim , também, Schniewind sobre Mt 3.9, op. cit., p. 22: “ A prom essa de D eus a Abraão não foi
cancelada. Porém, Deus pode realizar isso de tal maneira suscitando filhos até de pedras, uma nova
criação, do mesmo modo que D eus formou Adão da terra. Paulo argumenta de maneira parecida
sobre o ser filho de Abraão, Rm 9.7ss; G1 3.7; 4.22ss.”
21. Cf., também ,A. Oepke, Jesus und der Gottesvolkgedanke, Luthertum, 1942, p. 43: “Aqui (i.e. em
Mt 3.9), ser um filho de Deus é remontado a um ato divino de criação ou eleição e, num sentido
m ais espiritual, novamente ligado com o fato de ser filho de Abraão” .
N o ta s 399

22. A ssim , o pensamento antigo, iiberal, juntamente com toda espécie de literatura dominada pela
ideologia nacional socialista, explicou o contraste entre Jesus e os fariseus como racial, especial­
mente contra a raça judaica! Então, Jesus deveria ter se originado na Galileia de uma população de
cosm ovisão mais sincretista e teria lutado contra a pretensão judaica de ser povo de Deus. Sobre
essas especulações fantasiosas, veja Oepke, Jesus und der Gottesvolkgedanke, a literatura citada e
também suas refutações cautelosas (!) mas conclusivas, Luthertum, 1942, págs. 33-53.
23. Veja § 2 1 .
24. A ssim , aparentemente, Oepke, op. cit., p. 45; cf. também Hauck sobre M c 3.14, op. cit., p. 45
e outros.
25. Schniewind: “ O número dos discípulos representa, numa forma m ais nova, as pessoas das doze
tribos, o novo rebanho de Deus” , Matth., págs. 123-124. E, com respeito ao extraordinário epoiesen
doodeka, em M 3.14, ele escreve: “Ele ‘fa z ’, ele ‘cria’ os doze... isso significa que Jesus cria o
novo povo das doze tribos, cf. Mt 19.28ss; o novo Israel, o novo povo de D eus” Markus, p. 65. E.
Lohmeyer, D as Evangelium des Markus, 1937, p. 75, descreve esse “povo de D eus” como “uma
entidade feita por D eus e, por isso, de valor escatológico” .
26. A exegese dessa passagem m ostra grande divergência entre os escritores. Alguns deles veem nela
uma indicação da restauração do povo de Israel; assim , p. ex., Zahn, Matth., p. 605; m as, em seu
comentário sobre o Evangelho de Lucas, essa visão é um pouco enfraquecida. N esse caso, ele
admite a possibilidade de existirem não israelitas entre o povo das doze tribos. Quanto a isso, ele
se refere a L c 3.8; 13.29, Lucas, p. 6 8 1 *. Schlatter menciona a expectativa judaica da união das
doze tribos, p. ex., em Josefo. N o entanto, ele não encontra tal figura em M ateus ou em qualquer
outro lugar do Novo Testamento. Em sua opinião, essa passagem fala somente do julgam ento sobre
todo o Israel a ser executado por Jesus, no que os discípulos cooperarão, Der Ev. Matth., p. 584.
Aparentemente, também Gutbrod tem a m esm a tendência, TWB III, p. 3 87, o artigo sobre “ Israel” .
Em sua opinião, o nome de Israel não se aplica em nenhum lugar nos sinóticos aos membros da
nova igreja. A opinião de Greijdanus também é de que a expressão “ as doze tribos de Israel” se
refere ao “povo de D eus com seus muitos privilégios antigos” e que a glória dos doze será o fato
de que, mesmo sendo desprezados, algum dia julgarão aqueles que rejeitam ao Senhor e a eles,
Lucas, II, p. 1067. N o m esm o sentido, também Plummer, St. Luke, 1942, (I.C. C.); págs. 502, 503,
e Allen, St. Matthew, 1947, (I.C.C.), p. 212, e, aparentemente, também Rengstorf, Lukas, p. 228.
N a nossa compreensão, essa visão é incorreta. Totalmente à parte do argumento de Zahn contra
ela, Matth., p. 604, os apóstolos sobre seus doze tronos são claramente lembrados na sua unidade
com “ as doze tribos de Israel” (ou seja, como representantes e regentes) e não como juizes que
vão punir Israel. Aqui, a tradução não deveria ser “julgando” , m as “governando” . A metáfora se
refere à glória futura das doze tribos sob o remado dos doze apóstolos e, portanto, só pode ser
entendida como uma indicação da igreja glorificada. A expressão “ as doze tribos de Israel” indica
a igreja futura, utilizando, para isso, o nome do povo antigo de Deus. E la é a continuação do povo
antigo de Deus e seu cumprimento; cf., para essa visão, Grosheide, Mattheiis, p. 232; Schniewind,
Matth., p. 201; T. S. Manson, no The Mission and Message o f Jesus, 1946, p. 509.
*. Ridderbos entende que a igreja substitui Israel sem, com isso, negar que há um futuro salvífico
para o antigo povo de Deus. Cf. seu comentário sobre Rm 11. 25, em seu livro Romeinen, p. 262.
(N. do T.)
27. Veja § 36.
28. Cf. § 38.
29. Cf., também Behm, TWB II, p. 34, o artigo sobre “ deipnon” .
30. Veja, sobre esse ponto de vista, também B. Sundkler, Jésus et lespaiens, em: Revue d'Histoire
et de Philosophie religieuses, 1936, págs. 462-499.
31. Veja, também, a importante argumentação de D. Plooy, Novum Testamentum regnum aeternum,
1932. Ele submete as palavras de Jesus a respeito da aliança no relato da última ceia a uma análise
lingüística elaborada e, a seguir, defende a tese de que o novo pacto inaugurado pela morte de
Jesus nada mais é do que aquilo que é indicado invariavelmente pelo termo “reino” . Ele ainda
400 A v in d a d o R e in o

se refere a um a frase interessante em L c 22. 29, “A ssim como meu Pai me confiou um reino, eu
vô-lo confio (diatithemai)” , frase essa que, em sua opinião e em vista do contexto como um todo,
foi formada pela analogia do diatithemai diathêkên; p. 20.
32. Cf. Schniewind: “Jr 31.31-34 é perceptível em todas as formas das palavras do cálice” . D. Plooy,
op. cit., págs. 9,10.
33. Sobre o problema crítico-textual da “ autenticidade” desse versículo, veja, p. ex., a bem elaborada
discussão de Greijdanus, Litkas II, págs. 1045-1053.
34. Cf., também, Behm, TWB II, p. 136, o artigo sobre “ diatheke” e IV, p. 452 o artigo sobre
“kainos” .
35. Cf. § 22.
36. Como é bem sabido, a passagem não é indiscutível. Alguns dos manuscritos 38. têm kai no
lugar de en; nesse caso, o versículo teria três partes. Outros manuscritos nem mesmo têm o en;
e, finalmente, há a questão sobre se devemos ler eudokia ou eudokias. Preferimos ler a p assa­
gem sem kai (que pode ter sido acrescentado posteriormente por causa da analogia com o que
precede) e com en (uma interpretação que parece ser m ais difícil do que sem o en). Além disso,
escolhemos eudokias (com testemunha textual melhor e de interpretação m ais difícil); c f ainda
M . J. Lagrange, Evangile selon SaintLuc 3 1941, p. 77 e Schrenk, TWB II, págs. 145-747, o artigo
sobre “ eudokeo” .
37. Alguns escritores querem aplicar eudokia à boa vontade humana em relação a Deus e sua re­
velação: povo de boa vontade ( bonae voluntatis). A ssim , p ex., Lagrange, loc. cit., seguindo a
Vulgata; também Zahn, op. cit., p. 145. M as, em nossa opinião, isso é um erro. Em primeiro lugar,
eudokia não é encontrado em Lucas nesse sentido e raramente no restante do N ovo Testamento
(em Paulo, Rm 10.1; F 1 1.15). Em todo caso, esse uso nesse contexto seria bastante extraordinário,
pois, em sendo assim , a boa vontade humana determinaria, realmente, a extensão da salvação
divina. Por outro lado, nesse cântico dos anjos, no qual tudo fala da glória de Deus, da graça de
D eus e da salvação de Deus, é muito m ais óbvio que a boa vontade de Deus fosse mencionada,
cf. Rengstorf, op. cit., p. 31; W. Manson, The Gospel ofLuke, 1945, p. 18; Plummer, op. cit., p.
58; Klostermann, op. cit., págs. 38, 39; Greijdanus, op. cit., I, págs. 115, 116 e principalmente
Schrenk, op. cit., págs. 748, 749.
38. “ O que foi dito não é nem é particularmente judaico nem universalístico sem quaisquer raízes
redentoras-históricas. E intencionado num sentido escatológico a respeito do povo escolhido de
D eus.” Schrenk, TWB II, p. 748.
39. Cf. Schrenk, op. cit., p. 739.
40. Schlatter, Matth., p. 383, vê isso de uma maneira um pouco diferente. Ele sugere uma consulta
celestial diante de Deus, na qual sua vontade é determinada. M as será que isso pode ser deduzido
da sim ples palavra emprosthen? Cf., também, Preuschen-Bauer, op. cit., s.v. emprosthen, sub d.
41. Bertram, TWB IV, p. 922ss., o artigo sobre “nepios” .
42. Cf., também, Schrenk, TWB II, p. 44, o artigo sobre “ekdikesis” .
43. Cf. Schrenk, TWB IV, p. 192, o artigo sobre “ eklektos” , e M ichaelis, D as hochzeitliche Kleid,
1939, p. 257.
44. Este é indicado pelo tempo aoristo, eudokesa, e pelo significado do verbo, cf. Schrenk, TWB II,
p. 738, o artigo sobre “ eudokeo” ; Zahn, Matth., p. 147. Greijdanus pensa diferente. Ele explica
eudokesa, em L c 3.22, somente como o prazer de D eus em Cristo por causa da obediência de
Cristo no batismo. Em nossa opinião, essa interpretação é equivocada.

Capítulo VI

1. J. N. Sevenster, De Boodschap van het NieuweTestament, I, 1939, p. 111.


2. Cf. K. Holl, Urchristentum undReligionsgeschichte, 1927, p. 19.
3. Cf. também Bultmann, TWB I, p. 509, o artigo sobre “ aphiemi” .
N o ta s 401

4. Cf. Greijdanus, op. cit., 1, p. 86: “ Pois é essa gnose que é pretendida aqui, um conhecimento por
meio de nossa própria experiência, prazer, possessão” .
5. Bultmann, TWB I, p. 509, o artigo sobre “ aphiemi” ; Grundmann, TWB I, p. 307, o artigo sobre
“hamartano” , e muitos outros.
6. Cf., também, Grundmann, op. cit.
1. Veja § 11.
8. Cf., também, Schrenk, TWB II, p. 219, o artigo sobre “ dikaioo” .
9. Parece-me que o m esmo se aplica à interpretação que Bultmann faz do kerigma neotestamentário
(depois de aplicar a este a sua “ demitologização” ). Usando as categorias da filosofia existencial
(especialmente as de Heidegger), ele entende a rem issão graciosa dos pecados por D eus como a
libertação do homem do seu passado, ao qual ele se encontra aprisionado. M ais adiante, Bultmann
descreve essa rem issão também como libertar-se “ da esfera do visual, do disponível, do que esta à
mão, do mensurável, o que é, ao mesmo tempo, ‘a esfera do perecível’” . A liberdade de tudo isso é
descrita por ele como viver pela fé de que “ o invisível, o desconhecido, o indisponível, encontra o
homem como amor... e não significa morte para ele, m as vida” , Neaes Testament undMythologie,
incluso em H. W. Barstsch, Kerugma und Mythos, págs. 29, 30. Em outra passagem , ele chama
essa graça de “ o desapego de qualquer coisa que está disponível no mundo; consequentemente,
a atitude da dessecularização, da liberdade” , p. 31.
10. Sobre essas passagens veja também p. 182ss.
11. Cf. W. G. Kümmel, D as Bild des Menschen im N.T., 1948, p. 11 ss, contra Harnack e suas ideias
sobre o motivo básico do evangelho.
12. Cf., p. ex., Bultmann, TWB I, p. 508, o artigo sobre “aphiemi” .
13. De acordo com Schniewind, a frase “porque ele salvará o seu povo dos pecados deles” , Mt 1.21,
emprestada do SI 130.8; Das Ev. nach Matth., p. 13.
14. A ssim , também, p. ex., K. Holl, Urchristentum undReligionsgeschichte2, 1927, p. 19ss.
15. Veja também o Cap. V.
16. Bultmann se expressa da seguinte maneira a partir do seu ponto de vista (o da “teologia da igreja”):
“A nova e específica característica cristã (é) esta: que a igreja está ciente de ter recebido de Deus
remissão de pecados oferecida por meio do ato salvador manifesto em Jesus Cristo” , TWB I, págs.
508-509.
17. Cf., p. ex., Strack-Billerbeck, op. cit., IV, I, págs. 4-15.
18. Veja a descrição elaborada em E. Sjõber, Gottund die Siinder impalãstinischenJudentum, 1939,
p. 148ss.
19. Pelo menos não de acordo com a literatura rabínica. N a literatura apócrifa pseudepígrafa, prevalece
uma doutrina bem m ais rigorosa de meritoriedade e retribuição, Sjõberg, op. cit., p. 26ss.
20. Sjõberg, op. cit., p. 168.
* . E sses parágrafos de Ridderbos sobre a doutrina judaica da rem issão de pecados revelam sua con­
cepção de que o judaísm o na época de Jesus era uma religião de mérito, legalista. E ssa perspectiva,
adotada pela maioria dos estudiosos conservadores do N ovo Testamento, contradiz e refuta a
chamada “ nova perspectiva sobre Paulo” , surgida muito tempo depois da publicação deste livro,
defendida por E. P. Sanders e N . T. Right, entre outros, a qual afirma que a soteriologia farisaica
era baseada na graça e não no mérito. (N. do T.)
21. Cf. Behm em TWB IV, p. 994ss, o artigo sobre “metanoeo” , e a literatura aqui mencionada; tam­
bém W. G. Kümmel, Das Bild des Menschen im N.T., 1948, p. 8ss; J. Schniewind, D as biblische
Wort der Bekehrung, 1948, p. 7ss.
22. Aqui, a palavra strephomai é usada exatamente no mesmo sentido de metanoein.
23. A ssim , H. J. Holtzmann, Lehrbuch der neutest. Theol., I, 1911, págs. 218, 219.
24. Assim , p. ex.,H. Weinel, Bibl. Theol. Des N T *, 1928,p. 181, que fala do “tom zombador de rejeição
na palavra” ; cf. também Klostermann, “ se, em oposição a esses adversários, os conceitos ‘pecador’
e ‘homem ju sto ’ não significam k at’eirooneian, segundo Teofilacto” , D as Markusev., p. 27.
25. Cf., p. ex., Schrenk, TWB II, p. 191, o artigo sobre “ dikaios” .
402 A v in d a d o R e in o

26. A ssim , Schlatter, Der Ev. Matth., p. 309; cf. também Rengstorf, TWB I, p. 333, o artigo sobre
“ hamartoolos” .
27. Sobre essa exegese, cf. também Greijdanus, op. cit., II, p. 696.
28. Cf., também, de minha autoria, Mattheüs (K.V.), p. 184.
29. Greijdanus quer interpretar “ arrependimento” aqui de modo diferente, a saber, um arrependimento
semelhante ao arrependimento mencionado dos hamartooloi, “pecadores” . Em nossa opinião,
o ponto do paradoxo não é encontrado na palavra “ arrependimento” , mas sim na expressão
“ necessidade de” .
30. Cf. Kümmel, D as Bilddes Menschen im N.T., 1948, p. 10.
31. Veja também a discussão conclusiva sobre este assunto por G. Sevenster, Christologie, p. 54ss.
32. Veja, sobre essas passagens, como também sobre todo este assunto, de minha autoria, De strekking
der bergrede, págs. 126-128.
33. “ O coração é ímpio; o que se desenvolve nos vs. 19-23 é somente essa frase” , Schniewind sobre
M c 7.19, op. cit., p. 100.
34. Cf., também, p. ex., Sevenster, op. cit., págs. 50-56 e, de minha autoria, De strekking der ber­
grede, págs. 126-128.
35. Cf., também, Grundmann, TWB I, p. 15, o artigo sobre “ agathos” .
36. Para essa tradução, veja § 33.
37. Veja § 2 9 .
38. Cf. Schniewind sobre M c 10.23-27, op. cit., págs. 131, 132.
39. A ssim , p. ex.,H. Windisch, Der Sinn der Bergpredigt, 1929, p. 95ss.
40. Cf. Windisch, op. cit., págs. 130, 141.
41. Cf. os argumentos de autores judeus, tais como J. Klausner, C. Montefiore e outros, como Strack-
Billerbeck, op. cit., IV, I, p. 15; e Windisch, op. cit., p. 102ss.
42. O texto (mallon) p a r ’ ekeinon é incerto, porém, o seu significado tem sido estabelecido, cf.
Blasz-Debrunner § 185.3*
43. E. Sjõberg, Gott und die Siinder impakistinischen Judentum, 1939; cf. também W. G. Kümmel,
Die Gottesverkündigung Jesu und der Gottesgedanke des Spãtjudentums, in: Judaica, I o ano,
1945, p. 57ss.
44. Cf., também, G. C. Berkouwer, Geloof en Rechtvaardiging, 1949, p. 11 lss.
45. Sobre a ideia de galardão nos evangelhos e sobre a sua relação com a doutrina judaico do mérito,
cf. os artigos escritos por Preisker e Büschsel no TWB IV, p. 699ss. o artigo sobre “misthos” , e ainda
1, p. 170ss., o artigo sobre “ apodidoomi” , especialmente F. K. Kam er, Der Vergeltungsgedanke in
der Ethik Jesu, 1927 e O. Michel, Der Lohngedanke in der Verkiindegung Jesu, in: Zeitschrift fiir
systematische Theologie 1932, p. 47ss.; G. Bom kam m , Der Lohngedanke im N.T., 1947.
46. Isso foi demonstrado corretamente por Büchsel, op. cit.
47. A palavra achreios parece ter sido uma qualificação corrente da classe social de escravos, no sentido
de “pobre” , “m iserável” , expressando que um escravo nunca podia nada, como também não podia
elevar-se acim a de sua posição de escravo, cf. Preuschen-Bauer, op. cit., p. 202, como também A.
Jülicher, Die Gleichnisreden Jesu, II2, p. 21, que, entre outras coisas, se refere a Deissmann.
48. Cf., de minha autoria, Matth., II, p. 73; cf. também Preisker, op. cit., p. 723.
49. Cf. § 17.
50. Lehrbuch der Dogmengeschichte, I4 1909, p. 81.
51. Op. cit., p. 18.
52. N os Países Baixos, essa herança da teologia liberal tem sido defendida especialmente nos es­
critos de Windisch; porém, também por G. J, Heering e outros; a respeito disso, veja a crítica
fundamental a essa corrente teológica elaborada em G. Sevenster, Christologie, p. 47ss; também
M. H. Bolkestein, De verzoening, 1945, p. 52ss.
53. A ssim , p. ex., Windisch, Der Sinn der Bergpredigt, p. 96.
54. Cf. W. Twisselmann, Die Gotteskindschaft des Christen nach dem Neuen Testament, 1939, p. 44ss.
55. Embora, nesse caso, o texto seja incerto.
N otas 403

56. Cf. acima, § 27.


57. Cf., p. ex., Twisselmann, op. cit., págs. 10-25, 102-105 e a literatura relevante na p. 10.
58. Referências na literatura pseudepígrafa e apócrifa, como também no Talmude, cf., p. ex., Stra-
ck-Billerbeck, op. cit., I, p. 219, págs. 392-396; também Dalman, die Worte Jesu, I, p. 150ss. e
Twisselmann, op. cit., p. 3 lss.
59. Cf., também, G. Kittel, TWB I, p. 6, o artigo sobre “ abba” ; “A lingüística judaica mostra que a
comparação do relacionamento dos primeiros cristãos com Deus com a relação de um pai para
com seu filho excede em muito todas as possibilidades de intimidade que existia no judaísm o,
colocando algo novo em seu lugar” . Kümmel também ressalta isso. Die Gotesverkündigung Jesu
und der Gottesgedanke des Spãtjudentums, em: Judaica, 1945, págs. 53, 54.
60. A afirmação de Kittel de que Jesus derivou o nome de Pai do “uso lingüístico cotidiano da fam í­
lia", transferindo um vocábulo simples para Deus, ou seja, a “fala da criança ao seu pai” (op. cit.,
p. 5; cf. também Kümmel, op. cit.), é certamente incorreta no que se refere à relação entre Deus
e os crentes. Tal origem só seria possível se o uso invariável da aposição “ que estás nos céus” for
ignorado. E quanto a L c 11.2, os judeus, também, já se dirigiam a Deus como “ Pai!” .
61. Cf. acima, § 25
62. Sobre isso encontramos m ais no § 36.
63. Cf., também, Twisselmann, op. cit., págs. 47, 48.
64. N a expectativa judaica posterior, ser filho de Deus também pertencia à salvação do futuro glo­
rioso, assim , p. ex., Jubil. 1,24ss. “ Suas almas (i.e., a alma dos israelitas) me seguirão em todos
os meus mandamentos (i.e., no fim dos tempos) e agirão de acordo com os meus mandamentos
e eu serei um Pai para eles e eles serão meus filhos. E todos serão chamados os filhos do Deus
vivo e todos os espíritos e todos os anjos os conhecerão e conhecerão que são meus filhos e que
eu sou seu Pai...” Cf. Strack-Billerbeck, op. cit., I, p. 219.
65. Cf. Greijdanus, Lukas, II, págs. 962, 963.
66. M ichaelis e Kümmel erroneamente afirmam que, nos pronunciamentos de Jesus nos Evangelhos
sinóticos, a filiação a D eus ocorre somente como um “ endzeitliches Ziel” (um propósito a ser
concretizado somente no fim dos tempos), cf. Kümmel, Die Gottesverkiindigung Jesu, págs. 55,
56; cf. também o seu livro D as Bild des Menschen im N.T., 1948, p. 19. Em face de todas as
passagens nas quais Jesus fala do “ seu Pai” , é bastante arbitrário inferir do pequeno número de
pronunciamentos sobre filiação que estes se referem, somente, a um dom puramente escatológico.
Nem Mt 5.45 pode ser forçado a se encaixar nesse esquema.
67. Cf., p.ex., H. J. Holtzmann, Neutest. Theologie2, 1911, págs. 335-340.
68. Cf. Zelfopenbaring en Zelfverberging, 1946, p. 35.
69. Veja, p. ex., Oepke, TWB IV, págs. 595, 596, o artigo sobre “ apocalupto” .
70. Cf. § 27.
71. A ssim , p. ex., K . Holl, Urchristentum undReligionsgeschichte2, 1927, págs. 31, 32, Bultmann,
Jesus, 1926, p. 177; Theologie des Neuen Testaments, 1948, p. 23. M as, veja também Twissel-
mann, op. cit., p. 40ss.
72. Como é feito por W. Grundmann, Die Gotteskindschaft in der Geschichte Jesu, 1938.
73. Cf. Twisselmann, op. cit.
74. Cf. § 30.
75. A ssim E. Stauffer, Die Theologie des N. T., 1945, p. 160.
76. D as Wesen des Christentums, 1905, p. 45.
77. Para mais detalhes veja, de minha autoria, De strekking der bergrede, págs. 74ss, 120ss.
78. Cf., p. ex., Kümmel, Verheissung undErfiilhmg, 1945, p. 74.
79. P. ex., por C. Stange, A. Runestam, G. Kittel, cf., de minha autoria, De strekking der bergrede,
págs. 122-125.
80. Além do livro de Bultmann, Jesus, págs. 120, 121, veja, também, seu livro Theologie des N.T.,
1948, págs. 19, 20.
81. H. Windisch, D er Sinn der Bergpredigt, p. 10.
404 A v in d a d o R e in o

82. Isso também é admitido por Windisch, op. cit., p. 81.


83. A ssim entendo, pelo menos, ho kurios no v. 8, cf., p. ex., Greijdanus, op. cit., II, p. 773 e K los-
termann, op. cit., p. 163.
84. A ssim , p. ex., Greijdanus, op. cit.', alguns autores pensam que essas palavras implicam a ideia de
intercessão diante de Deus, pensamento que também ocorre, p. ex., no livro de Enoque (39.4ss.),
cf. Klostermann, op. cit.
85. A ssim , p. ex., o próprio Klostermann. Cf. para tais indicações im pessoais de D eus ao modo
judaico, Dalman, Die Worte Jesu 2, 1921.
86. Cf. uma descrição detalhada no livro de minha autoria, De strekking der bergrede, págs. 138-
144. Ali, o apelo a Mt 5.20 e a 5.48 é rejeitado, pois, em M t 5.20, Jesus não quer apontar para
algo (“ a justiça dos escribas e fariseus” ) que, em si, já era praticamente inatingível, e, agora foi
superado pelas suas exigências. M as ele indicava muito m ais esse tipo de justiça farisaica como
algo moralmente inferior, como fica claro no contexto que o segue. E, em M t 5.48, teleioi deve
ser entendido num sentido formal, ou seja, como perfeito, consistente, não desistindo enquanto
estiver pela metade. Pois o assunto aqui é o amor, que não deve ser restrito somente àqueles que
são da m esm a opinião. E sse é o motivo pelo qual, em L c 6.36, esse significado pode ser expresso
pelas palavras: “ Sede m isericordiosos, como também é m isericordioso vosso Pai” .
87. Cf., p. ex., Schniewind, op. cit., págs. 80, 81; Schrenk, TWB III, p. 55ss., o artigo sobre
“ thelema” .
88. Cf. E. Gaugler, Heiligung im Zeugnis des Schrift, 1948, p. 25 e Schniewind, op. cit., p. 81.
89. Strekking der bergrede, págs. 53-58.
90. Também Wendland ressalta essa insuficiência - bastante característica da teologia de Bultmann
como um todo! - da ideia de “ decisão” com respeito à interpretação da pregação sobre o reino
feita por Jesus, op cit., p. 52.
91. A ssim , K arl Barth, cuja discussão sobre o Sermão do Monte (em seu livro Kirchliche Dogmatik,
II, 22, 1946, págs. 766-782, veja p. 769) é muito importante do ponto de vista da exegese da his­
tória da salvação. A pesar disso, Barth não faz ju s ao texto do Serm ão da Montanha, quando, na
continuação da sua exposição escreve: “ O novo do homem novo definitivamente não é um bem
produzido por ele, nem algum bem compartilhado ou infuso, m as simplesmente aquele bem que
lhe foi prometido e conferido (angetan ) na sua posição de vizinhança com o reino de Deus, na
sua confrontação com Jesu s” . A pergunta é qual a força do “conferiu” (angetan), se não pode ser
entendido como algo “dado” ao homem. A o contrário, o evangelho fala, sem problemas, sobre o
novo “ ser” do homem, do “ homem bom” e do “ bom tesouro do seu coração” , significando, então,
uma transformação contínua do interior da pessoa, p. 229ss.
92. Cf. Stauffer, TWB I, p. 47, o artigo sobre “ agapao” .
93. A ssim , p. ex., o comentário católico-romano escrito por Joseph Schmid, D as Evangelium nach
Lukas (Regensburger Kommentanverk zum N.T.), 1940, págs. 116,117.
94. Para m ais detalhes veja, p. ex., Klostermann, op. cit., págs. 92, 94.
95. Tradução livre do Catecismo de Heidelberg, resposta 126.
96. Sobre o significado de teleioi, cf. acima, n. 86.
97. Como M ichaelis e Kümmel a consideram em decorrência de sua opinião escatológica unilateral,
veja acima, p. 164. Porém, veja também Twisselmann, op. cit., p. 94.
98. A ssim Schlatter, Der Ev. Matth., p. 193.
99. Schlatter, op. cit.
100. N o qual, de acordo com Stauffer, a mais recente teologia gosta de discutir o problema da “vontade
de D eus e a vontade do homem” , Die Theologie des N.T., 1945, p. 160.
101. Veja também, de minha autoria, “D e strekking des bergrede” , p. 136ss.
102. Veja §33 abaixo.
103. A ssim também Barth sobre o Sermão do Monte, op. cit., p. 767ss.
104. Outros traduzem pistis, aqui, por fidelidade; compare, no entanto, com Matth. II (de minha
autoria), págs. 135, 136. E possível que os ditos sobre a fé em L c 17.5ss. sejam entendidos em
N o ta s 405

conexão com a exigência de Jesus (de estar disposto a perdoar), como fazem, p. ex., Zahn e
Greijdanus. Porém, na minha opinião, por causa da aplicação diferente desses ditos em Mt 17.20,
isso não é provável.
105. Cf. também Barth, op. cit., p. 773.
106. Veja, também, Bultmann, TWB I, p. 705, o artigo sobre “ginoosko” .
107. Cf. Klostermann, op. cit., p. 103.
108. Cf. Schniewind, op. cit., p. 150.
109. Cf. § 2.
110. Cf. Schniewind, op. cit.
111. Cf. Hauck, TWB III, p. 618, o artigo sobre “karpos” .
112. Cf., p. ex., Klostermann sobre Mt 8.22, op. cit., p. 78 e Greijdanus sobre L c 9.60, op. cit., I, p.
453; Bultmann, TWB IV, p. 898, o artigo sobre “nekros” .
113. A ssim Bultmann, op. cit.
114. E ssa possibilidade é considerada por Klostermann, op. cit., p. 160.
115. Isso é apontado por H. D, Wendland, op. cit., p. 67; cf. também P. Feine, Theologie des N.T.1,
1936, p. 84.
116. Cf. Greijdanus, op. cit., p. 534 e sua citação de Calvino.
117. Isso também é ressaltado por Rengstorf, op. cit. 131.
118. A ssim , p. ex., Klostermann, op. cit., p. 124.
119. Veja § 13 acima; cf. também W. Michelis, Reich Gottes und Geist Gottes nach demN.T., 1931,
p. 10ss.; E. Gaugler, Die Heiliging im Zeugnis der Schrift, 1948, p. 24ss.
120. Como é sabido, em geral, a tradução é incerta. A palavra geralmente traduzida por “ diariamente”
indica certa medida, a saber, aquela medida que é suficiente, cf. Matth., I, p. 132 e especialmente
W. Foerster, TWB II, págs. 587-595, o artigo sobre “ epiousios” .
121. H. Windisch, Der Sinn der Bergpredigt, 1929, págs. 17,18.
122. Jesus, 1929, págs. 147-158.
*. Teodiceia é um ramo específico da teologia e da filosofia que alm eja resolver o problema da
aparente incompatibilidade entre a existência do mal e do sofrimento e a existência de um Deus
onipotente, onisciente e bom. (N. do T.)
123. Bultmann tem uma fórmula levemente diferente em TWB IV, págs. 596, 597, o artigo sobre
“merimnao” , em que ele também discute M t 6.25-34: “A o homem... é dito que seu interesse
deve ser o domínio de D eus; então, as ansiedades concernentes à sua vida desaparecem” . E ele
acrescenta: “Por esses pensamentos, a exortação, em M t 6.25-33, é distinta da visão estoica... na
qual o cuidado ansioso com respeito aos meios de sobrevivência é, também, chamado de tolice,
referindo-se aos animais. Pois, na Stoa, a liberdade dos cuidados se baseia na convicção da divi­
na ‘pronoia’ (que equipa toda criatura, e, portanto, também o homem, com o que ele precisa) e
especialmente no dogm a da liberdade do homem” .Veja, no entanto, também o livro de Bultmann
Gesch. d. Syn. Trad.2, p. 109.
124. Observe o quiasm o no pronunciamento seguinte!
125. Consequentemente, alguns escritores se posicionam contrariamente às palavras explícitas da
passagem , quando, para combater a doutrina da graça comum, dizem que, nesse caso, se fala
sobre os fatos concretos (chuva sobre os justos e sobre os injustos, sol sobre os maus e os bons)
e não sobre a disposição de Deus.
126. Jesus, p. 156.
127. U m paralelo extraordinário é encontrado em Jo 9.3-4. Também nesse caso, o problem a do so­
frimento é levantado a partir de um conceito individualista de culpa, rejeitado por Jesus inclusive
em L c 13.1-5. Aí, no entanto, o significado de sofrimento não é dito como sendo um julgamento,
m as a glória de Deus pela graça, “para que o poder de Deus se mostre nele” . Sofrimento, calam i­
dades, etc., não são somente um prelúdio do julgamento eterno de D eus; há, também, um tipo de
sofrimento no qual D eus é glorificado por meio de Cristo em sua graça e se tom a, portanto, um
exemplo e um prelúdio da salvação eterna.
406 A v in d a d o R e in o

128. Cf., também, Oepke sobre o “racional” e o “natural” na pregação de Jesus, TWB III, p. 584, o
artigo sobre “ apokalupto” .
129. Os dativos psuchei e s oomati devem ser interpretados como dativi relationis. M esm o que esse
ponto de vista seja rejeitado, ainda assim será necessário admitir que a despreocupação exigida
por Jesus não se refere à vida e ao corpo como tais, m as à maneira como esses são mantidos em
sua existência terrena; cf., de minha autoria, Matth., I, págs. 140, 141.
130. A tradução de tenpsnchen autou zemioothei é difícil, pois a pergunta é se o elemento de punição
também desempenha um papel, nesse caso, ao lado do elemento de perda, dano; cf. Schlatter, Der
Ev. Matth., p. 522 e Stumpff, TW B II, págs. 893, 894, o artigo sobre “zem ia” .
131. N esse caso, também, zemiootheis é m ais que apenas sofrer danos. Refere-se ao preço que deve
ser pago.
132. Cf., p. ex., Strack-Billerbeck, op. cit., I, págs. 429-431.
133. Cf. §12.
134. J. Ridderbos, Predikende het evangelie des koninkrijks, 1911, p. 94ss.
135. Veja, sobre isso, p. ex., J. Ridderbos, Elet Godswoord der profeten, II, 1932, p. 357ss; 468ss;
IV, 1941, p. 181ss; 204ss; cf. também § 1.
136. Cf. Strack-Billerbeck, op. cit.
137. Sobre o conceito aioon e a ideia “ linear” do tempo no N.T. veja, além de Sasse, TWB I, p. 202ss,
especialmente as exposições importantes de O. Cullmann, Christus und die Zeit, 1946, p. 3 lss.
138. Sobre esse assunto, veja especialmente Strack-Billerbeck, op. cit., I, p. 892ss; IV, 1, p. 344; IV,
2, p. 116ss; também Oepke, TWB I, 370, o artigo sobre “ anistemi” ; e Ph. H. Menoud, Le sort des
trépassés d ’après le Nouveau Testament, 1945, p. 27ss. Este último, no entanto, é da opinião de
que, por muito tempo, a crença na ressurreição entre os judeus foi uma opinião “m ais ou menos
opcional” e, em momento algum, um artigo de fé. Foi somente no século 3o. d.C. que se formulou
um anátema contra aqueles que negavam a ressurreição, loc. cit. Todavia, a posição dos saduceus
parece ter sido a exceção à regra.
139. Cf. Greijdanus, op. cit., II, p. 962 e, de minha autoria, Matth., II, p. 120.
140. Strack-Billerbeck, op. cit., I, p. 888ss; cf. também Menoud, op. cit., págs. 2 8 ,2 9 ; e Hauck, sobre
M arcos 12.25; op. cit., p. 146.
141. Compare, para isso, com, p. ex., Menoud, op. cit., págs. 11-21.
142. Cf. Strack-Billerbeck, op. cit., I. p. 200.
143. Schniewind, op. cit., p. 42.
144. Klostermann, op. cit., p. 37.
145. Schlatter, Der Ev. Matth., p. 136
146. Cf. Sasse, TWB I, p. 678.
147. Cf. para isso, também, H. D. Wendland, op. cit., p. 77ss, que rejeita a espiritualização moderna
nas interpretações do evangelho.
148. Cf. Wendland, op. cit., págs. 79, 80.
149. Veja, também, Bultmann, TWB II, págs. 864-867, o artigo sobre “ zao” .
150. Veja, p. ex., Zahn, op. cit., p. 701; Klostermann, op. cit., p. 229; Greijdanus, op. cit., II, págs.
1148, 1149.
151. A ssim , o “ estado intermediário não foi om itido” , como pensa, p. ex., M. van Rhijn, Een
blik in het ondenvijs van Jezus, 1924, p. 135. P. Althaus também admitiu isso, Die letzten
D in ge\ 1949, p. 143, que, em L c 23.43, se fala sobre um estado intermediário. Cf. também
O. Cullmann, Christus und die Zeit, 1946, págs. 21 2 ss.; Ph.H. M enoud, Le sort des trépassés,
1945, p. 45.
152. Cf., p. ex., Strack-Billerbeck, op. cit., págs. 1118, 1130; E. Stauffer, Die Theol. Des N.T., 1945,
p. 190.
N ota s 407

Capítulo VII

1. Veja § 29.
2. A quintessência desse assunto foi discutida na minha tese, De strekking der bergrede naar Mat-
theiis, 1936. Porém, não podem os simplesmente nos referir ao que está escrito nessa tese, pois
os mandamentos de Jesus abrangem m ais do que só o Serm ão do Monte e, também, porque o
propósito deste livro exige uma breve discussão da pregação moral de Jesus.
3. Já foi indicado que a expressão “ fome e sede de justiça” tem outro significado (cf. § 24). Podemos
nos perguntar se o termo “ju stiça” (de D eus), em 6.33, não deveria ser interpretado nesse sentido
(da revelação salvadora de Deus no seu reino, a qual proporciona justiça). E sse entendimento
não seria totalmente impossível, ainda que prefiramos a visão corrente (a saber, que, nesse caso,
“justiça” é a conduta na vida exigida por Deus).
*. Hendíade: frase que usa duas palavras ligadas por uma conjunção para expressar um conceito
complexo. (N. do T.)
4. Cf., p. ex., E. L. Schmidt, TWB I, p. 583 e H. D. Wendland, op. cit., p. 72.
5. Para uma discussão elaborada a respeito desses pontos de vista idealistas (por um lado, os de
H amack, Grimm, Weinel, Baumgarten, etc.; por outro lado, o de Tolstoi, a figura social de Je ­
sus, o evangelho social, etc.) cf., de minha autoria, “ De strekking der bergrede", págs. 192-204;
218-233.
6. J. Weiss, Die Predigt Jesu vom Reiche Gottes2, 1900, p. 139.
7. A. Schweitzer, Die Gesehichte der Leben Jesu Forsehung4, 1933, p. 594ss; 613ss; D as Messia-
nitãts-undLeidens-Geheimnis2, 1929, p. 19.
8. Um exemplo muito conhecido de uma motivação não escatológica é, p. ex., Mt 6.34, “Portanto, não
vos inquieteis com o dia de amanhã, pois o amanhã trará os seus cuidados; basta ao dia o seu próprio
m al.” Se a ética de Jesus fosse definida totalmente de maneira escatológica, teríamos, certamente,
esperado pelas palavras “pois amanhã será o fim” ou “ amanhã o reino de Deus virá” . Sobre isso, J.
H. Leckie está certo quando observa (em The World to Come and Final Destiny, p. 56): “E sse seria
um argumento bastante poderoso para ser usado se Jesu s tivesse a convicção de que o fim estava
próximo. No entanto, ele se contenta em basear seu apelo num pensamento simples e familiar,
indicando que as coisas do futuro serão iguais às do passado e que a experiência humana, patética,
continuará se repetindo”, citado por H. A. Guy, The New Testament Doctrine o f the “Last Things”,
1948, p. 69. Para o relacionamento entre “reino de D eus” e “ não se preocupar” , veja § 30.
9. Este último ponto já havia sido reconhecido por W eiss - sob protesto de alguns de seus
seguidores!
10. Cf., p. ex., Bultmann, Jesus, págs. 117-119.
11. Cf. § 29.
12. Veja, ainda, Gutbrod, TWB IV, p. 1053ss, o artigo sobre “ nomos” , e A. A. vanRuler, De vervulling
van de wet, 1947, págs. 327ss.
13. Cf., de minha autoria, Matth. I I .
14. Do ponto de vista da exegese e da história redentora, a exposição de Van Ruler sobre o que os
sinóticos têm a dizer sobre o cumprimento da lei é tanto importante quanto profunda; porém, ele
culpa erradamente (op. cit., 327-367) Gutbrod (op. cit., p. 1053ss) por não salientar mais claramente
a expiação m essiânica de Jesus como a satisfação da justiça de Deus e, portanto, da lei de Deus, e
seu ato sacrificial no Gólgota como a grande afirmação da lei divina, p. 330. E ssa verdade está, sem
dúvida, implícita também no kerygma sinóptico (veja cima, § 23). Porém, exegeticamente, ela não pode
ser demonstrada por meio dos pronunciamentos sinópticos sobre “ o cumprimento da lei” , posto que
esses pronunciamentos nada dizem a esse respeito. Aqui (e em outros lugares), a exegese e a historia
revelationis devem preservar seu próprio caminho, precisamente por causa da evidência do dogma.
15. Cf. também Gutbrod: “Além disso (i.e., além da vontade de Deus revelada na lei) não há nada mais para
ser cumprido por ele” (“ Darüber hinaus gibt es keine etwa von ihm zu vertretende Güte”), op. cit.
16. Cf., também, acima, § 29.
408 A v in d a d o R e in o

17. Cf. mais detalhes em Math. II (de minha autoria), p. 61 ss.


18. Cf. acima, § 27
19. Cf. De strekking der bergrede, p. 155ss.
20. Jerem ias, TWB IV, p. 872, o artigo sobre “m oouses” . Ele se refere ao Talmude (Schabbath 116b)
citando a palavra de Jesus em M t 5.17 em aramaico e onde a palavra traduzida em Mt 5.17 signi­
fica: “acrescentar a” ( asaph ). M as o Talmude dificilmente pode ser usado como um árbitro para o
estabelecimento da expressão usada originalmente por Jesus e certamente não se estiver em conflito
com o contexto no evangelho (veja o texto acima). Além disso, o Talmude traz o pronunciamento
de Jesu s numa form a que se desvia inteiramente do evangelho. N a tradução de Billerbeck se lê
(op. cit., I, p. 242) o seguinte: “ eu, evangelho, não vim para tirar da Torá de M oisés, m as vim para
acrescentar” . M as Jerem ias certamente não estará preparado para interpretar a palavra “ desligar,
destruir” (katalusai) como “tirar” (diminuir, rebaixar)!
21. “Etsi Christus, quafuit vitaeperfectione, iactare merito poterat, se venisse ad impendam Legem,
hic tamen de doctrina agitur, non de vita”, org. Tholuck, I, p. 143.
22. D as Mattheiis.-ev., p. 40.
23. A. A. van Ruler, De vervulling der wet, 1947, p. 305.
24. Op. cit., p. 320.
25. Cf. acima, § 29.
26. N a exegese de Mt 5.17, isso sempre foi corretamente ressaltado; cf., p. ex., Calvino, op. cit.;
Schniewind, Matth, p. 52; Barth, Kirchliche Dogmatic, II, 22, 1946, págs. 766ss.
27. Por esse motivo, acredito que a exegese de Schlatter é um a interpretação incorreta do sentido
específico de Mt 5.17. Aparentemente, ele entende o cumprimento da lei somente como a obe­
diência m essiânica de Jesus. “Jesus considera o propósito de sua vinda cumprir o mandamento
das Escrituras, em obediência integral. Ele esclarece que a congregação desobedece às Escrituras,
não podendo obedecê-las. Seu propósito vai além do que os outros fazem e podem fazer. Até esse
ponto, a lei de Deus continua sendo transgredida; nesse momento, no entanto, veio aquele que
cumpre o que Deus ordenou” . Der Ev. Matth., 1933, p. 154.
28. Cf., p. ex., H. J. Holtzmann, Handbuch der Theol. des N. T., 1,204; W. C. Allen, sobre Mt 5.17-20,
op. cit., p. 45; Klostermann, op. cit., p. 40; C. G. Montefiore, The Synoptic Gospels, II2, p. 29.
29. Para m ais detalhes cf., de minha autoria, De strekking der bergrede, págs. 153-174.
30. f. Strack-Billerbeck, op. cit., I, p. 693; e ainda p. 692 passim e p. 254.
31. A ssim , p. ex., Delling, em TWB I, p. 485, o artigo sobre “archaios” .
32. Cf. Strack-Billerbeck sobre Mt 5.21 e 15.2, op. cit., págs 254 e 691.
33. E sse argumento retém sua força mesmo que alguém explicasse “ os antigos” como os destinatários
da lei. Pois, mesmo nesse caso, se deveria pensar no ensino, na explanação da lei que haviam
recebido, não na lei em si. A ssim , p. ex., W. Geesink, Gereformeerde Ethiek, I, 1931, p. 457.
34. Cf. a discussão sobre isso no livro de minha autoria, De strekking der bergrede, págs. 167-174.
35. Alguns autores traduzem M c 7.19b por “ e assim ele declarou que todas as carnes eram puras” ;
m as, katharizoon deve ser entendido como a continuação de ekporeuetai. O processo da digestão
é, ao mesmo tempo, a purificação do alimento!
36. A ssim , p. ex., Schniewind, D as Ev. nach Markus, págs. 99-101. “ Este versículo (15) realmente
explode toda a legislação do culto do Antigo Testamento” (“In Wahrheit sprengt der Vers (15) die
ganze alttestamentliche Kultusgesetzgebung. ” )
37. Cf. Strack-Billerbeck, op. cit., I. p. 489ss.
38. A exegese do terceiro versículo é muito difícil: “Fazei e guardai, pois, tudo quanto eles vos
disserem, porém não o imiteis nas suas obras” . Isso não quer dizer que Jesus favoreça todas as
regras dos fariseus, como demonstra, p. ex., o seu próprio sermão, nos vs. 16-22! Cf. também, de
minha autoria, Matth., II, p. 130ss.
39. Sobre a evidência desse uso lingüístico cf., Schlatter, Der Ev. Matth., p. 679.
40. O fato de colher e debulhar espigas com as m ãos (L c 6.1) foi explicado como uma forma de
colheita proibida por M oisés (Ê x 34.21).
N otas 409

41. Cf., p. ex., C. F. K eil , Die Biicher Samuels, 1875, p. 17.


42. Cf., p. ex., também Behm, TWB III, p. 451ss: “Kainos é a essência do que é totalmente diferente
e miraculoso e o que é trazido pelo período final” . “Além disso, as parábolas sobre o que é novo
e o que não é compatível com o que é velho, em M c 2 .2 ls s , apontam para o caráter totalmente
diferente da m ensagem de Jesu s.”
43. Cf. também Behm, TWB IV, págs. 902, 903, o artigo sobre “neos” ; Hauck, D as Ev. d. Mark,
1931, págs. 38, 39.
44. Cf., ainda, Schniewind sobre M c 2.18-22, op. cit., págs. 60, 61.
45. Devido à teologia de Hermann, esse entendimento tem tido um circulo extenso de adeptos e tem
sido bastante influente, especialmente na escola de H. J. Holtzmann, particularmente com respeito
à teologia do Novo Testamento. E sse entendimento é contraposto no livro de minha autoria, De
strekking der bergrede , págs. 146ss; 175ss; também Van Ruler, op. cit., p. 337ss.
46. Sobre essa concepção de Brunner e sua irracionalidade à luz do evangelho, veja, de minha autoria,
De strekking der bergrede, págs. 210ss, 235ss.
47. Gutbrod, op. cit., p. 1056.
48. Gutbrod, op. cit.
49. A ssim , Van Ruler, op. cit., p. 345. Aqui ele fala de “um momento na mobilidade da revelação
como uma autorrevelação do Deus vivo, que nunca desiste de si m esmo... e mantém, ele mesmo,
a sua lei e à sua própria maneira” .
50. A importância desse ponto de vista também é clara nas leis civis de Israel, cuja validade não pode
ser estabelecida sem que se leve em consideração o estágio alcançado pela revelação da salvação
e, como resultado, o caráter específico da existência nacional de Israel.
51. Cf., também, G. C. Berkouwer, Geloof en heiliging, 1949, p. 185.
52. Cf. Van Ruler, op. cit., p. 348ss; ele baseia seus pontos de vista principalmente nas exposições
de Gutbrod, op. cit., p. 1055ss.
53. Op. cit., p. 1055.
54. Cf. Cremer-kõgel, Bibl.-theol. Wõrterbuchn, 1923, p. 638.
55. Considero gnooseoos um genitivo objetivo (chave para a ciência/conhecimento) e não um genitivo
subjetivo (chave, i.e., a ciência); cf., no entanto, Jerem ias, TWB III, págs. 746, 747, o artigo sobre
“kleis” . É verdade que o v. 52b fala a respeito da entrada no reino; porém, isso não significa que
“ a chave” é a chave do reino e não do conhecimento. Por outro lado, o uso absoluto da palavra
“ chave” (também definido, m ais precisamente, como “ciência/conhecimento”) parece ser menos
óbvio do que quando é usado para significar a chave para o conhecimento.
56. Cf. Bultmann, TWB I, págs. 700, 701, o artigo sobre “ginoosko” .
57. Joseph Klausner, Jesus von Nazareth2, 1934, p. 523, cf. também p. 529ss.
58. Cf. De strekking der bergrede, p. 229ss.

Capítulo VIII

1. U m a pesquisa muito instrutiva e fascinante discutindo as perspectivas m ais importantes dessa


questão entre os anos 1880-1930, pode ser encontrada em O lof Linton, D as Problem der Urkir-
che in der neueren Forschung, 1932, págs. 157-183. N a literatura m ais recente, mencionamos
especialmente R. Newton Flew, Jesu s andH is church, 1945; W. G. Kümmel, Kirchenbegriff und
Geschichtsbewusstsein in der Urgemeinde und bei Jesus (Symbolae Biblicae Upsaliensis, Heft
I), 1954; N ils Alstrup Dahl, D as Volk Gottes, Eine Untersuchung zum Kirchenbewusstsein des
Urchristentums (Skrifter utgitt av Det NorskeVidenskaps -Akademi i Oslo), 1941; A. Oepke, Jesus
und der Gottesvolkgedanke, Luthertum, março/abril 1942, p. 33-62; A. Oepke, Der Herrnspruch
über die Kirche Mt 16.17-19, Studia Theologica, 1949-50, págs. 110-165; e ainda o resumo de F.
M. Braun, O.P., Neites Licht a u f die Kirche, 1946.
2. Cf., p. ex., Linton, op. cit., p. 3ss; Braun, op. cit., p. 40.
410 A v in d a d o R e in o

3. E sse ponto de vista também é encontrado, p. ex., em K. Holl, Der Kirchenbegriff des Paulus in
seinem Verhãltniszu dem der Urgemeinde, 1921 e M . Goguel, L'idée de VEglise dans leNouveau
Testament, em: Origine et nature de VEglise, Paris 1939; cf. também Braun, op. cit. págs. 44,56-58,
e A. Verheul, De moderne exegese over apostolos, Sacris Erudiri, I, 1948, p. 380ss.
4. Gesch. der Leben-Jesu-Forschung, p. 416.
5. Die Frage nach der Echtheit von Mt 16. 17-19, Theologische Blãtter, 1941, p. 273.
6. A. Loisy, 1’Evangile et VEglise, 1902, p. 111; cf. também M. Wemer, Die Entstehung des christ-
lichen Dogmas, 1941, p. 74ss. Também M ichaelis, em seu livro Reich Gottes und Geist Gottes
nach dem Neuen Testament, 1930, parece ainda manter essa visão, cf. p. 20, embora, num livro
posterior a esse, Der Herr verzieht nicht die Verheissung, 1942, combata severamente a escatologia
consistente de Schweitzer e Wemer.
7. Bultmann, op. cit. p. 268.
8. Verheissung und Erfüllung, págs. 84, 85. Küm m el defendeu essa ideia m ais detalhadamente
em seu livro Kirchenbegriff und Geschichtsbewusstsein in der Urgemeinde und bei Jesu s (Sym-
bolae Biblicae Upsaliensis, Heft 1), 1943, m anuscrito este que, para mim, nos Países B aixos,
era inacessível. Também Dahl, m esm o não preparado para negar totalmente a autenticidade de
M t 16.18, contesta o pensamento de que Jesu s, n esse caso, tenha falado da organização do povo
de D eus como o verdadeiro Israel. Jesu s viu nos seus discípulos, no entanto, os representantes
do verdadeiro Israel, m as esse fato não pode ser interpretado no sentido de que ele reconheceu
na comunidade destes um povo m essiânico, um novo Israel ou a igreja (op. cit., p. 163). Por
enquanto, se esse tipo de ideia é realmente demonstrável, ela está relacionada à congregação
escatológica do futuro, não a da igreja em pírica de Cristo do presente (op. cit., 162). O único
caminho possível para reconhecer Mt 16.18 como autêntico é pela exegese que entende a
construção da ekklesia como um a indicação sim bólica da comunidade no reino escatológico
de D eus (p. 165).
9. Cf. Linton, op. cit., p. 175. Ele cita quatro argumentos: o estatístico (veja acima), o escatológico,
o da história da igreja (a posição de Pedro na igreja primitiva) e o psicológico. K. L . Schmidt
adota essa classificação em TWB, III, p. 524, o artigo sobre “ ekklesia” .
10. Cf., também, Linton, op. cit., p. 182 e Braun, op. cit., p.83.
11. Cf. abaixo, § 37.
12. Para a argumentação dessa hipótese de Ham ack, cf. Resch, Grill, Guignebert, Schnitzer, Soltau
e outros, cf. Linton, op. cit., p. 159ss.
13. Cf., p. ex., Bultmann, Gesch. d. syn. Trad.2, p. 148ss.
14. Cf., p. ex., também Schmidt, TWB III,p. 523, o artigo sobre “ ekklesia” .
15. Cf. Linton, op. cit., p. 158; Schmidt, op. cit:, também Bultmann: “ E claro que não é impossível
que, nos conteúdos especiais de M ateus (e Lucas), haja palavras do Senhor derivadas de uma
tradição antiga confiável” . Ele, no entanto, continua: “Porém, isso deve ser tomado plausível em
cada caso, separadamente; e o critério deve ser que essas palavras se encaixem no sermão, no
conteúdo conceituai e no relacionamento com as palavras do Senhor que podem ser reconhecidas
como antigas com base na tradição preservada em M arcos e nos ditos originais de Jesu s” , Die
Frage nach der Echtheit, op. cit., p. 268. E óbvio que esse critério é extremamente subjetivo
(“ combinar-se com” , e “pode ser reconhecido como” ).
16. F. Kattenbusch, Der Quellort der Kirchenidee, em: Festgabe A. V. Hamack, 1921, págs. 143-
112; Der Spruch über Petrus und die Kirche bei Matthãus, em: Theol. StudienundKritiken, 1922,
págs. 96-131; Die Vorzugstellung des Petrus und der Charakter der Urgemeinde zu Jerusalem,
em: Festgabe Karl Müller, 1922, págs. 322-351.
17. D er Quellort, op. cit., págs. 160, 161.
18. Op. cit., p. 162ss.
19. Op. cit., p. 166.
20. Op. cit., p. 169.
21. Der Spruch über Petrus, op. cit., p. 117ss.
N ota s 411

22. Cf., p. ex., G. Gloege, Reich Gottes undKirche im N.T., 1929, p. 262; H. D. Wendland, op. cit.,
p. 165ss.; J. Schniewind, D as Ev. nach Matth., 1937, p. 184; O. Cullmann, Christus und die Zeit,
1946, p. 132; A. J. Bronkhorst, Schrift en Kerkorde, 1947, p. 20, e principalmente K. L. Schmidt
(cf. abaixo).
23. Gloege, op. cit., p. 212ss.; 241ss.
24. Além da literatura acim a citada, em que a ideia do “remanescente” ocorre repetidamente, veja
também Newton Flew, op. cit., p. 39ss.
25. Jesus und der Gottesvolkgedanke, op. cit., p. 45ss; 58ss.
26. Cf. acima.
27. A ssim , p. ex., K. L. Schmidt, TWB IV, p. 524, o artigo sobre “ekklesia” ; veja, porém, também T.
Zahn, D as Ev. des Matth., 1922, p. 547.
28. Schmidt, op. cit.; cf. também Braun, op. cit., págs. 62, 69-75, 160.
29. Cf. Schmidt, TWB III, p. 529ss, e os escritos anteriores desse autor mencionados no início desse
artigo. O argumento dado por Kattenbush-Schmidt é seguido bem de perto por Bronkhorst, op.
cit., p. 20ss.
30. Cf. Braun, op. cit., p. 93ss.
31. E ssa ideia, como é do conhecimento geral, tem encontrado muitos adeptos em resultado da
influência do De Civitate Dei, de Agostinho; cf., p. ex., J. Wytzes, Augustinus ’ De Staat Gods
1947, p .13: “Agostinho m ostra algum a inclinação para considerar o reino de Deus independente
das comunidades humanas organizadas. Somente uma parte pequena de seu reino está “ em pe­
regrinação” na terra e, como pode ser inferido de outros pronunciamentos, essa parte é a Igreja
Católica concreta daqueles dias” . Cf., ainda, Newton Flew. op. cit., p. 30.
32. Cf. acima, § 5.
33. “Quare hic meo iudicio simplex est parabolae scopus. Quam diu in hoc mundo peregrinatur
Ecclesia, bonis et sinceris in ea permixtos fore maios et hypocritas"... org. Tholuck II, 1833,
p .14.
34. ... "Evangeliipraedicationem scite comparat verriculo sub aquis demerso, utsciemuspraesentem
Ecclesiae statum confusum esse”, op. cit., p. 21.
35. Veja esse conceito em Newton Flew, p. 20.
36. A ssim , Joseph Schmidt, D as evangelium des Markus, 1933, p. 64 (em conexão com a parábola
do grão de mostarda): “D e acordo com o evangelho, a igreja não é o reino de Deus na terra” .
37. Cf. acima, § 19.
38. N a nossa opinião, a única expressão quanto a isso que pode causar algum a incerteza é o pronun­
ciamento feito em Mt 13. 41 de que, no fim deste mundo, “Mandará o Filho do Homem os seus
anjos que ajuntarão do seu reino todos os escândalos...” M as, nesse caso, podem os nos referir à
nossa discussão no texto do § 19, n. 85, que dá a impressão de que basileia não significa a igreja,
m as é m ais geral, tudo o que veio da boa semente que foi semeada no mundo.
39. M. J. Lagrange, Evangile selon Saint Marc, 1947, p. 122. Ele acrescenta: “ Alguém pode se sentir
naturalmente inclinado a considerar o domínio como uma instituição que está se desenvolvendo
e se tom ará bastante extensa” . C f . Joseph Schmidt, n. 36.
40. Veja acima, § 21
41. Jesus andH is Church, 1945, p. 27.
42. Op. Cit., p. 28.
43. Cf., também, H. A. Guy, The New Testament Doctrine o f the “Last Things”, 1948, p. 71.
44. Veja, ainda, G. Ch. Aalders, Het boek Daniel, 1928, p. 134ss, 140.
45. Em nossa opinião, essa crítica a Kattenbusch e outros, feita por Bultmann, é irrefutável, op. cit.,
esp. 277. Cf., ainda, Oepke, Jesus und der gottesvolkgedanke, op. cit., p. 59.
46. Cf. Aalders, op. cit., p. 140.
47. Veja, também, Newton Flew sobre o fato de Kattenbusch recorrer a Dn 7: “ Provavelmente é mais
verdadeiro dizer que a ideia de ecclesia é como um rio seguindo purificado, vindo de um lago
grande da qual fluíram muitas correntes tributárias” , op. cit., p. 36.
412 A v in d a d o R e in o

48. Cf., também, Oepke, op. cit., p. 45.


49. Bultmann se refere à interpretação de Gloege como sendo uma “ construção fantasiosa” , op. cit.,
esp. 277.
50. Cf. Bultmann: “ das versteht sich von selbst” (isso é claro por si mesm o), op.cit., p. 277.
51. “O conceito de uma igreja escatológica não começa, somente, com a pregação do reino de Jesus,
mas já vem do judaísm o” , Bultmann, op. cit., esp. 275.
52. Cf. Bultmann, op. cit., esp. 275.
53. Cf. acima, § 13.
54. Cf., também, Kittel, TWB I, págs. 214, 215, o artigo sobre “ akoloutheo” .
55. Cf., p. ex., também R. Liechtenhan, Die urchristliche Mission, 1946, p. 19ss.
56. Cf. acima, § 21.
57. Cf., de minha autoria, Matth. I, p. 275ss.
58. Dahl, op. cit., págs. 158-167; Kümmel, op. cit., p. 85.
59. Cf. acima, §§ 25, 26.
60. Cf., para o conceito de “ construir” com relação ao povo de Deus, R Bonnard, Jesus-C-hrist édifiant
son Eglise, 1948; o ponto relevante, p. 14ss.
61. Para “pedra angular” , cf. Jerem ias, TWB IV, p. 272ss, o artigo sobre “ lithos” .
62. Cf., também, Schniewind, op. cit., p. 212.
63. Cf. acima, § 25.
64. A ssim também Bultmann, op. cit., 275.
65. Cf. Dahl, op. cit., p. 158: “ Os doze não fazem referência apenas às doze tribos, mas também ao
povo escatológico” .
66. Schmidt, também, se recusa a desistir da ideia do t h a l Yahweh, m as considera a palavra tenischta
como especificação da mesma.
67. Cf., p. ex., Braun, op. cit.
68. Cf. Schmidt, TWB IV, p. 530.
69. Cf., também, a crítica de Bultmann, op. cit., 269, A 54.
70. Cf. nota 66.
71. A ssim Schmidt, op. cit., como também Bronkhorst, op. cit., p. 26.
72. Sobre esses conceitos, cf. Bonnard, op. cit., p. 11 ss.
73. Cf. Bonnard, op. cit., p. 27.
74. Isso depende da ideia das “portas do inferno” ; cf., p. ex., Schniewind sobre Mt 16.18,que pensa
num templo no sentido de E f 2.20-22; lP e 2.4ss., op. cit., p. 184. Também Dahl fala do templo.
E, referindo-se a Jeremias, quer explicar petra como uma rocha cósm ica que retém as ondas do
mundo subterrâneo, op. cit., p. 165. Ainda, no mesmo espírito, veja Bonnard, op. cit., p.26ss, em
nossa opinião, uma exegese muito duvidosa.
75. Cf., também, Oepke, Jesus und der Gottesvolkgedanke, op. cit., págs. 45, 46.
76. Cf. K. L. Schmidt, TWB III, p. 531, o artigo sobre “ ekklesia” . Em minha opinião, é de se duvidar
que kahal, nesse sentido, seja primariamente um termo litúrgico, como Bultmann afirma. Como
o conceito hagios, ele se refere primariamente ao povo separado e eleito por Deus em sua aliança
(cf. Dt 9.10; 10.4) e, deste, deriva o significado para a comunidade cúltica (SI 22.23, 26, etc.).
Cf., ainda, o artigo de minha autoria, De Heiligheid der gemeente volgens het Nieuwe Testament,
Vox Theologica, 1948, 18° ano, n° 6, págs. 187-194.
77. A ssim Kattenbusch, Der Quellort, op. cit., p. 168ss.
78. Wendland, op. cit., p. 193ss; Bultmann, op. cit., p. 272.
79. Cf., ainda, Cullmann, Kõnigsherrschaft Gottes und Kirche im N.T., 1941, p. 22.
80. A ssim Calvino. Ele argum enta que o nom e Petrus se aplica tanto a Sim ão como aos outros
crentes, pois estão edificados em santa harm onia sobre a fé em Cristo e estão sendo feitos
edifício espiritual, pois, ao com entar que esse era o fundamento comum de toda a igreja,
Cristo quis arrebanhar, em Pedro, todos os homens santos no mundo. Org. Tholuck, II, 1833,
p. 107.
N otas 413

81. A ssim Lutero, em seu Responsio ad librum Ambrosii Catharini, 1521; cf. em K . L. Schmidt,
Die Kirche des Urchristentums, em: Festgabe für Adolf Deissmann, 1927, p. 298ss; cf. também
Braun, op. cit., p. 86ss.
82. A ssim Strack-Billerbeck, op. cit., I, p. 732.
83. Cf. Grosheide, op. cit., p. 200.
84. Cf., também, Preuschen-Bauer, op. cit.
85. Cf., também, Zahn, D as Ev. d. Matth., págs. 539, 540. Ele também faz referência à palavra
aramaica keyphah que se encontra na base das duas palavras e que é, provavelmente, usada em
am bos os casos por Jesus.
86. Cf., também, H. Bavinck, GereformeerdeDogmatiekTV4, 1930, p. 320. “ A s palavras ‘estapedra’
só podem se referir à p essoa de Pedro, m as ele é uma pedra e tem provado ser essa pedra pela sua
confissão de que Jesus é o Cristo” .
87. Cf., acima, a citação de Calvino. Zahn, op. cit., p. 545, e Wendland, op. cit., págs. 175, 180
também representam esse ponto de vista. M as, nesse caso, Pedro não é chamado de “ a primeira
pedra” , mas a pedra sobre a qual toda a construção repousa.
88. A ssim , p. ex., Kattenbusch, Der Quellort der Kirchenidee, op. cit., p. 167, A 1; cf.; no entanto,
também seu livro Der Spruch überPetrus und die Kirche bei Matthaus, Neutestamentliche Fors-
chungen (Sonderheft der Theol. Studien und Kritiken), 1922, p. 121.
89. Cf., também, Jerem ias, TWB III, p. 749, o artigo sobre “kleis” .
90. N esse sentido, p. ex., Zahn, op. cit.; cf. também Jerem ias, op. cit., p. 750.
91. A opinião de Kattenbusch é que a expressão “ as chaves do reino do céu” significa a Escritura
que abre o reino, Der Quellort, op. cit., págs. 120ss, 126.
92. A. J. Bronkhorst, Schrift en Kerkorde, 1947, págs. 36, 37.
93. Jerem ias, op. cit., p. 750.
94. Cf. E. Schweizer, Das Leben des Flernn in der Gemeinde und ihren Diensten, 1946, p. 92, e a
literatura citada.
95. Em nossa opinião, é bastante duvidoso que Mt 16.18 deva ser explicado de acordo com a analogia
de 23.13, como Jerem ias e outros insistem. Em Mt 23.13, “ fechais o reino” significa colocar um
obstáculo prático diante do povo que os impede de entrar no reino (p. ex., por meio da doutrina
ou conduta). N esse caso, não se aplica a algum a autoridade ou atitude autoritária com respeito à
entrada no reino do céu.
96. Cf. Strack-Billerbeck, op. cit., I, p. 738ss; A. Schlatter, Der Evangel. Matthaus, p. 51 Oss. F.
Büchsel, TWB II, p. 59ss, o artigo sobre “ deo” ; Jerem ias, op. cit.
97. Seguindo o exemplo de Schlatter, Jerem ias aponta, especialmente, para esse uso (em certa p as­
sagem do Talmude).
98. Em nossa opinião, isso acontece se, pelo poder das chaves, for entendida somente a separação
introduzida pela pregação do evangelho; assim, p. ex., H. D. Wendland, op. cit., p. 180, “D a atitude
adotada para com a mensagem se segue a inclusão no reino ou a exclusão deste, e, provindo deste,
ou participação na igreja do fim ou a separação desta... a autoridade do apóstolo não está baseada
em alguma conformidade le g a l, m as fundamentada na mensagem do reino confiada a ele, criando a
nova igreja” . N ão é difícil harmonizar as palavras de Mt 18.18 com essa visão. Wendland acha que
“ as experiências práticas da igreja primitiva tenha influenciado a sua redação” , op. cit., p. 183. R.
Newton Flew, Jesus and His Church, 1945, p. 97, também é inclinado a fazer essa explicação, “ O
ligar e desligar seria o resultado inevitável da pregação apostólica que era a palavra de julgamento.
O dito seria, então, paralelo a Lc 10.16, ‘Quem vos der ouvidos ouve-me a mim; e quem vos rejeitar
a mim me rejeita” ’. Esse ponto de vista também é encontrado em K. Barth, De apostolische geloo-
fsbelijdenis, (adaptado por K . H. Miskotte), 1935, p. 172, “A palavra (sobre as “chaves do reino do
céu”) não pode ser entendida se for tomada como uma extensão do oficio e da tarefa da igreja, m as é
a circunscrição da única coisa que pode ser válida, isto é, do ministerium verbi divini (ministério da
Palavra divina) no sentido que a autoridade e seu efeito são estabelecidos...” Cf., ainda, em oposição
a esse ponto de vista de Barth, e de outros, A. A. van Ruler, Religie en Politiek, 1945, p. 97ss.
414 A v in d a d o R e in o

99. A ssim é que Braun se expressa, op. cit., p. 90.


100. A ssim , enfaticamente, K. L. Schmidt, Die Kirche des Urchristentums, em: Festgabe fiir Adolf
Deissmann, 1927. p. 300.
101. Cf. Schniewind, Matth., p. 185; também Grosheide, Matth., p. 202 ... “o que Jesus diz a Pedro,
nesse caso, não se aplica a todos os membros da igreja ou mesmo a todos os que ocupam ofícios,
m as definitivamente aos apóstolos. Eles recebem revelações para a liderança da ekklesia. N ós
som os submetidos às suas revelações como mencionadas nas Escrituras. A exclusão do reino
dos céus, bem como a declaração das coisas que são ilegais, devem ser feitas de acordo com as
regras dadas pelos apóstolos” .
102. E verdade que, aqui, as chaves do reino do céu não são mencionadas, mas o significado verda­
deiro m esm o está no “ ligar” e “ desligar” ; veja ainda Jeremias, op. cit., p. 751.
103. Veja, também, A. J. Bronkhorst, op. cit., p. 44.
104. Todas as coisas essenciais já podem ser encontradas na exegese de Calvino de Mt 16.17-19; cf.
também Bronkhorst, op. cit., págs. 186-188.
105. A ssim Jerem ias, TWB III, p. 751ss, o artigo sobre “kleis” .
106. Cf. Zahn, D as Ev. d. Matth., p. 573ss.; Schniewind, D as Ev. n. Matth., p. 191 ss.
107. Jerem ias, op. cit.
108. Von Soden acha, erroneamente, que adelphos ainda ocorre no “uso lingüístico judaico” de
“ correligionário” , “ cocidadão” TWB I, p. 145, o artigo sobre “ adelphos” . Em nossa opinião, o
uso cristão da linguagem é bastante claro.
109. A s metáforas “ fundamento” e “ construtor” se alternam nos escritos apostólicos; compare E f
2.20 com 1Co 3.10.
110. Cf. Klostermann eis to emon onoma, “como igreja” , op. cit., p. 151.
111. Veja, esp., F. W. Grosheide, De eerste brief van den apostei Paulus aan de Kerk te Korinthe,
1932, págs. 175-180.
112. Cf., de minha autoria, Matth. II, 1946, págs. 47, 48.
113. D as Matthãusevang, p. 151.
114. Cf. abaixo, § 47ss.
*. O autor não está negando que Jesu s pronunciou essas palavras, apenas que M ateus as registrou
de maneira interpretativa, levando em consideração a ressurreição e exaltação de Jesus e a orga­
nização da igreja em sua época. (N. do T.)
115. O texto aqui não foi estabelecido.
116. Veja a exposição sumária de Rengstorf concernente ao conceito judaico posterior de justiça,
“ shaliach” , TWB I, p. 414ss.
117. Cf. Rengstorf, op. cit., p. 427.
118. M esm o que haja um a diferença considerável entre as elaborações e, consequentemente, os
pensamentos embutidos na parábola das minas (L c 19), e na dos talentos (Mt 25); cf. p. ex.,
Greijdanus, Lucas II, p. 900.
119. Cf. Grundmann, TWB II, p. 52, o artigo sobre “ dechomai” .
120. N a sua obra muito importante, Auslegungvon Matth. 28.16-20, 1945, p. 21, Karl Barth pensa,
erradamente, que o pronunciamento feito em M c 16 sobre os sinais acompanhantes é um argu­
mento contra a canonicidade da passagem . Independentemente de a questão sobre se o realizar
esses m ilagres é uma “ declaração obrigatória” (segundo Barth), a atividade dos apóstolos no
livro de Atos prova que o final de M arcos está totalmente de acordo com a situação após a
ressurreição.
121. Cf. acima, p. 235
122. Cf. também o que J. C. Hoekendijk escreve sobre “ o contexto bíblico da m issão cristã” em Kerk
en Volk in de Duitse Zendingswetenschap, 1948, p. 223ss.
123. Cf. acima, § 37.
124. K . Barth está certo ao enfatizar isso, op. cit., p. 21, “Eles, e somente eles, podem ensinar na
igreja. N ão há qualquer outro objeto de ensino ( terein) do que aquele com o qual Jesus os comis-
N ota s 415

sionou. M as, do que tem sido comissionado, a igreja deve ensinar nada menos que tudo, o total
alcance dessa ordem ministerial. E ssa é a base do N ovo Testamento do princípio escriturístico
com o qual precisam os dar as costas à Igreja Romana. Todo ensino na igreja só pode conter a
repetição do ensino apostólico” .
125. A partir desse elemento na Grande Com issão deve se refletir sobre a “m issão holistica” ( com-
prehensive approach; Hoekendijk, op. cit., p. 277ss.). Convém vigiar contra o ensino do “ evan­
gelho social” e contra a transgressão dos limites dados ao ministério da igreja, mas, por outro
lado, deve-se reconhecer o significado abrangente do evangelho do reino a ser praticado desde o
início do trabalho missionário.
126. E ssa restrição à criatura humana é apoiada por Cl 1.23; cf. também Bauer, Würterbuch, 715, e
Foerster, TWB III, p. 1027, o artigo sobre “ ktizo” .
127. Cf. também o m asculino autous no final do v. 19 e no v. 20 pelo qual são indicados, não as
nações, m as os crentes comuns.
128. Cf., sobre essa teoria, p. ex., J. C. Hoekendijk, Kerk en Volk in de Duitse Zendingswetenschap,
1948, págs. 58ss, 108ss.
129. A ssim K. Barth, op. cit., p. 15.
130. A. von Ham ack, Die Mission undAusbreitung des Christentums, P , 1915, págs. 35-37,44. Para
uma descrição detalhada da literatura m ais antiga a respeito desse tema, cf. M. Meinertz, Jesus
und die Heidenmission2, 1925.
131. Die Mystik des Aposteis Paulus, 1930, págs. 176-178.
132. A ssim Bengt Sundkler, Jésus et les paiens, em Revue d'Histoire et de Philosophie religieuses,
1936, págs. 462-499, e, em conexão com este, N. A. Dahl, D as Volk Gottes, 1941, p. 145, 149s;
W. G. Kümmel, Verheissung undErfiillung, 1946, págs. 49, 50.
133. Op.cit., p. 470.
134. Strack-Billerbeck, op. cit., 1, p .181.
135. Veja m ais sobre isso em H.H. Rowley, The missionary method ofthe Old Testament, 1944; e
especialmente J. Blauw, Goden en mensen, 1950, p. 19ss.
136. Rowley, op. cit., p. 64.
137. Veja, também, R. Liechtenhan, Die urchristliche Mission, 1946, p. 31ss.
138. Cf., de minha autoria, Matth. II, págs. 109, 110
139. Para a exegese dessas parábolas, veja acima § 25.
140. Cf., também, Schniewind, Matth., p. 214.
141. Repetido por Kümmel, op. cit., p. 49s.
142. A ssim Sundkler, op. cit., p. 481ss. Em profecias como Is 2.2-4 já está clara a ideia centripetal
de que, de Jerusalém , sairá a L ei e a Palavra do Senhor para todos os povos da terra, e, com
razão, foi aplicada à pregação neotestamentária universal do evangelho; cf. G. Ch. Aalders,
Iets over exegese vanprofetische voorzeggingen, em Geref. Theol. Tijdschrift, 1926, p. 5; e P.
A. Verhoef, Die vraagstuk van die onvervulde voorsegginge in verband met Je sa ja 1-39, 1950,
págs. 275, 332.
143. Sobre os vários motivos, veja H. Schlier, Die Entscheidung für die Heidenmission in der Ur-
christenheit, em Evangelische Missions Zeitschrift, 1942, p. 166ss.
144. A objeção de que esses pronunciamentos não concordam com o prazo da sua volta estabelecido
por Jesus será estudada no último capítulo deste livro.
145. Cf., p. ex., Liechtenhan, op. cit. p. 42 (m as também p. 48ss); e W. Flemington, The New Testa­
ment doctrine ofbaptism, 1948, p. 105ss.
146. Veja adiante.
147. Além das pesquisas anteriores (como J. Leipoldt, Die urchristliche Taufe im Lichte der Reli-
gionsgeschichte, 1928, e Strack-Billerbeck, op. cit., I, p. 102), veja J. Jerem ias, Hat die Urkirche
die Kindertaufe geübt? 2, 1949, e a literatura ali mencionada.
148. O. Cullmann, Die Tauflehre dês Neuen Testaments, 1948, p. 18ss.
149. Op. cit., p. 14, 15.
416 A v in d a d o R e in o

150. Sobre essa questão, veja também Oepke, TWB I, p 536ss, baptizo. Embora Oepke não tenha
podido tratar ainda da opinião de Cullmann, ele já rejeita uma interpretação semelhante (a de
Reitzenstein) sobre M c 10.38; L c 12.50.
151. Op. cit., p. 536.
152. Cf., p. ex., Oepke, op. cit., p. 537.
153. J. Jerem ias, Hat die Urkirche die Kindertaafe geiibt? 2, 1949, págs. 20, 21.
154. Cf., acima, § 28.

Capítulo IX

1. A ssim H. J. Holtzmann, Lehrbuch der neutest. Theologie I, 1911, p. 378.


2. Em seu livro Messe undHerrenmahl, 1926.
3. Op. cit., p. 249ss; cf., também, K. L. Schmidt, Abendmahl im N.T., R.G .G . I2, 1927, págs. 6-16;
E. Kãsemann, D as Abendmahl imN.T. em Abendmahlsgemeinschaff! 1937, p. 60ss.
4. E. Klostermann , D as Markusevangelium?, 1936, págs. 146, 147. Em termos gerais, ele concorda
com Bultmann, Gesch. der synopt. Trad.1, apesar de este ser m ais cético ainda quanto a possibi­
lidade de se descobrir nesse ponto a verdadeira história de Jesus.
5. D. Plooy, Novum Testamentum regnum aeternum, 1932, p. 11.
6. Cf., quanto a essa problemática, também E. Schweizer, D as Abendmahl 'eine Vergegenwdrtigung des
Todes Jesu oder ein eschatologisches Freudenmahl? Theol. Zeirschrift, 2 Jhrg., 1946, p. 81 ss.
7. Em seu livro Reich Gottes undMenschensohn, 1934, págs. 223-281.
8. D as Messianitãts- undLeidensgeheimnis2, 1929, págs. 55-57; veja, ainda, seu livro Geschichte
der Leben-Jesu-Forschung1, 1933, p. 421; e Die Mystik des Aposteis Paulus, 1930, p. 108, p.
235ss.
9. Die Mystik des Aposteis Paulus, págs. 264-284.
10. Cf., também, de minha autoria, Zelfopenbaring em Zelfverberging, 1946, p. 10.
11. Op. cit., págs. 244, 245.
12. Op. cit., p. 227ss.
13. Op. cit., p. 235.
14. Op. cit., págs. 244, 248.
15. Op. cit., p. 245ss.
16. Op. cit., p. 255ss.
17. Op. cit., p. 249ss.
18. Veja, p. ex., E. Gaugler, D as Abendmahl im N.T., 1943, p. 18ss; G. Sevenster, De Christologie
van hetN.T., 1946, p. 123ss; E. Schweizer, D as Abendmahl, loc. cit.
19. U m a elaborada defesa é feita, p. ex., por J. Jerem ias, Die Abendmahlsworte Jesu, 1946; cf.,
também, Behm, TWB III, p. 726ss, o artigo sobre “klaoo” .
20. Veja, esp., G. Dalm an , Jesus Jeschua, 1929, págs. 80-166; Strack-Billerbeck, op. cit., IV, l,p á g s.
41-76; Jerem ias, loc. cit.
21. M arkus Barth, D as Abendmahl, 1945, págs. 43, 44.
22. A ssim Plooy, Het heilig Avondmaal in het N.T., em: Kerk en Eredienst, 1947, p. 5ss.
23. M arkus Barth. op. cit., págs. 55, 57, 43ss.
24. Plooy, loc. cit.
25. O. Cullmann, Urchristentum und Gottesdienst, 1944, págs. 14, 15.
26. A ssim , p. ex., Gaugler e E. Schweizer. Veja também L . D. Poot, Het oud-Christelijk Avondmaal,
1936, e M. H. Bolkestein, Het heilig Avondmaal, 1947.
27. Todos os unciais (com exceção de D) contêm a passagem longa. Veja A. M erx, Die vier Ka-
nonischen Evangelien II, 2, 1905, p. 432ss; também J. Jerem ias, Die Abendmahlsworte Jesu2,
1949, p. 67ss.
N ota s 417

28. Op. cit., p. 70; cf., também, E. Gaugler, L a Sainte Cène (G. Deluz, J. Ph. Ramseyer, E. Gaugler),
1945, p. 56ss.
29. Veja um resumo dos prós e contras em Jerem ias, op. cit., págs. 75, 79, 80. N a 2a ed. do seu
livro; esse autor aderiu aos defensores da passagem m ais longa. U m a am pla discussão e defesa
da autenticidade dos vs. 19a e 20, também por S. Greydanus, op. cit., págs. 1045-1050, base­
ando-se, esp., em P. Benoit, Le récit de la cène dans Lc XXII, 15-20, Revue Biblique, 1939, p.
357-393. Para a autenticidade da passagem , veja, também, E. Schweizer, D as Abendmahl, em
Theol. Zeitschr., 1946, p. 81ss.; E. Gaugler, Das Abendmahl im N.T., 1943, p. 20; G. Sevenster,
Kerk en Eredienst, 1946.
*. O autor não quer dizer, com isso, que M arcos e Lucas desprezam a seqüência histórica dos
acontecimentos ou que são inexatos historicamente, m as apenas que Lucas, conforme escreveu
na introdução do Evangelho, segue m ais de perto essa seqüência. (N. do T.)
30. Cf. Strack-Billerbeck, op. cit, IV, 1, p. 62 sub. c.
31. Schniewind, Mark, p. 173.
32. E ssa é a verdade da ligação entre “ cultura” e “ sacramento” .
33. Cf. H b 6 .4 ss.
34. Cf., também ,Kümmel, Verheissung undErfüllung, 1945, págs. 16, 17.
35. Cf. Greijdanus, op. cit. II, p. 1044; Klostermann, D as Lukasev., p. 288; Dalman, Jesus Jeschua,
1929, págs. 141, 142, 144.
36. Dalman, op. cit., p. 128; Jerem ias, op. cit., p. 103.
37. Cf., também, de minha autoria, Matth. II, 1948, p. 188; Zahn, D as Ev. des Matth.4 , 1922, p.
695.
38. Como Plooy sugere, loc. cit., Kerk en Eredienst, 1947, p. 4, 6ss.
39. Veja acima, págs.76ss. na nossa discussão sobre a opinião de Cullmann.
40. Cullmann, Urchristentum und Gottesdienst, p. 14ss, afirma que as primeiras ceias eucarísticas
na igreja cristã se referiam à última ceia, mas que, diante da luz ofuscante da ressurreição, a lem­
brança do sofrimento vicário (o motif da morte propiciatória) retrocedeu e que essas refeições se
ligaram diretamente às refeições com Cristo entre Páscoa e Ascensão. Posteriormente, Paulo teria
se sentido obrigado a enfatizar novamente a lembrança do sofrimento. Isso é, na nossa opinião,
um a construção hipotética.
41. A pesar de M. Barth (op. cit., p. 47), que se atreve a denominar como “ simplesmente absurda”
essa continuação ou repetição da “prefiguração” da última ceia.
42. Veja, também, Behm, TWB III, p. 734, o artigo sobre “klaoo” .
43. Cf., também, de minha autoria, Woord en Sacrament na coleção Het Avondmaal, 1949, págs. 32,
33.
44. Veja o início deste capitulo.
45. Jerem ias, Die Abendmahlsworte Jesu2, 1949, págs. 7-9, menciona, bem contado, 79 autores (a
partir de Renan) que apoiam essa opinião. Os argumentos mencionados acim a são, em grande
parte, de Lietzmann, op. cit., p. 211 ss.
46. Op. cit., p. 18ss.
47. Veja, p. ex., Behm, op. cit., p. 733.
48. N egado enfaticamente por Jerem ias, op. cit., p. 23ss.
49. G. Dalman , Jesus Jeschua, 1929, págs. 80-98.
50. Strack-Billerbeck, op. cit., II, págs. 815-834.
51. Th. Zahn, Einleitung in das N.T. II3, 1924, págs. 518-530.
52. Veja, a respeito dessas opiniões e sua crítica, Jerem ias, op. cit., págs. 14, 15.
53. Cf. Strack-Billerbeck, loc. cit:, J. Jerem ias, Die Abendmahlsworte Jesu2, 1949, págs. 48,49.
54. A ssim Behm, TWB III, p. 735, o artigo sobre “klaoo” , recorrendo a Kattenbusch e R. Seeberg.
Cf., também, Schniewind, Markus, p. 173.
55. Tradução combatida por outros, como Jerem ias, op. cit., p. 102ss.
56. Como também o próprio Dalman, op. cit., págs. 130, 131.
418 A v in d a d o R e in o

57. Cf. M c 10.45; G 1 1.14; lT m 2.6; Tt 2.14. Veja, também, Büchsel, TWB II, p. 168ss, o artigo sobre
“ didoomi” ; Schlatter sobre Mt 20.28, op. cit., p. 602..
58. Op. cit., p. 105. Veja, também, V. Taylor, Jesus and his sacrifice, 1948, págs. 121, 261.
59. A ssim M. Barth, op. cit., p. lOss; Jerem ias, op. cit., p. 104.
60. Jesu s Jeschua , págs. 113, 115. Greydanus, Lukas II, p. 1056, dá uma explicação tipicamente
dogmática. Ele afirma que Jesu s escolheu o pão, e não a carne, pois, nesse caso, sempre seria
necessário o derramamento de sangue ao comer da Ceia do Senhor, e Jesus, exatamente pelo seu
autossacrifício na morte, acabou com todo esse derramamento de sangue para reconciliação dos
pecados. Contra isso, pode-se argumentar que nem todo derramamento de sangue tem o caráter
desse tipo, expiatório, e, por causa disso, a celebração memorial da morte de Jesus com carne não
teria prejudicado o significado da morte de Jesus. Porém, com isso, estamos na área de especulação
dogm ática e não da exegese!
61. Cf. Jerem ias, op. cit., p. 80ss
62. Cf. E. Gaugler, op. cit., p. 38.
63. Veja, também, Taylor, op. cit., p. 139.
64. A ssim M. Barth, op. cit., p. 13.
65. G. van der Leeuw, Sacramentstheologie, 1949, p. 52.
66. Op. cit., p. 54; cf., também, já p. 36.
67. Op. cit. p. 52. Ele aceita totalmente a opinião antiga de Lietzmann, sem dedicar uma palavra
sequer à esm agadora m assa de material apresentado pelos melhores conhecedores do judaísm o
(como Dalman, Billerbeck, Jerem ias) contra essa reconstrução violenta do evangelho.
68. A ssim Greijdanus, op. cit. II, p. 1054; R. Otto também enfatiza fortemente esse “ quebrar do corpo” ,
op. cit. p. 250. Ele supõe, entretanto, que Jesu s pensava que sua morte seria por apedrejamento
e, então, o seu corpo seria literalmente “partido” , p. 256.
69. Veja, também, Grosheide, sobre ICo 11.24, op. cit. p. 390: (apalavra) “ é uma glo ssa antiga, para
facilitar a compreensão do texto” .
70. Greijdanus fala de “ o vinho sendo derramado” , op. cit., p. 1085, aparentemente para, também, res­
saltar uma analogia no “ derramar” entre vinho e sangue. M as no ritual pascal não se fala, em lugar
algum, sobre “ derramando” ou “transbordando” . E, com respeito à palavra ekcheo, quando é usada
para vinho, significa “ deixando derramar no chão” e, portanto, abrindo mão do conteúdo da bolsa ou
copo de vinho, (Mt 9.17, cf. L c 5.37; Ap 16.1ss..); cf. também Preuschen-Bauer, op. cit., p. 384.
71. Cf. Jerem ias, op. cit., 104, 105. Ali encontramos ainda m ais argumentos arqueológicos contra a
ideia de que a ação sacrificial tenha sido simbolizada.
72. “D er Tod Christi in seiner Heilsbedeutung" (“A morte de Cristo em seu significado soteriológi-
co” ), Behm, TW Bl,p. 173.
73. Sobre as chamadas “palavras eucarísticas” de Jo 6, cf., de minha autoria, o artigo “ Woord en
Sacram ent” , em Het Avondmaal, 1949, p. 39ss.
74. A ssim , G. C. van Niftrik, Luther en Calvijn over het Avondmaal, em Het Avondmaal, 1949, p. 59.
Van N . supõe poder recorrer às palavras institucionais para o seu ponto de vista, m as, em minha
opinião, isso é um total absurdo.
75. Cf., também, Behm, TWB I, p. 173, o artigo sobre “haim a” . “ O N ovo Testamento não está inte­
ressado no sangue de Cristo como tal, m as, no seu sangue derramado, em sua vida tom ada dele
por meio da violência; o ‘ sangue de Cristo’ , como a ‘cruz’, é apenas uma outra expressão, mais
gráfica, da morte de Cristo em seu significado soteriológico” . Ele também explica as palavras
institucionais dessa maneira.
76. Todas as coisas essenciais já são encontradas na exegese dos Evangelhos feita por Calvino. Para
autores mais recentes, veja, p. ex., Stauffer, Theol. des N.T., p. 281ss., que menciona sete bases
exegéticas contra “ forçar” o estin das palavras de Cristo na última ceia.
77. Cf. G. C. Berkouwer, De Strijd om het Rooms-Katholieke dogma, p. 244.
78. Cf., p. ex.,H. Gollwitzer, CoenaDomini, 1937, p. 8ss. O mesmo no volume Abendmahlsgemeinschajf!
1937, p. 102ss, citando as palavras de Lutero, “ Ista verba (hoc est corpus meum) me ceperunt".
N ota s 419

79. Cf. Gollwitzer, Abendmahlsgemeinschaftl págs. 110, 111; cf., também, J. L oos, Het heilig
Avondmaal bij de Lutherschen, Kerk en Eredienst, ls t Jg ., 1945, p. 77ss.
80. Gollwitzer, op. cit., págs. 111, 112.
81. Cf. também Calvino, “ Hoc est corpus meum. Qhod is verbis panem consecratum fuisse dicunt,
utfieret carnis Christi symbolum, non improbo, modo recte hoc nomen ac dextre sumatur ”, Com-
ment. Org. T h o lu ck ll, 1833, p. 312.
82. Cf., p. ex., Jerem ias, Die Gleichnisse Jesu, 1947, p. 113.
83. M. J. Lagrange, Evangile selon Saint Marc, 1947, p. 113.
84. Lagrange, op. cit.
85. J. Schmid, D as Evangelium nach Markus, 1938, p. 168.
86. Otto fala de uma “ drastische Voraussage” (profecia drástica), pois, em sua opinião, o partir do
pão retrata o partir do corpo de Cristo. A nosso ver, essa interpretação está errada, e m ais errada
ainda quanto ao sentido em que Otto toma o partir do pão, a saber, como a descrição profética do
apedrejamento do corpo de Cristo, cf. nota 68.
87. R. Otto, op. cit., págs. 255-258.
88. Cf. van der Leeuw, op. cit., p. 263. Parece que esse conceito também é usado por muitos cató­
licos romanos (especialmente pelos assim chamados teólogos do mistério) a fim de substituir a
terminologia crassa da transubstanciação.
89. Cf. Van der Leeuw, op. cit., págs. 249, 268 e passim.
*. O autor, sendo um seguidor do pensamento calvinista a respeito da ceia, não está sugerindo que
tomar os elementos em fé traz salvação ou perdão de pecados. É preciso levar em consideração
que ele está, aqui, refutando o conceito católico e o conceito luterano, os quais, de maneiras
diferentes, afirmam isso. (N. do T.)

Capítulo X

1. Veja a Introdução e também o relato histórico sobre a literatura m ais antiga em F. Busch, Zum
Verstãndnis der synoptischen Eschatologie, 1938, p. 3ss.
2. A ssim , ainda Bultmann, em 1949, D as Urchristentum im Rahmen der antiken Religionen, p.
96.
3. Cf., para a literatura m ais antiga, F. W. Grosheide, De verwachting der toekomst van Jezus Chris­
tus, 1907, p. 7s; para a literatura posterior, E. Masselink, Eschatologische motieven in de nieuwe
theologie, 1946, págs. 39ss, 105ss.
*. E preciso lembrar que Ridderbos está escrevendo na década de 1960. Embora o cenário acadêmico
tenha se modificado bastante desde então, as obras e os temas que ele analisa continuam a ter
influência nos m eios acadêm icos teológicos do Brasil. (N. do T.)
4. Cf. Klostermann sobre Mt 10.23, op. cit., p. 89, e sobre M c 9.1, op. cit., págs. 79, 85, e sobre Mc
13.30, op. cit., p. 138; Lohmeyer, sobre M c 9.1, op. cit., p. 172, que observa outro conceito na
passagem paralela de L c 9.27 (a saber, que basileia - sem as palavras “ com poder” - deve ser
entendida como a comunhão de muitos crentes com D eus); W. C. Allen, sobre Mt 10.23; 16.28,
op. cit., págs. 107, 183; Gould sobre M c 9.1 e 13.30, op. cit., págs. 159, 253; M anson sobre Mt
10.23, The mission and message o f Jesus, p. 474; Hauck sobre M c 9.1 e 13.30, op. cit., págs. 106,
160; Schlatter sobre Mt 10.23 e 16.28, op. cit., págs. 342, 524.
5. Segunda edição, 1913. Sobre a interpretação que Wrede faz e a tendência radical cética que concorda
com ele, veja, de minha autoria, Zelfopenbaring en Zelfverberging, 1946, págs. 10-17.
6. N os seus bem conhecidos comentários sobre os Evangelhos sinóticos.
7. Geschichte der synoptischen Tradition2, 1931, págs. 129, 132.
8. Cf. Busch, op. cit., p. 5ss.
9. Bultmann, D as Urchristentum, p. 96ss.
420 A v in d a d o R e in o

10. Cf. Geschichte der Leben-Jesu-Forschung, págs. 390-433. N os passo s de Schweitzer, F. Buri,
Die Bedeutung der neutestamentlichen Eschatologie fiir die neuere protestantische Theologie,
1934, págs. 21-29; ibid. D as Problem der ausgebliebenen Parusie, Vox Theologica, 1948, págs.
104-126; M. Wemer, Die Entstehung des Christilichen Dogm as, 1941, págs. 61-79.
11. Cf., também, J. Jerem ias, Eine neue Schau der Zukunftaussagen Jesu, Theol. Blãtter, 1941,
págs. 217-222, Die Ding (i. e., a interpretação de todas as declarações de Jesus sobre o futuro
dessa expectativa de que o reino era iminente [Naherwartung]) liegen seit. A. Schweitzer’s
Forschungen in die Luft (essas coisas, desde as pesquisas de Schweitzer, ainda estão em grande
parte sem fundamento).
12. Outros tentaram provar que não apenas na pregação de Jesus, m as também na percepção da
igreja antiga, a ressurreição pode ser equiparada à parousia ; cf. a resenha de H. W. Barstsch,
Parusieerwartung und Osterbotschaft, Evangel. Theologie, 1947/48, págs. 115-126, por W. G.
Küm m el, D as Urchristentum, Theol. Rundschau, 1950, p. 21ss.
13. C. H. Dodd, The Parables o f the Kingdom, 194, p. 98. E sse ínterim supostamente apareceu pela
primeira vez em At 1.8.
14. Op. cit., p. 101.
15. Op. cit., p. 103.
16. Op. cit., págs. 105-110.
17. J. Jerem ias, Eine neue Schau der Zukunftaussagen Jesu, Theol. Blãtter, 1941, págs. 217-222.
18. A ssim , p. ex., Hauck, Markus, p. 194, seguindo J. Weiss.
19. Cf. E. Lohmeyer, D as Evangelium des Markus, 1937, p. 356, cf. p. 312. M ais detalhadamente
no seu Galiláa und Jerusalem, 1936, p. lOss. Veja, também, N. B. Stonehouse, The Witness o f
Matthew andMarkto Christ, 1944, págs. 3 9 , 114ss. 170ss; também H. Holtrop , De verschijningen
onzes Heeren te Jeruzalem en in Galilea, 1947, p. 161 ss.
20. A ssim M ichaelis em seu livro Tàufer, Jesus, Urgemeinde, 1928.
21. Christus und die Zeit, págs. 75ss, 130s; cf. Le retour du Christ, p. 25ss.
22. Verheissung und Erfüllung, p. 14ss.
23. Op. cit., p. 35ss.
24. Op. cit., p. 33ss.
25. Op. cit., p. 11.
26. Op. cit., p. 20.
27. Op. cit., p. 24.
28. Op. cit., págs. 29-33.
29. Op. cit., p. 92.
30. Op. cit., p. 95. N esse sentido, também R. Liechtenhan, Die urchristliche Mission, 1946, p. 14.
31. Markus, p. 115. N esse sentido, aparentemente, também Rengstorf, Lukas, p. 108, embora menos
claro.
32. Matthãus, p. 127.
33. W. M ichaelis, Der Herr verzieht nicht die Verheissung, 1942, p. 5ss.
34. Op. cit., p. 18ss.
35. Op. cit., p. 30ss.
36. Op. cit., p. 45.
37. Op. cit., p. 46ss.
38. Auslegung von Matthãus 28, 16-20, 1945, p. 5ss; cf., também, p. 11.
39. Die Geschichte der synoptischen Tradition2, 1931.
40. Veja os argumentos em Mattheus I (de minha autoria), p. 201. Cf., também, Schlatter, op. cit., p.
337; “ Isso não somente se refere ao que se espera deles ao serem enviados pelas vilas da Galileia,
mas é uma ocasião para a descrição de toda a atividade apostólica até a parousia ” ; Zahn, op. cit.,
p. 402; Grosheide, op. cit., p. 125; cf., também, a refutação de Schiewind, Matth., p. 127.
41. O argumento m ais importante de Werner é que, se essa palestra, como um todo, não corresponde
à situação do envio dos discípulos, não se pode explicar como ela foi incluída no evangelho nessa
N ota s 421

situação, op. cit., p. 71 s. Mas isso pode ser bem entendido do ponto de vista histórico do evan­
gelista. N a época em que ele estava escrevendo seu Evangelho, a aflição dos apóstolos já tinha
começado. Seus leitores não se enganariam. Ao contrário, eles entenderiam melhor porque as
palavras sobre o envio e a profecia sobre a perseguição vindoura se juntaram, porque apostolado
e sofrimento andam juntos, cf., de minha autoria, Mattheus I, p. 202.
42. Veja sobre esse assunto m ais detalhadamente Zelfopenbaring en Zelfverberging (de minha
autoria), págs. 84, 85.
43. O apelo de Jerem ias à frase “ destruí esse santuário, e em três dias o reconstruirei” não pode
tomar plausível uma identificação da ressurreição com a parousia. E que, na tradição sinótica,
esse pronunciamento foi lembrado como “testemunho falso” pelos acusadores de Jesus, enquanto
a explicação dada em Jo 2.21 fala explicitamente sobre “ o santuário do seu corpo” . D e qualquer
modo, essas palavras são pouco transparentes em si m esm as e não podem servir como prova para
a tese de que “ em três dias” significava originalmente “ o dia do Filho do Homem” . A explicação
de M c 14.28 e 16.7 porLohm eyer, Hauck e outros também não contribui com nada em favor dessa
opinião. N ão há nenhum motivo para não se entender M c 14.28 (segundo a interpretação corrente)
como uma indicação do tempo depois da ressurreição. Talvez não fosse entendido pelos discípulos,
m as está muito claro em si. N ão pode ser deduzido que as palavras “indo para a G alileia” e o “ ver”
dos discípulos apontariam para a parousia. Muito pelo contrário, esse versículo mostra que, para
Jesus, ressurreição e parousia não coincidiam, mas que ele, depois da sua ressurreição e antes da
sua parousia, precisava dar aos seus discípulos tarefas importantes. Cf., também, Kümmel, op. cit.,
p. 43s.; N. B. Stonehouse, The Witness o f Matthew and Mark to Christ, 1944, p. 114ss. e 170ss.;
H. Holtrop, De verschijningen onzes Heeren te Jeruzalem en in Galilea, 1947, p. 161ss.
44. R. Bultmann, Die Frage nach der Echtheit von Mt 16, 17-19, em Theol. Blãtter, 1941, p. 279.
45. Cf. acima, § 22.
46. Cf. acima, § 6.
47. Cf., também, M. J. Lagrange, Evangile selon Saint Marc 6, 1942, p. 234.
48. Veja, também, de minha autoria, Zelfopenbaring en Zelfverberging, 1946, págs. 42, 86.
49. Cf., também, Lagrange, op. cit., p. 244: “ Parece, então, que Jesu s se contentou em fazer uma
predição geral... sem explicar-lhes os motivos da paixão, etc. Somente depois isso seria explicado
a eles” .
50. Hina. Greijdanus escreve: “Podem os tomar hina num sentido consecutivo (de sorte que); mas
também simplesmente num sentido final (para que) e, então, traduzi-lo com a palavra que. Porque
aqui, decerto, foi indicada um a decisão e intenção divina. Eles ainda não podiam suportar a plena
verdade... Isso viria depois” , Lukas I, p. 439.
51. Cf. Greijdanus: “ O Senhor mostrou sua majestade... que também causou uma grande impressão
nos seus discípulos e os destituiu da coragem de perguntarem-lhe o significado dessa declaração” ,
op. cit.
52. Cf. M ichaelis, também, sobre o caráter provisório, antes da ressurreição, das declarações de
Cristo sobre o futuro, Der Herr verzieht nicht die Verheissung, 1942, p. 29.
53. Christus und die Zeit, p.71, cf., também, págs. 126ss.; Leretourdu Christ, págs. 25ss; cf., também,
o seu artigo: D as wahre durch die ausgebliebene Parusie gestellte neutestamentliche Problem
(contra Buri), em Theologische Zeitschrift, 1947, p. 177ss; Küm m el também, op. cit., p.95
54. Cf. Schniewind, Matth., p. 271; Barth, Auslegung von Matthãus 28, 16-20, p. 13; O. Michel,
Menschensohn und Võlkerwelt, em: Evang. Missions Zeitschrift, 1941, p. 257ss.
55. Os defensores da “ escatologia consistente” explicam esse relato da seguinte maneira: quando,
em conflito com o dogma cristão original e básico sobre o significado escatológico da morte
e ressurreição de Jesus, os acontecimentos para a entrada da nova época não aconteceram, o
Nah-erwartung original da igreja cristã postulou que, na morte de Jesus, sinais semelhantes
ocorreram, nos quais a aproximação do fim foi anunciada claramente; cf. Wemer, op. cit., p. 90;
também Buri, Dei Bedeutung der neutest. Theologie, p. 26, que chama esses sinais “die einzigen
Ueberbleibsel der erwarteten kosmischen Endkatastrophe! ” (“ os únicos resíduos da esperada
422 A v in d a d o R e in o

catástrofe cósm ica final”). O que é fatal para essa exegese é o fato de que,em nenhum lugar nos
Evangelhos, há algum a indicação de que, com a morte de Jesus, há uma expectativa do início da
catástrofe cósm ica final.
56. Cf. acima, § 43.
57. Cf., p. ex.,H. A. Guy, The New Testament Doctrine o f the “Last Things, ” 1948, p. 59, com um
apelo a T. W. Manson.
58. Cf. Dodd, The Parables o f the Kingdom, págs. 83, 84.
59. Meta paratçrçsoos.
60. Cf., p. ex., Greijdanus, Lukas, II, p. 830.
61. Cf., p a ra paratçrein, também L c 6.7; 14.1; 20.20; etc.
62. É por isso que, na minha opinião, a tradução da Sociedade B íblica da Holanda: “ Het koninkrijk
Gods komt nietzóó, dat het te berekenen is ” (“ O reino de D eus não vem de tal maneira que possa
ser calculado” ) (como também Kümmel, op. cit., p. 17, e muitos outros) não está correta.
63. Greijdanus, op. cit., II, p. 829.
64. Em adição aos comentários, veja, p. ex.,W. G. Kümmel, D ie Eschatologie der Evangelien, 1936,
p. 13, e Verheissung undErfiillung, p. 19.
65. A ssim , p. ex.,Bultmann, Jesus, p. 39, “ mit einem Schlage” (de repente). Cf. Kümmel, Die E s­
chatologie der Evangelien, 1936, p. 11, e Verheissung und Erfiillung, p. 19.
66. A ssim também Strack-Billerbeck, op. cit., I, p. 954 (sobre Mt 24:27, “ Der Vergleichungspunkt ist
hier nicht die Plõtzlichkeit derAnkunft des Messias, sondern die bei seinem Kommen jedermann
unwiderstehlich sich aufdràngende Sichtbarkeit seiner richterlichen Machtfiille.” (“ O ponto de
comparação nesse caso não é o caráter repentino da vinda do M essias, m as a visibilidade do caráter
completo do seu poder judicial, irresistivelmente se apressando sobre todos” ). Ele acrescenta - e
isso também é importante para o propósito de L c 17.20-21 - “Diese Vorstellung ist in der altjüdis-
chen Literatur selten. Meist musz der Messias die Israelieten erst miihsam überreden, dasz sie ihn
ais ihren Kõnig undErlõser anerkennen. Nach einer andren Tradition soll es zu den Obliegenheiten
des Elias gehõren, den bis dahin unbekannten Messias seinem Volke bekanntzugeben.” (“ E ssa
visão é rara na antiga literatura judaica. Em geral, o M essias deve persuadir os israelitas a que o
reconheçam como o seu rei e redentor. De acordo com outra tradição, um a das responsabilidades
de Elias será tomar conhecido ao povo o M essias anteriormente desconhecido” ).
67. N essa tradução e exegese, entos humoon é enfático (como também é na interpretação que rejeita­
m os). É verdade que outros rejeitam essa tradução, pois pensam que entos significa “ dentro” . Eles
entendem o reino como algo interior, espiritual, que está presente dentro dos corações, cf., p. ex.,
R Feine, Theologie des N.T.,'1936, p. 79; e Dodd, op. cit., págs. 83, 84. E ssa também é atradução
de Lutero. Tirando o fato de que essa tradução nos distancia da situação escatológica (cf. acima),
ela deve ser considerada muito improvável pelo fato que Jesu s aqui fala aos fariseus; veja, além
disso, Greijdanus, op. cit. Entos não pode ser relacionado a um estado interior da mente, m as é
usado com o sentido de “ entre vocês, em seu meio” . O uso de entos (que raramente ocorre no N ovo
Testamento), ao invés de em, dá ênfase e tem um a função intensificadora em referência ao que é
entendido aqui: em seu meio\ cf., também , A. Sledd em The Expository Times, 1939, p. 233ss.
68. N ão foi estabelecido se essas palavras em M ateus são originais.
69. Cf., p. ex., Grundmann, TWB, II, p. 259.
70. A s dissensões entre am igos e as perturbações entre os homens em geral também ocorrem repe­
tidamente nos apocalipses judaicos, como sinais do fim; cf. Strack-Billerbeck, op. cit., IV, 2, p.
978ss.
71. Para esse sermão e para a história da crítica dos pronunciamentos proféticos e escatológicos de
Jesus, veja a monografia de F. Busch, Zum Verstãndnis der synoptischen Eschatologie; Markus
13 neu untersucht, 1938.
72. Cf. Greijdanus, Lukas, II, págs. 982, 983; cf., também, Kümmel, Verheissung, p. 39ss.
73. Cf. Hauck, op. cit., p. 154, “ sunteleisthaipanta, ist dabei fa st terminus technicus, ” (“ ... etc. é
praticamente o terminus technicus aqui” ).
N ota s 423

74. Cf. Strack-Billerbeck, op. cit., I, p. 949.


75. Org. Meyer, Ursprung undAnfange des Christentums, I, p. 129.
76. Markusev., p. 131.
77. A ssim , p. ex., Bultmann, Gesch. d. syn. Trad.,2, p. 129, e muitos outros. Alguns pensam sobre
uma fonte judaica apocalíptica; outros, no entanto, veem o sermão em M c 13 como um a compi­
lação de ditos ou como um grupo de ditos vindo de diferentes origens; assim , p. ex., Kümmel,
op. cit., p. 58, e Lohmeyer, op. cit., p. 270ss. Para literatura m ais antiga, cf., p. ex., R. H. Charles,
A Criticai History o f the Doctrine o f a Future Life,2 1913, págs. 278, 284
78. Cf., p. ex., Klostermann, op. cit.
79. Também, p. ex., em Kümmel, op. cit., p. 61; ele, porém, possui uma visão m ais conservadora
do que Klostermann e Bultmann.
80. Cf., também , Grosheide sobre Mateus, op. cit., p. 288, e Schniewind, op. cit., p. 235
81. Em outras ocasiões, anaginooskein é usado para a leitura do Antigo Testamento sem nenhuma
menção de uma passagem específica das Escrituras; cf. M c 2.25.
82. A ssim , p. ex., Schniewind explica M c 13.14, op. cit., p. 163; Lagrange, op. cit., p. 341; Van
Leeuwen, op. cit., p. 237.
83. Cf. Schniewind, Markus, p. 158; Kümmel, op. cit., 59.
84. Ursprung und Anfange, I, p. 125; cf. a literatura citada por Kümmel, op. cit., p. 60.
85. A ssim , também, Kümmel, op. cit., págs. 61, 62; cf. os detalhes em R. H.Charles, op. cit., p.
379.
86. Sobre as parábolas que tratam de vigilância, veja abaixo, § 49.
87. Cf., sobre isso, p. ex., W. O. E. Oesterley, The Doctrine oftheLast Things, Jewish and Christian,
1903, p. 169ss; R. H. Charles, op. cit., p. 307ss.
88. Cf., também, Lohmeyer, op. cit., p. 271; e Schniewind, Markus, p. 159.
89. Cf. Strack-Billerbeck, op. cit., I, p. 950.
90. Cf., sobre isso, de minha autoria, Matth., II, p. 149ss.
91. Huck-Lietzmann, Synopse der drei ersten Evangelien,9 1936, veja Ez 7.16.
92. Lohmeyer acha que essa ideia deriva de Dn 9.24, op. cit., p. 277; mas essa ligação parece ser
fraca quando a passagem é m ais bem examinada.
93. A s passagens citadas por Strack-Billerbeck, encontradas na escatologia judaica, dificilmente
podem ser o pano de fundo do encurtamento mencionado no apocalipse sinótico, op. cit., I, p.
953.
94. Para uma prova disso, cf. a discussão elaborada em F. Busch, Zum Verstãndis der synoptischen
Eschatologie, 1938, págs. 63-120. Ele chega à conclusão de que M c 13 está diretamente relacionado
à tradição do Antigo Testamento em todas as suas partes, em relação a ambos o modo de expressão
e o assunto tratado. Mc 13 não é, portanto, um “ corpo estranho” na escatologia sinótica, m as sim
a sua chave. E ssa relação - diz Busch - é acompanhada por um a rejeição explícita do judaísm o.
O caminho entre o Antigo Testamento e o Novo, também em relação às coisas escatológicas, não
segue uma linha reta através do judaísm o, m as há, em vez disso, uma separação entre o Antigo
Testamento e a literatura judaica e Jesus segue o Antigo Testamento, op. cit., p. 117.
95. Cf. Kümmel, op. cit., págs. 61, 62.
96. E. Schürer, Gesch. d. jiidischen Volkes, 1 ,3 4 1901, págs. 660ss; 685; II,4 1907, p. 604.
97. Greijdanus nos lembra de “todo o tipo de fenômenos estranhos vistos nos céus antes da destruição
de Jerusalém, como carruagens de guerra e falanges arm adas” , de acordo com Josefo, Bell. Jud.,
VI, 5, 3, op. cit., II, p. 987; cf. também Eusébio, Hist. Eccl., III, 8.
98. Cf. acima, § 38.
99. Klostermann, Markusev, p. 134; cf. também, p. ex., Kümmel, Verheissung und Erfüllung, p.
48; Hauck, Markus, p. 155.
100. Cf. sub. c. e § 51.
101. Cf., também, Greijdanus sobre e sse pro toutoonpantoon, op. cit., II, p- 987ss.
102. Op. cit., II, págs. 983, 984, 987.
424 A v in d a d o R e in o

103. A ssim M ichaelis, Der Herr verzieht nicht die Verheissung, p. 20, seguindo R Busch, Zum
Verstãndnis der synoptischen Eschatologie, 1938, p. 87ss.
104. M ichaelis, op. cit., p. 21.
105. Markus, p. 163. Schniewind é m ais reservado em seu comentário sobre Mateus. Ele diz que
M ateus se restringiu a apenas uma referência a Daniel, cujas palavras unicamente sugerem uma
profanação horrível do santo lugar. A diferença entre M ateus e M arcos é que M arcos fala sobre
o “ abominável da desolação” (to bdelugma tçs erçmooseoos) como uma palavra masculina (hes-
tçkota hopou ou dei). Supõe-se que isso indica uma pessoa, ou seja, o Anticristo. Mateus, por
outro lado, utiliza um gênero neutro (hestos). Schniewind também admite que o significado das
palavras em sua totalidade nos três Evangelhos é direcionado à Judeia. Porém, para Schniewind,
elas soam de tal modo que os detalhes sobre o cerco de Jerusalém não podem ser reconhecidos.
Portanto, isso também é entendido como uma conexão estreita entre essa agonia e a segunda vinda
de Cristo, Matth., págs. 235, 236.
106. Op. cit., p. 276; cf., também, Klostermann sobre M c 13.14, op. cit., p.135.
107. Der Evangelist Matthãus,2 1933, págs. 702-707.
108. Th. Zahn, D as Ev. d. Matth.,* 1922, págs. 666-670. A mesm a explicação é encontrada em G.
Wohlenberg, D as Ev. d. Markus,3 1930, págs. 333-336, que explica que a form a m asculina em
M arcos, hestçkota, indica que o “ abominável da desolação” não é meramente um ídolo, m as uma
profanação que procede de uma pessoa do sexo m asculino que, como um ídolo que se opõe a
Deus, exigirá que as pessoas o adorem. Cf. 2Tes 2.3ss; p. 334.
109. Das. Ev. d. Luk.,3-4 1920, págs. 651-655. Greijdanus explica a figura do futuro em Lucas no
mesmo sentido, op. cit., II, p. 996ss.
110. Evangile selon S. Matthieu,5 1941, págs. 462, 463, 466, 467; Evangile selon S. Marc.,6 1942,
págs. 340-343.
111. Evangile selon S. Luc.,5 1941, págs. 527, 528.
112. Lohmeyer percebe essa dificuldade. Ele diz que a frase “ quem está na Judeia” não é clara
(“unklar” ). Ele supõe que a sentença original era “ então fujam para as montanhas!” Em nossa
opinião, isso é um a mudança totalmente arbitrária. E mesmo se fosse essa a sentença, a ideia de
que, ficando nas montanhas, as pessoas estariam protegidas contra o Anticristo, continua sendo
estranha, o que também é a opinião de Lohmeyer, op. cit., p. 276.
113. Das. Ev. d. Luc., p. 652.
114. A ssim , p. ex., Torrey, cf. Lagrange, Marc., p. L IIss., 340. Klostermann, também, é da opinião
que “die Mc. zugrunde liegende altere Weissagung” (“ a profecia m ais antiga encontrada na base
de M arcos” ) se refere a isso, D as Marcusev., p. 135.
115. Lagrange reconhece a importância do argumento derivado de gar. Ele diz: “ C ’estprécisément
la difficulté de tout le discours ” (“ E ssa é exatamente a dificuldade de todo o sermão” ). Ele pensa,
entretanto, que, aqui, encontramos uma solda (“ soudure "), em vez de uma ligação orgânica (“ lien
organique”), que nos induziria a aceitar apenas um tema, Matthieu, p. 462. M as essa distinção
não pode, sem arbitrariedade, destituir o significado causativo da palavra gar da sua força nesse
contexto.
116. Cf., de minha autoria, Matth., II, p. 154.
117. Cf., p. ex., J. Ridderbos, Over de uitlegging der Heilige Schrift, em: Bijbels Elandboek, I,
1935, p. 4 0 lss. e a literatura citada ali. J. van Dodewaard, De gruwel der verwoesting (Mt 24.15
- M c . 13.14), Studia Catholica, 1944, p. 130, também recorre a isso. E, no mesmo espírito, cf.
F. W. Grosheide, Hermeneutiek, 1929, p. 205, sobre a exegese de M c 24. Ele também rejeita a
exegese combatida por nós, que relaciona um versículo ou uma expressão à queda de Jerusalém
e o outro à segunda vinda de Cristo: “ E sse procedimento parece não ser permitido porque destrói
a unidade da profecia em todos os sentidos. Porém, à semelhança do que acontece nas predições
do Antigo Testamento, teremos, às vezes, de explicar algum as das partes de uma profecia como
se referindo à destruição de Jerusalém, embora, na sua totalidade, ela se refira ao fim de todas
as coisas” , op. cit.
N o ta s 425

118. Cf. acima, § 43, sub. 3.


119. “ Genus hominum... aut specialiter Judaeorum ”, em Klostermann, D as Markusev., p. 138.
120. A ssim Theophylact, “toon pistoon” , Klostermann, op. cit.
121. Markus, p. 167. Supõe-se que o contexto em Mateus aponte ainda mais enfaticamente nessa di­
reção do que Marcos. Schniewind se refere a passagens como Mt 23.36; 10.23, e outras; Matthãus,
p.239.
122. A ssim , p. ex., A. Plummer, op. cit., p. 485 e Zahn, Das. Ev. d. Luc., p. 659. Greijdanus concorda
com eles, op. cit., II, p. 1003.
123. Op. cit., II, p. 1004. Plummer acredita que, aqui (em Lucas), a destruição do Templo é consi­
derada como um tipo do fim do mundo, op. cit., p. 485. Lagrange também é da opinião que tauta
panta em M c 13.30 pode ser aplicada unicamente à destruição do Templo e não ao fim de todas
as coisas, pois nisso (a destruição do Templo) se encontrava o motivo para esse sermão, v. 4, op.
cit., p. 348. Ele considera como um subterfúgio (“ echappatoire”) qualquer outra explicação das
palavras “ esta geração” que seja diferente de “ contemporâneos” . Zahn também considera “ todas
estas coisas” como sendo aplicável a todos os sinais e julgam entos, anunciando o fim que os
contemporâneos de Jesus presenciaram; D as Ev. d. Luc., p. 659, em que ele explica panta como,
“ die in vs. 31 erwãhnten Ereignisse in ihrer Gesamtheit” (“ os acontecimentos mencionados no
v. 31 como uma unidade só” ). M as ele não inclui tudo o que imediatamente precede a parousia e
limita sua exegese aos acontecimentos descritos até o v. 19, inclusive a destruição de Jerusalém.
A explicação de Wohlenberg também chega à m esm a conclusão no que se refere a M c 13.29-30;
op. cit., págs. 337, 338. A visão de Calvino é um pouco diferente. Ele admite que Cristo faz uso
de uma indicação geral (“todas estas coisas”), mas ele aparenta ser da opinião de que isso indica
“ coisas de todas as espécies” . Tudo o que será visto no desenvolver do tempo em relação aos
julgam entos e aflições já terá sido sofrido pela primeira geração. “ Sensus est igitur, Prophetiam
hanc non esse de malis longinquis, quae multis post saeculis visura sit posteritas, sed quae iam
impendent, et quidem una simul congerie, utpraesens aetas nulliuspartis expers futura sit. Itaque
Dominus omnes malorem species in unam aetatem congerens, minime ab iisdem posteros eximit,
sedtantum discípulos ad omnia constanterferendaparatos esse iubet"; org. Tholuck, II, 1833, p.
280. A opinião de Lagrange se encontra também em Jo se f Schmid, D as Evangelium nach Markus
(em D as Neue Testament, org. Alfred Wikenhauser e Otto Kusz, vol. 2), 1938, p. 159.
124. A ssim Cullmann, § 43, sub. 3.
125. A ssim Kümmel, § 43, sub. 3.
126. Cf., também, de minha autoria, Matth., II, págs. 158, 159.
127. Lexicograficamente, é facilmente provado que esse é o sentido comum da expressão “ esta
geração” . M esm o se ignorarmos as passagens nas quais Jesu s enfaticamente fala sobre “ esta
geração perversa” (Mt 12.45; L c 11.29), ou “ geração incrédula e perversa” (Mt 17.17; L c 9:41),
ou sobre “nesta geração adúltera e pecam inosa” (Mc 8.38), ou sobre “ Oh, geração incrédula”
(M c 9.19), está claro que, com esse termo “ geração” , Jesus sempre se refere a uma particular
disposição desfavorável do coração. M uitas vezes, o sentido temporal de genea retrai-se para o
plano de fundo ou é ignorado. Compare Mt 11.16 (“ M as a quem hei de comparar esta geração?” ),
12.41 = L c 11.32 (“Ninivitas se levantarão, no Juízo, com esta geração e a condenarão” ), M c 8.12
(“ Por que pede esta geração um sinal? Em verdade vos digo que a esta geração não se lhe dará
sinal algum”), L c 17.25 (“M as importa que primeiro ele padeça muitas coisas e seja rejeitado por
esta geração” ). E verdade que há outros lugares nos quais o significado temporal parece ter mais
importância (p. ex., Mt 23.36, “ Em verdade vos digo que todas estas coisas hão de vir sobre a
presente geração” ; ou, “ Sim, eu vos afirmo, contas serão pedidas a esta geração” , L c 11.51, cf. v.
50), mas nesse caso, também, o significado qualitativo permanece muito claro. Büchsel escreve:
“Dieses Geschlecht ist zunãchst zeitlich zu verstehen, es enthãlt aber immer eine verurteilende
Nebenbedeutung. ” (‘“ Esta geração’ é primariamente utilizada no sentido temporal, m as num
sentido secundário sempre implica uma conotação desfavorável” ), TWB, I, p. 661, o artigo sobre
“genea” . Ele poderia ter acrescentado que a conotação secundária, de vez em quando, suprime
426 A v in d a d o R e in o

o sentido original (cf. acima, p. ex., Mc 8.12!). Büchsel acrescenta corretamente, “ In der Rolle,
die genea in den Worten Jesu spielt, zeigt sich das Umfassende seiner Absieht—sie ist a u f das
Volksganze, nicht a u f Einzelne gerichtet—und seine Schãtzung der Gemeinschaft in der Sünde ”
(“ O papel da palavra genea entre as palavras de Jesus m ostra o caráter abrangente da sua intenção
— é dirigido às pessoas em sua totalidade, não a indivíduos — e sua avaliação da comunidade
em pecado” ), op. cit. O fato de que a utilização da palavra “geração” por Jesus é determinada
especialmente por esse significado desfavorável e não pelo seu sentido temporal surge muito
claramente da circunstância de que sua utilização é inegavelmente baseada no Antigo Testamento,
no qual “ geração” ou “esta geração” também ocorre em malam partem, cf. Sl. 12.8, 95.10; Dt.
32.5; (Mt 17.17); c f . ,também, Gesenius-Buhl, Hebr. und Aram. Handwõrterbuch über das A.T.,
o artigo sobre “ dor” .
128. Op. cit., p. 250. Plummer menciona sete diferentes interpretações e seus defensores: 1. A trans­
figuração no monte (a maioria dos Pais da igreja); 2. A ressurreição e ascensão (Calvino, Beza,
etc.); 3. O Pentecostes e os sinais que o seguiram (Godet); 4. A dissem inação do Cristianismo
(N õsgen); 5. O desenvolvimento interior do evangelho (Erasm o); 6. A destruição de Jerusalém
(Wetstein, Alford, etc.); 7. A segunda vinda do reino (Weiss, Holtzmann, etc.), op. cit., p. 249.
129. Op. cit., I,págs. 424,425. H. D. A. M ajor também considera essa explicação possível, TheMission
and Message o f Jesus, 1 9 4 6 ,p. 113; como também Lagrange sobre M c 9.1, op. cit., p. 227.
130. Lagrange, op. cit.
131. Cf. Wohlenberg sobre M c 9.1, op. cit., págs. 240, 241; e Grosheide sobre M t 9.27, “Jesu s fala
sobre a manifestação de poder que procederá dele, e que começou no Pentecostes” , op. cit., p. 207.
Também N. B. Stonehous, The Witnesses o f Matthew and Mark to Christ, 1944, p. 240.
132. Calvino é da opinião de que M c 9.1 (e paral.) deve ser compreendido no sentido da manifestação
da glória celestial de Cristo, que começou na sua ressurreição e foi, desde então, revelada em sua
totalidade na vinda do Espírito e na execução dos milagres; org. Thulock, II, 1833, p. 115.
133. A ssim M. J. Lagrange sobre M t 16.28, porque a vinda do Filho do Homem é mencionada aqui
en tçi basileiai autou. Ele escreve: “Le royaume du Fils de 1'homme, p ar opposition au royaume
duPère, c ’estprécisément 1'Eglise, comme le marque bien laparabole de Vivraie” (Mt 13.24) (“ O
reino do Filho do Homem, em contradição ao reino do Pai, é exatamente a igreja, como aparece
claramente na parábola do jo io ” ), S. Marc., p. 227; cf. S. Matthieu, p. 333. Lohmeyer acredita
que essa explicação é possível ao se tratar de L c 9.27, “ Lukas scheint die zeitliche Schwierigkeit
zufühlen; er lâszt die drei Worte ‘gekommen in Herrlichkeit'fort undgibt es damit frei, unter
der basileia tou theou auch an die Gottesgemeinschaft vieler Glàubiger zu denken” (“ Parece
que L ucas percebe a dificuldade temporal; ele omite as três palavras, ‘vir em glória’, e, portanto,
também possibilita uma interpretação de basileia tou theou como a comunhão de muitos fiéis
com D eus” ), Markus, p. 172. E finalmente, Grosheide diz que o termo basileia em M c 9.1 se
refere ao reino espiritual pregado por Jesus ao qual todos os fiéis pertencem, De Verwachting der
Toekmost van Jezus Christus, 1907, p. 97. É verdade que há dificuldades em Mt 16.28, m as essa
passagem menos transparente deve ser explicada em relação às passagens m ais claras, p. 98. Cf.
também o seu livro Matth., págs. 206, 207.
134. J. A. C. vanLeeuw en, op. cit., p. 154. A opinião de Zahn é digna de nota. Ele acredita que M tl 6.28
e L c 9.27 se referem à parousia. A respeito de M c 9.1, ele considera possível outra opinião. Ele
diz que o acréscimo de elçluthuian en dunamei é uma definição m ais avançada, num sentido
formal, da vinda do reino. Portanto, M arcos tem “eine, nicht leicht im voraus zu bestimmende
Phase in der allmãhlichen Entwicklung der herankommenden Gottesherrschaft an die Stelle
ihrer endgiltigen Verwirklichung gesetzf ’ (“M arcos substitui a realização final do governo divino
vindouro por uma fase em seu desenvolvimento gradual que não pode ser facilmente definido de
antemão” ). D. Ev. d. Luc., p. 381.
135. Acim a §36.
136. Cf. acima, §47. Zahn também chega a essa conceito. Em D. Evang. d. Matth. ele escreve (p.
675), “ Jesus hat also das eine undandere Mal (Mt 10.23; 16.28) das Wortvon seinem Kommen so
N ota s 427

gebraucht, dasz er die vorbereitenden Anfãnge des Endes (24,8.32 ss; Lc 21.28,31) nach Art der
prophetischen Rede mit dem Hauptpunkt der Endereignisse, seiner Parusie, zusammenfaszt. Daher
kõnnten die Jünger so fragen, wie 24.3 berichtet ist. Zu sagen dasz Jesus hierin sich geirtt und
falsch geweissagt habe, erscheint angesichts der ausführlicheren und daher die einzelnen Momente
des Zukunftbildes schãrfer sonderden Weissagungen Jesu ebenso tõricht, wie wenn iemand den
Tãufer einen falschen Propheten nennen wollte, weil das Himmelreich, dessen Nãhe er predigte,
nicht sofort so allseitig, wie er seinen Kommen vorstellte und schilderte, verwirklicht worden ist”
(“ Consequentemente, Jesus usa essa palavra sobre sua vinda [Mt 10.23, 16.28] de tal modo que,
de acordo com o caráter da profecia, ele resume os pontos principais dos acontecimentos finais,
i.e., sua parousia, com seus inícios preparatórios. Daí, a pergunta feita pelos discípulos em 24.3.
Alguns dizem que Jesus estava errado sobre isso e que ele enunciou uma profecia falsa. Todavia,
à luz das predições m ais elaboradas de Jesus, as quais distinguem fortemente certos momentos
individuais no quadro do futuro, dizer que ele errou é uma tolice comparável a chamar João Batista
de falso profeta porque o reino dos Céus, cuja proximidade ele proclamou, não foi imediatamente
e completamente realizada como ele tinha descrito” .) E suficientemente claro que, quanto ao mais,
não podemos identificar o discernimento profético de Jesus em relação ao futuro com as expectativas
dos discípulos e nem com a percepção do Batista, e Zahn também não tenta fazê-lo.
137. A opinião de Greijdanus (cf. Plummer) de que, no momento em que Jesus disse essas palavras
(“ alguns há, dos que aqui se encontram, que de maneira nenhuma passarão pela morte” ), a res­
surreição estava perto demais para que essas palavras fossem aplicadas a ela, é, em nossa opinião,
indefensável, especialmente se for mantido em mente que essas palavras não precisam pressupor
que a maioria do público teria morrido antes do cumprimento da profecia. E ssas palavras bem
que podem indicar que ver o Filho do Homem em sua glória real era o grande acontecimento na
vida daqueles que iriam presenciá-lo.
138. Cf., também, de minha autoria, Matth., II, págs. 2 2 ,2 3 ; e, também de minha autoria, Zelfopen­
baring en Zelfverberging, 1946, págs. 86, 87.
139. De Verwachting der toekomst, págs. 92, 93; cf. também o seu comentário, p. 127.
140. Op. cit., págs. 204, 205.
141. Op. cit, págs. 127, 128.
142. N. B. Stonehouse, The Witness o f Matthew and Mark to Christ, 1944, p. 240. Para apoiar sua
explicação, ele recorre ao fato de que falta qualquer alusão às nuvens no céu, à presença dos
anjos, etc. Um a opinião semelhante é encontrada em Calvino. De acordo com ele, Cristo, aqui,
promete aos seus apóstolos, que enfrentavam uma tremenda tarefa, que lhes m ostraria o seu reino
por meio do poder do seu Espírito, org. Tholuck, I, 1883, p. 246.
143. Cf. também a argumentação conclusiva de Grosheide, De Verwachting, p. 91ss.
144. Cf., p. ex., Greijdanus, Lukas, II, págs. 843, 849ss; Kümmel, op. cit., p. 33
145. Talvez isso também seja claramente dito no v. 7. Greijdanus traduz: “N ão irá D eus certamente
vingar os seus eleitos... apesar de que, em relação a eles, D eus espere um longo período?” (kai
makrothumei ep ‘autois), op. cit., II, p. 848ss; cf. também Rengstorf, “ auch wenn er über ihnen
langmütig bleibt?” (“ até m esm o quando ele se mantém paciente em relação a eles?” ); op. cit.,
p. 185 (em concordância com Schlatter). E ssa tradução, porém, não é certa, como R engstorf
também admite; cf. também Klostermann, op. cit., págs. 178, 179; e Plummer, op. cit., p. 414.
M as há nesse caso a questão sobre o fato de que D eus não age imediatamente, m as atrasa a sua
ação. E as palavras ep ’ autois não podem se referir a inimigos, m as devem significar os eleitos.
Então, porém, makrothumei não pode depender de ou mç. Se isso fosse verdadeiro, a resposta
à prim eira pergunta deveria ser “ sim ” e à segunda pergunta deveria ser “ não” . A s traduções
de Greijdanus e Rengstorf, então, parecem conter o sentido verdadeiro, cf. também Plummer,
op. cit. Portanto, essa passagem enfaticamente indica a espera divina. Porém, tendo em vista a
obscuridade da passagem , não devem os enfatizar esse ponto demasiadamente.
146. Cf. também Greijdanus, op. cit., II, p. 850. “ Ele se atrasa porque ainda há muitas coisas que
precisam acontecer. M as, em toda a sua obra, Deus age rapidamente.”
428 A v in d a d o R e in o

147. Cf. Plummer, “ ...independentemente de quanto tempo uma oração parece ser impedida...” e
Rengstorf, “ Darum mahnt Jesus auch besonders zur Geduld’’ (“ E por isso que Jesus exorta [seus
discípulos] a terem paciência”), op. cit., p. 186.
148. Dodd, é verdade, acha que essas parábolas, transmitidas pelos evangelistas, foram remodeladas e
aplicadas à situação depois da morte de Jesus, m as que, originalmente, elas se referiam à situação
durante a atividade de Jesus na terra, i.e., à crise que começou com o surgimento de Jesus e que
chegaria ao seu clím ax na sua Paixão. Ele compara os ditos sobre vigilância com a advertência de
Jesus no Getsêmani (“vigiai e orai para não cairdes em tentação” ), The Parables, págs. 154-174,
m as essa noção é baseada na suposição de que Jesus tinha a expectativa de que a parousia do
Filho do Homem seria simultânea com a sua morte e ressurreição; cf. acima, § 43
149. Cf., p. ex., Klostermann, op. cit., p. 199.
150. Cf., de minha autoria, Matth., II, p. 164.
151. M ichaelis, Der Herr verzieht nicht die Verheissung, p. 5.
152. Kümmel, op. cit., p. 29.
153. Jerem ias, Theol. Bl., 1941, p. 221.
154. “D as Bildvom D ieb... steht derjüdischen Ueberlieferungvòllig entgegen. Dort wirderwartet,
dasz man die Tage des Messias vorher errechnen kann” (“ A ilustração do ladrão... é totalmente
contrária á tradição judaica. N essa tradição, supunha-se que o dia do M essias poderia ser calculado
de antemão” ); Schniewind, Matth., p. 240.
155. Isso também é um argumento importante em favor da autenticidade dessas palavras, cf. Kümmel,
op. cit., págs. 22, 23. Cf., e.g., Klostermann, Markusev., págs. 138, 139, sobre as dificuldades de
antigos exegetas com essas palavras.
156. Cf. em Lohmeyer, Markus, p. 283.
157. N esse caso, também, a crítica radical nega a historicidade dessa ligação e, portanto, a origi­
nalidade do significado transmitido à parábola por essa ligação; cf., p. ex., Bultmann, Gesch. d.
syn. Trad.2, págs. 208, 360, “Sehr deutlich ist auch Lk. 19,11 eine von Lkfür die Parabel von den
anvertrauten Geldern konstruierte Einleitung, die Angabe einer Situation, aus der nach seiner
Meinung die Parabel verstanden werden soll, die er aber aus seinem Verstãndnis erschlossen hat, ”
p. 208 (“L c 9.11 é claramente uma introdução construída por Lucas para a parábola dos denários
e indica uma situação que, na sua opinião, explica a parábola. Porém, ele gerou essa situação
mediante o seu próprio entendimento.”). M as provas dessa afirmação não podem ser dadas. É certo
que Lucas pensa a partir de certa interpretação da parábola. M as como pode Bultmann, além de
suas próprias pressuposições arbitrárias, provar que essa interpretação não é aplicável à situação
histórica delineada por L ucas?
158. Cf. também Klostermann, que diz que nesse caso nós devemos somente nos importar com a
opinião do evangelista, op. cit., p. 203.
159. Cf., também, de minha autoria, Matth., II, p. 172.
* . E importante observar que Ridderbos, mesmo admitindo a participação ativa dos escritores
dos Evangelhos na elaboração dos m esm os, não vai ao ponto de admitir que, nesse processo,
os evangelistas criaram e introduziram material próprio, como fazem os críticos da forma e da
redação. (N. do T.)
160. H. Bavinck, Gereformeerde Dogmatiek, IV ,4 1930, p. 667.
161. Com o mesmo sentido P. A. Verhoef também escreve sobre o “ logo” profético do Antigo Tes­
tamento, “ Por outro lado, deve ser admitido que o grande futuro está, num sentido geral, muito
próximo. Visto de um ponto de vista subjetivo, a vinda do domínio completo divino tem sido
atrasada por m ais tempo do que o esperado... M as não é somente isso. A vinda do ‘D ia do Senhor’
é uma realidade contínua, dinâmica e imanente. Vista objetivamente, está presente e muito próxi­
ma! Está presente nos julgam entos temporais ou evidências da graça com a qual o Senhor Deus
visita a humanidade de cada época. M as também está próxim a no sentido de que todo julgamento
temporal ou evidência da divina salvação precede, como seu mensageiro, a manifestação completa
do grande ‘dia’ . Portanto, os profetas viam a vinda desse dia e por isso eles falavam a língua que
N otas 429

transcende infinitamente as teorias racionalistas de muitos dos acadêm icos da nossa época” . Die
vraagstuk van die onvervulde voorsegginge, 1950, págs. 312, 313.
162. Cf., sobre isso, também Verhoef, op. cit., págs. 31ss; 307ss.
In d ic e d e a ssu n to s

Aliança 26, 38, 39, 139, 142, 150-161, Eleição 152s, 158-160,194,262, 406
1 6 7 ,1 7 8 ,1 8 0 ,1 8 1 ,1 8 3 ,1 9 3 -1 9 5 , Encarnação 84, 89, 312, 317
217, 221, 238, 260-262, 264, 284, Escatologia 1 1 ,1 4 -2 0 ,2 3 ,3 1 ,5 0 ,5 1 ,53s,
288, 292, 294, 297, 298, 308-313, 56, 75, 80, 9 1 ,113s, 134,140,199,
3 1 8 ,3 3 7 ,3 8 8 ,4 0 5 ,4 0 7 ,4 2 0 202, 214-216, 243, 253, 278, 291,
Anticristo 94, 354-358, 360, 432, 433 293s, 321-324, 330, 332, 341s,
Antigo Testamento 22, 25s, 28s, 32, 34, 3 6 0 ,3 6 3 ,3 6 8 ,3 7 0 ,3 7 5 ,3 7 9
38, 40, 46-48, 55, 67, 70s, 79, 91, Escatologia histórico-final 15
1 2 8 ,1 3 6 ,1 3 9 ,148s, 151s, 154,167, Escatologia realizada 23, 50, 51, 293
1 6 9 ,1 7 7 ,179s, 182,1 9 0 ,2 0 1 ,2 0 6 , Escatologia supra-histórica 15,17
218, 222s, 228, 231-233, 238s, Escola da história das religiões 10,13
242s, 2 5 2 ,2 5 7 ,2 6 4 ,2 7 8 ,2 8 0 ,2 9 9 , Escola escatológica 10, 79, 91,257, 258
309, 334, 348-350, 356, 379, 382, Espírito Santo 42s, 47, 71, 81- 83, 95,
387s, 404s, 416, 431-434 157,19 7 ,1 9 8 ,2 1 0 ,2 7 5 ,281s, 285s,
Apocalipses judaicos 17, 22, 34, 53, 55 289,299, 326, 340, 366
Auto-ocultamento messiânico 134,136 Evangelho, o 9 ,1 2 -1 4 ,1 9 s,2 4 ,51,53,58,
61s, 70-72, 78, 80, 83, 92, 97, 99,
Batismo 43, 64, 80-83, 130, 133s, 137, 121, 129-131, 134, 136, 140, 143,
160, 164, 197, 218, 273, 281-286, 1 4 5 -1 5 4 ,1 5 7 -1 5 9 ,1 6 1 ,1 6 3 ,1 6 5 -
327 1 6 7 ,1 7 2 ,1 7 5 -1 7 8 ,1 8 6 ,1 9 3 ,195s,
Batismo de Jesus 8 2 ,137,282-284 198, 209, 214, 228, 240, 253, 256,
2 6 6 ,2 6 8 ,2 7 1 ,2 7 3 -2 7 5 ,2 7 8 ,280s,
Ceia do Senhor 139,177, 264, 285, 287- 284,288, 306, 313, 3 1 8 ,322s, 330,
318,327 337, 340, 341, 353, 354, 380, 381
e a refeição pascal 292, 303-311 Evangelho social 22, 39,121
interpretação católico-romana 256, Expiação 139,221,295,331
267, 315
interpretação luterana 314, 315 Filho do Homem 13, 22, 28, 31, 44-52,
Conflitos com os escribas 224 72, 79s, 85s, 92, 102s, HOs, 115-
Cristologia 20, 81, 83, 89,129 117, 120, 126-130, 132s, 135s,
Crítica da forma 19, 78, 132, 330s, 381, 138-143, 178, 188, 209, 227, 249,
387, 393 2 5 1 ,257s, 2 6 2 ,3 0 1 ,3 1 9 ,3 2 2 ,3 2 4 -
Cruz 65, 102, 133, 136, 139, 141, 143s, 3 2 7 ,3 2 9 -3 4 4 ,3 4 6 ,3 4 8 -3 5 1 ,354s,
195, 204, 210, 284, 293, 313, 319, 359-382
337, 340,427
Ín d ic e de a ssu n to s 431

Gentios 27, 69, 151, 155, 273, 279-281, Morte de Jesus 45, 50, 86, 133, 137s,
352s, 356, 359, 363,366 140-143, 177, 248, 266, 271s,
280s, 283s, 286, 288-291, 293s,
Importância universal do reino 53-55 301, 303, 305s, 308s, 311, 324,
Interpretação existencial 16 327s, 332s, 336s, 339, 358, 368,
Interpretação mitológica 54 397,400, 402, 407,426, 430,437
Israel 25-33, 36, 39, 4 2 - 44, 47s, 55, 66,
68s, 7 3 ,8 5 ,9 5 ,1 0 8 ,1 1 7 ,125s, 128, Ordenanças de Jesus 105
1 3 0 ,1 4 8 ,1 5 0 -1 6 0 ,167s, 170,179-
181, 183, 197, 208, 217, 224, 230, Palavra, a 9,29, 41, 48, 51, 61, 68, 70, 72,
238, 248, 252, 257, 260-262, 264, 76, 81s, 94, 9 6 ,1 11,113-115,121,
274, 276-281, 285, 293, 304, 310, 124,126, 143, 147, 150,164, 174,
330, 332, 340, 350, 362, 368-370, 188, 196, 207, 210, 238, 252-254,
380, 382, 3 8 7 -3 8 9 ,4 0 5 -4 0 7 ,417s 256, 259, 267, 275, 283, 290, 306,
311, 314, 319, 339, 344, 353, 356,
Jejum 58s, 226-229 359, 392, 394s, 397, 399, 401,409,
Julgamento, demora do 1 1 0 ,114s 415s, 42 0 ,4 2 2 ,4 2 6 ,4 3 0
Justiça (retidão) 13, 22, 32, 36, 49, 87s, Parábolas 2 1 ,23s, 40,54,77,96,104-110,
105s, 1 1 1 ,1 1 3 ,1 2 1 ,1 3 7 ,1 4 0 ,1 4 7 - 113, 115, 117, 120-123, 126, 128,
1 4 9 ,159s, 169-174,176,185-190, 1 3 3 ,1 4 0 ,1 4 3 ,1 4 5 ,1 5 5 ,1 6 5 ,175s,
1 9 4 ,1 9 9 ,2 0 0 ,2 0 8 ,2 1 3 -2 1 5 ,2 1 7 - 179, 183, 201, 247, 255, 274, 279,
2 2 0 ,2 2 3 ,2 2 6 ,231s, 234,241-243, 280, 315s, 329,339, 348, 370-372,
2 5 0 ,2 5 4 ,2 5 8 ,282s, 293,297,328, 376, 379, 398-401, 416, 423, 432,
3 4 1 ,361s, 371,377-379,381,383, 437
404s, 411, 414s, 422 Parousia 15, 21, 44, 47s, 79, 84, 86, 249,
Justificação pela fé 38,166 2 5 8 ,2 6 2 ,2 7 6 ,2 8 4 ,286s, 289,291,
301, 322, 324, 326s, 329s, 332-
Kerygma 9, 18-20, 33s, 49, 80, 163, 176, 339, 342s, 345s, 349, 351, 354,
178, 182, 197, 210, 218, 278, 339, 359,361-370, 3 7 2 -3 8 0 ,3 8 2 ,428s,
415 434-437
Paternidade de Deus 176,179-181,183-
Lei 1 0 ,9 9 ,1 1 2 ,1 2 6 ,1 3 1 ,141s, 1 5 6 ,168s, 1 8 5 ,1 9 8 ,2 0 1 ,204s,
1 7 2 ,1 8 9 ,194s, 217-245,338,341, Pecado 39, 68s, 93, 137, 139, 163, 165,
401,415-417 16 7 -170,172s, 175-177,189,216,
Literatura apócrifa 409 2 2 3 ,229s, 2 3 2 ,241s, 393s, 434
Literatura pseudepígrafa 29, 410 Pregação do evangelho 9,14, 59, 66, 70-
Literatura rabínica 29, 31,180, 266, 286, 74, 100, 103, 110, 112, 118s, 121,
304, 409 124s, 1 3 0 ,1 4 2 ,1 4 3 ,1 4 5 ,1 5 4 ,1 5 7 ,
209, 221, 239, 247, 254, 261-263,
Mediador 9 5 ,1 4 1 ,1 5 6 ,1 8 2 , 397 273-276, 280, 285, 310, 318, 338,
Messianismo 46 352-354, 366, 378, 380,400,421
Milagres 59, 66-70, 73s, 83, 85, 9 9 ,1 0 0 - Pressupostos antropológicos 195
104, 109,135, 141, 210, 275, 326, Produção de frutos 37,185,195
339, 392s, 398,423,435 Providência 8 1,131,137,198-205
432 A v in d a do R e in o

Regeneração 44, 48s, 77, 155, 196, 207, 1 2 6 ,1 2 8 -1 3 0 ,1 3 6 -1 3 9 ,1 4 1 ,1 4 4 -


338, 340, 350 160, 164-167, 169s, 172s, 175-
Reinado de Deus 30, 32 178, 180-186, 189-198, 201-211,
Reino (o termo) 27, 29, 35, 42, 45, 91, 218, 227s, 230s, 238s, 244, 254,
104ss, 256, 260-263, 270, 274, 276-282,
Reino dos céus 9s, 1 3 ,15s, 18-21,24-26, 284-287,294,299, 301s, 310,313,
32-79, 83, 87, 91-93, 96, lOOs, 317-319, 327, 337, 345, 360, 363,
104s, 107-109, l l l s , 119, 122, 369, 376, 378-380, 387, 390, 395,
124, 127, 130, 134, 136, 140-142, 400,402-405, 407, 410, 412s, 417,
145-147, 150, 153-155, 158-161, 427.437
163s, 170, 176s, 181s, 185-193, Servo do Senhor 101,130,135,137-139,
197s, 2 0 0 ,2 0 2 ,204s, 208,213,219, 141, 168, 178, 183, 278, 280, 282,
2 3 8 ,2 4 0 ,2 4 1 ,2 4 3 -2 4 5 ,247s, 251, 334s, 338s, 404
254, 262s, 265s, 268, 272s, 275s, Sistema sacrificial 225, 309-312
278s, 281,288, 310, 321, 323, 326, Sofrimentos de Cristo 291
329, 330,339, 350s, 375, 380, 382, Soteriologia 18, 168s, 173s, 176-178,
395,422 186,409
Religião pagã 13s, 30, 5 3 ,1 6 9 ,1 7 3 , 225, Soteriologia judaica 168s, 174,176
2 4 8 ,2 5 8 ,2 7 7 ,4 0 9
Remissão de pecados 37s, 72, 105, 156s, Tempo linear 18, 53, 322, 414
1 6 3 -1 7 0 ,1 7 3 -1 7 9 ,1 8 3 ,1 8 5 ,188s, Tentação de Jesus 100
1 9 1 -1 9 3 ,195s, 204-206,210,219, Teocracia do Antigo Testamento 151
2 8 2 ,2 8 5 ,288s, 2 9 4 ,2 9 7 ,308s, 312, Teologia da imanência 1 0 ,1 6 ,20s, 23, 39,
3 1 7 ,408s 4 9 .1 2 2 .1 2 4 .1 3 4 .1 4 7 .3 9 5 .4 3 7
Reprovação 153,193 Teologia iluminista 10, 12
Resgate 85, 138-143, 157, 177s, 334, Teologia liberal 13-16, 20, 37, 50, 127,
337,404 1 3 4 ,1 7 7 ,1 8 2 ,2 4 7 ,2 5 3 ,2 8 9 ,4 1 0
Ressurreição 22, 31s, 45, 49, 55s, 68, 82, Transfiguração de Jesus 80
85, 88s, 99, 103, 110, 114, 140-
144, 182, 197, 207-211, 260, 265, Unidade do reino 77, 92,115
2 7 2 ,2 7 4 -2 7 7 ,2 8 0 ,2 8 4 -2 8 7 ,293s,
301, 313, 322-331, 333-340, 350,
366, 368, 370, 377s, 382, 393, 396,
402s, 414, 422s, 425, 428-430,
435-437
Ressurreição de Jesus 110,141-143, 210,
2 6 5 ,2 7 2 ,2 7 5 ,2 8 0 ,2 8 4 , 323, 326s,
333, 335s, 338,340, 377,430
Sábado 226ss
Salmos de Salomão 30, 32, 48,148
Salvação 14, 18s, 22-24, 26s, 29s, 32s,
35, 38s, 41s, 49s, 53s, 56s, 58-62,
66-78, 82, 86s, 91s, 94, 99, 103,
105-108, 112, 115, 119-121, 124,
Uma apresentação completa e abrangente do reino.
Leva em conta interpretações influentes e variadas, inclusive
as da erudição crítica. Apresenta argumentos fortes para
refutar pontos de vista equivocados ao mesmo tempo em
que estabelece a validade de suas conclusões.

"O Dr. Ridderbos desenvolve sua exegese por meio de uma


abordagem totalmente bíblico-teológica, ou seja, a Escritura
deve ser entendida como fornecendo sua própria interpretação
à luz das circunstâncias histórico-gramaticais de sua
comunicação ao ser humano pelo Deus soberano do universo
que é, ao mesmo tempo, o Redentor pactuai de seu povo."
Do Prefácio

O Dr. Herman Nicolaas Ridderbos (PhD) (1909-2007) foi um


dos mais notáveis nomes relacionados à abordagem histórica-
redentiva da Teologia Bíblica que distinguiu o Westminster
Theological Seminary. Aposentou-se como professor emérito
de Novo Testamento no Seminário das Igrejas Reformadas em
Kampen, Holanda. Entre outros trabalhos monumentais
escreveu A Teologia do Apóstolo Paulo, publicado no Brasil pela
Editora Cultura Cristã.

R eino de D eu s / Teologia Bíblica


Es ca to lo g ia


6DITORA CULTUBfi CRISTÃ
www.editoraculturacristá.com.br 9 788576 223412

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